LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Despoemas, de Maura de Senna
Edição de base:
Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos,
Org. de Lauro Junkes, Florianópolis: ACL, 2004.
ÍNDICE
Terra minha sob o signo da poesia
No livro da editora Achiamé:
Quando essa era, porém, chegar a vossos lares,
Eu já terei voltado ao selo do universo.
Mas, porque vos amei — homens! irmãos! — nos ares
Minha alma ficará, vibrando no meu verso.
Rufiará pelo céu — numa asa que se solta,
Tinirá — no rumor de algemas se quebrando
E, em frêmitos de amor e gritos de revolta,
Convosco ficará — nos aquilões cantando.
Almeida Cousin
(In "Itamonte")
Em Busco a Palavra:
Maura de Senna Pereira, que está
Sempre em vigília poética, vem
Disfarçada em "Despoemas".
Mas é só disfarce, porque o livro
Oferece poemas de verdade".
Lago Burnet — "Revista Nacional"
Do amor
I
No Vale Samaritano
Eis que hoje me despeço deste vale
onde a tragédia nos fez aterrissar
por todo um mês (ou todo um século?)
Ele, em seu leito, por hábeis mãos cuidado,
recebendo no soro as substâncias
que foram reabsorvendo o sangue extravasado
Eu era toda aflição contida e esperança
na ação dos dois médicos perfeitos
Já tarde, quando, sedado ou não, ele dormia
em vigília sempre eu ia contemplar a noite:
a rua de casas belantigas (elas existem?)
o morro de pedra e verdes novos pela frente
o grande edifício à esquerda, os outros menores,
e sobretudo o céu estrelado, a lua às vezes
e, bem no alto, aquele que foi crucificado
por tanto amar a gente
A pouco e pouco as luzes das casas se apagavam
(dormem? sonham? fazem amor?)
Depois era o céu que esmorecia: as constelações,
os planetas, a lua, quando aparecia, tinham
ido embora
Só então ficávamos nós dois sozinhos, ó Cristo!
Aí de mim, não te fiz nenhuma prece
mas naquele repetido encontro face a face
parecia ouvir-te: Descansa, mulher,
ele sairá daqui pelo teu braço
É o que vai acontecer agora
pois que dois seres raros conseguiram a vitória
de recuperá-lo
Somente na ciência eu creio, sim,
porém jamais esquecerei, ó Cristo,
que teus luminosos braços abertos
estiveram sempre abertos para mim
II
Sublimação
No princípio era o sexo dominando
as próprias mentes e corações afins
irrompendo selvagem nas alcovas
e no tapete verde dos jardins
eu — cravina esmagada pelo teu
inteiro e animal abraço
em manhãs e noites de esperma e sono
de sono lasso
Depois, o sexo ainda. Mas como
cresceram tanto os elos outros
que nos ligaram sempre!
Muitos dezembros passaram
e muitos marços também
e ao nível do ardor carnal se postaram
os outros elos, tão belos
Agora o sexo é por eles suplantado, amor,
não tanto em virtude do tempo
mais como fruto da dor
Brutal máquina turbou teu cérebro
de sábio e de poeta
gerando os meus dias mais amargos
até que dois anjos
dois arcanjos
te salvaram
Prêmio: tua vida e tua volta
Festa: uma união ainda maior
que a mais profunda, a mais ardente cópula
Lua e luta
Intemporal
A Guido Wilmar Sassi
Simples fêmea das cavernas
ou nascida no século vinte e um
carregaria sempre esta flama, esta
ânsia que me faz — na escuridão
de um mundo em estertor —
querer antecipar
o alvorecer
com tintas fortes de revolta e amor
Assim, nas primitivas eras, sujeita
aos quase-bichos, decerto pensaria
em conceber um homem. E — irmã
dos homens quase-livres de amanhã —
sonharia com outros passos para a frente
com o século trinta e sete talvez
(ou quarenta e cinco
ou cinquenta e três)
enfim com o ser humano já liberto
e sendo já a Terra
dália azul perfeita — sem traço algum
de sangue e desamor
João Paulo I
Não, não apagou fogueiras
nem as fez esquecer
tal quando passou o vendaval de amor
chamado João XXIII
Mas foi uma surpresa para os povos
a escolha do teu nome, João Paulo,
parecendo um recém-nascido das gentes
e foi dádiva e galardão,
Albino Luciani, teu sorriso
não-eclesiástico
Sorriso irmão
de filho de uma lavadora de pratos
e de um pedreiro socialista
Sorriso cristão
de quem não queria pompas nem tiaras
(talvez porque o Rabi da Galileia não tinha uma pedra
onde encostar a cabeça
e há milhões sem pão?)
Teu sorriso puro, claro Albino,
não apagou fogueiras
mas acendeu esperanças
João Paulo Primeiro
Pastor, foste uma fímbria de aurora
e o mundo chorou quando ela não mais,
ó menino, ó pombo, ó príncipe da paz!
Inauguração da Lua
Para Elmo Elton
País Lua, Lua
mais próxima desde setembro
quando nossa rosa cósmica te flechou
Desvendada Lua, eis
e enviado pássaro trazendo
tua face oculta. E ainda pousará
o homem em tuas crateras
e regará de suor tuas carnes crestadas
antes de pegar as estrelas
Que até aí também eu chegue
só para usar mirante
Não tens céu nem fonte
nem rouxinol nem flor
Mas oh — crescente ou minguante
íntegra ou quasenvolta
nos véus da luanova —
és sempre de longe visão de beleza
e tens sido chamada de astro da noite,
fiandeira, fada, ombro
de deusa, pastora sentada
Quão mais bela não será a Terra
com seus mundos reais
seus mares profundos
suas gentes e bichos
suas gentes e bosques
as cidades vermelhas
as verdes montanhas
os halos azuis
e ainda suas
fábricas de luas
Que até aí também eu chegue
só para mirá-la. Mirar
a Terra — morada
do domador dos espaços. Salve
o homem, ó Lua
violada
A Estátua
É a hora primeira do bronze eterno
e altos discursos
e baixos relevos
celebram o herói
(seus passos seus rumos
seus gestos revéis?
o arauto que gritou
bem alto: Liberdade?)
Enquanto celebram
em loas sonoras
(enquanto deturpam
deformam maculam)
perguntas borbulham
nos lábios cerrados:
por que são crimes agora
os feitos mesmos
que te deram glória?
por que abjetos são
os que espalham os sumos
da tua pregação
e seguem teus passos
teus rumos?
por que foram buscar teu nome
teu secular renome
tua auréola — para escudo
do seu mando espúrio?
não fosse de bronze
o braço erguido conclamando
mas de carne, sangue, nervo, aço
como foi teu braço vivo
em que fria masmorra
te fariam morrer
nesta mesma hora?
O Homem e o Tempo
O tempo é este garanhão
de cabeleira em cio
que atravessa a eternidade
com seu galopar
sombrio
Francisco Carvalho
(Confrange?) a realidade:
com o homem existe
coexiste
a franja da idade
O tempo marca o homem
e o transforma e o consome
Onde está o que irrompeu das entranhas
onde por nove meses se forjou?
Ele cresceu, o tempo o esticou
Onde está o de estuante seiva e sexo
atuante, onde está o desbravador?
O jovem ser amadureceu
chegou à estação sazonada e
ainda bela porque sucessora
da primavera
... e após a plenitude
o descambar...
Onde está o outonal seguro
e sábio, de lábio ainda lúbrico e de
pensamento firme como um falo?
Entanto o homem pode
tornar a terra árida um vergel
multiplicar os pães e os peixes
os frutos e os manjares
navegar pelo cosmos indo além
de Canopus e de Antares
e matar os deuses
que em seu temor criou
Pode até mesmo — vencendo vírus
e penares — pode ampliar
a dimensão da vida
(da vida: nosso bem, alento nosso)
mas sequer tocar a asa do tempo
aí! o homem não pode
Terra sob o signo da poesia
Palácio Cruz e Sousa
Para Antônio Carlos Konder Reis
Agora eu sei que a Poesia
é todo-poderosa
e nem sair de ventre escravo
ser pobre e desprezado
enviar bilhetes mendigando pão
e soluçar na véspera da morte
impedem o canto
imorredouro
miséria, dor, injustas contingências
mais fazendo brilhar o gênio
emparedado — e seu Missal
e seus Broquéis e seus Faróis
e os clarões finais
dos Últimos Sonetos
(Agora eu sei, ó Cisne Negro
que a Dama Branca levou)
Faz oitenta anos e
como se a terra elegesse o filho máximo
seu nome é hoje nume no Paço
mor, primor arquitetônico restaurado,
Palácio rosado, róseo, rosa,
onde grandes homens têm mandado
Agora eu sei que a Poesia
é todo-poderosa
Os adeuses
I
Eu Não Verei a Aurora
Quando essa era, porém, chegar a vossos lares
Eu já terei voltado ao seio do universo.
Mas, porque vos amei — homens! — nos ares
Minha alma ficará, vibrando no meu verso.
Almeida Cousin
Quando este mundo imundo desabar
caírem as ditaduras, a ignomínia das torturas
tiver fim, os povos forem
livres e fartos, as castanhas saltarem
festivas em todos os pratos
a longa noite acabar
eu não verei a aurora
Eu não verei a aurora
e saúdo com aleluias
todos aqueles que a verão
temendo somente que ela não venha
logo resplandecente e, ao surgir,
traga ainda estigmas do século
pálidos painéis de guerras e holocaustos
sombrias manchas de mártires e déspotas
sinistras forcas esmaecendo
ainda doendo antes de tragadas
pelo esplendor da nova gênese
II
Testamento
O que me punge não é propriamente a morte
embora me revolte: é a tumba, a podridão
Quando tudo deveria ser feito para alegrar a vida
que só a vida importa
nada se omite para tornar menos triste a morte
ao ponto de fazer a terra cúmplice
do banquete macabro que eu não quero ser
A terra é para se abrir em flor e fruto
dar a espiga o cacho o grão a fonte o bosque
a terra é para nutrir, não para consumir
(Como, em verdade, definir a vida
se me transformarei em lembrança? e a eternidade
se, quando por sua vez morrerem os que me amam,
de todo me finarei? Porém o que não é inevitável
é a degradação de apodrecer)
Ora, dirão, a cremação não tarda
e poderás escolher... Pois, se assim for,
que eu arda morta como ardi em vida
por meu amor, meu sangue, meu amigo, pelo ser humano,
por um mundo melhor
Mas, por favor, não me prendam depois em nenhuma arca
seja de madeira ou de lata, nem de ouro nem de prata
Não me guardem (cruzes!)
E — já em cinzas livres e quentes —
num gesto natural de quem espalha sementes
eu seja espalhada pelos ventos
É este o meu intento, é isto só o que eu peço
Estarei toda no universo
e não serei nada