Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cantos modernos, de Farias Brito


Edição de Referência:

Cantos modernos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1889

AO SR. ISAÍAS BÓRIS

Como homenagem a um dos mais nobres caracteres que tem conhecido

O. D. C.

O Autor

ÍNDICE

A POESIA AINDA TEM RAZÃO DE SER?

CANTOS MODERNOS

PRIMEIRA PARTE - CANTOS DA LIBERDADE

OS DOIS VULTOS

HINO CEARENSE

LIBERDADE

A ONDA ABOLICIONISTA

AOS NEGREIROS DO SUL

A UM MINISTRO NEGREIRO

O DRAGÃO DO MAR

23 DE MARÇO

OS LIBERTADORES DO CEARÁ

A PRINCESA ISABEL

A JANGADA

SEGUNDA PARTE - CANTOS DIVERSOS

DUAS ESPERANÇAS MORTAS

FIGUEIRA LIMA

ANTÔNIO OLÍMPIO

A TARDE

MEU PRIMEIRO AMOR

ANTÔNIA E ALICE

DEVANEIOS

DULCÍSSIMA VISIO

REVELAÇÃO

CANTOS DE AMORES

ÚLTIMO CANTO DE UM SUICIDA

DIVAGAÇÕES

UNS BRAÇOS

UNS OLHOS

UNS CABELOS

A UM JOVEM POETA

TERCEIRA PARTE - CANTOS DA NATUREZA

O ESPÍRITO NOVO

A FORÇA

A VOZ DA CONSCIÊNCIA

A LIBERDADE

VISÃO DO FUTURO

CONTEMPLAÇÃO INTERIOR

 

A Poesia ainda tem razão de ser?

Quem tiver alguma ideia tios trabalhos extraordinários, que hão sido empreendidos e das descobertas fecundas, que hão sido realizadas nesta época excepcional, que, com razão, se pode chamar a época das indagações e das revoluções intelectuais, há de ter infalivelmente observado o seguinte:

1.º Que o espírito chegou a um estado tal em seu desenvolvimento que só mo aceita como incontestavelmente certo aquilo que foi submetido a uma prova segura, visível, material, deixando-se inteiramente de parte, como inaccessível ao entendimento a essência das cousas, o incondicionado, o absoluto;

2.º Que todas as descobertas da ciência moderna têm alguma aplicação mais ou menos direta sobre o melhoramento da vida, sobre o bem-estar da sociedade.

Em uma palavra: estuda-se unicamente aquilo sobre o que se tem provas; aceita-se como certo somente o que é confirmado pela experiência e pela observação rigorosa dos fatos; e só se dá importância às indagações que podem ter algum valor na constituição econômica ou intelectual das nações; que podem ter qualquer aplicação na vida prática das sociedades.

O resultado foi a sede inesgotável de crítica, que apareceu em todos os ramos da atividade mental. Tudo foi submetido a um exame rigoroso, intransigente; e por entre a destruição do que realmente devia ser destruído muita cousa foi sacrificada a par do que vai ficando em esquecimento.

Como tudo o mais, a poesia teve de ser submetida ao tribunal do pensamento moderno. E como já em outras eras tem acontecido, mais de um pensador entendeu poder lavrar-lhe uma sentença de morte.

Deste modo, publicando um folheto de versos, cumpre-me, antes de qualquer outra cousa, justificar a poesia, dando a sua razão de ser e explicando o papel que deve representar. É o que me esforçarei por fazer, reproduzindo aqui quase integralmente um artigo que já tive de publicar em outra parte.

Devo, porém, antes de tudo, observar uma cousa: apresentando uma fórmula sobre a poesia, como entendo que deve ser compreendida, ninguém suponha que tenho a vaidade de pensar que nos versos, que se seguem, acredito haver efetuado a realização desta fórmula. Em tal caso, poder-se-ia dar a circunstância fatal de afirmar-se que eu destruí em verso aquilo que tentei realizar em prosa.

Longe disso. Publicando os versos, aproveito a ocasião para desenvolver o meu ponto de vista, nada mais. E quando escrevo, fazendo a defesa da poesia, escrevo como penso; o quando faço versos, escrevo como sinto. Se o meu pensamento e o meu sentimento coincidem, não sei. O que sei é que, fazendo versos, não obedeço a regras. Procuro traduzir com fidelidade as impressões que experimento, em consequência dos fatos, que se passam em torno de mim, quer da natureza, quer da sociedade; e em nada me preocupo com o fim que possam ter os meus versos, do mesmo modo que nada sofrerei, se a critica os deixar inteiramente de lado. Escrevo mais por necessidade do que para chegar a qualquer resultado.

Isto posto, começarei resumindo pela forma seguinte os princípios mais importantes daqueles que sustentam a tese — a poesia está morta.

A poesia é a linguagem das sociedades nascentes, a aurora da vida sentimental e intelectual da humanidade. Revestida de um certo caráter religioso, é, por assim dizer, a expressão ingênua dos movimentos emocionais do homem nas sociedades que ainda não chegaram a um certo grau de desenvolvimento, a manifestação espontânea das primeiras agitações que experimentam os povos incultos.

À proporção, porém, que as sociedades aumentam, à medida que o espírito científico se desenvolve no homem, a sua influência vai pouco a pouco tornando-se menos poderosa e real, até que com o completo desenvolvimento das faculdades intelectivas o seu desaparecimento será necessariamente total.

A poesia é um fato, senão inteiramente passado, pelo menos um fato que vai passando e há de passar. Houve um tempo em que o homem, na falta de outros recursos, teve necessidade de manifestar por meio dela a sua atividade mental. Condições mui especiais da sociedade, imperfeições intelectuais, predomínio do sentimento sobre a inteligência, necessidade de exercício mental etc., etc., determinaram seu aparecimento. Isto, porém, já teve o seu tempo. Agora entramos em uma nova ordem de cousas. O espírito começa a livrar-se das peias que limitavam seu livre desenvolvimento: põe-se em face da natureza e a explora como soberano. Está findo o longo período de inconsciência a que esteve sujeita a humanidade e nestas condições a poesia forçosamente terá de reduzir-se a isto — um fenômeno histórico que já não tem mais razão de reproduzir-se.

Tratemos de submeter a matéria a um exame geral.

Estudando os diversos elementos que concorrem para a determinação dos atos humanos e observando a marcha da humanidade através da história, vê-se claramente que dois princípios fundamentais e subjetivos, combinados com uma multiplicidade infinita de causas objetivas, presidem o desenvolvimento do homem, desde o obscuro habitante das cavernas até os brilhantes filhos da civilização hodierna: o interesse e a paixão. Esses dois princípios combinados dão em resultado a necessidade, e tal é a grande força motora a que são devidas todas as obras, todas as grandes conquistas da atividade humana.

As necessidades do homem podem ser reduzidas a duas ordens: necessidades físicas e necessidades intelectuais (Lefebvre). As necessidades físicas dão lugar aos esforços tendentes à apropriação do universo e que tem por fim o desenvolvimento físico do indivíduo. As necessidades intelectuais dão lugar aos esforços tendentes ao conhecimento das cousas, ao aperfeiçoamento indefinido da inteligência, a estas grandes manifestações do pensamento: a ciência, a religião, a filosofia.

Tal é com efeito o grande campo em que se exerce a atividade humana, e a história inteira não tem outro fim senão registrar as conquistas do espírito, já relativas à satisfação das necessidades físicas, já relativas à satisfação das necessidades intelectuais. Ao lado, porém, das necessidades físicas e intelectuais coloca-se uma outra ordem de necessidades — as necessidades estéticas.

O homem não precisa somente de conhecer e dominar as forças da natureza: ele admira e precisa de traduzir a sua admiração; sente e precisa de manifestar o seu sentimento. Em virtude de suas necessidades intelectuais observa atentamente a marcha das cousas e desta observação eleva-se ao conhecimento das leis, que a regem; põe-se depois, em virtude de suas necessidades físicas, em luta com as forças da natureza, e dominando-as para o que se serve de seus próprios conhecimentos, transforma-as em utilidades, assegurando assim a conservação e o desenvolvimento da vida.

Ha, porém, além desta esfera em que gira a atividade do homem, uma outra ordem de fatos ainda mais elevada. Além dos esforços do espírito tendentes à apropriação e ao conhecimento do universo acontece que no meio das dificuldades enormes que encontra no exercício de suas faculdades; na infinita complexidade dos fatos sociais, no meio das lutas intermináveis da sociedade; cercado de dúvidas, rodeado de incertezas; na grandeza, nos gozos, bem como na miséria e no sofrimento; e sobretudo em face do espetáculo majestoso da natureza, o homem sente agitar-se dentro de si um elemento desconhecido, que o transporta: entusiasma-se, canta, suspira, enlouquece, chora.

A história é uma série de lutas intelectuais e de lutas físicas ou econômicas, mas é também o ao mesmo tempo uma serie de lutas sentimentais; e a lágrima, as emoções, o entusiasmo, o amor, não deixam de exercer uma grande influência sobre a vida e sobre os destinos do homem.

Werther, suicidando-se por não lhe ter sido possível o amor de Carlota, não foi o produto híbrido de uma imaginação doentia, porém, um símbolo vivo da humanidade. Dante, afogando-se em um oceano de luz, depois de haver passado pelos sombrios horrores do inferno; afogando assim a imaginação e inundando as profundezas da alma com a preciosa perspectiva da felicidade celeste; tudo isto por uma só ideia, que o inflamava, a ideia de Beatriz confundindo-se com a ideia mesma da humanidade, — não foi um simples exercício mental, um simples esforço de metrificação, porém, os mais elevados paroxismos, os últimos delírios da paixão, a profundeza, o transcendentalismo do amor.

Quem foi que no meio das grandes agitações sociais, entre a alegria e a tristeza, o prazer o a dor, o sorriso e a lágrima, em face do movimento incessante das grandes lutas da humanidade alguma vez não sentiu-se poeta? Há momentos em que um só homem concentra a totalidade das emoções, que constituem a vida da humanidade: é quando uma grande ideia revoluciona o seu ser. Homero, Dante, Virgílio, Goethe, Hugo e todos os grandes poetas devem ter tido destes momentos sublimes. A atividade do organismo faz explosão, acumulando-se toda em um só ponto, e a natureza inteira concentra-se na alma. Faz-se então uma fusão maravilhosa: o espírito se estende para a natureza e a natureza se estende para o espírito; o movimento interminável do cosmos reage sobre a consciência, e a consciência o reflete. O resultado é a filosofia, a ciência, a religião, a poesia. E daí esta consequência: a natureza é um poema eterno.

Aqueles, que consideram a poesia como uma falsa aplicação da atividade mental, em prejuízo dos esforços reais e verdadeiramente fecundos do espírito, poderão, falseando o espírito destas considerações, formular uma objecção poderosa.

De certo, há aí um certo quê de extra-utilitário, que não poderá agradar àqueles a quem o hábito das discussões positivas e a exageração pelo sistema materialista tem feito sectários da dogmática do egoísmo.

Sabe-se que é justamente este o característico predominante do pensamento moderno: nota-se na generalidade dos pensadores contemporâneos uma tendência mui pronunciada para o aniquilamento de todas as manifestações do espírito que não tiverem por fim a satisfação das necessidades físicas ou puramente intelectuais, isto é, que não tiverem por fim o conhecimento ou a economia.

Que temos nós com a magnitude do oceano, com a beleza dos campos, a suavidade das fontes, a delicadeza das flores, em uma palavra: que temos nós com a harmonia e os esplendores da natureza?

A vida é um conjunto de necessidades: todos os nossos esforços devem consistir em trabalhar para satisfazê-las, e os meios de trabalho reduzem-se a dois: a ciência a indústria. Querer alguma cousa mais além disto é deixar o terreno sólido da realidade e perder-se no mundo da fantasmagoria.

A poesia, portanto, e do mesmo modo todas as belas artes são, senão uma divagação fora da natureza, pelo menos um produto mental sem aplicação útil no mecanismo da sociedade. São para a indústria, ou antes para a arte no sentido restrito da palavra (arte útil, manufatureira), o que é a teoria para a ciência, uma aplicação desnecessária da energia, um esforço no vácuo.

Por mais que pareça exagerada esta conclusão é certo que está no espírito dos princípios professados por muitos autores que entretanto a cada momento se contradizem fazendo a apoteose da poesia e da literatura. Spencer chegou a ponto de confessar que tudo quanto é estético tem por caráter ser inútil. E Letourneau, citando esta passagem, conquanto reconheça que nunca sentença mais rigorosa foi lavrada contra as belas artes, todavia não deixa de sustentar que a teoria é em grande parte verdadeira.

O que é verdade é que em uma concepção rigorosamente utilitária da sociedade, a poesia, como todas as belas artes, não pôde ter uma explicação verdadeiramente racional das funções que exerce. Desde que a utilidade é elevada à categoria de princípio último fica perfeitamente e definitivamente estabelecida a dogmática do egoísmo. O egoísmo torna-se então o princípio diretor e regulador da evolução social. Como pode, pois, ser salva a poesia? Ela não aumenta o conjunto dos conhecimentos e nem concorre para a submissão das forças da natureza. Para que serve, pois? Para ornamentação do espírito? A utilidade repele essa ornamentação luminosa, porém infecunda. Para disciplina? A verdadeira disciplina intelectual é a ciência. Se são, pois, unicamente estas as considerações que se pode fazer em favor da poesia, pode-se desde logo estabelecer que ela não escapará incólume ao terrível — quem vem lá — hodierno da ciência e da crítica.

Aprofundemos a questão.

Letourneau, em sua obra Fisiologia das paixões, a propósito de paixões sensitivas, estabelece o seguinte: “Nas suas formas inferiores as produções artísticas não têm evidentemente por fim outra cousa, a não ser procurar para o homem uma impressão agradável, das mais simples. Então a harmonia dos sons, das cores ou das linhas, é tudo em uma obra d’arte, e esta obra tem justamente o mesmo grau de utilidade que um bolo bem feito.”

Acrescenta, porém, em seguida o mesmo autor: “Se as artes não tivessem de passar desta forma inferior, sua decadência e sua desaparição seriam quase fatais, pois resultariam da marcha progressiva da humanidade.”

Daqui já podemos nos elevar à verdadeira compreensão da questão; as artes não morrem, transformam-se.

Comecemos, porém, de mais longe.

O homem, colocado em face da natureza, além da necessidade de alimentação, que inevitavelmente se lhe há de manifestar, em consequência das suas funções nutritivas por intermédio da fome, sentirá também uma outra necessidade, menos visível, porém, mais elevada — a necessidade de saber, resultante das suas funções intelectuais.

Pode-se admitir duas vidas distintas na existência do homem: a vida do corpo que é a sua face externa e a vida do espírito que é a sua face interna ou subjetiva. Ambas são sucessivamente renovadas e reconstruídas: tal é o resultado fatal das leis, que regem o organismo.

A reconstrução do corpo se opera por meio da nutrição; a do espírito por meio do conhecimento.

O trabalho, que garante o desenvolvimento da vida do corpo, e o estudo, que assegura o desenvolvimento da vida do espírito — tais são as condições de todo o progresso e o resultado imediato a que dão nascimento o trabalho e o estudo são a ciência e a riqueza. Acontece, porém, o seguinte: ao passo que a riqueza promove o desenvolvimento da vida do corpo que é passageira, a ciência promove o desenvolvimento da vida intelectual que é eterna.

É no exame das condições gerais do conhecimento que havemos de achar o segredo da poesia.

As formas fundamentais do conhecimento são a religião e a ciência: uma, filha do entendimento apoiado sobre a imaginação; a outra, filha do entendimento apoiado sobre a experiência.

Adquire-se o conhecimento mediante esforços contínuos. A humanidade encontra dificuldades enormes em sua marcha ascendente e só através de mil tentativas inúteis vai pouco a pouco aumentando o tesouro de seus conhecimentos; e ainda assim a verdade, que lhe serve de guia, acha-se ordinariamente cercada de uma infinidade de erros. Daí as lutas constantes de que está cheia a história da humanidade, que, pelo menos em relação ao movimento intelectual propriamente dito, não é mais do que a história das lutas constantes da verdade contra a superstição e o erro.

O conhecimento é a representação intelectual da marcha das cousas, sendo verdadeiro ou falso conforme o grau de força, que pode exercer sobre o espírito. Tal é a teoria de Leon Dumon, quando define a verdade — a intensidade dos fatos de consciência. Sucede, porém, que quer em uma, quer em outra de suas formas fundamentais, o conhecimento só pode chegar até um certo limite, além do qual começa a região do incognoscível.

É a grande questão dos fenômenos e da cousa em si, que tornou-se o distintivo essencial das novas ideias desde a revolução produzida por Kant no domínio do pensamento.

Lange identifica com os limites do conhecimento em geral os limites adoptados por Du Bois Reymond para o conhecimento da natureza. Esses limites são dois: a explicação última da mecânica dos átomos, e a explicação última da metafísica da consciência. Um diz respeito à face interna da existência, o outro à sua face externa ou objetiva. O que, porém, é incontestável é que até aí o espírito pode obter algum resultado no sentido do conhecimento; daí por diante toda a tentativa é inútil.

Isto quer dizer que o pensamento só tem por objeto o mundo dos fenômenos, sem poder jamais elevar-se à essência das cousas, de onde o antagonismo profundo, que há entre a ciência e a religião, ou antes entre a experiência e a imaginação.

O conhecimento do mundo dos fenômenos é o que se chama ordinariamente o conhecimento da realidade. Daí vem que o realismo se confunde com a concepção materialista do mundo: é que o materialismo identifica os fenômenos e a — cousa em si.

O mundo da realidade ou antes o mundo dos fenômenos está sujeito a leis imutáveis e segue uma marcha regular, de onde se segue que o seu conhecimento tem uma base segura e uniforme. As falsas concepções metafísicas, que pretendem elevar-se à essência das cousas, constituem um grande embaraço ao livre desenvolvimento do espírito, que, só pouco a pouco, vai destruindo as dificuldades por elas introduzidas no domínio do pensamento; mas, por fim prevalece sempre o conhecimento da realidade.

“O fim geral do homem e da sociedade, diz Lastarria, não pode ser outro senão a vida em toda a sua intensidade no espaço e no tempo; em outros termos, o desenvolvimento integral e completo de todas as faculdades humanas para conservar e estender a vida, dominando o mundo exterior conforme a ordem geral da criação e a natureza de cada cousa em particular.”

O único meio, que há para chegar-se a este fim, é o conhecimento verdadeiro da realidade. Só o conhecimento da realidade pode constituir a verdadeira ciência, e tal é a condição necessária da vida e da sociabilidade. É certo que o pensamento entregue à imaginação procura romper este círculo de ferro imposto pela natureza das cousas, mas perdendo-se em tal caso nas brumas confusas do subjetivismo, nada resulta daí eficazmente produtivo e que possa servir de garantia para o futuro da vida.

E é justamente para que se realize a completa eliminação de tudo o que é subjetivo que a lógica impõe-nos o método, que nos leva à ciência da natureza.

Como se deve, porém, nestas condições compreender a influência das ideias? A que ficam assim reduzidas a poesia e as belas artes, estas filhas mimosas da imaginação e do sentimento que Schopenhauer, apesar de todo o seu pessimismo, não vacilou em considerar como o único bem capaz de por alguns momentos aliviar as misérias do mundo?

Coloquemo-nos em face da natureza e apreciemos com imparcialidade o espetáculo da existência: duas são as maneiras de compreender a humanidade e o mundo: o otimismo e o pessimismo. O otimismo é a teoria que acredita no predomínio do bem; o pessimismo, a teoria que estabelece o predomínio do mal.

Qual destas duas teorias deve ser considerada como a expressão da verdade? Na luta pela vida, no jogo constante e indefinido das paixões e do interesse qual dos dois se acha colocado mais alto e toma a direção dos negócios do mundo: o gênio do bem ou o gênio do mal?

Observando-se friamente o quadro da existência, as mil dificuldades da vida, a luta constante dos homens uns contra os outros, a miséria e o sofrimento de todos, impossível é deixar de reconhecer que a natureza é quase sempre cega e brutal e em toda a parte extremamente cruel. Neste caso não se pode deixar de ser pessimista. Mas para que seja possível o pessimismo é necessário que haja a concepção ideal de um mundo melhor com o qual possa ser comparada a realidade. Resulta daí que à observação da realidade que dá em resultado a concepção pessimista, opõe-se a imagem ideal de um mundo mais perfeito como uma consolação para aqueles que sofrem e ao mesmo tempo como uma terrível condenação para os que fazem sofrer. Desde que, porém, o pessimismo é o resultado inevitável da observação da realidade, segue-se necessariamente a destruição do otimismo.

“Esta destruição, porém, diz Lange, só atinge o dogma, nunca o ideal. Ela não pode opor-se ao fato de que nosso espírito é criado para produzir eternamente de novo em si mesmo uma concepção harmoniosa do universo, o fato de que ele aqui, como por toda a parte, coloca ao lado e acima do real o ideal, e se restabelece das lutas e das necessidades da vida, elevando-se pelo pensamento até o mundo das perfeições.”

Qual é, porém, o meio de que dispõe o espírito para que se possa elevar à concepção do ideal? A ciência, não; porque a ciência tem por objeto a realidade: esta missão pertence ao domínio da poesia e da religião. Daí a distinção estabelecida por Lange entre as funções inferiores dos sentidos e do entendimento e o voo sublime do espírito nas livres criações da arte.

Fica, pois, assim perfeitamente determinado o papel da poesia.

O homem tem necessidade de completar o quadro terrivelmente esmagador da realidade pela concepção harmoniosa de um mundo ideal. A realidade o aterra: é preciso entrever a possibilidade de um mundo melhor. Tal é a missão da poesia.

Pensando desta maneira julgamos desnecessário observar que estamos francamente em oposição a esta chamada poesia realista ou científica, que alguns dos nossos críticos tem procurado introduzir entre nós como a verdadeira forma da poesia moderna.

Antes de tudo deve-se notar que ela ainda não recebeu uma acentuação definitiva, nem conseguiu em nenhum dos seus representantes, desenvolver uma ideia capaz de inflamar a alma do homem moderno. Depois acontece que a ciência não faz poesia e o quadro que nos apresenta da vida, nada tem de poético. Daí mesmo é que vem a necessidade da poesia que serve em tal caso para completá-la.

É certo que toda a poesia, digna do merecer esse nome deve ser científica; isto, porém, no sentido de que não pode deixar de sofrer a influência do estado intelectual da época em que é produzida.

Neste caso a expressão poesia cientifica é insuficiente para caracterizar a poesia nova, porque se a poesia de hoje está em harmonia com os conhecimentos modernos, a poesia da antiguidade estava em harmonia com os conhecimentos antigos e assim tanto uma como a outra, é científica.

Verdade é que a expressão nada adianta e nenhuma influência pode exercer sobre a substância da cousa que representa; mas aqui, além de que a cousa é falsa mesmo em sua substância, acresce que a expressão envolve uma contradição manifesta.

A expressão poesia científica é, pois, injustificável a menos que se queira fazer da poesia unicamente um meio de vulgarizar a ciência, o que equivale a confirmar a sua sentença de morte, porque então ela ficaria inteiramente afastada da sua missão que é a criação do ideal.

Podemos agora fazer uma exposição geral e sintética do nosso modo de compreender a questão.

“Tudo o que é belo é poesia”, diz Lange.

Tal é a ideia que vem completar a nossa concepção sobre a natureza da poesia.

Lange estabeleceu o seguinte: “O universo tal como nós o compreendemos em uma concepção puramente conforme à ciência da natureza, não nos pode inflamar mais do que uma Ilíada que se soletrasse. Se ao contrário tomamos o todo como unidade, fazemos pelo ato da síntese entrar nosso próprio ser no objeto, do mesmo modo que introduzimos a harmonia em uma paisagem que contemplamos, por mais numerosas que sejam as discordâncias que se possam ocultar nos detalhes. Toda a vista de conjunto está submetida a princípios estéticos e cada passo que leva para o todo é um passo que leva para o Ideal.”

Ora, o resultado desta operação que leva para o todo é justamente o que constitui a filosofia. O fim, porém, a que se propõe praticamente a filosofia é um outro. Sabe-se que a filosofia é a representação intelectual do universo, o resultado de uma síntese universal no domínio do conhecimento. É somente dedicando-se ao exame das altas questões que envolvem a totalidade das cousas e estudando os mistérios profundos da nossa organização que o homem poderá elevar-se à compreensão do nosso destino moral, estabelecendo preceitos e regras sobre o direito e o dever.

Tal é propriamente a missão da filosofia.

Acontece, porém, que em face do espetáculo doloroso da vida, vendo por toda a parte o mesmo quadro invariável da luta e do sofrimento, em todos os seres da natureza, o homem em virtude de tendências que têm a mesma origem nas profundezas do ser, é levado a ocultar na harmonia do todo as imperfeições parciais, elevando-se assim à compreensão de uma regeneração e confundindo em um só fim os destinos da humanidade e do mundo, e em uma só ideia o bem e o belo.

Tal é o resultado do espírito poético do homem, e tal é o domínio da poesia.

Quanto à verdade, fica reservada para a ciência.

Em uma palavra: o fim da ciência é a verdade, o fim da filosofia é o bem, o fim da poesia é o belo. E é de uma fusão admirável destas três grandes manifestações do espírito que há de nascer o princípio da regeneração do futuro. [1]

A poesia é, pois, uma aspiração para o melhoramento, um esforço do espírito para elevar-se do círculo estreito e prosaico da realidade à concepção harmoniosa do ideal.

Também os antigos era geral representam o poeta como um profeta revoltado contra as misérias da vida e perdido na contemplação do insondável em busca de uma verdade, que não é deste mundo. Daí a confusão geral que se nota entre a religião e a poesia nas idades primitivas. “A Bíblia é cheia de poesia, Homero é cheio de religião” disse-o M. de Staël. É que a Bíblia e os poemas de Homero nasceram das mesmas necessidades do espírito. Hoje o ideal deve revestir novas formas. Os deuses morreram e o que caracteriza a poesia moderna é justamente a ausência do sobrenatural.

Não morreu, porém, o ideal e nem desapareceram as necessidades do espírito; e a poesia terá do sair da civilização contemporânea debaixo de uma nova forma e cheia de um vigor capaz de quebrar os laços que ligam o espírito à antiguidade, elevando-o à contemplação do um novo ideal.

“A poesia, diz Lange, no sentido elevado e extenso em que é preciso admiti-la, não pode ser considerada como um jogo, como um capricho engenhoso, tendo por fim distrair por meras invenções; ela é, ao contrário, um fruto necessário do espírito, um fruto saído das entranhas mesmas da espécie, a fonte de tudo que é sagrado e sublimo; é um contrapeso eficiente ao pessimismo, que nasce de uma estada exclusiva na realidade.”

A poesia é, pois, destinada a exercer uma das mais altas funções do espírito. É “como uma moral estética, prelúdio da moral propriamente dita”; é “a verdadeira interpretação da vida”, segundo pensava Schopenhauer que adota em relação ao artista este pensamento dos vedas: Hoe omnes creatura in totum ergo sum et praeter me aliud ens non est; embora levado pelos princípios de sua moral pessimista coloque o ponto culminante da expressão poética na tragédia — “esse intérprete fiel da dor humana.”

Verdade é que o espetáculo da vida é o espetáculo da miséria e da dor, e nada suspende esse longo gemido, de que nos fala Quinet, e que é nada mais, nada menos que a repercussão das queixas profundas da humanidade através da história. Todavia o homem tem dentro de si mesmo os elementos de sua regeneração, e há um meio eficaz para elevar-nos acima da dor: é a contemplarão do ideal. É certo que a vida é uma série de males, e aquele, que, tenta penetrar os segredos da arte, encontra sempre nos rigores e nas decepções da realidade uma causa constante de melancolia incurável. Tal é o pensamento de Sully-Prudhomme, embora atribua esta causa ao grande mestre que o artista tem dentro de si e que não pode igualar. Resta, porém, o consolo de pode-se obter uma compensação eficaz contra as misérias do mundo, e então não se pode deixar de adotar esta ideia de Lange: “O olhar do amor poetiza, o ardor do coração poetiza, e se se pudesse fazer desaparecer toda essa poesia, é permitido perguntar se a vida ainda encerraria alguma cousa que a tornasse digna de ser vivida.”

 

CANTOS MODERNOS

L’artiste, par la satisfaction que son oeuvre procure simultanément à toutes ses facultés, semble donc marqué pour être le plus heureux des hommes. ll le serait, en effet, si sa sensibilité même singulièrement aiguisée, ne lui rendait toutes les blessures plus vives dans la bataille de la vie. Dès sa première jeunesse, il lui fait lutter presque toujours pour faire prévaloir sa vocation, et s’il est pauvre, il sent à tout heure les exigences à la fois les moins nobles et les plus impérieuses entraver l’essor de ses aspirations supérieures ; même quand il a conquis l’indépendance et le succès, il est d’autant moins satisfait de ses oeuvres que son goût est devenu et son idéal plus élevé.

Sully Prudhomme — L’expression dans les beaux arts.

 

PRIMEIRA PARTE

CANTOS DA LIBERDADE

I

OS DOIS VULTOS

I

Medeia um vasto mar; dois vultos gigantescos

Contemplam-se de longe em frente à imensidade.

Um deles é a Europa, o outro o Novo-Mundo,

Que os dois extremos são da grande humanidade.

E diz a velha Europa: “Ouvi, sou o passado.”

E diz o Novo-Mundo “E eu sou o futuro.”

Mostrando a Europa então que fica extasiada,

O vasto corpo seu que o bronze inda mais duro.

A Europa é a velha mãe, a América é a filha;

E são a mesma luta, a mesma potestade;

Uma é o grande ser que vem dos tempos idos,

A outra, o grande ser que vai p’ra a eternidade.

E formam, pois, assim a intérmina cadeia

Dos homens no universo unidos a lutar.

Uma traz a ciência e diz: — “Venho de longe.”

A outra fita o mundo e diz: — “Vou caminhar.”

Marchemos, pois, também, é filhos do Brasil,

C’os filhos imortais da terra americana;

Ergamo-nos também, saudemos o futuro,

Façamos a grandeza, a luz da espécie humana,

Lutemos com fervor, sigamos o caminho

Da grande e poderosa, intrépida União;

Na luta é que se cava a estrada do progresso.

A luta é que é o sol da humana geração.

II

Mas, é desgraça tremenda,

Ó dor, não há dor assim:

Em nossa terra se vive

Numa indolência sem fim.

A noite se espalha imensa

Por sobre o espaço tão densa

Que esmaga a mente, o sentir;

O povo, pois, adormece

Como já morto... Parece

A noite do progredir!

Uma parte se alimenta

Da carne de seus irmãos.

É, pois, um povo antropófago,

Mancha de sangue suas mãos.

Prazeres, bailes, orgias,

Encontram uns, as harpias

A parte injusta, cruel.

Os outros (fatalidade!)

Sem crença, sem liberdade,

Lhes coube em sorte só fel.

Vivemos, pois, num banquete

De negras feras insanas.

As carnes que ali se come,

Tremei, são carnes humanas.

E prosseguimos, comemos;

Remorso do que fazemos?...

Eis uma palavra vã!

E, pois, bradamos: “Avante

Co’a nossa festa!” E arrogante

Preside a festa Satã.

Sim, que um povo de negreiros

Não tem vida, não tem luz.

Somente faz negros crimes,

Somente horrores produz.

Seus feitos são revestidos

Da longa dor, dos gemidos

Da miséria escravidão.

Sua fronte é negra, descobre,

Por mais que oculta, que encobre,

Os gérmens da podridão.

A vida é triste, apresenta

Terríveis cenas de dor.

O homem vive perdido

Numa noite de terror.

Mas quando é livro, respira

No livre espaço e se inspira

Nas nuvens para cantar.

E, erguendo os olhos aos céus,

Da noite desfaz os véus

E tenta subir, voar.

Se, porém, à força bruta

Se apoderando de nós,

Nos reduz à escravidão

O despotismo feroz;

E ante nós se levanta

Um monstro que nos quebranta

E nos afunda no mal,

Dizendo o forte: “Obedece,

Curva a cabeça, padece

Que eu bote o jugo, animal”.

Então a alma estremece,

Revolta-se o coração;

E a consciência levanta

Um grito de maldição:

— A vida é um sonho maldito.

Viver é achar-se proscrito,

Perdido em noite sombria.

Somente impera a desgraça

E o mundo obedece em massa

Ao braço da tirania!

III

Oh dor grande e profunda, oh dor inconsolável!...

Existe no Brasil ainda a escravidão!...

O povo americano, o povo do futuro,

Nos deve repelir, não somos seu irmão,

Não sabemos lutar, nos une em nossa vida

O laço ímpio e feroz da fria crueldade.

Calcamos o direito, é negra a nossa história,

Nosso passado é vil, não temos liberdade.

O! filhos do Brasil, é fundo o nosso mal.

Oh filhos do Brasil, lutemos com fervor!

O crime nos domina; ergamos, pois, com força

Em frente ao crime horrendo um grito de furor.

O nosso povo morre em lúgubre prisão...

Lutemos! É preciso ao povo liberdade.

Aqueles que a prisão conservam... Miseráveis,

Malditos... Eles são o horror da humanidade!

Alegra-te, Brasil! Co’a luz de nova aurora

Começa a desmanchar-se a noite do teu ser.

Teus filhos contra o erro enfim se revoltando

E unânimes dizendo: — “O erro vai morrer”

Levantam-se com fé; sem ferro e sem batalhas

Preparam-se a dar fim ao torpe cativeiro.

E, erguendo a fronte augusta, aplaude a velha Europa

A insigne decisão do povo brasileiro.

 

II

HINO CEARENSE

Ouvis? Um grito horrível se levanta

       Aqui defronte ao mar.

É o vil escravocrata: em desespero

       Não cessa de gritar:

— “Eu quero sangue, morte e despotismo,

       Reação e terror!

Não posso me conter; sinto no peito

       Indômito rancor. — ”

E quer tudo ferir; declama e grita

       Furioso, brutal.

Parece um louco; e cego, insaciável

       Só vê, só quer o mal.

Mas surge um novo sol; ouvem-se cantos

       De crença, paz e amor.

E diz o escravo: “Achei quem neste mundo

Conheça a minha dor.”

Avante! Completemos nossa obra

Ergamo-la ao porvir.

Lutar, sempre lutar! Deixemos glória

Aos povos que hão de vir.

Que o erro do passado, o crime negro,

Não passe além de nós.

Que a terra de Alencar não mais se humilhe

Em frente dos heróis.

 

III

LIBERDADE

Quando apontando, sobre o mundo espalhas,

Ó liberdade, divinais fulgores,

Dobram-se os astros a bradar — vitória —

Voltam-se as nuvens derramando flores;

Um geral grito se levanta imenso,

Tudo desperta desde o norte ao sul;

De luz se eleva uma torrente infinda,

De sobre a terra ao firmamento azul.

E vós, guerreiros da sublime ideia,

Homens, lutando espedaçais cadeias

Que a mente esmagam, que o terror derramam,

Que o sangue fazem congelar nas veias.

Bravos guerreiros, perseguis algozes

Que os fracos enchem de martírio e dor;

Sábios sublimes, levantando o braço,

Recua a morte, derramais amor.

Já não soluça um desgraçado escravo,

Sem ter um braço que o defenda, não!

Já dos grilhões espedaçando os laços,

Deita por terra a sua cruel prisão.

E se levanta: no fervor das turbas,

Grato, soluça amargurado pranto;

Livre, sacode a maldição dos povos;

Homem, já solta à liberdade um canto.

E há pouco, incêndio abrasador, tremendo,

Oh Ceará, te lacerava o peito.

Eras de fogo que subia às nuvens,

Queimando os bosques, desgraçado leito.

Mas já na frente dos heróis gigantes

Marcham teus filhos co’o fervor dos bravos,

Dizendo ao mundo: — “Nestas livres plagas

Já não encontra o viajante escravos! — ”

Filhos do sonho, legião de fortes,

Podeis o brado levantar: — Vitória!

Não pode um povo, que liberta escravos,

No esquecimento adormecer sem glória.

Tudo se move, quando aponta ao longe

Da liberdade o divinal clarão.

Feliz quem luta e o despotismo atroz

Da crueldade faz cair no chão.

Eia, Brasil! Quando um guerreiro avança

De entre a falange, que adormece além,

Rompendo imenso as inimigas turbas,

Corre a falange a guerrear também.

Avante! avante! e no concerto infindo

Que eterno eleva a natureza aos céus,

Por entre as nuvens há de erguer-se em breve,

Um hino livre dos escravos teus.

 

IV

A ONDA ABOLICIONISTA

Estava dividida assim a humanidade:

De um lado a escravidão, do outro a liberdade.

Aqui um pobre escravo em lúgubres cadeias,

Sem amigo, sem luz, sem pátria, sem ideias;

Ali o soberano, o rígido senhor

Arrogante, cruel, indiferente à dor

Das vis bestas humanas!

Sujeitas ao furor das ímprobas, tiranas

Ordens que dá cruéis; aqui festa ruidosa,

O gozo, a luz, o amor, a vida cor de rosa;

Ali o desespero, uma senzala imunda,

O sofrimento atroz, a dor grande e profunda.

Um dia revoltou-se o sentimento humano

Contra o injusto senhor, contra o senhor tirano.

“A escravidão é um crime, exclama a consciência,

Contra o qual se revolta a nossa humana essência...

Fez-se então um silêncio aterrador, profundo.

Depois como que um deus fez abalar-se o mundo

E a loura liberdade, a deusa poderosa,

Logo tudo envolveu na onda luminosa

Do mar — revolução.

Disse o gênio da história: — “É ímpia a divisão

Da humanidade! — “E a luta, a luta soberana

Da deusa terminou pela igualdade humana.

Vinha o exemplo do longe: alguns fortes guerreiros

Levantaram com força em fronte dos negreiros

O grito do revolta. E o número cresceu;

A onda levantou-se, inchou, estremeceu

E espalhou-se no mar, no campo, nas cidades.

E quando o povo quer, não vê dificuldades.

Corriam loucamente os santos voluntários

Da batalha do amor e revolucionários

Avançavam bradando: — “À escravidão é um roubo.

Façamos reação de morte contra o lobo,

Que injusto escurecendo a lei da humanidade,

Só conhece e proclama o ódio e a crueldade.

Brademos ao negreiro: — Afasta-te, bandido,

Que queremos passar! — E ao triste, perseguido

Miserável escravo: — É tempo de fazer

Cessar esta miséria; é tempo de romper

Esta prisão fatal! Rebenta estes grilhões.

Levanta a tua cabeça, escuta as pulsações

Do livre coração que é livre como o mar.

Não vês? O céu é claro e a alma quer voar.

Sacode essa poeira; escuta as harmonias

                 Das florestas sombrias,

Escuta a voz do mar, a voz da natureza!”

Era um quadro imortal! Sublimes de grandeza,

E santo entusiasmo os fortes lutadores,

Da noite destruindo as sombras e os horrores,

Erguiam d’entre o povo

Um brado colossal, eternamente novo,

Que além repercutindo imenso no oceano,

Repetia esse canto enorme, soberano

Ao som do qual, lutando, os fortes jangadeiros,

Almas cheias de fé, sublimes marinheiros,

Trancaram do oceano a porta majestosa

Ao tráfico brutal.

Cena maravilhosa!

O mar se transformou numa sublime orquestra.

E o eco repetiu no centro da floresta

Um cântico imortal que as ondas entoaram.

O mundo estremeceu; os astros se voltaram

Descrevendo no espaço — amor e liberdade!

— “Não é a força bruta a lei da humanidade.”

Bradou sorrindo o sol. E os soltos elementos

Repetiram por entre as ondas e os ventos:

— “Não é o despotismo a lei da natureza!”

Mergulhemos o olhar na imensa profundeza

Dos mistérios da vida. As cenas imortais,

Os combates cruéis, as lutas colossais,

Que move o coração, que move a inteligência,

São o campo sem fim onde uma eterna ciência

Regula a direção dos fins da humanidade

No seio do Universo. O império da verdade

É o império do amor. Enquanto a tirania,

Essa fera medonha, essa medonha harpia,

Não for calcada aos pés, não for arremessada

Para fora do mundo, é e será negada

A verdade evidente; e os ímprobos negreiros,

Monstros que têm a alma envolta em nevoeiros,

Feitos de hipocrisia e negro lodo impuro,

Farão da crueldade um sentimento puro,

E hão de inocentar o cálculo e a cobiça,

Cobrindo a escravidão co’o manto da justiça!

Justiça! doce bem, eterna mensageira

Da harmonia e da paz! Visão doce e fagueira!

Só tens um objeto — o amor da liberdade...

Só promoves um fim — o bem da humanidade

Não vês? É no teu nome augusto e sacrossanto

Que fala a escravidão! E não se sente O pranto,

Não se conhece a dor do mísero cativo!

Fala, fala, justiça! O escravo é um ser vivo,

O escravo é um ser humano! Alteia, eleva um grito

Que vá repercutir no seio do infinito,

Que faça estremecer de medo a humanidade.

Enorme agitação revolve a imensidade.

Rasgaram-se da noite os tenebrosos véus

E uma nuvem de luz logo ilumina os céus!...

De onde vem? O que é? É um bando de valentes

Que se ergueram com fúria e quebram as correntes

Do monstro escravidão. O ponto de partida

Foi um grito do norte; e a turba enraivecida

Dos negreiros recua. A águia deslumbrante

Do norte fez-se livre: e o som, alto, vibrante

Da resposta do sul fez logo todo inteiro

Mover-se o Império. E treme, espanta-se o negreiro

Da grande, imensa luz que espalha-se no mundo.

É o gérmen sublime, o evoluir fecundo

De uma força imortal que tem de destruir

A noite do passado, e que fará luzir

Mais brilhante e mais bela a estrela do futuro.

Fez-se a vida uma aurora: o sentimento puro|

Do amor, da compaixão, da doce simpatia,

Tal era a alavanca eterna que movia

A marcha colossal da grande evolução

Libertadora: e um vasto, um lúcido clarão

Esplêndido subiu da terra à imensidade.

Falou à natureza e riu-se à humanidade.

E o homem pôde ver, por entre a noite escura

Do passado cruel, a viva imagem pura

Da verdade: e tremeu dos erros tenebrosos,

Das cenas de terror, dos dramas dolorosos

Que nos relembra a história. E em face do universo

Fez-se libertador e todo em luz imerso

Bradou: “— Morra esse monstro, essa cruel pantera,

Abaixo a escravidão, essa medonha fera

Que aniquila e consome as forças da nação!

Só depois que morrer o monstro escravidão,

Poderemos lançar a pedra gloriosa

Que o princípio há de ser da obra grandiosa

Do futuro da pátria.” — E logo um movimento

Deslumbrante confunde o humano pensamento.

Era o gênio do bem em marcha triunfal

Contra o vil interesse e as explosões do mal.

Era a luta do amor em bem do sofrimento;

Era Almino, Amaral, o forte Nascimento

Padre Frota, Martins, Bezerra, João Cordeiro,

— A alma nacional, o homem brasileiro,

Cheio de imenso ardor pensando no interesse

Da pátria miseranda e triste, que fenece

Pela falta de amor e de patriotismo.

Era a guerra de morte ao negro escravagismo,

Era em face do crime, em face da maldade

O império da lei — amor à humanidade!

Foi livre uma província. E outra. E a onda enorme,

Imensa resvalou, como um colosso informe,

Do alto da montanha. Em face da nação

Sublime retumbou, mais forte que um trovão,

O verbo de Nabuco: e logo apareceu,

Como um grande clarão iluminando o céu,

Uma nova alvorada.

Foi José Bonifácio, esta alma imaculada

Que morreu imortal. E então o escravagismo

Seguiu sua direção, tombou para o abismo.

 

V

AOS NEGREIROS DO SUL

Negreiros sem pudor! oh vis comerciantes

De pobre carne humana! Os raios deslumbrante

De uma eterna manhã começam a brilhar.

A mente pede luz, a alma quer voar.

Pensais” em reagir. Loucura! É impossível

Reagir contra a força indômita, invencível

Da corrente que desce. O povo levantou-se,

A alma fez explosão, o céu iluminou-se,

O mar fez-se avalanche, a onda fez-se mar.

O escravo a soluçar

De joelhos já disse: “É grande a minha dor!

Em vão digo que sofro, em vão falo de amor.

É incompleto o meu ser, não tenho liberdade,

Não existe p’ra mim a lei da humanidade.”

Respondeu-lhe o negreiro: — “Eu desconheço o amor,

Não me abalam teus ais, não sinto a tua dor.

Chamo-me o interesse.

Fora, fora, d’aqui. Faze-me a tua prece

Com dinheiro, que a dor que as lágrimas, os prantos,

São pobres cousas vãs, são pálidos encantos

De loucos democratas.”

Mas eu declaro agora: — “Oh vis escravocratas!

Poderoso, imortal, serenamente puro

Levantou-se do abismo o gênio do futuro!

Desfazem-se da noite as sombras pavorosas;

Sobre o mundo estendeu suas asas luminosas

A alma de Jesus: o escravo há de vencer;

Começou a verdade: o erro vai morrer.

 

VI

A UM MINISTRO NEGREIRO

Não vês? tudo caminha; O mundo é progressista;

A nuvem tem sentido, a rocha é idealista.

A terra a se mover não para um só instante,

Mas tu não sabes dar um passo para diante.

Onde queres ficar? Na lama da senzala?

Vê bem: a crença nova a tudo move e abala,

Bem pode suceder que a nova intuição

Faça daqui se erguer a chama de um vulcão.

Deves compreender que o mundo se renova

E a tudo regenera a luz da crença nova.

Tu preferes dormir? Queres ficar sentado

Solitário e leproso à sombra do passado?

Pois bem: deixa que siga o povo que governas

A forte evolução das gerações modernas.

Acaba essa comédia horripilante, informe,

De cínico impudor: deixa o governo e dorme.

Além vem despontando a luz restauradora,

Vivíssima, imortal, de uma brilhante aurora.

Não deves esperar que a luz te cegue e mate.

Te oculta antes de ouvir o toque de rebate.

 

VII

O DRAGÃO DO MAR

A vida é uma batalha imensa, interminável.

O cruel despotismo — o monstro insaciável

Levanta-se brutal e esmaga sem piedade

Tudo o que vive e sente; arrasta a humanidade

Aos pés da tirania. As flores, a inocência,

A liberdade, o amor, a flor da inteligência,

A vida, a luz, a glória, os sentimentos puros,

Tudo é calcado aos pés, e os ímpetos impuros

Do monstro aterrador, impávido, medonho,

Fazem tornar-se a vida um pavoroso sonho,

Um pesadelo atroz! O fero despotismo

Quer em tudo fazer a escuridão do abismo.

Mas às vezes a dor reage contra a morte.

A vítima resiste, o fraco faz-se forte.

São lançadas por terra as ímprobas cadeias

Criadas pelo crime; e erguem-se as ideias

Da virtude e do amor; do bem e da verdade

Que são a lei do mundo e a lei da humanidade.

Diz o gênio cruel do negro despotismo:

“Não temo o heroísmo,

Nem o grande valor da vil filantropia.

Não temo o grande mar, não temo a ventania

E terei de arrastar por sobre a imensidade

Das águas, sem temor, sem medo, sem piedade,

O cadáver do fraco. Eu sou forte e valente

E sobre a vastidão do mar grande, imponente,

Ao louco revolver dos plainos azulados,

Soberbo arrastarei navios carregados

De negros; e farei balcão de carne humana.”

Mas enquanto cruel, com fúria desumana

Fala o monstro... soberbo, enérgico, invencível,

Sai das ondas voando o esplêndido, terrível,

Livre dragão do mar.

E erguendo o colo ingente assim põe-se a falar:

— “Eu sou a luz e a vida; eu sou a liberdade,

Eu sou a consciência, eu sou a humanidade.

Nasci do grande mar, do mar que nunca estanca;

Tenho no rijo braço a força da alavanca,

Tenho no forte peito a alma de Jesus.

És a sombra, te afasta; eu já vim, sou a luz.

 

VIII

23 DE MARÇO

Quando vê-se a inocência, os fracos oprimidos,

Arrastados na lama, em tudo perseguidos,

Da humana comunhão misérrimos expulsos,

Enquanto a infâmia vil, erguendo os grossos pulsos,

Rege a tudo soberba, é força confessar

Que a vida é uma miséria e a terra um lupanar.

Mas hoje o Ceará, aurora de esperança,

Levanta-se imortal e todo luz, bonança,

Terror do escravocrata — o humano Lucifer,

Exclama ao triste escravo: — “Acorda, vai viver”,

Então se eleva aos céus imensa claridade,

Abala-se o universo e diz a humanidade

Em voz que tudo faz de pasmo emudecer:

— “É assim que sabe obrar quem sabe humano ser”.

Desfaz-se a noite escura e a sombra se esclarece.

Quem diz que a vida é má, a vida não conhece.

O Ceará gigante, altivo, denodado,

Desfez, aniquilou o erro do passado.

Matou a escravidão, o monstro dos infernos,

Que liga o mundo antigo ao mundo dos modernos

No crime e.na traição, na raiva aterradora,

Provou esta verdade eterna, imorredoura:

A vida é como a quer o sonho dos poetas,

É como a quer o sábio e a querem os profetas.

Não é como se pensa a noite do terror;

É cadeia de bens, um cântico de amor!

É erguer-se mui alto. A luz do sol brilhante

Não tem tanto esplendor, é menos radiante.

Em frente a tanto amor o mundo se esclarece,

Tudo, tudo se move, abala-se, estremece,

‘Té mesmo a dura rocha.

A flor, que desabrocha,

É menos pura e branda, e o vórtice, que abala

O monte, que estremece e horrendamente estala,

É menos imponente e menos grandioso.

Não pode ter um povo um feito mais glorioso,

Não pode humano ser ter mais brilhante palma.

É muito grande aquilo. Ajoelha-te, minh’alma!

 

IX

OS LIBERTADORES DO CEARÁ

Depois de muita luta em bem dos perseguidos

Pela maldade atroz dos ímprobos negreiros;

Depois de haver desfeito os densos nevoeiros

Do vasto céu da pátria, os bravos destemidos

Soltam cheios de orgulho o brado de vitória.

Eterno movimento então fez-se no mundo.

Repete o mundo inteiro em tom grave e profundo

Um cântico sublime — o cântico de glória!

Mas, quando em honra a si se faz mil ovações,

Vendo em torno a ranger grilhões sobre grilhões.

Vendo o resto do Império escravo a se estorcer.

Co'a nobre placidez dos grandes lutadores

Exclamam com vigor os santos gladiadores:

— “De pé! Há muita cousa ainda a se fazer!”

 

X

A PRINCESA ISABEL

Diz o povo, se erguendo: “Eu quero caminhar.”

Diz ao povo a rainha: “Hei de levar-te além.

Só tenho uma missão — escravos libertar.

E hei de semear a liberdade e o bem.”

Oh rainha, eu não sou servil aos soberanos!

Tenho livre a razão, altivo o sentimento;

Não sei prestar apoio aos crimes dos tiranos”

Não curva-se ao poder dos reis meu pensamento.

Mas adoro o que é bom, adoro as almas boas,

E quando ouves do escravo as queixas dolorosas

E lhe exclamas: — “és livre! — oh céus, ricas coroas

Eu quisera tecer de flores perfumosas

Para depor-te aos pés. Quisera ter ideias

De sublime grandeza eternamente belas,

Que pudessem brilhar da luz das epopeias,

Que fizessem luzir teu nome entre as estrelas!

 

XI

A JANGADA

Ei-la solta no mar ligeira esvoaçando,

Como um vasto lençol

Para as nuvens azuis, sublime levantando

As asas colossais, brilhantes como o sol.

Tornou-se uma legenda. Adoro-te, jangada.

És um poema de amor: na luta encarniçada

Contra o vil interesse e a negra tirania,

— Nesse drama imortal de glória e de agonia,

Em que foi sufocada a voz do despotismo,

E foi desfeito o mal e foi transposto o abismo

Da negra escravidão;

Emblema do progresso, águia da multidão,

Foste o canto ideal, a nova Marselhesa,

Que fez brotar o bem. Tiveste a realeza

Das cousas imortais,

Cheias da grande luz dos grandes ideais,

Que fazem renovar-se o coração humano,

Sentindo da verdade o influxo soberano.

Foste da liberdade a pagina dourada,

Branca filha do mar, celestial jangada!

 

SEGUNDA PARTE

CANTOS DIVERSOS

Alado mundo, turbilhão volante,

Bando de sonhos vagos,

Ora adejando em caprichosos giros,

Ora em doces afagos

Pousando sobre as frontes cismadoras...

Vede, desponta o dia,

Sacudi vossas asas vaporosas,

Exultai de alegria.

Ide sem medo, lúcidas quimeras,

São horas de partir!...

Ide, correi, voai....

(FAGUNDES VARELA. — Ecos do ermo e da cidade[2]).

 

DUAS ESPERANÇAS MORTAS

 

I

FIGUEIRA LIMA

Oh mães que tendes filhos, mães piedosas,

Quando eles morrerem criancinhas,

Cobri-lhes os caixões de brancas rosas.

(GUERRA JUNQUEIRO).

Ele cantava assim na última agonia.

O corpo estava frio, a alma estava forte.

Era mui grande a dor cruel que o consumia,

Tinha na mente luz, tinha no corpo a morte,

Ó suplício cruel que o coração enluta!...

Mancebo pensador tivera sempre a ideia

De elevar-se na glória, erguer-se pela luta

Às altas regiões do sonho e da epopeia.

Tudo desfez a morte. O rijo vendava

Do futuro arrastou seu corpo para o céu.

“Acabou-se” — proclama a crença universal.

Protesta a multidão: “Mas ele são morreu!”

E é certo. É um mistério o que demonstra a história

Sobre as lutas sem fim que a consciência tem.

Não morre quem viveu lutando pela glória,

Não morre quem só teve um pensamento — o bem.

Morrer é ter perdido a crença da verdade.

Quem morre puro e bom, não morre, vai viver.

O mundo é um mistério: o deus da imensidade

Habita em cada crânio e nunca há de morrer.

Ele pedia às mães as rosas da inocência

Cheias de candidez e luz consoladora.

Era um louco a sonhar no extremo da existência,

Era um sol já sem luz, pedindo luz à aurora.

Terás a luz da história, a luz pura ideal

Que vem do coração, a flor da humanidade.

Terás uma coroa angélica, imortal,

As flores da virtude, as flores da saudade.

 

II

ANTÔNIO OLÍMPIO

Ele morreu criança: a lágrima sombria

Do desespero atroz secou-lhe a luz dos olhos.

Foi como um pobre nauta em noite escura e fria

Que triste se perdeu num mar cheio de abrolhos.

Morreu: levou consigo os risos da inocência,

A crença, a inspiração, os sonhos de ventura.

Deixou o pai e a mãe, entregues à inclemência

Da dor, se desfazendo em queixas de amargura.

E eu digo: “Ergue da morte a tua fronte altiva.

Estende o teu olhar por sobre a imensidade,

Faz ver que a natureza é eternamente viva.

Morrer é transformar-se: é eterna a humanidade.

Tu tinhas em teu peito o sentimento puro

Da loira mocidade ardente, esperançosa.

E tinhas muita fé, pensando do futuro

Além descortinar a estrela luminosa.

Eras profeta e rei. Profeta, porque crias;

Rei, porque tinhas n’alma o orgulho da virtude.

E sabias cantar: vivendo de harmonias,

Transformavas a mente em cordas de alaúde.

Eras sincero e bom. Amavas as crianças,

Estas filhas do amor, irmãs da castidade.

E tinhas sobre o olhar um hino de esperança

Na suave expressão da mais cortês bondade.

Não morreste: ficou tua alma transformada

Em notas ideais, em notas luminosas.

Não morre quem passou a vida imaculada,

E só soube inspirar ideias grandiosas.

 

A TARDE

É belo quando à tarde após a luta

Começa o mundo inteiro a repousar.

Mil ideias então passam-nos n'alma

Como espumas no mar.

O ruído das nuvens, que perpassam,

O murmúrio das águas na campina,

Tais são as diferentes, doces notas

Desta cena de amor meiga e divina.

Tudo tende ao descanso: então repousam

Do longínquo caminho os viajantes.

Cessa o duro trabalho aos lavradores,

Vão de amores falar ternos amantes.

 

MEU PRIMEIRO AMOR

Bela virgem, virgem loura,

Dos grandes olhos azuis,

Cheios de doce harmonia

E cheios de viva luz;

Linda virgem, sedutora,

Linda virgem, linda flor,

Quando te vi, como louco,

Despertei, bradei: — amor!

Formosa, como és formosa,

Nenhuma poderá ser.

Feliz quem possa adorar-te,

Feliz quem por ti morrer.

Mas, quando assim tu me envolves

Nesse teu profundo olhar,

Minh'alma torna-se triste,

Não devo, não posso amar.

Bem compreendo a beleza,

Bem que te adoro... Não vês?

Mas que farei? É bastante

Que eu me ajoelhe a teus pés?

Escuta: num longo dia

Que se perdeu, já passou,

Eu ouvi bem clara ao longe

Uma voz, que assim falou:

“Avante! oh moços, avante!

Além nos chama o porvir,

Onde se ocultam mistérios

Sublimes a descobrir.

“Eis ali todo o tesouro

Que a humanidade contém.

Ali se encontra oficinas,

Onde prepara-se o bem.

“Avante! sejamos fortes,

Lutemos sem descansar.

Não trepidemos. Avante!

Não nos é dado parar.”

E eu segui, vou seguindo

Na busca das oficinas.

E seguirei: quero o fogo

Destas batalhas divinas.

E tu, ó virgem formosa,

Que és perfeição, que és primor,

Porque me chamas de ingrato?

Porque me falas de amor?

Ouve bem: deixa que eu siga,

Oh! não me faças parar.

És bela, mas quem peleja

Sem vencer não pode amar.

 

ANTÔNIA E ALICE

Alice, a virgem bela, e Antônia, a virgem pura,

Eram duas irmãs — dois anjos de ternura.

Habitavam no campo e eram como as rosas,

Ingênuas e formosas

Como meigas crianças.

E a casa delas era um ninho de esperanças.

Estavam no jardim um dia as virgens belas

Risonhas como o céu, brilhantes como estrelas.

E disse Alice assim: “Antônia, estás formosa

Como eu nunca te vi; és a mais bela rosa

Que brilha no jardim. Já sei: é esperado

Hoje mesmo Roberto, o teu Roberto amado.

É bom quando se espera aquele a quem se adora;

Fica-se mais formosa. E ao passo que se chora

Quando parte e se vai, duplica-nos a vida

O temo sentimento

Que se tem quando vem já próximo o momento

Em que deve chegar.”

Antônia enternecida

Respondeu-lhe a sorrir, mas triste dentro d’alma

Como quem a esperar se achava a triste palma

Da dor e da aflição: “Te enganas, minha Alice.

Tudo isso te vem da eterna meninice

Que sempre te acompanha os dias venturosos.

Eu sei que é esperado

Hoje mesmo Roberto, o meu Roberto amado;

E não sei a razão, mas sinto urna tristeza,

Uma tristeza tal que até...”

“Que terna gentileza

Essa tua, formosa Antônia idolatrada!

Pois desde a madrugada,

Desde que eu acordei que penso na alegria.

Que deves ter. É sério. Eu sei que sentiria

Um tão grande prazer, se como tu tivesse

De ver assim de volta o meu amor!... Parece

Que eu havia de achar encanto em cada rosa,

Em cada verde folha, em cada flor mimosa...

E havia de sorrir co’as pedras que pisamos,

Com tudo o que aqui vês, co’as nuvens que avistamos

Além no azul do céu...”

“Escuta, minha irmã,

Respondeu-lhe a menina, eu tive esta manhã

Um sonho mui cruel. Sonhei que o meu Roberto

Estava p’ra chegar, já vinha muito perto.

Mas eu quando o avistava

Fulgurante de amor, terrível disparava

A bala atroz, cruel, de um fero caçador,

E o deitava por terra. E eu vi cheio de dor

Aqui, triste, gemendo e todo ensanguentado,

Nos meus braços Roberto, o meu Roberto amado.”

“E por isso estás triste? Então tu acreditas

Nessas falsas desditas

Filhas de sonhos vãos?... E chamas-me criança

Tu que choras assim, assim quando a esperança

Nos acena e sorri...”

“Eu sinto não poder

Ter alegria n’alma.”

“Eu vejo aparecer

Um vulto além. Não vês? Talvez seja Roberto.”

Antônia respondeu: “Também eu vejo, é certo.”

“Dá-me um abraço, Antônia. É ele, se aproxima.”

“Debalde é que me anima,

Alice, minha flor, teu coração bondoso.”

“Que loucura, meu Deus! fazer angustioso

Um tão feliz momento.

“Não compreendo, não...”

“Fatal pressentimento

Se apoderou de mim.”

“Mas olha, já vem perto.”

“É verdade, mas vê, não é, não é Roberto,

E vem todo de preto.”

E logo vem chegando

Um mancebo que está nos seus olhos mostrando

Que chorou e que tem uma profunda dor.

“Que notícia trazeis, que nos dizeis, senhor,

De Roberto?” — pergunta então a loira Alice.

E o moço, respondendo, amargamente disse:

“Morreu!”

Não há quem possa a dor representar

Daqueles corações! A escuridão do mar

Tem menos profundeza; e a negra tempestade

Que faz revolto o céu e escura a imensidade,

Não representa o horror desta expressão — morreu!

Como noite sem fim p’ra sempre as envolveu

Uma nuvem de dor em sombras pavorosas.

Alice se desfez em queixas dolorosas,

Em gritos de terror, em lúgubres gemidos;

E Antônia sem sentidos

Caiu, tombou no chão... Depois quando voltaram

Deste sonho cruel, chorosas escutaram

O mancebo que ali mui triste lhes contava

A morte de Roberto. E o mísero se achava

Cheio de angústia e dor. Por fim quase em lamentos

Acrescentou assim: “— Nos últimos momentos

Quando se achava já na mais cruel insônia

Da morte, murmurou essa palavra — Antônia —

E morreu!...”

Foi a dor das miseras donzelas

Terrível. Nunca mais consolação p’ra elas

Pôde existir. Antônia, a meiga virgem pura

E Alice, esta formosa e bela criatura

Só faziam chorar.

Vinha às vezes chorando Antônia se sentar

No jardim, tendo a alma envolta era negros véus,

Buscando pelos céus

Se via fulgurar alguma vaporosa

Nuvem branca ideal tornada luminosa

Da luz de alguma estrela...

Supunha Antônia bela

Que pudesse assim ver de seu mísero amante

A alma transformada em raio deslumbrante

De alguma branca e pura estrela transparente...

Mas ai da desgraçada e miséria inocente!

Embalde procurava

Uma luz, e uma luz (ai dela!) não achava

Nem brilhava no céu nenhuma branca estrela

Que em sua grande aflição viesse iluminá-la.

E vinha a loira Alice então p’ra consolá-la

Sentar-se ao lado delia.

 

DEVANEIOS

 

I

DULCÍSSIMA VISIO

Eu vi a encantadora, a meiga virgem pura,

A quem amo e a quem dedico o meu viver;

Eu vi essa formosa e bela criatura,

Que fez brilhar a luz na noite de meu ser.

Foi em sonho: — ela estava ao pé de uma aroeira;

Ao lado de uma fonte alegre e encantadora.

Soprava mansamente a viração fagueira,

Vinha apontando ao longe a luz da branca aurora.

E tinha a voz suave e os lábios seus formosos

Eram feitos de amor e feitos de doçura;

Tinha a boca risonha e os olhos luminosos,

Eram como uma luz brilhante em noite escura.

E eu disse, quando a vi: és bela como as flores!

E das flores tu és a mais formosa irmã.

Tens nos olhos oculto o anjo dos amores,

Tens na boca o sorriso eterno da manhã.

Desde então lhe conservo a imagem dentro d’alma

E tenho o coração banhado em um mar de luz.

E hei de lhe tecer a mais brilhante palma,

Porque me comunica inspirações azuis.

 

II

REVELAÇÃO

I

Tens os olhos de fogo e me dominas

Com teu olhar, mimosa criatura.

És a luz peregrina, a luz bendita

Que minh’alma deseja e em vão procura.

Não sentes que minh’alma te acompanha,

Que por ti é cruel meu sofrimento,

Que és a minha ilusão de cada instante,

Que só tu és, ó flor, meu pensamento?

Quem me dera o meu grande sentimento,

O meu profundo amor poder mostrar-te!

És um ser ideal: quando em ti penso

Minh’alma quer voar para adorar-te.

II

Ouve o meu canto

Cheio de dor.

És minha estrela,

És meu amor.

Sem ti a vida

Quero findar.

Só tenho vida

Para te amar.

Pois bem: escuta:

Dá-me um sorriso;

E me darás

O Paraíso.

III

Criança encantadora, tão formosa

Como a rosa

Que de manhã somente amor inspira,

Só tu sabes ser bela, anjo inocente,

E sabes inflamar de amor ardente

Minh’alma que por ti geme e suspira.

É grande o meu amor: meu pensamento

Como o vento

Me leva sem cessar para o teu lado.

És a luz de meu ser: quando eu te vejo,

Fico louco de amor, somente almejo

Uma glória: é amar e ser amado.

Criança sem igual, casta menina,

Flor divina,

Cheia de luz, coberta de esplendor,

Tu és a ilusão de minha vida,

És a minha visão doce e querida,

És a estrela do céu de meu amor.

 

III

CANTO DE AMORES

I

Amor, tu que da noite que me cerca

Rasgaste o negro véu;

Amor, tu puro amor que me embriagas,

Amor, filho do céu;

Ninguém sabe entender quanta virtude

O teu nome contém.

Só de ti vem a luz, vem a verdade.

És a aurora do bem.

És o fogo sagrado que alimenta

A alma do profeta;

És o puro ideal da humanidade,

O sonho do poeta.

Eu dobro os meus joelhos comovido

E beijo o teu altar.

Eu amo: e o amor que sinto dentro d’alma

É grande como o mar.

II

Eu peço às estrelas

Os seus esplendores,

Eu peço às florestas

As suas lindas flores,

Do tudo farei

Meu canto de amores.

Eu peço às campinas

Sua linda verdura,

Aos bosques frondosos

Sua doce frescura,

E ao canto das aves

Sua meiga doçura;

Às tardes amenas

A paz bonançosa,

Aos céus azulados

A voz silenciosa,

E à lua indolente

Sua luz maviosa;

Aos astros da noite

Seus fúlgidos lumes,

Aos lírios do vale

Seus doces perfumes,

E às fontes maviosas

Seus brandos queixume;

E às rubras estrelas

Os seus esplendores,

E às densas florestas

As suas lindas flores;

De tudo farei

Meu canto de amores.

III

É bela a meiga flor, a flor pura e mimosa,

A flor que simboliza a cândida inocência;

É belo o azul do céu em noite luminosa,

Indefinido azul de doce transparência.

É belo ao perpassar de nuvens indolentes

O casto olhar da lua em noite prateada;

É belo um puro céu de estrelas reluzentes,

Mas nada disto é como o olhar de minha amada.

E eu hei de transformar minh’alma em frescas rosas[3]

Para juncar o chão onde ela há de passar.

E hei de imaginá-la em nuvens vaporosas

E hei de vê-la ainda em noites de luar.

Ó céu, ó natureza, ó forças imortais

Que do mundo regeis o eterno movimento,

Escutai-me: fazei que o céu fulgure mais,

Dai a tudo palavra, a tudo pensamento.

Voai: ide dizer, por entre os esplendores

Do vasto firmamento, à minh’amada bela

Que o céu transformará minh’alma em lindas flores

E que são todas d’ela.

 

IV

ÚLTIMO CANTO DE UM SUICIDA

I

Acabou-se a comédia: eu tinha n’alma

Os sonhos ideais da fantasia.

Logo envolveu-me o anjo do infortúnio

Nas dobras de seu manto de agonia.

Quero chorar: ninguém me compreende,

Ninguém conhece ainda a minha dor.

E eu sinto que minh’alma se consome

Nas chamas de um incêndio abrasador.

Mostrou-me a luz da aurora uma esperança,

Supus o mundo um poema de harmonia:

Mas depressa passou bem como a nuvem

Que desfaz-se ao volver da ventania.

Quero chorar: oh lágrimas saudosas

Que me queimais as faces descoradas,

Minha única luz, sede benditas,

Oh filhas do sofrer abençoadas!

Tenho no peito a luz que vem da morte

E faz ficar meu peito congelado;

Tenho na mente o horror do desespero

E sinto-me de tudo abandonado.

Ninguém conhece ainda o meu segredo,

Ninguém conhece ainda o meu sofrer...

Quero chorar: correi, lágrimas tristes,

Oh lágrimas, correi, que eu vou morrer.

Quero morrer. Oh morte, és a esperança;

Oh morte, és o futuro, a liberdade;

És o princípio, a força que triunfa

Da batalha cruel da humanidade.

Mas ai! como é profunda a dor que sinto!

Como é grande e cruel minha aflição!

Quero chorar: correi, lágrimas tristes

Que aniquilais meu pobre coração.

Quisera ter o gênio dos profetas,

Quisera ter a inspiração de Homero,

Para cantar as lágrimas que choro,

Para cantar a morte e o desespero.

Quisera transformar-me em dura rocha

P’ra levantar a estátua da aflição;

Para dizer aos povos do futuro:

— Somente a dor domina a criação!

Mas oh! ninguém me escuta: o que padece

Por toda a natureza é repelido!...

Ai daquele que sofre e pelos golpes

Da cega tirania foi ferido!...

Resta-me a dor, meu único tesouro,

Resta-me o pranto triste, amargurado.

Quero chorar; correi, lágrimas tristes,

Deixai meu coração aniquilado.

Quero chorar, chorar, ‘té que desfaça

Minh’alma em puras gotas cristalinas.

Talvez que, ao perpassar de brancas nuvens,

Assim me eleve a regiões divinas.

Correi, lágrimas tristes, copiosas

Correi, trazei alívio ao meu sofrer.

Quero chorar: a morte se aproxima.

Oh lágrimas, correi, que eu vou morrer.

Acabou-se a comédia: o tempo foge,

Vou me perder no seio da natureza,

Vou procurar a essência do insondável

Em busca da verdade e da grandeza.

Vou me elevar aos páramos infindos,

Vou me perder no seio das esferas

Vou ver também si predomina o mal.

 

DIVAGAÇÕES

 

I

UNS BRAÇOS

Menina encantadora, uns braços tão formosos

Como os teus nunca vi. Oh braços perigosos!...

Não me hei de admirar si acaso acontecer

Que por eles alguém ‘té venha a enlouquecer.

Mas tu sabes a longa, a decantada história

Cheia de luto e dor, cheia de triste glória,

Destas filhas do céu, as pálidas donzelas,

Destas mocinhas belas

Dos braços provocantes,

Que vivem de sonhar amores deslumbrantes!

Há nesta imensa história um quadro tenebroso.

Amor não tem cabeça, é um anjo caprichoso

A quem domina só a lei do despotismo.

Contém em si a luz e a escuridão do abismo.

E vendo como os teus uns braços tão formosos,

Ouve: não pensa mais; desejos tumultuosos

Arrastam-no cruéis, e o pobre cai vencido

Aos pés do anjo amado, o anjo estremecido,

Inda que estrangulado

Tenha de ser coitado

Pela maldade atroz de atrozes inimigos.

Escuta, minha flor: teus braços são amigos

Ou parentes do fogo.

Quem os vê, sente logo

Arder seu coração nas chamas flamejantes

De um terrível incêndio! Oh braços faiscantes!

Oh braços de matar!

Não sei quem poderá teus braços igualar.

Quem vê teus braços nus, ó céus! perde a cabeça,

Fica louco, delira, ao fogo se arremessa,

Quem vê teus braços nus, se perde e quer amar.

Não deves descobrir teus braços perigosos.

Uns braços como os teus, uns braços tão formosos

Amor não pode ver.

Vai pois menina, vai, vai logo sem demora,

Vai, menina cruel, menina encantadora,

Teus braços esconder.

 

II

UNS OLHOS

P’ra que deitas-me assim, menina, estes olhares?

Onde iremos parar? Preciso é não pensares

Para fazer assim. Não sabes o perigo

Por que passas deitando assim no teu olhar

Essa luz que é um veneno e quer tudo abrasar?

Nós temos cada um de nós um inimigo

Dentro d’alma: e esta vida é um grande lodaçal

Onde domina o crime, onde só medra o mal.

Quando me olhas assim, de amor todo abrasado,

Quero logo dizer-te: “Ó doce bem amado,

Eu deponho a teus pés o meu sentir profundo.

És rainha do mundo,

Filha de Prometeu.

Não sei se para ti roubaste a luz do céu;

Mas uma força sei que tens prodigiosa

Que faz nascer no peito a chama furiosa

Da mais doida paixão.

Vem cá: ouve o meu cauto, estende-me a tua mão,

Olha-me mais e mais.

Enterra-me mais fundo ainda os teus punhais!

Quero morrer de amor, quero me incendiar

Na luz pura, imortal de teu divino olhar.”

 

III

UNS CABELOS

Mulher, filha do céu, mulher dos olhos belos,

P’ra que soltas ao vento assim os tens cabelos?

Que pretendes fazer?... Queres laçar os mundos?...

Oh mistérios de luz eternos e profundos!

Quem pode acaso ler na alma da mulher?

Não basta que por ti eu tenha de morrer,

Não basta que eu já tenha, ingrata, enlouquecido?

Corta o cabelo e sai: meu peito endurecido

De repente se fez. Não quero mais amar-te.

És um sonho ideal, um sonho vão da arte,

Não existes, eu sei... Mas ai! neste momento

Torna-se escuro o céu, sopra mais forte o vento!...

És tu que sacudiste a negra cabeleira;

Não posso triunfar, tu és também guerreira;

Eis me a teus pés, sou teu.

Minh’alma conheceu

Tua gigantesca força. Ordena, determina:

Sô sei obedecer, mulher pura e divina.

Não mais reagirei, por fim te conheci,

Não mais levantarei meu braço contra ti!

Já sei, já compreendo os teus loucos castelos,

Tu queres me arrastar na onda dos cabelos.

 

A UM JOVEM POETA

Ele pensava na morte.

***

“Mancebo, em que pensas, que lúgubre ideia

Te faz meditar?”

“Eu penso na morte, reflito nas dores

Que encontro na vida tão cheia de horrores,

Eu penso no mar!...

Não vês como as ondas revoltas se cruzam

Num longo gemer?

Não vês como sobem terríveis no ar?

Eu penso em lançar-me nas águas do mar,

Eu penso em morrer!”

“Escuta, mancebo: és mui jovem, não penses

No úmido mar.

Não queiras ímpio nas ondas furentes

Qual louco os teus dias, teus sonhos ardentes,

Não queiras findar.

Padeces? Não teme, sê forte, não teme,

Sofrer é viver.

A dor também é necessária no mundo,

Esta vida é um mistério sublime, profundo.

Não queiras morrer!”

 

TERCEIRA PARTE

CANTOS DA NATUREZA

La Grèce a puisé sa sérénité dans l’amour de ses dieux indulgents. L'avenir puisera la sienne dans la possession des vérités qui soutiennent l’homme et l’univers.

(Edgar Quinet — L’Esprit Nouveau).

 

O ESPÍRITO NOVO

Alaga o azul do céu com brilho transparente

De branca e nova aurora a luz pura, ideal;

Desfaz-se a noite escura, a noite-horror da mente;

Desponta a luz bendita, a luz-morte do mal.

Quem foge? A tirania, o erro, o despotismo,

O crime aterrador de vítimas sedento.

Quem vem? quem rasga o véu, que faz da vida um abismo?

Quem vem? quem se levanta? O livre pensamento.

Faz-se a eterna fusão da vasta imensidade

Co’o espírito, o imortal, eterno Criador;

Começa a crença nova, a crença da verdade,

Que tem por ideal — evolução e amor!

O homem brada então: “É grande a natureza!”

E brada a natureza: “É grande a humanidade!

E enérgico, imortal, sublime de grandeza,

Se eleva o pensamento aos céus, à imensidade.

As lutas colossais do coração humano,

A morte, o sofrimento, as lágrimas, a dor;

Tudo o que é grande e belo, o vulto soberano

Da virtude sublime e o crime cheio de horror;

O corpo do Deus vivo em confusão disperso

No cosmos através da luz e da verdade;

Os segredos da vida, a vida do universo,

A força e a inteligência, o mundo e a humanidade;

Das procelas o estrondo, o estrondo incomparável,

Das estrelas o brilho, o brilho sobre-humano;

Toda a virgem grandeza imensa, inesgotável,

Das florestas, do céu, do fundo do oceano;

O dia, a noite, o som, o mármore, o granito,

A força, o peso, o ar, a luz, o movimento,

Tudo isso é estudado... Eleva-se ao infinito

A luz da inspiração, a luz do pensamento.

E o homem conheceu: Nas lutas da ciência

Há uma fonte de bens eterna, inesgotável.

A força se transforma em luz e consciência,

A vida é uma batalha imensa, interminável.

Tudo é vivo e se move: o mando sideral

Como a impulsos de um Deus enérgicos, profundos;

Tudo é vivo e se move: o cosmos é imortal;

A morte é uma ilusão, são força viva os mundos.

Por sobre a negridão da noite do passado,

Por cima da mudez das mortas gerações,

Rebenta do futuro o invólucro animado,

Florescem com vigor mil povos, mil nações.

Assim é tudo luta, é tudo movimento

Em todo o vasto seio da grande criação.

A crença do futuro, o novo pensamento

Se resolve na lei — progresso, evolução.

Nova força alimenta o peito dos humanos,

Nova luz fortalece a humana consciência;

A força e o interesse — as armas dos tiranos,

Já tombaram por terra aos golpes da ciência.

A nova intuição dá nova força à mente,

Não sai da natureza, e eleva a humanidade;

O bem que se procura é um bem que nunca mente,

A força que domina é a força da verdade.

A luta, o sacrifício, o livre pensamento,

Desfizeram do erro as lúgubres cadeias:

Por nova direção se move o sentimento,

E faz-se a evolução do mundo das ideias.

— A vida é uma epopeia imensa, indefinida —

Eis o que brada e clama o sábio com fervor.

Devemos bendizer a lei que rege a vida

E a lei que rege a vida é a grande lei do amor.

 

A FORÇA

I

Eu estava sentado em frente do oceano.

Do alto de um rochedo o curso soberano

Do cosmos infinito atento observava.

Noutro oceano de luz o mundo se banhava:

Vinha surgindo a aurora. Os bosques retiniam

Dos cantos matinais que alegres repetiam

Num perpétuo concerto os lindos trovadores

Da sombria floresta. E os lúgubres rumores

Das ondas em tumulto, as cenas recordavam

Do coração humano, e em tudo figuravam

Essa enorme tragédia, olímpica, terrível,

Grandiosa, cruel, estranha, indefinível!

— O mundo e a humanidade!

Eu levantei-me e olhando a vasta imensidade,

Vendo o céu fulgurar

Todo desfeito em luz, falei ao vasto mar:

— “Oh mar! És um colosso, um mundo inesgotável.

És um gigante imenso, um deus na natureza,

Tens a imobilidade eterna do insondável...

Ó mar! És muito grande: eu amo a tua grandeza.

És como um grande deus: estendes sobre a terra

Teu vasto corpo azul, tuas ondas incansáveis.

És imortal, sem fim: teu grande corpo encerra

Rochedos colossais e abismos insondáveis.

Olhai do grande abismo as cenas grandiosas!

Vede as lutas do mar — o furacão, os ventos!

Vede o volver sem fim das ondas tumultuosas,

Vede a luta feroz dos soltos elementos.

Grande, grande imortal! Ó mar, tens as entranhas

Nos abismos da terra em um leito de granito.

És um gigante preso em cárcer de montanhas,

Tens em teu vasto seio a imagem do infinito.

Nada pode exceder tua grande agitação;

Há vida, há luz, há morte, há luta, há pensamento.

Há dor e alegria, há sombras e há clarão

No teu revolto, enorme, eterno movimento.

O' mar! És um colosso, um mundo inesgotável,

És um gigante imenso, um deus na natureza.

Tens a imobilidade eterna do insondável,

Oh mar! És muito grande: eu amo a tua grandeza.”

Assim disse e calei-me. E nesse mesmo instante

Levantou-se do mar um vulto deslumbrante,

Um vulto colossal;

E erguendo para o espaço o seu corpo imortal,

Co’os pés por sobre o mar, a fronte no infinito,

Soltou esse profundo, inimitável grito:

“Eu sou a força oculta, a força poderosa

Que move do universo a marcha grandiosa.

Nada pode o meu curso enorme suspender.

Eu sou a eternidade e nunca hei de morrer.

Tenho por trono o céu, tenho por leito o mar

E venho do infinito e nunca hei de parar.”

Depois, desenrolando as asas luminosas,

Levantou-se no espaço. As ondas tumultuosas

Contemplaram-no ao longe, enorme, faiscante.

E ergueu-se e fez-se ao largo...e voa num instante

Milhões e mais milhões de léguas... Por fim desce

Nas sombras do poente. E logo se escurece

A natureza inteira: imensa, aterradora

Cai das nuvens e envolve a face do universo

Uma noite polar, que deixa tudo imerso

Numa nuvem de pó, sombria, esmagadora.

II

De repente eu me achei numa fatal caverna,

Onde reinava o horror, a majestade eterna

De insondável abismo. O estrépito assombroso

De medonho trovão repete impetuoso

A voz da tempestade. Um vórtice tremendo

Se apoderou do mundo e impetuoso, horrendo

Fez tremer, abalar-se o alto das montanhas.

Fez-se no espaço um caos de proporções estranhas!

Uma voz misteriosa,

Que partia do alto, estranha, angustiosa,

Voz de quem vai morrer, voz de quem padecia,

Como um longo gemido, então assim dizia:

“Desde a origem do mundo

Foi levantado um grito atroador, profundo,

Interrogando o céu.

Era a voz da razão. O homem conheceu

Ab initio que a vida é um sonho de terror.

Pediu ciência e fé, sonhou sonhos de amor,

Pediu verdade e luz: — tremeu de fome e frio,

— Foi a resposta oculta, o verbo atroz, sombrio

Da natura cruel.

“O ímpio, amargo fel

Que o sublime Jesus bebeu no mais terrível

Momento de agonia;

O drama colossal, a inspiração sombria,

Ingente, inexcedível

Desse grande cantor da Itália harmoniosa,

A pintura imortal, a cena dolorosa

Da comédia do inferno;

Essa queixa profunda, esse gemido eterno

Do eterno viajor da estrada do futuro:

— Eis o poema de sangue, o quadro vivo e puro

Da triste humanidade...”

Tornou-se furiosa então a tempestade,

Brilhou no espaço imenso um fogo deslumbrante;

Furioso, vibrante

Soprou, forte e medonho o negro furacão.

Tornou-se o céu de brasa: um lúcido clarão

Gigantesco, feroz, rasgando a noite escura,

Fez logo estremecer de horror toda a natura.

Depois a confusão, o estrepitar dos ventos,

E a luta colossal dos soltos elementos!

Luta imortal, enorme,

Revolução tremenda, estrepitosa informe

Cheia de sombra e horror, mas cheia de grandeza,

No cenário imortal da grande natureza!...

Ó força poderosa, indômita, inclemente,

Ó força universal, quanto és grande, imponente!

E tu, quanto és pequeno, ó pobre ser humano!...

Um vulto sobre-humano

De repente se ergueu do fundo da caverna.

Tinha na face ingente a palidez eterna

Das cinzas de um vulcão.

E levantando o braço, aterrador, disforme

Falou assim em voz atroadora, enorme

Em frente ao furacão:

“Eu sou o despotismo!

. Tenho dentro do peito a escuridão do abismo,

E tenho dentro d’alma um fogo abrasador.

Amo a noite sombria e as trevas pavorosas,

Amo o fumo voraz das guerras tumultuosas,

Amo a morte e o terror!

Um dia lá na Grécia o grande Prometeu

Teve um sonho fatal, tentou subir ao céu.

Desgraçado!... Sonhou remir a humanidade:

Quis trazer para a terra a. luz brilhante e pura,

Quis para a humanidade, em vez da noite escura,

Uma eterna manhã de eterna claridade.

Lá geme o infeliz, misérrimo, ligado

Ao Cáucaso cruel! E triste, acorrentado

Soluça sem cessar: — ‘Meu sofrimento é horrível.

Que crime foi o meu, ó Deus, ó Deus terrível?...

Tentei roubar a luz, salvar a consciência,

Vencer a força bruta e a negra inconsciência...

Horror! Eis-me aqui só, sem luz e sem ideias,

Traspassado de dor, cercado de cadeias!”

Vem por ordem de Deus, de Deus sempre indomável

Depois de cada noite uma águia insaciável

Devorar-lhe as entranhas.

Debalde e triste chora. Abalam-se as montanhas

Por seus profundos ais, por seus prantos sentidos.

Não ouve porém Deus seus lúgubres gemidos,

Não ouve Deus cruel suas fundas agonias.

Jesus era uma flor de eternas harmonias,

Era o gênio do bem, o anjo da bondade.

Só pregava uma lei — o amor da humanidade;

Só tinha uma missão — pregar uma lei santa,

Pregar a lei do amor.

Logo o gênio sombrio, o gênio aterrador

Do crime e da maldade horrendo se levanta,

E então teve de ver o mundo horrorizado

Esta cena cruel — Jesus crucificado.

Quando ele apareceu os cegos enxergaram,

O pobre teve pão, os coxos caminharam

E Lázaro voltou, depois de morto, à vida.

De repente se ergueu a onda enfurecida

Dos maus: e o desgraçado, o pálido Jesus

— Alma feita do amor e feita de bondade —

Triste filho de Deus e rei da humanidade,

Teve por trono a cruz.

Fui eu que fiz assim. Vê bem: Não há poder

Que possa a minha fúria indômita conter.

Eu disponho da força enorme das procelas,

Tenho os pés sobre a terra e a fronte nas estrelas,

Reino na imensidade.

Tenho dentro da mão o mundo e a humanidade,

Só eu digo que sou — o último e o primeiro,

E sou o sumo Deus real e verdadeiro,

Jesus e Prometeu! Um quis subir aos céus,

Foi homem, quis ser deus.

O outro, deus mortal, baixou dos céus p’ra terra,

E toda a humanidade em seu destino encerra...

A ambos sem piedade em ímpeto invencível

Furioso, terrível,

Desfiz, aniquilei, A uma águia insaciável

Com tremendo rancor”, com fúria imperturbável,

Entreguei Prometeu e crucifiquei Jesus!

Meu fim é fazer guerra à liberdade e à luz.

Treme, pois, de me ver, de ouvir a minha voz!

Treme ante o meu braço indômito, feroz!

Treme*, espírito audaz, que ousas afrontar-me!

Não há nenhum poder que possa dominar-me!

Eu sou a noite escura, eu sou a força bruta

Com quem a inteligência inutilmente luta!”

Calou-se. E eu senti tremer a natureza,

E então reconhecendo a mísera fraqueza

Do pobre humano ser, fiquei cheio de horror.

Não pude resistir ao peso do terror.

Senti sobre a cabeça a sombra esvoaçar.

O céu fez-se um deserto, a terra fez-se um mar:

Tal era a agitação que o mundo revolvia!

O monstro esvoaçando a imensidade enchia.

Não tinha corpo: estava envolto num lençol

De fogo, o parecia inda maior que o sol.

Eu tive de ficar suspenso, emudecido

Sem nada compr’ender do ser desconhecido.

E enquanto procurava embalde dominar

Meu corpo que tremia, a voz rouca do mar

Soltava para o espaço indômitos gemidos...

Caí por terra então: perdi os meus sentidos.

III

Quando voltei a mim estava reclinado

Docemente n’um chão de relvas tapetado

E flores perfumosas.

O céu se desmanchava em purpurinas rosas:

Morrera a escuridão, vinha se levantando

O sol maravilhoso. A terra se embalando

Ao macio soprar da brisa harmoniosa,

Calma, silenciosa,

Cheia de viva luz, de novo renascia.

Tudo se achava alegre, o mundo parecia

Um grande templo aberto e todo iluminado.

Por cima o azul do céu, o espaço ilimitado,

Por baixo um grande altar formado de montanhas.

E o mar a suspirar lamentações tamanhas

Que dir-se-ia gemer a própria natureza!

E então eu proclamei: — “É eterna essa grandeza,

É grande esse poder!... Na evolução dos mundos

Há segredos sem fim, eternos e profundos

Que a inteligência vã não pode penetrar.

Há uma luz no abismo, há uma voz no mar.

Em frente à noite escura a doce claridade!

Em frente ao cativeiro a flor da liberdade!

Ao pé da tirania a doce compaixão!...

O mundo é um mistério. A marcha, a evolução,

Da força universal deslumbra o pensamento.

É grande, é gigantesco o eterno movimento

Das forças naturais no seio da imensidade!

Mas é fraca e mesquinha a triste humanidade

Entregue ao despotismo indômito da dor!

Perdido numa noite imensa de terror

Não pode o ser humano um instante repousar.

Tendo dentro de si a agitação do mar,

É como pobre folha agreste, abandonada

Pelos ventos cruéis misérrima arrastada

Através da poeira. Embalde se procura

Uma luz nessa noite horrivelmente escura.

O homem quer saber, revolve a profundeza

Dos mistérios da vida; e a crua natureza

Só lhe sabe dizer: — Recua, desgraçado,

Não podes penetrar no fundo emaranhado

Das essências do mundo! —

E o mesmo véu profundo

Envolve a natureza e envolve a humanidade!

“Torna-se negro o céu! Nenhuma claridade

Reina na noite escura, imensa, indefinida,

Nessa noite polar por sobre a qual a vida

É menos que um batel em mar tempestuoso,

Que a onda submerge... Um ponto luminoso

Brilha contudo: é a flor das almas inocentes

Que derramam o bem, que espalham as sementes

Da virtude e do amor!

“E essa pequena luz se muda em esplendor

Cresce, cresce, se espalha e faz-se sol fecundo

E eleva a natureza e regenera o mundo.

“Há muita analogia entre as paixões humanas

E as forças naturais, imensas, soberanas.

O crime é a noite escura, as sombras da caverna;

A virtude é uma flor, uma alvorada eterna

No céu do coração. À alma tem auroras,

Tem manhãs ideais, manhãs consoladoras,

E tem cenas de horror e noites de explosões!

“Há flores dentro d’alma e há negros vulcões!

“O mal é como um negro, horrível pesadelo,

É um monstro inconsciente, é a negação do belo,

Tudo desfaz, anula... E quando a voz impura

Do crime faz-se ouvir, numa cruel tortura,

Recua, empalidece a mente horrorizada.

Fica a face do mundo inteiro transformada.

E o crime diz assim: — “Sou eu do mundo o rei.

Amo o sangue e a ruína, os déspotas sem lei;

Odeio a compaixão, a vil filantropia.

Só conheço um princípio a lei da tirania,

Só respeito uma lei — o grito do canhão.

Forte, deves seguir! Fraco, não tens razão!

O direito é a força. É um erro o sentimento

Da virtude e do amor. No eterno movimento

Da luta colossal dos seres sobre o seio

Do cosmos imortal,

A lei da vida é esta — dominar o meio.

E p’ra chegar aos fins é indiferente o mal!”

“Invencível terror espalha-se medonho

Por sobre a natureza, e um pavoroso sonho,

Torna-se a vida: e então em frente à imensidade

Exclama a consciência: É um verme a humanidade.

Repete o egoísmo: É um erro a compaixão.

E proclama a ciência a morte da razão!

“Mas, depois dessa noite escura e procelosa,

Vem a doce manhã, risonha e luminosa.

Por sobre o negro mal, por sobre a noite impura

Da maldade cruel, sempre imortal fulgura

A flor da liberdade, a linda flor do bem.

O espírito não cansa; e vai, não se detém

Por cima do universo em busca da verdade.

O gênio da virtude exclama: “Avante! avante!

Cesse a voz da descrença! “E voa deslumbrante

Através da miséria e salva a humanidade.”

 

A VOZ DA CONSCIÊNCIA

Quando vê-se o medonho escuro cataclismo

Que agita a natureza e abala a humanidade;

O céu — sombra e mistério, a terra feita abismo,

Arrastada no lodo a flor da liberdade;

Quando vê-se que a lei é o grito do canhão,

Que o mundo é um oceano, um mar de tiranias,

Que a natureza é um caos, e a vida um turbilhão

De múltiplo sentir, de eternas agonias;

O sol torna-se negro, o céu faz-se sombrio,

E põe-se um vento forte e gélido a soprar,

E a vasta natureza então treme de frio

Contendo no seu seio a escuridão do mar.

Contudo há uma luz na densa escuridão

Do abismo universal — é a lei do sentimento.

E ergue-se da noite a doce compaixão

E sai da sombra um astro — o eterno pensamento.

E logo a consciência exclama aos contendores

Das lutas do futuro em voz potente e forte,

A fronte a se inundar nos vastos esplendores

Da grande natureza e os pés por sobre a morte:

“Eu sou feita de luz e feita de verdade

E tenho mais poder que o sol abrasador.

Nasci da luz do céu, meu corpo é a humanidade;

Tenho por lei o bem, por ideal o amor.

Para o bem tenho o olhar das cousas mansas, boas;

Para o mal tenho o ferro agudo das espadas.

São todas para vós, p’ra vós minhas coroas,

Almas filhas do bem, almas abençoadas.

Só há uma ciência — é a voz da natureza.

Meu sonho é só de amor, meu pensamento é puro.

Escuridão e luz... Imensa profundeza!...

Ó noite, és o passado. Ó luz, és o futuro!”

 

A LIBERDADE[4]

I

Eis o quadro da vida: indômita, trana

Agita-se brutal, estrepitosa, insana

A luta das paixões.

Ondas em turbilhão; escura a imensidade,

Cheio de sombra o céu, rebelde a humanidade,

Revolvendo-se a alma em loucas convulsões!

É falsa a glória vã, é falsa a vã grandeza

Da vaidade e do orgulho; e a cega natureza

É sempre enganadora e cheia de terror.

Em vão simula o gênio um quadro idealista

Do drama do universo; e a história realista

Só diz, só reproduz lamentações e dor!

 verdade é sombria: a voz triste da história,

Em vez de se elevar aos páramos da glória,

Só deixa ver o nada, a morte, o desespero.

Não vai para diante a força que se avança

E proclama a razão a morte da esperança,

Morre de fome Homero.

Colombo, o imortal descobridor da América,

O grande lutador de uma epopeia homérica,

Que soube do oceano a fúria dominar,

Lá geme o desgraçado, o genovês sem erros,

Misérrimo arrastando em si rígidos ferros,

Colombo, o deus do mar,

E Galileu, o sábio, o grande pensador

Que soube desfazer o erro aterrador

Do passado e criar a ideia do futuro...

Lá geme o desgraçado em um cárcere sombrio,

Desumano, cruel, insuportável, frio,

Horrivelmente escuro.

Seu crime? Ele voou nas asas da ciência

P’ra dar um ideal à humana consciência,

P’ra dar uma lei nova ao mundo e à humanidade

E nunca descansou: intrépido, profundo

Percorria a voar na vastidão do mundo

Os céus, a imensidade.

A vida é uma comédia aterradora, impura,

Um drama de miséria, um sonho de loucura.

Ó dor, ó dor sem fim!

Olhai: vede no mundo o quadro da desgraça,

É tudo crime e horror desde a hodierna raça

Ao crime de Caim.

Embalde busca o justo o prêmio da vitória:

Não medra o pensamento e só registra a história

Cenas de sangue e horror.

É sempre escuro e triste o quadro desta vida,

E ergue a fronte impura, horrenda, enegrecida

O crime aterrador.

Depois lançai o olhar por sobre a evolução

Da humanidade e vede a grande agitação

Do mundo social!

Vereis por toda a parte a luta da miséria.

Quer-se verdade e luz e a obra da matéria.

É a tirania e o mal!

Na noite entre a friez dos úmidos vapores

Uns vultos vão cruéis passando aterradores,

Horripilantes, frios.

Têm dentro do peito a alma das panteras,

São como o crime atroz, são como as negras feras,

Impávidos, sombrios!

São fantasmas da noite: os pérfidos sem medo

Vão duros como o bronze ou áspero rochedo

Procurando co’a mão,

Um peito humilde e fraco e úmido punhal,

Navegantes do crime, apóstolos do mal,

Cravar-lhe ao coração!

Ó sombra, ó cerração, ó noites tumultuosas,

Noites do coração, que as crenças luminosas

Da verdade apagais!

O mundo é uma caverna horrivelmente escura

Onde só medra o crime, habitação impura

De ursos e chacais!

II

Mas não. Vede mais fundo: olhai a luz que vem;

Daquele ponto ali.

Alguém bradou com força: — Eu trago a flor do bem;

Sou eu que da verdade o facho descobri.

É o vulto divino, o vulto grandioso

Da loira liberdade.

E acrescentou: “Existe o gérmen glorioso

De uma luz imortal no seio da humanidade.

“A glória é a verdade: existe a consciência,

Existe a lei do amor.

Só conheço uma cousa horrenda na existência,

Uma cousa medonha — o crime aterrador!

“Não é a força bruta a lei que rege o mundo,

Não é o negro mal.

Há um gérmen sagrado, inovador, fecundo

No seio da criação, e é tudo imortal.

“É a luz da razão, a luz da inteligência,

A eterna criadora,

Que faz brilhar na noite escura da existência

Uma eterna manhã, uma imortal aurora.

“Enquanto dominou a lei do despotismo,

A lei da força bruta,

Reinou na humanidade a escuridão do abismo,

Foi toda a humanidade uma tremenda luta.

“Mas logo que da aurora o raio de bonança

Iluminou os céus,

De novo fez-se ouvir um hino de esperança

E a luz logo desfez do abismo os negros véus!”

E o vulto majestoso abrindo as luminosas,

Grandes asas azuis,

Voou todo envolvido em nuvens vaporosas,

Deixando-se inundar a terra em um mar de luz.

III

Fez-se sublime a natureza augusta,

Mudou-se a cor da enegrecida terra,

Foi condenado à execração dos homens

O crime horrendo que os mortais aterra.

E surge alegre a compaixão bendita

E o amor eterno esvoaçando vem.

Soube sentir a humanidade a força

Que vem das lutas que promove o bem.

E eu bradei logo: “Vede o espaço imenso

A desmanchar-se em transparente luz.

As brancas nuvens fulgurantes, belas,

Esvoaçando sobre os céus azuis.

Enquanto brilham deste modo as nuvens,

Enquanto brilha deste modo o céu,

Lutam os homens: sobre a terra humilde

Se estende um denso e tenebroso véu.

E é grande a luta dos mortais na terra!

São como os ventos que incessantes correm:

Uns nadam fortes nas furentes ondas,

Outros sem força, miserandos morrem.

E o mar furioso a revolver-se imenso,

Negro os envolve em turbilhão cruel.

Uns acham vinho no passar das ondas,

Encontram outros desgraçado fel.

Contudo há homens que ao furor das ondas,

Que ao som dos ventos, que ao rugir dos mares,

Firmes resistem, levantando o peito,

Como o rochedo que se eleva aos ares.

E os ventos sopram com dobrada fúria,

Erguem-se as ondas dos abismos seus!

Sua mente é calma como o som longínquo

De um canto virgem que se eleva aos céus!”

IV

Desfez-se a noite escura, a noite tenebrosa;

Tornou-se a natureza inteira harmoniosa

E cheia de fulgor.

Começa a fulgurar no céu nova alvorada,

Começa a crença nova, a crença abençoada

Da verdade e do amor.

E vós que batalhais nas lutas do futuro,

Que pregais a verdade e o sentimento puro

Do progresso e moveis as lutas da ciência,

Falai: mostrai que existe acima dos horrores

Desta vida, imortal, tão pura como as flores,

A luz da inteligência.

Ó sábios! É preciso agora levantar

No centro do universo um grandioso altar

Nunca visto, imortal,

Onde o apóstolo do bem, o filho da ciência

Pregue o trabalho, o amor; liberte a consciência

E subjugue o mal.

 

VISÃO DO FUTURO

SOBRE AS RUÍNAS DO TEMPLO

Ao pé de um velho templo, escuro, abandonado,

Mergulhando o olhar nas sombras do passado,

Um dia solitário eu meditava assim:

“Uma imensa tristeza apossa-se de mim.

Tudo revela aqui miséria e decadência,

Move-se o coração, move-se a consciência

Cheia de susto e dor.

“Tudo parece escuro e cheio de terror,

Tudo revela a morte e tristes amarguras.

“Em torno à vastidão de lúcidas planuras,

Os sonhos, a paixão, a vida, o movimento;

No templo o abandono, a queixa, o sofrimento,

O desespero, a morte, a noite do passado.

“Eis a vida, eis o mundo, o quadro angustiado

Da mesquinha existência! Embalde se procura

Na noite pavorosa, imensamente escura

Do passado uma luz. Medonhas aflições,

Dores de aniquilar cruéis lamentações

Regem teu movimento, oh! triste humanidade!

Queremos caminhar, mas, oh! fatalidade!...

Uma voz, como que partida das cavernas,

Repete friamente às gerações modernas:

— Nem mais um passo além! — Coloca-se o passado

Em frente do futuro. E então como aterrado

Foge o anjo do amor, o anjo do porvir.

Já não têm mais luz, não sabem mais luzir

As ideias: e a mente escura, sem ação

Não entende da vida a estranha evolução.

“O que são a grandeza, os sonhos da vaidade?

É triste, é miseranda a fraca humanidade.

No momento em que aos céus queremos levantar

A vista, procurando aos céus interrogar,

Já nos falta nos pés a terra em que pisamos.

Sem descanso, sem fé, proscritos caminhamos

Em busca de um país que a vista não alcança.

E quando nos sorri o anjo da esperança

Um instante e nos diz: “A terra do futuro

É já perto, está ali”, se ergue o anjo impuro

Da descrença e no meio de gritos furiosos

Nos enche de terror e sustos pavorosos.

“Vede aqui: hoje em terra um templo abandonado,

Outrora cheio de vida e todo iluminado,

Centro de vivo amor, de preces fervorosas.

Tornou-se um antro escuro: e sombras pavorosas,

Em vez de pura luz, dominam nos altares.

“A vida é uma série infinda de penares.

Vejamos: há aqui por cima o esplendor

Do céu; por baixo o pó e o quadro esmagador

Da triste solidão. E a forte ventania,

Que traz da mata escura a voz rouca e bravia

Dos tigres e leões,

Soltando para o espaço enormes maldições,

Sacode com furor as portas despregadas

Do pobre templo: e então medonhas gargalhadas

Repete o eco ao longe, enquanto vão tombando

Caindo e se quebrando,

Roídas pelo tempo as negras fechaduras!

“Quem pode penetrar o arcano das alturas?

Quem pode ler nos céus o enigma insondável

Da vida e do universo? Um véu impenetrável

Abraça, envolve tudo. Ao pé de cada rosa

Depõe um verme impuro a baba venenosa

Da morte, e tudo vae marchando para o nada.

A batalha sem fim, cruel, desesperada,

Dos seres como que transforma num clamor

Infindo a natureza. É um quadro de terror

O eterno evoluir da eterna agitação.

A flor, apenas vem saindo do botão,

Desfaz-se e vira pó: e assim é tudo o mais.

Não sabem entender os míseros mortais

Seu longo caminhar. A onda indefinida

Do eterno movimento avança sem medida

E cresce e tudo leva e arrasta para a morte.

Embalde é que trabalha o homem p’ra ser forte,

A mão do tempo esmaga as nossas esperanças;

E os homens nada são... são míseras crianças

Sempre, sempre a sonhar, enquanto o despotismo

Da força universal nos leva para o abismo

Da morte e da soidão.

O mundo é uma imensa” atroz lamentação!”

Isto dizendo, um grande, um vasto movimento,

Deu-se dentro do templo: e então meu pensamento

Começou a vagar num mar tempestuoso

De revoltas ideias:

Senti que respirava a luz das epopeias.

E vi que é um mistério enorme a humanidade.

Do seio da velhice a loira mocidade

Bem como por encanto alegre ia saindo.

O templo fez-se novo, o céu ficou sorrindo.

Um grupo juvenil de fortes lutadores

Erguendo-se com fé, por entre mil clamores,

No alto das ruínas,

Soltaram para o espaço estas canções divinas:

“Eis aqui o silêncio, a negação da vida,

A triste solidão, a morte aterradora!...

Façamos desta sombra imensa, indefinida,

Surgir a luz da aurora.

“É grande, é bela, é nobre, a luta do futuro

Como um sonho ideal que leva para o céu.

Lutemos: em noss’alma o sentimento puro

Do ideal não morreu.

“A nossa pátria sofre; imenso patriotismo

Inflame-nos a alma e faça-nos heróis,

Veremos que não é o mundo um negro abismo

Mas dança de mil sóis.

“Em cada um de nós impere a mocidade,

Temos na peito fogo e arder na coração,

Façamos fulgurar no seio da humanidade

A nossa geração,

“Aqui a terra, o pó, misérias e ruínas,

Um quadra aterrador, sombrio como o mar;

Mas temos dentre d'alma inspirações divinas:

Podemos caminhar.

“Marchemos, pois: e aqui por cima das ruínas

Desse templo, com forte e enérgico vigor,

Cantemos o progresso e as crenças purpurinas

Da verdade e do amor.

“Façamos desse templo a rocha do progresso,

E diga cada um de nós: — hei de seguir!

Bebamos nesta sombra a luz que dá ingresso

P’r’os feitos do porvir.

“Juremos com vigor em face do passado

Que temos força n’alma e paz no coração.

E saibamos achar nas ruínas o legado

Da morta geração.

“E assim sobre este chão gravemos nosso nome,

E dentro de noss’alma eterna juventude

Afirmemos haver, que o tempo não consome

O sonho da virtude!”

O mar gemia ao longe, a terra, estremeceu;

E logo iluminado o céu apareceu

De lúcidos fulgores.

Era a aurora do bem: e um cântico de amores

Entoou suspirando o gênio do futuro.

Desfez-se da incerteza o denso véu escuro;

Brilhou a luz no céu, tornou-se belo o mundo.

Era o puro ideal, renovador, fecundo

Do faturo, sublime e novo iluminando

 Humana consciência. Então tornou-se brando

O sopro atroador da forte ventania.

E logo cheio de luz e cheio de harmonia

Esvoaçou no espaço o anjo da esperança.

E eu disse: “É necessário havermos confiança

Nos destinos do ser. Existe uma verdade

Grandiosa, imortal no seio da imensidade.

Existe o negro mal, existe o crime impuro;

E às vezes faz-se o céu medonhamente escuro,

E isto nos faz crer que a vida é uma miséria.

Pensamos que no seio imenso da matéria

Somente o despotismo impera; e proclamamos

A morte da razão. Mas logo se escutamos

A voz que vem da noite escura do passado,

Sentimos que dali um canto abençoado

De esperança e de amor, nos leva p’ra o futuro.

Então rebenta n’alma o sentimento puro

Do ideal: e se agita a alma como um mar.

A mente se levanta e tenta esvoaçar

Às altas regiões da luz e do insondável.

Anima-nos do bem a força inesgotável.

Tudo se regenera e diz a consciência:

— “A virtude — eis o fruto eterno da ciência.

Marchemos para a luz, marchemos para o amor.”

Faz-se o grande universo então todo esplendor.

E mostra a evolução do mundo social:

— Viver é caminhar para a extinção do mal! —

E o mundo se concentra inteiro dentro d’alma.

Então é que se tem a verdadeira palma

Do progresso e do amor, do bem e da virtude;

Então é que se entende a voz da natureza,

Então é que se vê do cosmos a grandeza,

Então é que se tem eterna juventude.”

 

CONTEMPLAÇÃO INTERIOR

Eu estava sentado em face das ruínas

De um antigo convento.

Estava cheio o céu de estrelas purpurinas,

Era como um gemido a voz triste do vento.

A noite era soberba. Ia se erguendo a lua,

O mundo estava calmo, e a natureza nua,

Templo feito de luz, habitação formosa

Da verdade e da força, — augusta, majestosa,

Era como uma loira e pudica vestal,

Filha da languidez, feita só de ideal,

Que depois de passar por longos sofrimentos,

Encontra na saudade alívio a seus tormentos

E deseja sonhar. Era uma noite bela,

Noite de paz e amor e noite de procela!

Senti n’alma o fervor das grandes comoções,

E vendo o céu azul, a terra em convulsões,

A sombra envolta em luz, a vida ao pé da morte,

Em tom vibrante e forte,

Cego pela paixão, sonhando amor sem fim

Falei, cantei assim:

Divina poesia,

Filha do deus-amor, irmã da fantasia!

És um sonho, eu bem sei, mas és a liberdade,

E só tu sabes dar ao mundo e à humanidade

A crença que dá vida, a luz que fortifica!

És a glória, a esperança, o amor que dulcifica

As dores da existência.

És o fruto sagrado, a luz da consciência,

És a flor ideal do sentimento humano!

Às vezes o oceano,

E todo o seu mistério e toda a sua grandeza,

E toda a majestade e toda a profundeza

Das florestas sombrias,

São menos glaciais, são inda menos frias

Do que os arcanos d’alma. E o vasto firmamento,

Co’o sublime esplendor das suas nebulosas,

Co’as estrelas formosas,

E o vasto azul do céu bordado de brilhantes,

— Manto que envolve

 O mundo em dobras fulgurantes —

E' menos grandioso e menos imponente.

Enchem-se então de luz o coração e a mente...

O pensamento voa, o coração fulgura,

E funde-se a natura

Com todo o seu poder nas profundezas d'alma!

Eis no drama do mundo a verdadeira palma

De glória e de grandeza. O mais é tudo vão

E segue a lei do acaso e faz a evolução

Do nada: e está sujeito aos furacões da sorte

E ao sopro funerário aterrador da morte!

O orgulho é uma miséria, é uma miséria a glória,

A falsa e vã grandeza

Do crime infame e vil que afronta a natureza.

Força, orgulho, poder — tudo através da história

Leva uma onda cruel que eternamente corre.

O corpo apodrece e morre.

E a riqueza, o poder, os sonhos tenebrosos,

Os planos de ambição, sombrios, rancorosos,

De um cruel Arbués, de um fero Torquemada,

Toda a sua grandeza e falsa potestade,

Desfaz-se ante o terror, desfaz-se ante a verdade

Desta tremenda lei — a realidade é o nada.

Eis da vaidade humana a desgraçada sina!

Há, porém, uma lei toda imortal divina,

Cheia de imenso amor, uma verdade eterna,

Que liga o mundo antigo à geração moderna,

Pelos braços do amor, pela esperança amada.

É uma lei bendita, é uma lei sagrada

Feita de luz do céu, feita de luz divina.

Um dia sobre o chão da velha Palestina

Levantou-se sublime o gênio dos profetas,

E, travando da lira augusta dos poetas,

Cantou triste, chorando, um cântico de dor.

Foi um quadro imortal de compaixão e amor.

Era o gênio da história. Eis para a humanidade

O mistério da ideia, o sonho de verdade,

Que faz nascerem n’alma inspirações divinas!

O profeta cantou por cima das ruínas

Da cidade de Deus o canto do futuro.

Fugiu logo aterrado o pensamento impuro.

O céu fez-se sombrio, o mar fez-se disforme,

Convulsionou-se o mundo: um movimento enorme

Tudo envolveu pujante em ondas colossais.

O céu, a terra, o vento, as forças naturais

Tiveram peito e voz, tiveram consciência.

Sublime inspiração, incógnita ciência

Move a marcha do mundo!

A alma é um oceano, um pélago profundo.

Revolvem-se em furor, em ímpetos terríveis,

Complicados, sem fim, profundos, invisíveis,

As grandes forças d’alma, os grandes sentimentos,

Como as ondas do mar em luta contra os ventos

No louco revolver das negras tempestades.

E tudo vai marchando: abraça um gigantesco

E eterno movimento o curso das idades.

Um grande turbilhão, um vórtice dantesco

Abala o coração, confunde a natureza,

Quando um grande ideal revolve a profundeza

Do imenso abismo d’alma, abismo sem fundura.

Profundo, imenso mar, incógnita mistura

De tudo quanto é grande e tudo quanto é belo,

Das iras de um Marat, dos sonhos de um Sordello,

De tudo quanto é mau, de todos os horrores,

De sombras e de luz, de sacrifício e dores,

Onde se encontra tudo, o transitório e o eterno;

O gozo, a dor, o céu, a felicidade, o inferno.

Eu já tive de ver o quadro tenebroso

Das misérias humanas.

Fez-se minh’alma um caos: o estrépito assombroso

Das revoltas paixões, das ambições insanas,

Dos desejos sem lei, dos ódios e rancores,

De inimigos brutais, cruéis, enfurecidos,

Inda soa voraz, medonho a meus ouvidos,

Como um cortejo atroz de sombras e de horrores.

Cuspi com altivez nas faces horrorosas

Da mentira e da infâmia, irmãs feias, odiosas

Que promovem com fúria estúpida e brutal

A obra horripilante e cômica do mal.

Calquei aos pés o monstro, a cobra mentirosa

Que engana e que seduz, e a baba venenosa

De sua alma cruel espalha com furor.

Não pude me conter, fiquei cheio de horror.

A humanidade abriu-me arcanos insondáveis

Vi abismos de horror, sombras impenetráveis,

Vi o gênio do mal — a força e a crueldade,

Vi o bem, vi o mal, vi toda a humanidade!

Agora assisto aqui nesse torrão amado

Ao quadro sedutor, ao quadro sublimado

Da saudade e do amor, da esperança qu’rida,

Da doce compaixão, mais bela flor da vida!...

E o vento que perpassa, o vento fresco e brando.

Que vem da mata escura e sopra docemente,

Como de anjos do céu maravilhoso bando

Entoa tristemente

Um hino de esperança, um hino abençoado

Que traduz da saudade o sonho desejado

Em face do universo, em face da natura.

Desfaz-se então do mal a inspiração impura!

De além por entre a luz dos elevados flancos

Daqueles morros brancos,

Que dormem lá na praia e contra os quais o mar

Com fúria de jaguar

As ondas, revoltado, impetuoso assanha,

Ouve-se o triste som que do revolto oceano,

Como lamentação de um peito sobre-humano,

Vem acordar gemendo o eco da montanha.

Hino sagrado e santo!

Hino da natureza, hino de luz e pranto!

Hino ideal, profundo!

Eis o bem, eis o mal — os dois polos do mundo!

Natureza sublime, ó natureza augusta,

Eternamente boa e eternamente justa!

Tu que és feita de luz, feita de sóis e mundos,

E que na confusão, nos vórtices profundos

Da eterna agitação, do eterno movimento,

És como um grande livro aberto ao pensamento,

Dá-me força e poder, dá-me a altivez do forte

Que afronta a tirania e que despreza a morte.

É na contemplação da tua imensa glória,

Por entre a evolução do cosmos e da história,

Que se pode, estudando o mundo e a humanidade,

Beber a inspiração do bem e -da verdade.

Natureza imortal!

Faz que eu sempre despreze a baba venenosa,

Estúpida, brutal,

Da crueldade cega, horrenda e furiosa

Da infâmia e da mentira em seu cruel vai-vem;

Que eu despreze o rancor dos grandes potentados

E nunca possa ver co’os meus braços cruzados

Arrastar-se na lama a linda flor do bem.



 

[1]. Pode parecer estranho o fim que damos à filosofia. É nossa convicção que o fim prático da filosofia é a moral, isto é, o esforço pelo bem na sociedade. Sobre esta ideia que havemos de desenvolver um dia, temos diversos escritos, parte dos quais foram publicados em jornais do Ceará. Reproduzimos aqui o seguinte: “As duas manifestações fundamentais do espírito humano na marcha geral da sociedade são a política e a filosofia. A política dá em resultado o direito; a filosofia dá em resultado a moral; e o direito e a moral são as duas alavancas, os dois eixos centrais do grande mecanismo social. Sabe-se que a moral é o conjunto dos princípios pelos quais deve o homem regular a sua conduta. De dois modos pode o homem proceder na sociedade: de conformidade com as suas convicções ou de conformidade com as suas conveniências. Não se compreende que possa proceder de outro modo a menos que não se ache em seu estado normal. O grau da moralidade está na razão inversa do sacrifício das convicções a conveniências. Aquele que nunca sacrifica suas convicções a conveniências é um homem perfeito. Deste modo temos uma regra segura julgar os atos do homem e sabemos como é que se deve proceder tendo em vista a moralidade: é obedecendo às nossas convicções. Onde, porém, podemos obter convicções verdadeiras? Na filosofia. Daí nossa ideia: a moral é o fim da filosofia.”

[2] . Nota do organizador: o título correto da obra de Fagundes Varela é Cantos do ermo e da cidade.

[3] Nota do organizador: a palavra final do verso não aparece no volume consultado; rosas é a opção mais provável.

[4]. As poesias Liberdade e Visão do futuro na terceira parte deste livro, foram escritas muito antes da gloriosa revolução de 15 de novembro; mas eu, por uma notável coincidência que eu mesmo admiro e não compreendo, tive a felicidade inaudita de elevar-me à previsão do grande acontecimento em virtude do qual foi realizada, dentro de poucas horas, sem reação e sem sangue, a libertação política da pátria logo em seguida à sua libertação social pela emancipação dos escravos.

Na Liberdade eu descrevo a princípio cenas de sangue e destruição; mas estas cenas são figuradas, não no país porém na história. É que eu me coloco sob o ponto de vista da humanidade, e não sob o ponto do vista nacional. Apresento em seguida um ponto luminoso de onde parte a voz da liberdade. É aí que eu me refiro à pátria: esse ponto luminoso é o Brasil.

Terminando, incito os organizadores do futuro a levantarem um templo a esses dois princípios que considero as duas alavancas do mundo: a ciência e o trabalho.

Na Visão do futuro eu descrevi um templo em ruínas e lamentando a dolorosa incerteza e as contingências cruéis da natureza humana, vejo sair de dentro do templo um grupo de mancebos entoando um canto ao futuro. Aqui a coincidência com os fatos ainda foi mais notável. O templo em ruínas era o velho edifício monárquico incompatível com as aspirações nacionais e condenado pelo espírito da história. O grupo de mancebos era a mocidade brasileira tão brilhantemente representada pelos heroicos oficiais do exército e armada nacional, bem como pelos propagadoras da Ideia republicana, revolucionários de 15 de Novembro, que levantando-se por cima dos destroços do antigo regime deram o braço ao povo o proclamaram a república.