Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Breve notícia sobre três esqueletos de indígenas brasilienses da Província de Santa Catarina, de Duarte Schutel


Texto-fonte:

Duarte Paranhos Schutel, Breve notícia sobre três esqueletos brasilienses da Província de Santa Catarina (Brasil),

Rio de Janeiro: Tip. Moreira, Maximino & C., 1875.

Em 1861 pelos fins do mês de Março, chegou à Presidência da Província de Santa Catarina, notícia de que haviam aparecido – Bugres – (assim se chama no país os indígenas) em um Engenho de Serrar no Rio do Braço do Tijucas(*) e de terem eles saqueado e roubado o que de ferragens e legumes encontraram.

Em consequência o Exmo. Sr. Presidente, enviou uma escolta de soldados comandados por um tenente afim de proteger os habitantes, bater os matos e capturar os indígenas malfeitores.

Chegada a escolta ao lugar do referido Engenho, e guiando-se por as cinzas de fogueiras recentes, paus cortados, e outros sinais conhecidos da passagem dos indígenas, penetrou pelos fundos das terras do Estabelecimento Colonial do Dr. Henrique Schutel – NOVA ITÁLIA – ora – D. AFFONSO, – e ao anoitecer desse dia, deu em um alojamento de índios com seus ranchos armados.

Então não querendo o tenente que se apercebessem dele, retirou-se com sua gente pernoitando próximo debaixo de toda a cautela, esperando cercar e atacar os Bugres ao romper do dia. Com efeito, amanhecendo, ao primeiro albor, caíram de improviso sobre eles e os surpreenderam, tomando-os de súbito e destroçando-os com uma descarga de fuzilaria, de pólvora seca, como para assustá-los.

Tendo fugido a maior parte, e, mortos alguns em o combate que se travou por sua resistência quando se procedeu à busca do campo de que os soldados ficaram senhores, foram capturados uma velha e mais dois meninos; durante a ação, em um dos ranchos estava recostada na sua rede de cipó uma linda selvagem com uma criancinha ao peito: esta lhe foi arrancada do colo pelos soldados, fugindo a pobre mãe, ou sucumbindo, quem sabe, no destroço da luta.

No dia 11 de Abril; pela manhã, entrava na capital uma escolta de 14 praças comandadas pelo referido tenente e que conduziam a velha indígena, a criancinha de seis meses, mais ou menos, e os dois Bugres de cerca de seis anos de idade e se foram ao palácio a entregá-los ao Presidente.

A pequenina foi logo devolvida ao mesmo tenente que pediu para criá-la em sua casa, ficando outros no palácio.

No dia 12 foi o Dr. Henrique Schutel chamado por S. Ex. para tratar dos Bugres que se achavam atacados de febre, e tendo nessa ocasião o doutor pedido um dos pequenos para educá-lo consigo, foi-lhe concedido, reservando o Presidente para si o outro.

A 13 S. Ex. enviou à casa do doutor, afim de que também dela se encarregasse, a velha selvagem que ardia em febre; ao chegar, desmaiou em síncope, voltando a si com inalações de éter, fricções secas, etc.

Foi medicada convenientemente, diminuindo a febre, e apenas se ia sentindo melhor que como podia esforçava-se por mostrar-se agradecido aos cuidados que lhe prodigalizava o doutor e sua senhora, pelas 8 horas da noite estava melhor e enchia a seu modo de afagos e carinhos o pequeno Bugre que o doutor tinha em casa e que passava regularmente.

A essa hora, repentinamente se ouviram gritos partidos do lugar onde estava a velha, e logo se acudindo, ao chegar a gente, o pequeno desprendendo-se dos braços escapou-se dela e correu como espavorido a agarrar-se com a senhora do doutor: a expressão do rosto da velha, os gritos do menino e seu terror, fizeram nascer suspeitas de alguma coisa de horrível que se tivesse passado entre eles. O Bugre dormiu aquela noite separado da velha.

No dia 14 pela manhã cedo o doutor deixou entrar consigo no quarto da velha o pequeno, que para que ali o acompanhara com alguma hesitação, e cheio de espanto notou que aqueles dois indivíduos se olhavam agora com toda frieza como tornados inteiramente indiferentes um ao outro: – o que, junto a outros indícios observados, confirmou a suspeita de que a velha selvagem tentara na véspera matar o menino quando este se salvou fugindo.

Efeito terrível daquele estado de completa barbaria, em que vivem esses desgraçados, que se os faz procurar na morte remédio pronto à menor contrariedade que os assalta. E não vale pensar que levada pelo amor extremo à liberdade selvática de sua vida, quisesse isentar aquela criança da escravidão que ela antevia, porque aqueles sinais de gratidão que dera ao doutor e sua família pelos cuidados com que a trataram, os afagos que via despendidos com o menino, bem lhe haveriam mostrado que não a escravidão, mas a felicidade o aguardava: – era antes a ferocidade do animal indomável do que o rasgo de heroico desforço da liberdade.

Pelas 10 horas o crescimento da febre foi a mais, os sintomas se agravaram até que pelas 6 horas da tarde faleceu a velha indígena. O doutor preparou-lhe o enterro, e acompanhou-a ao cemitério público, no dia seguinte fazendo-a sepultar em lugar especial e designado.

Naquele mesmo dia (14) o Presidente da Província vendo que se agravava o estado de moléstia do Bugre com que ficara enviou-o para casa do Dr. Schutel, onde recebesse mais pronto socorros médicos.

O doutor mandou batizar ambos os pequenos indígenas e foram padrinhos, do último que lhe viera para casa, S. Ex. o Sr. Presidente que lhe deu o seu nome de – João Brusque, - e do outro, o mesmo doutor que o chamou – Djalma Schutel.

A 16 a febre que não abandonara Djalma apareceu com paroxismos de mais ou menos duração tornando-se rebelde aos diversos tratamentos empregados; tomou depois o tipo contínuo e rapidamente se foram manifestando os sintomas adinâmicos. Entristeceu profundamente o doente, e no dia 19 pelas horas da manhã faleceu o pobre Djalma.

No dia 26 pelas 3 horas da tarde, sucumbiu também o João, cuja moléstia seguira marcha igual a do outro resistindo porém ele mais por ser sua constituição superior e porque seu moral menos forte não era tão apreensível.

A velha selvagem mostrava ter de 48 a 50 anos de idade e conservava traços de ter sido quando moça uma linda mulher. Os lineamentos de seu rosto eram regulares; sua boca, posto não fosse pequena, era contudo bem talhada; seus olhos, pretos, grandes e expressivos; as sobrancelhas extensas, cheias, perfeitamente arcadas, acompanhando todo o bordo superior da órbita. Tinha ela o cabelo preto muito grosso, e o trazia crescido até cerca de um palmo e meio.

Era Djalma de corpo e figura esbelta e airosa, mais alto que o outro Bugre, e de movimentos desembaraçados e ar mais senhoril. As feições de seu rosto eram delicadas, cútis fina e pele mais clara que a de João; sua fronte alta e bem delineado o bordo de couro cabeludo; o cabelo era preto, liso e fino; os olhos negros e cheios de viveza e de muita expressão; o olhar penetrante e sagaz; tinha as mãos bem feitas, os dedos torneados e elegantemente afunilados. De suas maneiras de distinção, e destes caracteres físicos já como transparecia uma origem mais nobre e elevada pelo poder e mando conservado talvez de muitas gerações nessa família.

João tinha as feições grosseiras, a pele menos fina e mais trigueira e coberta de pelos; sua fronte era curta, os olhos pretos o cabelo grosso e a raiz de couro cabeludo não era bem delineada. Tinha os pés e as mãos curtas e os dedos sem aquela forma afunilada que tanto os embelezam. No seu todo dominava um certo acanhamento e modos de submissão que bem denotavam a classe servil a que pertencia: tanto é verdade que as condições sociais mais ou menos transmitidas nas gerações, amesquinham-nas ou as engrandecem fisicamente, como é fácil ver no seio da civilização ainda hoje apesar da extinção progressiva das classes.

Tanto a velha indígena como os dois pequenos Bugres tinham o lábio furado e nele traziam posto um pedacinho de madeira de sua natureza muito dura, cujo feitio é o que mostramos aí à margem, e o qual pau eles só tiravam quando lavavam a boca.

As faculdades intelectuais de Djalma eram muito mais desenvolvidas do que as de João; ele observava com visível interesse e procurava imitar, alcançando-o sempre, o que via fazer.

Djalma no seu trato, não dava a menor confiança a João, nem sequer mostrou algum contentamento ou interesse com a ida para casa do doutor, de seu companheiro de infortúnio; desprezava-o, enquanto que o pobre Bugre o procurava sempre e a ele se chegava apesar de ser empurrado e afastado: não consentia que se aproximasse dele João à noite quando se achavam deitados no colchão que era o mesmo para ambos.

João era menos sério que Djalma e parecia tributar-lhe respeito como se nisso tivesse sido criado.

Entretanto, nos primeiros dias poucas vezes riam, e nem se davam com os negros, crioulos ou mulatos; corriam sempre a ter com o doutor ou com seus filhos.

É impossível fazer ideia do asseio que estas duas crianças guardavam com seu corpo: era de ver, assim que acordavam pedir água (palavra, que como a de fogo aprenderam a pronunciar) e lavarem o rosto, a cabeça, pescoço, as mãos e braços, bochechando repetidamente e limpando os dentes: a facilidade e jeito com que esborrifavam a água, indicava longa prática desta usança.

Em todas as refeições repetiam antes e depois de comer a mesma operação de asseio da boca e dentes.

Desde logo se esforçaram e vieram a comer na mesa, sentando-se bem nas cadeiras: era sua alimentação especial a galinha assada, o milho (verde) cozido, o feijão, batatas, arroz e leite, etc.

Uma vez, por brincar, no fim do jantar, começaram os meninos do doutor a atirar bolinhas de pão uns nos outros: acharam os Bugres graça, riam-se a imperícia e logo tomaram parte, fazendo sobressair a certeza e segurança com que sempre atingiam ao alvo.

À noite não gostavam dormir a sós e fugiam do seu colchão trepando para a cama do doutor onde sutilmente se deitavam aos pés.

O Presidente da Província, Dr. Brusque, versado nas línguas indígenas, disse que a velha lhe contava ser ela a mãe da mulher do Cacique de quem era filho o Bugre maior, Djalma, assim como aquela criancinha arrancada dos braços de sua mãe nos matos.

As considerações que abundantes resultam da curta história que acabamos de esboçar em largos traços, são tantas e de tal ordem que não caberiam neste breve apontamento, e mais me faz abster delas a ciência de que vós, as faríeis apreciando devidamente e em todo seu alcance, estes fatos, da maneira porque nunca o poderia alcançar quem apenas dispõe de poucos conhecimentos e mesquinha inteligência, sobrando-lhe apenas a – boa vontade.

Dr. P. Schutel

* Pequeno rio do continente da Província de Santa Catarina correndo rumo de Leste e desaguando no oceano no fundo da baía de mesmo nome ao NO da ponta setentrional da Ilha de Santa Catarina.

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Tendo notado com satisfação a atenção que se presta na Exposição Nacional às toscas preparações que por interesse à Ciência fiz e conservei, resolvi mandar reimprimir a breve notícia, que precede a respeito dos Três Esqueletos de Indígenas, ilustrando-a com a litografia do tipo retrospectivo, assim como da do crânio de um inteligente e valente cacique, morto depois de renhido combate no Distrito de Camboriú, na Província de Santa Catarina.

Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1875.

Dr. Henrique Schutel