LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Profissão de
Jacques Pedreira, de João do Rio
Edição de base:
A Biblioteca Virtual Brasileira
I
Recepção íntima
— Mais um bolo?
— Obrigada. Ouvimos o Chagas. Está famoso.
— Oh! Dando apenas as últimas alcunhas do Lírico...
— Aposto que não sabe...
— A do presidente ou a do cardeal?
A Sr.ª de Melo e Sousa parou, olhando a sala. Seria
inconveniente perguntar a alcunha de alguma pessoa presente. A Sra. de Melo e
Sousa era muito bem-educada desde criança.
— Por exemplo, a do Florimundo - atalhou a menina Laura
Gomes, que não era bem-educada.
— Ah! essa é o puzzle - fez o Chagas
olhando o sujeito ao fundo.
— Por quê?
— Ora! Porque esgota a paciência dos credores e é mudo
como um peixe.
As senhoras fingiram rir. As primeiras alcunhas tinham
sido mais felizes. Era, naquele inverno, a recepção inicial da Sra. Gomes
Pedreira.
Mme. Gomes Pedreira, Malvina para os íntimos, com os seus
cinqüenta anos discretos posto que adiposos, afadigava-se em recepções. Com
dois filhos apenas, Jacques, cujo curso de Direito se completara dias antes, e
Gastão, ainda num equiparado de padres, distante, era ela quem dirigia o
serviço, preparava os bolos nas pratarias, revolucionava a pouca vontade
evidente dos criados. Podia ter uma governante. Era, porém, uma questão de
hábito. A força do hábito obrigava-a. Todos os anos invariavelmente em
Petrópolis, decidia não abrir mais a sua sala do Rio em dias certos. Em
seguida, continuava a fazer o que fizera no ano anterior. Continuar é ainda uma
das ações mais fáceis deste mundo, que a calúnia chama hostil. Assim, Malvina
descia de Petrópolis sempre numa linda manhã de abril, acompanhada por muitas
malas e por duas criadas. A sua primeira frase era invariavelmente a mesma:
— Meu Deus! que calor faz cá!
Em seguida tomava um carro. Ao chegar a sua residência de
Botafogo, vasto casarão apalacetado, presente de noivado que o marido já
hipotecara, repetia também invariavelmente:
— Santo Deus! Em que estado puseram a minha casa!
E encetava uma arrumação geral. Aborreciam-se todos os criados,
os patrões, ela principalmente, e, acabada a arrumação, a casa era cada vez
mais a mesma coisa. Ao cabo de um mês, não tendo outro meio para se enfezar e
enfezar os serviçais, marcava o dia da abertura semanal dos seus salões.
Temperamento.
Naquele ano fora tal qual. A Sra. Gomes Pedreira passara
quatro meses desesperados na cidade de verão. Como seu marido, o célebre
advogado Gomes Pedreira, consultor de várias companhias inglesas, era um fino
homem, muito relacionado, a esposa vivia numa roda-viva, sempre a aceitar e
oferecer (oferecer mais, sempre), almoços, jantares, festas a ilustres
conhecidos, quase desconhecidos e mesmo por conhecer. Gente bem cotada, eles!
Isso irritava-a. Seria decerto pior entretanto se não tivesse tantas relações.
Ao demais, os rapazes inquietavam-na. Gastão, em férias, alugara um cavalo e um
automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo), e fizera por questões de recibos
escândalo num certo campo de lawn tennis da melhor roda, em
que os freqüentadores se dividiam em dois grupos: o das trouxas e o das
assanhadas. Enquanto o último rebento agitava, de tal sorte o Piabanha, Jacques
teimava em ficar no Rio, no calor do Rio! com o plano vulgar de cair na
pândega. E fora ao exagero, levara ao próprio lar um bando de estróinas e de
mulheres alegres, a que oferecera uma ceia naturalmente alegre. Nunca na sua
vida a pobre senhora tivera emoção tão violenta como quando soube da cena...
— É um escândalo!
— Sabes lá se eram alegres? - dizia o esposo conciliante.
- Depois, simples boatos!
— Não, desta vez parto.
Desceu quatro dias antes do que era costume, modificou a
sua frase inicial da Prainha, porque ao chegar logo exclamou:
— Nunca senti tanto calor na minha vida.
E foi tudo. Em casa, como nada havia de anormal, não teve
coragem para falar a Jacques, receosa de perder uma hipotética força
moral, assim como não se resolvera a cortar em Petrópolis o cavalo, o automóvel
(ambas as conduções ao mesmo tempo) e as insolências sociais do jovem Gastão.
No fundo, muito boa senhora. Um mês depois, abria os salões. Era
aborrecidíssimo, mas sentir-se-ia diminuída se o não fizesse. Que diria o
mundo?
As recepções de Mme. Gomes Pedreira representavam de fato
várias coisas solenes. Em primeiro lugar a tradição. Há dez anos, Malvina, em
pleno outono sem fatuidade, tinha o seu dia, era das raras antes da Avenida.
Além do mais a sua casa fazia-se uma espécie de campo de honra
neutro-conservador. Lá se encontravam todos os capazes de ter vencido ou de
vencer, e os capazes se davam o ar do melhor tom. O palacete, todo num
pavimento assobradado, em meio do jardim parecia bem. Nesses dias de
importância abriam ã sociedade que os visitava, o grande salão da frente, com
janelas para a rua e muito pouco mobilado, como à espera sempre de um baile
imprevisto, o pequeno salão com um piano de cauda e algumas tapeçarias
autenticamente falsas e a casa de jantar, em estilo manuelino sobre embuia,
presente de uma associação portuguesa ao advogado. Não era bem um five-o'clock.
Nem uma sauterie. Nem uma recepção. Tinha dos três - era o dia de Mme.
Pedreira. Não raro as senhorinhas e os rapazes faziam, isto é, acabavam por
fazer umas valsas no grande, nu e encerado salão. Os sandwiches, os
doces, os bolos, os licores e os vinhos da mesa da casa de jantar desapareciam
infalivelmente. Mas na pequena sala aconchegada, servia-se o chá com um ar
distinto. Nesse dia, Malvina estava intimamente satisfeita. Os doces estavam a
ser muito gabados, o criado, um italiano novo, servia bem e havia na peça
intermediária entre a dança e a comedoria a nata das suas relações. Era como se
estivesse no Lírico, numa noite em que não se canta nenhum drama de Wagner.
Entre as senhoras de raça - é tão difícil fazer questão de
raça! - havia a Viscondessa de Muripinim, encardida relíquia da monarquia, chegada
de Cannes, onde acabava de assistir ao batizado do príncipe herdeiro, o
primeiro rebento de D. Luis, que ela conhecera menino; a Sra. de Melo e Sousa,
de uma estirpe de diplomatas, a mais inteligente dama da sociedade. E ao lado
dessas senhoras, as três Praxedes, esposa e filhas do negociante Praxedes, a
encantadora Eleonora Parckett e a baronesa sua mãe, a Viuvinha Ada Pereira,
Graça Feijó, a mais parisiense das cariocas, mulher de um banqueiro e filha de
um milionário, o casal Gomensoro, ele secretário de Legação, ela Etelvina, com
o ar de Mme. Benhe Bady, nas peças de Bataille, cantando deliciosamente e tendo
o cuidado de elevar o seu refinamento a ser falada nos jornais como Etelvina
Gomensoro, née d'Ataide; a condessa do Papa Rosalina Gomes, perfeita de
ingenuidade, uma verdadeira criança; a sempre modesta esposa do jornalista
proprietário Altamiro, com um vestido que devia ter custado no Paquin muitos
bilhetes azuis e; a fascinante Luísa Frias, um tânagra vivo, coberta de pérolas
(dizem que muitas falsas), porque é moda em Paris a pérola, assim como Gina
Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado, com corais rosas e brilhantes
para conservar o ar da 5.ª Avenida, o tom fufly, o aspecto americano; a
bela Mme. Andrade (bela há vinte anos irrevogavelmente!), a bela Mme. Gouveia
(bela há dez anos fixamente!), a bela Mme. Zurich (bela há cinco anos só
felizmente), três irmãs irreconciliáveis no predomínio da beleza. Quanta gente!
Mme. Pedreira consegue mesmo mostrar na sua sociedade a jovem esposa milionária
do Deputado Arcanjo dos Santos, rio-grandense, filha de um estancieiro
poderoso. Como tem um vestido acintosamente caro e os seus lindos olhos mostram
uma gula desdenhosa pelo meio, Alice dos Santos só encontra cordialidade
natural na Sr.ª de Melo e Sousa.
— Sou muito medrosa. Só estive em Buenos Aires.
— E em Paris?
— Vou agora, V. Exa. não imagina a vontade...
A Sra. de Melo sorri boamente.
— Não me dê excelência, por favor.
— A culpa é de meu marido, que é deputado. Em casa tudo é
excelência.
— E que tal a recepção?
— Olhe, faz-me o efeito de um teatro.
— As recepções são sempre um primeiro ato de peças que
principiam ou já acabaram quando elas começam...
Alice olha. Realmente. No salão de jantar, devorando sandwiches
as Praxedes, a mãe e as duas filhas fazem o seu flirt com
o impecável Bruno Sá e o lindo Dr. Suzel, lindo como um pajem de gravura dos
contos de Boccaccio. A Condessa Rosalina come há vinte minutos a terça parte de
um bolo, conversando com o ex-dom-juan Anselmo de Araújo, sempre petulante e
juvenil. No salão, várias meninas e vários rapazes, to dos muito bem vestidos,
com um ar de superioridade, desconfiado de que essa superioridade venha a
desaparecer de um momento para outro, valsam. É uma valsa francesa, feita para
os casinos de Nice e da Riviera, - valsa escrita decerto por maestros
divorciados. Às janelas há nomes ilustres, e neste mesmo salão, onde Graça
Feijó, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde e o distinto Gomensoro fazem a
um canto uma partida de bridge, para não perderem a linha parisiense,
ela vê, rindo com Gina Malperle, um homem magro, bem vestido, e um velho alto
de monóculo.
— Quem são?
— Não conhece? Godofredo de Alencar, homem de letras que
se dá com políticos de importância. O outro é o Barão Belfort, tipo muito
curioso, que posa para alarmar toda essa gente.
— Ricos?
— O primeiro de esperanças. O segundo solidamente, o que é
raro por cá.
A valsa cessara. Quem tocara, tendo ao lado o Chagas a
fingir que virava as páginas, fora a jovem Laura da Gama.
— Também quero eu um pouco!
— Estava tão bom.
— Tão bom o quê?
— A valsa.
— Olhe, venha cá, ainda não lhe disseram o seu apelido?
— Já.
— Aposto que não.
— Mas não admito que diga, porque digo o seu.
— Ora!
— Qual é? - interrogou Alice.
— Não indague, porque diz o seu. É um traidor!
Carlos Chagas, Charlot para todos, de idade e de profissão
indefinidas, era um elemento mundano de primeira ordem. Como estava em moda
darem-se uns aos outros alcunhas, deram-lhe o apelido de "Ganhou o
macaco". Esse apelido tinha o dom de irritá-lo. Era também a única coisa
que o irritava. Diante do olhar de Alice em que se anunciavam todas as
possibilidades e todas as vontades, ao mesmo tempo que considerava a
estancieira parlamentar pelo lado prazer, estava com o apetite de dizer ali a
insolente alcunha de cada uma das três senhoras. Calou-se porém. O buffet
renovara de apreciadores. O Dr. Justino Pedreira aparecia a conversar
com dois cavalheiros que pareciam ricos e influentes. Charlot tinha um grande
respeito por quem parecesse rico ou influente. E de um deles lera nos jornais
da oposição que ficara com trezentos contos de uma tremenda roubalheira aos
cofres do Estado. Era um homem digno de atenções. Não só dele. De toda gente. E
de outro lado, enfim fatigada de fazer o bridge, Etelvina Gomensoro, née
d'Ataíde, surgia pelo braço de seu marido, rindo como se estivessem em casa
ou fossem os dois os subprefeitos da "Sociedade onde a gente se
aborrece".
— Estão alegres?...
— Não, imaginem vocês o Comendador Praxedes...
— O escafandro? - indagou logo Charlot.
— Ah! sim, o escafandro, que quer por força aprender o bridge
com a Graça.
— Nunca aprenderá.
— Um jogo chic.
— Pois claro.
— E se nos desse o prazer de ouvi-la um pouco?
— A sua recepção está tão alegre.
— É preciso elevá-la. Nestes dias da Malvina tenho o
receio de convidar muitos artistas para que as recepções não tenham urna
importância que não devem ter e não passem o limite da intimidade. Mas quando
no nosso meio há uma grande artista!...
— É o céu que a envia.
Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, bebia a ambrosia
do elogio como uma verdadeira artista e o jovem Gomensoro, escanhoado, com o
aspecto simpático de um espanhol educado em Londres, irradiava esse mesmo
prazer. Em torno, o Feijó e a linda esposa, Mme Gomes Pedreira com a sua pesada
autoridade de dona de casa, a fascinante Luísa Frias pediam um trecho de
música. Mesmo Mme. Rosalina, Condessa Gomes, dizia com a sua irredutível
ingenuidade:
— Eu gosto tanto de música; é tão romântico!
E o Barão Belfort, o homem mais viajado do Brasil; e
Alencar, Godofredo de Alencar, que escrevia crônicas mundanas de um sabor tão
estrangeiro, pediam discretamente. Charlor bateu palmas.
Então, Etelvina, foi até o piano. Houve um silêncio. Ela
ia cantar numa toada de sonho, os versos de Sully. E a sua frase surgiu como um
bordado de ouro na renda da música:
Quand on
est sous l'enchantement
D'une
faveur d'amour nouvelle
On s'en
défendrait vainement
Tout le
révèle.
Neste momento, com um passo macio e seguro, a fronte lisa
de moço, os cabelos negros tão passados de escova e concreto que pareciam de
ônix, o frack de uma linha impecável, a gravata branca com
uma pérola escura, surgiu à porta da sala de jantar um jovem. Mme de Melo e
Sousa acenou-lhe com o leque. Ele adiantou-se devagar até o canapé em que a
ilustre dama conversava com a admirada Alice dos Santos. As suas mãos largas e
bem tratadas estenderam-se para ambas num gesto natural de força íntima. Depois
sentou-se entre as duas.
— Já se conheciam? - indagou Mm' de Melo e Sousa.
— Desde anteontem.
— Foi no Lírico.
— Psiu, falem baixo...
A voz de Etelvina enchia a sala d'amor:
Comme
fuit l'or entre les doigts
Le trop
plem du bonheur qu'on sème
Par le
regard, le pas, la voix
Crie: Elle m'aime.
A Melo e Sousa sussurrou:
— E eu que antegozava o prazer de apresentá-lo! Eis
Jacques Pedreira, um menino de maus costumes!
Alice dos Santos sorria. A ave do paraíso que pousava nos
seus cabelos, graças a uma modista inimiga dos horizontes, arfava. E Jacques
sentado entre o outono e o verão, cumprimentava, com um alegre riso os seus
amigos; o Barão Belfort, Alencar, que dera uma tão linda nota do curso que ele
não fizera e a bela Mme. Gouveia, e a belíssima Mme. Andrade, e Graça, como que
abstrata...
Nas recepções de Mme Pedreira, a senhora artista era um
dos números certos. Todos os números eram mais ou menos certos. Havia a
chegada, as conversas gerais de uma desoladora e importante insignificância, as
conversas nos pequenos grupos em que seriamente as damas conversavam ou com os
próprios flirts ou dos flirts alheios, algumas valsas, passeios
aos bolos, um número de música e um número de literatura, em geral versos. O
número de música dava ensejo a conversarem baixo d'outra cousa, negócios, mal
do próximo. O literário era um sinal de partida. Etelvina Gomensoro, née d'Ataide,
era deliciosa, porém.
La vie
est bonne, on la bénit
On rend
justice à la nature!
Uma prolongada salva de palmas. A cantora fez um
cumprimento quase plongeon, como se estivesse em Rambouillet, diante do
Imperador. Era admirável. Um movimento geral estabeleceu-se que parecia de
partida em parte. Malvina Pedreira deu com seu filho.
— Até que enfim! onde esteve até agora?
— Dormindo, mamã.
— Vejam vocês. Um homem de dezoito anos dormindo
até às cinco da tarde!
— Perdão, mamã, até às duas.
— É que entra pela manhã em casa. Um bacharel!
— Desde anteontem.
— Verdade é que o barão diz que não tens culpa alguma...
Ah! minha querida, veja se me dá juízo ao Jacques...
E partiu solene. Alice dos Santos estava de pé. A ilustre
Melo e Sousa sorriu.
— Esta Malvina acaba nomeando-me governante moral da
casa... Jacques estava sério, com as mãos nos bolsos, sério e confidencial.
— A mãe, não tem nada. O velho é que é. Imaginem! Quer que
eu vá trabalhar para o consultório! Eu! Já tem lá uma escrivaninha.
— Mas então, advogado...
— Não tenho culpa nenhuma... Então, D. Alice, como vai de
cidade?
— Se nos levasse a beber um cálice do Porto?
— Enquanto é tempo.
Alice precipitou-se. Mme. de Melo e Sousa acompanhou-os a
querer desvendar a significação da frase, porque ela tinha de fato, ou podia
ter três significações. Enquanto é tempo porque a recepção ia acabar. Enquanto
é tempo porque talvez não houvesse mais nem migalha. Enquanto é tempo de
escapar aos versos do Dr. Inocêncio Guedes, rico político de Goiás, que ia
decerto recitar o seu fatal Smart-Ball.
Smart-Ball, epíteto galante de uma sociedade...
Na sala de jantar parecia, de resto, ter passado a
possibilidade de um batalhão argentino. Jacques que se olhara num dos espelhos,
à exclamação pesarosa de Alice, não teve a menor contrariedade. Enfiou as mãos
nos bolsos da calça e disse:
— Não tem nada, acompanhem-me; deve haver na outra sala.
Entraram na sala de jantar de todos os dias, modestíssima,
dando para a copa e para um terraço, de onde se debruçavam também as cozinhas.
Mme. de Melo e Sousa gozava aquele aplomb do seu querido
Jacques. Alice parecia acanhada. E o querido Jacques bateu palmas, mandou vir o
vinho, marmelada.
— Se tomassem um caldo? Só aturar uma recepção inteira da
mamã! O Barão Belfort diz que o prepara para não sair do purgatório nunca mais.
- Depois pegando a mão de Alice: - Bonitos esses brilhantes. São de cá?
— São.
— Jóias compram-se em Paris. Tomam o caldo?
Nenhuma quis o caldo. A milionária estancieira
aproximou-se do terraço.
— Está a tarde bonita.
— Está - fez Jacques, que aborrecia a poesia.
— Que é aquilo?
— É um telheiro, que serve de garage. O Jesuíno...
— Que Jesuíno?
— O velho. Tem só um automóvel, aliás sempre em conserto.
Mas é bonito. Quer vê-lo?
Era extravagante acabar aquela recepção no quintal. Mme.
de Melo e Sousa estava seduzida. As duas damas desceram, erguendo muito os
vestidos. Jacques, absolutamente sério, mostrou o telheiro e o automóvel, como
um jovem lord inglês mostraria os seus domínios, parques e
castelos. Em seguida continuou:
— A senhora é do Rio Grande. Não há árvores grandes por
lá, pois não?
— Quem lhe disse?
— Mas não há uma jaqueira, uma grande mangueira...
— A jaqueira vejo eu - interrompeu a notável Melo e Sousa.
— É porque a mangueira fica ao fundo. Tem até um balouço.
— Para você?
— Não. Eu faço barra fixa, paralelas.
Realmente, ao fundo, havia uma vasta mangueira, com um
balouço. Os três olharam para a árvore com poderosa admiração. Parecia que
nenhum enfrentara assim de perto com uma espécie botânica tão grande. Depois,
Alice soltou uma gargalhada.
— De que ri?
— Rio, porque gostaria de baloiçar-me. É uma idéia louca.
— Pois trepe.
— Perdoe V. Exa. como diz meu marido, mas já, seria
inconveniente.
— Ora menina, por quê? É só imaginar que a recepção da
Malvina é uma garden party.
— D. Argemira é capaz de imaginar o dia de mamã até um
baile de máscaras.
— Jacques, por quem é, sou a melhor amiga de sua mãe.
— Por isso mesmo...
Com autoridade sentou Alice no baloiço, arrumou-lhe os
vestidos, aliás inconvenientes para semelhante exercício e impulsionou o
balanço. A rio-grandense ardente dava gritinhos, não de medo - uma
rio-grandense nunca tem medo - mas de prazer. Argemira de Melo e Sousa colocara
o seu face-à~main para admirar melhor os vôos do lindo
pássaro. Jacques não parecia ter feito outra cousa na sua vida senão empurrar
baloiços. Era magistral. E, de repente, diante deles, precedidos de um criado
em mangas de camisa, cujo sorriso parecia o de um agente secreto, surgiram,
Arcanjo, marido e deputado, e Mme. Pedreira, mãe e anfitriã.
D. Malvina tinha já o sorriso verde da máxima
contrariedade:
— Com que então aqui?
— Os três!
— E nós a procurá-los. O Dr. Arcanjo estava
assustadíssimo. Eu e seu pai também.
— Oh! - conciliou Mme. de Melo e Sousa - nem pensávamos
que davam pela nossa falta. O Inocêncio ia recitar...
— Recitou, recitou todo o Smart-Ball.
— É a sexta vez que ouço aquele trabalho - atalhou
Arcanjo. - Muito mimoso.
— Imensamente. E estamos a procurar D. Alice os dois,
porque não há mais ninguém.
— Que me dizes! Acabado o dia? Então viva o dia!
— Valha-me Deus! Uma criança este meu filho. Que diz,
doutor, não é da minha opinião?
Arcanjo, habituado ao Congresso, sem saber a opinião da
venerável senhora, curvou-se:
— Sou da opinião de V. Exa..
Fazia como na Câmara. Argemira riu. O frio desapareceu.
— Mas não fiquemos aqui. Levemos D. Alice até à porta...
Jacques deu o braço a Alice. Viu que devia dar o outro a
Argemira. Seguiu com as duas damas, pensando que seu pai o esperava para uma
hora de ordens e conselhos. Até perdia o prazer de ser amável!... E enquanto
pela aléia do jardim assim conduzia duas damas, sua mãe, atrás, falava
seriamente com o Deputado Arcanjo.
— Cinco horas, doutor. Quase noite. Como fatigam as
recepções! Ah! se pudesse ver-me livre desse trabalho!
— V. Exa. tem razão, realmente o convívio social instrui,
mas estafa...
II
Um jovem contemporâneo
Jacques entrou nos aposentos do seu pai, um pouco
aborrecido. O importante consultor de várias companhias estrangeiras, pelas
contingências de uma vida de advocacia forçadamente administrativa,
acostumara-se a dobrar o temperamento, a fingir, a representar. A vida é um
palco, onde cada um representa o seu papel, disse Shakspeare. Depois do
transformismo, moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é um
palco, onde cada um representa seus papéis. Justino representava alguns - nem
sempre gloriosos, é de convir, mas com tal elegância, um brilho tão particular,
que só merecia aplausos. Chamavam-no o "camaleão dos ministérios";
ninguém poderia afirmar numa questão de que lado estaria sempre advogado assim
admirável. Mas, Justino fazia para ser de qualquer jeito de uma das partes e
era de um cepticismo fatalista, absolutamente oriental, nas decisões graves da
vida. O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias vezes ao
dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu "eu" - que era no fundo
bom, inteligente e conservador. O secreto e acovardado Justino íntimo tornara-se
apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no
drama, como os freqüentadores de circo para os palhaços em situações difíceis.
— Vamos a ver como te sais deste negócio!
— Queres apostar?
— Tens muita sorte.
Esses curtos diálogos entre o seu verdadeiro
"eu" e os outros Justinos para uso externo, deixavam-no esperançado e
arrasado nos graves momentos de protestos de letras e de agonienta falta de
dinheiro. Enquanto não lhe faltasse a estima daquele espectador, seria amável e
vencedor. E sorria. Quantos, como ele, por este mundo? Sorria e continuava a
representar, mesmo em casa, para a família, mesmo só. Apenas, como tivera
sempre a preocupação dos papéis simpáticos, e como não havia nem tempo para
perder, nem muita confiança em inspirar terror, organizara um pai misto de peça
romântica e de comédia moderna. Os seus aposentos eram de uma simplicidade
monacal, o leito de ferro, onde repousava das vigílias estudiosas, mais
desolador que um catre d'hospital; e nas paredes nuas só se via a litografia de
Nossa Senhora da Conceição, em caminho do céu, atestando uma crença, tanto
maior quanto não a possuía, senão para um efeito social, mundano e prático.
Quando Jacques entrou, o seu ilustre progenitor estava
ainda com a sobrecasaca da recepção, sentado, a escrever. Nesse dia, por
felicidade, fazia-se completamente pai comédia moderna.
— Boa tarde, caro colega e filho!
— O pai quer falar-me?
— Em teu interesse.
— E o escritório?
— O escritório e tudo mais. Senta-te. Fumas um cigarro?
Abriu a cigarreira, serviu-se, guardou a cigarreira,
estirou-se na poltrona.
— Meu caro Jacques, vejo que estás aborrecido. Eu também.
Nada mais fatigante do que estas cenas de conselhos entre pai e filho. Teu avô
passava-me um carão, de oito em oito dias e nunca me falou senão zangado. Para
consentir que eu fizesse a barba - o que para ele parecia um insulto aos seus
direitos paternos, foi necessária uma verdadeira campanha diplomática. Mas isso
era no tempo antigo. Hoje, os pais não precisam dar consentimento para fazer a
barba, porque nunca vêem barba nos filhos.
— É um uso americano...
— Que acho, aliás, muito asseado. Entretanto, como ainda
resta, por um velho preconceito, aos pais, a boa vontade de guiar os filhos,
não pude deixar de escolher esta tarde para conversarmos um pouco.
Houve um silêncio. Justino, acariciando a barba grisalha,
olhava o seu pequeno, com um secreto prazer de tê-lo feito tão bonito e talvez
uma certa inveja daquela mocidade despreocupada ainda das necessidades da vida.
Jacques continuava sério, em pé, brincando com a espátula de cortar papel.
— És uma criança, meu filho. Não podes ter queixa de mim.
Não sei se estás educado, mas fiz o possível para te fazer bacharel, como toda
gente. Absoluta liberdade, contas pagas, empenhos, professores em aulas
particulares. Enfim, tudo. Mas nesta facilidade de vida, talvez nunca te
afigurasse a triste verdade de que é preciso ganhá-la. Aqui estou eu, com
cinqüenta anos, a esclerose fatal, obrigado a viver com desperdício, exatamente
porque desse desperdício vem a possibilidade de negócios grandes. E sem vintém.
Sim, meu caro Jacques, sem vintém. É preciso que te habitues a triste idéia de
que, morrendo eu amanhã, estás com tua mãe e teu irmão, absolutamente sem
recursos.
— O pai a fazer testamento!
— Não senhor, estou apenas a falar sério. De resto, a
maioria dos teus companheiros está nas mesmas condições, em que estás. São
raras as nossas grandes fortunas. São raras, até, as pequenas sólidas.
Atravessamos um grande momento curioso, e vocês não imaginam como custa ser o
maquinista, um dos maquinistas da mágica. É preciso trabalhar. Mesmo
milionário, dar-te-ia este conselho. Não o sendo, acrescento que é
imprescindível, desde já, para te habituares, antes de uma perda grave. Um
homem não é homem, enquanto não ganha.
— Ganhar como? - fez Jacques sucumbido.
— De qualquer forma. A questão é ganhar. As sociedades
fazem cada vez menos caso dos meios. Metade dos cavalheiros que estiveram cá,
hoje, é dessa opinião... De resto, não seria mesmo bonito para um homem, ser
sustentado por seu pai, toda vida.
— Ah! isso não.
— Já vês...
— Mas como, papá?
— Oh! ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma.
Tudo é dinheiro. A questão é preparar o espírito, é encaminhá-lo para o ponto
prático, e o ponto prático para um rapaz de boa sociedade é pensar sempre que
precisa conservar uma série de confortos, de aparência insignificantes quando
os temos, mas enormes, quando lhes sentimos a falta. Vamos a saber: não queres
advogar?
Jacques sorriu:
— O pai sabe bem que não sei. Foi você mesmo quem disse
que eu de Direito sei menos que o Gastão.
— Sabe-se sempre o que nos vai ser útil.
— Depois, o escritório, a escrivaninha, o foro, com aquela
poeira...
De novo a frieza inicial voltou. Justino tornou, um pouco seca
a voz:
— Creio que te formaste para fazer alguma cousa.
— Não pai, não se zangue. Tenho, quer que lhe confesse?
medo de começar.
— Pois esse medo passará. Guiar-te-ei. As pequenas causas
- terei pequenas causas? - serão tuas. Depois a escrivaninha não é
escrivaninha, E um lindo bureau-ministre.
— Então, pai, vou amanhã...
Justino ergueu-se, mostrando uma satisfação que talvez não
tivesse.
— Nota que não te quero forçar a ser advogado. Com uma
carta de bacharel, por enquanto, ainda é possível ser várias cousas neste país.
Tens diante de ti, o mundo dos negócios, o funcionarismo, a jurisprudência, a
política. O meu desejo é lançar-te na vida, não como o pequeno do Pedreira, mas
como o filho formado do seu pai, agindo por conta própria e ainda com uma
defesa não só de pai como de amigo prático. E preciso ser homem. Foste menino
até hoje. Vamos a ver o que fazes, d'agora em diante. Até amanhã.
— Até amanhã.
— A uma da tarde, no escritório. Tu hoje acordaste mais
tarde... - Depois, sorrindo, como Jacques já estivesse à porta: - olha, aqui
tens vários convites com o teu nome, da recepção do Chili, do baile do
presidente da República e do decantado baile que o Itamarati oferece aos
oficiais portugueses. Tens mais um cartão permanente para o recinto da Câmara,
dois cartões de cinematógrafos. Estas lembranças pessoais, deu-mas o Godofredo
de Alencar, que é muito amigo dos governos. Sê também amigo dos governos.
Jacques recebeu os convites com uma certa emoção. Afinal,
a conversa não fora tão aborrecida. Ele sentia-se bem um personagem, alguém...
O pai tornou:
— Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto
talvez não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios de
arranjar uma fortuna. E basta de conversa. Caro colega e filho, até ao
escritório.
Jacques saiu. Era só atravessar a sala de jantar e estava
no seu quarto. Consultou o relógio e viu que eram seis e meia. Os criados
punham a mesa modesta do jantar. Um sentimento complexo agitava-o, sentimento
que era de alegria e era de um terrível e assustado desalento. Tinha vontade de
chorar, como uma criança. Chegar tão cedo ao marco em que já se não é bem da
família! Amanhã seria um homem, uma individualidade à parte, agindo por conta
própria, com a gravíssima responsabilidade das suas ações a recair no dia
seguinte. Estava farto de saber a situação financeira do seu pai. Era a de três
quartas partes da sua sociedade, um triste bluff que se
tornara norma angustiosa. E entretanto, vinha-lhe um medo louco de encarar a
necessidade no dia seguinte.
Se Justino morresse? Sim, se morresse... Em que estado
ficariam, em que estado ficaria ele? Era preciso atirar-se, trabalhar, ter uma
profissão, que lhe desse a troco de um certo esforço quotidiano o pão do mês.
Oh! era miserável, era humilhante. E era fatal! Tinha que fazer como toda
gente. E vinham-lhe à memória vivas impressões de vários infelizes. O Dória, o
rico Dória engenheiro, que, morrendo o pai, fora especulador da praça, zangão,
dono de hotel quebrado e sempre a querer aproximar-se do meio, que, impiedoso,
o afastara, era intendente de um milionário, ganhando comissões das cocottes
e dos vendedores - só com a preguiça de seguir a sua profissão; o
Aragão, que montara um club de jogo, com egoísmo e roubara no baccara,,
o Adalberto... De um momento para outro podia ficar assim, e ele que se
sentia tão fraco d'alma, tão incapaz de reagir!
Fechou-se por dentro, no quarto, acendeu a luz, olhou-se
ao espelho. A tristeza tornava-lhe ainda mais bonito o lábio sensual, a boca de
uma frescura úmida, a pele lisa e morena. Diante de um físico tão agradável,
aproximou mais o rosto, a ver um sinal ao pescoço. E lembrou-se dos olhos de
Alice dos Santos, dos lábios de Alice dos Santos, da proteção que Argemira
parecia querer dar aos avanços da Alice dos Santos. Ainda não tivera uma amante
senhora casada. Quanta coisa ainda não fizera na vida! Mas havia de fazer,
tinha o desejo de fazer, desde que elas fossem agradáveis e pouco trabalhosas.
Sorriu para o espelho um sorriso tentador. Afinal tinha sorte, sempre tivera
sorte e havia de ter sorte. O Dória não fora feliz porque não tinha de ser.
Também há mendigos que pegam caiporismo. No primeiro ano visitara com os
colegas uma quiromante que lhe prognosticara muitos amores e muitas viagens.
Como ter amores e fazer viagens sem dinheiro?
Começou a despir-se vagarosamente. Amores! A Alice talvez.
Como? A Alice e outras muitas, a Malperle por exemplo, de quem se falava tanto,
ou a mãe da Eleonora que fingia um desmaio sempre que se achava a sós com um
rapaz? O apetite da vida voltava-lhe diante da própria imagem a mover-se no
espelho. Sempre obtivera tudo sem esforço e a sorrir.
Havia de continuar. Acendeu um cigarro, soprou o fumo,
assobiou um pouco uma copia de café-cantante. Deitou-se a fio comprido na cama.
Ah! se soubesse o futuro! E para quê, de resto? Saber é uma necessidade muito
relativa. É possível passar perfeitamente sem saber uma porção de coisas. Saber
teatro, por exemplo. Para quê? De teatro, Jacques tinha a noção de que as
companhias de línguas estrangeiras eram de primeira ordem e as mulheres das
boas ou não. As peças de cujos autores ignorava os nomes, caceteavam-no assaz.
Entretinha-se, durante o espetáculo, a comparar a elegância das atrizes com as
das suas conhecidas e a verificar o mau alfaiate dos atores. M. Le Bargy
foi-lhe uma dolorosa desilusão. E literatura? Jacques nunca na sua vida lera
uma novela, um romance. Nem Paulo de Kock, nem o Conde de Monte-Cristo. Uma
indiferença integral afastava-o dos jornais. Mesmo os versos imorais, as
leituras ardentes que os meninos fazem sempre com o prazer de atiçar um
incêndio em plena violência, não o tentaram. Ao demais, os profissionais do
talento não lhe agradavam. Só admitiu desde criança inteligência nos que a sua
roda permitia e decretava fossem inteligentes.
Este feitio não o obstou de ser precoce em tudo, por tudo
lhe ter sido fácil. Aos oito anos, como nesse tempo sua mãe ainda tinha ilusões
de reagir contra a gordura, foi para um colégio de padres. Aos dez, nas férias
do Carnaval perdeu-se com o criado num baile de Carnaval da mais baixa classe.
E como D. Malvina o recebesse em pranto disse:
— Não te assustes. Dancei com umas mulheres pintadas. Elas
gostaram. Até pagaram cerveja para mim, que não era tolo para gastar o meu
dinheiro.
No ano seguinte, os padres bem pagos e difíceis de
expulsar os alunos, queixaram-se do seu mau comportamento. Fumava, arremedava
os frades professores, não estudava. Jacques não voltou aos padres e fez um curso
de preparatórios em externato, conseguindo o assombro, aliás comum, de ser
aprovado numa série de matérias que ignorava.
Seu pai não tinha tempo de fiscalizar a educação, mas
pagava sem hesitar os melhores professores e arranjava a valer cartas de empenho
no fim do ano. Era mesmo a época do ano, em que senhor de posição tão
importante dava para reconhecer velhos amigos de rapaziada, que a sorte fixara
em simples examinadores. Jacques, com conta aberta no alfaiate, no camiseiro,
no sapateiro, julgava os professores também fornecedores de atestados, mas não
era sem um certo sangue-frio superior que colava provas escritas e dizia
inconseqüências nas provas orais. Ficou célebre o seu exame de química em que
não sabendo quem era Lavoisiert e ignorando a composição da água
passou com simplesmente. Ninguém falou também do seu exame de francês. Aliás,
Jacques sabia falar francês. Foi o único exame em que foi reprovado. Mas
aproveitou a segunda época, e nunca disse obrigado aos examinadores como não
dizia ao sapateiro. Quando passou para a escola de Direito a fazer o primeiro
ano, uma carta que escrevesse devia ter alguns erros, mesmo na língua comum
geralmente falada entre nós e que, por excesso de reconhecimento histórico,
ainda denominamos português...
Os preparatórios deixaram-lhe uma sensação de igualdade
inexplicável e que no fundo sempre lhe pareceu desagradável rebaixamento. Havia
uma porção de rapazes de má roupa, sem vergonha pobres, e que se permitiam,
entretanto, fazer versos, usar pince-nez e não lhe ligar a menor
importância. Quando os professores falavam - (de modo geral sempre) - da
desmoralização do ensino, da inferioridade da geração, esses rapazes tinham a
impertinência de olhá-lo e ele não podia deixar de ficar contrariado, porque
esses sujeitinhos é que lhe pareciam inferiores. Os últimos tempos passara-os
mesmo a jogar football, jogo em moda que as senhorinhas aclamavam aos
domingos em Paissandu. Foi sob essa brilhante vocação esportiva, que se
matriculou para fazer o primeiro ano. O primeiro ano constava de duas matérias:
Filosofia de Direito e Direito Romano. Oito dias antes dos exames, começou de
ler umas apostilhas da segunda matéria, veneráveis apostilhas que representavam
o saber desse monumento social em dez gerações de bacharéis. Em Filosofia
copiou a prova escrita e na oral, diante de um lente grosso e sábio, assegurou:
— A Filosofia, esse verdadeiro pão do espírito...
O professor abriu numa gargalhada homérica. E ainda
sacolejado de riso:
— Continue, muito bem... continue, menino...
Não continuou por ser susceptível ao ridículo. Mas fez o
curso inteiro com a mesma profundez, cada vez menos culpado de ser bacharel.
Não que não tivesse inteligência para aprender o que tanta gente sabe nem
sempre para bom uso: mas porque era desnecessário. Para que cansar se o
resultado seria o mesmo? Instintivamente economizava-se.
O seu tempo de acadêmico passara-o pois assim. Acordava,
ia para o football ou fazia ginástica sueca no quarto. Em seguida
iniciava a sua toilette com cuidado. A escolha do fato, da camisa e da
gravata correspondente, punha-o muita vez perplexo. Estas coisas absorviam a
sua atenção. Conhecia gravatas ao longe.
— Esta gravata não é daqui?
— Não.
— É do Doucet. Estavam em moda o ano passado.
Em fornecedores o seu conhecimento era doutoral. A menor
alteração no corte dos fracks uma insignificante mudança d'aba nos
chapéus de Londres ou da Itália tinham nele um fiel. As cores das roupas de
baixo também. E a maneira de estar conforme manda a educação dos salões -
educação e maneiras que variam todos os anos. Ultimamente usava camisetas
irisadas de morticores imprevistas, abandonando nas gravatas os tons
monocromos, e nunca sentara para jantar sem estar de smoking e ou de
casaca. Um homem quando tem apetite, pode jantar até tendo apenas por fato a
aliança do casamento. Ele, porém, achava aquilo necessidade imprescindível, e
mesmo em Teresópolis, num matagal horrendo de cura, aparecia sempre, com
espanto do hotel, de smoking e sapatos de verniz.
Apó5 a toilette, ia almoçar e saía. Às
vezes passava pela escola. Raramente. Empregava o tempo em namoros e ftirts.
Nunca desejara. Era desejado. Aos quatorze anos uma criada portuguesa
virgem agarra-o com uma violência de Tântalo se encontrasse um jarro
d'água fresca à mão. Depois era sempre solicitado e achava isso meio
aborrecido. Saía à hora em que as ruas de Botafogo, principalmente as
transversais deixam ver tanta coisa. Aos dezesseis anos, indo visitar o Barão
Belfort, que por sinal viajava Pela Rússia, encetou através do muro um
escandaloso namoro com a Ada Pais, a ponto de fazê-la pular a separação de
pedra e vir ler romances na biblioteca do barão. Essa ligação semivirgem
dera-lhe de resto a consideração de Belfort e do literato Godofredo de Alencar.
O barão era um perverso, cuja amizade não deixava de ser corrosiva. Godofredo
muito hábil sob aqueles ares fatigados, trabalhava no desejo de ser de uma
roda, a que aspirava por uma multiforme e vaga ambição. Troçava de todos,
elogiava a todos e principalmente o fraco de cada um. Para Jacques, como para
outros rapazes tinha sempre dessas frases que ficam:
— Estavas ontem com uma linda bengala.
Aos demais dizia-se amigo dos políticos, o que aguçava
sobremaneira o interesse dos homens de negócios, a maior ou talvez a única
aristocracia do momento.
Jacques tinha pelo barão e pelo homem de letras prático
uma sincera admiração. E no chá, um chá elegante, onde parava desde as quatro
da tarde a ouvir o Dr. Suzel, o Belmiro Leão a cumprimentar as senhoras e a
fazer sinais às cocottes não perdia ocasião de citá-los. As seis voltava
a casa. Smoking, jantar. A noite, o music hall, em que aparecem
como numa exposição as melhores mulheres de várias casas especialistas. A sua
memória, mais virgem que a criada portuguesa e Ada Pais, gravou com facilidade
as cançonetas e a algaravia desse pessoal pintado e abrilhantado. Passava, como
a maior parte dos seus amigos por trás dos camarotes, onde as damas se
pavoneavam. Nos intervalos tomava umas bebidas, convidado pelos endinheirados
da semana. Porque, cada semana, havia nessa sociedade assaz misturada de
mulheres, michés, jogadores, gigolos, um sujeito que aparecia com
muito dinheiro. Godofredo e o barão apresentaram-lhe uma vez aí o jovem
construtor Jorge de Araújo. A época era de resto do aparecimento de jovens
construtores, jovens motoristas e velhas manicuras. Jorge de Araújo ficara rico
num mundo de casas mandadas fazer pelo governo e tinha a dupla mania dos
automóveis e das mulheres. Belfort fizera colocar num dos automóveis do
construtor esta divisa heróica:
— Esmago todo mundo e ninguém me vê.
Jorge via tanto no barão como em Godofredo duas utilidades
para a continuação dos seus negócios. Viu decerto em Jacques uma outra, posto
que obscura. E Jacques, com a gula da mocidade pelo prazer, viu nele um meio de
divertir-se sem pagar. Em pouco tempo era amigo inseparável, aproveitando os
automóveis e a intimidade das mulheres. Datou daí, na função de menino bonito,
a sua ligação com a Lina d'Ambre, italiana de cabelo oxigenado, terrivelmente
ciumenta. Para ver se podia acompanhá-la a casa, Jacques ia a um dos mil e um clubs
do jogo onde o baccara infernal sustenta um batalhão de patifes
amáveis.
Para passar o tempo e ver se ganhava, jogou. A mesada era
escassa. O pai dava-lhe roupas, mas não dinheiro. Para arranjar dinheiro, pediu
aos fornecedores que forjassem fornecimentos falsos. Depois pediu a Jorge, ao
barão. Godofredo, por precaução pedira-lhe antes do ataque uma pequena quantia.
Enfim, uma noite a Lina d'Ambre, votada ao sacrifício romântico, exigiu que lhe
fosse empenhar um dos anéis e ficasse com o dinheiro. Jacques hesitou, com
frieza, e foi.
Dias depois, na mesa redonda da pension d'artistes, a
Lina, num calão indizível, atirou-lhe o epíteto de explorador feminino. Como
estavam na sopa, Jacques atirou-lhe com um prato, que felizmente só atingiu a
cabeleira de um loiro não veneziano, mas inverossímil. A mulher teve um ataque,
depois de retribuir a violência com idêntica remessa de sopa. Furioso, Jacques
saiu com o smoking sujo, para nunca mais voltar. Lina mandou-lhe cartas
perdidas de amor. A sopa reacendera-lhe a chama. E, como tal chama leva a
excessos, Lina, depois de dizer a toda gente que fora explorada, apresentou-se
no escritório de Justino a mostrar a cautela e pedir providências. O Dr.
Justino, naquela conjuntura, foi de grande gentileza e calma. Pagou, deu à
mulher uma gratificação generosa e teve com o filho esse primeiro e lamentável
encontro em que entre pai e filho aparece a miséria sexual, o escândalo mulher,
aliás tão apreciado por filhos, pais e mesmo avôs.
— O senhor envergonhou-me. Um homem na sua idade não paga
o amor. Perfeitamente. Na sua idade nunca paguei. Reservei-me para depois. Há
sempre tempo. Mas receber!
— Está enganado, pai. Pergunte a Jorge, pergunte ao barão.
Vou quebrar a cara àquela tipa!
— O senhor não vai quebrar a cara a ninguém. O senhor vai
é não fazer mais isso, porque está arriscado a perder o meu auxílio. E a
propósito: descontarei na sua mesada a importância da cautela. Quem tem vícios
não se fia nos outros.
Desde então, Jacques, a quem a inexorável D. Malvina fazia
um sermão de moral semanalmente, para lhe dar dinheiro, foi acentuando esse
afastamento progressivo da família em favor da rua, a que o eufemismo social
denomina fazer-se homem. Jacques fazia-se homem a todo pano, vertiginosamente.
Passava dias sem ver o pai. Chegava pela manhã. Não foi a Petrópolis, durante o
verão e, segundo informações da vizinhança, dera uma ceia a damas alegres na
própria residência da família. Mas, ainda assim, agindo com inteira liberdade, não
se sentia senhor das próprias ações, era feliz e descontente exatamente por
isso. Ao recordar a breve vida, estirado na cama, sentia que as palavras
cordiais de seu pai tinham cortado as últimas amarras. Ia ensaiar a vida só,
apenas comboiado durante algum tempo. No dia seguinte, à uma da tarde, estaria
num escritório a ver autos, a folhear o código...
A idéia pareceu-lhe tão intolerável, que se ergueu de um
pulo, olhou-se de novo ao espelho a ver se não teria mudado. E achou-se
perfeitamente agradável.
Então, meticulosamente, vestiu-se. Uma semana com tanta
coisa a tratar! O circuito de automóveis, um piquenique noturno na Gruta de
Paulo e Virgínia com a esposa do ministro de Honduras, e três ou
quatro senhoras com os respectivos responsáveis, a festa dos animais oferecida
pelo barão! Trabalhar quando a vida é tão bonita! E ia jantar em casa, ia
talvez ao teatro com a família, voltaria cedo, para no dia seguinte, à uma
hora...
O criado veio chamá-lo. Era o jantar. Saiu. O pai de
casaca e de pé lia um jornal. Já passava das oito...
— Então, pensaste?
— Não, vesti-me.
— A ocasião do presidente, do baile presidencial é
excelente.
— Ora o baile do presidente? - fez Jacques, que sempre
ouvira seu pai ridicularizar todas as autoridades constituídas deste país.
— Farás o que entenderes.
Nesse momento, com um vestido de rendas creme sobre fundo
de liberty preto, decotada e irritada, Mme. Malvina entrou.
Sempre que ia ao teatro - e era dia de assinatura do Lírico - retardava o
jantar para preparar-se antes. Seria impossível depois com a sua crescente
gordura. Mas assim o que se tornava superior às suas forças era jantar, apesar
de um razoável apetite. Então, D. Malvina fazia ato de presença, de rosto
fechado.
— Por que jantamos cada vez mais tarde?
— Porque é impossível jantarmos mais cedo.
— É o Lohengrine hoje?
— É.
— Com aquele dueto que não acaba mais. Você vai?
Jacques não teve tempo de responder. A campainha retinira.
O criado chegara.
— O Dr. Jorge, de automóvel, que pergunta se o senhor
esqueceu.
— Ah! é verdade. E eu que prometera jantar com o Jorge!
— Onde?
— No Leme. Está aí?
— Está à espera no automóvel...
— O papá dá licença?
D. Malvina carregou o sobrecenho. As roscas do seu pescoço
tornaram-se vermelhas. Mas Justino sorria complacente. Era um pai comédia
moderna, como a maioria dos pais modernos. Aquele filho formado e formoso, que
parecia Perseu, agradava-lhe. Depois em Jorge o velho advogado farejava graves
coisas futuras a defender.
Jacques precipitou-se para a varanda, correu no jardim.
Nem já lembrava o dia seguinte. Jorge guiava. Ao lado, Godofredo estava de veston
azul, e dentro do automóvel fechado havia quatro mulheres.
— Então isto faz-se?
— Estava tratando da vida.
— Tu?
Um estrepitoso riso rompeu. Jacques meteu-se entre as
damas. O automóvel deslizou, fugiu pela Avenida, que era um esplendor de luzes.
E enquanto o filho seguia para o prazer, e a esposa arfava
irritada por ter de ir ao Lírico, o Dr. Justino Pedreira, lendo o jornal e
pensando noutra cousa, fez um gesto ao criado para que lhe desse de jantar.
III
Exercício preliminar
Precisamente, Jacques não foi muito pontual. A
pontualidade é talvez um erro para quem almeja valorizar-se. É crime quando a
obrigação não nos parece agradável. Os jovens que se revelam lúcidos
ganhadores, chegam sempre antes da hora, no dia marcado. Prova de sofreguidão
pueril. Às vezes nada se adianta com a pressa. Jacques apareceu no escritório,
quatro ou cinco dias depois, - às três e meia de uma linda tarde. Como o
escritório ficava na Rua do Rosário, nenhum dos seus transeuntes desconfiaria
da beleza do céu. A estreita rua, atravancada com carroções, o calçamento
desigual e engordurado, uma multidão de cocheiros seminus, de caixeiros, em mangas
de camisa, e cidadãos apressados, a contar dinheiro, a discutir papéis
estampilhados ou de pasta debaixo do braço - não dava tempo para pensar na
beleza, mesmo na beleza de uma tarde linda. Era a rua dos armazéns de
comestíveis por atacado e dos consultórios de advocacia. Jacques só aparecia lá
para pedir dinheiro ao pai, que dava o nome ao consultório e trabalhava com
outros colegas. O pai, nada agradado com tais visitas, aconselhara o continuo,
um velho macróbio, cor de castanha, chamado André, a dizer a Jacques que não
estava. O filho chegava e de cá de baixo:
— O pai?
André esticava o braço magro e fazia um gesto inexorável
de negativa:
— Não, senhor; saiu.
— Há muito?
— Ainda há pouco.
Por último, com o hábito, ao ver assomar Jacques, fazia
maquinalmente o gesto, quase com raiva, e gritava com a sua voz septuagenária:
— Não! não! já saiu.
Como em geral os cérberos de casas de negócio, embirrava
com os que vinham pedir, mesmo sendo parentes. Uma das suas volúpias - uma das
derradeiras, coitada! - era dizer não, era negar a quem lhe parecia precisar.
Assim, quando viu Jacques a subir, o velho cor de castanha ergueu-se furioso,
agitando o braço:
— Não está; não está!
Jacques parou, quase resolvido a voltar, mas para
confundir o pobre homem, subiu. No consultório havia cinco advogados, contando
com seu pai, que se reservava a sala da frente. Gente subia e descia as
escadas. Cavalheiros conversavam junto das secretárias. Havia poucos livros na
atmosfera sempre suja. O Dr. Justino, que conversava com dous clientes ao mesmo
tempo, um provinciano interessado contra a oligarquia do seu Estado e um
empresário teatral disposto a intentar ação contra a Prefeitura, apertou-lhe a
mão, deu-lhe a face a beijar e apresentou-o logo aos dous clientes.
— Meu filho, formado há dias.
Jacques reparou na sua secretária, com um nobre feitio
antigo, de carvalho. Sentou-se, abriu a pasta virgem e ficou ouvindo o inimigo
da oligarquia, que de vez em quando voltava o busto e por deferência dizia:
— Não acha, doutor?
Depois foi ver os outros advogados, que estavam a
tratar de negócios, nada interessantes. Que supremo aborrecimento! Nunca mais
poria os pés naquele horror!
Mas, voltou. Voltou até todos os dias. É que a sua fraca
vontade irritada contra um trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo
comum, seria um titulo de elegância no meio por onde andava, um titulo
superior. Chamarem-no de doutor, convencidamente, julgarem-no capaz de uma
opinião decisiva, era para envaidecê-lo. Mas ter a certeza de que as senhoras e
os seus amigos, e os simples conhecidos acreditavam em outro Jacques, era um
prazer indizível. Estava duas mil léguas longe da vida prática. Entretanto,
contentava-se. A entrada no escritório, deu-lhe uma individualidade definida.
Pediu aos amigos que o fossem ver. Deu a mesma direção, com o número do
telefone, na pensão da Lola Safo, na pensão da Isabela Corini, no
seu alfaiate. Saia invariavelmente depois do almoço, só, com uma pasta cor de
granada com fecho d'ouro, saltava do tramway apressado como
um businessman, atravessava a Avenida a passo inglês. Ao chegar,
indagava:
— Não veio ninguém procurar-me?
Invariavelmente, André cor de castanha respondia:
— Não, senhor.
Esperava um tempo e saía de novo com a pasta, ordenando:
— Se vier alguém, que espere.
Dava uma volta, reaparecia, no íntimo louco para que
soassem quatro horas. Era a liberdade até o dia seguinte, em que de novo subia
as escadas empoeiradas, contrariado e com a esperança de ter sido procurado.
Uns quinze dias depois, quem lhe apareceu foi Jorge de Araújo, baixinho, magro,
elegantíssimo.
— O Dr. Jacques? - perguntou a André.
— Não conheço.
Jacques, que ia sair, precipitou-se:
— Grande idiota, então não me conheces? Desculpa. É
casmurro. Entra. Estou aí com uns negócios.
— Já? Parabéns. E ainda bem. Preciso muito dos teus
serviços. Não se trata de advocacia. Tenho advogado.
— Então?
— Preciso de uma carta amiga para o ministro da Fazenda.
Obras, reformas. O engenheiro abriu concorrência. Uma carta amiga era decisiva
para o ministro. Se for aceita a minha, tens vinte contos.
— Vinte contos? Mas como arranjar a carta?
— Tens relações. Teu pai, por exemplo. Teu pai arranja.
— Vamos a ver.
— Espero até amanhã. Lembrei-me de ti. Fala ao Dr.
Justino. Até logo.
— Só isso?
— Achas pouco? A minha hora de diversão ainda não chegou.
Hoje, onde?
— Onde quiseres.
— Damos a volta da Tijuca.
E desapareceu. Jacques ficou num indizível estado de
nervos. Compreendera logo que a proposta de Jorge fora uma distinção especial
de amigo. Provas de tanta consideração só a pessoas de idade e de respeito.
Arranjar um negócio, ganhar na primeira cartada vinte contos! Como? A quem
pedir? A seu pai? Mas seu pai talvez recusasse, talvez não tivesse intimidade
com o ministro. E Godofredo? Godofredo exigiria metade. Metade ou mais. Depois
o favor de Jorge era a ele, a ele pessoalmente, Jacques... Ficou a passear na
sala, febril, à espera do pai. Quando o Dr. Justino chegou, não teve coragem,
procurou circunlóquios, arriscou uma opinião sobre a marinha americana,
folheando revistas. Por fim, foi até dizer:
— Conheces o ministro da Fazenda?
— Muito. É um bicho de concha. Por quê?
Por quê? Com a pergunta compreendeu o seu estado d'alma.
Faltava-lhe a coragem, não de falar francamente, mas de repartir. O seu divino
egoísmo tinha a intuição cega do perigo. Antes de responder, sentiu que se
falasse, o pai pediria para ver Jorge... Seria melhor conversar com a mãe,
fazer intervir a influência da esposa.
— Por nada... - murmurou, afetando indiferença.
E saiu logo, deixou de ir ao chá das quatro horas, onde
havia de encontrar Alice dos Santos e Mme. de Melo e Sousa, já inseparáveis.
Foi diretamente para casa, com um cartucho de bonbons, o primeiro que
comprava na vida para oferecer à mãe. D. Malvina não estava. Ficou na varanda,
chegou a abrir um jornal, a ler uma notícia de pavoroso incêndio num gabinete
da pensão de Lola Safo. Um toque de campainha fazia-o ter sobressaltos. Nunca
na sua vida tivera um tão forte desejo de ver D. Malvina. E D. Malvina
demorava, não vinha mais. Antes da esposa chegou o Dr. Justino no automóvel do
Deputado Santos, que o seu continuava quebrado. Só, ás sete, apareceu a
formidável dama. Vinha exausta. Fora ao Dispensário da Irmã Adelaide, assistir
como dama de caridade ao aniversário da fundação. Estivera depois em casa da
Baronesa de Muripinim, a encardida relíquia da monarquia, muito mal
com um acesso de fígado. Lá soubera do divórcio iminente de Mme. Zurich. Era a
quinta vez que anunciavam o escândalo, sempre, naturalmente, por causa do
marido. E aquelas emoções violentas: a religião, a moléstia, a vida alheia -
tinham arrasado a pobre senhora. Jacques foi buscá-la ao jardim, com carinho.
Ao ver-se assim tratada, Mme. Pedreira exagerou. Era um hábito antigo.
— Mamã, preciso falar-lhe.
— Agora não, estou que não posso.
— Mas mamã, é a minha vida.
— Tens alguma ousa?
— Não, não é conta.
Na casa de jantar, ofereceu-lhe os bonbons. D.
Malvina, apesar de gulosa, deixou-os sobre a mesa. Mas o filho teimava. Foi com
ela até o toucador. E lá abriu-se. Precisava arranjar a carta. Um comendador
que oferecia cinco contos. A carta devia ser apresentando Jorge de Araújo. A
digna senhora não compreendia nada das infantilidades de Jacques. Apenas uma
secreta admiração brilhava no seu olhar. O filho fazendo negócios, agindo,
trabalhando, falando em ganhar...
— Não sei se teu pai...
— Pede-lhe, pede-lhe com calor.
— Vou ver. Amanhã dou-te a resposta.
— E pede também a Nossa Senhora, mamãe, para que o
ministro da Fazenda atenda...
D. Malvina abriu mais os olhos. Jacques, o endemoninhado,
voltava às tradições de família, e era católico como o seu ilustre pai e era
crente como sua mãe!
— Peço sim, meu filho. Ainda hoje a Irmã Adelaide
perguntou por ti, com muito interesse...
Jacques deixou o lar, logo após o jantar, em que foi de
uma extraordinária gentileza para com o pai. Descobrira de chofre os efeitos da
lisonja. Servindo aos progenitores com um interesse mesquinho, em que ainda por
cima pretendia enganá-los, uma série de atenções desusadas, admirava
secretamente o seu tato. Também ele sabia mentir com mestria. Era da família.
Como no temperamento mais nascido para as transações hábeis há sempre uma
grande dose de ingenuidade, se lhe viessem dizer que mostrava inteligência de
advogado, acreditaria. Passava a um papel ativo na vida, com desenvoltura e
esperteza. No dia seguinte entregaria a carta, e Jorge teria as obras, dando os
vinte contos. O mundo era seu.
— Pai, o negócio do empresário?
— Queres aquilo? Ainda lembras? É um aborrecimento.
Estamos há quatro meses.
— E quanto ganhas?
— A metade do dinheiro que obrigarei a Prefeitura a
dar-nos. Uns dez contos.
Dez contos. O pai levava quatro meses para um negócio de
dez contos! Ele, de um dia para outro, obtinha o dobro. Na rua, a vários conhecidos
que cumprimentou, sorriu com o ar triunfante e superior. Era definitivo. No dia
seguinte teria aquela soma, que aliás de pronto não sabia como utilizar. Depois
outros negócios se sucederiam. De que gênero? Talvez de cartas de recomendação,
de influências íntimas. Oh! ele agora compreendia aquela febre estranha que
agitava a maioria dos seus contemporâneos: as faces machucadas, as
neurastenias, a pressa, o ar de corrida por um tremedal em que quase
toda a sua sociedade e ele também, pela força das circunstâncias, viviam. Agora
já poderia dar uma explicação aos gastos de muitos conhecidos, a flexões de
espinha inexplicáveis até o momento. Era o negócio, o jogo das influências, um
tremendo jogo certo de consciências, que o vencedor devia ser o maior ganhador.
No fundo devia ser muito aborrecido fazer como o Jorge, de assaltante diário,
ou como Godofredo, e seu pai, de intermediários entre o assaltado que deixa
assaltar, mediante condições e o assaltante que reparte. Ele faria com rapidez,
uns duzentos contos...
Passava um tramway, tomou-o. Ao pôr o pé no
estribo, tinha mentalmente duzentos contos, e foi como milionário que saudou o
jovem Gomensoro e a linda Etelvina, sua esposa, née d'Ataíde. Os dous
continuavam o flirt marital, divertindo-se, ou fingindo rir com a
trepidação cinematográfica da sociedade. Etelvina fora educada em Paris,
educação americana na filigrana parisiense. Fazia de grande dama e tinha o
curso completo dos cabarets de Montmartre, que visitara, a
princípio com sua mãe, ambas incógnitas, e depois com o próprio marido, sem
incógnito.
Montmartre desenvolvera-lhe a ironia. Nas salas, aquele ar
de Mme. Bady, os plongeons à Segundo Império, ocultavam uma observação
mordaz e uma garotice de assobio. O marido acompanhava-a na troça e ambos pareciam
perfeitos. Jacques admirou-se de vê-los.
— Oh! que prazer! Então, nenhuma festa?
— Relâche, hoje, meu caro. Desde que cheguei, não
posso mais. Canto todas as noites e todos os dias. As nossas damas de caridade
verdadeiramente abusam. E as elegantes também.
— É a grande atração dos salões.
— Mas esgoto o repertório. Que culpa tenho eu de saber
cantar?
— E há cousas - interrompeu o Gomensoro. - Ontem, depois
da matinée em favor do Orfanato das Irmãs do Monte Branco, em
que Etelvina cantou cinco números, tínhamos a recepção do presidente da
República. O secretário da presidência foi em carro de palácio lá ao hotel
pedir, pelo menos, um número.
— E V. Exa. compareceu?
— Fui. Oh! oh! que cousa! Nem os bailes do Eliseu em que o
Félix Faure aparecia de sapatos brancos. A coleção de casacas para
uma crônica hilariante! A série de damas gordas, mal nuns vestidos crispantes!
E havia programa. Cantava uma das damas gordas, cantava uma das casacas. Os
amadores da administração pública! Os amadores governamentais!... Quase não
canto.
— Mas havia o corpo diplomático estrangeiro, gente muito
fina, e alguns colegas meus. Sabe que na minha posição, Etelvina
prejudicar-me-ia se não cantasse. Depois o ministro da Fazenda...
— O ministro da Fazenda? - interrompeu Jacques.
— Conhece? Muito amigo de mamãe.
— O ministro da Fazenda pediu. É um desses republicanos
históricos a que nada se pode negar. Pertencia ao partido conservador da
monarquia.
— E cantei, meu caro, mais três vezes. Também afirmo que
acabo morrendo de cantar.
Esperou uma frase amável, que o Jacques não tinha, passou
a língua no lábio, concluiu na íntima necessidade de um louvor.
— Como os rouxinóis...
Jacques, entretanto, pensava. Talvez fosse possível pedir
à mãe da Etelvina a carta. Ou outra carta. Cartas nunca são demais no caso de
empenho. Mas seria tempo ainda?
— E hoje, que fazem?
— Passeamos de bond, costume nacional, vendo o mau
gosto desta arquitetura. Foi o secretário de França que comparou a Avenida a um
bazar de fenômenos arquitetônicos.
No Passeio, Jacques saltou para assistir a um ato de
opereta italiana. Como os artistas eram detestáveis e as coristas bem redondas
e bem dispostas a saírem acompanhadas, a companhia tinha sempre enchentes, mais
de homens, representativos de várias classes sociais, principalmente a
política. A primeira pessoa conhecida que avistou foi o Deputado Arcanjo.
Estava numa frisa com a esposa e a ilustre Sra. de Melo e Sousa. Viesse vê-las.
Que prazer! Jacques foi. Alice estava com um escandaloso vestido cor de vinho
ardente. Mme. de Melo e Sousa sorria cheia de malícia. Evidentemente a ilustre
dama sentia um certo prazer em aproximar corações.
— Não há mais ninguém que o veja.
— Que exagero!
— A Alice já perguntou duas vezes pela sua pessoa.
— Palavra?
— A primeira à sua mãe no Dispensário da Irmã Adelaide.
— Também é de lá?
— Grande protetora. Deu muitos contos.
— Oh! D. Argemira.
— Que tem, minha filha? A Irmã Adelaide vai até
inaugurar-lhe o retrato no salão de honra.
— Não quero.
— Será, então, o de seu marido. A Irmã Adelaide é firme de
convicções.
E com a autoridade do seu grande nome, ergueu-se:
— Só nestes maus lugares é que se encontra o Jacques, não
acha Dr. Arcanjo?
Levado pela ilustre dama num fio de conversa, o Dr.
Arcanjo, que aliás não era formado, acompanhou-a até à galeria dos camarotes. E
Jacques percebeu que, pela terceira ou quarta vez, D. Argemira dava ocasião.
Seria desejo de D. Alice? Estava num estado d'alma pouco disposto ao amor. Mas
ao mesmo tempo com a convicção de que nada lhe seria difícil.
— Então, por que não aparece?
— Para não enlouquecer.
— Enlouquecer, o Jacques?
— A senhora bem sabe.
— Eu?
Voltou-se completamente. Olhou-o com os seus dous grandes
olhos ardentes.
— Sabe que fui à Cavé hoje? Amanhã lá estou à
mesma hora.
— Seu marido vai buscá-la?
— Vai, como sempre. Mas eu vou antes à casa da Argemira.
— Eu também. Preciso ir.
— Ah! bem. Tem gostado da opereta?
— Muito. Às duas horas.
E voltando-se para D. Argemira, que se encostara ao
balaústre, disse alto:
— Bastou ver-me chegar para sair! É a guerra?
— Sabe bem que não.
A generosa senhora e o generoso marido aproximaram-se. Ia
de resto começar o ato. Jacques assistiu no camarote de Arcanjo. No seu cérebro
com a impressão nova da Alice, o negócio de vinte contos passava a uma questão
liquidada. Já ganhara os vinte contos. Agora eram as mulheres, as mulheres
casadas. Um homem só é realmente chic quando tem uma amante casada.
Cresce na consideração alheia, apesar de ser cada vez mais comum uma amante
casada. E ele que nunca se atrevera por preguiça, julgando ser preciso ou muito
dinheiro ou muita sorte, via que era fácil, tão fácil como convidar uma cocotte
para cear. Seria o primeiro de Alice? Observou-a como se observa uma cousa
mais ou menos sua. Era bem interessante. Ao demais fazia por que o notassem.
Durante o ato inteiro levou a encarar cavalheiros na platéia e a pôr o binóculo
para certas damas das frisas, trocando impressões com D. Argemira, que parecia
apreciá-la imenso. Jacques pensou que ela estivesse afetando indiferença por
sua causa, para fazer de senhora fina, dessas capazes de enfrentar um batalhão
de amantes passados sem dar a perceber que lhes deu a mínima confiança. Quando
baixou o pano, porém, os seus olhos fixados na boca de Jacques diziam tão
claramente o desejo que ele se prometeu um dia seguinte, melhor do que qualquer
outro, da sua leve existência. Ao sair, encontrou Godofredo de Alencar, o
aplaudido cronista. Godofredo estava doente. Ficava sempre doente para a noite.
Vinha, entretanto, de jantar com o senador relator do orçamento da Fazenda.
— Da Fazenda?
— Sim, homem, que tem isso?
— Conheces o ministro?
— Faz-me o favor de ser meu amigo.
— Que tal?
— Que tal, como?...
— Ora...
— É um costume este esquisito que todos vocês têm de
insinuar dúvidas sobre a honestidade dos homens colocados. Não sei, não, caro.
Para mim todos os ministros são angustiosamente honestos enquanto são
ministros. Olha, a questão é de habilidade.
— Vamos cear?
— Mas a que horas queres que eu escreva, se durante o dia
tenho negócios?
— Então, não dormes?
— Sim, às vezes, para não perder o hábito.
— Vais escrever agora? E custa muito?
— Escrever custa. Agora, vende-se muito em conta. E, meu
caro, um gênero na baixa.
— Acompanho-te.
— Com prazer.
Jacques seguiu-o porque não tinha o que fazer e estava
muitíssimo nervoso para dormir. Godofredo aceitou a companhia sem vontade e
começou a dar voltas vagarosas pelas avenidas que partem do Largo da Lapa. Nem
Jacques tinha a coragem de contar o seu negócio, nem Godofredo desejava
comunicar aquele filho de boa sociedade que morava numa pequena sala de uma
ruela escura. Tudo é vaidade. Vaidade das vaidades, já dizia o Eclesiastes.
Exatamente por isso, Jacques falou de Alice.
— A pequena atira-se - fez o escritor cínico.
— Não?
— Queres dizer que não só a ti como a toda gente. É uma
febre caro Jacques, uma verdadeira febre. Estou que é caso de moléstia. E a
nossa encantadora D. Argemira...
— Sim, mas discretamente.
— A levá-la a toda parte, a passeá-la. Sabes o valor
social de D. Argemira. Pois nunca me convidou para a sua casa. O dinheiro, meu
amigo, o dinheiro é a grande arma. Nem talento, nem sangue nesta califórnia.
Dinheiro!
— A quem o dizes - fez Jacques como se fosse um ganhador exausto
de operações dinheirosas. - E por falar em dinheiro, o Jorge...
— Oh! mil contos, mil contos só em imóveis.
— Imóveis?
— Sim, terrenos e casas, caro advogado. E honesto,
generoso, mais generoso, essencialmente moderno, último aeroplano. Adeus, estou
perto de casa. Não precisas vir.
— Moras por aqui?
— Ali embaixo - fez vagamente o escritor deambulando.
Jacques foi deitar-se. Foi de tílburi, apesar do tramway
ser mais econômico, mais higiênico, mais cômodo e mais rápido. Ao
deitar-se, tinha a certeza de que não poderia conciliar o sono. Era bonito
passar a noite a passear de um lado para outro, pensando no marido da amante e
na certa para o ministro. Entretanto, dormiu quase imediatamente e só acordou
às onze da manhã. O sol ia alto. O copeiro que lhe trouxe o café,
Deu-lhe uma notícia desagradável:
— Madame foi à missa.
Atirou-se para o banheiro desesperado, obteve do copeiro
que lhe desse uma fricção geral d'água-da-colônia, vestiu-se zangado. Ia perder
o negócio, ia perder a Alice, ia perder tudo, por inépcia e indiferença dos
seus parentes. Vá a gente fiar-se nos pais! Com a fisionomia de vítima
resignada, ia sair, quando sua mãe apareceu da missa. Chamou-o logo ao pequeno
salão.
— Então? - fez ele sôfrego. - Até pensei que tivesses
esquecido.
— Falei com teu pai.
— Ah!
— Ele riu muito.
— Riu?
— Riu e disse que lhe estavas saindo de truz.
— E a carta?
— Não ma deu.
— Mas, mamãe, e só agora é que a senhora me diz isso!
— É que não há mais remédio. Justino tinha dado uma carta
antes para outro construtor e esteve ontem com o Godofredo na casa do relator
do orçamento para fazê-lo interceder. Chegaste tarde.
— Oh! mamãe, vinte contos!
— Tu disseste cinco.
— Cinco, sim, cinco. Mas ainda não está tudo perdido. Os
parentes! Os parentes!
Saiu sem almoçar. Uma idéia atravessara-lhe a mente: ir
falar com a mãe de Etelvina, com a Sra. d'Ataíde, que morava nas Laranjeiras.
Era uma vergonha, logo no seu primeiro negócio, ser tratado assim. Que diria
Jorge de Araújo? Riria da sua importância, mesmo junto ao pai. Era enorme
aquela! No palacete de Mme. Ataíde, o criado disse que a senhora não estava.
Lembrou-se que a mãe de Etelvina só estava, quando o sol descambava e podia
mostrar, sem muito escândalo, a face de velha amorosa suficientemente
esmaltada. Ninguém mais conhecia que conhecesse intimamente o ministro da
Fazenda! Ministro pouco conhecido. Nem ele mesmo. Entretanto, já podia ter-lhe
falado, graças aos convites dados pelo Godofredo, de que não se utilizara,
senão para ir ao cinematógrafo. Qual! nunca teria jeito para os negócios, para
ganhar dinheiro!
Consultou o relógio. Eram duas horas. Devia tantas
gentilezas a Jorge, que era impossível deixar de dar-lhe uma satisfação.
Precisava, além do mais, fingir, para não perder a importância. E tinha a
entrevista de Alice em casa de Argemira, àquela hora. Heroicamente tomou o tramway
e veio para o escritório.
— Ninguém perguntou por mim?
— Ninguém - respondeu o velho cor de castanha.
Acendeu um cigarro, acendeu-o à moda, não com fósforo, mas
com um isqueiro. Para se saber a que sociedade pertence um homem, basta vê-lo
fumar. Jacques, fumando era de primeira classe, com o cigarro grosso no meio do
lábio carnudo, tragando vagarosamente, nunca, jamais quebrando a cinza com o
dedo mínimo. Para as três horas, o telefone vibrou. André arrastou-se até ao
aparelho.
— Hein? Jacques? Não conheço. Ah! o filho do Dr. Justino.
Donde é que fala? Da casa da Sra. Melo? Bem.
Jacques fez-lhe sinal que não, furioso, o velho cor de
castanha irradiou. Ia dizer não. E pegando outra vez no fone:
— Alô! É a senhora? Diz que não está!
Neste momento, radioso como nunca, apareceu Jorge de
Araújo.
— Negócios muitos? Bons?
— Maus.
— Ah!
— Chegaste tarde, meu caro. Falei com o pai, falei com
d'Ataíde, que se dá com o ministro, desde o tempo em que ele era do partido
conservador. Não foi possível. Até o relator do orçamento deu cartas para o teu
rival. Foi assinado hoje.
— Foi.
— Sabias?
— Pois claro. Lancei aquela proposta com outro nome, o de
meu cunhado. Como houve outra mais em conta, tive que, à última hora, colocar
uma em meu nome, mais reduzida. Se perdesse a grande não perdia tudo.
— Era tua, então?
— Era. Eram ambas.
E para Jacques, perfeitamente apatetado:
— Nada mais simples: negócios!... É preciso preparar as
cousas. Deixa, porém, dar-te os parabéns. Fizeste muito num exercício
preliminar. Não me esquecerei.
IV
Primeiro, o amor...
"Conhece-te a ti mesmo", disse o sábio. Era um
sábio antigo. O verdadeiro saber está em cada um ignorar-se a si mesmo. Que
seria da vida, se todos, ou a maioria, ou mesmo uma pequena parte tivesse idéia
justa do seu valor? Há calamidades em que se não pensa, nem mesmo quando se é
sábio e antigo.
Jacques percebia nitidamente que outro momento não havia
surgido igual para uma vida aventureira de negociatas. Mas uma indolência, por
demais moral e por demais física parecia afastá-lo desse ambiente de ativa
persistência. Dois dias acompanhou Jorge de Araújo a ver as obras. Jorge,
porém, tratava-o como uma visita e ele não podia perder a mania de que era
muito superior ao amigo rico.
— Meu caro, dentro de dous anos, realizo a independência -
dizia-lhe Jorge.
— Como?
— Negócios...
Negócios! Palavra mágica, palavra que, cada vez mais vaga,
toma no Brasil proporções enormes e ao mesmo tempo, sutis - negócios!
Sabedores de que Jorge, com capital, repartia, vários
numerosos cavalheiros passavam o dia a correr ao seu escritório, oferecendo
contratos, concessões., negócios. Jacques, com o seu hereditário cinismo
ingênuo, estava espantado. Nunca, na sua vida, imaginara que se fizesse
dinheiro sobre o dinheiro, tão rápida e tão fantasticamente.
Pelo escritório de Jorge viu passar o Carlos Chagas, viu
passar o Dória e viu também passar outros construtores, o Eleutério Souto, o
maior bluff à espera de casamento rico, tendo um escritório com
arquitetos franceses, o belo Passos Vieira, sem o mínimo talento, mas quase
milionário, outros. Quem tivesse uma amizade imediatamente tratava de
empenhá-la, de pô-la no prego. Mas Jorge dizia:
— São intermediários demais. Já agora não precisamos.
— Como não?
— Vamos de cara. Os próprios detentores dos negócios dão à
gente...
— Com condições?
— Com boa vontade - fazia o industrial, subitamente
discreto. - Mas os intermediários! Imagina que há um mês para certas obras
orçadas em dois mil contos, recebo propostas trazidas por diversos rapazes.
Algumas tinham a letra do próprio diretor da repartição, que prometia abrir
concorrência. Mas eu conheci o diretor sem níquel, num club de prontos.
— Quando?
— Quando eu também era "pronto". E vi bem que
ele embrulhava os rapazes, estando feito com uma casa amiga de que é sócio
secreto.
— Mas é um imoral.
— Qual de nós é moral, Jacques?
Para aquele meio tudo era dinheiro. Jorge trabalhava das
seis da manhã às seis da tarde. Depois lavava-se, perfumava-se, vestia-se e
aparecia para o vermouth, numa confeitaria da moda, no seu lindo
automóvel de sessenta cavalos. Aí era o mundano. Fazia-se uma roda em que
aparecia Godofredo, sempre doente e sempre inquieto, Otaviano Soares, um jovem
ambíguo, vários industriais de diversas nacionalidades, inclusive um irlandês e
um turco. De raro em raro, o Barão Belfort, esse curioso das emoções alheias,
parava um pouco, ao vir do club, que ficava na Avenida, a dous passos.
Jacques sofria sem saber que sofria, com a promiscuidade
daquele pessoal. Gostava muito mais da outra roda, da roda da Cavé, às quatro.
ti estava no seu elemento, com gente conhecida, que já tinha chegado. E ficava
calado, porque só sabia falar ingenuamente mal da honra dos seus conhecidos.
Oh! A existência não era afinal apenas o seu reduzido grupo, as suas reduzidas
pândegas e reduzidíssimas idéias. Bem sabia. Teimava desembaraçar-se de uma
série de preconceitos, que o prendiam a uma casta sem dinheiro. E não podia,
quando era preciso... Certo, o jovem encantador não refletia, com tanta
clareza. Mas sentia. E sentir é tudo.
Os outros também sentiam que Jacques era melhor para
divertir-se. conservava-o. Por simpatia? Por uma série de vagos interesses.
Jacques era sempre decorativo. Quando pensava explorar o ousado Jorge, era de
fato este que o aproveitava. Quanto a Godofredo, a verdade é que o a tratava,
como uma criação mundana. Uma vez foi buscá-lo às seis horas, com o Jorge, à
redação. Jorge falara por telefone. O telefone não se entendia. Deram então uns
passos até lá. Jorge foi de mesa em mesa, a distribuir cumprimentos. A imprensa
é uma grande força e o menor dos reporters podia prejudicá-lo, dando
notícias dos desastres cometidos pelos seus automóveis, como podia fazer-lhe
bem, levando qualquer negócio. Depois, conferenciou com Godofredo. Jacques não
conhecia esses jornalistas, e, como todos da sua roda, não os tinha em grande
conta - principalmente porque não tinham nem dinheiro nem nome. Só conhecia os
donos dos jornais e três ou quatro cronistas, que como o Godofredo eram
complexos: imprensa, aristocracia, política e chelpa. Quando terminou a
conferência, Godofredo levou a conversa para um terreno mundano. Assim espantava
os companheiros (as suas relações!), fazia espantar a Jorge e reduzia o pobre
Jacques.
— Então é definitivo o divórcio da Zurich?
— Não sei, não; mamãe contou-me.
— Quem pede é ela.
— Como devem estar desgostosos os amigos do marido!
— Também o marido, recebida a herança da tia, batia-lhe.
— E não se pode dizer que não tenha bom coração.
— Apenas, agora é um coração que bate demais.
E falaram de Laura, que andava só com o Chagas, pela rua,
à americana; e falaram de Mme. Gouveia, cuja paixão pelo hipismo levara-a a se
fazer acompanhar por um jockey, o Gonzalez, argentino. Dilaceraram com
dente afiado a honra de todo bando. Jacques tinha uma repulsão invencível por
gente malvestida. De modo que, insensivelmente, o seu comentário agressivo
ficava na roupa:
— O Gonzalez, com aqueles casaquinhos curtos e sujos.
— Um homem que foi lad da coudelaria do Espínola
roleteiro.
Quando saíram, Jacques viu que se excedera servindo de
trípode para o elegante cronista. Jorge tinha um riso amarelo, e ele ouviu,
ainda a descer, o secretário indagar de Godofredo:
— Quem é esse idiotinha?
Para qualquer cousa na vida, é preciso antes de tudo
persistência. Persistência e o esquecimento de sua classe. Jacques sentia que
lhe faltava persistência e ou que espantava ou faziam por não lhe ligar
importância, quando deixava os seus amigos. Aos poucos, foi deixando de ir ao
escritório de Jorge, mas sendo cada vez mais o seu companheiro da noite. A vida
é um prazer. Devemos gozá-la enquanto é tempo. O barão, que uma vez passava do club,
tomou-o no seu carro.
— Levo-te até casa.
Jacques aceitou com vontade de pedir uns conselhos ao
velho dandy. E o barão foi-lhe ao encontro.
— Então, como vai a linda criança na advocacia?
— Qual, barão, não tenho jeito.
— Não tem mesmo. Meu caro Jacques, o Rio de Janeiro é
outro depois da Avenida Central. A mocidade de antes da Avenida era composta na
sua maioria de estudantes alegres e despreocupados. Formado o estudante, ia
tratar da vida, segundo as suas posses, depois de guardar os versos maus do
tempo de menino, a recordação dos amores e a recordação das pândegas. Em regra
geral, não havia senão ambições relativas. Com a abertura das avenidas, os
apetites, as ambições, os vícios jorraram. Já não há mais rapazes. Há homens
que querem furiosamente enriquecer e esses homens são ao mesmo tempo pais e
filhos. Faz-se uma sociedade e constituem-se capitais com violência. E uma
mistura convulsionada, em que uns vindo do nada trabalham, exploram, roubam
para conquistar com o dinheiro o primeiro lugar ou para pelas posições
conquistar o dinheiro...
— E os outros? - fez Jacques, que não se interessava
demasiadamente pela tirada de psicologia social do barão.
— Os outros? Os outros são constituídos de pedaços
heterogêneos da passada sociedade. Não se defendem. Têm família, os
preconceitos da família no fundo, mas adaptam-se para ficar. E fazem a alta
roda ao lado dos dinheirosos do momento, e tomam os seus processos, explorando
de vários modos a sociedade. Tu...
— Eu?
— Tu nasceste para viver à custa da sociedade sem te
incomodares.
— Isto é o que o senhor diz.
— É a melhor maneira. Não te canses. É impossível bateres
a vida, como teu pai, como alguns dos meus companheiros de club, como
Jorge ou Godofredo. A ti será preciso que venha o prato feito. E vem. Vem,
porque seria uma pena se não viesse. Olha, diverte-te, ama. Estás na idade de
amar. Não sei quem disse que primeiro o amor, depois a ambição...
Como são agradáveis os conselhos quando vêm ao encontro da
nossa própria opinião! Jacques seguiu-os imediatamente. O consultório do pai
foi apenas um ponto, onde passava alguns minutos, entre as três e as quatro,
quando lá aparecia. O resto era a vida de prazer. Começava no chá da Cavé, às
quatro horas, e lá ficava até às seis. O seu grupo era o Dr. Suzel, Bruno Sá e
Belmiro Leão. O Dr. Suzel, inteligente e fino, fazia por esquecer o que sabia
numa preocupação lambareira do mulherio de sociedade. Conhecia uma porção de
anedotas, contava as ligações de cada uma, e estava permanentemente apaixonado
por várias damas.
Bruno Sá, de dinheiro escasso, mas hábil, conseguia ser o
homem mais amável do mundo. Era impossível haver outro mais gentil e mais
sorridente. Ao aproximar-se de alguém, dizia logo:
— Sim, senhor!
Para mostrar que concordava. As vezes acabara, na mais
estrita intimidade, de demolir o indivíduo. Mas as senhoras gostavam dele. Era
uma figura obrigada de todos os bailes e de todos os salões. Belmiro Leão
herdara do pai. Vestia bem, dizia mal dos outros e conquistava também, além de
senhoras honestas, algumas cocottes. Era o passadiço, devido a esta
qualidade extra, por onde Jacques passava para a roda de Jorge de Araújo, roda
de confeitaria, de casinos, de clubs de roleta. e de pensões de
raparigas loucas. Belmiro Leão, ao demais, usava um monóculo sempre entalado no
olho direito.
Os quatro, com um chá modesto, tomavam conta do
estabelecimento, sabiam o nome dos caixeiros e falavam com a caissière em
francês. O Rio elegante passava diante deles. Suzel e Bruno cumprimentavam
todas as senhoras do tom, e marcavam mesmo algumas entrevistas para o mesmo
sitio, mais cedo, antes da afluência. Belmiro e Jacques também saudavam as cocottes,
as melhores, afinal um pouco da família geral (o mundo é uma família)
porque tinham sido, eram, ou tinham de ser amantes dos maridos das senhoras do
tom, conhecendo-as muito bem, às vezes pelo apelido de casa, e sendo conhecidas
também não pelo nome de casa que as próprias cocottes acabam por
esquecer, mas pelo nome de guerra do momento.
Impreterivelmente, entre as cinco e as seis, aparecia
Alice dos Santos. Quase sempre em companhia da ilustre Argemira de Melo e
Sousa. O flirt, interrompido pela insolência da falta à entrevista,
eternizava-se. Jacques nunca seria capaz de conquistar. Com as mulheres era
sempre hipócrita. Queria, mas ficava quieto, sabendo que, quando são elas a
desejarem, tudo fica mais agradável. A conquista de Alice satisfazia no momento
as suas ambições adulterinas. Mas não dava um passo, não mostrava a menor
animação, sempre na defensiva, excitando Alice com a frescura da sua mocidade
ardente.
De resto, tinha de ser.
Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e
sensual comum. Passara até os vinte e três anos na província, com a atenção
voltada para a vida elegante da capital. Fizera assim uma idéia exagerada de
tudo: da moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos costumes,
acreditando em quanta fantasia lia nos jornais e em quanta invenção narram os
provincianos de volta, para se darem ares. Os seus modos causavam impressão.
Ela os tinha, entretanto, porque os considerava extremamente cariocas. Ao casar
com Arcanjo, muito mais velho e pobre, posto que com posição política, casara
com a mira de vir instalar-se no Rio, desejo a que se recusara sempre o velho
estancieiro, seu pai; e não só para gozar os refinamentos da cidade como para
dominar e ser a primeira entre as senhoras faladas pela beleza, pela fortuna e
pela posição. O cuidado com que se comparava à fotografia das grandes damas nos
jornais ilustrados para se achar melhor sempre! A pertinácia com que estudava
nos magazines mundanos a tecnologia, a língua confusa da alta
roda, aliás tão limitada! Quando chegou, não quis usar nenhum dos antigos
vestidos, nenhum dos antigos chapéus, que, entretanto, já eram grandes. Esteve
incógnita oito ou dez dias, à espera de toilettes estupendas.
O marido era uma figura doente e simpática, que lhe fazia
sempre as vontades com uma resignação de intendente. Realmente Arcanjo era
doente como Rockefeller, dadas as devidas proporções de riqueza. Incapaz de
falar na Câmara, porque dele se apoderava um tremor, que Godofredo dizia ser o
prévio remorso da asneira - além da mulher, só duas coisas o preocupavam: o
esperanto e o vegetarismo. Ambas tinham com a língua, que não utilizava nos
debates parlamentares. Vegetariano era-o por completo. Dedicara-se até a
estudos especiais e nesses estudos vieram a causar-lhe inquietação as
conclusões de um célebre médico num congresso de patologia geral sobre a
influência dos legumes no caráter. Arcanjo sabia na ponta da língua que o
espinafre desenvolve a ambição, a constância e a energia; a azedinha leva à
melancolia; a cenoura é recomendada aos biliosos e aos maridos infelizes; a
vagem incita à arte; o feijão branco convém aos intelectuais; o petit-pois é
frívolo; a couve-flor agrada aos egoístas e a batata provoca o equilíbrio
mental.
Para sentir-se possuidor de um caráter de primeira ordem,
fora aos poucos misturando, tanto que acabou por almoçar e jantar panachée
de legumes. Indicava aliás essa alimentação aos artríticos,
concluindo sempre:
— É tão boa que o Dr. Zamenhoff continua
vegetariano.
— Que Zamenhoff, Arcanjo?
— O pai do esperanto, a língua universal, a língua em que
daqui a tempos poderei falar em qualquer país do mundo, quando esses países
souberem o esperanto.
Era afinal um bom sujeito. Não há ninguém que não seja um
pouco bom. A teoria do absoluto é impossível aplicada às qualidades.
Alice aceitava-o sem repugnância, pensando, aliás, noutra
coisa. Esta outra coisa era a fixação na sociedade, "como devia ser".
Era preciso montar casa, imediatamente. Arranjada a casa na Avenida do
Entroncamento, uma nuvem de fornecedores caiu sobre eles, explorando-lhes a
vaidade provinciana. Em toda parte é mais ou menos assim. Mas Arcanjo tinha a
lutar com os empenhos dos políticos e as opiniões de algumas relações mundanas
que valorizavam os fornecedores. Os colegas de política escreviam a pedido
empenhando-se pelo fornecedor de tapetes ou pelo fornecedor de louça. Arcanjo
recebeu até por intermédio de um agente de mobílias uma carta do seu Grande
Chefe, dizendo textualmente: "precisamos ajudar os nossos amigos".
— Amigos dele! Nem o conheço! Com certeza reforma algum
compartimento do seu paço!
Mas atendeu também a um mercador de tapetes orientais recomendado
pela bancada do Pará, acabou com vontade de montar outra casa, para satisfazer
a todas as bancadas.
— Como se metem na nossa vida!
— Oh! filho, são os próprios fornecedores que vão pedir.
Não viste com os automóveis?
Com os automóveis, uma das casas trouxera até uma
recomendação do cardeal. Com um pouco mais trá-la-ia do Papa em pessoa. Era uma
casa que fornecera automóveis por preços altíssimos para todos os serviços
prováveis do governo, e distribuíra alguns grátis. Arcanjo e Alice, porém, impressionaram-se
com a opinião dos seus conhecimentos da alta sociedade. Eram os primeiros,
alguns rapazes, das melhores famílias, mas desses que preferem a transação ao
trabalho. Também são esses que constituem sempre o piquete de reconhecimento da
sociedade que se preza, passando uma vidinha de perpétuo regalo e explorando os
pretendentes ao escol com um cinismo acima da expectativa. O primeiro a
aparecer fora Carlos Chagas. Era correto, delicado, tinha esplêndidas relações,
e como não se empregava em nada de confessável, resolvera ter gosto. Ter gosto
pode ser uma profissão, dada a raridade do gosto. Era de resto sempre uma
apresentação.
— Ah! "seu" Arcanjo - dizia atirando piparotes
no ventre doentio do deputado vegetarista - gosto tenho eu. Aqui neste pais não
se tem a noção do chic. Ninguém como eu sabe pôr uma mesa, arranjar um menu,
decorar uma sala. Gosto tenho eu. Falta o dinheiro. Também quem já pôs fora
três fortunas...
Sempre que se referia à moeda, precedia-a daquele
determinativo que a realçava. Nunca dizia: dinheiro. Dizia sempre: o dinheiro.
E com tal autoridade que era da gente pedir-lhe desculpa por vê-lo sem o
dinheiro. Em duas palhetadas dominou o casal com decretos de elegância.
— Vi hoje uma jóia chic, cousa boa, que lhe vai a calhar.
É para uma pessoa distinta.
Os esposos terminaram as dificuldades das escolhas,
fazendo-o árbitro.
— Como achas?
— Não, como gosto distinto fica melhor assim.
Tinha gosto até a escolher o trem de cozinha. Os
fornecedores, vendo a sua decisiva importância, procuraram ter gosto também.
Ficaram os que tinham mais. Arcanjo devia ter pago preços de fábula pelo
mobiliário, pela galeria de quadros, pela prataria. A casa já estava pronta
quando Chagas, o Dória (que se dizia descendente dos Dória de Itália), o Raul
Pereira, filho dos Marqueses de Pereira e outros rapazes da mais
fina roda sem vintém lhe descobriram, um faqueiro histórico, faqueiro de
setecentas peças de prata lavrada, oferta de um amigo em delírio ao
Generalíssimo Deodoro. A esposa do Generalíssimo desfizera-se aos poucos do
faqueiro colossal. Um colecionador reunira, porém, todas as facas, em que o
proclamador da República - (os vendedores diziam-se no fundo, por chic,
monarquistas) - nunca pegara. O faqueiro vinha à mão de Arcanjo por nove contos
fortes, porque o colecionador tinha residência em Lisboa.
A casa ficou vistosa. Parecia um cenário de Antoine,
quando se propõe reproduzir, na montagem das peças salões de luxo. Havia
tapetes, bronzes, quadros, escadarias forradas de veludo cor de vinho e cor de
granada, palmeiras em vasos de variados feitios, um coupé, um automóvel.
Alice, inteligente, consultava os costureiros, as
modistas, os joalheiros, e aparecia cada vez mais desejosa de vencer. Mas
sentia nitidamente a hostilidade dos leaders, das leaders
mundanas.
A mãe de Eleonora Parckett dissera:
— Não posso freqüentar essa rapariga, que não é da nossa
sociedade.
A mãe de Eleonora, ao que diziam, começara dançarina. Mas
era falso. Luísa Frias denominara-a de "ave exótica". Havia outras
ironias agudas. Alice percebeu que, se os homens em tal meio vencem com o
dinheiro e braço, as mulheres podem vencer aliciando para o seu partido os
homens. Apenas exagerou. Quando num baile, numa festa, na rua, no chá das quatro,
nos dias de Mme. Pedreira, às quintas de Argemira, percebia ter agradado mais a
um cavalheiro, sentia como a ebriedade da vitória e ultrapassava o flirt
para irritar as proprietárias legítimas ou ilegítimas desse cavalheiro. O
resultado era inteiramente desastroso. Os homens contavam uns aos outros, com
perfeita discrição, os avanços da bela Alice, e o grupo de admiradores
aumentava à proporção que a tolerância familiar esfriava. Venceria? Era ainda a
mais honesta, era apenas uma vítima do esnobismo dos equilibristas
da alta vida. E no fundo, nos seus nervos, só sentia um certo interesse por
Jacques: Jacques com as suas largas mãos, a sua tez cor de pêssego, aquela boca
tão carnuda e rubra, os dois olhos molhados, o cabelo negro, repartido ao meio.
Jacques era o que lhe mostrava maior indiferença... Outra qualquer desanimaria,
Alice, porém, tinha a Sra. de Melo e Sousa a seu favor.
A Sra. de Melo e Sousa passava por ser das mais ilustres
damas da sociedade, fidalga de verdade, nobre de fato, inteligente, culta, requintada.
A sua ascendência era conhecida de quatro séculos, sendo no Brasil anterior à
vinda de D. João VI. As pequenas crônicas privadas davam-lhe na linha direta
três monjas, quarenta adúlteras, cinqüenta generais, cinco artistas, dez
juristas, vários diplomatas. Argemira mostrava-se culta com simplicidade. No
seu tempo de moça amara muito, independente do marido, a quem aliás sempre
respeitara, nas constantes viagens pelo estrangeiro. Agora, não velha, que
senhora tão cuidada e de tão formoso espírito não envelhecia, mas apenas
"datava" como se fosse do XVIII século, assistia a sorrir à eclosão
da nova sociedade, amando a mocidade e amando o amor. Por isso, talvez
protegesse os jovens, e, como sabia a crônica geral, perdia-os com anedotas autênticas
da vida real de cada um, francamente corrosivas. Além do mais, Argemira queria
ver caminhar o seu caro Jacques. Foi ela quem os aproximou de novo, sem a menor
alusão à falta do lindo mancebo, fazendo-se encontrada como por acaso...
— A Alice recebe agora os seus amigos.
— Ah! meus cumprimentos.
— Arcanjo ainda não o preveniu?
— Ainda não.
E a linda Alice:
— Pois temos muito gosto.
Depois, era o chá a três, com conversinhas mais ou menos
picantes, em que Alice flambava como um ponche, eram perguntas, indiscrições. A
jovem tinha a idéia de que Jacques devia ser disputado por todas as mulheres.
As mulheres pensam sempre assim, quando desejam, para sustentar e manter o
desejo. E perguntava nomes de cocottes no Lírico e na Cavé, sorria
maliciosamente, sempre que Jacques cumprimentava alguma dama. D. Argemira sabia
conservar a atmosfera, divertida com o flirt. Jacques parecia tão
agradecido... Um mês depois, Belmiro Leão apareceu indignado no chá das quatro.
— Olha - disse a Jacques - estive ontem na
festa de caridade da Irmã Adelaide com a Alice e D. Argemira. É de força a
Alice...
— É, ela contou-me que lhe disseste inconveniências e
passaste uma cartinha embrulhando uma flor. Lemos a carta.
Belmiro Leão ficou rubro e indignado. Aquele processo da
Alice parecia-lhe de uma depravação inqualificável. Não a cumprimentaria mais!
Há coisas que não se contam. Nunca fizera papel de tolo. Ah! ia perder aquela
impertinente no conceito público...
Jacques ficou glacial e ergueu-se logo.
— Mas olha, não tenho nada contigo; é com ela. Tens sorte,
és o amante.
— Quem te disse que eu era o amante?
— Ah! bom, não sabia que era paixão. Cavalheiro...
Jacques saiu contrariadíssimo e encontrou na Carioca, ao
subir para o coupé-automóvel, Alice e Mme. de Melo e Sousa. Há acasos
fatais. A vida é um grande acaso.
Argemira pasmou:
— Por aqui a esta hora? Aposto que adivinhou a nossa
presença?
— Não. Vou para casa.
— Está aborrecido? - indagou Alice.
— Não; estive com o Belmiro Leão e ele está furioso com a
senhora.
— Comigo?
— Porque contou-me a cena de ontem.
— A quem poderia contar então? - fez Alice.
— Ora deve ser divertido o Belmiro. Venha você narrar-nos
a cena por miúdo.
— Onde?
— No auto, conosco - disse logo Argemira. - Alice ia
levar-me a casa. Levam-me os dous.
— Mas não chego.
— Vais no meio, um pouco apertado.
Alice um tanto trêmula, lembrou-se entretanto que era uma
elegância espantosa essa de irem num carro apertadas várias pessoas. Jacques
também estava trêmulo. Mas concordaram. Subiu primeiro Alice, depois ele. Por
fim Mme. de Melo e Sousa. Jacques ficou na ponta do assento, entre o vestido
roxo da ilustre dama e o vestido de veludo castanho de Alice, um vestido em que
o seu corpo cheiroso parecia num estojo...
— Laranjeiras! - disse Argemira. - Para minha casa. - E
depois: - Conte lá, menino terrível.
— Ora...
Jacques contava. Contava e sentia que insensivelmente o
seu corpo ia tomando mais assento e que de Alice vinha um perfume doce,
agradável, macio. Ela ficara silenciosa, olhando-o.
— Que me olha tanto? - indagou Jacques.
— Admiro a pérola de sua gravata.
— Bonita? Foi a mamã que ma deu.
— Gosto muito de pérolas.
— Quando não são as da Luísa Frias - interrompeu Argemita
- falsas como a onda...
— Esta é verdadeira.
— Quem duvida? Você tem cada idéia...
— Não, que a senhora é muito perversa.
— Eu?
— Mostra-me a pérola? - pediu Alice.
Jacques tirou o alfinete da gravata. O automóvel dava
solavancos. Passou-o à Alice, apertando-lhe os dedos.
— Tenha modos. Deixe de brincadeiras.
— Está enganada.
Mas viu que Alice se recostava e, pegando o alfinete pela
ponta, roçava a pérola na face, nos lábios, no pescoço, pelas pálpebras,
vagarosamente, como afastada do mundo, as narinas palpitando. Passou a mão na
almofada e encontrou uma outra mão gelada, que tremia. O silêncio caíra de chofre.
D. Argemira sentia, sem ver. Alice ofertava-se à pérola, que é a pedra de
Vênus. Ele estava numa impetuosa onda de sangue e de desejo. Era o momento. O
automóvel parou, sem que dessem por isso. Argemira saltou.
— Não os convido para entrar. É tarde. Merci pelo
obséquio. Até logo à noite, não?
Nenhum dos dous respondeu. Eram incapazes de dizer uma
palavra com senso. Em roda, como dizem os romancistas, o mundo se alheara, vago
e indeciso. Ela só queria ele, ele. A sua carne vibrava um suspiro de apelo. Qualquer
palavra seria inútil. Jacques puxou num rápido gesto os stores, soprou,
no tubo acústico: devagar! enlaçou-a na violência da sua adolescência
vitoriosa. Ela ainda meneou a cabeça, fugindo ao beijo almejado. Mas ele
prendeu-lhe a face com as duas mãos e sorveu na sua boca vermelha a boca
saudável de Alice.
— Mau! - fez ela. - Como demoraste! - E, numa ânsia
tropical, o seu lábio procurou o dele, sorveu-o também, enquanto os dous corpos
se enlaçavam na harmonia indizível do desejo.
E o automóvel, devagar, buzinava pelas ruas, ameaçando os
transeuntes. Eram seis e meia da tarde.
V
O incidente fatal
O amor é uma felicidade transitória, mas irradiante. Só
quem nunca amou pode imaginar o amor eterno. Só quem ignora as delícias dos
primeiros tempos de uma paixão na agradável posição de amado, pode acreditar
possível o segredo no amor. Não é preciso ser indiscreto, não é preciso dizer
palavra. Cada gesto, cada olhar, cada inflexão do homem amado revela o deus que
comeu ambrosia. Os outros homens ficam, sem saber por que, irritados, e mesmo
muito amigos, procuram falar mal do feliz. As mulheres, todas as outras
mulheres sentem de súbito uma incompreensível simpatia. E uma corrente
misteriosa que põe o mundo exterior no segredo. De um lado aumenta a atração,
de outro os homens se tornam ainda mais pólo negativo. A sabedoria do
profissional é mudar imediatamente de amante para conservar a atmosfera.
Jacques não era um profissional. Mas logo percebeu que entrava mais no mundo,
muito mais do que quando se formara ou começara a vida prática. Certo não era
nenhum ingênuo, nem caíra nos braços de Alice para aprender essa coisa difícil
que no século XVII chamavam arte de amar e no século XX chamam sport do
engano. O fato, porém, é que nem a criada iniciadora, nem as sestas passadas
com a quase virgem Ada na casa do barão, nem a italiana oxigenada do
desagradável incidente da sopa e da cautela, nem as pequenas de várias
nacionalidades encontradas nos clubs e nos music hall, lhe tinham
dado a satisfação pessoal, a plenitude, a segurança da sua vitória como o
apetite, a violência amorosa de Alice. Nas ações menos importantes, Jacques
sentia-se excepcional. Ao chamar o criado para a fricção de água-de-colônia, ao
levar o garfo à boca, ao tomar um aperitivo, mesmo só, a caminhar no seu
quarto, era como se conduzisse um objeto raro, alvo das atenções alheias. Está
claro que não correspondia a tanto amor. Um rapaz de linha não se compromete
assim. Gozava, entretanto, muitíssimo, assistia com aplausos ao ato de Alice,
tanto mais quanto de um momento para outro aquelas senhoras que o tomavam por
um menino de maus costumes, revelavam uma complacência curiosa. Curiosa e
prometedora. As senhorinhas, como Laura Gomes, faziam alusões veladas.
— Já ninguém o vê, Jacques, a não ser com a política...
A Viuvinha Ada Pereira retivera-o numa das recepções de
sua mãe a tarde inteira a conversar. Jacques não tinha uma palestra muito
variada.
A viuvinha, ao contrário, gostava de conversar. Mas
dava-lhe a deixa, trazia a baila assuntos possíveis. Não se conteve:
— Conte-me alguma coisa de novo.
— Não há nada, nada.
— Ora, conte-me a sua vida.
— E logo esse corte num ponto tão interessante do
folhetim!
Gina Malperle, cada vez mais íntima amiga de Mme. Andrade,
uma das três irmãs, que no momento disputavam o bastão da beleza, levou certa
vez dois minutos com a sua mão presa, enquanto a admirável Andrade descia do
seu papel de deusa e parecia requerer o voto daquele Páris último aeronave. Era
a roda toda, indireta, mas visivelmente. E não só a roda. As mulheres livres
olhavam-no de outro modo, tratavam-no de outra maneira.
— Tiens! voilà ]acques...
Era uma festa, nos salões de ceia dos clubs. Talvez
Jacques exagerasse. Mas até nas ruas, nos tramways, rapariguitas pobres,
senhoras desconhecidas, fixavam-no com a volúpia feminina que é a volúpia da
serpente, a virtude de olhar e esperar. Com a sua educação, Jacques não cairia
na vulgaridade de se julgar irresistível, como qualquer caçador de rua. Mas os
fatos provavam, e ele, por um fenômeno reflexo, estava mais cheio, mais bonito,
mais radiante.
— Este menino sua amor! - exclama a venerável Sra. Ataíde.
Todos os meninos suam amor, antes dos vinte anos, quando
têm a amá-los uma criatura bela e ardente...
Alice dos Santos também não fazia por ocultar em público a
sua conquista. As pessoas que a recebiam e a cumprimentavam ficaram hesitantes.
Algumas damas invejaram-na. Outras encheram-se de ternura. A relíquia da
monarquia, Sra. de Muripinim, deu para tratá-la de "minha filha",
contando-lhe velhas histórias da Quinta, em carros do paço, os bailes dos
mordomos, os flirts dos príncipes, a mania que o imperador tinha de
trair a imperatriz só com atrizes.
— Era um sábio, minha filha, gostava muito de teatro.
A venerável mãe de Eleonora dissera:
— Se essa menina engana o marido, o caso é com o marido.
E D. Malvina teve um fraco de agradecimento maternal,
satisfeita com a paixão inspirada pelo filho. Deu uma porção de conselhos
graves e impertinentes a Alice, que aliás não os poderia seguir. No estado de
espírito em que se encontrava a esposa do deputado vegetarista, só podia
considerar o casamento a província do amor. Jacques era a capital, a capital
mundana. Ela começava a realizar nele o que desejava realizar com a cidade.
Tê-la sua, dominada, inteiramente sua. Depois da cena do automóvel surgiram as
necessidades crescentes e a urgência dos primeiros encontros. Era impossível
ser sempre no automóvel. Impossível e perigoso. Não pareciam convenientes os
alvitres lembrados por Jacques, assaz sem dinheiro: um ou dois hotéis na
Tijuca, em Santa Teresa.
— Não convém.
— Que há?
— E toda essa gente que te há de ver? Não, não.
Uma casa comum, casa do oficio, seria muito reles. Alice
não iria, nem ele lembrou. No terceiro dia, porém, Jacques foi visitá-la a
casa, às duas horas. Ela recebeu-o como uma criança. Assim que o criado voltou
as costas, caiu-o de beijos, e ele já julgava o salão agradável, quando vieram
anunciar as Soares, relações políticas do marido, gente das Alagoas, de
passagem para a Europa. Não se podia estar naquela casa tranqüilo! Jacques
então lembrou-se de Godofredo, do quarto de Godofredo. Era a solução. Godofredo
seria discreto. Ao demais, nem precisava saber de que se tratava. Correu a
procurar o cronista. Godofredo estava num dos dias de mau humor. Não se podia
dizer que estivesse pálido. Era verde demasiado, eram grandes olheiras. De
instante a instante torcia os dedos. Os negócios não lhe corriam bem decerto,
as relações políticas divertiam-se contra o seu valor.
— Que tens?
— Nada, complicações morais.
— Os negócios?
— Ah! os negócios. Já vens tu com a seca dos outros
também. Negócios! Que negócios! Não faço nenhum. Antes fizesse. Não é culpa
minha. Mas ainda dou o tiro definitivo.
Invariavelmente, como sempre, nesse grave assunto,
contradizia-se. Jacques aproveitou.
— Tens duas chaves de trinco?
— Eu?
— Sim, do teu quarto.
— Não tenho quarto.
— Como?
— Tenho a frente de uma casa.
— Vais emprestar-ma durante o dia.
— Emprestar, para quê?
— Segredo...
— Ah! bravo.
Mas explicou como era impossível: uma rua cheia de
vizinhança sempre à janela; a casa com uma dúzia de crianças, que vinham para a
porta, por não ter as janelas, e o seu quarto cheio de livros, papéis, uma
trapalhada, uma barafunda! Jacques não se sentiria bem e a pessoa, que devia
ser de sociedade, também não.
— Tenho uma grande biblioteca. Não imaginas. Na mesa,
papéis, escovas, velas, frascos de essência (porque só escrevo cheirando
heliotrópo e violeta), um inferno!
Havia, entretanto, a solução. O Barão Belfort era um dos
quatro ou cinco homens da cidade possuidores de garçonnieres dignas de
receber pessoas decentes. Ocupara-a, havia dois meses, com uma anedota
sentimental de somenos importância. Podia cedê-la. Iria ele, pessoalmente, se
Jacques achasse imprudente aparecer.
— Fico-te muito agradecido.
— Com que então já conquistador?
— Oh! Godofredo.
— Fazes muito bem. Conquistas de primeira plana colocam
sempre bem.
— E vais hoje?
— Hoje, não posso. - E irritado: - Não posso, é
impossível. Estou com azar. Tudo falha. O barão seria capaz de negar.
Jacques submeteu-se ao fetichismo do homem superior, e no
outro dia, o criado de Belfort, um criado francês, foi pessoalmente
entregar-lhe uma chave de prata, com esta palavra a lápis, em papel timbrado do
barão: Excelsior!
A garçonniere era de um gosto apurado e fino.
Ficava numa das ruas que desembocam no Flamengo. A casa era própria. Constava
de cinco peças. No salão pequeno havia por mobília um caro tapete, um baú
medievo, um contador espanhol, algumas telas de Corot, de Turner, uma vitrine
com esmaltes e medalhas antigas, cortinas pesadas de seda. Logo depois, uma
sala maior, à XVIII século, laca e tapeçaria gobelino moderno. As paredes eram
forradas de seda rosa. As cortinas eram de seda quase branca. Em medalhões,
Lancret, Watteau, Boucher, três telas em que o amor se repetia galante. O
lustre, em bronze verde fantasiava a escalada dos amores. Havia uma bergere,
um divan, um leito, e o ambiente estava impregnado de essência de
rosas. A seguir, a sala de banho, feita de mármore colorido, alabastro verde, e
cristais de tonalidades mortas. O conforto e a higiene tinham organizado aquela
peça. Havia o leito de mármore forrado por um tapete persa para as massagens,
havia a máquina elétrica do leito condensador, tabuleiro de cristal com frascos
de todos os tamanhos, em que se encontravam desde as essências perfumadas até a
terebentina. E a piscina de alabastro verde, enchia pelo fundo de água morna,
água a ferver ou água gelada. Logo depois vinha a sala de jantar, mobiliada ao
gosto inglês, aconchegada e agradável. Por fim a cozinha, com um fornecimento
em latas e garrafas de tudo o que faz mal e sabe bem; vinhos da Hungria e da
Borgonha, champagne, foie-gras, trufas...
— Homem esplêndido! - fez Jacques.
Era esplêndido, principalmente porque, à sua primeira
necessidade frívola, presenteara-o com aquele luxo, com o uso daquele luxo.
Jacques decerto não pensava em possuir o luxo. Bastava usá-lo. Sempre fora
assim, e assim sempre seria. O efeito foi aliás fulminante na cabecita de
Alice. O luxo, a elegância davam-lhe ao amor um supremo requinte. Ela sentia-se
bem, sentia-se apreciada. Quando as mulheres amam, sentem coisas de que o
bom-senso desconfiaria mesmo em estado de cometer imprudências. E foi no
primeiro mês o grande duo fundamental nos dramas musicais de Wagner e em quase
todas as existências. Ao acordar, Jacques tinha uma cartinha de Alice exigindo
alguma futilidade ou a sua presença em qualquer lugar. Alice escrevia bem,
abusava um pouco. Logo depois do almoço, o filho do Dr. Justino não se possuía.
estava com Alice nas exposições, nos carros, nas conferências, nos teatros, em
casa dos conhecidos. Até mais de meia-noite, às vezes nos bailes até pela
madrugada, era do casal, conversando com o marido, valsando com a esposa, amado
por ambos. Sim, porque Arcanjo amava-o com enternecimento, estava desvanecido
com a companhia mundana de Jacques. À garçonnière nunca chegavam juntos.
Ou vinha ela primeiro ou vinha ele. Quando ela chegava de automóvel ele chegava
de carro, quando ele aparecia em auto, era ela que se fazia conduzir de trem.
Alice transportara para o ninho um completo sortimento de dessous
admiráveis, kimonos de levantar de seda leve, irlandas bordadas. Jacques
nada levara.
— Meu amor! - dizia ela ao entrar, logo dependurando-se
dos seus lábios.
— Linette! - dizia ele, deixando-se beijar.
Alice, se tinha uns caídos muito brasileiros, isto e,
muito torráozinh0 de açúcar a derreter e as palavrinhas ternas,
melosas, em que a brasileira vence o record mundial, distanciando
mesmo a chinesa, Alice era inteligente. A inteligência dera-lhe uma ousadia
ainda acrescida pelo desejo mundano de parecer bem, de parecer como nos
romances. Depois era empolgante e enebriante. Não se poderia dizer que um
ensinava ao outro. Ambos aprendiam com a ingenuidade cínica que o amor incute,
o amor ou o desejo, e ambos queriam trazer novidades. Quando ambos estão nestas
disposições, as coisas vão sempre longe. Não haveria o Kama-Sutra, o
"El-Ktab" e outros volumes do ritual amoroso, prolixos em
novidades, se os casais perfeitamente convencidos não se entregassem à aposta
de trazer impressões novas. O desenvolvimento das ciências é devido ao estímulo
da primazia na descoberta, dizia um venerando homem. Depois, Alice tinha um
espírito satírico que agradava nos intervalos. Fazia troça feroz das senhoras
conhecidas, arremedando-lhes os gestos, caluniando-as. Vingava-se assim.
Jacques, a fumar um turco ponta de ouro, ria francamente, e contava coisas...
— Elas também gostam de ti.
— Quem te disse?
— Adivinhei.
— Falso. Não gostam...
Alice estava convencida de que arrebatara o jovem a um
batalhão de amorosas. Jacques era bem homem para não desiludi-la. Sempre convém
mentir.
— Jura que eu sou a primeira?
— Juro - fazia ele rindo de tal maneira, que se
comprometia ainda mais.
Depois dava-lhe conselhos que Alice recebia com
docilidade, incutia-lhe gostos delicados para as toilettes, as jóias e
dava informações muito apreciadas sobre a maioria dos seus amigos: o Bruno Sá,
o Dr. Suzel, o Belmiro Leão, que deixara abertamente de cumprimentar Mme.
Arcanjo dos Santos.
— Ainda zangadinho?
— Não imaginas, filha...
Um mês depois, a chama, como dizem os poetas românticos,
começou de diminuir. Conservavam-se uma preferência carnal, o desejo de não
acabar, mas acrescido pelo vago instinto da curiosidade que, como se sabe,
limitou o mundo e o ensinou a ler em caracteres cuneiformes, sem mestre. Nenhum
dos dois deu, porém, claramente, pelo caso. Estavam em plena season e
chegara para o hotel em que moravam Bruno Sá e Suzel uma grande atriz. Era o
hotel das notabilidades de todo gênero: diplomatas, artistas, argentários,
industriais, políticos, grandes artistas, "grandes cavadores", como
não deixava de resumir Godofredo. A atriz parisiense trazia outras encantadoras
atrizes. Jacques ia jantar sempre lá, em companhia de Bruno. Godofredo,
cronista, que fazia crítica dramática e visitava com freqüência o jovem
ministro, lustro e fulgor, reclamo luminoso do hotel, apresentou-os. Apresentou
com satisfação, porque esses parisienses teriam uma idéia limpa e francesa da
nossa sociedade.
Imediatamente, a grande atriz foi de uma simpatia
desvanecedora. E à hora de jantar, como em geral ela não aparecia, comendo nos
seus aposentos, tal qual Mme. Sarah Bernhardt e Mme. Réjane,
divertiam-se com as outras. De resto, a ilustre artista já lhes oferecera um
jantar de que fazia parte um grande psicólogo, pago pelos governos
sul-americanos para fazer conferências sobre a alma feminina em Buenos Aires,
Montevidéu, Rio e Rosário.
Além desse acontecimento mundano importante - Jacques não
tivera nunca a intimidade dos renomes universais - um outro preocupava a
atenção, não só dele, como de Alice, como de toda sociedade: a grande festa de
caridade em favor do Dispensário da Irmã Adelaide. Mme. de Melo e Sousa e a
Baronesa Parckett, mãe de Eleonora, dirigiam o acontecimento. A princípio
pensaram no Casino. O Casino era pequeno. Depois estabeleceram definitivamente
tomar conta de um jardim público.
Era preciso arranjar grátis o jardim, as obras necessárias
para as transformações, uma tômbola formidável e um programa espantoso. O
comércio, a indústria, a administração estendiam as mãos à alta sociedade para
proteger os pobres. Estendiam e davam. A sua ação a isso se limitaria, como a
ação do jornalismo seria a de fazer um reclamo permanente até o dia do
espetáculo. A organização das comissões seria mundana. Os rapazes de gosto
ociosos apareceram. Chagas fez uma planta do jardim com os lugares das barracas
marcadas a bandeirinhas vermelhas. A importância das barracas variava, segundo
o tamanho da bandeira. Dória, já expulso do seu meio, veio à cena como
utilidade. O filho dos Viscondes de Pereira encarregou-se do capítulo sport,
marcando regatas, corridas a pé, tobogã, gincana e algumas
cousas irrealizáveis que lhe davam o pretexto para dizer:
— Qual! nesta terra tudo é impossível! Qual! estamos num
país selvagem.
Godofredo ficava com a parte de teatros, muito contrariado
aliás. A parte de teatro constava de uma comédia, naturalmente em francês, por
amadores da nossa melhor sociedade, um intermédio em que figuravam por especial
distinção o grande tenor Zenaro da companhia lírica, a notável atriz francesa e
uma atriz portuguesa, que nenhuma das damas conhecia, por não freqüentar
teatros, principalmente em português e finalmente, à noite, uma série de
quadros vivos, com projeções elétricas, assunto religioso: "A
Caridade". "A Samaritana". "Cristo e a Adúltera".
À escolha das diretorias das barracas, posto de
sacrifício, presidia uma grande diplomacia. Só Mme. de Melo e Sousa poderia
sair-se bem, pondo em relevo as personalidades dignas disso.
A primeira reunião do comíté organizador
foi agitada.
Faltaram várias pessoas, censuradas aliás, e as comissões
só foram nomeadas às onze da noite; comissão de angariar donativos, comissão de
direção dos trabalhos, a de teatros, a de política, a das barracas.
— Falta alguma cousa - dizia Luísa Frias.
— Que falta?
— Não sei, mas falta.
— A parte infantil - rouquejou a Sra. Muripinim.
— É isso! é isso mesmo! - exclamavam de todos os lados.
— Quem se encarrega da parte infantil?
Ninguém queria. Era preciso pensar. Faltavam de resto mais
cousas, para corser le programme.
— Tenho uma idéia - ganiu o Dória, que dava tudo para se
conservar.
— Qual?
— Uma cartomante, que lerá a huena-dicha ao
público.
— Estás louco? Todos quererão dar a mão.
— Descansem, é pago.
— Ainda assim.
— Lembro uma orquestra de fados portugueses.
— Mas isso, Dória, é impossível. Quem vai cantar fados?
— Esperem, explico-me, deixem-me explicar. Imagino uma
orquestra de moças, tocando só bandolim.
— Ah! bem...
— Haverá uma jovem no Rio que não toque bandolim? Bem sei,
Godofredo, que é desagradável. Mas tem um meio: não te aproximes, o jardim é
grande. Escolhemos os últimos fados, os literários.
— Realmente - fez Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde
- conheço alguns; são lindíssimos...
— E depois muito distinto - decretou a ilustre Argemira.
— Mme. Gomensoro cantará os fados.
— Como quiserem.
Imediatamente a reunião inteira resolveu adotar o fado.
Eram loucos pelos fados. Depois debateram a questão financeira.
— Deixem comigo o caso - liquidou Chagas, por alcunha
"Ganhou o macaco". - Fiquem descansados...
Mas ao contrário do que imaginava, o oferecimento causou
um discreto alarma. Chagas era um rapaz encantador, de muito bom gosto, que
talvez por isso tinha a leviandade de não saber resistir nem às cocottes, nem
ao baccara. O dispensário mudaria de nome.
— Não, não - disse a Sr.ª Pedreira - precisamos de nomes
para impor aos negociantes, senhoras de posição.
Alice irradiava. Era da comissão que iria convidar o
presidente da República, era chefe de uma barraca de flores, entrava nos
quadros vivos, e como Belmiro Leão, por indicação de Argemira, fazia parte da
comissão, teve o prazer de vê-lo vencido vir cumprimentá-la.
— Somos companheiros?
— Da santa cruzada do bem. Os pobres antes de tudo.
— Há várias espécies de pobres.
— Eu só não tolero os pobres de espírito.
— Pois admira. Os pobres de espírito são a melhor gente
deste mundo.
Em compensação, Jacques sentado entre Luísa Frias e Laura
Gomes, num flirt perfeitamente agradável, sentiu-se de repente nomeado
para a comissão da política. As suas relações obrigavam-no a pertencer a essa
comissão com Arcanjo dos Santos e a Viuvinha Amélia. Era aquele pretexto que o
punha em contato com os detentores dos dinheiros públicos. Quem diria? A vida é
uma surpresa.
No dia seguinte, a garçonnière ficou deserta. Alice
dos Santos ia com o comite diretor ao jardim público, tomar disposições sur
place, porque a planta do Chagas fora declarada inútil. Iam as Sr.as
de Melo e Sousa, a Baronesa Parckett, a encantadora Gina Malperle, Mme.
Gouveia, e como homens, só Bruno Sá, Suzel e Belmiro Leão. Era como eles
gostavam os três - de andar, só os três, benditos entre as mulheres. Suzel
tinha um apetite pueril pela Baronesa Parckett, Bruno dizia cousas sérias à
Malpene, Leão, naturalmente, caminhava com Argemira e Alice. E como chovera na
véspera e o dia estava sombrio, pelas aléias desertas errava uma vaga e úmida
melancolia.
— Gosto tanto dos jardins. Um jardim assim faz pensar no
amor.
— Se o amor foi revelado num jardim!
— Mas eu penso no amor de outrora e não no de agora. O
amor num jardim.
As senhoras levantavam um pouco os vestidos escuros para
dar volta nos lugares em que a água empoçara. Havia sorrisos que diziam mais do
que as palavras, por serem imensamente vagos e tênues. Luísa estava com frio. E
da festa foi impossível fixar qualquer cousa além da hora.
— Aqui ficava bem uma barraca...
— E aqui...
— Também...
— Onde ficará a vendedora de cartões postais?
Frases cansadas, sem ânimo, como se fosse uma fadiga
superior às forças gerais, animar o velho parque melancólico com uma festa
mundana. E cansados todos, estavam, entretanto, gostando. Deram uma longa
volta, para fazer apetite para o almoço. Alice voltou só, no coupé-automóvel,
abstrata.
Nessa ocasião, Jacques preparava-se para ir à Câmara,
encontrar Arcanjo. Vestiu-se com um apuro inglês. Fincou na gravata escura a
pérola com a qual Alice revelara desejá-lo logo. E foi, pausado. A festa de
caridade ia introduzi-lo no meio que almejava entrar, mas de modo elegante, sem
rebaixar-se. Munido do cartão dado por Godofredo (era o segundo de que se
utilizara, porque até então só usara o do cinematógrafo) - entrou pelos
corredores que ladeiam o recinto. Estavam num grande dia na Câmara. Os
corredores tinham cento e vinte pulsações por segundo. Jacques passou a custo
para uma cancela do deplorável recinto a descobrir Arcanjo. Afinal deu com ele,
sentado, pálido. Arcanjo viu-o também, mas não se moveu. Nem o saudou. Jacques
esperou meia hora, prestando atenção ao discurso.
O discurso era inverossímil de idiotice. Fazia-o um dos
mais aplaudidos parlamentares. Jacques não gostava de discursos. Tinha razão de
resto. Estava com a opinião de um estadista eminente, James Balfour, que já
disse: "As criaturas que fazem ou ouvem discursos em vez de jogar o golf
são incapazes de apreciar as possibilidades da existência".
Jacques apreciava as possibilidades da existência. E,
depois, naquele movimento febril de homens a suar, a falar uma língua
incompreensível, entre reporters, taquígrafos, redatores de debates,
contínuos, parasitas, agentes de negócios, pedintes com ar triste e mesmo
deputados, só deputados eleitos pelos presidentes dos Estados respectivos, não
podia deixar de sentir-se superior. Superior, por quê?
Não o sabia, nem o era. Mas assim o fizera a educação e
também a herança, desenvolvendo-se num meio propício. Os verdadeiros amigos de
Jacques podiam jurar-lhe que qualquer daqueles contínuos era mais útil e mais
inteligente. Não o acreditaria. Ele era importante, mais importante, apesar de
não ter qualidade alguma superior para compensar as más disposições iguais às
de todos os homens, mais ás dos da sua condição. E o seu meio, composto afinal
de elementos desencontrados da sociedade, desde o jogador titular ao explorador
sem escrúpulos, meio de que conhecia as histórias desagradáveis, era o único
tolerável e o único possível. O resto não passava de poeira.
Não daria importância ao maior gênio, sem que a sua roda,
em grande parte letrada, como ele, não dissesse que esse gênio era mesmo gênio.
A roda nunca dizia, mas crismava alguns mortais felizes, o que era uma
compensação. Assim, como em nenhum salão, em nenhuma "pensão de
artistas", em nenhum dos clubs em que seu pai jogava, não ouvira
falar do gênio de nenhum deputado, além do Arcanjo e do Inocêncio Guedes, o
inexorável recitador do Smart-Ball, considerava aquele pessoal inferior.
Ele, Jacques Pedreira, condescendia em ir vê-los.
Mas ninguém lhe ligava importância e o discurso era
enorme, Jacques resolveu pedir a um continuo que lhe levasse o cartão a
Arcanjo.
— Não está.
— Está! Está ali.
— É verdade, não tinha reparado. Mas não posso.
— Por quê?
— A. Ex.ª está tomando parte no debate.
— Por quem é, leva-me este cartão. O Dr. Arcanjo
espera-me.
O contínuo tomou o cartão e deu uma porção de voltas pelo
recinto, antes. Afinal decidiu-se, e Jacques viu que Arcanjo fazia um gesto de
contrariedade, erguia-se. Quando Arcanjo se aproximou, notou que estava
palidíssimo.
— Bom dia, há meia hora que o espero.
— Ah! Queres falar comigo?
— Venho para o negócio do Dispensário.
— Que Dispensário?
— Oh! Pareces que estás a brincar. O Dispensário da Irmã
Adelaide.
— Desculpa. Temos uma sessão muito importante - fez o
outro, dominando a alteração da voz. - Mas hoje é inteiramente impossível. Não
temos tempo.
— Ah! bem - disse Jacques, seco.
— É uma pena aborrecer-te, mas tem paciência. Queres que
te mande abrir uma das tribunas?
— Não, muito obrigado. Ouvir discursos...
— Às vezes são coisas sérias. Até logo.
E afastou-se. Jacques ficou rubro de cólera. Idiota!
Tratara-o evidentemente mal. Por que estava na Câmara? Dava-se então à
importância o Arcanjo! Com ele, porém, fiava mais fino. Não poria mais os pés
naquele lugar. Contaria a Alice o procedimento do marido. Era inacreditável!
Tão incomodado ficou que voltou imediatamente a casa,
imaginando várias vinganças. Entrou direito para os seus aposentos. Atirou o
chapéu alto para cima da mesa. E arrancava o frack, quando o copeiro
entrou com uma carta.
— Trouxeram minutos depois do senhor sair.
Vinha de Alice. Também essa senhora não passava um dia sem
escrever. Abriu-a com raiva. E leu:
"Ele desconfia. Recebeu uma carta anônima, que conta
tudo. Salva a situação no momento e deixa, por minha conta o resto. Até à
morte..."
— Bolas! - fez Jacques, sentando-se na cama. - Que
complicação!
Era como se tivesse recebido uma pranchada no alto da
cabeça.
VI
O mais feliz dos três...
Arcanjo dos Santos não contara com a hipótese de ser
enganado quando casara. É uma hipótese que raramente azeda o gesto heróico dos
que se decidem a manter as bases da sociedade. Ele trabalhara, esforçara-se,
obtivera como prêmio duma vida brilhantemente nula uma linda e rica esposa.
Para o seu espírito era a derradeira etapa, a da apoteose da mágica. De então
para diante poderia viver bem, apenas com a preocupação do esperanto, do
vegetarismo e de não desagradar ao Grande Chefe, que o fizera deputado. Nada
mais simples. Com o esperanto era sócio propagandista, com o vegetarismo
fartava-se de macédoines de legumes. Com o Grande Chefe
mandava-lhe um presente semanal e votava à sua vontade. Era feliz,
integralmente feliz. Mas a felicidade não dura. A carta anônima insultara-o,
chamando-lhe de nomes feios, considerando-o um desbriado. Não há homem que se
não exacerbe, quando o chamam de desbriado, mesmo tendo a certeza de que o é.
Arcanjo não tinha essa certeza. Ficou agitadíssimo. Ia sair. Voltou, foi ao
gabinete de trabalho, virgem de trabalho, deixou-se cair numa cadeira, tentou
pensar, coordenar idéias sem resultado, ergueu-se, passeou agitado, quis
escrever uma carta, apesar de no gabinete não poder deixar de ver quem entrava,
chamou o criado algumas vezes.
— A senhora, já veio?
— Ainda não, excelência.
Pediu os jornais, onde encontrou (em todos) o nome da
esposa e o nome dele, do outro na primeira página, amarrotou as gazetas, tornou
a passear, mandou vir a criada de quarto.
— A senhora disse que voltava para almoçar?
— Sim, excelência. Ela foi ao jardim ver o local para a
festa.
Fez um gesto de despedida, lembrou-se de que nunca tinha
comprado um revólver. Passou assim duas longas horas. A espera exasperava-o. A
carta tomara proporções enormes. Seria de fato? Ela de quem gostava tanto, ela,
tão bonita! E tendo tudo, nada lhe faltando! No fundo a revelação irritava-o.
Iria brigar, sair dos seus hábitos, arrostar com um enorme ridículo, perder a
sua mulherzinha. Como? Tragédia? Sangue? Divórcio o divórcio num casal sem
filhos, sendo ela rica?
Era preciso que Alice chegasse imediatamente para a
explicação. A explicação! Que horror...
Alice chegou. Vinha abstrata no seu automóvel. Viu-a
sentar, por trás da vidraça. Preparou-se como para uma cena tremenda, mas
digna. Ao ouvir-lhe os passos na sala próxima, o coração batia-lhe.
— Estás à minha espera? - fez Alice entrando.
— Há duas horas.
— Por quê?
Aquela pergunta natural, feita naturalmente,
desconcertou-o. Respondeu esquivo:
— Ora, por quê? Por nada...
— É curioso. Mas não falas a verdade.
— Julgas?
— Juro.
— Então queres saber?
— Pois claro, meu querido.
— Teu querido. Faze favor, deixa de ironias.
— Ironias?...
— Há frases que ofendem, quando não são verdadeiras.
Alice ficou pasma. Não ser verdadeira ela, uma criatura nature
por excelência. Caminhou para o marido, ofendida sinceramente.
— Dizes que eu minto?
— Pois eu sou lá o teu querido?
— Que bicho te mordeu?
— Que
bicho, hem? Um bicho
que esmagarei, podes ficar certa.
— Mas falas por enigmas, homem de Deus, dize logo o que
tens a dizer.
— Digo que vamos partir, que seja como for, ouviste? nunca
me prestarei a um papel ridículo...
— Ridículo?
— Sim, ridículo. E não negues, não negues. Tenho a prova.
Os criminosos e as senhoras inteligentes têm um poderoso self
control. Aquelas palavras noutro ambiente fariam a perturbação. Alice
compreendeu, entretanto, que o perigo estava longe e afastá-lo de todo,
imediatamente seria preciso.
— Queres ver que tens ciúme de mim? Provas, provas! Mas
perdes. te a cabeça. Onde a prova? Prova de quê? Exijo a prova. É a primeira
cena que temos. Será a última. Ah! Este Rio! Bem não queria vir. Mas ou me dás
a prova ou não fico mais nem um minuto aqui.
Ela gritava. Arcanjo teve que dizer, indo fechar a porta:
— Fala baixo, olha que escutam.
— Que importa? Hei de falar como quiser! A prova! vamos
ver a prova de um crime, que ainda não sei qual seja!
Ele tirou a carta do bolso, estendeu-lha, com uma penosa
sensação de ridículo, a sensação de que tinha feito uma enorme tolice. Alice
pegou-a febril, leu-a de um jato. Era numa meia dúzia de insultos com péssima
ortografia, o seu caso, o nome de Jacques, o escândalo. Ficou um instante,
olhando o papel imundo a ver o que devia fazer. Soltar uma gargalhada seria
teatral. Achou melhor atirá-la com um gesto de nojo.
— Isto? Mas é vergonhoso o que acabas de fazer,
vergonhoso!... Uma carta anônima! Todas as senhoras da sociedade, todos os
homens de posição recebem cartas anônimas. Nós estamos na terra da carta
anônima. Sabes o que é isto? Inveja. Inveja de ti, da tua felicidade. E deste
importância a essa cousa asquerosa! Nem vale a pena defender-me. É idiota.
Jacques então, o filho de D. Malvina, uma criança. Que diabo! Tu não és um
imbecil. Jacques é tão teu amigo, está sempre conosco. Quando? Onde? Havias de
descobrir um gesto ao menos que denotasse mais do que amizade... Pela mesma
razão serei amanhã amante do Chagas, do Dória, do marido da Frias. Francamente,
sempre fiz outro juízo de ti.
Falava alto, agitada.
— Mas, Alice...
— Cale-se, cale-se ao menos. O senhor dá-me inteira
liberdade, sabe que eu gosto de ser admirada. O Jacques é, entretanto, como de
casa. Nunca pensei, meu Deus, nunca! Pobre rapaz! De resto, o senhor
naturalmente seguiu-me...
Ela disse a frase que desde o começo lhe apertava o
coração com um esforço enorme. O marido ergueu-se.
— Oh! Alice, isso nunca!
— Tinha a carta no bolso, podia acompanhar-me.
— Recebi-a ao sair há pouco. Sou incapaz.
— Oh! oh! conheço-o bem. Guardou a infâmia, acompanhou-me
dias e dias e não achando o que dizer, veio lançar-me uma injúria sem
fundamentos.
— Mas não, Alice, não digas tolices...
— É triste, é muito triste, depois de tão pouco tempo de
casada... Se papai soubesse!
Caiu numa poltrona. Arrancou o chapéu num gesto de
desespero. O marido, lamentável, procurava palavras.
— Não, tudo, menos pensares que te segui.
— Mas se acreditaste nesta infâmia!
— Quem te disse que acreditei?
— Acreditou, acreditou...
E de repente prorrompeu em soluços. Os seus olhos
vermelhos choravam. Era uma verdadeira artista. As mulheres são assim: nascem
feitas. As que têm o temperamento de honestas, nunca aprendem a mentir. As que,
embora boas, são mais lealmente filhas d'Eva, não precisam de curso, de aulas,
de experiência. Revelam-se no campo de batalha de chofre, generalíssimas. Alice
era encantadora, boa, gostava mesmo de Arcanjo, como em geral gostava dos
homens, sentia que o pobre marido sofresse, talvez o enganasse mais pela cabeça
do que pelo coração, mas mentia, mentia sempre e naquele momento gozava em se
ver acreditada, queria vê-lo submetido. Arcanjo, nervosíssimo com as lágrimas,
aproximou-se, afagou-lhe os cabelos.
— Não chores, não chores... que é isso?
Os soluços redobraram. Então curvou-se, falando baixo,
comovido, com as palavras que se têm para as crianças, com o gesto que para com
elas temos, quando as consolamos de males imaginários, beijando-a, animando-a.
— Meu bem... então, então... seu maridinho... não foi por
mal. Enfim, compreendes, eu também fiquei fora de mim... Bom, acabou-se,
acabou-se, dê um beijo no seu marido.
— Não... não, nunca mais!
— Louquinha, vamos, um beijo...
A vida na sua essência é feita de palavras que se não
dizem. Nas cenas mais sérias de uma existência, há uma série de cousas que se
sentem, outras que se esboçam, outras, cujas palavras erram nos lábios sem
serem pronunciadas. O resto é o que se fala. Quase sempre o inútil. Há homens
que morrem ignorantes do seu próprio eu, porque nunca tiveram a coragem de
dizer alto o que talvez pudessem ter pensado. Arcanjo pensava muita cousa de
modo vago. Era raiva, medo de escândalo, credulidade, desejo, exasperação,
luxúria, pena, amor, vontade física de se afirmar. Viu-se de joelhos a
acariciar a esposa, que soluçava baixinho; beijou-lhe as mãos, beijou-a no colo
por cima do vestido, beijou-a na testa, beijou-a na boca, afogando-lhe o não de
recusa. E aquele beijo, num caos de dúvida vaga, foi decerto o melhor beijo da
sua vida de casado.
Ela talvez o tivesse sentido um pouco - que o amor é
superior sempre. Depois ergueu-se como uma convalescente, macerada, pisada,
triste. A cena de minutos antes passava a velha recordação de um pesadelo, tão
afastada estava.
— Almoças?
— Não sei.
— Deixa arranjar-me. Estou sem apetite.
— Eu também.
— Vais à Câmara?
— Tenho de ir.
— Até já.
— Adeus, meu amor.
Como Alice estava macia e boa! Foi vagarosamente, com um
gesto de saudade desolada até o seu toucador. E aí, ainda vestida, sentou-se,
escreveu três ou quatro linhas a Jacques, mandou-as pela criada de quarto,
vestiu-se só, pensando em Jacques, na boca de Jacques, no moreno rosa da sua
face glabra, mais sua do que antes. A entrava da carta excitava-a. O amor é um sport.
Arcanjo foi à Câmara. Era preciso votar uma ordem do dia
cheia de concessões e de pensões. As concessões passariam todas com pedidos de
grandes influências políticas, que de algumas seriam mesmo futuros diretores.
As pensões, só passariam duas para senhoras bem de fortuna mas também com
esplêndidas relações entre os situacionistas. As outras, as das viúvas pobres e
sem conhecimentos seriam cortadas. O país precisava fazer economias. Ele
coitado, ia acabrunhado. Parecia-lhe, vagamente, que toda gente era autora da
carta e por conseqüência, que toda gente sabia, desconfiava, caluniava-o,
insultava-o. A frase mais vazia parecia-lhe uma alusão clara, definitiva.
Meteu-se no recinto, evitando conversas, a fingir que ouvia o discurso de um
célebre orador empolado e soporífico. Quando Jacques apareceu, viu-o logo. Mas
fingiu não o ver. Um estado esquisito, como se lhe estivessem apertando o
epigastro e torcendo a nuca, dava-lhe uma raiva surda contra o
rapaz. Achou-o tolo com a sua elegância; achou-o idiota, fingindo-se importante
no seu anonimato; analisou-lhe a insignificância de jovem pavão, com desprezo,
com mordacidade, com ódio. E sabendo-se esperado, vingava-se, vingava-se, não
sabia bem de quê, mas deliciosa, lenta, enebriantemente. Ao ouvir o contínuo,
estava resolvido a não falar. O homem de sociedade, porém, dominou. Veio. Veio
e foi pela primeira vez com aquele adolescente, o superior, o maior, o mais
velho, o homem. Estava aliviado. Terminadas as votações, voltou a casa,
reintegrado. Se alguém lhe dissesse alguma frase dúbia, reagiria a bofetada.
Ninguém lha disse. Alice recebeu-o ainda mais convalescente. Passara a tarde
inquieta e ao mesmo tempo desejosa de saber quem teria tido a lembrança infame
da carta. Jacques não lhe mandara dizer nada e pela primeira vez, vendo o
marido entrar da rua, sem uma comissão sua, indagou:
— Então?
Ele esquivou-se:
— Votações, um aborrecimento...
— E eu que nunca fui à Câmara!
— Fazes o que alguns colegas conseguem.
— Deve ser divertido.
— E cacete. Saíste?
— Oh! não. Fiquei para ai, lendo um romance. O dia está
tão úmido! Mas vamos, à noite, à casa do Pedreira.
— Para quê? - fez ele brusco.
— Oh! filho, a festa de caridade! Já nem te lembras que
sou de várias comissões. E tu também. Temos reunião do comitê hoje.
Ele não disse nada. Estavam sós, era um tête-a~tête. Pela
primeira vez, depois de chegar ao Rio, tinham um tête-a~tête, sem nada
para dizer, com Alice tão submissa.
— Por que não vais ao chá do Gouveia?
— Vai tu. Eu, não.
— Prefiro ficar.
— Ficaremos os dois. Um five-o'clock a sós. Queres?
Ele sorriu, vendo-a retornar à menina. Há quanto tempo não
tomavam chá os dous sós! Desde o Rio Grande, chá com torradas à noite, enquanto
o sogro estancieiro bebia erva... Ficou. Leram os jornais da tarde juntos. Um
deles esquecera o nome de Alice na notícia da grande festa de caridade. Era
oposicionista. Jantaram sós, como quem come depois de uma viagem. Não tinham
comido o dia inteiro. Alice já estava vestida para ir aos Pedreira. À sobremesa
pediu para dar antes um passeio pela praia, no automóvel.
— Faz uma noite tão úmida.
— Que tem? É fechado.
Foram. Eram oito horas da noite e a Beira-Mar estava
deserta, angustiosamente deserta no banho de luz dos combustores e das lâmpadas
elétricas. De quando em quando passava um automóvel rápido ou uma vagarosa
tipóia com gente suspeita arrulhando no silêncio o amor que por ser a hora não
deixa - nem mesmo esse! - de ser doloroso. Todo aquele deserto parecia crescer
sob a chuva deslumbrante das luzes. Era como se do céu um turbilhão de estrelas
se despegasse e levemente viesse pousar por aqueles postes, fazendo uma
colossal apoteose de luz. A distância as luzes eram brancas, eram verdes, eram azuis,
eram de um verde pálido, de um jalde apagado, e reunidos aos grupos de cinco e
três, recamavam as largas avenidas de um dossel de pedrarias irradiantes, de um
estranho desenho feito de raios de astros. Casas graves e fechadas, palácios
que pareciam villas de Florença estragadas pelo arranjo de arquitetos
bisonhos, aumentavam a tristeza fúnebre. Em algum banco esquecido, um labrego,
um par, o vazio.
— É tão bonita a luz.
— Lindo.
Ela reclinara-se. Ele, naturalmente, pegara-lhe na mão
quente. Era a primeira vez que naquele automóvel o marido tomara uma
deliberação tão pouco na moda para os maridos. Na casa do Dr. Justino Pedreira,
quando chegaram, já a sessão começara. Estavam todos, inclusive Godofredo de
Alencar, que precisamente gabava um grill-room montado com
estrondo na Avenida, por uma dama das melhores relações do meio - como
proprietária de uma pensão em Petrópolis, onde se aboletavam diplomatas.
— Esplêndido. Parece o Ritz, o Rumpelmeyer -
dizia o literato, que nunca estivera nem no Ritz, nem no Rumpel, repetindo
frases da crônica do dia seguinte.
— E resistirá, meu caro?
— É verdade, neste país de selvagens...
— Somos nós, apenas.
— E nós não vamos todos os dias...
— Ah! Eu que estava com o Dr. Inocêncio Guedes, logo
disse: não dura um mês!
O inexorável e incontinente recitador do Smart-Ball sorriu
satisfeito.
— Com efeito. Eu também disse. Outro meio, a Argentina,
Montevidéu...
— É, é uma vergonha.
Alice procurava descobrir Jacques. Jacques estava a uma
das janelas, conversando alegremente com a Viuvinha Pereira e Belmiro Leão. O
jovem conquistador avançou. Ele também, naturalmente. Se o casal viera, as
suspeitas tinham declinado. Estava soberbo de indiferença. Ao receber o golpe
da carta de Alice, ficara meio aturdido. Mas o adultério era das muitas coisas
que julgava sem conseqüências. Apanhado em flagrante, fugiria. Interrogado,
mentiria por mais provas que houvesse. Não escrevera, porque custava escrever e
seria pouco prudente mesmo. Esperou. Sangue, tiros, palavrões, só na gente
baixa. Não havia receio. Gente do seu meio vingava-se de outra maneira. Se
Arcanjo tivesse acalmado, teria por ele um pouco mais de consideração e
continuaria com a Alice, segundo as disposições do marido. Estava acostumado
com o caso por vê-lo praticar; estudara-o como alguns estudam o inglês sem
mestre. E o adultério sempre foi mais fácil do que o inglês. Só haveria uma
dificuldade: largar Alice. Na sua roda ouvira muita vez a frase de Bruno Sá:
Quando tenho uma amante de cá, antes de começar já estou a
ver como hei de acabar.
De resto, Arcanjo tinha responsabilidades e Alice era um
pouco adida ao núcleo. Estendeu a mão e foi logo a dizer:
— Ainda há instante falávamos mal de vocês.
— De nós?
— Sim, mamãe indagava o que se tinha feito pela política.
— E então?
— Pergunte a seu marido. Arcanjo estava tão preocupado que
quase me recebe mal.
— Não é possível.
— Ora! Queria até que eu assistisse a sessão!
As damas e os cavalheiros sorriam. Arcanjo estava meio acanhado.
Seria verdade? Seria mentira? Mas não perdeu o seu ar de superior a Jacques.
— Estes meninos pensam que a vida é só brincar...
Dous dias antes não teria tido tanta coragem, Jacques
nunca fora tratado assim, senão por seu pai. Mas tinha culpa e achava-se na
obrigação de ser gentil, meio vencido. Com o seu temperamento, tratá-lo d'alto
era exasperá-lo, mas dominá-lo. Às duas horas da tarde achava aquele sujeito um
imbecil que precisava taponas. As quatro estava sem opinião. As nove já não
fazia um mau juízo de Arcanjo. No dia seguinte entregar-se-ia sem sentir, como
se entregara a Jorge de Araújo, a Godofredo, ao Barão Belfort. O pobre Arcanjo
estava nas mesmas condições de fraqueza de vontade, como de resto a maioria dos
presentes, mais ou menos os doentes de impotência psíquica generalizada. Apenas
o decorrer dos fatos dera-lhe a superioridade. Foi levado a ela num tremor de
desastre. O outro aceitou-o. Ficariam sempre assim; ele, a mulher e Jacques.
Quem ganhara de resto com o decorrer dos fatos fora ele. O
marido, em noventa e nove vezes sobre cem, é o mais feliz dos três. A mulher,
por mais indiferente, trata-o bem porque o marido é uma tabuleta. O amante
ainda melhor, porque teme o futuro onde se anunciam em escala desagradável
desde a violência, até a responsabilidade. Respeitado, descansado, o marido é a
autoridade e o primeiro, e em lugar de ser um pobre escravo a satisfazer a sua
dona, é o cavalheiro desveladamente conservado e prestigiado pela esposa e pelo
seu maior amigo.
— Brincar? - fez Jacques. - Você faz muito pouco na minha
capacidade. Verá quando começarmos. Esvazio a carteira dos seus companheiros.
Fê-lo sentar, ficou um instante ainda prestando atenção à
discussão. Tratava-se de arranjar bandas de música e de forçar Godofredo a
fazer uma conferência10 sobre a caridade. Era uma reunião animada.
Estavam todos dispostos como Jacques a assaltar a bolsa alheia em proveito dos
pobres. Até mesmo a gentil Viuvinha Pereira, sempre tão generosa para os ricos,
até mesmo Mme. Zurich, Mme. Gouveia, as irmãs inimigas, ambas a disputar o
bastão da beleza.
Godofredo ia sair. Aproveitou para partir também. Alice,
em palestra com Belmiro Leão, deu-lhe menos importância do que de costume.
O marido prometeu que no dia seguinte apresentaria os
deputados para a colheita. D. Argemira marcou a hora.
— Não, o Dr. Arcanjo está na Câmara, às duas.
— Às ordens, minha senhora.
— E você, Jacques, passa lá por casa antes, para as
últimas instruções.
A ilustre dama queria apenas saber do que ocorrera.
Jacques despediu-se, saiu. Ainda no portão Godofredo rebentou.
— Querem teatro, conferência, tudo grátis.
— É uma festa de caridade.
— Caridade! Eu já assisti a dez festas de caridade para a
construção do altar-mor de Nossa Senhora da Conceição. Mas essas senhoras não
repararão que é demais?
Depois no tramway:
— Estive hoje no escritório do velho.
— Está danado. Não me fala há uma semana.
— Também não vais mais lá.
— Para fazer o quê?
— Oh! filho, para aprender, para exercitar, por sport,
como ias ao football, como vais aos Estrangeiros. Depois não é
possível perderes o tempo de enriquecer.
— Enriquecer! Enriquecer! Oh! Godofredo, não fales nisso.
Sempre que tratavam de persistir num ato sério, Jacques ficava nervoso. Porque
de fato tinha uma grande vontade de fazer um bonito, ganhar dinheiro, ter nome,
e só não se atirava, porque levava tempo. Então ficava querendo ouvir os
conselhos e querendo ao mesmo tempo que não lhe falassem nisso.
— Queres então ser pobre?
— Qual. Há de se ver, depois.
— Mas se tens tudo para entrar desde já?
— Advocacia não. Abomino autos.
— Outras advocacias.
— Custa tanto.
— Ora, ainda agora...
— Há alguma coisa? - perguntou ansioso.
— Precisamente não há, isto é, depende. Coisa para ganhar
uns contos.
— Como?
— Da melhor maneira. Sabes que... não, não sabes, mas é o
mesmo... Cartas na mesa. Há uma concessão que deve passar quinta-feira na
Câmara.
— Bem.
— Mas não passa porque o Grande Chefe não quer.
— Então?
— É preciso demovê-lo. Só um deputado está nas condições
de o fazer, se pedir com insistência.
— Quem?
— O Arcanjo. É uma das maiores influências da Câmara: não
faz discursos.
— Mas eu não posso pedir nada a Arcanjo.
— Como? Sempre pensei...
— Agora, mais do que nunca.
— Houve alguma desinteligência?
Jacques calou-se. O cronista sorriu:
— Diabo. Olha que não se deve perder a amizade de Arcanjo.
Dentro em pouco será uma das mais prezadas figuras do nosso grande mundo.
Perdeu anteontem dez contos no CIub da Avenida, de que já é sócio. É
comensal do Grande Chefe, tem uma linda e distinta esposa.
— Ora...
— Não sei...
— Pede sempre.
— Não tenho a certeza.
— Mas repara, Jacques, que fui eu quem te arranjou a chave
da casa do barão.
— Por isso mesmo. Está tudo acabado. Ele sabe tudo.
— Quando soube?
— Não imaginas como estou incomodado.
— Está-se vendo. Mas quando soube?
— Hoje.
— Oh! então é um homem superior, um homem que a todos nós
dará lições. Nunca pensei! Que sangue-frio dá a alimentação vegetariana! Olha.
Pedes amanhã, impõe-te a Alice. Para ser amado é preciso dominar. Impõe,
ouviste? Ou ele é um tipo - o que não acredito - ou fará tudo para mostrar à
mulher a sua influência neste momento. Aceitas?
— Tens umas idéias...
— Esplêndidas. Amanhã venho buscar-te, trazendo tudo
escrito. Com certeza estás amanhã com ela? Bem. Amanhã. Mas que acontecimento!
Vem a calhar. Está notável o nosso Arcanjo. Não sei se conheces um ditado que
diz: o mais feliz dos três é o marido.
— Homem, parece-me...
— É, não há dúvida, quase sempre. No momento é ele. Mas
todos nós podemos ser. Os pequenos acontecimentos são a causa de grandes
coisas. O dia de hoje podia ter sido aziago. É um começo de vida. Ah! meu caro,
estás te fazendo homem. Teu pai ainda não te compreendeu.
— Estou me fazendo, não; vocês é que estão fazendo.
— Uma obra admirável. Até logo. Salto aqui.
Jacques seguiu. Tinha a sensação física de quem se entrega
sem vontade. Era como se fosse desaparecendo num lameiro e transformando em
carne a melhor parte do limo. Reproduzia socialmente a criação do homem feita
por Deus, omnisciente e potente. Aquelas infâmias rodas eram a vida. Saltou no
Casino e foi ver o espetáculo, certo de que Alice obteria tudo de Arcanjo e que
na quinta-feira próxima não estaria, de smoking e peitilho, apenas com
alguns níqueis no bolso bem cortado do colete irrepreensível.
— Não achas? Uma linda esposa que é um instrumento
político de primeira ordem. Deves acabar com as infantilidades. Depois não é
preciso falar a Arcanjo. Basta pedir a Alice.
VII
Diversões úteis
A festa de caridade estava marcada para dali a quinze
dias, e chovia torrencialmente aos domingos. As comissões trabalhavam com
entusiasmo, principalmente a de tômbola. O presidente da República e os
ministros prometiam comparecer. Todas as bandas militares existentes na capital
tocariam no jardim. Era a ameaça de uma memorável festa. Jacques foi no dia
seguinte à casa de Arcanjo e não encontrou Alice. Então partiu para a Câmara e
encontrou o marido de uma complacência mais que simpática. A noite e a esposa
tinham conseguido apagar as suspeitas. A noite é uma grande esponja. Arcanjo
apresentou-o como o seu menino bonito a vários colegas - só os colegas que não
posavam muito de republicanos positivistas ou de chefes de partido da roça.
Jacques pedia com uma segurança absoluta. Um baiano milionário prometeu várias
cousas.
— E agora?
— Agora, nada.
Em compensação alguns deputados de S. Paulo assinaram
cheques com um ar americano-parisiense do melhor gosto, gabando o Dispensário,
as obras de caridade.
— Excelente obra. Em S. Paulo...
Jacques fez imediatamente uma opinião superior de S. Paulo
e dos paulistas tanto mais quanto algumas bancadas queixavam-se e nada davam.
Um representante do Pará atacou mesmo a caridade mundana. Para o fim da sessão,
encontraram o jovial Pimenta e o triste Olegário, os dous deputados. Vinham
ambos de Paris, para onde voltariam dentro de três meses. O Brasil agoniava-os.
Pimenta, o jovial, era um coureur de femmes, andava pelos clubs, pelas
pensions d'artistes. Bradou:
— Olhem só o jeitão dele. Pois então não o conheço do
Casino?
— Não ouças o Pimenta. É um perdid6.
— Qual! aqui? Não há mulheres. É uma miséria.
— Mulheres só em Paris - sentenciou o lúgubre Olegário.
— Mas, gasta-se muito...
— É um engano. Eu vivia lá com três mil francos. - Depois,
refletindo: - Mesmo com dous mil e quinhentos... - E num suspiro: - Até com
menos, sim, até com menos...
Ambos os representantes da pátria estavam bem vestidos.
Jacques notou. O mesmo já tinham feito eles a Jacques. E coincidência da moda:
os três tinham frack debruado, camisa de risca transversal, usavam
isqueiro, fumavam tabaco turco e na gravata mostravam pérolas em forma de pêra.
Para os três não era preciso mais para demonstrar que se podiam dar com
intimidade. O Pimenta, em pouco propunha que se jantasse numa casa de damas
italianas, no Flamengo.
— Mas eu? - fez Arcanjo.
— Tu vais.
— Queres ver que receias trair a esposa?
Jacques, que preferia o jantar à caridade, ajudou também a
perder Arcanjo, que se debatia:
— Mas eu nunca fui a uma dessas casas!
— Tanto melhor, é uma impressão nova.
Era uma impressão nova, sim. Apenas, oito dias antes,
Arcanjo não teria ousado experimentá-la. Mesmo na Câmara, entretanto, expediu
um telegrama à esposa comunicando que à última hora fora chamado pelo Grande
Chefe para um secreto-jantar político da coligação das bancadas. Ao mesmo
tempo, Pimenta e Jacques corriam ao telefone a prevenir Zina Fanga, dona da
pensão. O contínuo do salão presidencial estava junto ao aparelho. Jacques indagou
receoso se não ficava mal falar assim do Parlamento para uma casa de geishas
cosmopolitas.
— Qual! É o meu bicheiro... Toda a confiança! - fez
Pimenta a rir.
E foi ele próprio quem pediu o número que a telefonista
deu logo, aliás sem surpresa. Jacques começava a gostar da política. Na
confeitaria, onde depois se abancaram a tomar um aperitivo, encontraram
Godofredo de Alencar, como sempre impecável. Podia ser também da roda. De
resto, Godofredo fazia-se dela, dando apertos de mão íntimos e pedindo logo a
última mistura aperitiva da casa - mistura com a virtude imediata de fazer
perder o apetite ao mais esfomeado. Ao saber do plano, Godofredo aprovou. E
como chegava Jorge de Araújo, ocasionalmente sem o seu grupo, quis prestar um
serviço geral apresentando os amigos. Jorge gabou a idéia e ofereceu o seu
automóvel. Era insinuante e vestia muito bem. A repetir os aperitivos esses
cavalheiros falaram de mulheres. Godofredo sempre mal, Jorge com a gula de quem
ainda não está farto das boas, os deputados e Jacques, fingindo um ceticismo
cínico, à francesa. Arcanjo perguntava. Os nomes das grandes cocottes surgiam
com detalhes desagradáveis, principalmente para os amantes. Arcanjo soube que
nem todos os seus pares desprezavam a casa de Zina Fanga e outras muitas
congêneres. As sete da noite tomaram o automóvel que Jorge de Araújo guiava.
Estava a noite de inverno deliciosa, dessas noites em que a brisa é como a
carícia velutínea de céu numa estranha palpitação de estrelas. Zina Fanga
instalara no Flamengo a sua pensão, entre árvores, com vista para o mar. Ao
saltar, Godofredo indagou:
— Falaste?
— Não encontrei.
— Fala-lhe. Meus parabéns.
— De quê?
— Debochas o marido. É excelente a ocasião para pedir
diretamente. Vais muito bem.
E subiram rindo ambos. Jacques sem saber muito bem por
quê.
A casa de Zina Fanga era das melhores. Havia um salão para
as visitas de cerimônia e uma agradável sala de jantar. Zina fora cantora de
café-concerto. Quando veio ao Rio já não cantava. A rouquidão fê-la não ser
ouvida nem mesmo como diseuse. Não se perdeu muito. Era uma diseuse atroz.
Mas a galanteria passara por ela sem estragar muito uma carne de leite,
aguçando febrilmente o apetite extravagante e a ânsia do lucro. Não lhe
bastavam amantes. Queria explorar um pouco os das outras, montar uma grande
casa de banco - non è vero, caro? Diziam dela cousas
inverossímeis, que tinha agentes especiais com vinte por cento para levar a
casa homens da província, ricos; que orçava as jóias em trezentos contos; que
obrigava os freqüentadores a tê-la também. Calúnias. A sua pequena amiga,
Josette d'Amboise, desmentia tão bons corações.
— C
'es' un ange, monsieur!
No inverno, a casa de Fanga redobrava de concorrência,
porque além das cocottes cantoras de music hall, havia as atrizes
das companhias de opereta italiana, zarzuela, opereta alemã e algumas damas de troupes
exóticas: a domadora de leões, as três patinadoras do Niágara, a Orquestra
Zambelli. Algumas vezes tinham tido pensionistas homens - em geral tenores. Mas
por engano ou camaradagem. Nunca esses tenores pagavam as contas.
No momento em que Arcanjo entrou no salão de jantar com os
homens divertidos, o jantar começava. Jacques estava no seu meio. Jorge e
Pimenta também. Olegário e Godofredo fingiam estar e pelo menos já lá tinham
ido. A confusão era tal que não deram por eles no primeiro momento. Um sujeito
gordo, da melhor sociedade, pegara brutalmente pela cintura uma crioula da
Argélia, sentara-a ao piano. A crioula, com gritinhos de gata assustada, caíra
com as patinhas no instrumento batucando uns compassos malucos. E damas e
cavalheiros, batendo com os talheres nos pratos, cantavam desabridamente:
O e o a
Do Quixadá
O e o u
De Caxambu
Boum!
Era uma cançoneta-método de português, inventada por um
dos freqüentadores para ensinar às cocottes a língua de Camões. E
irresistível. Todos riam. Uma alegria desvairada sacudia os assistentes, alguns
com cara de sono. Quando deram por Arcanjo, que aliás já tinham visto alguns
conhecidos, houve um súbito silêncio. Godofredo falava com a Fanga, autoritária
e de apetite como uma camponesa da campanha romana. Esta voltou-se:
— Onorevole, grazie...
As mulheres na mesa olhavam. Apenas as que estavam sem
companheiro. Porque as acompanhadas de uns rapazinhos pretensiosos, na maioria
de profissão flutuante, ou de uns senhores de respeitável e desrespeitada
idade, fingiam não se interessar. O brasileiro é ciumento. O resto do bando que
estava alegre continuou. No piano, a crioula fora substituída pelo Chagas, o
Chagas "Ganhou o macaco", que lá estava em companhia do Conselheiro
Filgueiras, jantando por conta desse homem de gosto capaz de lhe pagar jantares
entre mulheres. E o sujeito gordo, o Lalá, tomara da crioula e dançava com ela
uma valsa turbilhonesca em que a pobre pretinha parecia desfazer-se.
Zina Fanga dava jantares a preços fixos e muito em conta.
Apenas reservava-se para os vinhos. As pensionistas pediam vinhos bons e a
tarifa do champagne seria inverossímil em qualquer ponto do universo -
mesmo porque além de tudo era champagne marca sem cotação. Com cuidado
dispôs no resto da mesa os lugares dos novos convivas. Jacques, que se sentia
agradado de uma pequena corista italiana, deixou-a ficar entre ele e Arcanjo.
Godofredo interessou-se vivamente por um tenor, que comia como um alarve.
Godofredo odiava os tenores. O Pimenta e o triste Olegário ficaram com a Lianne
d'Ortal, chanteuse gommeuse neurastênica, que os abandonava
de quarto em quarto de hora para ver se ainda dormia o seu querido, doente de
uma bebedeira colossal na noite anterior. Jorge de Araújo era o festejado de
todos - porque entre as suas habilidades havia a de aparentar que gastava.
Antes parecer do que ser. Tinham-no por um perdulário. Sabia dar o estritamente
necessário. Mas no bom momento. É tudo. A roda dele e do italiano Buonavita,
banqueiro atual e ex-engraxate, como os grandes milionários da América, as
mulheres, os gigolos, os parasitas e mesmo alguns michés intimidados
faziam o alarido da apoteose. Ele ria. Buonavita arreganhava os beiços
mostrando uma dentuça de pantera. A gritaria continuava desordenada. De vez em
quando as mulheres zangavam-se por ciúmes. Zangas rápidas, em que os palavrões
estalavam o esmalte da educação muito mais rapidamente que o esmalte das
respectivas faces. Só as mulheres, apesar disso, guardavam a agudez dos
sentidos. Os homens estavam meio apalermados, mesmo os que pretendiam ser
espirituosos, mesmo os grosseiros. Eles olhavam-se sem surpresa. Arcanjo ficou
desconcertado por nem o Chagas nem o Filgueiras nem outros conhecidos mostrarem
a menor admiração vendo-o entrar lá pela primeira vez.
Mas no fundo esses homens não eram só indiferentes, tinham
uma certa raiva, embora tênue, uns dos outros, porque o egoísmo masculino
idiota sempre, apesar da civilização, não fica esquecido quando um homem
encontra com outros homens várias mulheres. Todo cavalheiro, por pretensão
quase sempre, é, neste caso, irmão do galo. E o curioso é que nenhum havia a
desconfiar que se não divertia...
Com desejo de dizer alguma cousa, Arcanjo voltou-se para a
pequena italiana que conversava com Jacques:
— Que toma?
— Du champagne, monsieur.
— E tu?
— À americana. Desde o começo, champagne...
Do outro lado, uma espanhola, Concha Arantes, ganiu:
— Ché!
Champagne, yo lo creo...
Arcanjo abominou a Concha e voltou-se para a italiana:
— Como se chama?
— Liana.
— Bonito nome.
Era idiota. Para se dar ares de habituado àquela espécie
de vida, serviu o champagne, escorregou o braço, pegou-lhe na mão - que
era muito bem tratada.
— Está aqui há muito tempo?
— Um mês.
— Sabe que é bela?
— Oh! monsieur, vous rigolez.
Ela era realmente tentadora, com o olhar das italianas, um
olhar raro que se entrega como um lago ardente, e tinha vinte e cinco anos e
amava a beleza e amava o interesse. Logo percebera a inexperiência de Arcanjo e
a possibilidade de fazê-lo pagar. Mas, ao mesmo tempo sentia um calor, uma
curiosa vontade de amar a Jacques. Resolvia, por conseqüência, ao responder a
Arcanjo, o problema de se satisfazer. E resolveu. Ligou o seu pé ao do mancebo
por baixo da mesa numa pressão apaixonada e apertou a mão de Arcanjo de modo
visível, a rir. Jacques compreendeu, viu. Viu e teve uma esquisita sensação de
orgulho e de humilhação. A verdade venceu e para pôr as cousas no seu lugar,
debruçou-se sobre a mesa:
— Então, Arcanjo, já com uma conquista?
— Tu vois... - fez a pequena.
E o seu pé deixava-se esmagar ternamente pelos sapatos do
adolescente.
Era uma fatalidade. Que se havia de fazer? Jacques tinha
de ser a sota amorosa do amigo Arcanjo. Naquele ponto, como em nenhum outro,
ficava mal. Num certo momento, afastou-se com ar discreto a ver um grupo que
dançava o miudinho para as cocottes verem. Liana e Arcanjo tinham
desaparecido sem dar por ele - o que acontecia a Arcanjo, do meio do jantar em
diante, jantar que não comia aliás por ser vegetarista. Quando saíram da pensão
da Fanga para o Club Incroyable a jogar, era uma hora da manhã. Liana ia
vestida como se fosse para um grande baile, de luvas altas e decote, dissera a
Jacques:
— Vieni domani...
Arcanjo fez parar o automóvel no meio do caminho, para
voltar a casa. Iam numa alegria um pouco. ruidosa seis pessoas em quatro
lugares. Jacques saltou também a um olhar imperioso e significativo de
Godofredo. E os dous amigos caminharam a pé, pela Avenida deserta. Arcanjo ia
fumando um havano.
— Felizardo!
— Eu?
— Com uma sorte destas.
Insensivelmente fez o elogio de Liana, que o outro pagaria
e ele iria gozar. Era encantadora.
— Ora, já não estou no momento. Tu sim, menino...
— Eu? Sem dinheiro, preso por papai...
— Então a advocacia?
— Ora!
— Vens muito à casa da Zina?
— Algumas vezes. Olhe, você, Arcanjo, é que podia
ajudar-me.
— Não fica mal aparecer por aqui algumas vezes?
— Creio que não. Era questão de você querer...
— Tinha um pedido a fazer-te.
— Qual? Também tenho o meu...
— Estás amanhã disponível?
— Pois claro.
Arcanjo hesitou um momento. Depois:
— Voltamos cá amanhã?
— Ah! seu maganão, gostou, hem? Pois sim, voltamos.
— E nada da Alice saber...
— Por quem me tomas tu?
Jacques estava digno. O marido aliviado indagou:
— E tu que queres?
— Imagina. Nem sei como diga. Recebi um pedido. Vocês
votam sábado algumas pensões e algumas concessões. Há um projeto com prêmios
para a exploração de fibras. Não me lembro bem.
— Sei. É um projeto feito de propósito para ser dado. Tem
subvenção. É para desenvolver a indústria das fibras...
— O Grande Chefe é contra.
— Não sei, não. Eu voto com a bancada.
— Ora, se você quisesse, podia pedir para que a votação
fosse favorável. Bastava ir ao Grande Chefe, que não negaria este obséquio de
nada.
Arcanjo parou.
— Foi teu pai que te pediu isso?
— Não.
— Quem foi?
— Ninguém. Estávamos outro dia a conversar no chá. O
Buonavita contou o caso, com outros. Lembrei-me de ti.
— E disseste o meu nome?
— Não. Por quem me tomas tu? Lembrei-me apenas. Creio que
és meu amigo.
— Mas nisso ganha-se dinheiro.
Jacques ficou perturbado. Tirou a cigarreira, bateu o
grosso cigarro sobre a cigarreira. A sua vontade era não ir adiante, não falar
mais naquilo que o humilhava. Os dous homens continuaram calados algum tempo.
Arcanjo sorria às recordações.
— Que espécie de gente, aqueles homens.
— É a vida de prazer - respondeu o rapaz bem-educado. E no
seu elemento, podendo dar informações desagradáveis: - Não sei como eles podem
viver gastando tanto! A vida custa cada vez mais cara! Também todos eles têm
negócios, têm amigos. O Jorge está milionário. Não se sabe como, mas está...
— E a Fanga?...
— Hás de conhecê-la.
— Oh! não.
— Ora é da praxe e foi tu n'as pas froid aux
yeux...
Arcanjo ficou satisfeito. À porta da casa, apertaram-se as
mãos, fraternalmente.
— Então, que dizes ao meu pedido?
— Vamos a ver - fez o deputado esquivando-se, com a frase
habitual de todos os políticos que se não querem comprometer.
Uma nova vida, entretanto, começava para ambos. Os homens
mais sérios têm temporadas de vício. Arcanjo apanhara a sua febre. Era a
primeira, a mais forte. Pela força das circunstâncias agarrou-se a Jacques. O
lindo jovem foi o seu guia nesse inferno. Ambos assim enganavam Alice e Jacques
ainda por cima fazia parte das partidas sem despender um real. Na quarta-feira,
depois de se assegurar que Arcanjo estava no après-midi com a Liana foi
a garçonnière do barão, mostrando-se preocupado. E contou a Alice os
seus cuidados. Só Alice poderia vencer o marido, pedir mesmo ao Grande Chefe.
Chegou a mentir, disse que D. Malvina estava interessada, era a principal
interessada. Alice, que o beijava, prometeu. E nos dous dias que se seguiram,
ele e Godofredo não largaram Arcanjo. O cronista não informara que, em seguida
à assinatura presidencial, receberiam. Era pouco, porque havia espalhado muito
dinheiro. Sempre servia, porém. No sábado fatal, não houve sessão, porque um
deputado lembrou-se de morrer. A festa de caridade aproximava-se. E para
Arcanjo a vida de prazer era estranha. Em vez de ir à Câmara, ia para a pensão
de Fanga, onde almoçava com as cocottes e alguns íntimos. As cocottes
desde o almoço bebiam, e já apareciam, posto que algumas em trajes leves,
corretamente pintadas. No domingo, iniciaram as etapas clássicas da diversão:
foram em dous automóveis cear à Mesa do Imperador, na Tijuca. Iam o Pimenta,
Olegário, Jorge, o tenor, a Liana, a espanhola Concha e Marthe la Turque,
dançarina da dança do ventre. Essas mulheres mais o tenor, logo depois da Muda,
começaram a gritar, a fazer um barulho dos diabos. A ceia era oferecida por
Jorge, que tinha gosto, hábito e mandara dous criados lá para cima, com um
sortimento de frios, guloseimas, champagne e velas.
— Olá! olé! ché! - gania a Concha...
— É uma ceia neroniana - exclamava eruditamente Pimenta.
No deserto daquelas selvas embalsamadas, o luar estendia
diluências argênteas. O contraste entre a paisagem e a exasperante corrida de
homens de casaca e damas em grande toilette, incitava a cousas inéditas
- dessas cousas inéditas que se praticam todos os dias. O homem de aço, que era
Jorge de Araújo, comandava o pelotão. Arcanjo talvez não tivesse nenhum
sentimento por Liana. A pequena, porém, tiranizava-o, aproveitando ocasiões
para se deixar beijar e beijar Jacques. A ceia terminou às três da manhã na
Gruta de Paulo e Virgínia, quando o tenor propôs que virassem todos faunos e
ninfas.
No dia seguinte, Jacques, que não dormira, foi ao meio-dia
buscar Arcanjo a casa. Arcanjo não estava. Nem Alice, que fora a uma reunião
urgente das damas de caridade, ameaçadas de ficar sem o jardim, graças a uma
reconsideração intempestiva do prefeito. E era o dia das votações, era o dia
fatal...
— Talvez esteja na casa da Fanga...
Foi a pé, menos resolvido. Afinal, se tivesse que ser seu,
era mesmo. Depois não adiantava nada correr. Para que correr? O que tem de ser,
tem muita cousa. Na casa da Fanga, Arcanjo não estava. Com certeza, tinha ido
votar. Ficou entretanto. Liana acabava de acordar e nos seus aposentos comprava
objetos a uma velha francesa. Entrou, sentou-se numa vasta poltrona, deu
conselhos, interessado com a velha, Mme. Monpalon.
— Uma senhora muito séria - disse a Liana, sentando-se na
cama. Mme. Monpalon tinha setenta anos. Fora das primeiras no Rio e gastara
loucamente, sem saber em quê. Uma noite, a eterizar-se, queimara-se com um
fogareiro de espírito de vinho. Ficara, com o colo perdido, obrigada a não
mostrá-lo. Viera a miséria e Mme. Monpalon foi dama de companhia de Huguette
Lemaire, outra grande mulher. Huguette não amara nunca e sentia um prazer
macabro em arruinar os contemporâneos. Mme. Monpalon, experiente, ia pondo de
lado, na Caixa, pequenas quantias surripiadas ao estrago desenfreado. A
Huguette nem olhava as outras mulheres. Desprezava-as. As outras vingavam-se
com pragas.
Um belo dia, o mal terrível rebentou, deformando-a.
Huguette estava imprestável e sem vintém. Então, Mme. Monpalon instalou a
companheira num porão e foram gastando os dinheiros da Caixa, no porão. Os
dinheiros acabaram. Ela fizera-se costureira nas pensions d'artistes, comerciando
também em roupas, toilettes das mais de sorte às menos favorecidas, para
sustentar-se a si e a Huguetre. Era uma doce velhinha. Vendia também remédios
para conservar a cintura fina, a tez fresca e pomadas maravilhosas.
— A vida é dura, é muito dura...
Liana não comprou afinal nada. Ficou apenas com uma pomada
que não pagou.
A velha fez a trouxa e retirou-se docemente. Vinha um
cheiro de defumador horrível, do corredor. Era a Fanga que o defumava. Talvez
por isso, do quarto pegado, uma tosse tremenda fez-se ouvir. Parecia que a
criatura escarrava os pulmões. Liana ouviu a tosse com um vinco na testa.
— Quem é?
— É a Concha. Está a acordar mon p'tit. Sempre que
se levanta tosse assim. Ninguém diz hem? Parece vender saúde. Pois usa flanelas
e já aplicou óleo de cróton. Mas há quem goste. Um joalheiro milionário dá-lhe
tudo o que ela pede
A Concha acabara de tossir. Ouvia-se distintamente que
fazia a sua entrada Mme. Monpalon.
—
Ché, vieja, espera un ratito.
Liana sorriu. Tinha esquecido a má impressão. Então saltou
da cama, caiu nos braços de Jacques.
— Caro, carino.
— Espera, são três horas...
— Arcanjo viene alle quattro.
Jacques morria de sono. Ergueu-se a custo. Como fizera mal
em não ter dormido! Depois uma cousa combinada... Estirou-se a fio comprido na
cama, pensando nos acontecimentos. A rapariga olhava-o embevecida. E ele tinha
os olhos cerrados.
— Sabes que te amo? - fez sacudindo-o.
— Sim, sim, como todas...
Na idade de Jacques os homens gostam das mulheres e não de
uma mulher. Por isso, é o único momento em que os homens causam paixões. A
pequena Liana estava junto dele, fremente. Não era desejo. Era um pouco de
adoração pela graça estuante do efebo. Não lhe via nada de mal, nada de feio;
via-lhe apenas a beleza, essa quente beleza, em que a fronte era lisa, sem
preocupação e o sorriso garoto. Teria ele amado outra? Amaria naquele momento?
Ela julgava ter lhe dado tudo quanto era possível - que era enganar outro homem
seu amigo com ele, mas via bem que tal cometimento era aceito com indiferença.
A noite descabelada, o acordar mau, as histórias de Mme.
Monpalon, a tosse de Concha, o defumador de Zina, reavivavam-lhe a própria e
curta história da sua vida, em que estava sempre só no meio de uma porção de
gente sem simpatia e de quem também não gostava. Tivera amantes sim, amara sim,
e quantas vezes já, sempre contra a vontade! Mas no fundo do coração não
guardava uma só recordação de ternura feliz, nem da mãe, nem do primeiro, nem
dos outros. Com a maioria dos homens, sentia raiva, raiva que era um apetite de
destruição, principalmente quando eles se mostravam seriamente apaixonados. Com
Jacques, que nem lhe prestava atenção, media o horror do seu abismo.
— Querido!
Curvou-se, Jacques dormia vestido. Alisou-lhe a mão,
grande e for-te, macia. Cheirou-a. Beijou-a. Alisou-lhe depois os cabelos.
Beijou-o. O seu hálito! Parecia rosa, parecia o perfume de um ramo de rosas.
Ela não o possuía aos vinte e cinco anos, senão depois de vários dentifrícios,
de mastigar pastilhas, ela tão jovem e já dispéptica. E ninguém o tinha como
Jacques... Tão lindo! Tão lindo... Aspirou longamente o seu hálito,
insaciavelmente. Depois, ficou a olhá-lo. Dos negros cílios pendiam-lhe grossas
lágrimas. Uma forte vontade de chorar sacudia-a. Nunca possuiria inteiramente
seu, aquele ser delicioso. Nem outro de quem gostasse...
Mas, batiam à porta. Era de novo Mme. Monpalon.
— Minha filha, está lá embaixo l'onorevole...
— Já?
— Não acha conveniente?...
— Sim, sim, manda subir.
— Et monsieur? Mme. Concha poderia...
Liana acordou Jacques assoando-se. O jovem levantou-se de
um pulo.
— Já. Ainda bem. Passo para onde? - fez habituado.
— Para o quarto da Concha. Ela é amiga.
Jacques desapareceu. Já Arcanjo dos Santos subia a escada.
A curiosidade foi mais forte que a prudência. Jacques abriu a porta do quarto
de Concha que fechara um instante antes, e bradou:
— Incorrigível!
— Tu aqui?
— Vim procurar-te.
— É boa.
— Palavra.
— Venho da Câmara.
— Votaram?
— Votamos - fez o outro rindo. E depois, batendo-lhe no
ombro:
— Sempre conseguiu!
— Passou?
— Passou, passou. Agora é com o Senado. Também por que não
me dizer logo que a mamã se interessava?
— Ah! soube? - indagou Jacques corando.
— Pois se ela falou, pessoalmente à Alice... Minha mulher
já lhe foi dar a boa notícia. O Grande Chefe, de resto, não fazia questão. E
agora nós - concluiu festeiro: - A Alice janta na tua casa e eu aproveito o
pretexto da coligação para jantarmos no Leme. Serve?
— Apoiado.
— Então, até já...
Jacques fechou a porta, agarrou Concha, fê-la andar à
roda, num contentamento louco.
— Bravo! Bravo! Bravo!
— Que tens tu?
— Consegui uma grande cousa.
— Aposto que foi o Arcanjo a arranjar - disse a espanhola
filosófica.
— Foi, sim. Mas por que o dizes?
— Ché! Se tu o enganas pelos dous carrinhos!... É
da vida.
E parou súbito, pondo uma toalha à boca. Vinha-lhe outra
crise de tosse, e já não era hora de ter tosse.
VIII
Uma grande festa
Era num jardim público, reservado a nobre exploração da
caridade pública, em indeciso dia do mês de julho. Afinal, após quatro domingos
de chuvas intempestivas, que tinham o mau gosto de começar sábado, a noite,
para terminar ao anoitecer dos ditos domingos, realizava-se a grande festa em favor
do Dispensário da Irmã Adelaide. O céu estava nublado. Um vento úmido soprava
pelas árvores. Mas o longo reclamo dos jornais, a longa expectativa tinham de
tal forma enervado a curiosidade, que um temporal desfeito não impediria uma
grande venda de bilhetes sem resultado.
Pela manhã os portões do jardim não se abriram. Desde cedo
começaram a estacionar em frente carroções trazendo o fornecimento para os
botequins e os restaurants. Logo depois do portão havia uma armação de
cetim vermelho, que dividia a entrada em dois, tapando a vista dos que passavam
na rua. Ociosos, e gente do povo, os passageiros dos tramways paravam ou
voltavam-se curiosamente. De cada lado do portão, por trás das grades, havia
cubículos, onde eram vendidas entradas. Pregado a um venerável tamarinheiro
irradiava um cartaz de três metros do mais brilhante caricaturista
contemporâneo representando uma senhora elegante espalhando carinhos a pequenos
famintos de pés grandes. E o cartaz, o tapume, os carroções, os carregadores
que entravam, tudo indicava o inicio de um dia caritativamente mundano.
Mas que trabalho!
Os rapazes mais elegantes e mais dedicados tinham passado
a noite no jardim, dirigindo os trabalhadores e numerando os presentes da
grande tômbola, em número superior a dois mil. O Chagas com o seu bom gosto, o
Dória e cinco ou seis do mesmo quilate encarregavam-se desse trabalho
exaustivo. Havia no meio de tanta inutilidade dádivas de valor, até mesmo
jóias. A ilustre Sra. Argemira de Melo e Sousa deixara o local às duas da madrugada.
D. Malvina Pedreira tivera um começo de nevralgia, graças a um impertinente
golpe de ar. As damas do comité, incansáveis, tinham saído pouco antes
da Sr.ª Argemira. E para o fim da madrugada o programa fora definitivamente
traçado; todas as bandas militares cedidas pelos comandantes dos corpos,
barracas de doces, de buffet, de cartões postais, de flores, de chá,
tenda de pitonisa croata, números infantis compostos de corridas a pé, corridas
do copo d'água, corridas do ovo com prêmios, concurso de batéis enfeitados
sobre os lagos, tômbola às cinco horas, baile ao ar livre no magnífico terraço,
e a grande resistência: o teatro. O teatro era dividido em duas partes. Na
primeira uma comédia de salão, escrita em francês pelo amador literário
Gomensoro, e representada por três das mais distintas senhorinhas e o Belmiro
Leão, cuja dicção parisiense era estupenda. A comédia intitulava-se
discretamente Ohé! les petites! Depois: Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde,
em romances franceses; dois atores portugueses, comendadores de S. Tiago, que
sabiam vestir casaca; versos de Musset, pela grande atriz francesa; a ária da Boêmia,
pelo notável tenor Zenaro; as canções da Judic, pela atriz portuguesa. A
noite, os fados portugueses, pela excepcional Etelvina Gomensoro e uma
orquestra de bandolins de cem meninas (eram de fato oitenta e três), vestidas
de branco, com uma fita azul a tiracolo. E, como fecho de ouro, os quadros
vivos com projeções elétricas, em que figuravam ''Cristo e a Adúltera'', ''A
Samaritana'' e outros motivos santamente bíblicos.
Essa importante parte da festa era por inteiro obra de
Godofredo de Alencar. Mas dera-lhe decerto menos trabalho diplomático que o
arranjo das comissões das barracas à Sr.ª de Melo e Sousa. Nomeadas as chefes,
com o desejo de não suscetibilizar ninguém quanto ao local, outra dificuldade
surgiu, quanto às caixeiras, às vendedoras. Era preciso saber as relações das
meninas, as zangas, as amizades. Uma das famílias - precisamente a família do
médico milionário, que dera uma forte soma ao Dispensário - tinha tão má
vontade das outras, que foi preciso juntá-la num lote a vender cartões postais
autografados. Depois, se umas queriam vender doces e vinhos, outras achavam
deprimente um tal mister, mesmo por brincadeira.
— São as que têm merceeiros na ascendência! - sentenciava
a Muripinim, velha relíquia da monarquia, à velha Ataíde, esmaltada progenitora
de Etelvina.
Uma palavra, de resto, bastava para desconcertar uma
barraca, e muitas desistiram à última hora, retiradas pelos pais extremosos e
pouco civilizados. Quando a Argemira viu a sua lista concluída ainda pensava
que era mentira.
As barracas estavam, aliás, muito bem dispostas nas
aléias, de emboscada as de flores e cartões; bem à vista as de doces e bebidas.
Os números de teatro realizavam-se no próprio tablado junto ao botequim, cujo
proprietário prometera, nos últimos momentos, fazer também funcionar o biógrafo
nos intervalos da noite, - grátis. Aquelas damas arranjavam tudo grátis.
Até o biógrafo.
D. Malvina apareceu no jardim, ás onze horas, julgando ser
a primeira. Acompanhavam-na cinco criados. À porta já havia um esquadrão de
polícia e uma turma de guardas-civis. No jardim, só uma barraca estava ocupada,
a da esposa do médico com as suas respectivas filhas, moçoilas de uma fealdade
esplêndida. D. Malvina concorrera com doces feitos em casa. Era a última
abencerragem da nossa remota civilização patriarcal. Os grandes cestos que os
criados traziam eram de bolos, balas e outras guloseimas familiares. Quando
chegou ao buffet não havia nada arranjado. Apenas o Chagas e o filho dos
Viscondes de Pereira tomavam vermouth, uma das garrafas oferecidas por
conhecida casa comercial, que só oferecera por ser conhecida e solicitada e ter
reclamos nos jornais - o que redundava em lucro para o seu negócio. Os dois
mancebos estavam em mangas de camisa e desculparam-se vexados.
— Trabalhamos toda a noite!
— Estou que não posso! Mas venha ver, a senhora que tem
gosto!
D. Malvina acompanhou-os ao lugar onde teria lugar a
tômbola. Era uma azáfama. Meia dúzia de jovens trabalhava a gritar e havia
brinquedos e coisinhas dependuradas em toda a volta.
— Vai ser um sucesso, D. Malvina.
— Se Deus quiser. Estou com medo da chuva. O povo tem
medo. E até agora nem sombra de sol.
— Não chove, aposto - gritou o Dória. - Já intimei o sol a
aparecer. A pouco e pouco, entretanto, iam chegando as senhoras encarregadas
das barracas, fazendo os preparativos, "tomando conta", como
aconselhava, D. Malvina. Ao meio-dia, já três bandas de música tinham aparecido,
três só. Os rapazes que faziam parte da roda e tinham as famílias nas barracas,
entravam naturalmente. Uma alegria ainda débil desabrochava com timidez nas
aléias úmidas de chuva. As meninas riam na intimidade dos flirts, preparando-se.
Era em tudo como nas caixas de teatro, antes do sinal de prevenção para o
primeiro ato. A uma menos um quarto saltou de um coupé Godofredo de
Alencar, acompanhando o tenor Zenaro. Fora o maior sacrifício da sua vida
aproximar-se do tenor, conseguir a sua presença, ele, que odiava os tenores.
Zenaro, quarentão com atitudes de efebo, as sobrancelhas avivadas a khol, hesitara,
mostrara o seu enorme sacrifício, consentira na publicação do seu célebre nome
nos programas, mas, como bom tenor, esperava a promessa de um cachet. Na
véspera, desejara experimentar a voz no local, pedindo ao egrégio crítico a
gentileza de acompanhá-lo. Godofredo fora buscá-lo. Zenaro queixara-se da
umidade. Aceitou o coupé, depois de almoçar, e saltava com um ar de
soberano de corte decadente.
— Não está ninguém.
— Estou eu...
— Digo que nenhuma das senhoras veio receber-me.
— Ainda é cedo.
Com a face fechada, o célebre tenor foi até ao botequim,
fixou o tablado e exclamou:
— Mas é ali que eu vou cantar?
— Meu caro, você vai fazer uma obra de caridade. Ao seu
lado comparecerão grandes artistas.
— Eles virão mesmo?
— Creio que vêm, mesmo porque está toda a sociedade metida
na festa.
— Ah! Acho muito desabrigado. A voz perde-se.
— Qual! Experimente.
No momento em que Zenaro se dignava soltar uma nota de sua
garganta-tesouro, um tramway passava na rua a toda a velocidade,
guinchando as rodas na curva dos trilhos. Zenaro estacou.
— E os tramways param?
— Param - mentiu Godofredo.
— Bem. Então, se o tempo não me fizer mal, virei.
Mandam-me buscar?
— Claro.
— É possível, é muito possível que venha. A questão é do
tempo. E da minha saúde.
Depois pigarreou, olhou hostilmente aquele lamentável meio
de café-cantante com cadeiras de folha e bandeirolas, estendeu a mão:
— A rivederci...
— Até logo.
Godofredo acompanhou-o até a porta, convencido de que o
efebo quarentão não voltaria. Acompanhou com uma secreta vontade de sová-lo. A
quantas humilhações descia inutilmente! Mas vingar-se-ia, anotaria pelos
jornais a decadência daquele tenor de que com tempo perdido, se apaixonavam as mulheres.
Entretanto, na bilheteira o aplaudido cronista recebeu um
embrulho e uma carta.
O embrulho eram os petits souvenirs para
os artistas, carteirinhas vazias de cinco mil-réis. A carta era da grande atriz
francesa, que se desculpava com uma terrível dor de cabeça, por não poder
comparecer. A sua raiva secreta, aumentou. Que papel iria fazer? Talvez não
viesse ninguém. Estavam os seus créditos de crítico a periclitar, a sua
influência na perspectiva de se mostrar nula nos bastidores. Também com aquelas
senhoras, que davam carteiras de tal ordem, e não vinham receber um tenor de
fama mundial!
Era, porém, uma hora. Ouviu-se uma sineta que soava ao
longe. Os portões abriram-se. Um magote de gente precipitou-se. No magote
Argemira e Alice, apressadas, com o aspecto de quem falha a cena. Alice
contrariada por não poder mostrar um estupendo vestido de rendas brancas, em
virtude do tempo.
— Bom dia, diretor dos teatros.
— Então, choverá?
— Que chova a potes. Agora...
— Olha, noutra não me pegam.
Godofredo quis acompanhá-las. Mas o receio de fazer um
fiasco, de outros artistas mandarem desculpas, fê-lo parar. Não teria uma
festa, teria um dia de aborrecimento e preocupações. A banda de música
rebentara a tocar. Ao magote curioso sucedera, entretanto, plena calmaria.
Gente passava fora, olhando com desconfiança. Outros chegavam aos guichets da
bilheteria e recuavam diante do preço. Os mais ousados, um, dois, de vez em
quando, entravam meio acanhados. Eram na maioria gente domingueira, atraída
pelos reclamos, mas prevenidos. Imediatamente partiam da feia barraca do médico
cinco vendedoras de cartões postais, e da barraca de flores duas meninas
armadas de cestinhas, com agonizantes espécies florais. Como não eram gente
conhecida, essas meninas muito bem-educadas (quase todas em Sion, quando os
pais tinham o alto posto, há tempo) tomavam uma atitude impertinentíssima, e
ofereciam as flores ou os cartões, numa frieza de cartel de duelo. Os que
entravam, ou esquivavam-se a balbuciar, ou aceitavam de vergonha. As meninas não
davam troco e não diziam obrigado, amarrando a cara como se acabassem de
receber uma ofensa. Uma delas correu a um sujeito gordo, cheio de brilhantes e
malvestido.
— Qual, minha menina, não vou nisso - regougou ele. - Já
comprei à porta...
A pequena ficou vermelha. A mãe chamou-a severa.
Godofredo mordia o castão da bengala, assistindo àquela
lamentável cena de um bando de esnobinetas tolinhas. Contudo, acercou-se,
concordou com elas, ouviu-as. Em ambas as barracas esperavam as boas relações,
os conhecidos. As meninas tinham apostado a ver quem havia de fazer maior
quantia e contavam com a generosidade dos amigos da família. Apenas. Podiam
contar com os flirts. Os flirts, porém, eram grátis, e haviam de
ter quantas flores desejassem sem despender vintém.
O dia continuava escuro. Mas, de repente, sem que ninguém
esperasse, um raio de sol filtrou-se por entre as nuvens de chuva. Esse
imprevisto fez as meninas das barracas soltarem exclamações de alegria, e a
todos pareceu que era a vida vindo em auxílio da festa.
De novo recomeçou a entrada em massa. No elemento anônimo
havia já personalidades conhecidas: três ou quatro deputados, dois membros do
Supremo Tribunal, um grande construtor. Reporters novatos, armados de
tiras e lápis, surgiam e iam perguntar a lista das diretoras das barracas. As
senhoras gostavam muito de nome no jornal, mas não podiam dar a confiança de
uma resposta amável. Eram muito delicadas para tal. Na barraca das feias, as
meninas não responderam. Foi a mamã, seca de voz e gorda de corpo.
— Ponha: primeira barraca de cartões postais. Mme. Silva e
suas filhas.
— Mesdemoiselles? - indagou o menino informador,
esforçando-se por parecer elegante.
— Basta o que lhe disse - regougou Mme. Silva, como se
falasse ao seu copeiro, ela que se dava com o dono do jornal de que o petiz era
noticiarista.
— E tem vendido muito?
— O senhor não vê que começo agora?
— Desculpe V. Exa..
A feia dama dera delicadamente as costas ao pobre rapaz.
Era imprensa! E que metediços! Ainda se fossem os donos do jornal...
Na outra barraca, na das flores, a mesma senhorinha a quem
o homem abrilhantado respondera com grosseria, tomou um ar altivo e olhou a
promessa jornalística como assombrada que um pequeno gazeteiro tivesse o topete
de falar a pessoa da sua importância tão sem respeito. Foi preciso Godofredo
prestar as informações. Um dos meninos dos jornais estava furioso.
— Que insolentes.
— É de família, filho.
— Como se chama aquela?
— Zuleika.
— Troco-lhe o nome.
— Fazes bem, porque ela adora o nome nas seções mundanas.
É o único meio de seres cumprimentado amavelmente, e se o teu patrão não te
puser no andar da rua a pedido do pai. Erra-lhe o nome sempre e passa por ela
sem a saudar, encarando-a.
Mas nesse momento entrava Arcanjo dos Santos. As pequenas
caíram-lhe em cima. Os reporters foram-se. O pelotão de Mme. Silva
avançava. O deputado disse baixo apertando a mão de Godofredo, para as meninas:
— Depois. Não dou agora para não dar também ás feias. - E
agarrou do pálido homem de letras.
— Estou receoso. Imagina que venho da casa da Fanga.
— Bem, e então?
— E então é que quase todas as cocottes estão com
vontade de vir.
— Que tem isso? Acontece o mesmo em todas as festas de
caridade. As cocottes fazem sempre melhor figura. Depois a caridade e as
cocottes... Olha a divisa é a mesma: recebe sempre e não olhes de
quem...
— Sempre paradoxal! Mas não deixo de estar assustado.
Em razão desse estado, viu o Chagas e repetiu o
acontecimento; viu o Pimenta e fez o alegre representante da alegre pátria
passar adiante, achando o caso imensamente parisiense. Em dez minutos na roda,
os casados com aquelas damas ou pais daquelas meninas ou amantes de fato e de
esperança, mas todos freqüentadores da Fanga, souberam que a linda italiana
apareceria com os exemplares mais belos do seu colégio. Era uma chegada tão
sensacional como a do presidente da República ou a do cardeal. Quando Jacques
entrou com Belmiro Leão e Bruno Sá, foi a primeira coisa que lhe disseram.
— Sim senhor! - fez Bruno Sá, sem dizer se achava bom ou
mau.
— Estamos no nosso elemento.
— Homem sem princípios!
— Quem almeja os fins não olha a princípios. Ainda assim
estamos com a filosofia do meio.
E cada um foi tratar da sua vida. Haviam chegado mais duas
bandas de música. A concorrência era agora franca e larga. O portão sorvia ás
centenas as diversas classes de que se compõe uma sociedade que se preza. Na
aléia preparada para o programa infantil, começava o primeiro páreo de crianças
a pé, menores de oito anos, e ganhara longe a filha de Mme. Gouveia, inscrita
como prestes a entrar na casa dos oito, mas infelizmente para as concorrentes,
maior de dez anos havia seis meses. Nesse trecho do jardim era um brouhaha
de pequenos e pequenas, com a viva alegria que os jardins infiltram
nas crianças. E já os petizes bem vestidos, mostravam uma educação prometedora,
as meninas com pretensões, os rapazes mais insolentes, desses que fingem de
filhos de rei e só cedem à ameaça de um puxão de orelhas.
O Dória, que, à última hora, dirigia a criançada, sentia bem
o juízo que dele faziam os maiores pelo tonzinho com que a ele se dirigiam.
Pobre Dória! Alguns pais e algumas amas mesmo dirigiam-se à sua ex-elegante
pessoa como a um bedel carinhoso.
— Ó Dória, cuidado com o Juca...
E os meninos, à primeira necessidade, vinham a ele,
imperiosos. Na corrida do copo d'água a filha de Mme. Zurich ainda não
divorciada, correu, mas entornou o copo inteiro na sua linda roupa, e chorou
furiosa. O Dória teve que acalentá-la, prometendo-lhe uma boneca na tômbola - o
Dória que não se dava com o marido da mãe, desde um incidente, ao jogo.
Pelo jardim, porém, nem todos tinham os encargos do
arruinado ex-engenheiro. O movimento pelas aléias era difícil e lento. Em cada
barraca, organizara-se um ranchinho, o rancho das vendedoras e dos seus
respectivos flirts, desde os flirts de que elas gostavam mais até
os flirts serventuários, meninos que se encarregavam de pequenos
serviços. A excitação do jardim e da turba foi como que propagada por esses
focos de elegância. As maneiras um pouco faubourg do
princípio, iam num crescendo de feição americana. Havia risos, gargalhadas de
troça, segredinhos, passeios de algumas senhorinhas a outros pontos pilotadas
pelos rapazes. Quando chegava algum conhecido era o ataque.
— Conselheiro Filgueiras, esta flor!
— Dous tostões.
— Oh! conselheiro.
— Então marque o preço.
— Cem mil-réis.
— Só a flor?
— Exija, tirano do dinheiro.
Uma dúzia de homens ricos e viajados trouxera mesmo maços
de notas novas, para dar sem exigir troco. O autor de Smart-Ball, com
colete à fantasia do pior gosto, já ficara reduzido à expressão mais simples.
No grande buffet, onde estavam as maiorais do comité, os preços
chegavam a excessos. E aí, ao lado de Argemira e de D. Malvina e de Luísa
Frias, segura a Bruno Sá, Alice dos Santos, lançada sem freio, estava como
enebriada do seu triunfo. Um industrial dera-lhe um bilhete de quinhentos por
um cálix de porto; um senador, que viera servir-se de uma sandwich, atacado
por ela, dissera:
— V. Ex.ª de mim tem o que deseja.
— Em troco de quê?
— Do que desejar.
— Então deixe ver duzentos.
— Tê-los-ei ainda!
— Dê-mos que não se arrepende.
O homem consultou a algibeira, retirou quatro notas de
cinqüenta, as últimas com que pretendia comer mais quatro sandwiches e
talvez beber um cálix de vinho. Entregou-as. E Alice estendeu-lhe a face.
— Beije!
O senador ficou perplexo. Em torno todos voltavam-se
divertidos. Alice ria. Era assim que ela lera num romance. Reproduzia fielmente
a cena e obscurecia por completo o provincianismo não dela, mas das outras. O
senador, tonto, pousou-lhe os lábios na testa.
— Arcanjo e Deus perdoar-me-ão em nome dos pobres.
Belmiro Leão na algazarra que sucedeu ao beijo,
decidiu-se.
— D. Argemira, não acha que os pobres devem ter também?
— Sei lá...
Alice sorria. Ele apertou-lhe os braços. Ela excitadíssima
olhou-o com uma chama nos olhos belos.
Mas, caminhando para o terraço a segurar o braço da
Malperle viu de repente Jacques. Então quis ousar mais, chamou-o alto, com um
ciúme raivoso da linda Malperle de branco-cinza com os seus corais de girl new-yorkense.
Jacques ia subir ao terraço, Alice gritou. O lindo rapaz apressou o passo,
fingindo não ouvir, desapareceu. Ela ficou com o coração a bater. Belmiro Leão
aproximou-se. Era uma confusão tão grande que além dos criados, as próprias
senhoras serviam.
No terraço, porém, a cena tornara-se de uma empolgante
beleza. Aquele movimento de turba numa confusão de cores surdas, sob o cinza do
céu que se ligava na linha do horizonte ao verde-negro do oceano, empolgava.
Uma banda militar tocava valsas. A maioria do povo chamada ali para concorrer,
apenas com o seu dinheiro, assistia ao valsar de alguns pares elegantes, e era
uma delícia ver o Gouveia com um enorme chapéu florido rodopiar pelo braço,
leve de um tenente da Marinha, Mme. Zurich deixar-se levar como uma sílfide
pelo filho do antigo merceeiro Teotônio, e Gaby Nolasco e Germana Guerra e a
Viuvinha Pereira cada uma com seu par distinto na ebriedade do ar livre e da
valsa langorosa. Jacques não perguntou a Gina Malperle se dançava. Enlaçou-a,
rodopiou. Era uma das suas muitas qualidades: valsava deliciosamente, com
autoridade sobre o par. As damas passavam a pequenas coisas animadas por ele.
Gina sentia-se possuída, e a valsa era como um rosário de suspiros de gozo.
Entretanto, enquanto na tômbola, o homem de gosto, Chagas,
preparava um sorteio genial, Godofredo de Alencar penava com a sua parte
teatral, correndo entre a porta e o botequim. As quatro horas a rotunda que
forma o bar estava repleta. Os impacientes batiam com as bengalas, as pessoas
amigas vinham tomar informações.
— Então, quando se começa?
— Já, vamos começar.
Era que nenhum dos artistas chegara ainda. Godofredo
tremia de cólera. O público estava ainda mais impaciente. Então o marido de
Etelvina teve a idéia de começar logo a comédia: Ohé! les petites.
— Pelo menos começamos. O público está impaciente.
— Depois é mesmo do programa...
— Boa idéia.
Um quinteto de cordas tocou a ouverture. Godofredo
correu à porta. A comédia (ninguém sabia de quem a tomara o Gomensoro) era a
história de três meninas, que querem casar com o mesmo rapaz tímido. O rapaz
propõe casar com as três. Mas recebe uma carta da prima, mais velha dez anos e
prefere-a - porque o seguro morreu de velho... A maioria do público, ignorando
o francês, não compreendeu a graça esfuziante dessa obra-prima. Os mundanos
bateram palmas. Quase junto ao tablado o Barão Belfort cumprimentava Gomensoro
chamando-o à cena. Gomensoro não veio. Era inteiramente do tom. Mas apareceu
Godofredo enfim, com os três artistas portugueses. Estava salva, mais ou menos
salva a primeira parte. O literato parecia lívido de cólera. Ninguém recebera
as artistas, e os amadores de salão, sabendo que eles vinham graciosamente
tomavam ares superiores e frios...
— Por aqui, por aqui - fazia ele.
— Ai filho, que complicação!
E as amadoras mundanas olhavam d'alto, sem ao menos
agradecer o obséquio da gente da rampa lisboeta. Idiotamente insolentes,
pensava o cronista. Mas um dos artistas, deslocado, para se afirmar um pouco,
falou alto:
— Ó Godofredo dá-me esta música ao maestro. Faze-me esse
favorinho, sim?
E Godofredo enraiveceu mais porque os artistas tratavam-no
por tu, à vista da alta sociedade. Assim a sua entrada foi atroz. Quem liqüefez
o gelo entre artistas de sociedade e artistas de palco foi Angelina Mora.
A estrela portuguesa trazia um vestido estupendamente rico
e punha o face-à-main para olhar as petites do Ohé de
Gomensoro com um ar de amadora numa exposição de quadros. Era célebre. Célebre
e meia doida como todas as mulheres célebres. Estava convencida de que ia
triunfar.
De fato.
Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, cantara apenas
versos de Verlaine, música de Debussy, e Angelina Mora, com um talento muito
maleável, impunha-se. O público fez-lhe uma ovação. Godofredo, entusiasmado foi
beijá-la.
— Tenho uma prenda para oferecer-te.
— É jóia, filho?
— Não, é uma carteira vazia...
— Estas tuas damas de caridade são sempre muito cascas.
Apresenta-mas ao menos.
Godofredo tinha receio, mas enganava-se. Desde que
Angelina triunfara e a roda de cavalheiros a saudava, o high- life admitia-a
logo. Etelvina, para mostrar que não se esquecera dos centros artísticos de
Paris, foi encantadora; Gomensoro, a que a prudência diplomática fizera
reservado, veio beijar-lhe a mão. E as meninas aproximaram-se sorrindo.
Angelina apertou-lhes a mão com intimidade e para uma:
— Sabe que é bonita?
— Bondade sua.
— Linda, mesmo. De estalo! Deixe dar-lhe um beijo! - E
precipitou-se, ardente.
A noite descia já sobre as árvores. Uma das lâmpadas
elétricas sacudiu-se e a luz branca explodiu, fixou-se. Imediatamente outras
lâmpadas abriram. O jardim de súbito se encantara de luzes. Ao mesmo tempo uma
fanfarra tocou, e as bandas começaram o hino nacional.
— O presidente! - gritou Godofredo.
— O presidente!
Várias vozes repetiram a palavra mágica. A multidão
precipitou-se. Era realmente S. Exa. que chegava para dar maior brilho à festa.
O comité, Arcanjo, Jacques, Malperle, estava à porta para recebê-lo. Os
grandes nomes da política, da indústria e da finança, dependentes de gestos
seus, mostravam um sorriso amável. E a multidão seguia-o como na rua se
acompanha um andor.
Godofredo só pôde apanhar a comitiva perto do lago onde,
sem concorrência, uma pequena barraca vendia sorvetes e balas. O senhor
presidente resolvera visitar todas as barracas tendo para cada uma vendedora a
frase de gentileza justa. Era aristocraticamente democrata. Intimidadas, as
vendedoras nada lhe ofereciam. S. Exa. sorria e pedia:
— Uma flor...
Todos queriam ter o prazer de oferecer uma flor, ou mesmo
um ramo de flores, ao detentor das concessões e dos dinheiros públicos, ao
senhor do progresso do país. Ele, porém, discretamente, deixava nos açafates
uma nota nova e agradecia ainda por cima. Chagas reparou que eram bilhetes da
Caixa de Conversão de cem mil-réis e foi somando, ao lado. No buffet, um
momento pararam. S. Exa. com um flute de champagne na
mão, disse algumas frases sobre a caridade, cumprimentou Mme. de Melo e Sousa,
cuja família era uma das nobres tradições do país, saudou com respeito íntimo,
Alice dos Santos. Estava, precisamente, ao lado do grande chefe político, que
se curvava para Luísa Frias. Jacques, bem perto, teve uma inspiração:
— Apresenta-me ao presidente - disse a Arcanjo, tão alto,
que S. Exa. ouviu, voltou-se sorrindo.
O deputado também sorriu. D. Malvina ria.
— V. Exa. a permite? o Dr. Jacques Pedreira, filho do
ilustre Dr. Justino Pedreira.
— Já formado? Tão moço! Meus parabéns. Sou muito amigo do
seu pai.
— Foi a admiração por V. Exa. que me fez desejoso de
apresentar a V. Exa. os meus cumprimentos.
— Ah! muito obrigado - disse o estadista presidente,
olhando-o com simpatia.
E a visita continuou. Mas Arcanjo, com receio, notou que
não tinha apresentado Jacques ao Grande Chefe, e o Grande Chefe vira. Era mau
para ele Arcanjo, era mau para Jacques. Uma desconsideração talvez... Então,
apanhou Jacques pela aba do frack. E para o homem importante, de que
dependiam a sua reeleição e o seu reconhecimento, assim como a reeleição, e o
reconhecimento de todos os seus colegas, chamou:
— General, aqui tem um seu admirador.
O general voltou o olho apenas, sorriu superior.
— Conheço já o menino. É filho do Justino? Um dos nossos
amigos.
Jacques sentiu-se à vontade e sorrindo:
— Papai fala tanto do senhor e o Arcanjo conversa tanto a
seu respeito, que eu já de muito lhe quero bem.
Aquilo saíra-lhe naturalmente, sem esforço. Ele próprio
admirou-se, vendo o olhar grato do Arcanjo. O hábito da sociedade e o contato
com a política já o faziam mentir com uma segurança deliciosa. O Grande Chefe é
que não respondeu, acostumado à ambrosia da lisonja.
O presidente dirigia-se para o teatrinho. Havia um lugar
reservado, com tapete sobre a areia, para S. Exa. e os ministros. Só três
ministros haviam comparecido. Mas os lugares foram todos ocupados.
Imediatamente, fez-se ouvir o hino, e em seguida o pano subiu, deixando ver
trinta e cinco meninas (afinal tinham comparecido só trinta e cinco das cem)
vestidas de branco e azul e armadas de terríveis bandolins. Iam tocar fados,
essa emocionante cantilena, essencialmente nacional no pais irmão. E com os plongeons
do Rambouillet e todo o chiqué das grandes artistas,
Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, surgia para cantá-los.
Jacques ficara entre Gina Malperle e uma pequena morena,
com um olhar de maravilha, que tremia, olhando-o. Era a filha da Viúva
Monteiro, Lina Monteiro, inteligente, bastante morena, sem dinheiro, sem
proteção, que se agarrava à sociedade considerada por uns semivirgem,
considerada por outros uma infeliz. Jacques que já beijara a Malperle na nuca e
juntava a sua perna à dela, foi se deixando pender para Lina Monteiro. A jovem,
cujos olhos ainda pareciam maiores, tremia e deixava aproximar-se o mancebo.
Naquele momento, era provável que muitos fizessem o mesmo. Jacques fixou-lhe a
medalha modesta que ela trazia à guisa de pendentif.
— Que olha? - fez ela tímida.
— A sua medalha.
— É feia, não?
— Estou-lhe com inveja.
— Ah!
— Queria ser medalha, essa medalha.
— Ah!
— Sim, para estar onde ela está.
Mas os fados bisados tinham acabado e iam ter lugar os
quadros vivos, a nota sensacional. Apagaram-se repentinamente as luzes. Era
como no cinematógrafo. Jacques agarrou sem hesitar a mao de Lina Monteiro, que
parecia querer ser pegada e deixou que a Malperle lhe caísse no braço,
curvando-se, excitando-o com o seu cheiro capitoso. Outros, talvez, estivessem
fazendo o mesmo. Houve um tremolo no quinteto e apareceu o
primeiro quadro: a "Caridade", um anjo estendendo a mão a uma
criancinha, que devia ter fome e estava quase nua. Era a filha de Mme. Gouveia,
a que continuava a não ter oito anos, já tendo passado dos dez. O presidente
bateu palmas. Todas as autoridades civis e militares também. Os projetores
elétricos apagaram-se e a orquestra tocou. Em seguida foi a
"Samaritana", segundo o Veroneso, assegurava o Chagas. A
"Samaritana" de azul, com o costume oriental dava, de beber por uma
bilha ao Cristo, que era o Dória, o Dória, em pessoa, mostrando os seus belos
músculos. A Samaritana era Alice, extasiada. Esse quadro causou sensação. O
último, porém, eletrizou. Era mais ou menos, segundo o mármore de Bernardelli,
"Cristo e a Adúltera". Alice estava apenas um pouco mais vestida, mas
mostrava uma admirável composição de medo, agachada aos pés do Deus Homem, e o
Deus Homem estendia a destra num gesto definitivo. O Dória parecia mais do que
Deus.
Entretanto, nesse momento, para os lados da tômbola em que
se procedia ao sorteio, entre o formigamento das crianças, Fanga, Liana,
Concha, a d'Amboise e outras cocottes surgiam para tomar champagne em
companhia de Jorge de Araújo que as trouxera num dos seus automóveis. O filho
dos Viscondes de Pereira logo que as viu precipitou-se.
— Viva a gente de gosto!
— Com que então você na tômbola? - indagou Jorge. - A
apostar que fazes tratantada.
— Deixa de brincadeira.
— Ora! Então os melhores objetos não ficam para a
comissão?
— Talvez, por sorte - sorriu o outro cínico.
— Arranja ao menos um leque para a d'Amboise.
— Espera. Tomo o champagne, e é já. Que número é o
seu?
Mas nesse momento Bruno Sá passou apressado. Jorge
chamou-o. O elegante cavalheiro não atendeu. Logo depois assomaram na escada do
terraço o marido de Mme. Zurich, e Belmiro Leão que o acompanhava gesticulando.
— Ainda um escândalo - fez o Pereira. - A Zurich estava
dançando escandalosamente.
— Dizem que tem muito mau comportamento - fez a Fanga.
E o grupo emborcou os copos de champagne.
Só, por entre os grupos, simples espectador, o Barão
Beffort passeava. Gostava mais de ver só, o Barão. E a festa linda, como o céu
se alimpara e havia um esplêndido luar, tomava um aspecto inédito.
Era no conjunto, um misto de encanto de feira, de
impalpável luxúria, de contrariedades enervadas, de promiscuidades confusas. No
alto do céu lavado, a lua derramava um luar de oiro calmo e sereno. Embaixo, a
poeira levantada pelo movimento intenso, fazia como a atmosfera do jardim, onde
as árvores pareciam saudosas do quieto silêncio. Nos tabuleiros de relva, a luz
do astro punha reflexos e infiltrações de opala. Em alguns, repuxos coloridos
de verde, vermelho, roxo, atiravam ao ar a fantasia cambiante de plumas d'água
irisadas. Nos lagos de um sujo esverdinhado, os batéis enfiorados de copinhos
multicores pousavam com um ar de mágica e de legenda. Pelas aléias, pespontadas
pela luz das lanternas de cor, acesas na palpitação das grandes lâmpadas
elétricas, a turba movia-se policroma e agitada: chapéus, gazes, cabeças nuas, paletot,
capas, uma confusão de corpos a passar devagar ou a correr, enquanto um
rumor feito de mil rumores, de sons metálicos das bandas, de gritos, risos,
frases perdidas, conversas multiplicadas, subia ao ar aberto em clamor. Nas
grandes festas, em que há multidão, sempre em dado momento, estala um surdo
incêndio de apetites, de animalidade que a civilização retém a custo. É o
momento turbilhão das pequenas licenças, dos olhos acesos, dos apertos febris,
dos desejos imediatos, que nem sempre se realizam. Então, por um fenômeno de
projeções odicas, como que o ambiente, as cousas imóveis, o inanimado, as
luzes, as árvores, o ar se embebem de sentimento geral, e há como um frenesi de
posse final, mesmo nos menos aptos e nos mais fracos. É o fim dos bailes, é o
fim das kermesses. Era o fim também para aquela festa de caridade e de
mundanice.
Realmente, depois dos quadros vivos, o presidente da
República, acompanhado da sua casa civil e militar, retirava-se. Com ele saíram
os políticos de monta. Depois dele sairiam os grandes mundanos. O comité, Godofredo,
Arcanjo, vinha trazer sua excelência até o portão. O primeiro magistrado da
Nação dizia gravemente palavras de cumprimento estudadas pela manhã. Estava
encantado. Quando passou o portão, em frente ao parque estendia-se no percurso
da tua inteira a força de linha, de calças vermelhas, tendo por trás a turba
curiosa. Um toque de clarim varou o ar. Cem caixas rufaram a um tempo. Na
semitreva um pavilhão nacional adejou. Uma fila de automóveis, com os
refletores possantes projetados em triângulo de sangue estacou mesmo em frente
ao portão. S. Exa. mandou arriar a capota do seu. Os trintanários empertigados
faziam a continência. Depois, com um gesto airoso subiu, sentou-se. O general
que o acompanhava entrou também para o veículo, que logo rodou macio e lento.
Ao mesmo tempo rompeu o hino nacional, que se propagou, cresceu, acompanhou o
automóvel, explodiu na rua inteira o seu clangor triunfal.
— Viva o presidente! - berrou um sujeito.
— Viva! - responderam algumas vozes.
O comité, intimamente orgulhoso mas achando
ridículo o patriotismo, tinha um sorriso de satisfação irônica. Para aquelas
damas e aqueles cavalheiros, os homens de Estado só eram compreendidos com a
significação de lhes dar lucro ou o brilho oficial. No torvelinho da saída o
barão deu com o Chagas e Arcanjo.
— Magnífico, hem? - exclamou o deputado vegetarista. - O
presidente esteve chic. Deu para mais de três contos em notas novas.
— Não aumentes. Acompanhei-o e somei. Foram só dous contos
e quatrocentos - clamou o Chagas.
— E achas pouco?
— Também pelo que lhe custa...
O barão apenas sorriu. Godofredo tomava-lhe o braço.
— Partamos. Estou esgotado! Um dia inteiro a suportar esta
gente.
— Com efeito, estiveram todos...
— Todas as senhoras, que fingem de caridade à custa dos
outros.
— Sim, todas... Mas falta uma, meu caro, a única de
verdade, que lhes serviu de pretexto.
— Qual? - fez o literato.
— A Irmã Adelaide.
— Homem com efeito, foi a que não veio. É que não era este
o seu lugar.
E os dous homens caminharam, enquanto a turba golfava do
portão, no alarido dos cocheiros dos automóveis, das buzinas, dos retintins
elétricos, dos tramways, das corridas desencontradas, dos gritos, das
exclamações...
IX
Episódio teatral
Dois dias depois da grande festa, Jacques Pedreira
encontrou, alegres e d'automóvel, Jorge de Araújo e Godofredo de Alencar. O
interessante jovem passara agradavelmente. Ao sair de casa, fora ver a simples
e ingênua Lina Monteiro. Em seguida tivera uma terrível cena de ciúmes e
reconciliação com Alice dos Santos. Depois fizera uma alta na casa da Fanga, a
ser olhado pela Liana, e acabara no chá a trabalhar o seu flirt com Gina
Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado. Trabalhar era o termo justo que
Jacques ouvira dar ás conquistas amorosas, e esse trabalho, o único que o
seduzia, dava-lhe até cansaço.
— Belo dia? - indagou o literato.
— Razoável... - sorriu Jacques com ares fatigados.
— Negócios?
— ... De mulheres.
Godofredo ergueu as mãos num protesto: Jorge riu
francamente. Jacques sentia-se feliz. Certo, tão lindo jovem não tinha tenção
de ficar com qualquer das damas que o distinguiam: duas já conhecidas e duas
virgens. Apenas no momento conservava-as, balançando a vontade entre a paixão
das mulheres e o flirt das meninas - posto que talvez fosse exagero
chamar a Malperle de menina.
E assim, satisfeito, quantas mulheres viessem, quantas
poderiam amá-lo que a todas procuraria ser gentil. Ele sabia trabalhar...
— As mulheres, Jacques, são apenas um veículo... -
começava Godofredo.
— Deixa-o falar - interrompeu Jorge. - Nós vamos a elas.
Queres vir?
— Onde?
Jorge e o cronista iam assistir da caixa ao espetáculo de
uma companhia portuguesa. Como acontece todos os anos durante o inverno, tinham
aparecido a substituir o teatro nacional várias companhias lusitanas de todos
os gêneros.
A que fazia mais dinheiro era a de opereta, devido talvez
às coristas e às atrizes, quase todas novas e complacentes. A timidez do
brasileiro no capítulo mulher é avaliada pela procura e o interesse mantidos
pelas companhias de opereta portuguesa. Estão mais à vontade? Será só por isso?
Tudo é mistério, e neste caso um feliz mistério para ambas as partes.
Seria um crime entretanto dizer a companhia freqüentada
apenas por tais atrações carnais.
A companhia tinha um velho repertório de velhas operetas
francesas, inacabáveis operetas lisboetas e antiguíssimas revistas de uma
estupidez verdadeiramente incomparável. E tinha também a estrela masculina, o
grande ator cômico Salústio Pedro que, nessa noite representava uma das suas
coroas de glória: os Sinos de Corneville. Era na estação o seu segundo
beneficio, porque Salústio Pedro, além de sócio do empresário nos lucros, além
de um ordenado mensal de tenor do Metropolitan, recebia ainda a importância
integral de duas récitas, uma oferecida pela empresa em homenagem ao seu
talento, outra arranjada pelos amigos em honra ao seu gênio dramático. Essas
visitas ao Brasil, além de concertarem assaz as finanças de Salústio, davam-lhe
uma dupla autoridade reflexa. Assim, em Portugal, Salústio exclamava:
— O Brasil, fez-me uma apoteose!
E no Brasil:
— Portugal encheu-me de louros!
Daí as amiudadas visitas e as aclamações e os aplausos
mesmo... Podia não ser uma estrela. Mas era bem um cometa familiar e prático.
O teatro estava aliás repleto. Uma banda militar tocava no
jardim, que de jardim, sendo um modesto pátio sem árvores, só tinha o nome.
Alguns admiradores haviam ornamentado a platéia de galhardetes e festões. Nos
fins dos atos soltavam da galeria pombos brancos. Quando Jacques entrou com os
seus amigos, terminava o primeiro ato. A multidão suarenta trocava opiniões
críticas sobre o magnífico ator tantas vezes aclamado. E Jacques sentia-se como
na Câmara inteiramente ignorado e desconhecido, porque esse público era de todo
diverso do público que freqüentava os teatros onde ia. Na bilheteria e no
escritório da empresa, Godofredo e Jorge tinham sido festejados. Ele, ninguém
via.
— Que gente! Ainda não encontrei uma pessoa conhecida.
— É outro meio - explicou Jorge.
— Pois claro - concluiu Godofredo. - Onde viu você uma
família elegante freqüentar um teatro onde se fala português? Quando vem é com
vergonha, como se estivesse a praticar uma ação feia.
— Pelo menos desagradável.
— Desagradável por que, se ainda não viste nada? -
inquiriu azedo o cronista, que tinha uma predileção inexplicável pelos
portugueses. - Vamos à caixa. Anda daí, deixa a elegância no jardim.
Foi assim levando o jovem. Saberia para onde o levava?
Decerto, não. Levemente cometemos ações que são gravíssimas. E muito ser-nos-á
perdoado de levar os outros sem saber onde, quando ignoramos mesmo onde nos
levam, as mais das vezes, os próprios passos. Jacques nunca tinha entrado numa
caixa de teatro, a não ser no Lírico, em dia de festa de celebridade
estrangeira. Mas portou-se bem. O movimento era por exceção enorme. Entravam
centenas de admiradores de Salústio Pedro, gente do comércio, homens com
brilhantes nos dedos e nas gravatas, caixeirinhos trêfegos, comendadores
respeitáveis. Os carpinteiros passavam com os cenários, gritando. Da bambolina
desciam panos velhos, e já, sobre um chapéu alto caíra por acaso um maço de
cordas. Os habitantes de Comeville, representados por uma dúzia de homens
feios, de calção, e por umas quinze raparigas de saiote curto, misturavam-se
nos corredores estreitos à massa suarenta dos admiradores. Godofredo e Jorge
abriam passagem para o camarim de Salústio, atopetado de idólatras. O camarim
estava também ornamentado e cheio de presentes, de dádivas, de recordações:
cartões postais com fotografias e assinaturas de colegas, menos brilhantes com
certeza; aparelhos para diversas necessidades humanas em prata, em tartaruga,
em marfim, caixas de charutos, bengalas, gravatas, anéis, piteiras, uma caixa
de vinho, dois presuntos de Lamego, um prato de bacalhau frito.
Date liliam... Salústio, comprido e magro, estava radiante. Já
começava a abraçar sem saber o nome das pessoas que dele recebiam tal prova de
intimidade. Foi quando Godoftedo bradou:
— Há lugar para mais alguns abraços?
A essa voz Salústio, para mostrar aos demais a sua
familiaridade com o grande cronista e o jovem milionário fez logo um claro na
onda admirativa.
— Vocês? Entrem! Entrem!
— Quero apresentar-te também um admirador: o meu amigo
Jacques Pedreira.
— Oh! senhor doutor!... - exclamou trêmulo de gozo a
glória cênica, posto que Jacques não lhe tivesse dito uma palavra.
E obrigou os três a sentar. Fazia no pequeno quarto um
calor de fornalha. Todos suavam. Salústio tomava para aqueles amigos o seu
grande ar de Mounet, do trololó, inteiramente enfarado das admirações públicas.
— Que querem vocês? Fatigo-me! Realmente! Afinal, boa
gente no fundo... - E voltando-se para Jacques, que sem dar por ele olhava o
próprio perfil no espelho ao fundo: - Não o temos visto por cá, senhor
doutor...
— Com efeito... - murmurou Jacques louco por se ver fora
dali. E voltou-se porque sentia que, à porta, alguém o olhava. O camarim de
Salústio era dividido ao meio. Na primeira metade Salústio recebia. Na outra
vestia-se. Acabava ele de desaparecer na outra, quando Jacques deu pelo olhar.
E de fato, olhavam-no. Era uma pequena gordinha, com dois grandes olhos negros,
uma boca polpuda posto que um tanto cínica. Nada tinha de excepcional, e
agradava. Jorge chamou-a.
— Não posso entrar no camarim - fez ela.
— Deixe ver a mão, então...
— Tome lá...
E, rindo muito, com uma curiosidade meio envergonhada:
— Quem é este senhor que cá nunca veio?
— Este é um príncipe.
— Então cá a República também tem príncipes?
Era de uma pequena estupidez deliciosa. A estupidez das
mulheres é sempre deliciosa, tanto mais quanto essa falta de percepção não lhes
prejudica em nada a ciência do amor que é sempre de revelações. Tinha dezoito
anos; talvez seis de carreira no que vulgarmente chamam a perdição. Era meia
louca, uma impulsiva, com súbitas paixões. E ria. Os homens também riam. Com as
mulheres quase sempre os homens riem sem motivo. Jacques meio corado,
respondeu:
— Eles brincam. Não sou príncipe.
— Pois é que o comia por tal.
— Hein?
— Os príncipes devem ser assim bem postos e bonitos.
Desapareceu rindo. Godofredo pôs-se a rir. Jacques julgou
aquela sociedade lamentavelmente reles. Reles e curiosa. Um tanto
agradavelmente curiosa. Mas aparecia o contra-regra a chamar o gênio teatral, e
os três cavalheiros tiveram que deixar o camarim.
Na caixa pesava um silêncio de catedral. Andavam todos em
bicos de pé; vagos seios preventivos como amarravam os menores gestos no temor
de romper a peso geral. Os coristas sentados no chão, por trás do pano do
fundo, conversavam quase ao ouvido um do outro. Os carpinteiros tinham
desaparecido. Tudo parecia em êxtase; e ouvia-se distintamente a voz de
Salústio dominando a platéia com a sua tremenda tragédia do segundo ato da
opereta. O costureiro do notável cômico e mais o contra-regra traziam para o
bastidor, um lençol e um manto negro.
Para que isso? - indagou Jacques.
— Ora! - respondeu Godofredo. - Isso é para levantar o
Salústio quando ele cair esgotado no fim do ato. Não te rias. O segundo ato dos
Sinos é a obra-prima desse gênio. Se não fingir que não pode dar um
passo, Salústio julga não ter representado bem. Um chiqué como qualquer
outro. Todas as noites é assim. Vais ver a entrada dele amparado pelos
coristas. É melhor do que todo o ato visto de fora.
Mas Jorge metera-se no camarim da atriz que fazia
Rosalinda, e Godofredo desapareceu também. Nas caixas esses movimentos de
dispersão não deixam de ser comuns.
Jacques por exemplo, ia acompanhar Godofredo, quando viu
inteiramente deitada no poeirento tapete da antecâmara de Corneville, a
rapariga que o achara bonito. Aí, ficou perplexo. Que fazer? Falar-lhe, dizer
duas frases vagas e superiores ou passar fingindo não ver? Ele nunca tinha má
vontade para com as mulheres. Essa porém não lhe agradava. Não! Não! Nada de
coristas portuguesas... Que diriam os seus amigos! E as senhoras então! Deu a
volta em torno da cena também em bico de pé para não perturbar o velho Tio
Gaspar, que escondia o seu oiro. A cena era fechada. Não podia assim ver o
velho tio, mas ouvia-o. Salústio rouquejava; devia estar terrível. Que
aborrecimento! E homens como Godofredo e Jorge iam a tais lugares e
divertiam-se!
Resolveu sair assim, na ponta dos pés, quando esbarrou com
a pequena que ria.
— O meu príncipe não se escamou?
— Eu - disse ele meio sério - por quê?
Ao mesmo tempo habituado ao salão da casa da Fanga pensava
enojado na desbocada linguagem da portuguesa. E, certo por isso e porque não
sabia o que fazer, estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a com sofreguidão. Jacques
tinha as mãos grandes, macias e velutíneas e largas e bem tratadas. As dela
eram pequenas, sem perfeição e sem excesso de limpeza. O contraste agradou.
Ficou com a mão do mancebo entre as suas. E alisava-a.
— Gosto muito de mãos grandes e finas. Não é do comércio,
pois não?
— Não - fez com um sorriso ironicamente superior o jovem
indolente.
— Logo se vê...
Ergueu aquela mão, passou-a pelo pescoço. Jacques estava
atônito. Aos vinte anos, com o seu temperamento, seria difícil dizer que não
desejaria continuar. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se ridículo. Um carpinteiro de
resto passara só com o desejo de interromper a cena, e as coristas olhavam.
— Como te chamas? - perguntou ela. E sem esperar a
resposta: - Sabes que me agradas. Agradas-me muito, muito. Eu é que não, hem?
Também com esta cara, gajas não te hão de faltar e até do fado liró...
Ele conservava-se com um sorriso vago. Então ela puxou-o
com fúria e sugou-lhe no pescoço, de surpresa, um grande beijo de carne.
Jacques agarrou-a pelas axilas, para se desvencilhar, e os seus dedos tocaram
os seios que a pequena tinha excitantes.
— Tenha modos, rapariga.
— Tenho vontade de ti, meu bom.
— Eu é que não posso; não vim cá para isso...
Ela mirou-o subitamente digna:
— Se pensas que é comédia, estás a ler. Isto é cá do peito
e não interesse. Tu mesmo não tens cara de dar senão pancadas. És dos meus. - E
rindo: - O velho não vem hoje; se quiseres espera-me à saída.
Mas nesse momento ouviu-se na cena um estrondo, que ecoava
em gargalhadas na platéia.
A pequena correu. Toda gente corria de resto alucinada e
as perguntas e as respostas cruzavam-se entre exclamações, sem que ninguém
conseguisse se fazer compreender.
Um vento de pavor enchia o ambiente. A catástrofe em cena,
como nas tragédias gregas, prenunciava o fim da noite inteiramente catastrofal.
Era apenas isto: a falta de cuidado de um contra-regra estragara a grande cena
de Salústio!
Como ninguém ignora, há nos Sinos de Corneville um
pedaço em que o Tio Gaspar rola para as janelas as velhas armaduras sem
desconfiar que elas estão recheadas de vivos. No meio dessa cena a
que Salústio emprestava um sopro shakspeareano, quando o grande ator cômico
fazia a platéia tremer de pavor arrastando uma das armaduras, quebrou-se o
eixo, e a armadura desabou no soalho vomitando o personagem escondido.
Um grande riso rompeu, Salústio perdera todos os seus
efeitos! Ninguém mais se entendeu. Quando foi a entrada do coro, entraram
apenas três homens e três damas cornevilleanas. O costureiro e o contra-regra
disputavam-se, com palavrões, alto. Mulheres corriam, os homens tinham perdido
a cabeça: pedidos de silêncio partiam de todos os lados aumentando o ruído. De
repente, porém, a platéia rompe em aplausos frenéticos.
— Desçam o pano! Desçam o pano! - gritavam.
O pano desceu afinal. O costureiro e o contra-regra, mais
morto que vivo correram com o lençol e o manto para apanhar Salústio, exausto
no soalho, como era costume. As palmas continuavam febris na platéia, e da cena
vinham sujeitos em todas as direções. O personagem medroso que tão
inopinadamente deixara a armadura, apareceu com o braço luxado e a perna em
sangue, sem que ninguém dele se apercebesse. Rosalina entrou sem atenções. O
senhor de Corneville passou indignado. O barulho era pandemônico. Só de repente
parou, quando apareceu, terrível e desmaiado, o corpo de Salústio Pedro. O
grande artista vinha assim mostrando como o possuía a arte. Quando, porém,
sentiu estar fora do palco, deu um pulo de acrobata, pôs a mão na aura magra,
ganiu furioso:
— Cambada de cães! Quem foi que preparou a armadura?
Cambada! Cães! Cães! Esmurro todos! Estragar a minha cena, na noite do meu
beneficio!
Estava em pleno delírio. Passou por Jacques, sem o ver,
vociferando. Ia pela caixa, de novo invadida pelos admiradores, um temporal de
impropérios. Jacques viu Godofredo que saía.
— Mas o que houve, homem?
— O que houve? Houve que o grande Salústio perdeu a sua
cena!
E desceu às gargalhadas - gargalhadas que no pátio de
entrada, porteiros, bombeiros e músicos da orquestra já tinham.
Jacques porém no jardim, sentia-se hesitante. Partiria ou
esperaria? Afinal era um rapaz, aquele beijo não lhe parecera desagradável e
não havia nada de mal em ir passar uma hora, com uma criatura inferior. Mas ao
mesmo tempo lembrava-se dos seus amigos.
E aquilo parecia-lhe quase vergonhoso. Indagou entretanto
de Godofredo.
— Aquela corista?...
— A Maria?
— Essa...
— Dizem que é um temperamento. Tem um velho.
— Cara, então?
— Para o velho, decerto. De resto não conheces tu outra
pessoa. E o Florimundo, o Florimundo do Carlos Chagas...
Quando se deseja satisfazer uma secreta vontade, todas as
coisas podem acabar por ser argumentos favoráveis à satisfação... Para Jacques,
a pequena portuguesa, desde que era mantida por um velho que assentava à mesa
da Fanga e ia ás recepções de sua mãe, já não lhe parecia tão ordinária.
Godofredo continuava.
— Contam que já esfaqueou um homem.
— Então, assim ardente?
— Ai! filho, como as portuguesas! - suspirou o original
cronista.
— Se fôssemos cear com ela?
— Deus me livre. É absolutamente estúpida. Mas para que
ceia? Queres também essa?
— Eu não...
— Elas é que querem? Ai! felizardo!... Mas, por isso
mesmo, a ceia é inútil. A ceia foi feita para os que vão se possuir sem se
amar. É uma espécie de retardamento. Depois é impossível ceares. O Jorge leva a
primeira atriz, e uma primeira atriz jamais se sentará à mesa com uma corista.
— De fato...
— Só o lembrar que há oito anos passados também era corista
dá-lhe verdadeiras nevralgias de estômago. Mas o Salústio... Olha que foi boa,
hem?
E partiu a conversar no escritório. Jacques ficou vendo o
movimento, afinal meio divertido. Que mundo aquele tão diferente! Decididamente
havia muita coisa sobre a terra de que não cuidava na sua vã filosofia. Quando
alguém tem uma preocupação, esse alguém é fatalmente hamlético. Jacques, por
mais que reagisse, estava também hamlético. Quando o espetáculo acabou, ia
saindo com a turba, quando viu Jorge nervoso.
— Vens conosco? Eu espero a Ada. O diabo é que ela demora
muito a vestir-se mal. Estas portuguesas! Vestem mal, não se limpam, não se
perfumam, não têm chic! oh! que mulheres horríveis!
Jacques teve vontade de perguntar por que, julgando-as tão
más, Jorge vinha procurá-las. Mas como tinha a mesma opinião e estava na
iminência da mesma culpa, sorriu com ar superior. Jorge, porém, continuava:
— E as partes, os chiqués que elas fazem! Qual,
Jacques... Tirem-me das francesas e das italianas e eu sou um homem sem ação.
— Estás contrariado?
— Eu não. E o Godofredo?
— Foi-se.
— É isso. Arranja-me destas coisas e depois raspa-se...
Tu, decerto, também não vens?
Há perguntas que indicam a resposta, que a impõem.
Jacques, por pouco inteligente, compreendeu e disse:
— Não, vou ao club.
E pensava que filtro teriam aquelas mulheres de teatro,
aquelas portuguesas sem perfume, para que Jorge, rico e cheio de mulheres
caras, viesse, a contragosto do seu esnobismo, esperar uma delas à entrada da
caixa... De resto, aquela espera era lúgubre. Passavam os carpinteiros, os
alfaiates, as costureiras, os coristas com uns ares ainda mais lamentáveis cá
fora, as coristas que tinham homens à espera, as atrizes envoltas em mantos,
retardatários e teimosos admiradores, os atores meio sujos na sombra... Que
gente! De repente, Jorge deu um pulo, do banco. Era a atriz que chegava,
pequena mulher de voz garota.
— Então, esperou muito?
— Quase nada.
— Estou que não posso. Venha dar-me um caldo.
Jorge fez as apresentações; foram andando os três, saíram.
O automóvel esperava.
A atriz subiu; Jorge também e de dentro:
— Não vens?
— Não, até amanhã.
— Bem, não te quero forçar...
Jacques sorriu, cumprimentou. O automóvel rodou. Pela
primeira vez vira Jorge, que o levava sempre para as ceias alegres, desejar
estar só, cear só com uma mulher.
Era um poder misterioso dessas portuguesas nos
brasileiros? E eram brasileiros como Godofredo e Jorge! Sentiu que teria uma
infinita vontade de troçá-los, mas infelizmente eram dois homens a quem não
poderia fazer pilhérias com impunidade e sem imediato prejuízo. Sorriu, acendeu
um cigarro, vendo o movimento dos botequins, pensou gravemente que nunca na sua
vida se achara só, à noite, saindo de um teatro de língua portuguesa, na Rua do
Senado. E desceu a rua, decidido a ir dormir, quando um passo apressado fê-lo
voltar-se. Era ela, a pequena, com um chapelinho sem gosto, uma pelerine, e,
para aumentar o horror, com os dedos cheios de anéis de chuveiro, com várias
pedras... Misericórdia! Ele, Jacques Pedreira, seria capaz de fazer dois passos
com aquela mulher em plena rua? Ela, porém, sorria satisfeita, e a sua boca e
os seus olhos eram gulosos.
— Bem se vê que entendes do riscado.
Jacques estacou seco:
— Como?
— Já não é a primeira vez que tens amantes no teatro.
— Quem to disse?
— Vê-se logo... Esperando cá fora, ninguém desconfia e não
vão contar ao traste do meu velho.
— Mas estás enganada... - interrompeu Jacques vagamente
revoltado com tantas qualidades.
— Ora... Chama a tipóia, anda, chama que estão a
olhar para nós. Chama depressa. Tenho sede de ti, meu cravo.
A rapariga devia ser ordinaríssima. O acerto parecia
querer ser-lhe desagradável. Jacques estava meio assustado e sem vontade. Como
escapar? O carro era a salvação.
Era a única salvação momentânea. Atravessou a rua, meteu-a
numa berlinda fechada.
— Para onde?
— Para onde quiseres, menos para a pensão que
contam ao velho...
— Diabo.
— Manda bater para a Beira-Mar. Depois vê-se...
Jacques obedeceu, consultando as algibeiras tão bem-feitas
e tão escassas. Que criatura!
Ia deixá-la na primeira esquina. Mas quando o carro rodou,
Maria já arrancara o chapéu e a pelerine. Estava com uma simples blusa de
nanzuque. Atirou-se aos seus lábios, sedenta, murmurando:
— Aperta-me o pescoço, com as tuas mãos... com
força meu bom.
Felizmente ainda não houve quem dissesse que todas as
mulheres se parecem. Desde Eva, com efeito, ainda não houve duas iguais. Por
isso é explicável o amor da poligamia. Desde que os homens são sempre iguais e
as mulheres sempre diversas é justiceiro que a curiosidade do homem não se
contente só com uma. Ao demais mesmo as mulheres comuns reservam a sua surpresa
de modo que de todos os símbolos dos humanos um apenas ignorará a saciedade: Dom
João. O sport do amor é o único que não aborrece. Jacques tinha, na sua
curta vida, conhecido várias espécies de amor. Aquele caía de chofre e
causava-lhe uma impressão inédita. Seria por ser uma mulher de teatro, que
apesar de português não deixava de ser teatro? O fato é que ele não tinha ainda
tido aquilo. Ela no carro, em simples esboços de posse, entregava-se e tomava,
possuía e passava a ser uma coisa dele; uma coisa que aliás seria mentir se não
a denominássemos de bem boa. Jacques, nascido para as mulheres e que, ó louco,
pretendia conhecê-las já com os seus poucos anos, via-se na obrigação de
confessar que as novidades são imprevistas. A mulher ainda é de todos os
animais da criação o mais interessante, e se o filósofo disse que a mulher é um
meeting de linhas curvas, não há como essas linhas para
chegarmos ao ápice das sensações agradáveis. A pequena portuguesa era nature,
era comum. Mas ele não sentira nunca assim uma tal sinceridade.
Quando o carro chegava à Beira-Mar, Jacques sentiu que não
podia tanger aquele instrumento numa incômoda berlinda de praça, e metendo a
mão no bolso das chaves, sentiu que pegava na chave da garçonnière do
barão. Como os deuses queriam aquilo! Que providência andava em tudo! Tirou-se
então dela e disse-lhe:
— Queres vir comigo?
— Onde?
— A minha casa.
Ele empregava o possessivo para que depois ela tivesse um
espanto e o admirasse mais. Ela respondeu:
— Até ás quatro da manhã. Depois tenho de retomar a
pensão, saltando pela janela...
E dizia a verdade sem tenção de o espantar. Os homens
quase sempre mentem mais que as mulheres. Jacques ria entretanto. Nunca tivera
uma mulher que saltasse janelas e o confessasse tão simplesmente.
— Mas por quê?
— Porque se entro tarde, a dona da pensão conta ao
velho...
E Jacques sentia que aquela mulher dava-se e tomava mesmo
falando. O carro parou quando de novo Maria saltava-lhe aos beijos sobre os
olhos. Jacques desceu, abriu a porta. Ela de um pulo estava do trem dentro da
casa. Ao fechar a porta Jacques teve a sensação de que cometia um ato de
conseqüências desagradáveis. Maria encostou-se um pouco:
— Ai que dor no coração!
Foi a única manifestação do sentimento de previsão que
aqueles organismos tiveram.
Ele por espalhafato ligou a eletricidade, fez luz,
enquanto fora o cocheiro praguejava por ter recebido pouco. Ela abriu uma
gargalhada.
— Ai! que o petiz arma em faéton! Querem ver que é mesmo
príncipe?
E subiu, entrou no salão ressabiada, entrou no quarto de
cama, quarto cheio de amores, passou para o quarto de banho com um vinco na
testa, perguntou para que serviam vários objetos, esteve na casa de jantar, foi
até a cozinha. Jacques olhou-a aí e sentia-a no justo meio quando a pequena fez
alto a seguinte reflexão:
— Tu és muito gajo.
— É boa. Por quê?
— Por quê? Queres saber? Porque nada disso é teu.
— Hein? - fez Jacques que decididamente não conhecia a
percepção, a intuição divinatória do sexo feminino. - Mas por quê?
— És muito dos meus para teres estas coisas. Isso deve ser
de algum teu amigo a que exploras. E com milho. Ah! meu cravo, que finório
saíste! És bem dos nonos...
— É a terceira vez que dizes que eu sou dos teus! -
constatou Jacques com uma ponta de zanga. - Não repita.
Estava vexado que a mulher o tratasse como um igual. Ela
porém ria.
— Olha o tolo! Se tivesses coisas destas não gostaria de
ti. És do fado liró mas sem cheta. Adivinhei ou não?
Como ele sentisse um palavrão na boca - ele que justiça
seja feita, não tinha esses hábitos - ela puxou-o com fúria, sorveu-lhe a boca,
rolou com ele por cima da mesa no tapete da casa de jantar, que a eletricidade
iluminava intensamente. E o interessante jovem sentia que era outra coisa, que
era mais alguma coisa, que eram várias coisas mais...
X
Sports
Se não estivéssemos numa época de exageros poder-se-ia qualificar
de vertiginosa a vida de Jacques Pedreira após a memorável festa dada em
beneficio do Dispensário da Irma Adelaide e que tão grande prejuízo começava a
causar à digna diretora. Porque de fato era uma vida vertiginosa. Não que o
interessante jovem assim a desejasse, mas porque assim o resolvera o acaso.
Havia o negócio das fibras. O projeto continuava no Senado sem entrar na ordem
do dia. Godofredo de Alencar culpava o Grande Chefe.
— Precisas fazer com que Arcanjo peça ao general.
— Não será muito.
— Olha que temos trinta contos.
— Bom, bom - fazia Jacques nervoso à idéia daquele
dinheiro e com sérias dúvidas, dúvidas que se acentuavam sem base sobre a
maneira de repartir do Godofredo.
De resto, o negócio em elaboração não poderia ser senão um
pequeno exercício sem método na sua vida a toda brida. A fatalidade naquele
momento sobrecarregava-o de dois sports: o automóvel e a mulher. Tudo na
vida é sport. O maior sportsman de todos os tempos foi
positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, predestinado de fato, venceu
todas as performances e todos os handicaps e, segundo
observações inteligentes foi o inventor do puzzle na organização do
caos. Não é de admirar que a humanidade, à proporção que mais intimamente
conhece Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é
particularmente esportiva. Os jornais falam de matches de
velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida ou a cada pontapé; as
pessoas andam na rua como quem vem ou quem vai para um desafio ou pelo menos
para uma aposta. Jacques, além da corrente pertencia a um grupo que tinha por
chefe Jorge de Araújo. Comprou um reloginho para prender ao pulso e foi das
velocidades.
Jorge, de resto, protegido das boas fadas, tendo feito uma
fortuna enorme em pouco tempo, fino, esperto, com tudo quanto desejava,
percorria o período fatal da exacerbação. Tornara-se incontentável, de uma
neurastenia a frio. Godofredo assegurava que os automóveis haviam transmitido a
sua inquieta alma ao proprietário. O Barão Belfort sorria. O fato é que Jorge
sentia a fortuna pequena para os desmandos da existência inteira, e querendo
aumentá-la ainda mais rapidamente do que a ganhara, forcejava por tornar
atordoadoras as horas de repouso.
Assim aumentava a coleção de automóveis de corrida. Tinha
seis. Emprestava aos amigos até. Por essa ocasião o filho do antigo merceeiro
Teotônio, o jovem milionário Teotônio Filho, em companhia do pobre Dória, que
afinal conseguia ser agente de uma fábrica de França, surgia guiando um
automóvel. E no meio, enquanto se acentuava a rivalidade esportiva entre o
Jorge e o Teotônio Filho, diariamente, dizendo-se agentes de fábricas
automobílicas, aparecia ou um jovem francês perigoso, ou um italiano assustador
ou um português palrador.
É incontestável que o automóvel dá muito dinheiro a
ganhar. Principalmente a quem neles trabalha pouco, ou não trabalha mesmo nada.
O automóvel faz ganhar em maior parte aos intermediários das vendas. Esses
jovens vinham para as encomendas do governo, repartiam largamente as comissões
e a atmosfera foi em certo momento tal que todos acordaram ser uma vergonha não
haver ainda um automóvel-club. Se todos auto-mobilizavam, se todos eram
loucos pelo sport, por que não haver um club? E de um momento
para outro, o club surgiu mesmo na praia, em frente à Beira-Mar,
ocupando um velho prédio familiar. Jacques freqüentava-o, sem aliás lhe
encontrar encantos. O club, montado à pressa, tinha como mobiliário
mesas repletas de revistas esportivas que ninguém lia, pelas paredes algumas
caricaturas inglesas e francesas tratando de cavalos, de pólo, d'automóveis, de
cricket e de lawn tennis e umas vagas poltronas, de um
modernismo que nem ao Mapple pedia auxílio. À porta era toda noite
um carbuncular de faróis de autos e a algazarra da penúltima profissão
inventada pela civilização: os chauffeurs que os sportsmen tratavam
como antes dos chauffeurs só era possível tratar o seu cavalo ou a sua cocotte.
A diretoria, enquanto não se dissolvia o club, falava seriamente nas
possibilidades de um circuito.
— Mas por quê?
— Porque é chic.
— E por onde, se não temos estradas?
— É verdade, menino, nem estradas temos...
— A febre tudo transformará! - exclamava Godofredo com
ares proféticos, depois de ter apresentado alguns agentes nas secretarias de
Estado.
— O que dá forte acaba logo. Antes do circuito o club fecha,
e então só resta apelar para a navegação aérea. Só há um sport que ainda
não nos cansou: o falar mal da vida alheia...
Entretanto Jacques tomava muito a sério o automobilismo,
conhecendo os termos técnicos, exercitando-se a guiar como motorista de Jorge,
aquele motorista que ria muito, era boêmio, raptava meninas e nunca chegava à
hora. Foi a época das loucuras. Acordava tarde, vestia-se com cuidado, ia um pouco
a Lina Monteiro, apreciava a hora de Alice dos Santos, enredava um flirt no
chá e entrava a noite de automóvel, com o seu bando, a quem respeitava e a quem
nunca dava opinião.
— Vamos jantar no Leme?
— Dando a volta pela Tijuca?
Iam. Quando o barão era do grupo tomava-se champagne desde
o começo, um brut Imperiale famoso.
E após o jantar, como era enervante aparecerem no teatro
sempre, como as mulheres davam gritos nos carros, divertiam-se sós a dar
corridas loucas pela Beira-Mar quase deserta. E era um riso perdido, na
ebriedade da rapidez. Os inspetores de veículos pulavam aterrorizados como
gafanhotos na nuvem de poeira, raros transeuntes olhavam as máquinas com a cara
de quem não compreende. Por fim, o 720-A-E foi assinalado à Inspetoria. Todo dia
chegava a intimação para a carteira do motorista. E do grupo era Godofredo com
a sua literatura, o encarregado de falar com o senhor inspetor, incapaz de lhe
negar qualquer coisa, por causa dessa maldita imprensa que baba pela lei e
salta por cima dela sempre. Por esse tempo surgiu enviado de uma fábrica
italiana il re dei chauffeurs, o cavalheiro Stanisláo Sfrapini, que
conduzia de modo sensacional. A primeira vez que Sfrapini Stanisláo, magro, com
a barba em ponta, conduziu o automóvel de corrida com a carrosserie de ville
como eles diziam no mais puro português, foi positivamente um
assombro. O homem parava quando queria, raspava carruagem propositalmente e por
fim, às três da madrugada, sem gasolina fez um percurso de três quilômetros em
consecutivos estouros que pareciam uns bombardeios. Godofredo, nessa madrugada
quis ser aquele cantor que na Grécia cantava os vencedores das corridas de
carro, desde que o progresso não sabe coroar o assombro com a flor da poesia. E
Jacques, que pouco se importava com o poeta grego, deu um grande abraço no
homem incomparável. Durante uma semana só falou em Sfrapini.
Mas esse entusiasmo automobílico em nada diminuía o fervor
pelo amor. O curioso é que o amor, o apetite da pequena portuguesa exerciam
nesse lindo rapaz uma influência prodigiosa. Ele fora conduzir a Maria à pensão
que ficava numa esquina da Rua dos Inválidos. Vira-a saltar a janela e rir-lhe
já de dentro.
Aquela mulher era tão imprevista que Jacques pensava estar
a enganar o Florimundo e não a podia largar. Certo, não a procurava. Nem duas
vezes foi à caixa. Mas a Maria ensinava-lhe tais coisas ordinárias e enchia-lhe
as sextas-feiras com tais sortidas boêmias, que não faltava nunca. Recebeu-a
mesmo, além dessa noite semanal em que o Florimundo descansava, uma vez de dia
na garçonnière. E foi o dia precisamente em que ela lhe levou de
presente uma gravata de seda cor-de-rosa; e foi o dia precisamente, em que
tendo ele rido e aos insultos da ofendida Maria por aquele riso Jacques lhe
atirou uma tremenda bofetada; e foi o dia precisamente, em que quase
estrangulada, rojando no tapete e beijando-lhe os pés, Maria soluçou com a
própria alma.
— Meu homem, meu homem...
Era brutal, indispensável e esplêndido. Essa paixão ou que
melhor nome tenha não se fazia para Jacques absorvente. Jovens da sua natureza
são apenas mais realçados pelas paixões. A Maria dera-lhe como a revelação de
ser ele o bruto, o macho. Isso nunca é inconveniente, numa carreira brilhante
como a de Jacques. Assim o jovem continuava sempre novo para todas porque
aplicava em Alice o que aprendera em Maria, o que lhe tinha mostrado gostar
Alice ou o que lhe revelara Liana, para que a portuguesa o chamasse meia louca
de porcalhão. E, agindo assim, oferecia um verdadeiro curso às meninas, que não
haviam passado do flirt.
Os homens simples ficam admirados e cheios de inveja
diante do ser de exceção denominado conquistador. Na maioria das vezes é ele o
conquistado, porque a sua arma é dispor de todos os meios, é conversar, é ouvir
bem as mulheres e contar-lhes em seguida o que fez com as outras. Quando se
conversa ao nível de uma mulher, seja ela honestíssima, tudo é possível e
esperar é lucrar. De resto, até com os homens o fato repete-se. Apenas com os
homens de que se precisa é muito mais difícil porque eles são infinitamente
mais idiotas. Jacques multiplicava o prazer que a sua beleza exercia. A Gina
Malperle, filha do cônsul do Cobrado, com o seu ar de girl new-yorkense,
declarara um sentimento profundo.
Gina, ninguém se lembrava de perguntar se era de fato
casada, solteira, ou viúva. De tanto a verem e de tanto a ouvirem sempre
inteligente e moderna os piores maldicentes esqueciam positivamente o seu
estado civil. Era de resto o único caso da história de tão fina sociedade, de
modo que, sem pensar, acompanhando o tratamento que lhe davam as sessões
mundanas dos jornais e o seu respeitável progenitor, todos a chamaram Mlle.
Gina. Quereria ela casar? Já teria passado a idade do casamento? O fato é que
flertava com alguns rapazes e aborrecera quase todos, considerando-os
fúteis.
— Vocês esquecem que eu tenho uma educação americana e que
os rapazes da nossa roda lembram muito mais os de Paris! - dizia a rir.
Mas Jacques dominara-a pela segurança, pela tranqüila e
fácil certeza com que tomava conta das mulheres, sem lhes ter o menor respeito.
No mesmo dia em que a segurara e com ela dançara
empolgando-a, enebriando-a, Gina vira o que ele fizera com a pobre Lina
Monteiro, e sabia os direitos de Alice dos Santos sobre o maravilhoso
adolescente.
A psicologia do homem que às mulheres agrada ficará sempre
por fazer. Eles próprios ignoram a causa da preferência. Mas o coração das
mulheres, apesar do excesso de observações e dos romances, ainda é maior
enigma. Por mais que Gina refletisse e julgasse Jacques um caso de que devia
afastar-se, não lhe era possível ao cabo de prolongadas reflexões, senão
desejá-lo mais. Amor? Não.
Um fim oculto? Também não. Jacques, para aquela rapariga
prática não podia ser um bom partido. Desejo de entregar-se? Gina Malperle,
graças a sua educação americana, não pensava em fazer semelhante tolice. Em
todo o seu organismo havia apenas a vontade de ter um pouco do belo
adolescente, de subtraí-lo às outras, de fazê-lo sentir a sua influência. Dois
dias depois da grande festa, encontraram-se num teatro. Ele vinha de conversar
com a Viuvinha Pereira, fazendo-a rir muito, e estivera no camarote da Condessa
Rosalina Gomes, que mordia um chocolate como quem morde um lábio. A peça era
essencialmente contemporânea: falava-se de coisas afrodisíacas do começo ao
fim. No camarote em frente havia Mice dos Santos com a ilustre Sr.ª de Melo e
Sousa. A conversação tomou aquele ar de intimidade um pouco maternal que as
mulheres não podiam deixar de ter com o lindo mancebo. E o lindo mancebo tinha
o costume de contar as suas boas fortunas com um tom ingênuo de criança que
narra os seus brincos. Era naturalmente excitante.
— Então, em trabalho? - fez Gina.
— Que trabalho? Não me fale de trabalho porque é cousa
aborrecida.
— Mas não é trabalho esse exercício em torno das damas?
Ainda há pouco a Pereira ria.
— É porque eu lhe contava como tinha brigado com aquela
italiana que ali está na frisa.
— Aquela de cabelo loiro?
— São pintados. Foi há tempos a briga. Atirei-lhe com um
prato de sopa.
Gina ria achando aquela confissão de um mau gosto enorme,
mas por isso mesmo presa. E como devia ser americana, e como queria reter
aquela flor de mocidade, excitava-o.
— Entretanto, há outros camarotes...
— Ah! isso - fez o pequeno - esses camarotes são para o
meu flat.
— Seriously? Have you a flat?
— Yes.
Ele chamava de flat, à inglesa, a garconnière do
barão. Ela não acreditava. Ele descreveu-a, mais ou menos, olhando a sala. No
dia seguinte encontrou-a no baile de Mme. Gouveia, que iluminara os jardins com
balões venezianos. Dançaram juntos. Desceram ao jardim, e ele num recanto de
árvores, tomou-lhe na boca de súbito um beijo grosso carnudo, tão bom e
cheiroso que Gina Malperle não pôde zangar e despegou-se como um pássaro tonto,
como se tivesse caído de um paraíso, ainda mastigando o sabor perfumado.
Ao mesmo tempo, como Lina Monteiro morava numa pequena rua
próxima da praia, Jacques, ao partir para a cidade, não deixava de dar uma
vista d'olhos por lá. E o que o interessava em Una, a menina pobre e desclassificada
é que ela era pura, ingênua e imaginava amar para casar. Não era a primeira vez
que era enganada, mas também nunca amara assina. Quando via Jacques ela tremia
como uma flor ao vento e tudo quanto ele pedisse, ela daria. Não se pode dizer
que um homem mente quando ele não calcula e não goza o prazer de mentir.
Jacques não mentia a Lina, mas prometia-lhe casamento, convencido de que não
casaria depois. Era sempre sincero porque não tinha inteligência para mais.
— O diabo é que agora não posso.
— Peço todo dia a Nossa Senhora por ti. Eu esperaria até o
fim da vida! - exclamava essa pobre menina ingênua.
E Jacques ia dali, sinceramente, a casa da Fanga ver a
Liana, que cada vez tinha mais influência sobre Arcanjo, ou encontrava um pouco
Alice dos Santos. Essas duas criaturas tão diferentes uma da outra, não lhe
causavam grandes desejos. Mas Liana era humilde como um cão, chorando sempre e
dela muita vez emprestava dinheiro, o que significava que recebia de Arcanjo. E
Alice era a boa, a sã, a sempre espontânea Alice, que o queria mesmo, e agora
mais, sabendo-o desejado por todas. No quarto de Liana o interessante jovem as
mais das vezes dormia, lendo um jornal. Na garconnière do barão, em
geral esboçava cenas com Alice que terminavam com tremendas luxúrias, porque
ele fazia-a conhecedora do repertório de Maria. Alice tinha surpresas
contínuas. Uma vez, em que Jacques lhe apertava o pescoço com vontade de
estrangulá-la, ela cerrara os olhos com um tal gozo que ele estacara. E ela
murmurou:
— Mais, mais, é bom...
Com grande espanto seu, ele viu que esse seu gesto o
excitara também de súbito, e como duas crianças que se descobrem prazeres
proibidos passaram uma semana, nesse exercício delicioso. Maria acabou assim
sempre presente ás luxúrias do interessante jovem. Era o seu anjo-da-guarda...
Quando acordava, Jacques não deixava de ficar inquieto
tanto tinha o que fazer - mesmo porque esses trabalhos tendiam a aumentar. As
damas, outras damas, apertavam-lhe a mão com uma significação que só as
mulheres, seres por excelência receptivos, sabem dar aos apertos de mão. E
havia corridas, havia vários rendez-vous automobílicos depois
de ter escorraçado os pretendentes.
Entretanto Jacques imaginava uma solução para essa crise e
D. Malvina, recolhida ao quarto, temendo pelo filho a vida de automóveis e
mulheres, imaginava conversar seriamente com Argemira. E foi, precisamente essa
cena, o prenúncio de vários desastres. Tudo na vida é sport. Na vertigem
da corrida nem sempre servem as performances...
XI
Desastres
Mas, afinal, o caso das fibras ia resolver-se.
Evidentemente, Jacques tivera uma decisiva influência na sua realização e
notava que Godofredo, só o fazia de agente, apenas de agente. Ao concorrente
o cronista aparecia como o autor de todo movimento. Jacques acicatado
pelo ar de zanga do poé e com uma talvez vaga desconfiança no homem de letras,
quis entrar diretamente em relações com as partes. Godofredo era fraco. A
demora irritava sobremaneira o representante do sindicato, um velho e sórdido
português judeu João Gomide, que emprestava os dinheiros para essa tentativa
aos cofres públicos. Assim, quando se viu sem solução entre Jacques e o Sr.
Gomide, o cronista para acalmar as dúvidas de ambos apresentou-os.
O Sr. Gomide, com um sorrisinho voraz e pacifico estabeleceu
um papel no negócio: era apenas um agente que tinha de dar contas das despesas
a maiores. Das fibras levava apenas uma comissão. Era preciso que o negócio
desfibrasse assaz o Tesouro, para que assim Gomide desse comissões. O agente,
de resto, tinha um escritório ambíguo, em que se emprestava a juro alto, e era
homem de papéis, de recibos, de pequenas assinaturas. "Tudo em ordem"
diria procurando explicar. O fato é que entrava em tudo preso a esses
salva-vidas e que mesmo se a onda fosse forte pelo menos os salva-vidas iriam
com ele.
Na operação de Godofredo as coisas tinham ficado
combinadas. Os dois cavalheiros receberiam na aprovação do Congresso a metade
da comissão. A outra seria entregue, após a assinatura do presidente. Jacques
com a simpatia que os rapazes de sua situação não deixam de ter pelos
prestamistas, fingiu para o velho Gomide várias gentilezas. Ao deixar o pequeno
escritório equívoco da Rua dos Barbonos, estava certo que desta vez
veria dinheiro, não pela sua influência mas pela sorte de Gomide, metido no
negócio. E desde esse momento - coisa curiosa! - Godofredo começou a aparecer
no seu cérebro numa posição secundária. Dentro em pouco estava no último plano.
Dois dias depois na cabeça de Jacques, Godofredo apenas abria a porta da casa
do Gomide; e, apesar da importância que a gratidão manda dar aos cavalheiros
que nos abrem as portas, nem por isso os cavalheiros deixam de continuar, com
prazer nosso talvez, lá, à porta, distantes...
Entretanto a nervosidade de Godofredo aumentava. Era dizer
que o caso estava por dias. E estava. Uma segunda-feira o projeto entrava na
ordem do dia. Não houve número. Nem na terça. Nem na quarta. Era felizmente a
terceira discussão sem que os senadores o tivessem visto. Godofredo teve um
trabalhão para obrigar Jacques dividido entre os automóveis e as saias, a ir
ter com Alice:
— A Alice fazendo o Senado trabalhar! Não exageres!
— Eu é que nada posso fazer. Uma nota jornalística
perderia tudo. O número depende da vontade do Grande Chefe.
Jacques conversou com Alice, contou-lhe a cena do Senado,
assegurando que olhando para os senadores só achava alguém capaz de os mover.
Ela riu, vaidosa. Na quinta, os senadores estavam todos na sala do café
conversando, quando o presidente verificou que infelizmente ainda não havia
número. Sábado a concorrência ao recinto foi grande, mas para ouvir uma arenga,
explicação pessoal do famoso chefe, que além de dizer tolices, silabava de modo
a fazer rir mesmo os contínuos. O jovem encantador, teimando no flirt de
Lina Monteiro, e relações cortadas com o pai, via-se apenas com os recursos da
sua mãe e com a humilhação de falar a Liana do dinheiro. Por isso estava
absolutamente no ponto para compreender o valor de dinheiro, e bater-se pelo
dinheiro.
Graças aos deuses, segunda-feira, quando ninguém contava,
o grande político reapareceu no recinto do Senado, logo acompanhado pelos
senadores que o obedeciam por gestos. O projeto das fibras passou despercebido.
Na mesma tarde, Jacques viu Godofredo, que o agarrou.
— Ça y est!
— Passou?
— Enfim!
— Agora é você tratar da sua parte.
— Ah! Jacques, custa muito ganhar dinheiro.
— A quem o dizes...
Jacques não tinha a menor surpresa. Desde o encontro com o
Gomide, julgava aquele dinheiro seu. Godofredo porém enchia-o de pasmo.
— O Gomide falou-me num recibo a fazer. É preciso um
recibo. Coisa sem importância, espécie de garantia dele junto ao sindicato...
De resto documento absolutamente privado... Passas amanhã por lá, só dás recibo
pelo dinheiro, e depois repartimos...
— Sim, está bem.
— Não durmas.
O jornalista, muito prudente para se comprometer com
documentos, só achara aquele meio para retirar das garras de Gomide a metade da
comissão. Aquela confiança, porém, ou era uma prova de que os seus negócios iam
muito bem ou era a grande demonstração de simpatia por Jacques. O jovem
imaginava entretanto o cronista cheio de dinheiro. No dia seguinte, pois,
acordou como sempre, almoçou depois da hora para não se encontrar com o pai, e
veio para a cidade, com a pasta de marroquim vermelho debaixo do braço. Saltou
na Rua Evaristo da Veiga; bateu no escritório de Gomide. O velho estava, mas
custou a abrir, recebendo-o com frieza.
— Então, caro Gomide, que lhe dizia eu? Afinal vencemos!
— Ainda não de todo, senhor doutor.
— A minha parte pelo menos, creio... Uf! custou!
— Tudo custa, senhor doutor!
— Não há dúvida, Gomide.
Houve um silêncio. Já havia antes deles falarem, durante o
pequeno diálogo talvez. Por isso quando cessou de ouvir o barulho da própria
voz, Jacques sentiu esse silêncio maior, imenso, cheio de várias coisas
desagradáveis que nunca são ditas. Ele sentia que tinha de arrancar do velho o
que era seu, e estava subitamente resolvido a tudo.
— Godofredo já esteve ca?
— Ontem, logo depois da votação...
— Ah!
Olhou Gomide. O velho não se mexia. Jacques, um pouco
nervoso, teve de explicar o que Gomide estava farto de saber.
— Godofredo falou-me que viesse cá receber a primeira
quota.
O velho abriu a boca, fechou-a, tossiu, assoou-se.
— O doutor não acharia melhor tudo no fim?
Jacques teve um momento de cólera, logo abafado.
— Creio que não, Gomide. O Godofredo anda embaraçado...
— Palavrinha?
— Palavra. Por mim, não. Isso para mim seria indiferente.
Mas Godofredo ficaria contrariadíssimo. Eu sei.
O velho continuava calado. Jacques então com galhardia e
um ar despreocupado, que lhe ficava bem, teve uma exclamação triste. Diabo! Se
o Godofredo não recebesse aquele dinheiro a sua influência era tão grande que
decerto fazia o presidente votar a autorização. E lá se perderiam dinheiros de
adiantamentos, trabalhos. Enfim...
— É certo o voto. E o negócio...
— Oh! senhor doutor, é sério...
— Para vocês! Ande, Gomide, deixe cá ver a soma. Não saio
daqui, sem a sua última palavra.
O Sr. Gomide tomou um ar pensativo. Depois sentou-se à secretária
e escreveu algum tempo. Quando acabou, a sua fisionomia retomara o aspecto
comum. Acabara de escrever um documento macabro. Se falhasse a conversão,
aquele dinheiro pelo menos voltaria, ou muita gente estaria a aparecer num
panamá assustador e reles. Jacques passava o recibo de quinze contos por ele e
por Godofredo, comprometendo-se a pagar, a restituí-los com a aprovação do
projeto pelo Executivo.
Então qualquer não assinaria. Assim fizera Godofredo,
Jacques assinou sem hesitar - porque tinha de tirar dinheiro do velho Gomide. O
prestamista chegou a sorrir. Aquela folha de papel valeria dinheiro em qualquer
tempo! Quando o rapaz assinou, foi quase humilde, que abriu a burra e contou
três maços de dez notas de quinhentos cada um. Jacques recebeu com calma. Como
era pouco! Como o dinheiro é poeira! Como quinze contos visíveis, mesmo antes
de gastos mostravam-se tristes da sua insignificância! O adolescente meteu-os
na bolsa de marroquim vermelho, cumprimentou o velho usurário e saiu. Sentia-se
apenas mais ligeiro. E com o desejo de conservação própria que não se conhecia.
Querendo atravessar a tua, esperou tempo a deixar passar um automóvel, que
vinha longe. Depois verificava o erro de andar com tanto dinheiro. Foi até o
escritório. André, de cima, logo que o avistou, começou de fazer gritos de
negação.
— Não! Não! - soluçava o contínuo cor de castanha.
— Que há André?
— Não vale a pena subir. O senhor seu pai está em
conferência.
Noutra ocasião subiria. Naquele momento satisfez a má
vontade de André, mesmo porque não sabia por que lá tinha ido. Foi aliás aí que
lembrou ter de dar a Godofredo sete contos e quinhentos. Era
desagradabilíssimo. Que ato de generosidade quase criminosa para o seu egoísmo,
ainda acrescido por um mês de falta de dinheiro! Mas o diabo é que havia ainda
outra metade. De fato, Godofredo arranjara o negócio. Aquela parte do trabalho
era sua. A outra seria do literato. E Godofredo devia nadar em oiro, devia
ganhar muito. Sim! Evidentemente. Depois não deixava de ser grato ao Alencar,
mas aquilo fora só boa vontade d'Alencar para pô-lo dans le train. Havia
de conversar com ele. E agradecer-lhe muito. Os romancistas de vez em quando
põem os seus personagens a dizer várias coisas e mesmo a pensar. Em seguida
chamam a isso psicologia. Um romancista não deixaria de colocar o jovem
Jacques, depois de receber os dinheiros do Gomide apenas com a observação do
Godofredo. Entrego ou não entrego? A célebre dúvida hamlética? E entretanto
Jacques tivera três meses antes talvez dúvida, quando hesitava com a Maria. Mas
naquele caso era um absoluto desprendimento. O interessante adolescente pensava
aos pedacinhos no caso Godofredo, um caso que lhe parecia passado. Quando
resolveu agradecer ao homem de letras, estava na Rua Primeiro de Março diante de
um banco. Lembrou-se que lá fora uma vez com Jorge d'Araújo depositar dinheiro.
Quem diria que ele também depositaria somas? Entrou pensando apenas na
fisionomia dos empregados. Os empregados não o reconheceram nem se admiraram da
sua soma - evidentemente ridícula. Jacques depositou quatorze contos e guardou
um conto que era bem seu. Oh! Era impossível andar com tanto dinheiro pelas
ruas. Diria ao Godofredo quando o encontrasse. Desceu então a Rua do Ouvidor.
Na Avenida Teotônio Filho convidou-o para uma corrida à Tijuca num automóvel
novo de marca nova. Foi. Jantaram lá no White com a espanhola Concha, a frágil
Liana e Arcanjo dos Santos encontrados por acaso. A noite era da portuguesa
Maria. Não faltou, tanto mais quanto era uma noite excepcional. No dia seguinte
foi vez de Lina Monteiro. Depois do almoço convidou Lina e a Sr.ª Monteiro para
um pequeno jantar no Leuse. A velha achava pouco próprio, mas tanta era a sua
vontade de ver casada a filha que consentiu.
Jacques veio à cidade, telefonou ao restaurant, estava
no chá. Desejava encontrar Godofredo, e ao mesmo tempo não desejava. Isto é:
cada vez desejava mais a menos. A tarde tomou um automóvel e foi buscar a pobre
menina que o acreditava desde a festa de caridade. O idílio seguia. A Sra.
Monteiro estava crente na seriedade do caso. Lina estava certíssima. E ele
também estava certo de que tinha uma forte gratidão pela menina. Se lhe
dissessem que enganava alguém, logo após a sopa, Jacques ficaria contrariado. O
jantar foi pois delicioso. Até a Sra. Monteiro parecia alegre.
Apenas para o fim, entraram o banqueiro Buonavita e
Godofredo de Alencar. O literato, que tinha ido cumprimentar as senhoras
exclamou:
— Há dois dias que te procuro.
— Oh! Tu... Estive com o homem.
Ia dizer inteiramente a verdade. O seu olhar era leal e
puro. A sua fronte lisa. Mas Godofredo fez um gesto e esse gesto quebrou a
lealdade de tal forma, que com o mesmo olhar sereno e a mesma fronte - tão
idênticas que o cronista psicólogo não teve sombra de suspeita! - Jacques
continuou:
— Mas não imaginas o que tem custado. Quer tudo no fim. Já
lhe fiz três recibos, que não serviram. É um caso. Enfim prometeu para segunda
sem falta. Vamos lá juntos.
— Não, vai lá. Olha que é sério.
— Seríssimo.
E continuou a jantar com a apetecível Lina. Ora o
Godofredo! A insistir em qualquer coisa que não era seu! Ele que não fizera
nada! Enquanto conversava, olhava o Godofredo e via que o cronista prestava
demasiada atenção a sua mesa. Desconfiaria? Deu-lhe uma grande vontade de
oferecer-lhe champagne e charutos caros. Apenas Godofredo começara a
jantar.. Então ergueu-se e foi pagar a conta à copa, para que não lhe vissem
bilhete grande, e levou a família Monteiro ao teatro português - por exotismo.
Domingo esteve no prado do Jockey Club com Jorge. Segunda
veio cedo para a cidade, desejoso de fazer umas encomendas, quando em plena
Avenida se sentiu preso pela mão do cronista.
— Vens de lá! - fazia Godofredo mais pálido.
— Hem! - fez Jacques apanhado de surpresa. - Ah! sim...
Era a cena que no fundo, bem no fundo do seu ser, esperava
e temia e desejava ao mesmo tempo desde que vira o Gomide no escritório e o
Godofredo cada vez mais secundário. Ficou pálido e frio com medo ao escândalo,
ao nome nos jornais, ao ridículo do motivo. Era um esforço para não mostrar que
tremia. Aquele medo não podia ser só seu: era uma espécie de medo hereditário;
e com ele tremiam o pai, o avô, outros Pedreiras talvez. Mas a cena foi rápida
e crispante porque Godofredo estava também, pálido, frio, e tremia.
— Não mintas, menino. Já recebeste.
— Quem to disse?
— O Gomide em pessoa.
— Pois sim, recebi.
— Então, venha a minha parte.
— Ah, sim...
— Gastaste, hein?
— Sim, isto é... aquilo era um pouco meu. Eu precisava
muito; estava cheio de contas. Se precisas porém de algum - porque ainda não
recebemos a outra parte...
— Preciso sim. Quanto tens?
— Espera, não te exasperes... talvez um conto...
O cronista tinha um esgar de fúria querendo sorrir com
calma. Dinheiro é sangue. E batendo com a bengala no asfalto.
— Olha que enganar-me é meio difícil. Só com muito topete,
ou sendo um inconsciente como tu. Sabes talvez que nome tem o que acabas de
fazer? Há uma palavra exata, uma palavra bonita...
— Godofredo...
— Você fez apenas uma ladroeira, ouviu? uma ladroeira! Está
aqui como podia estar na cadeia. Mas não está tudo perdido. Vou trabalhar. E
cuidado porque nem sempre os prejudicados são amigos como eu!
E seguiu. Por que Jacques não esbordoou Godorredo? Porque
cheio de culpa temia o escândalo. E por que Godofredo não se atirou ao
gasganete de Jacques? Porque temia prejudicar o edifício da sua vida com um
escândalo. Enganado, ludibriado pelo pequeno que desejara explorar, ao menor
grito seria um homem por terra. A civilização e o interesse obrigava-os a
recalcar o ódio. Godofredo seguiu quase fora de si. Jacques ficou furioso com
um certo gozo no íntimo e continuou a andar. Só havia a ferir-lhe a mente a
possibilidade de que toda gente podia saber da sua liberdade para com o
Godofredo. Que fazer? Jacques não sabia mais o que fazer. Era sempre assim.
Felizmente ergueu os olhos e viu Mmes. Alice dos Santos e Argemira de Melo e
Sousa que de dentro de uma vitória com interesse o chamavam.
As corridas de automóveis em que Jacques andava metido,
tinham impressionado aquelas damas. Alice e Mme. de Melo e Sousa desejavam uma
noite sentir também a sensação de rapidez numa das grandes máquinas de Jorge d'
Araújo. Jacques sorria. Argemira explicava.
— Sua mãe levou a semana inteira a falar mal de você. E
tanto se referiu aos automóveis, que antes dos conselhos quero fazer a
experiência. Mas todas as meninas estão loucas. Alice, vou ver, e se decidirmos
é certo que levaremos Ada Pereira...
Jacques sorriu. Os acontecimentos de minutos antes
desapareceram de súbito da sua pouco carregada memória. Satisfeito e alegre,
não duvidava que seria chegada a vez à viuvinha. E, sem hesitar prometeu para o
dia seguinte.
— Nós vamos ao Lírico.
— Dito. Com o Arcanjo?
— Não. Sós.
— Então amanhã.
— Não falte.
— Oh! Por quem me toma, D. Argemira?
Assim, no dia seguinte, lépido e gentil, logo pela manhã
telefonou a Jorge de Araújo ameaçando-o com uma noite divina. A comunicação
interrompeu antes de terminar. Foi a outro telefone que não ligou. Enervado,
tomou um tílburi cuja lentidão quase o faz matar o cocheiro. Naquele cérebro
feliz o incidente Godofredo desaparecera, deixando apenas, o interesse pelas
corridas com senhoras. Que noite! Acabou por deixar o tílburi, tomando um tramway
que o levou até ao escritório do jovem industrial. Não o encontrou. Deixou-lhe
um bilhete delirante com três erros de ortografia. E durante o dia telefonou
várias vezes, até que à tarde, Jorge apareceu com o seu nervosismo e a sua
complacência.
— Sabes que é um aborrecimento enfiar a casaca para ouvir
mais uma vez a Aída.
— Chegamos no terceiro ato para não chamar a atenção.
— E não há receios?
— Nenhum!
O milionário concordou. Jantaram em casa de Jorge que
parecia preocupado, mordendo o bigodinho à americana, os olhos sem dizer nada,
um ar de quem aspira o imprevisto. Depois, como nada tinham a se dizer,
avançaram a hora da entrada e chegaram no fim do segundo ato. Era o momento dos
cumprimentos. A mesma gente, inexoravelmente aquele todo Rio que já tinham
visto tanta vez, lá estava. Nem um desconhecido. A história de cada um podia
ser contada pelos outros, e esse cada um podia fazer um volume de histórias.
Jorge, enervado com o mal do automóvel confessou-se incapaz de ficar até ao
fim. Ia espairecer e depois voltaria. Mas antes era preciso fazer a comédia do
convite às grandes damas. Subiram à frisa. Em torno de Mme. de Melo e Sousa a
corte juvenil olhando Alice e Ada desdobrava-se. Argemira acolheu-os
encantadora.
— Estamos sós, sabem? O nosso deputado doente.
— Grave?
— Oh! uma magraine...
— Quero sair antes do fim - fez Alice dos Santos.
— Ah! minha querida, com esta complicação dos carros. Sabe
que viemos de carro hoje?
— Mas é simples - fez Jorge. - Dá-se ao guarda o cartão
para mandar o carro embora quando ele chegar, e eu tenho a honra de levá-las em
cinco minutos no nosso automóvel, se me permitem...
A encartada ficou sem resposta. Eles também ficaram. E
logo que se ergueu o pano Mme. de Melo e Sousa ergueu-se; a senhora do deputado
e Ada Pereira também, e saíram com solenidade os cinco.
Estava a noite deliciosa, dessas noites de inverno, sem
lua, em que o veludo do céu tem um esplendor imprevisto e a brisa é leve e
sensual. O automóvel esperava-as do outro lado da rua. Jacques sentou-se com as
três senhoras. Jorge ficou ao lado do motorista, o mesmo de sempre, aquele
rapagão lusitano que ria com tanto gosto. As senhoras tinham o ar de que iam
pregar uma partida, e logo que o automóvel se moveu começaram a rir. Que
pensavam elas do automobilismo de Jorge? O automóvel porém. o famoso 720-A-E já
tomara a sua velocidade urbanamente inconcebível. Jorge queria mostrar e o
pequeno motorista desejava também pôr em evidência a sua perícia. Na Beira-Mar,
onde chegaram um minuto depois talvez, o carro voava numa nuvem de poeira. Era
impossível trocar uma palavra. O ar deslocado pela máquina cortava. As mulheres
riam excitadas. Jacques dava a Ada Pereira um joelho protetor, sem que Ada
pedisse, e para disfarçar resolveu soltar uns gritos, pouco familiares. O chauffeur
português voltava-se contentíssimo. Jorge sorria. Mme. de Melo e Sousa
achava a sensação inteiramente inédita. Não era uma corrida. Era uma vertigem.
Naquele estendal de luz o animal de ferro voava numa densa nuvem de poeira.
Davam assim a segunda volta à praia, quando por eles
passou outro grande e poderoso maquinismo. Era Teotônio Filho com o cavalheiro
Sfrapini, il re dei chauffeurs.
— O Teotônio! -. gritou Jacques.
— É sim, mas não nos ganha! - berrou o Jorge para trás.
Tornava-se uma questão de honra não ser vencido pelo
Teotônio, à vista de senhoras. O automóvel acelerou ainda a marcha e assim
correram uns três minutos. As damas despenteadas e com um apetitoso medo, já
davam gritinhos. E todo o 720-A-E ficou de repente pasmo vendo que o automóvel
de Teotônio parava de repente. Alguma trapalhada. Panne? Antônio
diminuiu a marcha. Jorge parou mesmo de todo. E estavam assim, os homens de pé
numa posição interrogativa, quando a máquina de Teotônio recomeçou a andar com
Sfrapini no guidão.
— Buona sera!
— Que brincadeira é essa?
— Oh! Pensávamos que vocês estivessem sós... - explicou o
Teotônio, que só fizera a corrida porque vira mulheres no carro do amigo. E
ergueu-se, saltou, veio sondar as distintas damas.
— Demônio! - exclamava Jorge. - Estamos sim, estamos com
senhoras. Foi no Lírico. Como não encontravam o carro...
— Oferecemos-lhe o automóvel - interrompeu Jacques - e
como elas ouviam falar mal de nós viemos mostrar.
— Que tudo não passa de mentira, pois não é? - fez
Teotônio a beijar a mão de Mme. de Melo e Sousa.
Jorge porém não largava o assunto.
— Sim, sim, és de força. Mas olha que não é sério correres
com o partido do peso.
Imediatamente, em frente das damas que se interessavam,
discutiram tecnicamente peso, carrosserie, carburador, cilindros, raios
de rodas, motores, marcas. Apesar da calma aparente, Jorge estava exasperado, e
o seu motorista ainda o excitava mais.
— Com este carro, desafio o seu, senhor Teotônio!
exclamava o rapaz.
— Deixa-te de prosa, rapaz.
— È un po'difficile... - sorria Sfrapini.
— Era o que se podia ver já! - disse de repente Jorge.
— Com as senhoras aqui?
Jacques porém não tinha muita dificuldade em convencer as
senhoras que deviam descer e ficar a ver a aposta alguns minutos. Alice dos
Santos, excitadíssima já saltara.
— Eu que não contava com um circuito!
— Vocês são loucos! - fez Mme. de Melo e Sousa, descendo
também.
Ada Pereira, muito nervosa, amparou-se a Jacques. A
discussão ia acalorada entre os sportsmen. Antônio, o chauffeur de
Jorge assegurava que, se o patrão quisesse, mesmo com aquela carrosserie conduziria
a máquina, dando distância ao adversário.
— Aposto um conto contra quinhentos mil-réis!
— Seja! - fez branco de cera o Jorge. - Mas sou eu quem dá
um conto por duzentos mil-réis.
Era a cena habitual. As senhoras que nunca as tinham
visto, estavam cheias de curiosidade. Ada Pereira, Alice e D. Argemira fixaram
um momento o jovem motorista de Jorge, que era de fato bonito. A corrida era em
cinco voltas e já ele colocara o 720-A-E em linha, airoso e a sorrir. Estavam a
dois passos de Pavilhão Mourisco e todos esquecidos dos seus
deveres, só tinham nervos para a aposta, porque salvo Teotônio, todos jogavam
no automóvel de Jorge e no chauffeur tão confiante e tão forte.
Quando viu os carros prontos, Jorge, com a voz mudada, deu
o sinal. As máquinas partiram num súbito arranco. Aquelas seis pessoas em traje
de baile perdidas no deserto iluminado da Beira-Mar acompanhavam com
o coração aos trancos, febris, nervosos, os rasgões veloces dos automóveis. O
mundo não existia bem para eles. Na primeira passagem, o carro de Teotônio
vinha à frente. Dois minutos depois, de novo passaram os dois carros, como
raios. O de Jorge ia à frente.
— Ganhamos!
— Ganho! É certo.
— É agora!
— É agora!
Ficaram assim trepidando segundos que pareciam séculos. A
poeira era como uma enorme nuvem que se tornava brilhante tal a iluminação da
Avenida, onde ardiam num brilho de sol todos os candelabros elétricos.
— É agora! - repetiu num grito Alice.
Tinha ao longe a última volta. Era a reta final. Era o desespero.
Era só quando os automóveis podiam dar toda força. Num ímpeto colossal esses
elegantes viram as duas máquinas a toda. Ao mesmo tempo, partindo do Mourisco,
em sentido contrário às duas máquinas, passou um automóvel. Os corações
apertaram-se. Antes que qualquer dos presentes pudesse dar uma palavra,
ouviu-se um tremendo fragor, todas as lâmpadas elétricas apagaram de súbito,
enquanto na semi-sombra passava como uma tromba uma só máquina.
As mulheres gritaram loucas; os homens precipitaram-se.
Era a quinhentos metros a máquina de Jorge estraçalhada. Para evitar o encontro
com o outro automóvel dera de encontro a um dos candelabros, derrubando-o e
quebrando-se. E sob a ruína, os ferros torcidos, as madeiras estaladas, as
folhas recurvas, gemendo, com as pernas esmigalhadas e o rosto em sangue,
Antônio, o jovem motorista, parecia morto.
XII
O epílogo dos desastres
Desastre chama desastre, diz a sabedoria popular; como
todas as outras coisas populares, foi a sua origem um austero
filósofo, uma individualidade superior. Quando pela primeira vez essa
individualidade emitiu a frase lapidar, os que o cercavam deviam ter ficado
pasmos com a revelação. Depois repetiram, e repetiram tanto através das épocas
que verdade tão poderosa chega a parecer mentira, e que a própria natureza faz
o possível para contradizê-la. Assim no tempo da tragédia grega os desastres
sucediam-se aos desastres. Era preciso que as famílias fossem até muito
infelizes para dar tantos desastres aos poetas. Já no tempo do romantismo, o desastre
é o desastre sem conseqüências, e finalmente o desastre, nos últimos tempos
literários acabou tendo um epilogo, tendo a obrigação quase de um epílogo
alegre. É que não há mais como no passado, grandes desgraçados. Ninguém mais
acredita senão na felicidade e a felicidade é pelo menos um pouco de quem nela
acredita.
Jacques era fatalista. Toda gente é fatalista à falta de
ser outra coisa. O desastre do automóvel pareceu-lhe uma continuação do
desastre moral com Godofredo, e uma espécie de aviso da Providência.
— Pára! Vê por onde vais! A morte espera-te de emboscada
no prazer desenfreado! - dizia com fatos a Providência traduzindo a linguagem
simples de D. Malvina Pedreira, digna progenitora de Jacques.
E o jovem acordara cedo, depois de ter dormido poucas
horas, num estado de excessiva excitação nervosa. Quantas sensações e quantos
horrores na noite anterior! O corpo de Antônio, o sangue, o trabalho para
evitar que a policia tomasse o nome das senhoras, o ataque de nervos de Ada
Pereira, a recondução das senhoras de carro, porque não queriam mais automóveis
- tudo era como o pesadelo hórrido a lhe dizer: previne-te! Como alguns meses
antes, deitado naquela mesma cama, após uma recepção de D. Malvina, Jacques
sentia o caminho andado. Caminhara, alheara-se de todo da família, largara as
amarras, e por pouco que pensasse, via quanto ocultamente, como a maioria dos
mortais, apenas para os seus botões, se enxovalhara. Que diriam os jornais?
Pela primeira vez. sentiu a necessidade de opinião da imprensa. Pediu ao criado
os jornais. A opinião era péssima. Os reporters, os jornalistas, os
trabalhadores anônimos daquelas folhas, obrigados indiretamente a servir a
casta, a que ele pertencia e que os desprezava, vingavam-se quando havia
ocasião, sempre. Jacques engoliu notícias melodramáticas cheias de
perversidades, de ódios, de insinuações, de insolências. Eles eram os
"indolentes", "aqueles que acreditam a vida dos outros
nada", uns pândegos sem alma", "refinados ignorantes do grand-ton",
"criminosos vulgares que graças a uma situação ocasional
abusavam". Todos os diários começavam por um verdadeiro artigo sobre a
continuidade dos desastres e era nesse assunto geral, um apelo à policia, que
se incrustavam tão agradáveis epítetos. A narrativa do desastre cada gazeta contava-a
de modo inteiramente diverso, mas em todos era de fazer chorar, porque os
jornais vinham transbordantes de uma piedade imensa pelo motorista, o humilde,
o do povo, sacrificado. Jacques leu que Antônio seguira em estado desesperador
para a Santa Casa, e que lá, ao recobrar os sentidos segundos antes de morrer,
só tivera para Jorge de Araújo que o acompanhava esta frase extraordinária:
— Perdão, patrão...
O próprio Jacques ficou comovido. E ficaria mais se não
constatasse que todos os diários davam os nomes dele e dos seus amigos por
extenso, só errando decerto propositalmente, no de Sfrapini que passava a
Stradini. Mas, se eles apareciam, as senhoras salvavam-se. E os jornais
asseguravam-nas três cocottes das mais estadas nesse mundo de vício e
perdição...
— Safa! - exclamou o jovem pondo-se de pé.
Deixou os jornais, foi tomar um banho frio, voltou ao
quarto resolvido a sair sem ver os progenitores. Se ficasse era fatal uma
grande cena, e depois da cena as visitas que viriam ver os efeitos dos jornais.
Vestia-se nervoso quando o criado lhe trouxe duas cartas: uma do deputado
vegetarista felicitando-o por ter escapado, outra de Alice. Esta era louca. A
encantadora senhora culpava-se de ser a causa de tudo, tinha expressões tais de
dor que um momento Jacques teve a ilusão de que também estava ferido, e
terminava exigindo que ele fosse vê-la só, só, pelo menos um instante, no ninho
na casa do barão. Estaria às duas horas. Queria vê-lo. Fizesse a vontade.
Jacques precisava desabafar e não queria ouvir o pai ou a
mãe ao almoço. Acabou de vestir-se com o mesmo cuidado de sempre e saiu pela
porta dos fundos, diante dos criados que sabedores do desastre, sorriam com
simpatia e cumplicidade. Já não era cedo. Passava muito de uma hora. Perdera
tempo com os gazeteiros. À porta teve tempo de receber da Malperle um cartão:
"Que horror e que prazer sabê-lo salvo!". Então despachou o
chacareiro com um agradecimento e outro bilhete para Lina Monteiro e seguiu.
Entretanto Maria, a pequena corista portuguesa, que
entrava para o ensaio no seu teatro ouviu o comentário feito ao desastre. Os
jornais tinham-lhe dado tais proporções que até no teatro o caso se lera. Entre
algumas prendas de que não fazia uso Maria colocava a leitura. Como ouvisse o
nome de Jacques ficou perturbada.
— Jacques? Estava no desastre?
— Sim! É o amigo do Sr. Jorge.
— Ferido?
— Não se sabe!
Ela perdeu inteiramente a cabeça. Era preciso saber.
Correu ao ensaiador, pediu que lhe desse uma licença e sem esperar resposta,
saiu, meteu-se num trem de praça, mandou tocar para casa de Jacques. Não sabia
o que havia de fazer. Apenas sentia uma grande aflição, um grande desejo de ver
são, sem ferimentos, o seu homenzinho. E se estivesse ferido iria ao quarto,
seria enfermeira, a mãe de Jacques perdoaria... Depois de tamanho desastre só
em casa é que poderia estar o rapaz... E no carro, ao trote dos magros cavalos,
Maria chorava. Quando o cocheiro parou, não se moveu. Chegando à porta,
vinha-lhe o medo de bater na casa honrada, de pôr o seu desejo ao lado do amor de
mãe.
— Como deve estar aflita a senhora mãe dele...
E ficou dentro da carruagem ansiada, à espreita, de ver
sair alguém, para pedir informações. Que fazer, Senhor dos Passos? Viu que
chegavam de instante a instante criados, que chegavam mesmo senhoras e cavalheiros.
A sua aflição aumentou. Afinal descobriu o jardineiro, que também entrava.
— O homem, é daí?
— Sim, menina.
— Como está o Sr. Jacques?
— Ele vai bem; saiu há de haver quase uma hora.
— Saiu?
— Palavrinha. Por esta luz...
Maria ficou meio aliviada. Onde estaria o rapaz no dia
seguinte a um desastre? Fez o carro voltar. E não tinha nada! Ah! Pequeno de
sorte! Como antes chorara, ela agora ria só dentro do carro, e o carro descia a
Beira-Mar precisamente no ponto em que outrora chamavam o Flamengo. Maria viu a
garçonnière. E de repente veio-lhe um desejo. Quem sabe? Fez parar o
cocheiro, saltou, bateu. A princípio devagar. Depois com força. A vizinhança,
que tinha em péssima conta o prédio, começou a aparecer vagamente, por trás das
janelas, aqui e ali. Um rapaz no segundo andar de certo prédio que parecia
destinado a jovens estudantes, sorria, com o pijama por cima da pele. Maria, a
pobre mulherzinha, achou que devia continuar a bater. Noutra ocasião ela
bateria o dia inteiro em vão. Naquela, porém, infelizmente, as duas almas que
lá estavam, estavam muito sobressaltadas para não responder. Jacques não podia
ver de cima, estando as janelas hermeticamente fechadas. Desceu à porta,
receando qualquer coisa de horrível. Já não tinha segurança, e contava com tudo
como se assistisse a seu drama de Shakespeare. Ia espiar pela fresta, enquanto
Alice no alto da escada já imagina Arcanjo, a polícia, o fim; quando Maria,
agindo apenas para se dar ares, sem certeza alguma, disse de fora:
— Abre, sou eu!
E só quando falou-se é que distintamente ouviu haver
alguém por trás da porta. Disse então mais alto:
— Abre!
Jacques temia o escândalo. Voltou ao alto da escada,
branco, a ver se encontrava um meio de salvação. Alice, à voz da mulher, compreendera
tudo. Veio-lhe, com a certeza, de que não era Arcanjo, uma grande calma. E ao
mesmo tempo um desprezo subitâneo por Jacques.
— Até aqui! Não respeitaste nem este lugar!
Jacques estava irritadíssimo - principalmente porque
vindo-lhe a extensão da responsabilidade não sabia como resolver os casos
melindrosos. Assim, rouquejou:
— Alice, deixa-te de cenas! É uma criatura que me
persegue. Há muito tempo.
— E sabe a nossa casa!
— Depois conto, depois explico. Por enquanto, é preciso
escapar.
— Não lhe abras a porta, então.
— Ela grita; é ordinária.
— Oh! Jacques. Jacques! Tu...
Olharam-se, ambos sentindo-se culpados, arrependendo-se de
várias e muitas coisas que não deviam ter feito, com que já agora era
impossível modificar. A voz de Alice tinha uma tal dose de horror que no seu
estado de superexcitação, ele, pela primeira vez julgou que devia defender
alguém. E com exagero. Seria como se fosse ele próprio.
— Não, Alice. Não há perigo. Estou com o azar mas por mim
não sofres nada... Esconde-te. É preciso. Esconde-te. Quando ela subir, sais...
— Que vergonha!
— Ninguém sabe...
— E a vizinhança?
— Não! Não...
À porta, Maria começava a bater freneticamente. Jacques
fez um gesto decidido a tomar uma desforra, desceu, descerrou a porta. Maria,
que esquecera completamente a causa primeira da sua intempestiva visita, entrou
pela abertura exígua como um foguete de bomba.
— Tens cá uma mulher, cão!
Não teve tempo de continuar. Ele lançava-lhe um murro aos
queixos. Era para lhe cortar a palavra e para irritá-la. Trepou pois os degraus
berrando:
— Covarde! Rufião! Tens sim! Essa desavergonhada vai ver o
que é bom.
Jacques, louco de raiva, seguiu-a agarrando-lhe as saias,
largando estas para procurar-lhe os pulsos. Ambos subiam aos trancos,
erguendo-se, escorregando, loucos de raiva. Como uma ventania, vieram ao salão.
— Quem te autorizou a vir aqui, animal?
— Fomente-se! Vim porque quis. Onde está a perdida?...
— Mulher, não há ninguém! Não me desesperes...
— Veremos.
Ela debatia-se, ele não a podia conter. Continuavam aos
safanões, de roldão, ela à frente, ele no seu rastro. No quarto de dormir, onde
o barão fizera uma orgia de bons amores cépticos, quase rolaram. Ele puxava-a.
Ela desvencilhava-se. Foram de tal forma até ao quarto de banho. Então Jacques
que julgava Alice aí escondida e presa do imenso receio de uma catástrofe,
agarrou-a pelo braço. Ela ferrou-lhe uma enorme dentada na mão. Deu-lhe com o
braço livre. Ela tombou.
— Parto-lhe a cara à fúfia! - berrou.
E como movida por uma mola pôs-se de pé. Então ele
atirou-se, e enquanto a mantinha apertando-lhe o pescoço, com a outra mão livre
começou a esmurrá-la. Era uma fúria de extraconsciência. Esmurrava escolhendo
os lugares onde não se vissem sinais, esmurrava a cabeça e esmurrando a pequena
amorosa que soltava uns surdos gritos estrangulados esmurrava Godofredo e os
seus insultos, esmurrava a má vontade do pai, esmurrava os deuses culpados do
desastre do automóvel, esmurrava a fatalidade menos boa. Via roxo, via tudo
lívido, e dava, e continuava a bater a pobre mulherzinha amorosa, como um
desafogo.
Mas de repente parou, distendeu os dedos, e o corpo de
Maria caiu no soalho, onde as cadeiras haviam rolado. Diante dele, Alice dos
Santos, lívida, com um olhar de pavor sem limite, assistia a cena que jamais
poderia imaginar, assistia como uma lição. Quando viu o corpo da pobre rapariga
por terra, pendeu para ela com infinita piedade.
— Quase a matas! Pobre! É preciso chamar o médico. Que
vergonha, Jacques! Bater uma mulher...
— Foi por tua causa...
— Toma o vidro de sais. Dá-lhe a cheirar. Oh! Jacques!
Jacques! Nunca pensei...
Depois envolveu-se no espesso véu e desceu. Estava séria.
Tremia. Esquecera despedir-se do jovem amante. Os seus dois grandes olhos
pareciam ansiosos por ver para além do quadro horrível. Entreabriu a porta.
Estava lá à espera o carro de Maria. Meteu-se nele rápida, e antes de chegar a
casa, tão perto, pagou ao cocheiro todas as horas em que a outra lá estivera
sofrendo por Jacques. Um pouco revoltada contra o destino, a linda Alice via um
reverso da vida inteiramente desagradável, e sentia, o mal de ter ido ao lugar
d'amor com tal ânsia que recebeu o bom marido com um abraço e chorando...
Jacques, entretanto, mais apalermado, ficara a fazer cheirar
o vidro de sais a pequena corista. Ao cabo de certo tempo viu que era preciso
alargar os vestidos da pobre rapariga. Então levou-a para a cama,
desapertou-lhe a saia, o corpete, soprou-lhe um bochecho d'água no rosto.
Depois, como visse, que ela respirava, ajoelhou-se à borda da cama, animou-a.
Ela abria os olhos.
— Desculpa, foi sem querer... Estou meio louco. Desde
ontem! Muito assustado, muito... Deu-me uma raiva de repente... Não havia
ninguém... Hoje, nem vi a mamã... Foi de nervos que aqui entrei...
A rapariga soluçava baixo ao som da voz querida. Jacques
tinha uma larga voz de barítono um pouco velada, e que lhe dava qualquer coisa
acariciador.
— Que dores na cabeça meu filho! que dores... Olha que foi
só por ti, só para te ver que vim... Meu Senhor dos Passos como vai ser agora!
E a custo, malaxada, contundida, mas desgraçadamente
feliz, Maria segurava aquela larga mão que a batera e beijava-a devagar,
chorando. Jacques para desculpar-se, beijou-a na boca, e como das outras vezes,
mais que nas outras vezes, como nunca, eles caíram em pleno gozo, gozando
profundamente...
A Jacques, porém, aquela conclusão das pancadas - tal era
o estado seu de nervos - não conseguiu acalmar. Ficou tendido como um arco, e
largando a pequena mulher falou-lhe com intimidade, pedindo conselho:
— Que achas, Maria? Devo continuar? Devo voltar a casa? Tu
sabes toda minha vida. Acabaste sabendo...
Ela era bem portuguesa. Respeitava os pais. Tinha o
sagrado respeito da família. Disse que era muito feio não ouvir os pais. E que
ele deveria ir logo beijar a mão à mãe, por ter escapado do desastre. Fosse
logo. Ela ficaria ainda um pouco deitada. E quando fosse noite, iria só,
batendo a porta... Dizia essas coisas rindo tão docemente que no riso se via a
lágrima. Era como um fim, uma despedida. Eles sentiam que estava acabado, e ela
ia satisfeita, tendo levado a parte do sacrifício, mulher, mulher como Jacques
não tivera outra.
O mancebo concertou o desalinho. Estava ainda mais triste.
A excitação de dois dias afrouxava num imenso e vago pavor de tudo, da vida, da
alegria, do amor. Disse-lhe beijando-a:
— Até logo.
Ela olhou-o longamente.
— Adeus.
E ficou só, chorando. Ele saiu devagar, tomou uma das ruas
transversais que vão dar ao Largo do Machado. A tarde morria meio escura. Quando
chegou à esquina, viu que o trânsito era interrompido por um grande enterro. Já
ia um pouco longe o coche carregado de grinaldas e mais três carros cheios de
flores. Mas o acompanhamento era enorme - um acompanhamento interminável, de
automóveis com as capotas arriadas, as lanternas acesas e os motoristas de
cabeça descoberta. Poucos automóveis deviam ter ficado na praça. Era - Jacques
não teve um instante de dúvida - o enterro do Antônio. O rapaz era querido, os
jornais haviam exagerado de tal modo o lado sentimental que aquela sociedade
fazia a sua apoteose na apoteose do morto humilde. Jacques nervosíssimo parecia
ver o motorista com os seus vinte anos, o seu riso, o corpo forte na farda cor
de lontra. Ficou à espera que o cortejo passasse. Quase no fim viu num carro,
vestido de preto Jorge de Araújo, e a seu lado, também de preto o grande
cronista Godofredo de Alencar. Como o carro parasse um instante, Jacques foi
até lá, irresistivelmente.
— O pobre Antônio! Que desgraça!
— É - fez Jorge. - Morreu duas horas depois. O Godofredo
arranjou para que se não fizesse a autópsia. Era melhor acabar logo. Depois
para que deformar mais o pobre rapaz?
E de repente, esse homem frio, esse homem de aço, enquanto
Godofredo olhava para outro lado fingindo não ver Jacques, esse homem
acostou-se soluçando.
O carro pusera-se em marcha. O mancebo, humilhado e
crispado de desagrados ficou até o fim. Aquilo era tão solene que parecia
culpá-lo Sentia sobre si uma imensa e vaga culpa, a que sentem quantos não
expiam pequenas faltas talvez. Quando não havia mais um só carro e os tramways
retomavam o trânsito meteu-se num, recolheu a casa, e como, ao entrar na
casa de jantar, na semi-escuridão da tarde a morrer, visse D. Malvina só, teve
um arranco. Caiu-lhe nos braços, sujo de uma porção de misérias, soluçando.
— Mamã! Mamã!
A anafada senhora esperara-o o dia inteiro para dizer ao
menino coisas tremendas. Mas ao seu soluçante, abraço logo começou de chorar
procurando beijá-lo como se ele fosse um petiz. Porque dá-se o caso que as mulheres
também são mães.
XIII
Após tremenda tempestade...
— Não! Já disse. Não saio! Não estou em casa!
O desastre do automóvel com a repercussão que no primeiro
momento lhe haviam dado os jornais, fizera a partida quase imediata de Jorge de
Araújo e de Teotônio Filho para a Europa. Jacques, que ficara em casa como um
convalescente recebera de Jorge um curto bilhete de despedida e nem fora ao
embarque. Soube que no mesmo vapor seguia a Liana, a quem Arcanjo presenteara
como um deputado vegetariano e rico pode presentear quando está farto de uma
dama. Não respondeu a um só bilhete de Liana. Passava os dias a dormir,
aborrecido, com medo de sair e chegara ao extremo de conversar longamente com
D. Argemira.
Aquele desagradável acidente chocara-o muito. Para
temperamentos como o seu, fetiches, de uma incultura completa e universal, o
desastre primeiro de catástrofes é que assombra. Todo homem amado pelas
mulheres tem um pouco de mulher na alma. Jacques sofrera mais com aquela
desorganização da sua vida do que sofreria talvez com a morte de uma pessoa da
família. É que de fato ela saltara a grande vala, no sport, no negócio,
no amor. Recomeçar a mesma existência seria perigosíssimo e para tal
faltava-lhe a coragem. Enquanto as coisas corriam bem era capaz de todas as
audácias e conseqüentemente de todas as inconveniências. Desde que os
horizontes se fechavam, voltava a criança, precisava de proteção, tinha um medo
vago.
Precisamente dez dias depois da catástrofe é que no seu
quarto, de pijama, Jacques dava aquela resposta ao criado que trouxera um
bilhete de Lina Monteiro. Oh! Era preciso acabar todas as antigas. Essa
rapariga era mesmo a caipora. Depois de a ela mostrar afeto é que seu pai
brigara, que fizera aquilo com o dinheiro, que tivera o desastre... No fundo
via que só reaveria a boa vontade do Gomes Pedreira se largasse de todo Lina. E
começava por julgá-la o azar. De resto não mantinha com as outras senão a mesma
recusa insolente. Deixava de responder. Talvez porque não se sentisse bem com a
pena na mão. Mas as outras criaturas que lhe tinham prestado atenção vinham a
sua casa; e só Lina não vinha...
Quinze dias depois dos acontecimentos, saiu à noite. Vira
nos jornais que a companhia portuguesa despedia-se. Maria deixara a garçonnière
em ordem e nunca mais dera sinal de vida. Foi por isso vê-la, foi mesmo à
caixa. Era um espetáculo entre palmas. Ninguém o conhecia. Como a peça era
revista, as coristas mudavam a cada passo de fato. Entretanto a Maria logo que
o avistou veio a ele, puxou-o, deu-lhe um longo beijo.
— Foi por mim que vieste?
— Foi.
— Meu bom... Partimos amanhã cedo. Hoje dorme na pensão o
velho. Sabes que ainda me dói a cabeça. Mau...
— Então... - fez ele humilhado porque nunca pedira.
— Chegaste tarde. Quando voltar...
Tristemente Jacques voltou a casa. No dia seguinte não
saiu. Como não tinha o que fazer pegou num volume de literatura que rolava na
copa. Era a história das aventuras de um polícia chamado Nick Carter. O estilo
e a imaginação do autor encantaram o cérebro difícil do jovem elegante.
Conseguiu com o copeiro os outros inumeráveis volumes. E então regalou-se. Como
contasse a Arcanjo amigo da casa as suas impressões, Arcanjo prometeu-lhe
outros agentes e ladrões célebres cujas falcatruas também a ele divertiam.
Trouxe. D. Malvina estava assombrada. Via seu filho ler e disso "deu parte
a Justino, esposo e pai".
De resto, ao passo que com a leitura policial Jacques
começava a ficar inquieto com as prováveis conseqüências do seu recibo ao
Gomide, era evidente que D. Malvina recorrera a Mme. de Melo e Sousa e a Alice
e que as três, mãe, amiga e já não amante conspiravam a seu favor.
Como? Que arranjariam essas três senhoras? Nunca o papel
com o qual o Gomide podia na melhor ocasião desfazer todas as suas esperanças.
Desde que cometera uma incorreção temia e respeitava a opinião pública. Assim,
uma noite na sua casa, chamou Arcanjo.
— Então, depois de Liana, nenhuma outra? - indagou baixo
do parlamentar.
— Não. Nem sei como foi aquilo. Ela não era tão boa.
— Oh! Arcanjo.
— Também não quero dizer que me arrependa. Afinal sempre
tive um lucro.
— Qual?
— Verificar que a carne e o champagne não me fazem
mal. De resto o Godofredo diz que tive outro: saber que o esperanto já era
falado na casa de Fanga.
E ria. Jacques não se conteve.
— E o Godofredo, como vai?
— Parece que maravilhosamente. O ministro da Agricultura
presenteou-o com uma pérola rosa que pertenceu ao Grão-Duque Miguel, no dia do
seu aniversário. E comprou uma casa, ao que consta, nas Laranjeiras. Você
também não sai? Que história é essa? Creio que não vai passar a vida inteira em
casa.
— Não. Espero as fibras...
— Que fibras? Ah! sim... Ainda não resolveste isso? Sempre
me parecia.
— É com o presidente agora...
— Então tens que esperar...
Ele ficou frio. O presidente frio não assinaria. E o
recibo do Gomide? Na mesma noite, D. Malvina disse-lhe:
— Sabes que esteve cá a Argemira? Falamos de ti. Precisas
ir amanhã almoçar com ela.
Jacques sorriu e foi dormir. Estava mais gordo. Dormia
muito.
Com efeito Jacques ao acordar recebeu de Argemira um
daqueles irresistíveis bilhetes, que para esse adolescente guloso da vida e de
fraco refletir produziam sempre efeito decisivo. Jacques que acabava da ducha e
de se fazer friccionar pelo copeiro, para fazer a reação da noite espessa,
sentiu-se logo desejado ao receber o bilhete, em papel malva, caracteres finos
e sutis. Decerto, a sua Egéria, a sua querida Egéria ia aconselhar-lhe um novo
bem. Vestiu-se com apuro. Perfumou-se. Um instante hesitou: devia levar a
gravata da cor da camisa ou em destaque como alguns dandies? Essas
preocupações assaltavam-lhe a mente, sempre que ia ver a deliciosa Argemira,
curiosa como, segundo o barão, uma pequena marquesa do século XVIII. Atribuiu o
caso apenas à possibilidade de lá encontrar corações apaixonados. Mas, com o
tempo via que aquela senhora, mãe de um rapaz mais velho do que ele,
positivamente não lhe desagradava. Era como uma tapeçaria antiga que atrai. Era
como não podia dizer- qualquer coisa de instintivo, que a travessura da sua
luxúria criança desejava experimentar, sem conseqüências. Por que não? Jacques
contava com a visita, imaginando a surpresa. Partiu sem um fim seguro. Partia
sempre assim. A premeditação nunca seria uma causa a mais para a condenação dos
seus crimes. Mas verificou que conservava aquela boca de morango úmido no lábio
glabro, o peito forte, o cabelo repartido em risca, um perfume de
água-da-colônia e de sabonete d'alface, à inglesa.
Mme. de Melo e Sousa estava no seu pequeno salão de atmosfera
leitosa, vestida de branco, ensaiando a meia voz uma romanza inglesa,
gosto que trouxera de Londres - versos ocos e música de Tosti.
— Oh! o desaparecido!
Estendeu-lhe as duas mãos com as suas duas pérolas uma cor
de oiro, outra cor-de-rosa, e ficou assim, um tempo sentada, tendo-o de pé.
— Então agora é preciso um bilhete? Não há meio de o ver.
Sabe que recebi carta de Gladys. Manda-lhe da Suíça uma edelweiss.
Jacques teve vontade de perguntar o que vinha a ser uma edelweiss,
mas conteve a pergunta noutra pergunta:
— E a senhora?
— Eu, meu filho, por aqui...
As mãos despegaram-se, ficaram a olhar-se. Nos olhos de
Argemira havia aquele favilar d'oiro dos momentos em que a sua malícia surgia.
— Que belo rapaz, hem? Forte, belo! E sedutor.
— Por quem é, minha conselheira...
— Não diga isso alto. Não diga nada alto.
— Por quê?
— Porque só as mentiras se dizem alto.
E imediatamente começou a falar alto do automobilismo de
Jorge que acabara mal, do Arcanjo, que já não era vegetarista - por quê? - dos
rapazes da roda que enveredavam no sport.
— O Suzel tem uma amante bonita.
— E insuportável. Está apaixonada por ele.
— E Bruno Sá?
— Outra também insuportável pelo mesmo motivo.
— É então do exercício? Só você...
— Eu agora ninguém...
— Sério?
— Sem a senhora não me atiro a essas coisas.
Evidentemente era um bom rapaz. Com os seus cinqüenta anos
em flor, conservados em perfumes, aquela mulher de espírito, sentia uma
complacência agradável em estar ali com ele, em satisfazê-lo, bem desejo vago
de dar-lhe biscoutos e dar-lhe com beijo a deixar-se beijar e ralhar depois.
Que garoto e que querubim!
— Criança!
— A senhora nem sabe como manda em mim. É mais forte do
que eu.
— E se eu pedisse que você subisse para Petrópolis?
— Já?
— Parto amanhã. Tenho uma coisa muito agradável.
— Quem é?
— Não digo senão lá.
— É a... Ada Pereira.
— Ora a Ada.
— Diga quem é.
— O menino sabe que tem vinte e três anos, que precisa ser
homem, perder essas curiosidades malsãs.
— É discurso?
Ela riu.
— Vai?
— Pois vou. Há muito tempo que não me aborreço.
— Obrigada...
— Não, não é pela senhora, a senhora, D. Argemira, tão
boa, tão agradável...
Tomou-lhe a mão, beijou-lhe a pele fina. A mão
conservou-se no seu lábio quase apagado a roçar, o que o fez molhar os lábios,
ao apertá-los naquele beijo sentiu, sem querer aspirar o perfume,
estender o braço, envolver uma cintura. Mas, a ilustre dama que um momento,
pendera, recusou, sempre a sorrir, sem demonstrar perceber até onde tinham ido
as cousas. Só o seu semblante resplandecia como se tivesse cheirado uma
essência de vida. Jacques pôs-se de pé.
— Então o que é?
— É a sua carreira.
— A minha?...
— Sim, meu querido. Arranjamos as coisas. A Alice
trabalhou muito junto ao general, o presidente prometeu a seu pai, e fez o
possível junto do meu velho amigo o chanceler.
— Então é?
— A diplomacia - fez a ilustre dama
erguendo-se. - Preciso ir ver a minha casa lá de cima. Estarei pois em
Petrópolis. Tudo depende de tino, da maneira por que te hás de apresentar ao
grande ministro. Ele é muito pela mocidade - hélas! - no que eu acho que
faz bem. Mas é também muito das primeiras impressões. Tens uma bela figura e
sabes ser amável.
— Oh! D. Argemira.
— Com oito dias de trabalho estás nomeado.
Depois, séria:
— Precisas sair daqui, por várias razões e principalmente
porque a boa educação não se pode completar num meio tão estreito. Depois que
profissão melhor para um rapaz fino, não achas?
— Nunca pensara.
— O que quero, é que venhas a dar um grande diplomata.
Almoçaram finamente, como só na casa de D. Argemira era
possível almoçar. Jacques beijou-lhe a mão agradecidíssimo, e de lá saiu depois
das duas horas.
Ainda na dúvida, porém, viu que precisava consultar
alguém, além das mulheres. Godofredo era um inimigo ainda. Jorge estava fora.
Só o barão, aquele curioso tipo que assistia a vida e que decerto devia ter
sofrido muito para estar assim sempre só. Jacques consultou o relógio e tomou
um automóvel. O barão devia estar na sua partida no CIub da Avenida. Foi
lá buscá-lo. E, o encontrou à porta na ocasião em que entrava. O barão teve uma
larga exclamação e fê-lo subir.
— Então, que há?
— Venho pedir-lhe um conselho.
— Coisa terrível. Os conselhos servem apenas para não serem
seguidos.
— Trata-se da minha carreira.
O barão deixou a sala de jogo e levou-o para uma outra
sala escura em que ao fundo se via um bilhar deserto. Era nesse apropriadíssimo
local que o club fazia as suas anuais exposições, de pintura. Os raros
visitantes que se atrevessem poderiam levar uma opinião preconcebida. Era
possível ver o bilhar e talvez algumas poltronas. Quadros é que não.
Precisamente havia uma exposição. Os dois homens em atmosfera tão superior, não
se aperceberam disso. O barão sentou-se.
— Então? Reaparece...
— Ao contrário.
— É paixão então.
— É enfado, barão, estou farto de mulheres...
O barão estirou as pernas, sorriu com melancolia.
— Não digas mais tais coisas, meu pequeno Jacques. As
mulheres são ainda o que conservamos de melhor. Já viste alguém que não fosse
feito por uma mulher? Já não digo fisicamente. Falo da formação moral, social.
Já viste um homem que não devesse o que é a uma ou a várias mulheres?...
Ingênua criança! Mas também todos esses enfados vão-te bem. És belo e és jovem.
As que primeiro te perderão serão as próprias mulheres. E assim tal qual és,
feito para o amor das mulheres, quando tiveres a minha idade e estas barbas
brancas, serás tão feito de amor das mulheres, de tantas lágrimas, de tantos
desgostos, de tantos enganos que serás um aborto de felicidade.
— Mas barão...
— Exagero? É para que não tenhas dúvidas.
— E eu tenho, barão. A mãe e D. Argemira parece que me
fazem diplomata.
— Só?
— Como só?
— É que podiam fazer-te logo embaixador.
— Então devo aceitar?
— Mas claro. A apostar que não são apenas as duas a
interessarem-se? Parte quanto antes. É uma profissão, é a única profissão que
te serve. Teu pai começava a estar seriamente incomodado. Depois um homem não é
homem senão depois de conhecer a civilização.
Jacques ficou contentíssimo quando via um empenho unânime
pela sua felicidade. Deixou o caro barão só à tarde, e ao chegar a casa
comunicou a D. Malvina, com alvoroço.
— Sigo para Petrópolis, amanhã, de manhã.
— Então aceitas?
— Era o que eu queria, mãezinha.
Como a partida era no dia seguinte pela manhã, D. Malvina
deixou de ir à recepção da Muripinim, encardida relíquia da monarquia, para
presidir a arrumação das malas. No outro dia cedo levou-o até a Estação da
Gamboa. Jacques subia para Petrópolis como se nunca lá tivesse estado. D.
Malvina abraçou-o.
— Pedi por ti, a Nossa Senhora.
E agitou o lenço quando o comboio partiu. Jacques estava
comovido. No wagon, apenas ia o viajado marido de Luísa
Frias, que tinha casa no alto da Serra. O homem cumprimentara Mme. Gomes
Pedreira com respeito. Teve a delicadeza de não perguntar por que Jacques subia
ainda no inverno. Era uma conversa fascinadora. Palrava de viagem, de sport,
contava anedotas.
Quantas vezes tinha estado em Paris? Viajara toda a
Europa, estivera em Carlsbad com Eduardo VII, viajara com algumas senhoras do
tom, falara com a Princesa Clementina da Bélgica, conhecia os vícios das
duquesas, fora a uma reunião literária da Princesa de Rohan, apertara a mão de
Orville Wright, freqüentara o appartment de Santos Dumont,
esbanjara dinheiro nas estações da Riviera onde, as paisagens são quase tão
bonitas como os cromos que as reproduzem; Lord Asquith interrogara-o em
pessoa sobre o país do café, e a Cleo de Merode conversara com ele
sobre as pérolas da falecida Wanda de Boneza. Era um homem internacional.
— Linda paisagem!
— A Suíça, já viajou à Suíça?
— Não.
— E nunca atravessou os países balcânicos?
— Francamente...
— Pois tem perdido.
Apesar dessa superioridade de viajante, a sua conversa encantava.
Oh! as anedotas sobre a Réjane, o Anatole e de Max, os vícios do de
Max.
— Cousas! Cousas civilizadas!...
— E quando volta?
— Pois não sabe? Tenho uma comissão, devo ir, estou até de
passagem comprada.
— E por que não parte?
— Ora por quê! A senhora minha mãe que adoeceu gravemente.
— Ah! sim... meus sentimentos.
— Está desenganada.
— Oh!
— Não há mesmo esperança alguma, de salvá-la. Na
derradeira conferência, tive que à última hora pedir à companhia o favor de me
adiar a passagem. Eu ia no Araguaia...
Deu um profundo suspiro entre raivoso e triste. Depois,
desabafando:
— Está para morrer. Morre mesmo. Mas a agonia não acaba, e
eu afinal perco, não acha? Porque é impossível embarcar com uma pessoa da
família assim. Que diria a boca do mundo?
Jacques sorria admirado desse homem. E saltou em
Petrópolis com uma infinita vontade de partir, de também seguir para a Europa.
NÚCLEO DE PESQUISAS EM
INFORMÁTICA, LITERATURA E LINGÜÍSTICA