Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cântaro de ternura, de Maura de Senna Pereira

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Edição de base:

Poesia reunida e outros textos. Org. de Lauro Junkes.

Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2004.

ÍNDICE

O sentido da minha glória

A misteriosa cisterna

A sugestão do azul

Dançarina da dor

Êxtase selvagem

Cântico da água

Natal de um poema

Poema de um natal

O sonho da minha mão

O senhor Destino

Panteísmo

Tempo perdido

A serpentina verde

Lírica

Elogio da chuva

Ressurreição..

Dona Primavera

Da religiosa concentração

 

 

O sentido da minha glória

Cantei ontem numa grande festa.

Cantei ontem e chamaram-me de gloriosa.

Vi então que os teus olhos, que são dois trovadores, cintilaram de ciúme, como dois satãs.

Eu saboreei o castigo dos teus olhos ciumentos, rindo, rindo do teu engano!

Ah! pensas então, enamorado dos meus cabelos e das minhas mãos, pensas então que a minha glória está ali, naquelas palmas e naquelas flores?

A minha glória está no teu amor. Está nos madrigais da tua presença. Está nas cartas da tua saudade.

Eu era uma avezinha tímida e solitária, friorenta e triste. Tu chegaste numa abençoada manhã e deste-me a alegria e a pelúcia do teu amor. Tornaste-me a tua irmã e a tua namorada.

Ah! não tenhas mais ciúmes da minha falsa glória, porque somente conheço a glória verdadeira quando tu dizes que eu sou a mais querida de todas as mulheres e bebes com o coração esta água samaritana do meu cântaro de ternura!

 

A misteriosa cisterna

Desde que me falaste naquela misteriosa cisterna, meu coração não sossegou mais. Vive nutrindo a ideia e o desejo de ir até lá, como um peregrino quase morto de sede, para beber na cisterna misteriosa a água iluminada da verdade.

Mas tenho tanto medo de ir só!

Vamos nós dois, de mãos dadas, como duas crianças curiosas, vencendo caminhos impérvios ou ladeando canteiros cheirosos de resedás, até a cisterna misteriosa que entesoura a água iluminada da verdade?

Meu coração já conhecia as crucificações deliciosas da beleza, mas a revelação da tua palavra adorada — nem imaginas, meu príncipe e meu pastor, nem imaginas — fê-lo desejar ainda esse outro estremecimento.

Mas tenho tanto medo de ir só!

Vamos nós dois, de mãos dadas, como duas crianças curiosas, vencendo caminhos impérvios ou ladeando canteiros cheirosos de resedás, até a misteriosa cisterna que entesoura a água iluminada da verdade, e beber, beber, beber?

 

A sugestão do azul

Nesta manhã lírica, em que o sol, como um artista, desenha arabescos prateados sobre as águas cantarolantes da cascata e, como um deus, abençoa a cabeleira crespa das árvores — sabes de que me lembro?

Nesta manhã lírica, em que o céu está contente consigo mesmo e põe no nosso olhar um reflexo da sua alegria azul e em que os pássaros libertos e ignorantes, sobre as galharias rendilhadas deste bosque, cantam epinícios azuis à beleza da vida — sabes de que me lembro?

Nesta manhã lírica, em que nós parecemos dois indiozinhos muito apaixonados e muito amigos, rindo quase infantilmente, no meio de tanto rumor e de tanta clorofila e de tanto aroma e gulosamente devorando as frutas vermelhas que colheste para o nosso farnel selvagem — sabes de que me lembro?

Nesta manhã lírica, em que tu espalhas sobre os meus cabelos fartos mancheias de flor de grumixama e de amoras verdes e em que até me pareces um cacique,dono destas matas farfalhantes e dono dos belos cocares dos meus pensamentos — sabes de que me lembro?

Eu me lembro deste glorioso impossível: que a nossa vida devia ser eterna! que devia ser eterno o nosso amor!

 

Dançarina da dor

Tu vives a dizer que queres dançar comigo. E, agora, neste salão amplo e ruidoso, entre os outros pares que volteiam enlaçados, queres cingir a minha cintura — para sonhar melhor ao ritmo da dança?

Para sonhar melhor? (se não foras também um sonhador, eu não te preferiria nunca) ou porque queres saber, no império do teu ciúme, se eu, dançando bem ou dançando mal, tenho dançado muito ou tenho dançado nada?

Se assim é, eu te conto já uma história pequenina e tremenda e gritante, ó meu único amor!

Eu tenho bailado muito... na solidão de mim mesma e na solidão do meu jardim. Tenho bailado muito... todas as desesperanças agoniadas, todas as ambições reprimidas, e também a vingança impotente da revolta, e também a delícia covarde do perdão. Tenho bailado muito...

Queres ainda para teu par a dançarina da dor?

 

Êxtase selvagem

Eu estou a caminhar entre os pessegueiros floridos... Enquanto os meus pés descalços pisam, com alegria bugra, a terra morena do pomar, as minhas mãos, na consciência de que possuem um tesouro, embevecidamente seguram a tua carta de amor!

A tarde formosa está em torno de mim... Mas que me importa a tarde formosa se os meus olhos só têm vida para reler as tuas frases de ritmos diversos? Ora me falas como meu pai quando eu era pequenina, ora com a altanaria do gigante que roubou a princesa...

Meus cabelos voam aos caprichos do vento e a minha túnica branca também treme e dança com ambições heráldicas de ave... Mas que me importa a ciranda do vento se os meus sonhos cirandam em torno da tua carta de amor?

Lá bem longe, eu sei que se agitam ideias e se realizam lutas, que há clamores de angústia e gargalhadas de gozo... Mas que me importa o mundo se tenho um mundo de ventura e de beleza na tua carta de amor?

 

O cântico da água

Eu estava sentada sobre a relva e mastigava em silêncio begônias encarnadas e frutos ácidos.

Tu também não me falavas.

Tuas narinas e teus olhos se volviam para a noite, que parecia abençoar-te com seus gestos de luar.

De repente tu te ergueste e disseste-me: "Vem".

Eu te segui fascinada e fui pelo teu braço até a fonte que corria e que cantava.

Então, apontando-me a água, murmuraste num tom bíblico: "Escuta".

Eu, pasma, desci os meus olhos, que te olhavam perplexos, para a fonte que te atraíra como uma ninfa liquefeita.

E nós dois ouvimos o cântico da água!

Depois voltamos, mudos e pensativos.

Quando nossos rostos, em face da lua, se tornaram a mirar, havia neles a decepção gostosa de quem surpreendera a própria vida cantando o seu grande cântico de dor e de amor!

 

Natal de um poema

Faz hoje um ano que escrevi o poema da tua predileção: aquele ritmado verbalismo que eu arranquei da alma para o teu louvor, para a tua alegria, para a tua vaidade.

Faz hoje um ano que escrevi o meu poema de ternura: aquele que tu achas mais parecido comigo, aquele que eu acho o mais sincero de todos.

Fui então vê-lo — sabes? — para lhe dar os parabéns e encontrei-o no bercinho em que ele dorme — o meu álbum azul — e embalei-o nos braços da minha sensibilidade como uma extremosa mãezinha o filho do seu amor.

Embalei-o muito, muito, e cantei para ele dormir outra vez aquelas mesmas palavras que o meu poema encerra e que eu disse para os teus ouvidos e para os teus enternecimentos na primeira noite — estrelada e inolvidável — em que os nossos corações noivinhos conversaram. Até me festejaste com esta frase, que fez correr pelos meus olhos uma alegria louca: "O teu poema és tu mesma: é a tua alma ansiosa, é a tua voz acarinhadora; e tem a doçura da tua

promessa, e tem o ritmo do teu coração; e lembra um colar verde enroscado na tua garganta de jambo; e lembra as tuas mãos de criança e de rainha espalhando bálsamos e deslumbramentos."

O meu poema bonito faz hoje um ano. É um garoto, não é?

Embalando-o comovidamente na manhã risonha de hoje, ah! tive ânsias de viver para criá-lo e para protege-lo e, por isso, embalei também o desejo de nós dois podermos ainda beijá-lo quando ele já for um velhinho de cinquenta anos...

 

Poema de um natal

As tuas letras aqui estão: ante os meus olhos úmidos, sob os meus lábios doces, entre os meus dedos carinhosos.

Tuas letras reais de grande amoroso, que me desejam, como a uma criança mimada, um alegre natal.

E eu choro de saudade!

Ah! é certo que as cigarras cantam os seus hinos anunciadores sobre os jasmins brancos e que vem até a minha janela o perfume sadio, a promessa orgíaca das videiras carregadas de frutos verdes!

Ah! é certo que os corações são repuxos desvairados de alegria espadanando pelas mãos em gestos de caridade e pelas bocas em sorrisos de primavera!

Mas eu é que não posso misturar-me ao júbilo humano em comunhão com a data divina, nem compreender o canto inocente das cigarras e o aroma capitoso das uvas, porque tu estás longe de mim, longe da tua pequena escrava, longe da tua grande amorosa, a quem enfeitiçaste com as mais gorjeantes palavras de amor e, ainda mais, com a linguagem suprema e verde dos teus olhos...

E eu choro de saudade!

No entanto, se eu soubesse que, neste dia de luz, tu, por estares longe de mim, passavas também um natal triste, como seria então alegre o meu natal!

 

O sonho da minha mão

Ah! não podes adivinhar a consequência daquele beijo longo e apaixonado que deste ontem na minha mão!

Aquele beijo de culto que parecia jurar: "conquistarei tudo pelo prêmio do teu sorriso". Aquele beijo de vitória que parecia dizer: "sei que me amas porque sou forte e bravo como nenhum outro". Aquele beijo de gratidão que parecia cantar: "deusa!deusa! deusa!" Lembras-te?"

Aquele beijo chegou até minha alma.Então fiquei durante alguns instantes fria e pálida, então fiquei quase morta. O teu beijo longo e apaixonado teve um tal poder que a minha alma, ao senti-lo, logo me abandonou e, inteira, foi palpitar durante alguns instantes dentro da minha mão pequenina, a faceira salva que acolheu o teu beijo. E a minha mão começou a sonhar...

Ama o sonho múltiplo da minha mão: viver submissa entre as tuas mãos dominadoras; derramar as rosas divinas do afago no teu caminho difícil de batalhador; servir-te docilmente e, sem rival no bem-querer, na volúpia da fidelidade, desvairada e feliz, ser eternamente tua!

 

O senhor Destino

Tu sempre me dizes que me hás de amar e proteger.

No entanto, a minha alma escorre o sangue de repetidas vergastadas; no entanto, a minha alma — que é o céu da tua mocidade agitada e audaciosa — exibe uma estranha constelação de chagas.

Disseram-me que quem assim me maltratava era o senhor Destino.

Ora, tu sempre me dizes que me hás de amar e proteger.

Contei-te, pois, chorando, a dor violenta da minha alma, na certeza de que matarias esse senhor Destino.

Mas os teus olhos logo entristeceram e os teus braços caíram desalentados.

Ah! eu compreendi então que era invencível o meu algoz! Eu compreendi então que tenho mesmo de sofrer, bem quieta, bem heroica, porque o mui alto e poderoso senhor Destino é tão forte e tão bravo que nem tu podes com ele!

 

Panteísmo

Do teu bilhete encharcado de panteísmo decorei este trecho alucinador:

"Eu te escrevo sobre um monte de folhas mortas e, daqui onde estou, ouço o gorjeio dos pássaros selvagens e a canção sonorosa das cachoeiras. Estas letras te levam o cheiro dos figos maduros que, nos seus galhos, se debruçam sobre o meu peito largo. Ama tudo isto, ó adorada minha, com os salmos da tua reverência ante o milagre verde da natureza".

Tu bem sabes que o meu amor é todo feito de obediência e de religião. Calcula, pois, como te não escutei desta vez, se, na minha índole, que te faz às vezes pensar em doces fidalgas sonhadoras e enclausuradas nas suas altas torres de marfim, devo ter também, numa estranha mistura, os arremessos bravios das tribos nômades. Calcula, pois, como te não escutei desta vez!

Ah! corri a abraçar-me com os troncos rudes e a minha boca vermelha e úmida foi beijar fraternalmente as plantas rasteiras. Depois bebi o orvalho na própria cabaça das folhas gotejantes e deliciei-me em morder as flores recém-nascidas que ia encontrando. A cantar, corri, corri como uma doida e, deitada por fim num divã de manjericões, concentrei-me no meu rito e adorei todas as raízes encravadas no chão!

 

Tempo perdido

Que tempo perdido esse em que procuras descobrir o ponto que as minhas pupilas fixam!

Eu, com esta fita dourada sobre a testa e os olhos embebidos na luz adiante...

Tu, ciumento e curioso, sentado perto de mim na areia aconchegante desta praia branca...

Nós dois, num silêncio do amor!

E os meus olhos rasgando, pensativos, o que mesmo? não estou vendo nada...

E os teus olhos acompanhando a direção dos meus, feitos espiões desse quer que seja que os está a atrair e a impressionar...

Mas que tempo perdido esse em que procuras descobrir o ponto que as minhas pupilas fixam!

Meus olhos não estão olhando, meus olhos estão sonhando...

Não contemplam o capricho plástico das nuvens nem a luz vermelha lá do poente, mas procuram devassar o infinito, o misterioso, o ignorado!

 

A serpentina verde

No meu carro, sob guirlandas de rosas, eu, que sou a cigana do sonho, estava fantasiada de cigana. Ao meu lado, em torno de mim — o riso da mocidade, a febre do carnaval.

Só eu estava triste.

A noite linda, exalando éter perfumado, convidava meus lábios a entoarem canções efêmeras e alegres, acompanhando assim os outros lábios doidos que cantavam hosanas e evoés às doidices do deus vitorioso de três dias.

Mas tudo me parecia maldito.

Quando, no meio da multidão compacta que apreciava o corso, eu te vi...

A minha alma, até então indiferente, transfigurou-se, foi uma pletora de guizos e mandou que eu, a cigana do sonho, cultuasse também a grande festa pagã.

Trêmula, a minha mão segurou uma serpentina verde.

Mas os teus olhos grandes me envolveram toda. A homenagem do teu olhar era tamanha que o meu coração paradoxalmente se pôs de joelhos. E a minha mão, já suspensa, toda lírica nos cinco poemas dos meus dedos macios, tombou vencida sobre o corpete negro, úmido de lança-perfume...

Deixei então para a outra volta o meu festejo de apaixonada. Mas quando, sob guirlandas de rosas, o meu carro passou outra vez, e ainda outra, e ainda outra, não mais te vi!...

E eu não te atirei a serpentina verde! E tu ficaste sem saber a esperança da minha vida!

 

Lírica

Digo às vezes que quero morrer moça... Outras vezes quero que a morte me encontre anciã...

Mas hoje — como está a minha cabeça hoje! digo que queria morrer na hora em que me achasses insubstituível. Na hora em que a minha feminilidade te parecesse tão requintada que nenhuma outra fosse capaz aos teus olhos de atingi-la igual. Na hora em que as minhas mãos tivessem para o teu consolo todos os veludos e todos os milagres e em que os meus olhos te parecessem mais belos e os meus lábios mais imaculados. Na hora em que tu achasses o meu amor mais apetecível do que a eternidade que os deuses prometeram.

Eu queria morrer nessa hora única!

Porque assim todos veriam — diante do teu desespero ao lado do meu cadáver; diante da tua saudade à beira do meu túmulo; diante da tua figura desolada a vagar tristemente pelas ruas e da tua atitude de evocação ante o retrato da tua morta todos veriam quanto eu fui amada!

 

Elogio da chuva

Dantes eu não gostava da chuva. E, quando chovia, ficava recolhida em casa, com a alma triste e mórbida, a olhar, displicente, pelo vidro das janelas fechadas, a dança malabar da chuva sobre as margaridas abertas do meu jardim.

Mas, um dia, a chuva nos surpreendeu em meio ao nosso passeio. Nem uma árvore que nos abrigasse das bátegas violentas... O muito que encontramos foi um velho tronco caído, escorrendo água como as nossas vestes... Entretanto eu estava contente como nunca! E que naquela tarde chuvosa e feia tu me falaste de um modo novo que me transfigurou. E, ouvindo-te, eu ia dizendo baixinho para o meu coração: Que chuva boa! Que chuva boa!

Desse dia em diante eu gosto da chuva. E, quando chove, não mais me contrario nem me entristeço. Mas fujo e, correndo com a ligeireza de uma corça do mato, procuro com saudade o pleno desabrigo. Sem receio algum de ficar doente nem de que repreendam a minha loucura, eu ofereço a minha cabeça aos beijos fustigantes dos grossos pingos d'água. Sinto, gostosamente, molharem-se-me também o vestido claro e os braços desnudos. Cerro depois os olhos e iludo-me de que estás ali, falando-me com a maravilhosa ternura com que me falaste naquela tarde chuvosa e feia. E, iludindo-me, eu vou dizendo baixinho para o meu coração: Que chuva boa! Que chuva boa!

 

Ressurreição

Foi quando eu me sentia contaminada pelo veneno de teorias dissolventes e de mágoas agudas que me veio a tua alma encontrar na visita dos teus lindos versos.

Acredita, ó homem que não só és o meu amor como também a minha amizade, que não só és a minha glória como também a minha vida, que não só és o meu orgulho como também o meu domínio, acredita que eu estava enferma de desespero e de fadiga e que por certo ia morrer.

Todas as reflexões amargas se haviam apoderado do meu cérebro e eu olhava com flagrante escárnio tanto as criaturas como os idealismos.

Mas, nesses momentos terríveis da minha pobre juventude em flor, eis que tu chegas nos teus lindos versos e te debruças todo para a minha alma em transe e lhe falas no magnetismo irresistível dos teus grandes entusiasmos.

Eu, que sou fraca e que sou tua, fiquei envergonhada de descrer e de negar. Diante da tua fé magnífica partiu-se como por encanto a taça sombria do meu pessimismo. E eu chorei a minha radiosa derrota. E, enquanto as lágrimas caíam sobre o meu colo de rola, os teus lindos versos brilhavam ainda mais diante da minha alma.

Ah! como venceste! Eu novamente adoro a expressão festiva e lutuosa da vida: os teus versos foram quase um milagre de Jesus...

 

Dona primavera

A minha ilha agora é que merece mesmo o nome de ilha verde.

E eu, alvoroçada e carinhosa, passeio então com mais fervor pelos meus canteiros ricos de seiva. Ou então vou apreciar, nos jardins da minha cidade querida, a profusão dos rebentos e o esplendor panteísta das árvores. Ou então me embrenho pelos recantos mais afastados e loucamente espio os ninhos, abençoo os pólens e aspiro o frescor da vegetação remoçada.

Ah! neste setembro acho dona Primavera ainda mais bonita e mais alegre do que nos outros anos.

É que tu voltaste, vitorioso como sempre, com um brilho maior nos teus olhos e uma cintilação nova nas tuas frases!

De vez em quando te distancias de mim e, apesar de as cartas mútuas nos aproximarem e de as tuas breves ou prolongadas ausências tornarem ainda mais saboroso o nosso romance, o meu contentamento não se descreve quando tu voltas.

Por isso nunca vi um setembro assim!

Dá-me até vontade de gritar bem alto:

"Dona Primavera, por mais bonita e por mais alegre que a senhora esteja, a minha alma ainda está mais, porque ele chegou!"

 

Da religiosa concentração

Não perturbes agora o meu pensamento. Não me fales agora. Deixa-me na companhia dolorosa da minha alma. Este instante não te pertence é para os meus mortos...

Sabes? Para aqueles que tiveram nas veias o meu sangue e o meu sonho e que viveram no meu lar, pertinho de mim, as horas de ouro que esta hora de dor está ressuscitando...

Sabes? Para aqueles que fecharam para sempre os olhos à inquietação deliciosa da vida e que moram agora num pequenino canteiro onde as violetas sonham na sua humildade azul...

Não perturbes agora o meu pensamento. Não fales, não rias, não soluces. Eu quero estar na companhia dolorosa da minha alma. Este instante não te pertence: é para os meus mortos...