Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

 Textos literários em meio eletrônico

Moinhos de vento, de Bastos Tigre


Texto-fonte:

Moinhos de vento,

Rio de Janeiro: Livraria Editora Jacintho Silva, 1913.

 

ÍNDICE

CREDENCIAIS

CREDENCIAIS

RECOMENDAÇÃO NECESSÁRIA

PROFISSÃO DE... CARIDADE

MUSA RISONHA

ARTIFÍCIOS D’ARTE

AMORES... AMORES... AMORES...

DEFINIÇÃO

INCORRIGÍVEL

FRANCAMENTE...

 

OLHOS POLICIAIS

ESCALA AMOROSA

ZODÍACO PASSIONAL

DENTES

PASTEIS DE BRISA

PALAVRAS

SONHO

MUSA DOMINICAL

PALESTRA

AMOR E MEDO

OLHOS

 

GOSTOS

COMPENSAÇÕES

AMOR CADASTRAL

O CARRO DIANTE DOS BOIS

MASCOTE

VÊNUS DOMÉSTICA

MAS...

A CARTA

CASAMENTO POR AMOR

TROCA D’OLHOS

NAUFRÁGIOS DO AMOR

 

VACINA OBRIGATÓRIA

PÉ PARA UM SONETO

RINHA

EXTRAVAGÂNCIAS

CASO DE TOLERÂNCIA

AMOR GRAMATICAL

CORAÇÃO CALEJADO

PONTOS NOS II

CARTAS NA MESA

ELAS POR ELA

ELOQUÊNCIA DO OLHAR

 

AMOR ELEITORAL

EQUILÍBRIO DOMÉSTICO

SANDIA DEA

AMOR “DE PRONTO”

AMOR MOLHADO

NO TRIBUNAL

CONSPIRADORES

TEMPORA MUTANTUR

AMOR ALGÉBRICO

SNAP SHOT

ISOLAMENTO

 

RESFRIAMENTO

SINTAXE FEMININA

RELÍQUIAS

DEPOIS DA TEMPESTADE

AMOR GEOGRÁFICO

9° - NÃO DESEJARÁS

MADRIGAL

IDEAL FEMININO

A VIZINHA

TANTALISMO

ILHA DA SAPUCAIA

À LUZ DA LUA

 

VIBRANDO A PRIMA

AMOR GEOMÉTRICO

ERA NO OUTONO...

PAPÉIS VELHOS

GUERRA ÍTALO-TURCA

FORÇA SUGESTIVA

O LEQUE E A BENGALA

ETERNO AMOR

CATEQUESE DOMÉSTICA

CIÚMES

CASO BANAL

 

SUICÍDIO POR AMOR

CARINHOS

PETIT-BLEU

AMORES ALHEIOS

AMOR HIDRÁULICO

LUA-DE-MEL

OPINIÕES

VIDA NOVA

BEIJOS NO LEME

LOVE EXCHANGE

GRANDE AVENIDA

 

A QUANTO LEVA O AMOR

RESOLUÇÃO

O RESCALDO

CAUSA GEOMÉTRICA

A UMA MENINA

OLHOS D’ÁGUA

MILAGRES DO AMOR

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA

MADRIGAL DA PAIXÃO

AMOR E FÉ

 

MUSA FESTIVA

NATAL

A CONSOADA

PRESENTE DE FESTAS

AGRADECIMENTO

ALELUIA

DEPOIS DA PÁSCOA

A BONECA

CARNAVALESCOS I

CARNAVALESCOS II

CARNAVALESCOS III

CARNAVALESCOS IV

 

CARNAVALESCOS V

CARNAVALESCOS VI

AS DATAS NACIONAIS

1° DE JANEIRO

24 DE FEVEREIRO

21 DE ABRIL

3 DE MAIO

13 DE MAIO

14 DE JULHO

7 DE SETEMBRO

12 DE OUTUBRO

 

2 DE NOVEMBRO

15 DE NOVEMBRO

HILÁRITAS

 A ARTE E A VIDA

INTERESSANTE

MODAS

SUICÍDIOS

A PULGA

ALMA EM FESTA

SUBINDO A SERRA

DRAMALHÃO

 

A SEMANA DO BOÊMIO

A UM PLUMITIVO

NO EGITO

CARTA A UMA AMIGA

CAVALHEIRO ANDANTE

APETITOSA

A VOLTA

RESPOSTA A UM AMIGO

PANTEÍSMO

HORAS TRÁGICAS

A MINHA GREVE

 

OS SENTIDOS: VER

OS SENTIDOS: OUVIR

OS SENTIDOS: CHEIRAR

OS SENTIDOS: GOSTAR

OS SENTIDOS: APALPAR

ODE AO POVOAMENTO

PANTEÍSMO

SUPLÍCIO DE “PRONTO”

MENINA E MOÇA

O AEROPLANO

A UM POETA

 

SURDINA À CHUVA

OS FUSOS

PELA MULHER FEMININA

VERSOS VERSUS DIVERSOS

A SÃO BOCAGE

IDEAL HUMANO

PARA ONDE APELAR?

TEATRO DA VIDA

HOMEM SUPERIOR

ELOGIO DA MUDEZ

O ENGROSSADOR

 

MANIFESTAÇÕES

OS ABEXINS

MAL DISCRETO

RETRATO LITERÁRIO

OS SNOBS

SOBERBA

PLEBISCITO DA MODA

ECOS MUNDANOS

A UMA ESTRELA

ELEGÂNCIA BINOCULAR

GENTILEZAS DO TEMPO

 

TRANSFORMISMO

UMA SESSÃO CLERICAL

A JUPE CULOTTE

FÁBULA URBANA

OS GOMOS

O LEÃO RECONHECIDO

PRESO POR SER CÃO

A MOLÉSTIA DE CHAGAS

MODOS DE VER

O AUTOMÓVEL E O BURRO

O URSO E OS CAÇADORES

 

A SEGUNDA VINDA DE CRISTO

A CONQUISTA DA BAHIA

VISITA DE FINADOS

NOTA DIPLOMÁTICA

RETRATAÇÃO

REPISANDO

O NATAL DA REPÚBLICA I

O NATAL DA REPÚBLICA II

A VOLTA DAS ANDORINHAS

 

A DEFESA DA BORRACHA

A PÁGINAS TANTAS

 

MOINHOS DE VENTO

Versos de

D. XIQUOTE

______________

CREDENCIAIS

A COELHO NETO,

ourives da frase.

A J. CARLOS,

poeta da caricatura.

 

CREDENCIAIS

Neste livro não há queixumes nem gemidos:

De luto a minha alegre musa não se atreve;

E, em matéria de tons, de cores de vestidos,

Prefere ao roxo e ao negro, — o rosa e o azul celeste.

São a vida e o amor meus temas preferidos;

Não achareis aqui nem sombras de cipreste,

Nem soluços de dor, nem corações feridos,

Nem franquezas brutais à maneira de Alceste.

Com seus contras e prós a vida encaro e aceito;

E a falta de outro mundo e de outra melhor gente,

Com tal gente e tal mundo eu vivo satisfeito;

O que vem demonstrar, irrefutavelmente,

Que tenho ao meu serviço um fígado perfeito

E que sou possuidor de estômago excelente.

 

RECOMENDAÇÃO NECESSÁRIA

(Ao leitor)

Lê meus versos alegres, predisposto

A neles descobrir pilhéria a graça;

E é provável que, então, se satisfaça

O teu pichoso e requintado gosto.

Mas se a fonte dos risos tens escassa

Ou tens de nuvens carregado o rosto,

Dos leves humorismos que hei composto

Não há milagre que sorrir te faça.

De ti, que não de mim, depende o “estado

De graça” com que a rir te deliberes

Dos meus poemas brejeiros ou perversos.

Escolhe, assim, de os ler, o instante azado;

Pois que conforme o teu humor tiveres

“Terás o entendimento dos meus versos”.

 

PROFISSÃO DE... CARIDADE

Muitos hão de exclamar, abrindo este volume:

Versos? inda aqui há quem nos componha e imprima?

Outros refletirão: — que maldito costume

O de o mundo entulhar com montanhas de rima!

Um crítico dirá com rancor e azedume:

— Mais um poeta?! que horror! caia-lhe o raio em cima!

E outro: — sem requerer semente, rega ou estrume,

Brota qual tiririca o verso em nosso clima!

Falo eu: — de duas, uma: ou meus versos vadios

Não são de todo maus e ao crítico iracundo

Devo, em vez de rancor, inspirar elogios,

Ou são fúteis, banais, banais, pobres de forma e fundo;

Neste caso, leitor, dá-me dois assobios

E só; que um poeta a mais não causa dano ao mundo.

 

MUSA RISONHA

Eu, em tudo que vejo ou que sinto, procuro

Colher a nota alegre, a linha caricata;

Busco entre o ferro negro o alvo filão de prata,

Cato a pepita de ouro entre o minério escuro.

Crente no amor, no bem, nas glórias do futuro,

Por do meu rubro ideal tocar a meta exata,

Eu faço do meu verso um chocalho de lata

Que do lerdo Bom Senso ao pescoço penduro.

Este irá, vida em fora, a suportar o peso

Do ceticismo vão de mil sistemas sábios,

Forrada a alma de crepe e calçada de lousas.

Segue-o Musa, de olhar festivamente aceso,

Deixando trescalar da rubra flor dos lábios

Um sorriso aromal para todas as cousas!

 

ARTIFÍCIOS D’ARTE

A Goulart de Andrade

Amo o verso corrente e espontâneo; perfeito,

Mas sem que a forma seja um cilício que o oprima;

Que vos dê a impressão de que já estava feito,

Com o metro justo, a ideia clara, a exata rima.

A rir, as regras d’Arte as acato e respeito;

Apraz-me trabalhar a escopro, a mó e a lima

O bloco de uma ideia e sorrir satisfeito

Ao sonho de arrancar dele a minha obra prima.

Traço um leve bosquejo, um breve ensaio, — escorço

Sobre o qual suo e anseio e a alma inteira extravaso;

E cato a rima e busco o efeito e a frase torço;

Mas sou tal como quem, pondo flores num vaso,

Emprego todo o amor, todo o cuidado e esforço

Para mostrar que o fez assim, por mero acaso...

 

AMORES... AMORES... AMORES...

(MUSA AMORÍSTICA)

 

DEFINIÇÃO

Mas como causar pode o seu favor

Nos mortais corações conformidade

Sendo a si tão contrário o mesmo amor?

CAMÕES

Amor é mal e é mal que não tem cura;

Mas sendo mal, sofrê-lo nos faz bem.

Chora o amante se amor lhe dá ventura

E ri da dor, se dele a dor lhe vem.

O amor é vida e leva à sepultura;

É doce filtro, o amor, e fel contém;

É luz, mas entretanto, em noite escura

Vive, às cegas, o alguém que ama outro alguém.

O amor é cego e vê todo o invisível;

Sendo imutável, quase sempre é vário,

É deus e faz de um santo um pecador

Fraco e indefeso, é força irresistível;

Sendo pois a si própria tão contrário

Quem é que pode definir o amor?

 

INCORRIGÍVEL

Aos vinte anos amei gentil donzela;

— Trágico amor que só pesar me trouxe!

Pela de outrem caríssima costela

Aos vinte e dois meu peito apaixonou-se.

Quantos suplícios padeci por ela!

Fugi; mas eis que o olhar sereno e doce

De uma jovem viuvinha alegre e bela

Por mim (que horrendo gosto!) enfeitiçou-se!

Rolei à Dor por íngreme declive!

Então Vênus amei que amores vende

E... resultados desastrosos tive!

E inda amo e sofro! ah, quem tal cousa entende?

— Se mais se aprende quanto mais se vive,

Menos se sabe quanto mais se aprende...

 

FRANCAMENTE...

Não procures em mim fidelidade;

Nem cousa tal é cousa que se peça

A quem, como eu, sincero, te confessa

Amar no amor a eterna variedade.

Podia prometer-se... À vã promessa

Prefiro a nobre e sólida verdade:

Com o meu temperamento e a minha idade

Não é o amor grandeza que se meça.

Não se ama por tamina ou por compasso,

Em dose certa, às gotas ou às colheres...

Ama-se enquanto houver na vida espaço!

Amar-te, a ti somente? é o que me queres?

Pois, minha flor, desculpa-me; não faço

Tamanha afronta... ao resto das mulheres!

 

OLHOS POLICIAIS

Tu que és dona de uns olhos tão bonitos,

— Os mais bonitos olhos da cidade, -

Porque um olhar bondoso, de piedade,

Não dás aos pobres corações aflitos?!

Tens, ao contrário, uns modos esquisitos

De olhar a gente, uma severidade,

Que lembra o olhar de grave autoridade

Escutando o não pode! dos conflitos.

Em vez do etéreo lume da carícia,

Cuido ver neles um Vesúvio aceso

De orgulho, de rancor e de malícia;

E tremo, inerme, humílimo, indefeso,

Antes esses dois soldados de polícia

Que a cárcere do amor me levam preso!

 

ESCALA AMOROSA

Chove, Mimi; longe do teu carinho,

Neste retiro abandonado e só,

Como perdido pássaro sem ninho,

      Fico de causar “dó”.

E tu não vens, ó luz de minha vida!

Desvairado, nervoso, eu chego até

A julgar-te (perdoa-me, querida!)

      De um feio crime “ré”.

Já no abismo da dor me atiro e engolfo

Assovio a Boemia e penso em ti,

Doido, a clamar nuns estos de Rodolfo:

      Mimi! Mimi! Mi... “mi”.

Abro a janela. A noite está tão fria!

Meu clown-coração mil pulos dá;

Quero sentar-me... a sala está vazia

      E falta-me só “fá”...

Que noite hostil! que chuva impertinente!

Astro divino, traze-me o arrebol!

Surge na esquina! a esquina é o meu oriente,

        Retardatário “sol”.

Eu bem quisera ir ver-te à casa, as gotas

Afrontando da chuva iniqua e má;

Porém na rua há lama e as botas rotas

      Proíbem-me de ir “lá”.

E chove e chove... está tão quente a sala...

Não! é melhor que eu fique mesmo aqui:

A minha dor vai indo nessa escala

      E acabará por “si”.

 

ZODÍACO PASSIONAL   

Via-a em janeiro; em fevereiro amei-a;

Em março resolvi dizer-lhe tudo;

E, jogando confetti, pelo entrudo

Em su’alma esvaziei minh’alma cheia.

Em princípio de abril, se não me iludo,

Roubei-lhe um beijo: ação iníqua e feia

Que em maio repeti, depois da ceia,

Por traz de um repositório de veludo.

De “quase noivo” em junho era o meu posto;

E em fins de julho, se inda bem me lembro,

Ela pediu-me que a pedisse. Agosto,

Setembro e outubro foram-se; em novembro

Perguntou-me se estava ou não disposto...

Foi-se o ano; fui-me eu, feliz dezembro!...

 

DENTES

Tua boca é o meu mal, é o meu pecado

Ela que é feita para o bem e a prece;

Cada fila de dentes me parece

De piano microscópico teclado.

Ditoso eu fora, se algum dia viesse

A ser por ti mordido e mastigado.

Que me importava a dor? diz o ditado:

Com suplícios de amor não se padece.

Dentro de um cofre forte, egoísta e avaro,

Quisera um deles só possuir ao menos,

Como um berloque original e raro.

Dentes de encher o coração e avista:

Transparentes, iguais, fortes, pequenos...

Como trabalha bem o teu dentista!

 

PASTÉIS DE BRISA

Vê, querida, o futuro que te espera,

Se te resolves a casar comigo:

Viveremos no reino da Quimera,

Sob um plácido céu, radioso e amigo.

De beijos numa eterna primavera,

Tangendo a lira como um bardo antigo,

Do pão do céu hei de ficar à espera

Numa estalagem — romanesco abrigo! —

Tu cuidarás da roupa e da cozinha;

Eu farei versos, ao clarão da lua,

Contos te contarei... da carochinha.

Quem há que uma ventura igual possua?

Eu, faminto direi: — querida, és minha!

Tu, com fome dirás: — meu bem, sou tua!

 

PALAVRAS

Palavras de mulher leva-as o vento!...

Triste de quem nas ouça e nelas creia;

Que, sendo frágeis como frágil teia,

É, por vezes, quebrá-las, doido intento.

Palavras que não vêm do pensamento

E iludem como cantos de sereia;

Palavras que se escrevem sobre a areia

E a onda chega e apaga-as num momento.

Quanta mentira, em notas cristalinas

Sai da garganta musical de um anjo

De alma traidora e de feições divinas!

No entanto, em confessar me não constranjo

Que prefiro as mentiras femininas

Às maiores verdades de um marmanjo.

 

SONHO

Sonhei um dia que ao teu lado

— Ventura esplêndida e sem par —

Como buscando um El-Dorado

Eu caminhava para o altar.

No vasto templo, iluminado

Como nas festas do padroeiro,

Para assistir nosso noivado

Se comprimia o bairro inteiro.

Íamos nós pelo adro, e custo

Rompendo a densa multidão.

E estavas pálida de susto

E estava eu frio, de emoção.

Os santos todos dos altares,

A cobiçar os teus encantos,

Te devoravam com uns olhares

Mais pecadores do que santos.

Aproximou-se o sacerdote,

Fez-te ajoelhar juntinho a mim,

E a nos casar, o bom velhote

Dizia coisas em latim.

Rútila pérola de pranto

Vi, que brilhava no teu rosto,

Quando soou no templo santo

A voz do padre: — é de seu gosto?...

E a comoção contendo a custo,

Voltaste os olhos para mim

E com voz trêmula de susto

E de prazer disseste: — sim!

— Sim! respondi também, sorrindo

A igual consulta alvissareira:

Se era meu gosto (ó gosto infindo!)

Ter-te por minha companheira.

E a nos dizer com modos ledos

Fôssemos dois amigos fiéis,

O sacerdote em nossos dedos

Pôs os simbólicos anéis.

E, então, nós dois, muito contentes

Sempre a sorrir, agradecidos

Aos mil abraços dos parentes

E aos parabéns dos conhecidos,

Fomos de volta para casa;

Quanto feliz então me vi!

Tinha a cabeça ardendo, em brasa,

Ao me encontrar, junto de ti.

E do coupé à sombra amiga...

(Não... de o contar terei vergonha!

Quem já casou que vo-lo diga

Quem for solteiro que o suponha)

Depois... não sei; sei que rodava

O nosso carro nupcial

E do enfin-seuls a hora soava

Junto do leito conjugal.

E retirava-te a capela

E o véu, feliz, calmo, risonho...

Bateu de súbito a janela

E eu despertei. Pérfido sonho!

 

MUSA DOMINICAL

Sempre aos domingos, por costume antigo

Vou à missa; não é que eu seja um crente,

Um bom cristão piedoso e a Deus temente,

De ladainhas e orações amigo.

Não. Vou à missa como toda gente

Que ama; — a igreja é do amor um suave abrigo —

E eu vou à missa para estar contigo,

Tendo Nosso Senhor por confidente.

Da Virgem Santa o altar entre fulgores,

Olho; e só vejo a graça feiticeira

Dos teus divinos olhos pecadores!

Ó Virgem Mãe, das virgens a padroeira!

Perdoai que por amor dos meus amores

Eu vos faça de pau de cabeleira!...

 

PALESTRA

Conversamos de amor; é um velho tema

Em que se encontram sempre novidades;

E nenhum filosófico sistema

Já disse dele todas as verdades.

Da vida é o amor a aspiração suprema:

Ama-se sempre e em todas as idades;

Dos incultos sertões na plaga extrema

Como à febril pletora das cidades.

Suponhamos que nós... (chega a cadeira

Para perto de mim)... que nós à estância

Etérea voamos da paixão primeira...

Em nossas almas fulge, eterna, a infância...

Mas me calo; e eu não sei desta maneira

Falar de amor... a um metro de distância!

 

AMOR E MEDO

Junto de ti me foge a compostura,

Perco de todo o espírito e o bom senso;

Tremo, transpiro, enxugo as mãos ao lenço,

Numa triste e ridícula figura.

Dos teus olhares ao fulgor intenso

— Bico de gás da minha vida escura —

Fico a pensar, de frases a procura,

Tanto mais imbecil quanto mais penso.

Temo dizer-te o que outro já te disse;

E eis-me; qual asno em frente de um palácio,

Mudo, com medo de dizer tolice...

Junto de quem se adora é-se pascácio:

Voltaire vale o senhor de La Palisse

E o João de Ega é um Conselheiro Acácio.

 

OLHOS

Olhos conheço-os eu de várias cores

E de expressões e tiques mais diversos;

Feitos uns do equador para os ardores

Outros em gelo eternamente imersos.

Olhos molhados... destilando amores,

Que pedem beijos e que inspiram versos...

E os olhos mortos comprometedores

Que têm de belos quanto de perversos.

Vós, entretanto, a possuidora sois

De uns olhos tais (perdoem-me dizê-lo)

Que deus, assim, só fez os vossos dois.

E, ou fosse por capricho ou desmazelo,

Vo-los fez tão bonitos e depois

Quebrou, per omnia secula, o modelo.

 

GOSTOS

— Ora um beijo... afinal que custa um beijo?

Eu não digo que o dês a toda a gente;

Mas se se apresentou tão belo ensejo,

Porque mo negas tão avaramente?

Lábios juntos... um som... e o meu desejo

Satisfeito! é tão rápido!... consente!

Nenhum grande pecado eu nisto vejo;

E que o visse! o bom Deus é complacente...

— Não dou, já disse! e grito se mo deres!

— Bem! não faças tamanho espalhafato...

(Ó que absurdo mau gosto o das mulheres!)

Mas, meu benzinho, vamos ser cordatos:

Como é que a dar-me um beijo, tu preferes

Dá-los na cara ignóbil dos teus gatos?!

 

COMPENSAÇÕES

Ora, eu bem sei que existem pelo mundo,

Mais do que tu, muitas mulheres belas;

De rosto melancólico ou jucundo,

Estas coradas, pálidas aquelas.

De olhos verdes, da cor do mar profundo

Ou negros como as noites de procelas;

E eu no mesmo desdém todas confundo

Sejam casadas, viúvas ou donzelas.

Tu, minha doce e barulhenta amiga,

Como a lua possuis diversas fases;

Brota em tu’alma o lírio como a ortiga.

Mas dentre as outras todas me comprazes;

— Nenhuma tem tal fúria quando briga,

Nem tal meiguice quando faz as pazes.

 

AMOR CADASTRAL

A profissão é o Homem. Meu amigo Juca da Rua, empregado na Repartição da Planta Cadastral, à custa de lidar com os nomes de ruas e arrabaldes do Rio de Janeiro, acabou por identificar-se com eles a ponto de, nas circunstâncias mais sérias da vida, não lhe sair a cidade da cabeça. Há tempos o Juca me deu a ler, nas costas de uma planta do Rio, a poesia que segue, brado de desespero de um pobre coração vítima do abandono da sua eleita nestes versos confundem-se o homem e o funcionário: o seu astro e o seu cadastro; poderão ser lidos como um primor de lirismo piegas ou consultados como um guia da Cidade. Baedeker e Casimiro de Abreu.

Penso que é teu amor um bem perdido;

E, assim pensando, o meu martírio é tanto,

Que dos meus olhos corre, amargo, o pranto

      Como um rio-comprido...

Se não te vejo sinto frio; a calma

Que às vezes mostro é apenas aparente;

Porém, se chegas, teu olhar ardente

      Bota-fogo em minh’alma!

O meu sorriso a toda gente ilude;

Não reparam que o amor que te consagro

Faz com que eu vá ficando feio e magro

      E perdendo a saúde.

E a tua suave, mística beleza

Faz-me pensar a todos os momentos

Em mosteiros, em claustros, em conventos,

      Minha Santa Tereza!...

Outrora cheia de vaidade e orgulho,

Sinto agora minh’alma combalida,

Como se andasse há séculos na vida

      Pisando em pedregulhos.

Queima-me o peito a rubra chama acesa

De uma paixão tão grande que até penso

Que só da mão de Deus o palmo imenso   

       Lhe mede a real grandeza!

De nervoso que estou a mão me treme;

No barco da existência, em que navego,

Sou como o nauta abandonado e cego

      Que tem perdido o leme.

E já nem posso rir (maldito fado!)

Que por mais tempo este suplício arroste

E em breve, eu, que era teso como um poste,

      Andarei corcovado...

Numa perigosíssima aventura

Para as lutas do amor as armas tomo;

Ele é um doirado e saboroso pomo

      Mas tem a casca dura...

Já consultei abalizado mestre

De moléstias cardíacas, porquanto

Vivo agora metido a sós, num canto,

      Como um bicho silvestre...

E o tempo vai passando dia a dia

Mais aumenta a tortura começada;

Tem piedade de mim, criatura amada

      E traz-me alegria!

Antigamente quão diverso fado

Me traçava a vida a trajetória!

Eu julgava alcançar o alto da glória

      Num viver encantado!

Passo às vezes em pranto horas inteiras,

Lembrando os madrigais que te fazia

À sombra calma e cheia de poesia

      De flores laranjeiras:

— Olha que calma, que serenidade!

À beira mar um dia segredei-te,

E replicaste, em místico deleite,

      A praia dá saudade...

Os dias da semana, amor, distingo-os;

Acho-os às vezes tão banais e fúteis!

Quando te vejo, são meus dias úteis

      Os outros são domingos.

Não era de um palácio soberana

Que junto a mim eu te quisera, amada;

Mas à sombra de uma árvore copada:

      Sob a copa a cabana...

Entrei no “High Life” um dia; e alguém a ti

Foi-te contar que me bispara entrando:

A ti, Juca, disseste-me chorando,

      Bem fica andar aí?

Sem teu amor, curtindo amargos prantos,

A vida passo; os dias se renovam,

E eu rezo a S. Clemente, a S. Cristóvão,

      Rezo a todos os santos...

Se acaso eu fosse rico, ou se um tesouro

Achasse um dia, ó pérfida querida!

Faria que aos teus pés, por toda a vida

      Corresse um rio d’ouro.

Junto de ti, do amor se tive o gozo,

Tive o ciúme também que a alma devora;

E, no entretanto, abandonando agora,

      Me retiro saudoso.

Sem esperança de uma vida nova,

Debalde falo à rocha do teu peito!

Meu pobre coração, em pó desfeito,

      Irá já para a cova.

Em tristes versos eu te canto e louvo,

Mas sei que pobre sou de engenho e de arte;

Meu sempiterno amor, para cantar-te

      Quisera engenho novo!

Mas com o meu estro pálido e bisonho,

Cantando esta afeição sincera e santa,

Amante cruel, do meu amor a planta

      Às tuas eu deponho!

 

O CARRO DIANTE DOS BOIS

— A fina trama de razões que eu urdo

Para te convencer, ó criança louca,

Tu desfazes com gritos e eu me aturdo

Ouvindo um semelhante bate-boca.

Para escutar o teu berreiro absurdo

Toda paciência deste mundo é pouca;

Tenho já, de te ouvir, o ouvido surdo,

Tu, de gritar, tens a garganta rouca.

Disse ele; e ela tornou: — quando eu solteira

Você corria atrás de mim... é o fato

E espero que o negar hoje não queira.

— Sim, é verdade; aliás fora insensato

(O marido conclui) que a ratoeira

É que andasse a correr atrás do rato...

 

MASCOTE

Há dias recebi uma folha de trevo

N’uma carta de Laura, em que ela me escrevia

Muitas frases de amor com pouca ortografia,

Em letra esbelta, igual, como feita em relevo.

Mas cousas tais expor ao público não devo.

Que é que importa, afinal, o que a carta dizia?

O fim que deu à folha a minha fantasia

É o que, indiscretamente, aqui em baixo descreve.

A vizinha de frente (um perfil de judia

E um par de olhos que são dos meus olhos o enlevo)

Das mascotes possui a inocente mania.

E ontem (meu crime vil a confessar me atrevo)

Para lhe merecer a graça e a simpatia,

Mandei-lhe de presente a tal folha de trevo...

 

VÊNUS DOMÉSTICA

Surge das ondas dos lençóis de linho;

Arfa-lhe o seio, em férvida procela.

O sol, abrindo a flamejante umbela,

Matiza de ouro as pedras do caminho.

Vem um raio de luz dizer baixinho,

Depondo um beijo nas espáduas dela:

— Vênus! salta do leito, abre a janela

Do teu belo e perfumoso ninho!

Ei-la que se ergue; veste-se de pronto;

Sinto-lhe o quente e trescalante cheiro,

Seus passos, conturbado e ansioso, conto.

Vejo-lhe o vulto a deslizar ligeiro,

Ouço-lhe a voz... Por Jove! e desaponto:

— Vênus a discutir com o quitandeiro!

 

MAS...

Sempre este mas fatídico, interposto

Em nosso amor intenso e conturbado!

Sempre essa conjunção que é o meu desgosto

E o coração me põe desconjuntado.

— Amo-te muito! (dizes) mas... e o rosto

Rubro fica-te à ideia do pecado;

E eu vou saindo, muito a contragosto,

Contra tanta virtude revoltado.

De desenganos um sinistro bando

Traz-me sempre a partícula perversa,

Meu pobre coração despedaçando.

Falo-te... mas... não passa de conversa...

Ó duro monossílabo execrando!

Ó mas cruel, adversativa adversa!

 

A CARTA

Foi tua carta um cáustico, aplicado

Sobre o meu coração, de amor ferido;

Quem em dera não tê-la recebido

Ou quem me dera não te haver amado!

Abri-a com carinho e, com cuidado,

De olhar atento, ansioso e comovido,

Sem crer nas frases que já tinha lido,

Reli-as todas, triste e amargurado.

Frases escritas num raivoso assomo!

Queixas que eram terríveis estiletes,

Feroz libelo, enfim, num grosso tomo!

Cheia de acusações e de foguetes,

Tua carta me entrou pela alma como

Uma agressiva carta de alfinetes...

 

CASAMENTO POR AMOR

— Casa com ele! — Eu não! não quero!

A tal rapaz não tenho amor!

— Reflete bem, menina, espero

Que não me dês um dissabor...

— Porém, mamãe, se não o estimo...

— Ora, tolinha, a que isto vem?

O moço é rico e o nosso arrimo

Será futuro; atende bem...

O pai tem mil e tantos contos

E é velho e viúvo além do mais.

Repara bem nestes dois pontos

Num casamento essenciais.

E, sobretudo, o pretendente

É filho único; bem vês

Que é candidato arqui-excelente,

Melhor que um duque ou que um marquês.

— Porém, mamãe... — Cala esta boca!

Que é que inda queres objetar?

Tamanha sorte achas que é pouca?

Queres um príncipe esposar?

— Mamãe, se o pai é viúvo agora

Não no será, sempre, talvez...

Suponha que ele se enamora

E... bumba! casa-se outra vez?...

Se mais uns filhos vão nascendo,

Em que irá dar o nosso amor,

Se fica o mesmo o “dividendo”

E vai crescendo o “divisor”?

— Tu tens razão; nem pensei nisto...

Vamos no caso meditar;

Da minha ideia eu, pois, desisto

De com o tal moço te casar.

Porém no olhar tu manifestas

Que a um outro deste o coração;

Se o tal pequeno assim detestas,

A quem, filhinha, amas então?

Fala! se tens sinceridade

Toda ventura em ti recai.

Sê franca, pois, dize a verdade:

Quem amas tu? — E amo... o Pai.

 

TROCA D’OLHOS

Olhavas para mim com tal meiguice

E havia tanto mel no teu olhar,

Que eu, de mim para mim, vaidoso, disse:

— Esta pequena quer-me namorar.

E outro qualquer que assim, como eu, te visse

Com aquele meigo e apaixonado ar,

Não fora réu de fátua gabolice

Por nos teus olhos maus acreditar.

Errei; não era para mim que olhavas;

Ao vizinho, ao meu lado, ia o fulgor

Dessas pupilas rútilas, em lavas!

E eu supunha (ó desvio enganador!)

Que esse estrábico olhar que lhe lançavas

Para mim fosse o olhar do cego amor!

 

NAUFRÁGIOS DO AMOR

Os naufrágios do amor! o amor, em suma,

Que é senão tredo mar encapelado,

Mar de que os beijos são a branca espuma

E o ciúme — hirto rochedo alcandorado?

Quando a avalanche d’água se avoluma

— Tempestade: — paixão! bem desgraçado

O que não traz segura às mãos alguma

Tábua em que busque a terra firme, a nado.

Porém, se o pai (que é neste caso a tromba

D’água) o náufrago envolve num momento,

O pobre cansa e para o abismo tomba.

E tem que dar, enfim, perdido o alento,

Embora seja um nadador de arromba,

O mergulho final do casamento.

 

VACINA OBRIGATÓRIA

Olho, através da gaze transparente,

Os teus braços marmóreos e sensuais.

Lembra... (figuras busco, inutilmente;

São todas as metáforas banais)

Que o próprio Fídias surja novamente

E braços não esculpe aos teus iguais;

Vênus de Milo os dela, descontente,

Quebrou, provendo que iam ter rivais.

É dura a lei e em breve da vacina

A agulha vai ferir a carne em flor

Dos braços teus. A ideia me alucina,

Jenner maldigo e em face desse horror,

Mistura-se o meu ódio à Medicina,

À minha pena de não ser doutor...

 

PÉ PARA UM SONETO

Fina e esgalga; não é talvez formosa;

Mas encantos possui que, de sutis,

Só um artista os penetra, um poeta os goza

E às vezes só com os olhos, como eu fiz.

Boca de fortes lábios, voluptuosa;

E um olhar que não olha e entanto diz

Que ela um amor possui que a faz ditosa

E ao marido muitíssimo infeliz.

Mas de tudo que eu vejo e que adivinho,

Aos seus pés (bico fino, 33)

É que eu daria todo o meu carinho.

Pés que Deus ajunto e o Diabo fez!

Pés para se calçar à seda e arminho!

Pés de custar contos de réis por mês!

 

RINHA

Se nós brigamos, afinal de contas,

A culpa foi mais tua do que minha;

Pois que se as frases tinhas sempre prontas,

Prontas as frases eu também as tinha.

Eu entrei nesse jogo um tanto às tontas,

Sem ver que o amor não passa de uma rinha

E um galo bom jamais suporta afronta

De outro galo qualquer... ou da galinha.

De tudo que passou lucrei apenas

O saber que a mulher sempre é mulher:

Fora o chapéu, um bípede sem penas.

Tu ficaste sabendo — e era mister —

Que, no pátio do amor jogando as cenas,

Quem dá a nota mais alto é o Chantecler.

 

EXTRAVAGÂNCIAS

Tenho às vezes uns tais desejos insensatos

Que a paz vêm perturbar dos meus dias serenos;

São eles, ao meu ver, os sintomas exatos

De uma aduela de mais, de uma aduela de menos.

Ora que certa vez desejei ser bandeira,

Viver a tremular no alto topo dos mastros,

Seguir para um combate à frente da fileira,

Ou ficar numa torre em palestra com os astros.

Concebi de outra feita esta ambição funérea:

Desejei transformar-me em carro de defunto,

Conduzir para a cova a flor da gente seria,

Uns magros, espectrais, outros pesados de unto.

Uma ideia já tive e não menos estranha

Que dos desejos meus é dos mais esquisitos;

Quis morar numa teia e ser enorme aranha

E que as moças, então, fossem mosquitos.

Desejei ser balão, viver cindindo os ares,

Tendo, em baixo dos pés, terras, águas e montes;

Embriagar-me de luz, de oxigênio e de luares,

Cozendo a carraspana além dos horizontes.

Quis ser pedra e rolar do pico das montanhas,

Quis ser vento e agitar a copa do arvoredo;

E após ideias tais, tão grotescas e estranhas,

Quis ser o anel que meu amor trazia ao dedo.

Porém, nada me fez nem me faz sofrer tanto,

Entre tais explosões destas extravagâncias

Do que a louca ambição de que eu mesmo me espanto

Que ontem me perseguiu, pondo-me o peito em ânsias.

Foi o caso (este caso eu desejo que fique

Em discreta reserva aqui na nossa roda)

Que eu fora convidado a um certo piquenique,

Entre moças do tom e rapazes da moda.

Compareci; faltar não é do meu costume

Aos folgares do campo entre moças e flores,

Que a mim muito me apraz o silvestre perfume

Que enche as almas de vida e os corações de amores.

E a hora do repasto, assentados na relva,

Começamos a dar serviço aos nossos queixos;

Vinham-nos embalar, do coração da selva,

As canções da água clara em namoro com os seixos.

Em frente a mim, sentada, uma esbelta morena

De cabelos de treva e olhar incandescente,

Falava-me de amor, langorosa e serena,

E estava a namorar-me escandalosamente.

E eu que em todo este mundo o que mais ambiciono

São as joias, o vinho, as flores e as mulheres,

Não perdi um segundo e (digo-o em meu abono)

Sem mais indecisões lhe fiz meu pé de alferes.

Alferes?... capitão, major, que promovido

Fui, a subir de posto em rápidos momentos,

Mercê de alguns “galões” de um Chambertin, bebido

Somente em paços reais, no Olimpo e nos conventos.

Num dado instante vi seus pequeninos dentes

Brancos como o marfim da “chapa” centenária,

Foi quando, a me atirar uns olhares ardentes,

Trincava um beef em sangue a bela sanguinária.

E foi então que ao ver-lhe as pérolas da boca,

Premindo aquela carne, em transportes de guia,

Me acudiu à cabeça a extravagância louca

Que inda agora me aflige e a mente me atribula.

E desejei ser beef!... e ser na mesa posto

Nadando em mar de molho; e de um garfo nos dentes

Ser por ela espetado e ter o enorme gosto

De me ver mastigado em dentadas valentes.

Foi essa a minha ideia extravagante e louca,

— Ambição insensata entre as mais insensatas:

— Ser beef! — ir alcançar o céu de sua boca,

Misturado com arroz, cebolas e batatas...

 

CASO DE TOLERÂNCIA

Duas horas. Não vem!... De certo alguma

Cousa imprevista aconteceu com ela...

Pela décima vez corro à janela,

A ver se vejo o seu chapéu de pluma.

Mas que! faltar assim, sem mais aquela!...

Sem me escrever... sem me avisar, em suma?

Fumo. É notável; toda gente fuma

Quando espera a mulher amada e bela!

Batem à porta; corro a ver: — Querida

Dá-me em teu beijo a glória, o amor, a vida,

Mata-me a sede que meu ser devora:

Certo, a quem ama estranho não parece

Que eu não tivesse tempo ou me esquecesse

De perguntar-lhe a causa da demora!...

 

AMOR GRAMATICAL

Amar é verbo regular às vezes;

(Depende da pessoa e do momento)

Quase sempre aparece o complemento

Ao fim de um certo número de meses.

Tenho sofrido bárbaros revezes

Sempre que em regra conjugá-lo intento;

E até lancei ao negro esquecimento

Os meus velhos compêndios portugueses.

Amar!... verbo de encher... a alma da gente!

Conjugável de modo assaz variado

E em pessoas e tempos igualmente.

Sabes? é um verbo que eu adoro e evito;

Mas quem me dera tê-lo, conjugado

Por nós dois no presente do infinito!...

 

CORAÇÃO CALEJADO

Culpa me foi levar o amor a sério

E triste andar com prantos e queixumes,

Vendo a vida entre as névoas de um mistério

De alma cheia de dúvidas e ciúmes.

Hoje, feliz de mim! não temo o império

De teu lânguido olhar em que resumes

O céu e o inferno, um berço e um cemitério,

Veludo e espinhos, pétalas e gumes!

Já agora o amor me não produz abalos;

Calmo e alegre, sorrio à tentação

De uns olhos meigos, sem sequer fitá-los.

E contra o antigo mal procuro, em vão,

Um cordicúrio que me apare os calos

Que tanto amor me fez no coração.

 

PONTOS NOS II

Diz Rostand, poeta de gosto,

(No Cyrano isto se lê)

Ser o beijo um ponto posto

Sobre o “i” do verbo aimer.

Mas de tal verbo somente?

Rostand, discordo de ti;

De um tal ponto pode a gente

Fazer uso em qualquer “i”.

Outro dia à minha amada

Eu disse: ora já se vê!

É letra privilegiada

O tal “i” do verbo aimer?

Cousa tal não tem sentido

Em Londres ou mesmo aqui,

Pois é fato assaz sabido:

To love e amar não têm “i”.

Ora, sendo isto verdade,

O tal ponto, bem se vê,

Pode servir à vontade;

Não é só do verbo aimer.

Desprezo conselhos sábios

E, amor, garanto-te aqui

Que se me desses teus lábios,

Lhes poria o ponto no “i”.

E depois que protestasse

Mestre Rostand; qual o que!

Que outro ponto ele arranjasse

Para o i do verbo aimer.

E se aos i’s faltarem pontos

Noutros lábios juvenis,

Eu aqui tenho os meus prontos

Para pôr pontos nos “i’s”...

 

CARTAS NA MESA

Sim, madame, o melhor é não perdermos

Nosso tempo em tolices. Acabemos.

Em matéria de amor sou dos extremos;

Detesto o justo meio e os médios termos.

Há que tempo que, idiotas, procedemos

Como um casal de velhos ou de enfermos!

Um pouco mais audazes cumpre sermos

Ou logo um tiro nessa história demos.

Jamais com o platonismo me coaduno:

É a teoria mais tola e mais daninha

Do tal grego, de Sócrates aluno.

E creio bem não precisar dizer-vos:

Quando Platão a imaginou não tinha

A nossa idade nem os nossos nervos...

 

ELAS POR ELA

Tens às vezes na voz tanto azedume

Que espantado me pões, de boca aberta;

De dia a dia aumenta de volume

Teu fero zelo que me desconcerta.

Do teu olhar crepitante lume

Faz-me medroso e põe-me de olho alerta;

És a Otela cruel, rubra de ciúme,

Que de um Desdêmono a garganta aperta.

Sê mais cordata; porque eu te amo e, acaso,

Se por outra mulher de amor me abraso,

Se a abraço e beijo, por que assim te afrontas?

Que tais desvios te não deem tormentos:

Minh’alma é toda tua e em tais momentos

Nunca me esqueço de fazer de contas.

 

ELOQUÊNCIA DO OLHAR

Nunca eu te visse, nunca eu te encontrasse,

Ou te encontrasse e visse em noite escura,

Sem ver-te a deslumbrante formosura

E essa estranha expressão que tens na face.

Grave, fingi bom senso e compostura;

Porém, por mais fingir que eu procurasse,

Bastava um teu olhar por mais fugace

Para tornar-me a linha mal segura.

Mudo fiquei; mas resistir quem há-de,

Por mais que se requinte em ser honesto,

De um olhar à diabólica maldade?

Do nosso amor, sem frases e sem gesto,

O meu olhar dizia-te a metade

Enquanto o teu me segredava o resto.

 

AMOR ELEITORAL

Disputo uma cadeira no teu peito.

Bem sei que existe um outro candidato,

Mas conto certo que hei de ser o eleito

E com fervor político me bato.

Lanço o meu manifesto; entro no pleito

E de alistar meus eleitores trato;

Mas receio que eu vença de “direito”

E que outro seja o vencedor de “fato”.

Nas eleições há tantas falcatruas...

Atas falsas forjadas a socapa...

Que, por muito que influência me atribuas,

Um receio a confiança me solapa;

Não do rival, mas que, das nossas duas,

Vença “no esguicho”, uma terceira chapa.

 

EQUILÍBRIO DOMÉSTICO

Isto de se gostar de uma pessoa

Muitas vezes começa na brincadeira;

Mas se a gente deveras se afeiçoa,

Fica querendo bem a vida inteira.

E assim, à proporção que o tempo voa,

Voa a gente do amor na asa ligeira,

Entre uma frase que a alma nos magoa

E outra que no-la adoça, lisonjeira.

Exemplo: nós. Que forças há capazes

De abalar nosso amor, que tem raízes

Que lembram de um castelo as fundas bases?

E assim os meus dias bem felizes,

Equilibrando as festas que me fazes

Com os desaforos todos que me dizes.

 

SANDIA DEA

Teus olhos negros têm as atrações do abismo;

E o teu basto cabelo é a selva tropical

Onde me apraz entoar, em crises de panteísmo,

Entre beijos de fogo os salmos de um ritual.

Existe no teu busto o austero classicismo

Da arte praxitelesca; e teu colo lirial

É mármore pagão a arfar no isocronismo:

Da arte grega aplicada à função animal.

Mas teus dentes estão num triste antagonismo

Com a perfeição do resto. E de maneira tal

Falas que, ao te escutar, se me vai o idealismo.

Prosódia e dentes ruins: eis a causa, eis o mal.

Tens o culto da asneira, o amor do solecismo,

O cassange causou-te uma “cárie verbal”.

 

AMOR DE “PRONTO”

Suplicas que te escreva e que te diga

Se te não quero mais com o mesmo ardor;

Pedes três linhas... uma frase amiga...

Uma carta... um bilhete, o quer que for.

Nada perdeu da intensidade antiga

Meu sempre novo e apaixonado amor;

Amar é ofício que me não fatiga

E além do mais eu sou conservador.

Dizes estar de tanta espera farta;

Que os homens, às amantes sempre infiéis,

Só merecem (que má!) que um raio os parta.

Não! meu silêncio tem razões cruéis:

Meu cobre é curto e custa cada carta

Tinta, papel e um selo de cem réis.

 

AMOR MOLHADO

Noite de inundação. Em cada rua

Água a rolar sem conta e sem medida.

Um vulto de mulher. Meu sangue estua.

A treva a lances medievais convida.

Vejo-a. Falo-lhe. Ri-se e não se amua.

— Vamos dar um passeio na Avenida?

Ninguém nos dá de ver, nem mesmo a lua

Que, medrosa da chuva, anda escondida.

Vamos? ... — Pois vamos. E vencendo as águas,

Eu a dizer-lhe uns velhos ditirambos,

Ela a contar-me de seu peito as mágoas,

Lá fomos, chapinhando lado a lado,

Na chuva (mas que chuva!) nós dois ambos

Rindo e cantando o nosso “Amor Molhado”.

 

NO TRIBUNAL

Pequei. Aqui me tens comparecendo a juízo,

Confuso, a suplicar-te o perdão que desejo;

Uma fraca defesa eu, trêmulo, improviso

Medroso do rigor que nos teus olhos vejo.

Trazer um bom padrinho era o melhor aviso!

Tu és a parte e o juiz: tens pois a faca e o queijo;

Concede-me o alvará do teu olhar sorriso,

Atira-me na face o habeas corpus de um beijo.

A loucura (é da lei) toda a culpa redime;

E eu louco sou por ti; arquiva o meu processo

E da pena cruel do teu rancor me exime.

A premeditação entretanto confesso:

Minha adorada juíza, eu cometi o crime

Só por ter o perdão, que de joelhos, te peço...

 

CONSPIRADORES

Conspiremos. Da luta o bom sucesso

Tenho-me já por coisa bem segura.

Conserva-te ao meu lado; é o que te peço

Para triunfar na bélica aventura.

Depois... nada de leis nem de Congresso:

Eu serei ditador! Ideal ventura!

Confia em meu político processo

Que hás de gostar de minha ditadura.

Se contrária, porém, nos for a sorte

E, ao reluzir de espadas e dragonas,

O governo vencer, não nos importe;

Nada de heroicidade fanfarronas:

Iremos, deportados para o norte,

Povoar as férteis margens do Amazonas.

 

TEMPORA MUTANTUR

Junto de ti, à sombra da janela

Ternas frases de amor a soluçar...

      Como o tempo corria!

      Eras bem moça e bela

      Mas de uma alma tão fria...

E era de gelo o teu formoso olhar.

               E vendo-te indiferente

               À minha intensa paixão,

               Eu murmurei tristemente:

               — Mulher não tem coração!

Junto de ti, à sombra da janela

Ternas frases de amor a te escutar...

      O tempo é tão moroso...

      És menos moça e bela

      Mas que brilho amoroso

No teu ardente e suplicante olhar!

               E, vendo-me indiferente

               À tua intensa paixão,

               Murmuras tu, tristemente:

               — Homem não tem coração!...

 

AMOR ALGÉBRICO

Ponhamos nós em equação, primeiro,

Do nosso afeto o original problema;

E depois resolvamos o sistema

Pelas regras de Cunha e Serrasqueiro.

Procuro x, sem que enganar-me tema

E encontro-o, após um cálculo ligeiro,

De valor, positivo, real, inteiro.

(X representa o amor que a ti me algema)

Tem duas soluções cousa é sabida,

Uma equação a dois (do grau segundo)

Busco x linha e a tenho resolvida.

Mas, ah! de amante algébrico fadário!

Eis o valor do teu amor profundo:

“Raiz de menos um!” É imaginário.

 

SNAP SHOT

Quando ela passa pela Avenida

Risonha a face, magoado o olhar,

Saia colante, toda vestida

Ao gosto fino da gente smart.

Sinto vontade de dar-lhe a vida

E tudo quanto se possa dar;

E fico de alma tão remexida

Que penso tê-la de pés para o ar.

A idade? o nome? não sei de nada!

Solteira, viúva, talvez casada,

Sei que ela leva meu coração.

Saber que importa como se chama?

— Se o vinho é fino, se é bela a dama,

De idade é inútil a certidão.

 

ISOLAMENTO

Longe de ti, um tédio atroz me invade

O triste coração, antigamente

Tão cheio de rumor e alacridade

Que eu mesmo o achava um tanto inconveniente.

E hoje, tão só, por mais que peça e brade,

Por mais que sonde e que revolva a mente,

Não acho para minha soledade

Quem na terra ou nos céus remédio invente.

Tento esquecer. Mas qual! debalde o tento:

Por mais que da esperança ao monte suba,

E grite, é surdo o mundo ao meu lamento.

Feroz destino os sonhos meus derruba

E eis que me veio em triste “isolamento”,

Pois tua ausência é a minha Jurujuba.

 

RESFRIAMENTO

Há tanto fogo nos teus olhos, tanto

Que ao senti-los nos meus se me afigura

Que se chorares há de ter teu pranto

Da água de um gêiser a temperatura.

Teus nacarinos lábios, entretanto,

Onde meu beijo — abelha — o mel procura,

São de tal modo frescos que eu me espanto

De que haja lábios de uma tal frescura.

Eu cautela não tive ou tive-a pouca,

Forte gripe atacou-me de repente

E eis-me a tossir e de garganta rouca.

Tão venturoso fui, quanto imprudente;

Beijei-te os olhos e em seguida a boca;

— Um sorvete depois de um grogue quente.

 

SINTAXE FEMININA

Leio: “Meu bem não passa-se um só dia

Que de você não lembre-me”. Ora dá-se!

Mas que terrível idiossincrasia

Este anjo tem às regras de sintaxe!

Continuo: “Em ti penso noite e dia...

Se como eu amo a ti você me amasse!”

Não! é demais! com fera tirania

A gramática insulta em plena face!

Respondo: “Sofres? sofrerei contigo...

Por que razão te ralas e consomes?

Não vês que sou teu dedicado amigo?

Jamais, assim, por teu algoz me tomes!

Tu me colocas mal! fazes comigo

O mesmo que fizeste com os pronomes!...

 

RELÍQUIAS

Ruínas, restos de efêmeros amores,

Neste cofre de sândalo guardados:

Fitas, leques, cartões, cartas e flores,

Sombras de afetos idos e passados.

Quantas ânsias lembrais! quantos ardores

De carícias e beijos inflamados!

Doces sabores... acres dissabores

Sinto nestas relíquias misturados.

Já quis destruí-las; mas pensei: sou pobre,

Se um poeta um dia eu vier a ser, de nota,

(Muita surpresa o tempo nos encobre...)

Os meus parentes, quando eu bata a bota,

Bem pode ser que impinjam por bom cobre

Toda essa bugiganga a algum idiota...

 

DEPOIS DA TEMPESTADE

Em contínuas polêmicas vivemos,

Discutindo e brigando a cada passo;

Para se decompor, ao que nós temos

Não há quem tenha igual desembaraço.

Da macreação tocamos aos extremos;

Tens cabeça de ferro: a minha é de aço!

Muito rudes palavras nos dizemos

E nenhum a torcer quer dar o braço.

Mas eis que às boas afinal chegamos!

Pois de romper seríamos capazes

Nós, querida, que tanto nos amamos?

Beijos febris, entrecortadas frases...

(Eu desconfio que nós dois brigamos

Só pelo gosto de fazer as pazes!...)

 

AMOR COREOGRÁFICO

És o globo terráqueo, o mapa-múndi

Em que descubro os quatro continentes;

Sempre que em ti meus olhos aprofunde

Encontro sempre terras diferentes.

Na tua pele a Europa se confunde

Com os africanos páramos ardentes;

E o teu negro cabelo horror me infunde

Mais que d’Ásia as regiões de ignotas gentes.

Vejo em teus olhos duas grandes ilhas

E em tua boca um rico mar do Oriente

Que entesoura lendárias maravilhas;

Ruge o Vesúvio em teu soberbo colo;

E, dos teus seios, paradoxalmente,

Há ardências do equador em cada polo...

 

9º — NÃO DESEJARÁS...

Passa imponente e sem termo o ataque

Do masculino olhar que o seu procura,

Essa deusa pagã que lê Balzac

E que Flaubert com George Ohnet mistura.

Passa; ei-la em foco; apanha-a o meu kodac;

Femme à trint’ans, de helênica figura,

Entre estrelas e sois brilha, em destaque,

A luz de sua egrégia formosura.

Quando a vejo passar, cheirando a rosas,

(Ela é casada e honesta — isto acrescento

Por salvá-la das línguas maliciosas).

Chego a descrer, com lógico argumento,

Que o Deus que fez senhoras tão formosas

Também fizesse o nono mandamento...

 

MADRIGAL

Busco uma rima nova em folha

E um verso de ouro e de cristal,

Para que nele se recolha,

Timidamente, um madrigal.

É velha a rima; escolhi mal;

Perdoa, Alcina, a minha escolha;

Meu verso, em nada original,

De nívea espuma é frágil bolha.

Parte-se o vaso: — era fatal:

Um beijo, a voar como uma folha

Busca os teus lábios de coral.

Que tua boca, Alcina, o escolha:

Era o meu beijo o madrigal,

Posto no vaso de cristal.

 

IDEAL FEMININO

“Eu sou louca por ti; pouco me importa

Que sejas pobre ou nades na opulência;

Teu amor me alimenta e me conforta,

Ele é bastante à minha subsistência.

Pode o infortúnio te bater à porta

E nos levar às portas da indigência;

Antes viver comigo à fome morta,

Que sofrer num palácio a tua ausência.

Uma choupana e o amor que as nossas duas

Almas confunda, identifique, irmane

E as minhas emoções irmane às tuas.

Ventura assim terei de que me ufane

Contanto que automóveis tu possuas

Para levar-me ao Lírico e à Rejane...”

 

A VIZINHA

É a vizinha, uma avezinha,

Que logo de manhã cedo

Da gaiola a fora, a medo

Deita a loira cabecinha.

No ascetismo do degredo

Em que passo a vida minha,

Vendo-a à janela, sozinha,

Tento dizer-lhe um segredo.

Mas na agulha enfiando a linha,

Que é perigoso o brinquedo

Com fogo e amor adivinha.

Jogo-lhe um beijo; com medo

Bate as asas a avezinha

E eu fico a chuchar no dedo...

 

TANTALISMO

Contra o destino pérfido praguejo

Que assim nos leva em burla e zombaria;

Que lado a lado nos coloca um dia,

Para afastar-nos no melhor ensejo.

Morrendo à sede junto a fugidia

Linfa, assim tu te vês e assim me vejo,

Neste ansioso, tantálico desejo,

Que é o teu e o meu e o Fado contraria.

De um banal platonismo as formas toma

O nosso ardente amor; e, assim, vivemos:

— Eu de joelhos e tu numa redoma.

Ó convenções sociais! Ó com mil demos

Que “o querer é o poder” afirma o axioma;

E tu queres, e eu quero e... não podemos!

 

ILHA DA SAPUCAIA

Pobres dos corações apaixonados

Que vivem de recíprocos engodos!

Não se lhes dá de aplausos ou de apodos

Que amor não tem virtudes nem pecados.

Como são tolos estes homens todos

Que nele buscam penas e cuidados!

Deviam pôr no Hospício os namorados

Antes que fiquem totalmente doudos.

Sei de um rapaz sensato e de capricho

No proceder, de modos muito amáveis,

Que está perdido e faz piedade vê-lo.

Traz nos bolsos, em vez de pôr no lixo,

Uma porção de coisas imprestáveis:

Flores, fitinhas, mechas de cabelo...

 

À LUZ DA LUA...

À doce luz nostálgica da lua

Teu perfil divisei místico e brando;

E a linda face para mim voltando,

Deixaste ver a majestade tua.

Fatalidade rigorosa e crua

Fez-me te ver e ouvir! murmuro quando

Passas na vida corações pisando,

Como quem pisa o asfalto vil da rua.

És casada, és feliz; e teu marido

Este soneto talvez leia, imerso

No gozo de por ti ser preferido.

Mas que fora de mim, mulher formosa,

Se estas tolices que te digo em verso

Eu, diante dele, t’as dissesse em prosa?!

 

VIBRANDO A PRIMA

Quando aparece o teu vulto

Como um sol que vem nascendo,

Eu, quanto mais me consulto,

Tanto menos me compreendo.

Por ti grito, por ti clamo,

E se vens, ó doce menina

Quero dizer-te que te amo

E, afinal, não digo nada.

A bloco imenso de gelo

Meu peito está reduzido;

Mas surge o teu rosto e ao vê-lo

Fico todo derretido.

Seja de inverno nos dias,

Ou do verão no rigor,

Eu tenho as mãos sempre frias,

Nas tuas sempre há calor.

Que as tuas mãos eu albergue

Nas minhas manoplas dá:

Na ilha de Spitzberg

Metamos o Ceará.

“Mãos frias, coração quente”

Diz um antigo rifão.

Menina, se ele não mente

Há no meu peito um vulcão.

“Mãos quentes, coração frio”

Fala o rifão desta sorte:

Se isto é certo, desconfio

Que o teu peito é o polo norte.

Teu coração aproxima

Do meu; que assim, lado a lado,

Deste nosso amor o clima

Há de ficar temperado.

E vamos viver unidos

No reino da Grã-Ventura,

Com os corações reduzidos

À mesma temperatura.

 

AMOR GEOMÉTRICO

O meu amor é um círculo; evidente

É que o centro do amor é o coração;

Ando há muito buscando uma tangente

Ou seja — um pé — para pedir-te a mão.

Deste-me corda e eu digo francamente

Que abrir o arco procuro agora em vão;

Cupido, o deus menino onipotente,

Fundo cravou-me a flecha, o maganão!

Do círculo do amor calculo a área:

∏ R ² = ... e a mente vária

Sinto, enquanto a paciência se me esvai.

Conheço ∏ (valor aproximado)

O que, porém, me deixa atrapalhado

É o quadrado do raio, que é teu pai!

 

ERA NO OUTONO...

Era no outono quando à prima Vera

Jurei o mais intenso dos amores.

E ela jurou também: — serei sincera,

Enquanto ao meu amor sincero fores.

— Serei, verás. — Verei. — Veremos. Era

Já do verão nos cálidos rigores.

Veio depois, risonha, a primavera

Com a cornucópia a transbordar de flores.

Disse-me a prima num sorriso terno:

— Tens no meu coração glorioso trono.

Lembra-me ainda, começara o inverno.

Mas eis que o peito seu mudou de dono;

Levou a chuva o nosso amor eterno,

Fugiu-me a prima Vera; e era no outono.

 

PAPÉIS VELHOS

Este meu cofre de ébano, pedaço

De minh’alma, onde guardo, cuidadoso,

As velhas coisas em que exista um traço

De horas idas de dor, de horas de gozo,

É um mundo dentro de um exíguo espaço;

É o Museu da Saudade onde não ouso

Pôr as mãos sem notar a cada passo

Do cardíaco músculo o repouso.

Às vezes tomo de uns papéis e tento

Descobrir, pelo cheiro e à simples vista,

Se é cinza de ventura ou sofrimento;

E onde suponho que uma história exista

De rubro amor, — ó desapontamento! —

Vou dar com velhas contas de modista!

 

GUERRA ÍTALO-TURCA

À signora N. N., soprano muito ligeira

“Sou todo Itália nessa atual disputa;

Não inquiro se de uma ou de outra parte

Está a razão ou qual, no fim da luta,

Porá palmas de louro no estandarte.

Amo a cavalheiresca, a resoluta

Pátria tua e de Dante; a terra da Arte,

Que te deu essa voz, que quem na escuta,

Queira ou não queira, fica logo a amar-te.

E eu te amo como à Itália! e assim te amando,

Mafoma odeio com a cristã fereza

Do Duque de Olivério e de Rolando!

E é por isso, aquilo digo com franqueza,

Que, mandando-te beijos, não te mando

Os prometidos brincos de turquesa”.

 

FORÇA SUGESTIVA

Tenho em mim, doce amor, que tudo quanto

De ti vem meu espírito alucina;

Algo possuis de místico e de santo

E, em forma humana, sinto-te divina.

Teu gesto anula, como por encanto,

O que era em mim dogmática doutrina;

Muda-me os gestos, torna em riso o pranto,

Transforma-me as imagens na retina.

Ontem, ouvindo-te cantar (gemia

A acompanhar-te, em leves pizzicatos,

Um violino de estranha melodia.)

Deu-se este fato — há nesta vida fatos!... —

Eu que os miados de um gato não sofria,

Entrei de amar perdidamente os gatos.

 

O LEQUE E A BENGALA

Tive há tempos um namoro

Velho estilo, de calçada;

A pequena era de estouro

E tinha medalha de ouro

Com justiça conquistada.

Ela era prima inter pares

No flirt e conta-se até

Que ao fogo dos seus olhares,

Civis como militares

De alferes faziam pé.

E por toda a redondeza

(À vizinhança o dizia)

Não haverá com certeza

Quem lhe tirasse a realeza

Entre os coiós. Não havia.

Encontrei-a num dentista

Se bem me recordo eu;

E, logo à primeira vista,

De seu coração na lista

Ela o meu nome inscreveu.

Da volúvel Columbina

Fui o Pierrot, por três meses;

E, namorando a menina,

Ai quantas vezes de esquina

Eu fui lampião! quantas vezes!

Fiz ridícula figura...

Sim, de mim mesmo sou juiz.

Mas há no mundo criatura

Que antes da idade madura

Não tenha feito o que eu fiz?

Por seu lado a rapariga

A janela a tarde inteira

Alisava sem fadiga,

Ao lado de certa amiga

Que era o “pau de cabeleira”.

A mamãe, um tanto idosa

Logo depois do jantar

Na cadeira preguiçosa

Dava alguns dedos de prosa

E ei-la em breve a cochilar.

E, enquanto a mãe cochilava

A filha, de quando em quando,

Com o seu leque me acenava;

E eu, do outro lado, passeava,

Minha bengala agitando.

A tarde dessa maneira,

Fizesse calor ou frio,

Nós passávamos inteira:

Era aquilo verdadeira

Telegrafia sem fio.

Por muitas horas aquela

Manobra se repetia:

Falava-me o leque dela,

E a bengala, tagarela,

De pronto lhe respondia.

Certa vez, durante a cena,

Começou, forte, a chover;

E eu de bengala! — Que pena!

(Com o leque disse a pequena)

Não vá você adoecer!

E coisas tais em seguida

Ela diz à boa viúva,

Que esta, afinal, convencida,

Chega à porta e me convida

A entrar, por causa da chuva.

Entrei. Sobre uma cadeira

Minha bengala depus;

E, com o “pau de cabeleira”

Ficamos uma hora inteira

Da janela à meia luz.

Ela tinha alegre o rosto,

Doce o olhar, maviosa a fala;

E ou por acaso ou por gosto,

O seu leque havia posto

Junto da minha bengala.

O verbo amar conjugamos:

Amas, amo, amar-te-ei,

Amemos, amaste, amamos...

— Quando é que nos encontramos?

— Volta amanhã. — Voltarei...

Embalado em sua fala

Célere o tempo corria;

Recordamos, em cabala,

O que dizia a bengala

E o que o seu leque dizia.

— São-nos dois bons auxiliares,

Acrescentarás eu depois;

— Merecem ter dois altares!

— Eles são tão familiares

Que um só chega para os dois.

Passou a chuva. Depressa

Mudaste, ó tempo malvado!

— Quanto quiser apareça,

Disse a velha; e eu, a cabeça

Curvando: — muito obrigado...

E levantei-me; e buscando

Fui a bengala e o chapéu;

A sala atravesso e quando

À cadeira vou chegando,

Que vejo! meu Deus do Céu!

Por pouco que perco a fala

E o sangue se me congela;

Quase caio ali na sala,

Ao achar minha bengala

Aos beijos com o leque dela!...

Rimo-nos todos em coro

Que o caso em graça tem;

E a velha diz: — Desaforo!

Serviram tanto ao namoro

Que os dois já se amam também...

 

ETERNO AMOR

Já dura o nosso amor há não sei quantos anos!

Tudo em torno de nós tem mudado, querida;

E antes as transformações e os progressos humanos,

Mantém-se igual o amor que é toda a nossa vida.

As asas no ar azul batem aeroplanos,

Automóveis fatais passam pela Avenida,

E ficamos nós dois — dois antediluvianos,

Repetindo a canção mil vezes repetida.

E o nosso amor é assim, mais firme do que anoso

Carvalho; resistindo às lufadas do inverno,

Com o tempo há de lutar e sair vitorioso!

E nem deuses do céu nem demônios do inferno

Destruirão nosso amor, mais firme que o famoso

Barracão do Pascoal, invencível e eterno!

 

CATEQUESE DOMÉSTICA

— Braba não sejas! disse-lhe outro dia

Quando, de olhar feroz, ardendo em ciúme,

Ela cabal explicação queria

Por me sentir variantes de perfume.

— Braba não sejas! eu lhe repetia;

E ela: — homem mau, de péssimos costumes!

Debalde a paz doméstica eu pedia

Da minha taba aos protetores numes.

Não houvera buzina que a acalmasse:

Nem Caitu, nem Doentin, nem Veguemon

Jeito teriam que a catequizasse.

Pus de lado o sistema do Rondon:

Avancei, dei-lhe um beijo em plena face:

Sorriu: — Braba não sou, caboclo bom!

 

CIÚMES

Imagina eu e tu num deserto perdidos;

Eu e tu... mais ninguém; nem sombra de vivente;

O simoun a siflar pelos nossos ouvidos

E o intérmino areal faiscando em nossa frente.

E da terra e do céu ambos nós esquecidos,

No solo adusto e mau, sob o sol inclemente,

Eu seria mais fiel que o mais fiel dos maridos

E tu mais que Lucrécia, inevitavelmente...

Nem sombra de palmeira em confortante oásis,

Nem lagoa tranquila ou córrego que, esperto,

Corra, matando a sede às areias vorazes!

E eu de garganta seca, eu mudo, eu boquiaberto,

Ouvindo-te desfiar as mesmas velhas frases,

A acusar-me de andar “conquistando”... o deserto.

 

CASO BANAL

Ama Romeu a loira e doce Elvira:

Loucos quinze anos que amam dezessete;

No intervalo da valsa ela suspira,

Ele amor filme e eterno lhe promete.

Nos lindos olhos dela ei-lo se inspira:

E, enquanto o suave nome seu repete,

Passa a mão pela testa, afina a lira,

E ao Parnaso, aos galopes, acomete.

E prossegue o namoro começado:

De par em par as portas da Ventura

Abrem-se aos dois. Delícias do noivado.

— Vivo louco por ti! Romeu murmura;

E casam-se por fim. Ficou provado

Que era, de fato, um caso de loucura.

 

SUICÍDIO POR AMOR

Se eu morresse bem sei que chorarias

Com tão grande aflição e tanto e tanto

Que nem mesmo uma dúzia de bacias

Bastaria para recolher-te o pranto.

Quando me abandonaste, há quinze dias,

Pensei na morte — não te cause espanto:

Para pôr termo às minhas agonias,

À estricnina era um remédio santo.

Teu futuro pesar salva-me a vida;

E é só por isto que não sou suicida

E por sofrer tamanha dor me esforço.

E sofro o teu desprezo, e sofro o diabo!

Mas da triste existência não dou cabo

Para evitar... que chores de remorso.

 

CARINHOS

Quando entre os braços e a sorrir me aperta

E põe-se, aos beijos, a brincar comigo,

Tacitamente aos meus botões eu digo:

— Juro que aí vem dentada pela certa.

E não me engano; e precavido e alerta,

Como a vedetta à espera do inimigo,

A sinistra intenção logo investigo

Que tais carícias n’alma lhe desperta.

— Que tens hoje?... pergunto-lhe. — Que queres?

São carinhos de amor! — Amas-me? — Juro

Que viveremos como dois pombinhos!

Mas eu que a sei mulher das mais mulheres,

Como enlevado, a suspirar, murmuro:

— São carinhos... bem sei que são carinhos...

 

PETIT-BLEU

Já não te espero mais; vou-me embora; esperei-te

Das sete às dez; não vens e estou verde de fome.

O amante é um animal que ama... e que também come:

Eu estou desde manhã com dois copos de leite.

Por que não vens, querida? isto é um crime sem nome!

Fazes com que, ciumento, eu me aflija e suspeite

Que não me amas, a mim que te amo e sempre amei-te!

(À tua ingratidão deslocou-me o pronome...)

Entre o apetite e o amor meu pobre ser balança:

Asno de Buridan, não sei se jante ou aguarde

Outro bonde: — a fugaz e elétrica esperança...

Outro bonde e não vens! da vida vence o instinto:

Meu coração perdoa! eu vou jantar que é tarde!

Antes morrer de amor que arrebentar faminto!

 

AMORES ALHEIOS

(Impressão de uns versos líricos)

Casos de amor! tenho os ouvidos cheios

De ouvi-los relatar em prosa e em versos:

Juras, ingratidões, ciúmes, anseios,

Almas traidoras, corações perversos...

E com toda a paciência escuto-os, leio-os,

Em bocas mil, em livros mil dispersos.

Sempre alheias paixões, prantos alheios,

Mais semelhantes quanto mais diversos;

Que é sempre o mesmo caso, a mesma loa:

— Laura é uma ingrata, — só por Clara existo,

— Amo Marilda, — Marta me atraiçoa...

Ouço; que hei de eu fazer? mais sofreu Cristo...

Mas cá com os meus botões digo: — esta é boa!

No fim de contas que tenho eu com isto?

 

AMOR HIDRÁULICO

Tenho um reservatório imenso e fundo

Que dia a dia mais se afunda e alarga;

Vede-o: é o meu coração. De amor, no mundo,

Outro não há com tão possante “carga”.

Eu que, na luta pela vida amarga,

Nas tabelas de Bresse me aprofundo,

Fiz-lhe o cálculo e achei para descarga

Dez milhões de suspiros por segundo.

Cumpre fazer um bom nivelamento

(Porque o desnível na descarga atua

Nos casos todos de abastecimento)

E após ligar a minha “caixa” à tua

Por canal, aqueduto ou encanamento,

Porém que em marcha amor não distribua.

 

LUA-DE-MEL

Casadinha há seis meses, D. Alice

Tem tão magoado e meigo o olhar formoso

Eu hoje quem quer que por ventura a visse,

Coisas diria que eu dizer não ouso.

Não que haja nisto um grande mal: tolice!

Afinal ela é bela e ele amoroso,

Nada mais natural, pois, que cumprisse

Seu dever sacratíssimo de esposo...

Hoje o contrato conjugal e a aliança,

A igreja e a pretória, a leia e a prece,

Do amor bem pouco pesam na balança;

Que inda mais fortes que os dos seus carinhos,

Bem rijos laços D. Alice os tece

Da alva lã com que tece uns sapatinhos...

 

OPINIÕES

A mãe dela o julga — um prosa;

O pai dele a crê — sem miolo;

A mãe dele a diz — vaidosa;

O pai dela o chama — um tolo.

Dele a família acha-a feia,

— Um pilantra — o julga a dela;

Diz uma — nele não creia!

Diz outra — não creia nela!

Do mundo, caso notável!

O juízo jamais combina:

Ela diz: — ele é adorável!

Ele diz: — ela é divina!

 

VIDA NOVA

Gastei no amor a inteira juventude;

Sempre a tatear, em dúvida, indeciso,

Tanto a escolher amores que nem pude

Sobre algum formular seguro juízo.

Por certo me iludi; quem não se ilude

Com um doce beijo, um mágico sorriso?

Mas da desilusão o embate rude

Nunca foi para mim prudente aviso.

Hoje, pesar dos muitos desenganos,

Inda acompanho a sombra fugidia

Do amor que me fez n’alma tantos danos.

Porém, se acaso me voltasse um dia

Com a prática de agora os meus vinte anos,

A mesma vida eu recomeçaria...

 

BEIJOS NO LEME

(A imprensa protesta contra a pouca vergonha com que na praia do Leme se abraçam e beijam os pares amorosos.)

Não descubro razão para este excesso

De virtude da imprensa. Ora, afinal,

No xadrez não merece ter ingresso

Quem tal delito cometeu, venial.

Tudo isto, em suma, é obra do Progresso:

Um beijo assim tem oxigênio e sal;

É tônico que vai d’alma ao recesso

Tornando-a forte, máscula, jovial.

De mais a mais se o beijo é coisa feia,

Contra que nós devemos protestar

Vamos meter o oceano na cadeia.

Pois lá no Leme é a coisa mais vulgar

Ver aos beijos eróticos com a areia

Aquele velho maganão do Mar...

 

LOVE-EXCHANGE

O teu amor é como o câmbio que ora

Sobre a dezoito, ora a quatorze desce;

Se tu mo consentisses e eu pudesse

Far-lhe-ia a fixação sem mais demora.

Isto todos os dias acontece;

(Direi talvez melhor que de hora em hora)

Se jogo na alta o bárbaro peiora,

Se vou na “baixa” sete oitavos cresce!

Oscilações que tais são do teu gênio;

Pois bem, amor, façamos um convênio

Que seja uma econômica tarraxa.

Mas não! deixá-lo! o coração reflete:

Dá-me cinco, quatorze ou vinte e sete

Que eu saberei sacar conforme a taxa.

 

GRANDE AVENIDA

Abramos, doce amor, uma Avenida,

Larga, fresca e traçada em reta linha,

Que ligue a tua vida à minha vida,

Como a rua da Ajuda à rua da Prainha.

Postos a baixo foram já, querida,

Os namoros que tinhas e os que eu tinha;

E as obras levaremos de vencida

Às novas construções erguendo asinha.

O automóvel do sonho e a bicicleta

Do amor verás correr em disparada.

De flores contornando os verdes tufos;

E haverá, para termo-la completa,

De esgotos uma rede aperfeiçoada

Para o meu ciúme e para os teus arrufos.

 

A QUANTO LEVA O AMOR

Eu, por te ver, ao pino alcandorado

Do Monte Branco subirei, querida;

E do Amazonas a caudal, a nado

Transporei, sem recear perder a vida!

Irei por ti ao polo congelado;

Do Vesúvio à fornalha comburida,

Descerei, afrontando o austero fado,

Por minha boca ter à tua unida.

Ahasverus, sem destino ou itinerário,

Ao sol da Líbia ou pelas zonas frias,

Irei a pé, correndo o mundo inteiro;

E até, se tanto fosse necessário,

Capaz eu fora de viajar três dias

Num paquete do Lloyd brasileiro!...

 

RESOLUÇÃO

Talvez se fora o meu querer querer-te

Não te quisera assim como te quero;

Mas, de amor cativado ao jugo fero,

Fugindo de te ver, procuro ver-te.

Quantos planos de fuga delibero!

Quantos projetos formo de esquecer-te!

Entretanto o infortúnio de perder-te,

Maior que o mal de amar-te considero.

Entre dois rumos sinto-me indeciso:

Temo ficar, mas se de ti me aparto,

Aparto-me dos bens de um paraíso.

Mas brado, enfim; de refletir já farto:

Adeus! já que evitar nos é preciso

Maiores males no futuro: parto.

 

O RESCALDO

Quanto saudoso destes teus olhares

Andava o meu! nem sabes como e quanto

Me senti venturoso, ao me fitares

Com o mesmo antigo, misterioso encanto.

Como as sereias que andam pelos mares

Tentando os nautas com mavioso canto,

Teus maus e lindos olhos singulares,

Mais uma vez, puseram-me quebranto.

Nosso encontro feliz louvo e bendigo;

Mas um pedido aqui te faço; atende-o

Se queres evitar maior perigo.

Parte. Deixa-me em paz; segue outro norte;

Não remexas entulhos de um incêndio

Que o fogo pode rebentar mais forte.

 

CAUSA GEOMÉTRICA

Eu sou moreno como tu e ardente

És como eu sou; temos a mesma altura;

Se és bela, confessemos francamente

Não possuo de Quasimodo a figura...

Ambos nascemos sob a zona quente;

Amas, como eu, dos campos a verdura;

Minha estética é à tua equivalente

Em verso, em prosa, em música, em pintura,

Mas de um ciúme feroz tu te revelas;

E, assim, qual gato e cão, nós dois andamos

Em contínuas perlengas e querelas.

Na geometria a causa disto achamos:

— Nós somos duas almas paralelas,

Por isto mesmo não nos encontramos.

 

A UMA MENINA

Tens tal encanto e tanta graça,

Graça tão viva e tão sadia,

Que, quando passas, por nós passa

Um suave sopro de alegria.

Inda que seja a noite escura,

Há tanto brilho em teu olhar,

Que ao vê-lo à gente se afigura

Que vai a aurora despontar.

Nos lábios teus o riso dança;

És viva, gárrula, faceta;

Possuis uma alma de romança,

Um coração de cançoneta.

Isto bem trai os teus doze anos,

Botão que em breve serás flor...

Nunca sofreste desenganos,

Não conheceste ainda o amor...

 

OLHOS D’ÁGUA

Tanto me tem ferido amor tirano

De quem brandura inutilmente imploro,

Que te juro (e jurou) sem burla ou engano

Uma ferida sinto em cada poro.

Não sei de ser divino ou ser humano,

(Disse) que chore tanto quanto eu choro,

Tantos litros de lágrimas por ano,

Tanta água, tanto sódio, tanto choro.

E eu, vendo o choro a lhe regar a face,

Lamentei que assim fosse sem valia,

Quem se perdesse o caldo dessa mágoa...

Pois, se acaso o governo o destilasse,

Tão farto pranto se aproveitaria

Como um remédio à urbana falta d’água!

 

MILAGRES DO AMOR

Que é que há na vida além do amor que valha

Essa luta afanosa de viver?

Que outros lauréis e prêmios de batalha

Que o bem de ser querido e bem querer?

O ouro corrompe; a glória ilude e falha;

Fugaz é o brilho fátuo do poder;

E o trabalho só vale ao que trabalha

Ver a vida ais rápido correr.

O amor as almas muda; ao mundo, fá-lo

Belo e melhor; transforma como a fé

Negror da treva em refulgências de halo.

Muda em risos a mágoa e faz até

Com que seja um deleite a dor de um calor

Se é o ente amado que nos pisa o pé.

 

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA

Via-a à tarde passar pela Avenida,

De porte esbelto e de morena tez

E, ai de mim! que a queria ao fim de um mês

“Como se quer uma só vez na vida!”

Esqueci-a depois, vejam vocês,

Por uma loura altíssima e nutrida,

Que, dentro em pouco, foi por mim querida

“Como se quer na vida uma só vez!”

Hoje, por minha desgraçada sina,

Sempre que vejo um vulto de mulher

Clara ou trigueira, máscula ou franzina,

Logo adorá-la se me fez mister;

E, louco, exclamo: ai! quero-te, divina,

“Como na vida uma só vez se quer!”

 

MADRIGAL DA PAIXÃO

— Ficar doente não receia

Saindo com tal calor?

— Não fale da vida alheia

Vim somente a igreja, creia,

Beijar os pés do Senhor.

E o amigo que assim repara?...

— Em dia santo, a esta hora

Eu sair coisa é bem rara...

— Então também veio... — Para

Beijar as mãos da Senhora...

 

AMOR E FÉ

Amo-te, dizes. Finjo que acredito.

(Custa tão pouco crer-se nas mulheres...)

Meu ceticismo confessar-te evito

E, firme, emperro no meu pé de alferes.

Tolo é quem busca analisar um mito;

Por isto as coisas todas que disseres

Ingiro-as como um bálsamo bendito,

Engulo-as como um tônico, às colheres.

Demais, quem sabe? há tais afinidades

Entre o “ser” e o “não ser”, que velhos juízes

Têm, para os distinguir, dificuldades.

E viremos talvez a ser felizes,

Se chegarmos a crer que são verdades

As coisas que eu te digo e as que me dizes.

 

MUSA FESTIVA

 

NATAL

Neste Natal quisera eu ter a dita

De ir, ao teu lado, à sombra de teu vulto,

Ao menino Jesus render meu culto

Numa igrejinha simples e catita.

Longe dos olhos do Universo estulto,

Num idílio de monja e cenobita,

Ir num recanto silencioso e oculto,

Do amor a benção receber, bendita.

Da Natureza ouvindo a sinfonia,

Numa choupana, oculta nas montanhas,

Ao teu lado passar o inteiro dia.

E à noite, ao som de músicas estranhas,

O Natal festejarmos numa orgia

De vinho verde, beijos e castanhas.

 

A CONSOADA

Da vasta mesa patriarcal em torno

A família reúne-se. Fumega

O rotundo leitão, assado ao forno,

Entre os vinhos velhíssimos da adega.

Loiras batatas traçam-lhe o contorno;

Áureas rodelas de limão carrega,

E assim, com todo o culinário adorno,

Aguarda, inerte, a sorte iniqua e cega.

É noite de Natal; reina a alegria!

O riso explode generalizado

Nos lábios todos, que de festa é o dia.

Mas ninguém nota o riso resignado,

De amarga, pungentíssima ironia,

Dos meigos olhos do leitão assado...

 

PRESENTE DE FESTAS

No dia de anjo bom peço-te apenas

Um beijo; um beijo estaladinho a medo,

Sob a copa virente do arvoredo,

Entre amores perfeitos e açucenas.

Bela morena, inveja das morenas,

Entre as morenas escolhida a dedo,

Olha que um beijo assim, dado em segredo,

Vale por dez, por vinte, por centenas.

Vamos! estala um beijo! vamos! que esta

Seja a caixinha de bombons a “festa”

Que me dês contentando os meus desejos.

E, se é certo o que afirma a voz do povo,

Hei de ganhar durante este ano novo

Trezentos e sessenta e cinco beijos...

 

AGRADECIMENTO

Não tenho empregos para dar; não tenho

Dinheiro para empréstimos; por isto

Não recebi pelo Natal de Cristo

Os cartões de que faço tanto empenho.

Ah; sim! recebi dois: e está bem visto

Que os dois amigos pus no meu canhenho;

E aqui, agora agradecer-lhes venho

A honra de por eles ser benquisto.

Obrigado, meus velhos! por meu turno

As boas festas para vós requeiro

Ao bom Deus que nos ouve, taciturno.

E que vos seja próspero o ano inteiro,

A ti, ó serviçal guarda noturno,

A ti, prestimosíssimo lixeiro.

 

ALELUIA

Foi-se a quaresma e a Páscoa se festeja.

Após tantos jejuns de penitência,

É natural que a humanidade esteja

De estômago bem limpo e sã consciência.

Vinho, jogo, mulher, maledicência,

Tudo levado à conta antiga seja!

Hoje sai, lavado e são, da igreja,

De alma envolta no arminho da inocência.

Certo, fizestes como eu fiz, amados

Irmãos leitores meus; que eu, de semblante

Contrito, o peito em ânsia e olhos molhados,

Pedi perdão a Deus e à esposa amante

Das velhas culpas, como dos pecados

Que intento cometer d’agora em diante...

 

DEPOIS DA PÁSCOA

Eis que passamos da Semana Santa

Os dias de oração consoladores.

Agora, em vez do “Stabat”, a alma canta

Hinos profanos e canções de amores.

Depois de tanta penitência e tanta

Sincera contrição dos pecadores,

A carne o rubro lábaro levante,

Do mal vicejam novamente as flores.

Pequenos, meus irmãos! cada sentido

Renda ao demônio um fervoroso preito:

— Paladar, tato, olhar, olfato, ouvido.

Para que, em pranto o coração desfeito,

Na futura quaresma, arrependido

Possa cada um de nós bater no peito.

 

A BONECA

Conto de Natal para crianças

A Flora é linda como as flores;

Tem só dez anos; não tem pai.

A mãe, da sorte entre os rigores,

Sofre da vida os dissabores

Sem uma queixa e sem um ai.

Flora sorri: naquela idade

Tudo em sorrisos se traduz:

No coração há só bondade,

O céu é todo claridade

E a terra é só perfume e luz.

Flora é tão pobre, coitadita,

Que nem lhe é dado desejar

Uma boneca alta e bonita,

Com um vestidinho azul, de chita

Que há dias vira em um bazar.

Ora, ao chegar a linda festa

Do nascimento de Jesus,

Toda a criança, a mais modesta,

O seu desejo manifesta

De ter o mimo que a seduz.

Flora não tem um só parente,

Nem um amigo a quem dizer

Que tal boneca era o presente

Que a tornaria mais contente

Que a terra e o céu nas mãos conter.

Porém ouvira um certo dia

Que lá aos Céus o bom Papá,

Pelo Natal sempre descia,

Trazendo os mimos que pedia

À criança que não fosse má.

Flora não tem um só defeito

E nunca fez um mal sequer.

E assim pensou: tenho direito

A que Jesus sob meu leito

Deixe um dos mimos que trouxer.

Mas logo disse: — eu sou tão podre,

E a minha casa é feia, assim...

Há tanta criança rica e nobre,

Que de Jesus talvez não sobre

Um só presente para mim.

Pudesse eu ver quando ele desce,

Que lhe podia, então, falar

E ele que é bom, talvez mo desse...

Mas qual! Jesus não me conhece,

Como de mim se irá lembrar?

Mas uma ideia vem-lhe a mente:

— Se eu lhe escrevesse!... É natural

Que sendo bom, como é corrente,

Jesus me traga um bom presente

Na linda noite de Natal.

E Flora, zás! de uma assentada

Escreve a carta singular:

Três linhas só; dava a morada

E lhe pedia a desejada

Boneca, vista no bazar.

E com o cursivo mais bonito,

Depois que a epístola escreveu,

Traçou com a ponta de um palito

No envelope o sobrescrito:

“Para o Papai do Céu. No céu.”

Depois com um riso prazenteiro,

À porta foi: pôs-se a espreitar,

A ver se vinha mais ligeiro

O preguiçoso do carteiro

Para a missiva lhe entregar.

Ei-lo que surge e dobra a esquina:

Flora sorri, chama-o, por fim

A sua carta pequenina

Entrega e fala-lhe à surdina:

— Pode-a levar sem selo, assim?

— Posso, meu anjo, o homem responde,

Lendo o endereço; e quando sai,

A carta lê e, a rir, esconde

A gota d’água que vem de onde

O amor dos filhos guarda um pai.

E ele que o é e não ignora

Toda a alegria sem igual

De uma petiza como Flora,

Ao receber, como uma aurora,

O seu presente de Natal,

A carta oculta com cuidado,

Pensa nas Floras de seu lar...

E o bom carteiro, emocionado,

Andou o dia preocupado

Com a tal boneca do bazar.

Só tem dois filhos o carteiro;

Trabalha, duro, todo o mês

E muito escasso é-lhe o dinheiro;

Mas o bazar foi, prazenteiro,

Comprar bonecas... para três.

Ora, imaginem a alegria

Da linda Flora, ao ver chegar,

Logo a manhã do grande dia,

O bom carteiro que trazia

A tal boneca do bazar!

Flora chorou de tão contente,

E a voz humana não traduz

O que lhe vai n’alma inocente

Sempre que brinca com o presente

Que recebeu do bom Jesus...

 

CARNAVALESCOS

I

Carnaval! Evoé! reina a Folia!

Momo é rei e senhor de céus e terra.

Por toda parte, estridula, a Alegria

Canta e as paixões dos corações desterra!

Já ninguém sabe quando nasce o dia.

Toda a vida no âmbito se encerra

De um riso único e enorme que esfuzia,

Vermelho como um cântico de guerra.

Velhos e moços vão perdendo aos poucos

A linha reta, a compostura, o siso,

E ei-los de gargalhar tontos e roucos.

Carnaval! festa báquica do Riso!

Em que os homens confessam que são loucos,

Única prova que eles dão de juízo.

 

II

Momo! barulhento rei do riso e da galhofa,

Deus risonho da blague, amável deus trocista!

Na arte de pandegar não há da tua estofa

Outro, assim consumado, assim completo artista!

Levas o que há de sério em grotesco ar de mofa;

Ao teu sarcasmo não há força que resista.

Não tens a voz hostil que censura e apostrofa,

Mas o falsete irreverente do humorista.

Ave, Momo, alto rei de troça e bambochata,

Ante cujo prestígio este Brasil inteiro

Reverente se curva e se ajoelha e se achata!

És tu nosso deus-lar, nosso egrégio padroeiro.

O cruzeiro do Sul é o “Chuveiro de Prata”,

O “Cordão da Flor da Lira” é o povo brasileiro!...

 

III

   Vamos brincar, menina,

   O Carnaval este ano?

Eu serei Pierrô, tu Colombina...

   Que te parece o plano?

   Perguntei-lhe e, medrosa,

   Baixando o rosto lindo,

De olhos baixos e face cor de rosa

   Respondeu-me sorrindo:

   — Não senhor, obrigada...

   — Por que amor? tens medo?

Sorriu-me novamente e, perturbada,

   Declarou-me em segredo:

   — Tola, serei, convenho,

   Mas temo a brincadeira:

O Carnaval não brinco porque tenho

   Medo do Zé Pereira.

 

IV

Levanta-te, Pierrô; veste-te e, lesto,

Vai para o toco da Secretaria;

Deixa a carnavalesca fantasia

Pelo teu paletó coçado e honesto.

Burocrático olhar, solene gesto

Recobra e esquece as horas da Folia.

Pobre Pierro, viste clarear o dia

De corpo mole e fígado congesto.

Já não se ouve rufar o Zé Pereira;

Momo expirou; calou-se a derradeira

Voz de falsete; e tu, cansado e rouco,

Suspiras hoje, amargurado e doente:

— O Carnaval machuca muito a gente,

Mas é pena o ladrão durar tão pouco!

 

V

Foi-se Momo. Finou-se o Carnaval. Agora

Voltamos à habitual mascarada da vida:

Cada qual põe no rosto a máscara esquecida

Nos três dias de riso e festiva pletora.

Colombina soluça e cai desfalecida

Nos braços de Pierrô. E Arlequim, rua a fora,

De cabeça pesada e bolso leve, chora

O cobre que se foi e a alegria perdida.

O sol de quarta-feira a flor do riso cresta;

O entusiasmo febril nos corações se aplaca.

Cessou todo o rumo orgíaco da festa.

Espreguiça-se o corpo e a alma boceja, opaca,

Mergulhada no tédio e na preguiça desta

Quarta-feira imbecil de cinzas e ressaca.

 

VI

Cinzas. Pelo raiar de baça madrugada.

Cambaleando de sono um pobre dominó

De fantasia suja e máscara rasgada,

Passa, mirando o chão, desconsolado e só.

Recorda a alegre farra, a bacanal gozada

No maxixe sensual de algum forrobodó.

Triste, de boca amarga e pálpebra magoada,

Sua estranha figura é, assim, de causar dó.

Vence-o o sono e ele cai e adormece à calçada

De um prédio; eis que aparece — urbano noitibó —

Um gari, a varrer a rua despovoada.

Desperta, a bocejar, o pobre dominó

E, coberto de poeira, em tom funéreo, brada:

— Gari, tu tens razão: nós somos todos pó...

 

AS DATAS NACIONAIS

 

1º DE JANEIRO

Confraternização dos povos. O ano

Surge entre galas, músicas, fulgores.

Cada qual traça à vida novos planos,

Brilham nos corações novos ardores.

Paz entre os homens! no litígio insano

Da vida abraçam-se os competidores!

E o auriverde pendão republicano

Passa, entre aclamações, envolto em flores.

Nesta data gentil, que simboliza,

A paz e o amor, — os meus ideais supremos,

Fico-me em casa, em mangas de camisa.

— Querida, esquece os “pegas” que tivemos

E hoje que o mundo em paz confraterniza,

Num longo beijo confraternizemos...

 

24 DE FEVEREIRO

Festa em honra da carta que nos rege

— Bíblia sagrada da democracia —

Será da fé republicana herege

Quem não solenizar tão grande dia.

Árvore cuja sombra nos protege

Contra os raios do sol da tirania,

Não há no mundo quem nos não inveje

Tão ampla e nobre carta de alforria.

Diz do governo um ríspido inimigo

— A pobre foi violada e inda tu queres

Festejá-la? eu por mim visto de luto.

— Tanto melhor se o foi, sincero eu digo:

As Constituições como as mulheres,

É depois de violadas que dão fruto.

 

21 DE ABRIL

Ao protomártir hoje consagramos

O nosso culto, ó corações altruístas!

(Como diria o papa Miguel Lemos

Nas comemorações positivistas)

“Em prol da pátria a vida, o sangue demos

Nas rudes, nobilíssimas conquistas

Da liberdade...Ӄ a chapa que hoje lemos

Repetida por todos cronistas.

Sim, pró-pátria me bato feio e forte;

Nem há haver entre os heróis valentes

Outro que com mais fúria se comporte.

Mas, por poupar desgosto aos meus parentes,

Tudo farei — assim me ajude a sorte —

Para ser “mais feliz que Tiradentes”.

 

3 DE MAIO

Por esse grande feito a pátria história

Cabral e o Acaso no seu culto irmana.

Estes nomes guardemos de memória

Que o mundo inteiro de os louvar se ufana.

Derrama-me hoje a indígena oratória

Sobre os padrões da glória lusitana:

— O monumento de Cabral, na Glória,

A viuvez legendária da Suzana.

Mas neste preito cívico, sincero,

Que vos lembreis, cronistas e oradores,

De outros grandes heróis aqui pondero>

Aclamai com calor, cobri de flores

Landor, Doumer, Jaurés, Ferri, Ferrero,

E outros que tais nossos descobridores...

 

13 DE MAIO

Data festiva para a gente preta,

Que também gente branca comemora;

Do cativeiro parte-se a grilheta,

São todos livres cidadãos agora.

Como uma boa fada de opereta,

Izabel, Sereníssima Senhora,

De vara de condão fez a caneta

E assinado a Lei Áurea faz-se a aurora!

Eu também ando vendo se consigo,

Princesa altiva que me tens nas grades

Do teu amor (ó jugo que eu bendigo!)

Que não te insultes e que não te enfades

Se, cativo do amor, tomar contigo

Algumas pequeninas liberdades...

 

14 DE JULHO

Hoje a terra de França, a nobre filha

Da liberdade, canta a glória e a fama

Dos seus grandes heróis, no hino em que brilha

Do sol de oitenta e nove a rubra chama.

Triunfa a Enciclopédia, — eis que se humilha

A realeza; e, ao final do grande drama,

Rola por terra a trágica Bastilha,

Mirabeau, Demoulins o povo aclama.

Ao quatorze de Julho os nossos preitos

Rendamos todos nós entusiasmados!

Vibre o civismo nos brasíleos peitos;

Porque o Brasil precisa de feriados

E, se há crise de heróis e grandes feitos,

Os alheios tomemos emprestados...

 

7 DE SETEMBRO

Foi nas risonhas margens do Ipiranga

Ao que nos diz da história o claro texto

Que o filho do monarca D. João VI

Retirou do Brasil pesada canga.

Cartas do Rei sobre a Colônia. Zanga

De D. Pedro ao saber-lhes do contexto:

— De El-Rei Senhor meu pai não sou capenga,

Faço-me Imperador! é um bom pretexto.

E solta a grande frase em desagravo:

Independência ou Morte! e em consequência

Torna-se em povo libre um povo escravo.

Pátria! hoje és grande e nadas na opulência,

És mais feliz do que eu que há muito cavo,

Sem resultado, a minha independência.

 

12 DE OUTUBRO

De há muito tempo que em saber me empenho

Se foi neste Eldorado — o Mundo Novo —

Que de Colombo descobriu o engenho

A gema, a clara e o mais do célebre ovo.

Pelos arquivos e museus me embrenho:

Em Fiske, em Southey, no Cantú me louvo;

Mapas consulto e anoto em meu canhenho

Lendas arcaicas, tradições do povo.

Fico indeciso, entre razões extremas;

Mas a coisa me explica o Rocha Pombo

Que é mestre nos históricos problemas:

— Concluo de dados que colhi no Tombo

Ser coisa clara que o Brasil é a gema

Da América e esta é o ovo de Colombo.

 

2 DE NOVEMBRO

Dia de luto, dia de saudade!

Entre a saudade e o luto dividida,

Vai hoje toda a viva humanidade

Chorar a quem não é mais desta vida.

A turba, em pranto, o cemitério invade;

E entre uma ânsia e uma lágrima sentida,

Curiosa, vai notando uma metade

Como é que outra metade está vestida.

Não eu que a paz perturbe dos defuntos;

Jamais terão de mim de que se queixem

Os que jazem na Terra dos Pés Juntos.

E aqui lhes pedirei sem mais rodeios:

Em paz os meus cadáveres me deixem,

Como eu deixo os cadáveres alheios.

 

15 DE NOVEMBRO

Santa República. Este é o nome augusto

Que do civismo a Santa Sé festeja;

O povo, num delírio intenso e justo

Pelas ruas, em ondas, se despeja.

Da República fulge o altivo busto;

A liberdade em seu olhar flameja;

E eu pela vaga humana barafusto

Para à Santa pedir que me proteja.

Pela Constituição, cândida e pura

Filha tua, ó República, alivia

Meu corpo do trabalho que o tortura!

Tu, irmã da Mãe Pátria, ó minha tia,

Vê se me arranjas uma sinecura

Que renda, assim, uns cem mil réis por dia.

 

HILÁRITAS

_____

(MUSA RISONHA)

 

A ARTE E A VIDA

A Domingos Magarinos

Pergunta-me você porque motivo

— E de indolente, sem razão, me acusa —

Somente o leve gênero cultivo

Sem que o gênero grave me seduza.

E, assim, das letras brasileiras vivo

Da zona suburbana em viela escusa,

Em vez de entrar na Academia, altiva,

Pela mão de mais nobre e séria Musa.

Amigo, a vida é que me dá matéria

Para as cogitações em que me abismo,

De onde extraio o ridículo e a pilhéria.

Estudo-a a sério; os fatos não sofismo:

Culpa é da vida que só tem de séria

A faceta faceta do humorismo...

 

INTERESSANTE

Tem descurado os seus domésticos encargos

E mole, a bocejar, move-se Lídia a custo;

De rendas brancas veste uns paletós mais largos

E não traz, como outrora, o espartilho tão justo.

Num divã reclinada, em mórbidos letargos

Deixa o corpo pender, como um frágil arbusto;

E um gosto excepcional por azedos e amargos

Faz o esposo tremer, de cuidado e de susto.

É chamado o doutor, velho médico amigo,

Que, assim que a doente vê, faz um tranquilo aceno

De quem no caso achou caso clínico antigo...

— É grave o mal? o esposo inquire do Galeno;

E este a sorrir: — não tema o mais leve perigo;

O incômodo da Lígia é pequeno... é pequeno...

 

MODAS

Assuntos de toilette eu não discuto.

Amo a casaca, adora a sobredita

E um fraque no verão bem bom reputo

Quando as abas em leque, ao vento agita.

Trajo de negro, se me faz pôr luto

Um “cadáver” que às vezes ressuscita;

E aos reis da moda sem pagar tributo,

Visto a quinzena simples e catita.

Uso o meu paletó curto ou comprido,

De fazenda barata ou das mais caras,

Conforme aos meus haveres é servido.

Amo as roupas escuras como as claras,

Só não quero é na vida andar metido

Nas famosas camisas de onze varas.

 

SUICÍDIOS

Da morte a negra e trágica nevrose

Toma entre os homens proporções extremas;

E de suicídio os múltiplos sistemas

Matam mais gente que a tuberculose.

Tal as ânsias no mar busca supremas;

Qual a punhal as vísceras descose;

Um tóxico ingerindo em forte dose

Qual outro um ponto põe nos maus problemas.

Desesperados, como vos lamento!

Se odiando acaso o mundo tumultuário

Julgais do “outro” tirar melhor provento,

Seguis por certo errado itinerário:

Quanto a mim deste mesmo me contento

Porque receio um “conto do vigário”.

 

A PULGA

(Lope de Vega)

Fero e atrevido, um átomo vivente

Picara o colo de Leonor formosa,

Deixando na alva pele cetinosa

A leve marca do invisível dente.

Ela, molhando os dedos cor de rosa,

Entre eles colhe a mísera imprudente;

E a comprimi-la, voluptuosamente,

Doce vingança, em dar-lhe a morte, goza.

Morrendo, exclama a pulga: — ó sorte crua!

Duro castigo a leve culpa é este!

E eu digo: — Ah! bem ditosa é a sina tua!

Dize a Leonor quanto te invejo a sorte!

Se ela deixar que eu morda onde mordeste,

A vida eu trocarei por tua morte.

 

ALMA EM FESTA

Dia de São Pangloss. Vibra, intensa,

A alegria no espaço; o sol cintila

A terra é a Canaã fecunda, imensa,

Que o som e a luz no farto seio asila.

Um dia assim, de anos de dor compensa

A alma que velhas mágoas aniquila.

Do coração apague-se a descrença,

Seque a fonte que lágrimas estila.

Solto foguetes dentro d’alma e a enfeito,

Na mais estardalhante alacridade,

Com galhardetes e festões de efeito.

Canto um te-deum em honra à mocidade

E ao som de um hino, acento no meu peito

Os balões venezianos da Saudade.

 

SUBINDO A SERRA

Eis-me galgando a encantadora serra

Onde, do alto, Petrópolis domina;

Que helênica beleza aqui se encerra

Do bosque umbroso à fonte cristalina!

A alma, livre e feliz, foge da terra

E na mata, que ao poente se ilumina,

Entra, nova e pagã, expande-se e erra

Entre as ninfas e os gênios da colina.

Verde Serra do Mar! ah, quem me dera

Gozar sempre a bucólica paisagem

Dos teus bosques de eterna primavera!

Louca utopia! efêmera miragem!

Alma! regressa ao mundo e considera

O exorbitante preço da passagem!...

 

DRAMALHÃO

O pano sobe; a filha pede ao conde

Que lhe perdoe a falta: — é mãe, confessa.

O conde crispa as mãos, perde a cabeça:

— Miserável! e o pai? quem é? responde!

Fingem dentro o rodar de uma caleça

E surge o amante — um tipo do grand monde.

A moça treme, e, pálida, se esconde

Nos bastidores. E prossegue a peça.

Mas no epílogo, o pai, de olhar ferino,

Inda a tremer com as emoções... da estreia,

Em duelo mata o infame libertino.

Aplaude, entusiástica, a assembleia,

E vêm à cena o morto e o assassino

Agradecer as palmas da plateia.

 

A SEMANA DO BOÊMIO

Segunda-feira: ei-lo que traça os planos

De uma vida mais séria e mais regrada;

Tem na terça, em louvor de sua amada,

Uma explosão de versos parnasianos.

Na quarta, nos cafés, prega a cruzada

Contra os “francos”, os “réis” e os “soberanos”;

Tem, na quinta, o maior dos desenganos

Por ter sido infeliz numa dentada.

Na sexta eleva aos ares um castelo:

Há de meter o mundo num chinelo

Quando a dez contos seus haveres montem.

No sábado o jantar fila a um parente

E no domingo almoça lautamente

Saudades frias dos petiscos de ontem.

 

A UM PLUMITIVO

Li teus versos. Bem bons. De um real talento

São decisiva prova a forma e o fundo.

Mas, meu amigo, como eu te lamento

Vendo-te assim, tão moço e tão fecundo!

De Apolo o doce e mágico instrumento

Far-te-á talvez faminto, roto, imundo,

Larga este azar, de algum agiota invento,

Foge da pynda ao báratro profundo.

Queima os teus contos, larga-te de versos,

Deixa estas pobres “letras” sem descontos

E das notas da lira os sons dispersos.

Busca letras que deem tantos por centos

E, em matéria de contos, cava uns contos

Dos pagáveis em notas... de quinhentos.

 

NO EGITO

Percorro com o olhar abstrato e incerto

O céu que de ouro e púrpura se tinge;

Vejo Ramsés em sonho e, mal desperto,

Fito o olhar cabalístico da Esfinge.

Olho as velhas pirâmides de perto.

Ao longe a curva do horizonte cinge

A planície faiscante do deserto

Cujo termo jamais o olhar atinge.

Salve Egito, que o espírito me invades

E enches de sonhos, lendas e magias,

Dando-me de Arte a emoção suprema!

Mas volta a luze eu parto com saudades

Desse Egito imortal que eu vi há dias

Na fita colorida de um Cinema...

 

CARTA A UMA AMIGA

(Da correspondência de Mme. Tout le Monde)

“Que adorável, bucólico passeio!

A noite quente convidava ao gozo

Do campo, em cujo grato e ameno seio

Sonhasse o nosso espírito ditoso.

E assim fomos os dois, num bonde cheio,

Buscando de Ipanema o alegre pouso;

Eu a cismar, num doce devaneio,

Ele a dizer-me um madrigal formoso.

E falamos de amor, de passarinhos,

De flores, de palácios encantados,

Pela floresta imaginando ninhos.

E, entre carícias mil e mil agrados,

Fizemos toda a viagem tão juntinhos,

Que até nem parecíamos casados...”

 

CAVALHEIRO ANDANTE

Segue o triste namorado

Por vales e serranias;

Tem no rosto amargurado

As expressões mais sombrias.

Da floresta na espessura

Entra, em fogoso corcel.

Que romântica figura!

Lembra antigo menestrel.

A densa mata atravessa,

Passa a púrpura corrente...

Mais depressa, mais depressa,

Sempre a seguir para frente.

Ao sol, à chuva, ao mormaço,

Galga imensos alcantis;

Abata-o embora o cansaço

Não se queixa e nada diz.

Cai a chuva e ei-lo prossegue!

Ruge, fero, o vendaval

E ei-lo a correr, todo entregue

Ao seu destino fatal.

Onde vai? que é que procura

Nessa intérmina jornada?

Anda correndo à aventura

A pobre alma enamorada?

Busca a amante fugitiva?

A riqueza? a glória? o amor?

Quer acaso, alma cativa,

Quebrar os grilhões da dor?

Quem ao triste enamorado

Os mistérios da alma sonda?

Vai ao país do Eldorado?

Vai a Cólquida? a Golconda?

Segue! segue o teu fadário

Viandante que prosseguis,

Destemido, o itinerário

Que traçaste; e sê feliz,

Segue por vales e montes.

Vendo, por onde passares,

Nunca vistos horizontes,

Novas serras, novos mares.

Segue mancebo formoso

Que mais gordo eu nunca vi,

Eu, como não sou curioso,

Não te sigo e paro aqui.

E vás tu para onde fores,

Aqui estou, aqui persisto;

Acompanhem-te os leitores

Se têm interesse nisto.

 

APETITOSA

Ela sentara junto à minha mesa,

A sós; veio o garçom, trouxe-lhe a lista;

Escolheu não sei que... fixei a vista

A examinar-lhe a sólida beleza.

E fui passando em rápida revista

O gosto, o “chic” a distinção francesa

Com que desde os hors d’oeuvre à sobremesa

Ela fez honra ao culinário artista.

E, então, imaginei, fitando-a mudo:

— Trint’anos, nada que a desgoste ou irrite;

Passou dos sonhos o momento agudo...

Gosta em casos de amor de ir ao limite...

Lê Bourget; dentes sãos e, sobretudo,

Que apetite excelente! é de apetite!

 

A VOLTA

Voltas enfim, meu fugitivo amante!

Como saudosa andei dos teus carinhos

De alma abatida e pálido semblante!

Triste, a fitar a lama dos caminhos!

Tudo tão feio, tão desconfortante...

Mudos os campos, os rosais e os ninhos;

Nem de abelhas o bando sussurrante,

Nem de cigarras, nem de passarinhos...

Vem! por te ver se adornam vale e serra!

Solta a apolínea cabeleira flava

Que a alegria, o calor e a vida encerra.

Beija na boca a tua amante e escrava!

Não me abandones mais! beija-me!” A Terra

Ao vir do estio ao Sol assim falava.

 

RESPOSTA A UM AMIGO

Respondo à tua carta que agradeço

Com as cem cousas amáveis que me dizes;

Sê feliz, ou melhor, sede felizes

Tu, a patroa e teu bebê travesso.

Por estes exotíssimos países

Não me esqueceste como eu não te esqueço;

Tua amizade é planta de alto apreço

Que em minh’alma criou fundas raízes.

Perguntas se estou rico e aqui te digo:

És sempre o mesmo espírito brejeiro

E estás, de longe, a gracejar comigo.

Pois se ando a trabalhar todo o ano inteiro,

Como é que queres tu, meu velho amigo,

Que eu tenha tempo de ganhar dinheiro?!...

 

PANTEÍSMO

Monte escalvado, de íngreme talude:

Do alto escorre sereno e calmo o rio;

Verde e florido é o campo ao sol do estio,

Branco de neve pelo inverno rude.

Emerge uma palmeira o caule esguio

Do monte sobre a máxima altitude;

Mudem-se as estações e o tempo mude,

Ela é a mesma ao calor, ao vento e ao frio.

Sobre este monte, em plena natureza,

Ao pé desta palmeira que se apruma

Cheia de viço e rica de beleza.

Em tardes quentes, ao cair da bruma,

— Que vos não cause a confissão surpresa —

Nunca me aconteceu coisa nenhuma...

 

HORAS TRÁGICAS

Suportar uma sogra, a dor de um calo,

Sentir vazia a tísica algibeira,

Ter dor de dentes a semana inteira,

Sem um minuto ao menos de intervalo;

Pelos pedrouços de íngreme ladeira

Descer, atado à cauda de um cavalo;

Do pôr do sol ao despertar do galo

Ouvir o zabumbar de um zé-pereira.

Ser em amor coió sem sorte e arara,

Perder no bicho o reduzido arame,

Ouvir um desaforo em plena cara:

Ó desgraçada vida! ó vida infame!

Mas nada disto à sorte se equipara

De um estudante em véspera de exame.

 

A MINHA GREVE

(Fim de palestra)

....................................................................

— Animou-me a vitória do Congresso

Socialista-operário; e, como há dias

Vive Amélia a fazer-me picardias,

      — Consequências não meço;

Ponho-me em greve e, ríspido, declaro:

Não entro mais em caso antes das seis

      Da manhã, dia claro!

      Ninguém me traça leis!

E eis-me em greve pacífica, mas dura.

— E que fez ela, a pobre da criatura?

— De pobre a chamas tu? meu caro amigo,

O capital é tudo neste mundo;

      Nada vale o trabalho:

Ela, de olhar aceso e furibundo,

      Respondeu-me: — pois faça

O que quiser! e zás! voltou-me as costas;

Não aceitou nenhuma das propostas

Que, cordato, lhe fiz; e, por desgraça,

      Eis-me agora, vencido!

— Vencido? — Sim; pois pela madrugada,

Ao entrar eu em casa, encontrei-a acordada

      E de cara torcida.

Quis dar-lhe um beijo e Amélia deu-me o fora:

Volte para onde este até agora!

Eu não lhe disse uma palavra ao menos;

Despi-me devagar, fui beijar os pequenos

E no leito deitei-me sem demora;

      E, meu amigo, agora

      Sinto que é bem preciso

      Que eu tome juízo

E de um modo melhor a minha vida paute:

Ela no assunto nem tocou de leve,

Mas, terminantemente, em represália à greve,

      Declarou-me o lock out!...

 

OS SENTIDOS

 

VER

Ver as cores, as linhas e os aspectos

De tudo que impressiona o humano olhar!

Mares e céus, recantos prediletos

Nas placas cerebrais fotografas!

Gozo dos nossos olhos indiscretos

Pelas frinchas das portas a espreitar!

Ver os encantos feminis secretos,

Ver uma linda perna ou mesmo um par!...

Supremo ideal é ver o sol na altura

Do zênite; triste é ver o sol se pôr,

Na hora do desengano e da amargura.

Ver uma mulher feia, ó negro horror!

“Mas há na vida noite mais escura”:

É ver, de cara, a cara de um credor!

 

OUVIR

Ouvir! gozar a música sonora

Desta afinada orquestra universal!

A voz do vento, o córrego que chora,

O hino de um beijo em boca virginal!

Ouvir o coro da legião canora

Dos rapsodos da selva tropical!

Ouvir à noite e pela noite afora

O tilintim das taças de cristal!

Delícia é ouvir, quando os ouvidos ouvem

Fugas de Bach, sonatas de Beethoven,

Os flauteios bucólicos de Pã.

Mas que suplício é ouvir-se um gramofone,

Um desaforo pelo telefone,

Ou o quinteto da música alemã!

 

CHEIRAR

Cheirar, quando o rosal florido a pura

Essência espalha pelo verde prado,

É um prazer que me leva, de encantado,

Na asa do sonho ao reino da Ventura!

Cheirar o pescocinho alvirrosado

De bela e cheirosíssima criatura!

Cheirar, tanto melhor quão mais madura,

A maçã tentadora do pecado!

Prazer dos deuses! gozo arquiexcelente,

Filtro que vai do colo de Afrodite,

Pelo nariz, ao coração da gente!

Tal prazer não conhece o vil que habite

Rua que, em obras, vê constantemente

A Prefeitura, a Higiene, a Light, a City.

 

GOSTAR

Gostar! este é o satânico sentido

Causa de todo o mal, a Bíblia reza:

Por ele Adão pecou e a espada acesa

Do anjo viu, que o expulsou do Éden perdido.

Mas o gosto ficou. O homem despreza

O castigo divino, imerecido;

E, saboreando o fruto mau, proibido,

As consequências, a sorrir, não pesa.

Doce ou amargo ou ácido ou picante,

Se sabe ao paladar, que o gosto importa?

É gosto o gosto mais extravagante.

Entretanto, e isto sabe o mundo inteiro,

Existe um gosto que ninguém suporta:

O de um jantar no Lloyd Brasileiro.

 

APALPAR

“As delícias do tato! só por elas

Devemos bendizer a humana sina:

Premir os braços das mulheres belas

Num beliscão, ó sensação divina!

Seja a mulher mais forte ou a mais franzina,

Eu com delícia apalpo-a, todas elas”.

Estas frases dizia-me um bolina

Que a vida passa em tais apalpadelas.

Sim, concordei; mas neste mundo existe

Certo apalpar que, se inda o não sentiste,

Busca evitá-lo em tua vida airada:

Evita que no bonde ou no cinema

O dono d’Ela adote o teu sistema

E te apalpe o nariz com a mão fechada.

 

ODE AO POVOAMENTO

As estatísticas platinas

Forjam intrigas e mofinas

      Pelos jornais;

Propalam que a natalidade

Tende a cair nesta cidade

      Cada vez mais.

Não consintamos que se diga

Com fins maléficos de intriga

      Mentira tal;

De protestar cabe o direito

Ao ilustríssimo prefeito

      Municipal.

E tal direito também toca

A todo o povo carioca,

      Que, em forte voz,

Deve gritar para a Argentina:

Recolhe a língua viperina,

      Torpe, feroz!

Neguem-nos tudo, com mil demos!

Mas garantir que nós não temos

      Gente, é demais!

Povo carioca, sem detença,

Vinguemos todos esta ofensa

      Aos nossos pais!

Dizer que há poucos nascimentos,

Onde sem conta os casamentos

      Por certo são,

(Com tal mentira é que encavaco)

É nos julgar um povo fraco

      E... moleirão.

Em verso pálido e modesto

Aqui registo o meu protesto

      Com todo o ardor!

O Rio é terra onde se adora

Com toda a unção e a toda hora

      O loiro amor.

Todos, maridos e mulheres,

Os sacratíssimos misteres

      Sabem cumprir;

E, de amor pátrio como prova,

Vai fabricando gente nova,

      Para o porvir.

De um dogma é sempre posta à altura

A lei sublime da Escritura,      

      Fecunda lei...

E o verbo amar é conjugado

Desde o “amava” e o “tinha amado”

      Ao “amarei”.

Sob este céu candente, em brasa,

Rara é a choupana, é rara a casa

      Onde não há

Um pequerrucho inda de mama

E um de gatinhas que já chama:

      Mamã, papá.

A minha rua, por exemplo,

De amor é um nobre e imenso templo,

      — Um gineceu,

Em que não sei de um só marido

Que à noite, em vez de ao deus Cupido,

      Reze a Morfeu.

A rua é séria e dorme cedo;

Dorme? não sei... isto é segredo;

      Não chega a nós.

Mas já noite: de quando em quando,

Vão das senhoras se alargando

      Os paletós...

Por toda a urbi, ao que suponho

O belo quadro que aqui ponho

      É sempre igual;

Em Botafogo ou na Favela

A gente toda o nome zela

      Nacional.

Mas porque nada fique desta

Intriga pérfida e molesta,

      Devemos nós

Lutar, amar, com mais denodo,

Porque se cale, enfim, de todo

      A injusta voz.

Sob estes céus, junto a estes montes,

Entre os doirados horizontes

      Deste país,

A natureza a amar convida;

(Que o amor é a síntese da vida

      Um poeta o diz).

Belas patrícias! da Argentina

A vil calúnia pequenina

      Lance-se ao pó!

Que o nosso esforço centuplique

E que jamais vazio fique

      Um berço, um só.

Deixai os bailes, as toilettes;

Fitas, vestidos e coletes

      Deixai, e ouvi:

Lares fidalgos e burgueses,

Tenham, de nove em nove meses,

      Mais um guri.

A cifra da natalidade

Há de crescer nesta cidade;

      E o cidadão

Há de, afinal, bater no peito,

Alegre, ufano, satisfeito

      Do seu milhão.

Toda a prosápia da Argentina

Com a sua intriga pequenina

       Por terra cai

Povos não vejo que nos domem:

Que filhos haja e que cada homem

      Seja um papai!

 

PANTEÍSMO

A Emílio de Menezes

Um dia encantador o de ontem. Cedo

Tive uma ideia e foi das mais felizes:

Meter-me pela mata, entre o arvoredo

      Os musgos e as raízes.

Que é na contemplação da natureza

Que a gente a vida no íntimo perscruta,

      Na sua máscula grandeza

Selvagem, forte, anarquizada e bruta.

A alma sente-se bem nestes lugares;

Que a natureza toda aqui se expande

Para a virgem, sem deuses, sem altares,

      Independente e grande.

Ora a floresta, ora o despenhadeiro,

Junto ao rochedo a prumo, o abismo hiante

E entre pedrouços, a correr ligeiro,

       O córrego cantante.

      E contempla-se a luta

Milenária, feroz, dos elementos:

A água a infiltrar-se pela rocha bruta,

A mata, em fúria, resistindo aos ventos.

Aqui é o tronco forte e antigo;

Por ele sobem lianas esquisitas;

Lembra um bondoso coração de amigo

Em torno ao qual florescem parasitas.

      A natureza é sábia e mestra;

Apraz-me visitá-la em seus augustos lares

E com ela travar deleitável palestra

De que colho lições novas e singulares.

      Ali é a borboleta buliçosa,

      Pintalgada, que voa

      Alegre, livre, descuidosa:

É-lhe decerto a vida amorável e boa.

      E ventura tamanha

Invejo dessa alígera criatura

Que não receia, a volitar na altura,

Dos códigos e leis as mil teias de aranha.

Entre as aves, as plantas, os insetos

Há conversas amáveis, há cochichos;

      Mas a tal ponto são discretos

Que ninguém sabe o que há entre as plantas e os bichos.

A minha musa adora o seio augusto

      Da Natureza, em fúria ou em calma;

A árvore, o inseto, a planta, o arbusto

      Têm alma gêmea da minh’alma.

E é por isto talvez que eu amo a selva

E desejo habitar sobre um verde planalto,

Onde a vida comece onde termina o asfalto

E começa o tapete intérmino de relva.

Quero uma selva, assim como Santa Tereza

      A Tijuca, o Silvestre...

Um recanto de mata onde eu sequestre

      Entre insetos e flores

      A minh’alma de monge!

Em que haja linfas d’água e pássaros cantores...

      Sim, adoro a floresta!

(Contanto que não fique muito longe

Dos Teatros, dos cafés, de tudo o que não presta...)

 

SUPLÍCIO DE “PRONTO”

Tomo um bonde do Leme e por velho costume

Busco a ponta de um banco. Ilustre cavalheiro

Vai junto a mim; seu todo o espécime resume

De um alto luminar do mundo financeiro.

Deixo que por siso meu cigarro se fume

E digo ao fumo vão: como é bom ter dinheiro!

Chama-me o condutor; meu níquel derradeiro

Vai-se e arranca-me d’alma um dorido queixume.

E, enquanto o meu vizinho — o cavalheiro ilustre —

Uma nota de dez, mitológica e rara,

Puxa, maquinalmente, a pagar a sua “inteira”,

O condutor, com o braço em torno ao balaústre,

O “arame” da cobrança esfrega-me na cara,

Torpemente afrontando a minha quebradeira!

 

MENINA E MOÇA

(Monólogo para crianças)

Isto é demais! que tortura!

Como pode uma criatura

A vida levar assim?

Se eu contar meus dissabores,

Juro, juro que os senhores

Hão de ter pena de mim.

Eu tenho treze anos; ora,

Não me tratam por senhora.

Todos me chamam — você —

Mas se um grito dou mais alto,

Mamãe vem logo de um salto

Ralhar comigo; por quê?

E é quase certo que a ouça

Dizer zangada: — uma moça

Não vive assim a gritar!

Você já não é criança...

E, assim falando, me lança

Um frio e severo olhar.

Esta agora! enfim de contas

Indecisa, fico às tontas

E com razão, bem se vê;

Pois se há pouco era eu criança,

Porque em tão breve mudança,

Fiquei senhora? por quê?

Se acaso me dói um dente,

Diz a mamãe: — que é que sente,

Minha filhinha? que tem?

Mas se choro, ouço: — Marina,

Você já não é menina,

Chorar não lhe fica bem.

Moça de novo! bonito!

Há nada mais esquisito?

Eu sou moça? eu sou bebê?

Onde afinal a verdade

E porque é que assim, de idade

Me fazem mudar? por quê?

Porém, dentro em pouco, quando

Ela e o papai conversando

Baixinho, ao jantar, estão,

Se eu me intrometo: — Marina,

Quando se fala a menina

Não deve dar opinião!

Indo outro dia a passeio,

Vi um moço nada feio

Fitar os olhos em mim.

Qualquer coisa ele me disse...

Sorri... Antes não sorrisse...

Mamãe disse logo assim:

— Isto tem jeito, Marina!

Um fedelho, uma menina

A namorar?! nem se crê!...

Expliquem se são capazes:

Para gostar dos rapazes

Sou inda criança... Por quê?

Os velhos dão-me beijinhos,

Fazem-me festas, carinhos,

Afagam-me o queixo, assim...

Dizendo: — Ora, esta Marina

Que eu conheci pequenina

Como está grande! pois sim...

Fosse um rapaz, entretanto...

Um beijo, não digo tanto,

Era demais, já se vê;

Mas um só abraço apenas...

Jesus! que horrorosas cenas

Faria a Mamãe! por quê?

Quem aos desgostos me furta

Que me causa a saia curta

E as tranças soltas me dão?

Que eu deixe de ser menina

E de uma vez se defina

Esta dúbia situação.

Ou que, então, seja eu criança

Por toda a vida e a esperança

Perca, afinal, de crescer.

De menina ter deveres,

Sem ter de moça os prazeres?

Isto é que não pode ser!

 

O AEROPLANO

      Ei-lo, os ares cindindo,

      O novo, o estranho pássaro,

Que adiante a adiante, em voo magnífico,

      Vai-se aos poucos sumindo    

      Aos humanos olhares.

      Não se lhe vêm as lépidas,

      As incansáveis asas;

Vê-se-lhe o leve vulto a vagar pelos ares,

Por sobre os morros, os jardins e as casas.

      Vê-se que ora remonta

Às mais altas camadas atmosféricas,

      Ou tomba em reta, a prumo,

Ou a ziguezaguear, desce como ave tonta,

Para logo se erguer e, em curva rápida,

      Mudar de novo o rumo...

É o pássaro senhor dos infindos espaços!

      Não o cega o brilho rútilo

      Do sol, na esfera azul e imensa;

      Ave triunfante que tem cérebro,

Que é de seda e metal, mas que sente e que pensa.

Vede-o agora: o nobre pássaro

Vai saindo do hangar, como de uma gaiola;

      E vagaroso e tímido,

      Desengonçado rola

Pelo verde gramado e surge à luz por fim.

      Como é banal, assim,

Visto no chão, sem pose, apresentando

      O esqueleto e as nervuras

Tudo lhe vai o olhar perspícuo desvendando:

      Parafusos, arames e costumes,

               Sarrafos e metais;

E nas asas de pano, em letras garrafais,

      — A reclame da fábrica!

      Ó ave apocalíptica!

      Serás tu que o domínio

Tens dos ares e os céus os segredos desvendas?

Ó pássaro de pau, de aço, pano e alumínio,

Que venceste os heróis icáricos das lendas!

      És a ave etersedenta

      Que as amplidões domina

               E se alimenta

      De azul e... gasolina.

      E a velívola, neta

De Ícaro e Dédalo e da Passarola,

Vem saindo do hangar como de uma gaiola

Sobre rodas banais de bicicleta...

      Haverá cousa mais ridícula

      Que o ver rodar um aeroplano,

      Como se fosse um reles automóvel,

Rolando pela relva os seus prismas de pano?

      É tal uma água que caminha

      Num pátio, num quintal,

      Entre um peru e uma galinha,

      No passo mole e desigual

De um soldado da Guarda Nacional...

      Desprende o voo, monstro diabólico!

      Teu leme aos céus apruma

      E corta o azul, em voo intrépido!

      Longe a terra, em suma!

Corta o azul! que o motor, movimentando a hélice,

               Te dê força precisa

               Para venceres, rápido,

As resistências do ar, as correntes da brisa.

      Que, então, cortando o espaço,

Longe do humano olhar e do perspícuo exame

               De rijos fios de aço,

Nem te toque o motor e nem te sinta o cheiro,

               De graxa e gasolina.

Só se te veja o voo, velívola divina,

Mitológico pássaro altaneiro!

Ave de outro planeta, a baixar sobre a Terra!

Nave de Marte ou Sol, que pelos ares erra,

E nos vem descobrir num recanto do espaço!

É sem marco a amplidão. Nave intrépida, cinde-a,

      Sem que deixes um traço

      Do teu voo temerário!

E enfim, descobre a Terra; ancora, enfim, na Índia

Deste vasto sistema planetário...

      Mas não pouses velívola!

      Parte de novo, parte

Para Netuno, Júpiter ou Marte!

      Corre o sidéreo mapa

      Vai do infinito à extrema etapa,

Mas não voltes ao chão com o teu rodar ridículo!

Não te venhas mostrar aos olhares humanos,

Que em tudo quanto é nobre e forte e grande e belo,

Só, curioso, meter da análise o escalpelo:

No amor, na arte, na glória, ou... nos aeroplanos...

Alma humana, se um dia, em voo audaz cortaste

      Dos sonhos a amplidão,

Ao descer, viste bem quanto é grande o contraste

      Entre os astros e o chão!

Não subas mais! ou, então, se inda outra vez subires,

      Fica lá, triste e só,

Entre as nuvens, o sol, os astros, os arco-íris:

      Mas não voltes ao pó!

 

A UM POETA

Do papai abandonado,

Caro irmão, como me amolo!

Neste país congelado

Não há Musas nem Apolo.

Do inferno, desesperado,

Os sete círculos rolo;

Tenho o corpo num sobrado

E a alma sinto-a num subsolo.

Mas, olhando um mapa ao lado,

Pouco a pouco me consolo,

Dos graus subindo o traçado.

E canto hosanas, em solo:

Bem perto, ao norte plantado,

Que vejo, ó deuses! Há polo!

New York, 1909.

 

SURDINA À CHUVA

A Marcelo Gama.

Um domingo de inverno. Um dia triste

De fria chuva e fino e forte vento:

               Dia nevoento

Que lembra Londres mergulhada em mist.

Santa Tereza

Onde tenho o meu ninho (e é o Éden sobre a terra)

               Toda se envolve e encerra

      No amplo véu ametista da tristeza.

      Não tem a mata a delirante

      Variedade de tons nos verdes da folhagem:

               É uma selva selvagem

Tal qual a que Virgílio andou mostrando a Dante.

Nem sons pelo ar, nem pássaros nas ramas

Do arvoredo, na serra pitoresca;

E eu deixo-me ficar em casa, à fresca,

No conforto burguês de umas vastas pijamas.

      Que esta linda montanha

               Quando chove,

      Fica de uma tamanha,

               Melancolia,

Que o coração da gente se comove

Só com se olhar o céu e a paisagem sombria.

      E esta tristeza invade

A alma e a prende e a domina de tal jeito,

Que o mundo todo nos parece feito,

      De cinza e de saudade.

Raios de sol! o olhar divago e espraio

Pelos nublados céus, na ânsia de ver-vos

Brilhar, fulgir, como em manhãs de maio,

Trazendo-me vigor ao espírito e aos nervos!

      Um frio ambiente, assim

A pesar sobre nós, e este céu carrancudo

São feitos para o inglês que sorve, abstrato e mudo,

As mil delícias sensoriais do spleen.

E junto ao fogo, à luz das lâmpadas elétricas,

      Entre um charuto e um grog,

Lendo de Hoffman e Poe as narrativas tétricas,

      Goza o encanto do fogg.

      Mas para nós, os filhos

Destas terras de sol, destes soberbos montes,

      Quer-se o esplendor, os brilhos

Da luz farta que doire os amplos horizontes.

      Jamais eu me consolo

Dessa ausência da luz mirífica e profusa,

Pois como as outras musas, minha musa,

Ama os beijos do sol, as carícias de Apolo.

      Alguns minutos fico

A pensar, remexendo nas estantes,

Nas edições luxuosas e elegantes

Que havia de possuir, se fosse rico.

      Não escrevo nem leio;

E enquanto a chuva cai, deixo-me alheio

À vida, ir pelo mundo astral da fantasia:

Edifico no ar castelos de ouro;

      Fundo uma companhia

Para salvar a Pátria e esgotar o Tesouro.

      Ou contemplo, à janela,

A água a correr, em regos, junto aos trilhos;

E horas, assim, passamos nós — eu e “ela”

“Ela” é a mãe dos meus futuros filhos...

Penso que a vida é boa e bem vivível;

E tudo quanto existe: — a luz e a lama,

A flor e o verme, o belo e o horrível,

Ponho no mesmo alevantado nível.

Tanto me esqueço a musa do epigrama

               E esqueço

As maldades do mundo; o feio e o belo,

      Otimista, nivelo

Pela cota maior do meu subido apreço.

               Talvez que a doce calma

Do lar e o almoço tarde e a distância da rua,

               Tudo isto, junto à chuva, influa

Para a mental preguiça e tais bondades d’alma.

É que a musa satírica precisa

Do barulho febril dos cafés, do constante

Tumultuar da cidade, onde em cada semblante,

Um traço caricato se divisa.

Na amável paz do lar eu não distingo

Um demônio de um santo, um herói de um covarde:

Vejo a vida tão boa... a chuva, o almoço tarde...

Deus abençoe quem fez a preguiça e o domingo!

 

OS FUSOS

Esta grave questão do fuso horário

Há de dar que fazer a muita gente,

      Pondo-a de juízo vário,

Para a complicação perceber claramente.

      Mas dos leitores não abuso,

Propondo-me explicar por a + b,

Os princípios científicos em que

Se baseia o sistema da hora-fuso.

Dês que sábio Dr. H. Morize

Diz que a coisa está certa e é mesmo assim,

Não me compete a mim (pobre de mim!)

      Solucionar a crise.

Portanto a hora do Castelo aceito,

      De coração aberto;

E, calmamente, o meu relógio acerto

      Com o máximo respeito

Às infalíveis leis da ciência infalível.

      Mas o que me impressiona

      É que será possível

Que o caso da hora, que ora vem à tona,

      Vá deslocar o eixo

Da universal doméstica política.

Quanto a mim não me queixo:

Sou mais pontual que o sol, a viajar pela eclíptica!

Nestas coisas de horário eu sempre ando

      Direito como um... fuso;

      E de tal forma me conduzo

Que só não chego à hora certa, quando

      Ou me adianto ou me atraso...

Mas imagine agora o bom leitor o caso:

Um motivo qualquer o prende à rua

E em casa o faz entrar, primeiro

      Que se recolha a lua

      E que chegue o padeiro.

      É mais que certo que Madame

      De olhos em pranto, a face em brasa,

      Subindo à serra, exclame:

— Isto são horas de se entrar em casa?

Mas o fino leitor, apesar de confuso,

Disfarça a confusão e responde à senhora:

— Tem a paciência, filhinha, enganei-me na hora:

      Acertei meu relógio pelo fuso!

E a esposa que não sabe astronomia,

Embarca ingenuamente na canoa,

      Mas, com ódio e energia,

Manda ao diabo o Castelo e o Club amaldiçoa

      De Engenharia!

      Outro caso: imagine

Meu amigo leitor, que, de esperar cansado,

Um credor o procura e com você combina

Que o débito será com certeza saldado

      Na quinta, às treze em ponto...

Você, leitor honesto, que anda pronto,

      Que é pontual, mas que é pobre,

      Toda a semana leva tonto,

A procura de ver se arranja o cobre;

Às duas e sessenta, pelo antigo,

Chega o credor, o pérfido inimigo,

E não o encontra no lugar marcado!

Mas daí há alguns dias (sorte brava!)

O cadáver dispara em seu caminho

      E com o tipo daninho

      Este diálogo trava:

— Então não foi? pois o esperei à hora...

      — Esperou-me? essa agora!

      — Às três em ponto! é o que lhe digo!

— Ás três estive eu lá, desmentir-me não ousa!

      — Mas às três, pelo antigo?

— Sim! — Pois aí está a explicação da cousa:

      Você lá foi, convenho,

      Razões não lhe recuso,

Mas eu a minha e muito forte tenho,

Pois o esperei às três... pela hora do fuso...

Por estes e outros casos tais, eu penso

Que a grande inovação vai deslocar o eixo

      Da vida planetária;

Mas nessa exposição não serei mais extenso

               E tão difuso tema deixo

A quem melhor conheça a confusão horária.

São dez e meia (pelo antigo). Abuso

Se falto ao ponto; o ponto é um caso sério.

E faço ponto. E corro ao ministério

      Direito como um fuso...

 

PELA MULHER FEMININA

No velho mundo de almas em chamas,

Vibrando cheias de um nobre heroísmo,

Na praça pública erguem-se as damas

Para a vitória do feminismo.

Nobres matronas, jovens coquetes,

Ei-las na luta com o mesmo ardor;

Prepara o bando das suffragetes

Da saia — o nove de Thermidor.

Minhas senhoras, que louco empenho!

Pois há mulheres que se consomem,

Que gastam tempo, dinheiro, engenho

Por almejarem direitos do homem?

Querem da vida na luta insana

Sentir os golpes da sorte cruel?

E entrar na pífia Comédia Humana

Representando nosso papel?

Perder o cetro da majestade,

Cair do sonho, do doce enleio

Nesta prosaica banalidade

Que é a feia vida do sexo feio!

Ser como os homens, perder a graça,

O encanto, o chic que as saias dão,

Lançar incêndios na populaça,

Em vez de incêndios num coração!

Meter-se em lutas, fazer negócios,

Andar em ligas, congressos, dumas,

Deixas as danças, o flirt, os ócios,

Fitas e flores, rendas e plumas.

Por essa vida prosaica e rude

— Árdua conquista do vil metal —

Que não varia com a latitude

E em toda parte do mundo é igual?

De strenous life forçar o ingresso

Por entre espinhos, urzes, abrolhos,

E ser eleita de algum congresso

Em vez de eleita dos nossos olhos?

Isto é loucura de alto calibre;

Põe-me de rubro, congesto olhar.

Que o meu protesto, veemente vibre.

Por monte e vale, por terra e mar!

Não, belas damas que outro comício

Novos discursos jamais provoque.

Deixai as urnas pelo bulício

Febril dos bailes e five o’clock.

Bem perderíeis se essa equidade

Vos fosse dada como pedis,

Pois sobre os homens a majestade

Tendes dos vossos olhos gentis.

De vós havemos o santo e a senha;

De vós, criaturas que vestis saias!

Por vós o mundo todo se empenha

Em criar as joias, as rendas alfaias.

Por vós o mundo todo se agita

Numa contínua conflagração;

Que os olhos de uma mulher bonita

Valem o trono de uma nação!

Ligas, congressos, — mandai às favas!

Voltai à calma dos vossos lares;

Dos feros homens vós sois escravas,

Mas sois escravas que têm altares...

 

VERSOS VERSUS DIVERSOS

_____

(MUSA ADVERSA)

 

A SÃO BOCAGE

Para louvar e honrar o meu padroeiro,

São Bocage — o Patriarca do Epigrama,

Subo à capela rústica do outeiro

Onde a Fonte Castália se derrama.

Subo; e, curvado como um verdadeiro

Sincero crente, o coração em chama,

Do seu olhar, de lira à mão, me abeiro,

E o verso vibro em toda a nobre gama.

Salve Bocage! tu que traduziste

Quanto há de grande no destino humano,

E quanto nele de grotesco existe,

És da Sátira o eterno soberano,

Tu que, de alma a chorar, tanto sorriste,

Alegre sofredor, divino Elmano!

 

IDEAL HUMANO

Vivo, senhor de mim, dentro da grade

Circular de um milhão de conveniências.

Livre, obedeço às leis da sociedade,

Às regras da arte, às prescrições das ciências.

Livre! contanto que não desagrade

A Deus, ao papa e às Suas Excelências

Que receiam que a minha liberdade

Comprometa o equilíbrio das potências.

Senhor do meu nariz, faço o que quero;

Dês que “o que quero” é aquilo que aponta

O Consenso Geral o dedo austero.

Quando, sem que a ninguém eu faça afronta,

Poderei ser “eu mesmo” e ser sincero?

Ser bom, ser mau, por minha própria conta?

 

PARA ONDE APELAR?

Monólogo de um misantropo

Esse tumulto da existência, que entre

Ambições de ouro e mando se reparte,

Cansa o homem feito para as coisas da Arte

Mais que para as funções do baixo ventre.

Alma, quero-te ver num mundo a parte,

Numa escusa tebaida onde não entre

Senão quem gozo e dor em si concentre

Sem com risos ou lágrimas magoar-te.

Onde esse pouco calmo, em que, isolada,

Possas sonhar, sem que te bata à porta

Gente estranha, feliz ou desgraçada?

A Morte? o Além? tudo no mesmo importa;

Pois si, ó Alma, te foges para o Nada

Tens a amolar-te tanta gente morta!...

 

TEATRO DA VIDA

Traze, ao pisar em cena a parte bem sabida

E seja-te a memória estreitamente fiel;

Ao rosto dá a expressão na rubrica exigida

De algoz, histrião, galã, pai nobre ou menestrel.

Faze-o e a plateia tens toda aos teus pés rendida,

Que entre as aclamações e as palmas a granel,

Gênio te há de sagrar para o resto da vida,

Sem ver que tudo aquilo era do teu papel.

Mas, se quiseres ser sincero, embora rude,

E disseres somente o que d’alma te vem,

Sem mudares a voz, sem que o teu gesto mude,

Serás péssimo ator, serás quase ninguém;

Pois no palco mais vale o que melhor ilude...

E no teatro da vida este é o caso também.

 

HOMEM SUPERIOR

Este que aí vês, homem de tino e siso,

Há de alcançar a meta que procura;

Sabe a vida levar como é preciso:

De olho alerta, pé firme e mão segura.

O bem e o mal envolve-os num sorriso

Complacente; não grita e não murmura;

Seguindo maquiavélica divisa,

Calma e serenamente a vida fura.

O justo meio adota nos dilemas

E se, por artes da fatalidade,

Tem de externar-se entre razões extremas.

Por que o caso em litígio se esclareça,

Reflete e move com serenidade

Num sorriso de dúvida, a cabeça.

 

ELOGIO DA MUDEZ

       

Vai, bacharel! cumpriste o teu mandato

À feição de um político perfeito.

Se o teu Grande Eleitor não for ingrato,

Por certo em Maio hás de voltar reeleito.

Foste, ó Licurgo indígena, de fato

Merecedor do público respeito:

Nunca fizeste bulha ou espalhafato,

Nunca emitiste o mínimo conceito.

Evitando as políticas refregas

E a estéreis discussões voltando a face,

Votaste calmamente, a rir e às cegas.

Mudo, honraste o mandato e honraste a classe

Pois nunca deste como os teus colegas

Cincadas no bom senso e na sintaxe.

 

O ENGROSSADOR

Grimpa, contorce-se a convolvulácea;

Desce, esgueira-se ao nível do terreno,

Com vagar, jeito, manha e pertinácia;

E alastrar-se e alcatifa o terrapleno.

Assim o adulador. Falta-lhe a audácia

Para lutar, mas cínico e pequeno,

Insinua-se e espalha-se, a eficácia

Não perdendo de um riso ou de um aceno.

Fugindo à vertical humana e augusta,

Como um réptil arrasta-se e coleia

E à ofídica moção se afaz e ajusta.

De alma vazia e de barriga cheia,

Tenaz, a vida vai galgando, a custa

Da infâmia própria e da vaidade alheia.

 

MANIFESTAÇÕES

Festões, foguetes, músicas, bandeiras

Salvas, discursos e ovações festivas?

Ei-lo que chega! e o “grupo dos Chaleiras”

Explode em palmas e se expande em vivas.

Sucedem-se as legiões, as comitivas,

Juntas e ligas mil, alvissareiras,

Nas zumbaias mostrando, engrossativas,

As mais engrossocráticas maneiras.

Segue o carro a Daumont. Mas não se iluda

Quem a Avenida do Poder percorre

Entre o pessoal do tom e a arraia miúda;

Pois esta gente que a saudá-lo acorre

É sempre a mesma gente que saúda

O Sol que nasce e apupa o sol que morre.

 

OS ABEXINS

Ei-los, os abexins, na apoteótica exédra,

Hinos entoando ao Sol que no Oriente cintila;

Em cada coração como em cada pupila

De novas ambições a sementeira medra.

Para a futura ceifa o solo aduba e redra

Toda a tribo; e ao Sol-por, quando o poente se anila,

Forma a cáfila, enquanto o primeiro da fila

Ao moribundo Sol lança a primeira pedra.

E ao gesto do cornaca, ordenando a manobra,

Chovem calhaus aos mil; o céu torna-se escuro

E a rubra não de luz no ocaso enfim soçobra.

As pedras, tantas são que, alto, se erige um muro,

Mas por vale a alcantil inda há pedras de sobra

De que se hão de servir num pôr-de-sol futuro.

 

MAL DISCRETO

Se a prontidão, a pinda, a quebradeira

E os vários males desta mesma classe,

Tudo o que punge a tísica algibeira,

Sobre o rosto do “pronto” se estampasse;

Se se pudesse a crise financeira

Ler “através da máscara da face”

Quanta gente, talvez, que da primeira

Fila, então, para a última passasse...

Quanta gente nós vemos, quanta gente,

Cujo largo plastron, discretamente,

Uma camisa enxovalhada esconde!...

Quanto moço elegante e perfumado

Que anda, imponente, de automóvel... fiado,

Porque lhe faltam níqueis para o bonde!

 

RETRATO LITERÁRIO

Este Petrônio de confeitaria,

Cujas altas conquistas são sem conto,

Não teme paralelo nem confronto

Com os luminares da diplomacia.

É o exemplar mais acabado e “pronto”

Da jeuneusse dorée de fancaria;

Dá lições de elegância todo o dia

Às portas da Colombo, onde faz ponto.

Vol-au-vent literário, alguém relata

Que ele faz versos e que só grafa-os

Com letras de ouro em lâminas de prata.

Tem joias, automóveis e cavalos,

Possui duzentos contos e anda à cata

De um editor que queira publicá-los.

 

OS SNOBS

Plateia cheia, artistas excelentes,

Canta-se o Mefistófeles, de Boito;

No camarote da polícia há oito

Delegados e nove ou dez suplentes.

Colos devassa o meu olhar afoito:

toilettes e joias resplendentes,

Côrtes, mesuras, madrigais, dolentes...

Eis-nos em pleno século XVIII.

O entusiasmo da sala é mar sem dique;

A cumprir seus snóbicos misteres

Não há pescoço que se não estique,

Ouvindo (Orfeu que melhor preito queres?)

Os tons do “dernier cri” a nota chic

E a harmonia... da linha das mulheres.

 

SOBERBA

Notai-lhe a voz, o olhar, o gesto, a compostura

De quem tem na barriga o rei e a corte inteira.

Em talento, em beleza, em fortuna, em bravura,

Supõe-se sem rival, doutrina de cadeira.

Olha os demais com ar de arrogante impostura

E a todos, afinal, trata de tal maneira,

Que o fraco se acobarda antes a sua figura

E o forte não lhe põe tropeços à carreira.

Vendo-o assar, eu digo aos meus botões: que diabo!

Feliz é um tipo assim que a um tempo se presuma

Belo, genial, sagaz, forte, heroico e nababo.

E nada tira ao mundo este sujeito, em suma:

Nasceu, viveu feliz e vai da vida ao cabo

Cheio apenas de si, cheio de coisa alguma...

 

PLEBISCITO DA MODA

Voto com todo o ardor pela jupe-culotte,

Pois acho ultraelegante a moda ultramoderna

Que aqui tem provocado o escândalo trote

De uma crítica aldeã, idiota e subalterna.

Julga a saia calção como julgo o decote;

Este é belo se belo é o colo que ele externa;

Assim não vejo malem que a perna se note

Dês que a dama é bonita e é notável a perna.

Melhor fora, ao meu ver, que mais se resumisse

A tal saia e que, então, dentro de tênues meias

Das pernas traço e cor a criatura exibisse.

É essa moda imoral? grave leitor, não creias!

Nem o velho Catão tal dissera se a visse

Nas filhas, nas irmãs, nas esposas... alheias...

 

ECOS MUNDANOS

A Martins Fontes

Todos os dias vem à cidade

Mademoiselle Futilidade;

      Ei-la desliza,

               Mal pisa

               O asfalto,

De bota esguia, cambrée, de salto

               Alto.

O aroma aspira do ambiente calmo

E, erguendo a saia de seda, um palmo

      Mostra dengosa,

               Vaidosa

               E terna,

De uma bem feita, fina e superna

                  Perna.

Ele, risonho, fino, elegante,

Tem o ar solene de um triunfante

      Sujeito de “alta”,

               Peralta

               E nobre

Mas no seu bolso ninguém descobre

               Cobre...

A cabeleira reparte ao meio;

Tem o bigode frisado e cheio

      De perfumada

               Pomada...

                   Sinto

Inveja ao vê-lo negro, distinto,

                 Tinto...

É de entre os prontos o maior pronto;

Pelas esquinas, por qualquer ponto,

      Quando ela flébil

               E débil

               Passa,

Ele lhe atira qualquer chalaça

               Lassa.

Ela, vibrante flor da alta vida,

Que de perfumes enche a Avenida,

      Baba-se quase

`            À frase;

               E ri-se

Ao elegante que tal sandice

              Disse...

— Minha senhora, permite... exclama.

— Não sou quem pensa! torna-lhe a dama,

      Fingindo espanto,

               Um tanto

               Ansiosa.

Mas a aventura, rindo dengosa,

                   Goza.

E ambos prosseguem mais apressados

Dos olhos dela langues, quebrados,

      Já de soslaio

          Um raio

          O atinge

E logo uns ares frios, de esfinge,

            Finge.

Entre os dois tipos não há contraste:

É a boa bisca junto ao bom traste

      Que em ter requinta

              Uns trinta

                  Fatos

E é dos “trezentos” um dos ornatos

   Natos.

Por isto é que ela não se incomoda!

Se ele é do chic, se ela é da moda...

      Mostram a esmo

            Num mesmo

              Riso

Quanto a este mundo se faz preciso

              Siso!...

 

A UMA “ESTRELA”

Por julgar dos teus méritos de artista,

— Apesar de não ser crítico de arte —

Quis ir ver-te comadre de revista,

E um bilhete busquei por toda parte.

Sábado; enchente; adquiro num cambista

A cadeira e habilito-me, destarte,

A deleitar à noite o ouvido e a vista

E com flores e palmas aclamar-te.

Surgem as tuas curvas opulentas;

Cantas; e a sala toda estruge em vaias

Uníssonas, contínuas e violentas!

Injustiça cruel que toca às raias!

Se és detestável quando representas,

Deves ser deslumbrante... quando ensaias...

 

ELEGÂNCIA BINOCULAR

Madame X, senhora da alta roda,

Que conta, aos mil, adoradores fieis,

É uma elegante super-flor da moda,

Sem com isto gastar contos de reis.

Os tribunais do mundanismo engoda

Com as chicanas de vinte bacharéis:

Se lhe falta um chapéu, não se incomoda,

Toma do esposo a cesta de papeis,

Uma echarpe lhe põe de fino pano,

— Crepe da China, gaze ou tafetá —

E ei-la à Avenida, no vaivém mundano!

E exclama o Figueiredo ao vê-la: — aí está

A “cesta” essência do smartismo urbano:

Sans-dessous, sans-culotte e sans... burá.

 

GENTILEZAS DO TEMPO

“O cavalheiro deve ter dez anos

Mais do que eu...” Velha dama disse um dia

A um senhor outoniço que sorria

Ao consolo banal de tais enganos.

Ele, que há muito tempo a conhecia

Contra o tempo, tenaz, tecendo planos,

Com um sorriso sutil e olhos maganos

Respondeu-lhe com fina cortesia:

— É verdade; encaneço-me e definho...

Da vida é fatigante a longa viagem

E o tempo é, para os homens, escarninho...

Mas ele às damas presta vassalagem:

Sempre que alguma encontra em seu caminho,

Para, corteja-a e... cede-lhe a passagem.

 

TRANSFORMISMO

Darwin afirma, em síntese perfeita,

Que da Babel científica destaco:

— A Humanidade liga-se ao macaco,

A uma sequência lógica sujeita.

Nosso ancestral avô, no seu buraco

Entesa a espinha, e, firme, o passo ajeita;

E transforma-se, alfim, forte, escorreita,

Na humanidade raça a do antropoide fraco.

A pouco e pouco o apêndice do símio

Que ele, com passes de acrobata exímio,

Enroscava nos paus da mata umbrosa,

Transforma-se, evolui, faz-se mais dúctil;

E a trança da mulher, sem ser tão útil,

É certamente, muito mais graciosa...

 

UMA SESSÃO CLERICAL

(TRAD.)

Com os intuitos mais severos

Em prol da religião,

Reuniram-se em sessão

Cavalheiros muito austeros.

Este, um simples Zé “pagante”,

Esse, o dono de uma venda,

Ess’outro, um tipo importante,

Ex-ministro da Fazenda...

“Encaremos as questões

Com toda a severidade,

Pois que domina a impiedade

Nos humanos corações...”

(Isto dizia o decano

Que era alfaiate e matreiro)

— Viva o clero soberano!

— Viva! repete um caixeiro.

Nisto uma voz quebra a linha

Da sessão série e pacata:

— Falta um tinteiro de prata

Que estava na escrivaninha!

Senhores! brada, altaneiro,

Um dentre os mais exaltados:

Todos vós sois muito honrados,

Mas aqui falta um tinteiro!

E como ninguém convenha

Dizer quem seja o ladrão,

Eu apago a luz e, então,

Restitua-o quem n’o tenha.

Soprou. Por sobre a igrejinha

Caiu de treva um capuz;

E quando se fez a luz,

Sumira-se a escrivaninha...

 

A JUPE-CULOTTE

Certo dia Jeová, da adâmica costela,

Um bípede forjou, de cabelos compridos:

— A primeira mulher, — nua, radiosa e bela,

Amava mais Adão que os seus próprios vestidos.

Mas depois houve a tal história da serpente

Que a Escritura nos conta em velada maneira;

E foi então que Deus, um tanto descontente,

Mandou que ela vestisse a folha de parreira.

Foi a primeira saia, a proto-saia, a saia

Mãe de saias, saiões e saiotes futuros

Que, se hoje ressurgisse, excitaria as vaias

Dos verdes gigolôs e dos gagás maduros.

Saia feita por deus, sem as rendas e os folhos

Das da moda que faz a elegância moderna;

Que, sem pejo, mostrava aos masculinos olhos

Alguma coisa mais que dois palmos de perna!

Mas, segunda já li numa lenda primeva,

(A Bíblia não relata a história verdadeira)

Depois de feito Adão, Deus só fez a mãe Eva

Por dar utilidade à folha de parreira.

Que importa que depois viesse a saia de roda,

Os balões, entravées, cem outras que não cito?

Foi a folha de parra o plasma, o embrião da moda

— Saia feita por Deus — o Paquim do Infinito!

Assim, foi para dar aplicação às saias

Que Deus fez a mulher; e, desde esse momento,

As sedas, os cetins, os linhos, as cambraias

Rolaram obre nós num desmoronamento.

Querem tirar a saia à mulher; dar-lhe falsas

Aparências viris! Moda, se tal fizeres,

Se todo o mundo, assim, passar a vestir calças

Não haverá razão para que haja mulheres!

Que há-de, ó Céus! a mulher fazer da mão direita,

Quando fulgure o sol, ou do céu a água caia,

Se a destra da mulher foi tão somente feita

Para, com chuva ou sol arrebanhar a saia?!

Imagino a mulher de cabelos cortados

Como os homens (meu Deus! que tal nunca aconteça!)

Sem chichis, sem bandós para fazer penteados,

Que é que havia a mulher de fazer da cabeça?

Assim também é a saia; ela é a razão suprema

De haver no mundo vil esses seres divinos.

— A saia é o sol em torno ao qual gira o sistema

De infernais tentações e humanos desatinos.

Abaixo as calças, pois! fora a jupe-culotte,

Moda paradoxal e sem beleza alguma!

Saia de bailarina, ou o balão, ou o saiote

Saia como sair, que saia a saia em suma!

Fizestes muito bem, ó vós que destes vaias

Na moda irracional que apareceu há dias:

— Deus só fez a mulher para dar corpo às saias

Pois fora de mau gosto haver saias vazias!...

 

FÁBULA URBANA

Corrido a pau, há tempos, de um cinema,

Souza, coió de muito pouca sorte,

Tomou, sincero, a decisão suprema

De preferir a tal vergonha a morte.

Mas lhe faltou coragem na hora extrema;

Souza pensava assim: sou moço e forte,

Mudo de vida, mudo de sistema,

Borracha irei colher no extremo norte.

Não foi; o Rio abandonar quem ousa?

Tem tantas atrações nossa Avenida

E para se cavar há tanta cousa!...

Ontem, num bonde, de bengala erguida,

Quebrava a cara de um bolina o Souza:

MORALIDADE: ó classe desunida!...

 

OS GOMOS

Na divisão da terra em 24 fusos ou gomos, o Brasil ocupa três deles.

Cabe em três gomos o Brasil, garante

Quem conhece a valer cosmografia;

E eu que disso fui péssimo estudante

Não me atrevo a dizer uma heresia.

Concordo com o que enfim a ciência e diante

Da palavra oficial solene e fria,

Por Newton, por Laplace et comittante

Acho isto claro como a luz do dia.

Três gomos dessa esplêndida laranja

Que é o planeta terráqueo (ó dom celeste!)

São do Brasil, são teus, leitor, são nossos.

Mas tantos a chupá-la vêm da estranja

Que, porque já da polpa nada reste,

Só nos tocam bagaços e caroços.

 

O LEÃO RECONHECIDO

(TRILUSSA)

Seguia um leão seu caminho

Por africano deserto,

Quando sentiu que um espinho

Lhe entrara na pata. Perto

Passava um jovem tenente

De uma inglesa expedição;

Suplica-lhe a fera doente

Que lhe faça a operação.

— Com prazer! o oficial

Diz-lhe; e, com todo o carinho,

Toma a pata do animal

E extrai, cuidadoso, o espinho.

Inda bem que o fez; perdida

Não foi sua boa ação,

Pois que a fera, comovida,

Quis mostrar-lhe gratidão.

E, — bravo! disse, com que arte

Me aplacaste o sofrimento!

Uma prova apraz-me dar-te

Do meu reconhecimento.

Que queres? ser promovido?

— É esta a minha ambição;

— Pois farei neste sentido

O que esteja em minha mão.

Assim falou e, inda nesta

Mesma noite, a fera honrada,

Ao regressar à floresta,

Cumprira a palavra dada.

E disse ao tenente: — amigo

Tens segura a promoção,

— Que me diz?! — É o que te digo,

Já comi o capitão...

 

PRESO POR SER CÃO

Foi recolhido ao xadrez do 10° distrito um cachorro, que mordeu a perna de um transeunte, no lardo do Matadoro.

(Dos faits divers)

Um magro cão das ruas, esfaimado,

Há muitos dias sem jantar e almoço,

Viu de um sujeito a perna, e, desastrado,

Mordeu-a, por talvez julgá-la um osso.

Dera queixa à polícia; e o delegado,

Disse a um guarda civil: — prenda o molosso

E meta-o no xadrez, acorrentado,

De coleira bem sólida ao pescoço.

Protesta o cão. Brada o civil: — são orde!

E mete-o no xadrez. De tais rigores

Permita o delegado que eu discorde.

Que equitativa a lei seja, senhores!

Não se prende um cachorro porque morde,

Deixando soltos tantos mordedores!

 

A MOLÉSTIA DE CHAGAS

De Oswaldo Cruz o célebre Instituto

Que é de ciência e de estudo um monumento,

Deu-nos há pouco mais um belo fruto

De trabalho, de esforço e de talento.

O Doutor Chagas, pondo o olhar arguto

No microscópio, cauteloso e atento,

Pelo exame do sangue de um matuto

Deu-nos de um novo mal conhecimento.

Alta glória científica! conteste-a

Quem bem souber o que tão mal sabemos,

Sem falsos exageros de modéstia.

Mas melhor fora, ó sábios, concordemos,

Que em vez de descobrir nova moléstia

Buscásseis cura para as que já temos.

 

MODOS DE VER

— Não é gentil o carioca.

Numa roda elegante assim dizia

      Dona Finoca

Uma gordinha e respeitável tia.

— Se uma senhora vai tomar um bonde

E na ponta do banco está assentado

      Um cidadão qualquer,

Este, atrás do jornal, a cara esconde

      E um gesto delicado

               Não faz sequer.

      Quando muito (e isto é raro)

Encolhe as pernas para que se passe...

       Eu, quanto a mim, declaro,

      Quando um tipo assim vejo

               O meu desejo

É bater-lhe com o leque em plena face!

      O que correto fora

É que, vendo chegar-se uma senhora,

Um rapaz que se tenha em boa conta

Chegasse para o lado e lhe cedesse a ponta.

      Pouco gentil o carioca...

      Não pensa assim, dona Iaiá?

      — Perdão, dona Finoca,

      A amiga lhe responde,

Mas eu, há dias, fui tomar um bonde

      No largo de Humaitá

E comigo se deu, é extraordinário!

      Justamente o contrário.

      Cinco ou seis cavalheiros,

Com uma presteza de me deixar tonta,

      Afastaram-se amáveis e ligeiros,

Cada qual a me dar do banco a ponta!

      Lembro-me até que neste dia,

(Dona Iaiá conclui, naturalmente)

      Era um horror! chovia

               Desabaladamente!

 

O AUTOMÓVEL E O BURRO

(Paráfrase de Trilussa)

Arrasa Mundo! exclama um burro um dia,

Vendo passar, veloz, estrada afora,

Um possante automóvel que fazia

Não sei quantos quilômetros por hora.

— Por onde passas, passa o dano e a morte;

Deixas, atrás de ti, carnificina.

Vales por uma bárbara coorte,

— Alarico movido a gasolina.

Estripaste na estrada um porco, um pato,

Dois cães e três perus — mísera gente!

Triste de quem não for assaz sensato

Para, ao ver-te, deixar-te livre a frente.

Assim falava o burro. Em tom de mofa

O automóvel, sorrindo, altivo disse:

— Idiota nunca vi de tua estofa;

Só mesmo um burro diz tanta burrice.

Bem se vê que os meus gases e que a poeira

Que levanto, a correr, te deixam tonto.

Sou forte e em minha impávida carreira,

Com os que andam no “calcantibus” não conto.

De vocês tenho pena e sinto nojo;

São todos meus humílimos vassalos.

Não sabes, burro vil, que no meu bojo

Tenho força de mais de cem cavalos?

Quem pretende avançar não se incomoda

Com a vil ralé que encontra no caminho.

Eu sou nobre e fulguro na alta roda;

Que a mim me importa o poviléu mesquinho?

Falando, assim, de orgulho e gás tão cheio

Ficou que, mal andara uns vinte passos,

O motor explodiu, partiu-se o freio,

Fez-se o carburador em mil pedaços.

Então mudou de tom o “auto” humilhado

E suspirou: — que hei de eu fazer agora?

A “garage” está longe e neste estado

Nem um só metro eu correrei por hora.

— A propósito vens, meu caro amigo,

Disse então para o burro, humildemente;

Conto com teu favor, conto contigo,

Que me pôs paralítico o acidente.

O teu auxílio peço-te e perdoa

Se te ofendi ou se te fiz ultraje;

Sei que tens alma generosa e boa

Sê generoso e leva-me à “garage”.

— Pois não! com todo o gosto! O asno responde;

Lá chegarás, que embora em passo tardo,

Hei de levar-te e não me importa aonde,

Nem qual o peso de tão nobre fardo.

Meus préstimos, se os tenho, amo emprestá-los,

O asco acrescenta, a rir, um forte zurro;

E apraz-me ver que às vezes cem cavalos

Bem podem precisar de um simples burro...

 

O URSO E OS CAÇADORES

(Fábula)

Era uma vez dois amigos,

Dois afoitos caçadores

Que afrontavam mil perigos,

Sem tremura nem temores.

Pelo mato certo dia

A tal ponto se internaram

Que, na floresta sombria,

Os dois perdidos ficaram.

Após um longo percurso,

Parando da mata em meio,

Viram chegar um grande urso,

Faminto, horrífico e feio.

João (chamava-se o primeiro

Dos caçadores) prudente,

Galga uma árvore e ligeiro

Foge ao perigo iminente.

Eis que a fera se aproxima;

Seu negro perfil avulta,

Enquanto João, lá de cima,

Entre a folhagem se oculta.

Antônio, o seu companheiro,

Ouvindo do urso o rugido,

No chão, trêmulo e ligeiro,

Deita-se a fio comprido.

Todo o fôlego contendo,

Resignado a morte espera.

Já se vê perto o vulto horrendo,

Já sente as garras da fera...

Chega-se esta, de mansinho,

A Antônio que desmaiara

E, a farejar com o focinho,

Cheira-o bem, foça-lhe a cara.

E, sem causar menor dano

Ao caçador, sem demora,

Julgando morto o magano,

Abandona-o e vai-se embora.

(Dizem com tons de cortesia

Sabidos em tais assuntos

Que o urso come viva a presa

Mas não devora defuntos.)

Entretanto o João, de cima,

O fim da aventura aguarda,

Tão poltrão que não se anima

A dispara a espingarda.

Ora, vendo longe a fera,

Antônio recobra o alento

E, numa prece sincera,

Ergue as mãos ao firmamento.

O João desce; e com descoco,

Inquire do companheiro:

— Que confidência inda há pouco

Te fazia o urso brejeiro?

E acrescenta, já sem medo:

— Pareceu-me bem que o bicho

Interessante segredo

Te dizia, num cochicho...

Torna Antônio, incontinenti:

— Quanto cheirar-me fingia,

Esta frase simplesmente

O urso, amável, me dizia:

“Quem, no instante do perigo,

Sem que a ele a pele exponha,

Abandona assim o amigo,

É covarde, é sem vergonha”.

 

A SEGUNDA VINDA DE CRISTO

Sobre as conferências proféticas do R. R. Júlio de Maria.

Encontro o padre Júlio e, humilde, insisto

Porque me ponha claramente ao par

De alguns detalhes da excursão do Cristo,

Que ele (o padre) não cansa de pregar.

Fala o profeta: — Ele virá num misto

De vingança e justiça! a terra e o mar

Tremerão ante o caso nunca visto

De um Jesus, em caráter militar!

— Mas, padre, então nesta segunda viagem

Será Cristo feroz, de ânimo hostil?

Não nos virá salvar da atra voragem?

— Virá; (e a explicação deu-me, sutil)

Mas há de ser um Salvador à imagem

Dos atuais “salvadores” do Brasil...

 

A CONQUISTA DA BAHIA

A propósito da viagem do Marechal residente a S. Salvador.

A terra que Pedr’Alvares primeiro

Viu, ao raiar de vinte e dois de abril

Ei-la, surge no píncaro do outeiro

Que se debuxa sob um céu de anil.

— Terra de Santa Cruz! grita o gajeiro.

E entre as aclamações e os gestos mil,

Ao mastro sobe o pavilhão guerreiro

Do grão senhor das terras do Brasil.

Para a sublime, belicosa empresta

Todos se aprestam já, fazendo jus

Aos galardões de glória e de nobreza.

E após a insana luta (ó peitos crus!)

Só restam do combate sobre... a mesa

Esqueletos de fiambres e perus!

 

VISITA DE FINADOS

(Diálogo fúnebre)

— Vossa Excelência aqui tão só...

                                  — De certo;

Vim trazer flores para os meus defuntos.

— Se lhe não desagrada, andemos juntos

Por este val de lágrimas deserto.

— Pois não.

            — Bem pouca gente aqui se enterra...

— Bem pouca; uns pobres mortos esquecidos,

Filhos sem pai, mulheres sem marido

Contém o seio desta negra terra.

Campo Santo de eterno esquecimento,

Onde dormem, talvez mais à vontade,

Quem se alou desta, sem deixar saudade,

Folhas secas varridas pelo vento.

— Pelo que vejo então, Vossa Excelência

Aqui veio por pena dos finados

Pelo resto do mundo abandonados,

Mortos sem choro, missas e indulgências?

— São meus amigos todos que aqui juntos

Jazem na eterna paz do cemitério,

Sem do cipreste ou do chorão funéreo

A sombra amiga; ei-los os meus defuntos:

Leia.

               — Aqui faz o BRIO.

                              — Um belo amigo;

Morreu de fome. Adiante...

                                    — Aqui repousa

Deveriam ficar num só jazigo.

Mas continue.

                     — Perpétua sepultura

Da INDEPENDÊNCIA.

                        — Conheceu?

                                    — De nome.

— Suponho que também morreu de fome,

Numa esquina da Rua da Amargura.

Repare agora aquela cova, ao fundo:

Ali, jaz a VERGONHA; era uma criança

Mas inda vivo tenho na lembrança

Seu gesto nobre, altivo e pudibundo.

— E esse jazigo, ao alto?       

                              — É o do CIVISMO;

Junto o CARÁTER mora; adiante um certo

PUDOR.

      — E a cova que lhe fica perto?

— Guarda os restos mortais do PATRIOTISMO.

— São todos pois, amigos seus, bem vejo...

— São todos meus amigos e parentes,

Os poucos que me restam vivem doentes,

De aqui virem parar não tarda o ensejo.

— Há nisto tudo um fundo de mistério

Que me traz arrepios à epiderme;

Vossa Excelência poderá dizer-me

O nome, ao menos, deste Cemitério?

— Pois não, meu caro, a fúnebre paragem

Que agora estamos percorrendo untos

É a morada feral dos meus defuntos,

O CEMITÉRIO DA POLITICAGEM.

— Ah, sim! mas antes que nos despeçamos,

Vossa Excelência dar-me o nome queira.

— Eu sou, amigo, a PÁTRIA BRASILEIRA

Viúva do NOBRE IDEAL QUE NÓS SONHAMOS.

 

NOTA DIPLOMÁTICA

Sobre o incidente “diplomático” Piza-Teffé.

Foi isto em casa da condessa Vera,

Dama de alta nobreza e porte altivo,

Por quem tive um bequin profundo e vivo,

Em Moscou, na passada primavera.

Ela era formosíssima! se o era!

Mas de um gênio irritável e impulsivo.

E um dia, não sei bem porque motivo,

Encrespou-se e ficou como uma fera.

Foi ao jantar; depois das mais violentas

Frases brutais, grosseiras e insensatas,

Gritou-me: — Eu sou mulher como trezentas!

Tornei-lhe então: — Sejamos diplomatas...

— Pois bem, serei! e arremessou-me às ventas

A travessa de beef com batatas!

 

RETRATAÇÃO

Lendo a pastoral do Sr. Teixeira Mendes, sobre o mesmo incidente.

Aquelas duras expressões grosseiras

Que ontem te disse, num momento de ira,

Hoje, uma a uma, aqui retiro inteiras,

Com tudo o mais que a elas se refira.

Esquece as “diplomáticas” maneiras

E o argot perdoa, de pessoal da lira;

Andei mal, muito mal, só disse asneiras,

E o que não foi asneira, foi mentira.

Em suma: aquelas frases nada exprimem;

Que eu delas me retrate, Amor, consente,

E em paz as nossas almas se aproximam.

Cabe a culpa do estúpido incidente

Ao feudal, metafísico regimen,

E à anarquia que reina no Ocidente.

 

REPISANDO...

Mas apenas aqui chegues engolirás a chicote torpes insultos.

De um Manual de Diplomacia

Puxa as mangas da camisa

E em passo de capoeiragem,

O Piza, abrindo a estalagem,

O protocolo a pés pisa.

O Teffé, de torna viagem

Dá-lhe resposta concisa

E os seus propósitos frisa

Sem mais retórica imagem.

Da roupa suja a lavagem

Pétreos frades ruboriza.

Qual no fim leva vantagem?

O Piza, ou o Teffé que o avisa

Que, se aqui nesta paragem

Piza, o Pisa leva pisa?

 

O NATAL DA REPÚBLICA

(Como o vê passar “um do Governo”)

Dona República, a excelsa dama,

Vinte e três anos felizes faz;

A mocidade seu peito inflama

E ela, risonha, se ergue da cama

Cantando um hino de “amor e paz”

Todos os sonhos da juventude

Mostra, radiante, na voz, no olhar;

Seus lábios rubros jorram saúde

Seus negros olhos têm a virtude

De pôr a gente de miolo no ar.

Ao porte austero de mulher feita

Junta a candura de um querubim

Quando ela passa, leve e direita,

Que olhares ternos o povo deita

À jovem filha de Benjamin!

Não há de certo no continente

Outra tão bela, nem tão gentil;

Vive cantando, rindo contente,

E, embora marche militarmente,

É, todos dizem, muito civil.

Em casa é vê-la de agulha e linha,

Cosendo blusas e paletós;

E nem, ao menos, vai, à tardinha,

Pôr-se à janela, como a vizinha

Dona Argentina, que tem coiós.

Moça bonita, discreta e fina,

Ela um namoro não tem sequer;

E a gente, ao vê-la, diz à surdina:

— Tem a sagesse de uma menina

Bem educada no Sacré Coeur.

Conta aos milhares os pretendentes

À posse egrégia de sua mão;

Mas são seus modos indiferentes

Blocos de gelo sobre as candentes

Rubras fogueiras de uma paixão.

Rodrigues Alves, Muller e Dantas

Salles, Seabra, Nilo e outro mais

Vivem, de joelhos às suas plantas,

A recitar-lhe cantatas tantas,

Tantas endechas e madrigais,

Que ela com chispas no olhar brejeiro,

Ao pretendente, seja qual for,

Diz: — vá saindo, seu lisonjeiro!

Se me pretende fale primeiro

A seu Pinheiro que é meu tutor.

Não há menina bonita e boa

Tão elegante, tão sage assim.

Quando ela passa, vibrante, ecoa

A voz do povo, voz que abençoa

A jovem filha de Benjamin.

 

O NATAL DA REPÚBLICA

(Como o vê passar “um da Oposição”)

Vinte e três anos, mas quem diria!

Dá-se-lhe ao menos quarenta e seis.

Esganiçada, medonha harpia,

Em longas noites de esbórnia e orgia

Ela a vergonha perdeu de vez.

Não há de certo mulher alguma

Tão pervertida como esta é.

Dizem que joga, se embriaga e fuma

E os seus esgaires são tais que, em suma,

Velha cocote parece até.

As faces pinta, tinge o cabelo

E há dias isto dizer ouvi:

— Nossa Senhora! que rosto! ao vê-lo

Lembram-me os quadros pintados pelo

Conceituado pintor Petit.

Não sei de tipa mais tagarela

E é nos derriços doida, feroz!

O dia e a noite passa à janela

E a vizinhança garante que ela

Em cada rua tem dez coiós!

É pobre; entanto luxa a tal jeito

Que incalculáveis dívidas tem;

Tais maluquices tem ela feito

E é tão leviana que a seu respeito

Não há no mundo quem diga bem.

Em casa vive constantemente

Às cabeçadas e aos trambolhões;

É feia, magra, pálida, doente

E anda atacada constantemente

Por intestinas revoluções...

Frequenta bailes carnavalescos

E no maxixe dá sota e az;

Tem gestos feios, modos grotescos

E nos seus passes funambulescos

Parece filha de Satanás.

Meteu-se agora com militares:

Cabos de alferes lhe fazem pé.

Fica maluca vendo alamares;

E até já a viram trocando olhares

De amor com simples praças de pret.

De dia a dia mais se acachapa

Numa crescente dissolução:

Praia do Russell, Marrecas, Lapa,

Regente e Núncio... percorre o mapa

Da zona suja da corrupção.

Causa-nos, vê-la, desgosto e tédio;

Já nem na querem nos hospitais!

Das avarias foi tal o assédio

Que hoje aos seus males só dá remédio

O “mil duzentos e doze”... ou mais.

 

A VOLTA DAS ANDORINHAS

A pouco e pouco vêm chegando ao milho

Dos vinte estados os representantes,

Que hão de fazer ouvir com grande brilho

Profusão de discursos retumbantes.

Filho dos campos ou das serras filho,

Do litoral ou dos sertões distantes,

Aqui chegando, pelo mesmo trilho,

Seguem das altas cavações brilhantes.

Uns cavam com talento e galhardia

A fama, a glória, um nome de espavento;

Outros limitam-se aos tais “cem” por dia.

Este de “arame” cava a farta mina

E há muitos outros que no Parlamento

Só conseguem cavar a própria ruína.

 

A DEFESA DA BORRACHA

A indústria humana, apoplética,

O douto crânio esborracha,

Por conseguir a borracha

      Sintética.

Mexe sais, ácidos vários

Remexe; coze, mistura

E mil composto procura

      Binários.

Entra da química orgânica

Na mais misteriosa essência:

— Fausto mergulha na ciência

      Satânica.

Leva ao crisol cera plástica;

Trata-o com ácidos e acha

Na retorta uma borracha

      Fantástica.

Entretanto os nossos sábios,

Vendo-a seguir tais caminhos,

Têm sorrisos escarninhos

      Nos lábios. 

Da tentativa ridícula

Zomba e ri-se a nossa ciência,

Cônscia de nossa opulência

      Agrícola.

— Mas há crise! o mal é crônico!

Diz o seringueiro honesto

E os bolsos mostra num gesto

      Irônico.

— Da crise elástica escape-se!

Responde o governo e avisa

Que a borracha valoriza

      Num ápice.

Suplica a Amazônia exânime,

Da seringa que lhe é vida

A defesa, em voz sentida,

      Unânime.

Mandai-a! os povos exigem-na!

E felizmente não cruza

Os braços a ciência infusa

      Indígena.

E a causa busca pré-histórica

Da crise, por que se a extinga:

Sobre a “seringa” seringa

      Retórica.

Da tal borracha sintética

Nada o governo receia;

E ei-lo a comissão nomeia,

      Eclética.

De bacharéis, matemáticos

E poetas... (o que se explica

Que estes em coisas de estica

      São práticos).

Exclama a gente amazônica:

Que tal defesa, deus queira,

Não cabe em borracheira

      Platônica...

E em financeira ginástica

Tomem medida oportuna

Que torne a nossa fortuna

      Elástica...

 

A PÁGINAS TANTAS

A ti, bravo leitor, que conseguiste

Salvo, chegar ao fim deste volume,

Trago-te os parabéns que é de costume

Dar-se ao que às grandes provocações resiste

Se ele acaso te deu sombra ou perfume

De alegre humor, quando estiveste triste,

Que eu, por isto, mais prêmios não conquiste

Que esse que num sorriso se resume.

Mas se, ao contrário, o achaste mau, perante

Apolo ou qualquer outro deus que adores,

Que me não feches, peço-te, o semblante.

Teu dinheiro e teu tempo não deplores:

Deves lembrar-te de que tens na estante

Muitos livros muitíssimo piores...