Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

O brigue flibusteiro, de Virgílio Várzea


 Edição de base:

Virgílio dos Reis Várzea, O brigue flibusteiro,

São Paulo: Saraiva, 1951.

I

Velas soltas e infladas pelo vento do sul, como as asas de estranho e gigantesco albatroz, o brigue flibusteiro voava, cortava as ondas em demanda das Antilhas. Já ao longe se avistavam vagamente as costas enevoadas das ilhas famosas, como leves manchas fugidias e enganosas de nuvens baixas boiando sobre o mar. O sol equatorial faiscava à superfície eriçada das águas, em largas malhas de ouro tremulantes. Além, contra as sombras que deviam ser o litoral de Tabago ou de Granada, pássaros marinhos voavam confusamente, em bandos, bicando aqui e ali as ondas na abundância alegre da pesca. O céu, todo límpido e despido de nuvens, de um azul imaculado, dir-se-ia uma ironia e perfídia aos navegantes nessa perigosa região de ciclones.

Era navio magnífico o brigue flibusteiro pela sua velocidade, seus aparelhos náuticos, seu bom governo, suas manobras de guerra. Tinha sido construído nas costas de Venezuela após o malogro da célebre expedição de Miguel o Basco aos sertões de Taparitos, à Colômbia e ao Equador. Na volta, depois de lutas constantes com os espanhóis e os selvagens, os expedicionários detiveram-se durante um ano em certos pontos litorais, onde levaram a efeito a construção de algumas embarcações miúdas e, entre estas, a do pequeno brigue que os Irmãos da Costa denominaram mais tarde o Falcão, pela violência, certeza e rapidez com que sabia fazer suas presas nesses combates navais que ficaram para sempre memoráveis nas Antilhas e em toda a América.

O Falcão, apenas lançado ao mar, assinalara-se pelo aprisionamento, no cabo meridional de São Domingos, de dois galeões espanhóis carregados de ouro que iam para Vigo. Daí por diante, numa sucessão de triunfos, tornava-se o navio mais querido dos flibusteiros que o empregavam agora em frequentes viagens de longo curso pelo Atlântico austral até ao Mar do Sul...

Mas as primeiras ilhotas e ilhas das Pequenas Antilhas mostravam-se já nitidamente à proa, fazendo relevos cônicos de verduras e rochas, cercados de um debrum de escumilha, na azulada planura marinha.

O Falcão mudara então de rumo aproando para leste, em direção aos montes altos da Margarida que surgiam ao gurupés, com o seu dorso denteado sob uma névoa de anil. A popa rasa em que ia desfizera-se logo e, todo em gáveas e a um largo, despejava as singraduras às milhas. À ré, a bombordo, de pé junto à gaiuta, um moço de trinta anos, belo e varonil, cabelos louros caindo em cachos sobre a gola, as faces carminadas pela saúde do mar, binoculizava demoradamente os pontos culminantes da ilha. Vestia gibão e calções de veludilho negro, com meias escarlates saindo de grossos coturnos. A cabeça, um gorro de altas plumas brancas dava um ar vitorioso à fisionomia e a todo o porte excepcionalmente robusto. Trazia à cinta uma dessas retas e finas espadas medievais que fazem no punho uma cruz, e numa das mãos o porta-voz com que ordenava as manobras.

Era Afonso Morgan, o comandante do Falcão. Seu pai um comerciante inglês, John Morgan (irmão do famoso chefe flibusteiro Henrique Morgan), abandonara New Castle, terra natal, para especular nas grandes explorações de minas na América Central.  Depois de rolar algum tempo entre o México e o Panamá, fixara-se definitivamente em Venezuela, na cidade de Gibraltar, à margem do lago de Maracaibo, onde enriquecera e casara com linda jovem do lugar, de cuja união procedia Afonso, que ele começara a educar com cuidado, quando sucumbiu em um naufrágio, nos escolhos das Bermudas, ao regressar de Inglaterra, aonde o tinham levado negócios. Sobrinho do aventureiro e valente almirante que era o terror do Mar dos Caraíbas, Afonso desde os vinte anos entrara a batalhar a seu lado, sendo incumbido de arriscadas expedições, desempenhadas de modo galhardo. Muitas dessas comissões marítimas ficaram assinaladas por grandes atos de valor. De uma vez, mesmo, o moço marinheiro, na sua vigilância incansável, livrara e resguardara a sede da Comunidade Flibusteira de uma surpresa altas horas da noite, dando a tempo rebate da aproximação de esquadra inimiga, que graças a isso fora convenientemente repelida para o largo. O velho Henrique Morgan, que não tinha filhos, desvanecia-se com as excepcionais aptidões e merecimentos do jovem commander, vendo perfeitamente reproduzida nesse sobrinho a sua mocidade agitada e fogosa, romanesca e dramática. Entretanto, na rígida justiça reinante no seio da singular Associação, o fato do parentesco com o heroico almirante era mais obstáculo que circunstância favorável à carreira do moço corsário.

O grand old boy, o velho demônio, como era mais conhecido o comandante do Falcão, mantinha em apertada disciplina os subalternos, que não obstante o adoravam dobrando-se como máquinas à mais tênue manifestação da sua vontade. Debaixo do seu mando, castigos tremendos caíam sobre os delinquentes às menores hesitações de faltas. Ninguém, como ele, levava tão longe o cumprimento do dever, o sangue frio, a segurança de golpe, a decisão pronta, a coragem quer nos temporais quer nos combates. Jamais admitia indisciplinas ou irregularidades. Tudo naquela embarcação lhe pertencia, objetos e homens, lealdade e heroísmos, firmeza e abnegações. E sobre esse estreito convés só tinham vontade e eram verdadeiramente livres, ele e as plumas brancas do gorro que o vento do mar agitava...

O Falcão achava-se agora a poucas amarras de Assunção, a capital da Margarida, entre os dois fortes de rocha viva da entrada. As colinas e montes da ilha apresentavam-se numa frescura verde e primaveril. O litoral basáltico, às vezes cortado a prumo sobre as águas, expunha aqui e ali pequenas faixas alvas de praia. E o mar, volumoso e infinito, arfando sonoramente a espaços, quase cobria a penedia, as fortalezas, os cabos, esfrolando em novelos monstruosos de prata.

O brigue aproou então para o passo estreito da entrada e, transpondo-o, seguiu em direção à rade  espelhada, embandeirado em arco e despejando a artilharia em salvas festivas. As fortificações responderam imediatamente, com os estandartes inglês e francês conjuntamente arvorados no alto, sobre as grossas muralhas; e a cidade embandeirou também, numa permuta de saudações. Logo após golpes de povo da capital flibusteira acudiram ao desembarque, para admirar, como sempre, o navio querido e lendário.

Em pouco, o Falcão fundeou. Uma lancha esguia e andarilha, muito boa de remos, partiu de bordo em direção à terra e Afonso saltou, com a elegância de um torero, da proa da embarcação para o cais.

A cidade estadeava-se irregularmente por sobre um terreno acidentado, levantada toda de velhas tábuas de barcos, o que lhe dava o ar lúgubre de uma improvisada aldeia de náufragos, não obstante a magnificência da paisagem. As casas, construídas ligeiramente, sem ordem, à feição das necessidades de momento, mais fortes para resistir aos ciclones, eram na maior parte alcatroadas ou pintadas a almagre, e revestiam por isso aspecto desagradável e fúnebre. Interiormente porém, exibiam apurado asseio e ordem.

Grupos de homens, todos armados e de pistolas e adagas, corpulentos e atléticos, o ar carregado facínora, os cabelos incultos e emaranhados coroados por grossos gorros de peles, e caindo sobre a nuca em longas madeixas espessas, faces queimadas pelo sol ― agitavam-se aqui e além, pela praia. Perpassavam entre eles, numa atitude curiosa e alegre, robustas mulheres morenas em trajes grossos de lãs: eram moças e matronas, algumas de perfil delicado, outras de grandes rostos selvagens, raptadas nas frequentes e temerosas excursões às praias continentais.

Quando Afonso, depois de dar ordens à lancha, partiu em direção à Casa do Governo, todos, abrindo alas e curvando-se, romperam em vivas estrepitosos:

― Hurra a D. Afonso Morgan! Hurra ao jovem rei dos Mares!

A Casa do Governo era a maior da cidade e dividia-se em dois vastos pavimentos, ornados internamente por anteparas e ornatos das câmaras dos galeões aprisionados e por fiorituras, quadros e obras de ouro e pratas arrebatados aos palácios e templos, nos saques e devastações tumultuosas e trágicas às cidades litorais de Cuba, do México, de Venezuela e do Panamá. Externamente, cobriam a larga frontaria acapelada verdugos, frisos, gregas e cordões entronchados, com as incrustações e douraduras dos grandes chapitéus de popa e proa das naus, tendo ao centro, no alto da cornija, imensa figura de proa, representando Isabel a Católica numa atitude de dominadora e solene, com o seu fino perfil de santa medieva, a sua coroa e o seu manto, o cetro erguido sobre os Mares...

Afonso entrou saudado triunfalmente pelo som estrídulo das buzinas marítimas dos seis homens da guarda.

Na sala principal, sob um grande dossel de bambinelas de púrpura franjadas de ouro apoiado aos ângulos por dois golfinhos de prata, as caudas em voluta abrindo em leque nos extremos contra a parede de tábuas onde se erguiam, em troféu, os estandartes poderosos de França e de Inglaterra — um homem rubro e atlético, todo encanecido, o rosto amplo e leonino, ladeado por longas suíças bastas caindo-lhe até ao peito, pousava serenamente sobre uma alta cadeira de couro negro lavorado, fixo à artística armação de ébano reluzente por grandes taxas douradas. Era o velho Henrique Morgan, o chefe supremo dos flibusteiros, o marujo e guerreiro nunca vencido que se constituíra o terror das esquadras de Espanha naquelas águas.

Afonso assomou à porta e, descoberto, pedindo vênia para entrar, encaminhou-se para o velho almirante saudando-o num gesto militar, uma das mãos erguida à altura da cabeça, a outra sobre os copos da espada. Ao aproximar-se do poderoso leão do Oceano, inclinou-se, beijou-lhe a mão:

— Chefe e Protetor, vossas ordens foram inteiramente cumpridas. O cruzeiro terminou. Ordenai...

E um relatório, muito exato, deslizou dos lábios do moço, ouvindo-o atentamente o velho marinheiro. E então nova expedição foi ordenada, dispostos em detalhes todos os elementos e instruções.

Em seguida, o gigante flibusteiro, fazendo ranger a cadeira num movimento pesado, estendeu a mão a Afonso e falou em inglês, na sua voz forte e grossa:

— Nada mais tenho a dizer.

Deixando a Casa do Governo o moço comandante retomou o caminho do cais, recolhendo-se ao Falcão, que já se achava abordado por várias lanchas de carga.

A guarnição do navio descera ao porão para dar começo ao desembarque do carregamento, composto, em quase totalidade, de pesados caixotes chapeados de ferro contendo ouro e prata amoedados e em pequenas barras. Eram despojos de uma presa opulenta, feita por Afonso na altura da Trindade. Tinha sido em uma manhã atlântica de mar chão e céu claro. Terminava o cruzeiro e metia já rumo das Antilhas quando o vigia de gávea avistou velas bolinando ao largo. Imediatamente o brigue virou-lhes no encalço, com a gente a postos, tudo preparado para o combate. Pela tarde reconheceram o navio — um galeão espanhol que vinha de Callao de Lima: e arriando as lanchas lançaram-se sobre ele, tomando-o logo, num desses ímpetos irresistíveis de bravura e audácia que caracterizavam os flibusteiros. E como não convinha perder tempo, passada para o brigue a guarnição prisioneira, desaparelhado à espada e machada o galeão, captado tudo — munições e carga, armamento e objetos náuticos — puseram-no ao fundo à bala, fazendo-se depois o Falcão para o Mar dos Caraíbas...

Fora a realização deste feito considerável que levara o velho Morgan a determinar desde logo a criação de um Entreposto ou Estação Flibusteira na América Meridional, com cruzeiros por todo o Atlântico e especialmente nas costas do Brasil e do Prata. Na conferência com o sobrinho tudo ficara assentado deliberando-se que o Falcão, acabada a descarga, se preparasse com presteza e, conduzindo o pessoal e material indispensáveis, largasse para a ilha da Trindade.

Por isso Afonso, mal voltara para bordo, começara de apressar a descarga, finda a qual tornou à Casa do Governo a receber ordens.

O chefe da Comunidade determinou que preparasse o navio, tomasse abundantes provisões de guerra e de boca, a gente que quisesse, os sobressalentes precisos e, depois de longas recomendações sobre a empresa projetada, acrescentou:

— Quem sabe não venham a ser necessárias duas ou três embarcações pequenas para auxiliar o Falcão? O empreendimento é difícil... O Atlântico-sul, nas costas meridionais do Brasil e do Prata, mantém-se inóspito no inverno... É preciso talvez querenar primeiro o Falcão, recorrer às costuras, refrescar...

Afonso deu um passo para o velho:

— Chefe e Protetor, o Falcão não carece de outros auxílios que não sejam a confiança do Governo da Comunidade e a proteção do Altíssimo...

O almirante esboçou um sorriso de orgulho que lhe deixou a descoberto, sob o bigode rapado, os belos dentes sãos, e, num rápido gesto que despedia o jovem comandante:

— Bem; será como entenderes.

Acabada a descarga, o brigue foi levado para um recanto do porto a querenar. Todo o aparelho começou a ser refrescado, arriando-se e recorrendo-se a mastreação, o poleame e o massame, substituídas as peças estragadas, desde as vergas dos sobres aos mastaréus de gávea. Com quinze dias terminavam os trabalhos que Afonso dirigiu pessoalmente.

Apenas o navio voltou ao ancoradouro, reembarcado o lastro, entrou a meter o material necessário para o levantamento da estação que se ia fundar na Trindade. Em pouco, o longo casco esguio, agora pintado de novo e bem armado para a vaga, flutuava ao largo em franquia.

O chefe Morgan ordenou que se procedesse à divisão do valor das presas que cabiam ao comandante e tripulantes do brigue, a quem foi dado um dia de desembarque.

Era o intendente da cidade quem costumava entregar a cada homem, por ordem do Comissariado de Mar, o respectivo quinhão, que se compunha em geral de escudos de ouro e prata apreendidos ou resultantes das grandes vendas ou cunhagem de barras desses metais, feitas por agentes, membros poderosos da Comunidade, nas primeiras praças comerciais de Inglaterra e França.

Formada a guarnição num dos armazéns do cais, começou a distribuição dos quinhões, que se realizava com a maior justiça e lealdade, sendo, por qualquer queixa procedente que surgisse, fuzilado o responsável. À voz do intendente fazendo a chamada cada um dizia — pronto! — e recebia o seu punhado de moedas, conforme a hierarquia e os serviços prestados. Se o nome chamado era o de algum flibusteiro falecido em naufrágio ou combate, como frequentemente sucedia, um dos companheiros respondia — morreu! — e o quinhão era posto de lado. Quando o marinheiro chamado apresentava mutilação, defeito ou perda física, adquiridos no serviço de bordo ou em refrega, tinha mais um certo número de moedas. Assim, o que trazia um dos olhos vazados ganhava mais cem escudos; o que perdera um braço, duzentos; e tudo na mesma proporção, de acordo com a importância do órgão lesado. As somas que cabiam aos mortos eram retidas às famílias e, se estas já não existiam, aos sacerdotes, nas paróquias natais, para missas e atos piedosos. Depois da partilha, era de uso conceder as companhas uma, duas ou três semanas de férias, para festas e folgares.

Mas os tripulantes do Falcão, nos exclusivos hábitos de bordo, inveterados pelos longos e frequentes cruzeiros, apenas gozaram dois ou três dias de descanso.

Pronto o navio, a partida foi marcada para o outro dia, pela madrugada. E enquanto as três grandes lanchas de bordo iam e vinham incessantemente no serviço da aguada, enchendo os vastos tanques de ferro e as pipas do convés — Afonso passeava no tombadilho, à ré, junto às gaiutas, meditando na viagem. Sentia-se grandemente feliz, num vivo orgulho íntimo daquele comando geral nas regiões austrais. A sua alta ambição de flibusteiro coroava-se de supremo prestígio. Era, enfim, um chefe! e tinha, dali por diante em suas mãos todo o futuro da Comunidade sobre o Atlântico e sobre o Pacífico. Tremessem agora os galeões de Espanha! Ele ia, doravante, espumar e varrer furiosamente as águas da América do Sul com a quilha veloz do seu brigue. E, naquele instante, na sua imaginação ardente de crioulo anglo-latino, passavam radiosamente os legendários cruzeiros, os gloriosos feitos marciais e os grandes nomes históricos da então universalmente temida e respeitada Companhia dos Irmãos da Costa.

Era Pedro Legrand apossando-se, sozinho e com desvairado denodo, de uma fragata espanhola de cinquenta e dois canhões e sessenta homens de equipagem! Era Nau l'Olonais, cercado em Cartagena e abandonado como morto entre os vencidos, fugindo, à noite, com alguns companheiros sobreviventes, numa pequena goleta e indo cruzar em frente a Los-Cayos, em Cuba, de onde passara à Havana, assaltando e tomando duas pequenas embarcações e um bergantim castelhano; apoderando-se semanas depois, com poucos homens, de Maracaíbo e Gibraltar na costa de Venezuela; empreendendo ações quase fantásticas e sobrenaturais; ou subjugando todo o litoral de Panamá e Honduras e capturando, por prodígio de remontada bravura, todas as naus que encontrava! Era Montbars, o exterminador, que se atirava a esquadras inteiras, por mais numerosas que fossem, abordando os navios no meio do torvelinho das balas, pisando intrepidamente o convés inimigo e afrontando oficiais e marinheiros com tal resolução e audácia que todos se quedavam como estupefatos e inertes diante dele, a ponto do satânico guerreiro gritar-lhes com lealdade de cavaleiro: — “Defendei-vos, para eu vos poder matar!...” Era seu tio, o velho e incomparável Morgan, que os flibusteiros denominavam o leão invencível, entrando uma noite em Porto Belo e tomando a grande praça de guerra, só com um punhado de homens, após formidável combate; Morgan, que daí por diante, com audácia e felicidade jamais excedidas, dominou toda a costa da América Central até Iucatan, batendo, numa memorável façanha naval que reboou na Inglaterra, oito naus poderosas sob o comando do almirante espanhol Dom Afonso del Campo, o que lhe valera, bem como os sucessos seguidos da tomada da Roncheria, Santa Catarina e outras, a aclamação unânime de chefe supremo da Comunidade. Eram ainda os formidáveis Grammont, Lussan, Harris e tantos mais...

Mas as últimas lanchas da aguada atracaram. Descia a noite, uma dessas noites límpidas das Antilhas, bordada de ouro no alto. Carregados e fechados os tanques, cobertas as escotilhas, as embarcações foram içadas e postas sobre os picadeiros, à meia-nau. E mal o dia alvorou, dadas as salvas regulamentares, o Falcão fez-se ao mar...

II

Em pleno Oceano, o brigue proava agora, à bolina, para o norte. A ilha Blanca vinha surgindo além, na planura mansa das águas, com as suas rochas cinzentas. E pela tarde as Ilhas de Sotavento começaram a desenhar-se a um bordo, altas e pitorescas, num renque verde para oeste, contra o recorte caprichoso da costa continental da América do Sul que se não avistava, entretanto, desde Orchilla a Curaçau.

Afonso, de pé, contra a borda, junto ao homem do leme, tinha os olhos perdidos ao longe, sobre o mar, para as bandas saudosas de Venezuela. E o seu rosto cheio, de um rosado retinto pelo sol do tombadilho, emoldurado por barba loura e sedosa descendo em ponta para o queixo, concentrava-se num vago ar cismador. Desde muito que uma preocupação exclusiva e constante lhe dominava a alma, flagelando-a com o incêndio violento de uma antiga paixão. Eram um anelo e saudade que jamais o deixavam seguindo-o inapartavelmente, por todos os mares, às mais longínquas latitudes e ferindo-o sempre, com maior intensidade, nas horas de dor ou de glória...

Mas ali se achava inteiramente livre e chefe absoluto daquela expedição. E em seu pensamento uma grande ideia, já muitas vezes acariciada, surgia imperiosamente, vencendo-o, dobrando-lhe a vontade, afastando-o por instante do dever com uma força irresistível: dar um golpe de mão sobre a costa, em Gibraltar, sua cidade natal, e arrebatar aquela que era a imagem querida do seu espírito, a tortura perpétua do seu coração. E refletia: — Certo o empreendimento não ia acorde com as instruções recebidas, mas tão rápido poderia ser realizado que passaria despercebido. Não ficaria o mínimo vestígio. Nenhuma notícia transpiraria. Seria como uma descida fulminante de falcão que vem das alturas e arrebata a presa subitamente... O projeto dominava-o de modo profundo, porque era a sua maior ambição, o seu amor, o seu orgulho, a sua alegria, a sua felicidade e não podia desistir dele, custasse-lhe embora a vida. Então, vencido irresistivelmente, embocou o porta-voz dando ordens para a proa e, voltando-se para o homem do leme:

— Carregar todo a bombordo, e rumo à Orchilla.

Pela madrugada Orchilla foi deixada a barlavento e o brigue fez proa a Oruba, na entrada do golfo de Maracaibo. À tardinha, sob os últimos rosados do crepúsculo caindo sobre o Mar dos Caraíbas, esfumaram-se, a boreste, na sua forma angular de capuz, as quatro ilhotas dos Monges. Já a ponta elevada do cabo Gallinas, que fecha o golfo à oeste, surgia ao gurupés, com os seus outeiros verdejantes rosados de buganvílias.

O Falcão virou então ao sudoeste e toda a noite correu à popa, sob o norte rijo, em demanda do estreito que liga o golfo ao lago. E como era preciso evitar o canal do ocidente, guardado pelas fortificações da entrada de Maracaibo, o brigue, com o seu pequeno calado, começou a bordejar, por entre os bancos de leste, rumando para o litoral oposto.

Amanhecia quando se avistaram, nas terras altas da Zulia ondulando numa tênue e longa mancha azulada, os píncaros culminantes dos Andes Orientais, atravessando em curva o norte de Venezuela desde Aipioro a Soledad. O sol subia pouco a pouco no azul, e toda a costa desse lado cobria-se duma imensa pulverização de ouro. Planuras extensas e cordões de cochilas faziam baixadas e relevos verdes por entre as faixas alvas das praias. Sobre as águas serenas, levemente estriadas de espuma em torno aos ilhéus e altas ilhas rendadas, cintilavam aqui e ali malhas de rubim tremulantes. E para o fundo afastado do lago, na direção de Gibraltar, como pequeninas velas imóveis, a casaria caiada das insulares aldeias indianas, construídas sobre estacas como as antigas palafitas do homem primitivo, lá nesse alvorecer recuado e remoto do período quaternário...

Pensativo sobre a murada, entre as enxárcias da ré, em meio do esplendor da manhã estival, Afonso sentia-se emocionado ao contemplar de novo, após dez anos de ausência, aquela terra querida onde nascera, e onde, outrora, a sua vida resplandecera e cantara. E em seu espírito, agora, toda a encantadora época da sua juventude surgia, numa larga e subjetiva evocação do passado. As suas reminiscências mais nítidas vinham de quando era colegial que percorria as ruas de Gibraltar, acompanhado por um velho criado espanhol sobraçando um pequeno cartapácio de verniz onde, de mistura com os livros, trazia já cópias manuscritas dos mais conhecidos rimances e xácaras. Seu pai vivia ainda e sua mãe vinha esperá-lo sempre, alegre e carinhosa, com as mãos cheias de doces e, frutas, ao alpendre da entrada onde o abraçava e beijava longamente, com uma viva luz de ternura nos olhos melancólicos, de grandes cílios bastos. Que de alegrias então no velho solar de São Martinho!... Mas, um dia, o pai saíra para uma viagem e não voltara mais... Meses depois, a mãe recebia uma carta e toda em pranto, coberta de luto, a cabeça envolvida em uma mantilha negra, abandonava o solar, recolhendo-se para sempre à casa do avô, o alcaide da cidade. Ele então fora posto como interno no convento de São Bento, junto aos Campos da Rainha. Três anos depois volvia à casa do alcaide, onde a mãe, sempre triste e lacrimosa, encerrada num quarto como em uma cela e constantemente agarrada a um livro de Horas, dia a dia definhava. Tinha ele nesse tempo quinze anos. E numa linda manhã de sol, em que acompanhava a mamãe às festas na igreja do Carmo, encontrara-se com a filha de Dom Luís de Lara, magistrado da cidade, nina adorável, compleição de lírio por quem logo se impressionara. Era na Semana Santa. E seis dias seguidos, ao lado de sua mãe, numa emoção indizível que lhe alvoroçava a alma, vira passar essa menina, fascinante de esplendor e de graça, sob a veste de brocado...

A princípio ela nem o notara e depois parecia até evitá-lo, baixando os lindos olhos negros quando o encontrava. Mas, no domingo do Ressurreição, ficara colocado casualmente a seu lado na capela das Dores, onde parara a orar, e, numa palpitação e num embevecimento, percebeu que ela o olhava também com certo interesse. Daí por diante encontravam-se, todos os domingos, na catedral onde Mercedes ia à missa com o pai, El Señor Dom Luís de Lara, velho e altivo fidalgo, olhando a todos com estranheza e certo ar desdenhoso. Fora, porém, numa festa anual nas Carmelitas Descalças, em companhia de sua avó, velha madrilena de alta linhagem, que pela primeira vez, furtiva e timidamente, ousara falar a Mercedes. Ela emudecera, subitamente enleada; mas logo após o envolvia num sorriso expressivo e na meiga irradiação dos seus olhos. Desde então, para a ver mais frequentemente, fazia demorados passeios ao lindo bairro de Alhambra, onde se achava o palacete de Dom Luís de Lara, voltando muito satisfeito só por ter surpreendido, uma ou outra vez, de longe, nalguma gelosia entreaberta, o busto divino da amada. Em certas ocasiões, disfarçado na sua longa capa, cruzava inquietamente, a desoras, sobre o molhe de Alhambra, em frente ao vasto edifício fechado. Nas noites de lua rondava em botes na rade, em serenatas à guitarra, mandando apaixonadas endechas à moça, que as ouvia da sua câmara, arrebatada e palpitante, por entre as rótulas cerradas dos largos balcões de mármore. Então pequenas cartas inflamadas começaram a ser trocadas clandestinamente, por intermédio de serviçais. Assim, seguro de que Mercedes o amava, só pensava ansiosamente em obter sua mão. Mas o desprezo que lhe votava e a todos os seus o velho fidalgo, dia a dia aumentava. Ante essa terrível barreira erguida entre sua pessoa e a amada, voltou-se todo para a devoção e, supersticioso, entrou a fazer votos numerosos e constantes às Santas milagrosas da cidade — Nossa Senhora dos Aflitos e a da Piedade na igreja da Anunciação, levando-lhes ramos de rosas e molhos de cravos raros. Mantinha secretamente, no quarto, pequena lâmpada acesa à Virgem da Glória: e na fé do seu coração apaixonado, decorrido um ano, enviara o avô, o alcaide, a pedir a mão de Mercedes. Mas Dom Luís de Lara, áspero e desprezativo, trovejara uma recusa e raramente deu de aparecer em público com a filha, trancado no solar... Afonso caiu longo tempo numa desolação, e como não pudesse ver Mercedes, nem falar-lhe ou trocar uma linha, pela vigilância invencível do pai — resolveu, sedento de vingança contra o velho magistrado; abandonar Gibraltar e unir-se aos flibusteiros nas ilhas do Mar de Caraíbas onde dominava o tio, jurando só tornar a fim de levar a adorada. Antes de partir conseguiu enviar por intermédio de velha parenta uma carta de despedida, na qual revelava que breve voltaria a buscá-la. A moça respondeu toda chorosa: “que voltasse, que o esperaria com ansiedade...” Meses depois, chegava ele à Margarida onde tivera o melhor acolhimento. Mas passara os primeiros anos em navios que cruzavam pelo Golfo do México e as Grandes Antilhas e só duas vezes tocara no continente: a primeira, na tomada de Porto Cabelo, sob as ordens do tio; e a segunda, num combate com duas naus espanholas, no cabo Gallinas. No entanto, daí mesmo conseguira enviar emissário a Gibraltar, com carta a Mercedes e, sempre que podia, dava uma chegada à costa de Venezuela, enviando e recebendo notícias. Havia seis meses contudo, desde que saíra para o Atlântico do Sul, que nada recebia de Gibraltar. Não obstante, acreditava profundamente na constância de Mercedes... E ali ia, enfim! e nessa mesma noite, se o permitisse o Altíssimo, a possuiria em seus braços, Senhora sua e Estrela guia do seu barco...

Teve um vago suspiro e dando uma ordem ao timoneiro afastou-se da amurada, a passos largos pelo tombadilho; desceu à câmara e encaminhando-se para o fundo, tomado ao centro por um grande retábulo lavorado de ramagens coloridas onde um alto nicho se abria com linda imagem da Senhora dos Navegantes, feita de ouro maciço — caiu de joelhos beijando três vezes a espada e entoando a Magnificat...

Entardecia. O sol rolava melancolicamente sobre os montes da Madalena, numa larga barra sulferina. O Falcão, com todo o pano fora, deitava mais de dez milhas. E as torres altas de Gibraltar começavam de surgir, além, sob uma gaze de anil.

III

Havia três horas que o Falcão corria de faróis apagados porque na altura do cabo Lancila algumas goletas espanholas cruzavam à vela para o norte e um navio de alto bordo, que parecia uma fragata, avançava à popa rasa sobre Gibraltar. Cerrara a noite lentamente, com o céu no alto todo pontilhado de estrelas.

Afonso, de volta ao tombadilho, esquadrinhava agora minuciosamente as águas ordenando ao homem do leme carregasse todo para terra, para os lados de Gualjara; e receando viesse o brigue a ser reconhecido pelas embarcações que vogavam a leste (pois a história e sinais do Falcão andavam de navio em navio, por toda a parte das Antilhas e do continente) virou imediatamente para a costa oriental. Evitava as embarcações inimigas a fim de poupar qualquer tiroteio ou combate que o retardasse e poder assim alcançar em pouco o ancoradouro, onde pretendia ocultar-se no meio da multidão dos navios mercantes. O plano era dar um golpe de mão à cidade, tão preciso e instantâneo que só pudesse ser sentido depois de executado, conforme faziam sempre os flibusteiros. Depois não se permitia nem mesmo podia, sem mentir ao juramento, prejudicar a Comunidade dando ou aceitando batalha num cruzeiro que não era das suas instruções nem do seu destino. Por isso tratava de puxar rijo para terra não deixando um momento à tolda, dirigindo o esguio e veleiro brigue por entre os baixios do lago com o conhecimento e a consumada perícia de velho corsário. E daí a horas, sobre a ponta-sul da cidade, a três milhas do forte de São Tiago, mandava carregar e ferrar pano atravessando o navio que fundeava à sombra das pequenas ilhas de Gualjara.

O vento continuava a soprar duro do norte estriando de espuma o dorso alto das vagas. De vez em quando, contra a costa desabrigada das ilhas e as rochas alagadas do forte, grossos listrões de ardentia fosforejavam na contínua arrebentação marulhosa. Ao longe, para o litoral oposto, um ou outro farolim de goleta fugia, traçando sobre as águas escuras um tremulo fio de nácar. E para o sul, no recôncavo longínquo das planícies da Zulia, a fixa e difusa iluminação, rasa com o mar e saudosa, da casaria de Gibraltar.

Apenas o Falcão aproara às amarras, Afonso mandou que safassem uma das grandes lanchas e a equipassem para um assalto à terra, designando para esse fim os melhores homens da guarnição. E chamando por João d'Urville, o primeiro piloto do brigue, francês do Poitou, — hercúleo e duma estatura de gigante, que o acompanhava desde a tomada de Porto Príncipe onde se distinguira por assomo singular de bravura, assaltando com seis homens, após a morte de oito companheiros, um bergantim espanhol que aprisionara, suplantando a campanha no meio de vivo fogo — expôs-lhe rapidamente como fazer o desembarque sobre o cais de Alhambra, a fim de assaltar o palacete de Dom Luís de Lara e raptar Mercedes. Em seguida, com aquela imperiosidade dos comandantes flibusteiros que não admitiam vacilações ou contraditas, ordenou-lhe que saltasse na lancha e procedesse a um rápido reconhecimento às ilhas e ao porto, volvendo imediatamente para bordo a comunicar o que visse. Arriada a lancha, João d'Urville fez saltar os doze homens escolhidos pelo capitão, todos bem equipados e bem armados e, recebidas as últimas ordens, largou...

Por muito tempo, de pé a gaiúta, Afonso quedou-se a olhar atentamente a direção do bote que vogava ligeiro como uma seta, numa esteira de ardentia. Depois, lançou os olhos para longe e pôs-se a fixar a iluminação de Gibraltar tremulando melancolicamente. E, ao lembrar-se de repente da noite em que pela primeira vez deixara aquela terra querida, sentia pesar-lhe sobre a alma uma vaga e inexprimível saudade.

Havia já dez anos. Fora por um maio muito lindo e suave, em que todo o lago jazia numa grande calma e nenhum vento áspero de tormenta perturbava, nos golfos, a placidez azulada do Mar das Antilhas. De norte a sul e de leste a oeste o belo litoral de Venezuela, rendilhado de encantadoras ilhas, oferecia o aspecto risonho e colorido de um vasto cenário iluminado de ópera marítima. Embarcara por um entardecer de domingo, à hora doce e plácida em que sobre as altas cumeadas do Merida pairavam as derradeiras barras de ouro luminosas do sol que morria. Na igreja do Carmo, cujas torres se erguiam gigantescamente para o alto dentre a casaria baixa, como duas pinceladas vivas de cal no velario cetinoso do céu cor de anil — havia um ciciar suavíssimo de vozes femininas entoando os hinos triunfais à Maria. Pela toalha imensa do lago, sereno e de um azul desbotado sob a luz vespertina, velas curvas e soltas, virginais e alvíssimas, passavam lentamente, num cortejo imaculado, como um bando de noivas estranhas, deslizando alegremente para alguma festa nupcial de lenda no recesso de grutas submersas... E além fundeada, esguia e negra na planura infinita, com os altos latinos palpitando à carícia da brisa, a goleta San Juan que, dentro em pouco, rumaria para a Margarida.

A bordo da pequena embarcação, ao pé da amurada de ré, a alma torturada por aquela amargura que o lançara de repente à desesperada resolução da partida, ele olhava incessantemente, os olhos rasos d’água, a rareada iluminação de Alhambra, onde se destacava vagamente a larga frontaria de estilo árabe-hispânico do palacete de Dom Luís de Lara. E o nome de Mercedes que se lhe gravara no espírito, ele o pronunciava, naquele instante supremo, como enclausurado medievo, num apelo de prece e de alucinação mística... Longo tempo permanecera no tombadilho, vergado às punhaladas da nostalgia, até que a lua cheia, lavorada e redonda como um escudo godo nas primeiras invasões da Península, apontou além, sobre a linha recortada das colinas de Truxilo[*]. Para lá dos negros cabeços do cabo Lancila, as águas bonançosas do lago cobriram-se logo de grandes malhas de níquel, que se esbatiam ao largo em radiações fugidias; para aquém, fechada pelos montes do Merida, a extensa planura de Gibraltar continuava ainda imersa numa aérea pulverização de nanquim. Pouco a pouco, porém, tênue barra de alvura distendeu-se e espraiou-se por sobre o bairro Madri, e daí a instante toda a cidade alvejava pelos seus templos e sua vasta casaria. Então mais se lhe adensou sobre a alma o véu da Melancolia. Tinha o espírito todo preso a Mercedes que, lá ao longe, se debatia também numa desolação infinita... A goleta suspendera pela meia-noite, quando terral fresco e fino entrou a soprar amplamente pelo lado das Cochilas. A essa hora espiritual e tristíssima a lua tocava já o zênite, cobrindo com seu zainfe de prata a terra adormecida. O lago de Maracaibo, onde o terral levantava leves frisos de Malines, parecia, à claridade do alto, todo feito de espelhim. Afonso, ainda debruçado à amurada de ré, olhava a terra que fugia, enviando mentalmente à amada o último adeus. E a goleta corria, com os brancos latinos caçados, num alvoroço de gaivota que ao primeiro clarão da alvorada deixa o pouso da costa e abre voo, alegremente, em demanda do mar livre...

Mas um cantar de toleteiras avançando de terra chegou-lhe aos ouvidos e, de súbito, como um bando de pombas bravas fugindo a um choque estranho na floresta, suas recordações dispersaram e a poderosa preocupação das coisas presentes dominou-o, chamando a realidade. Então, por todo o convés do navio grossas vozes ergueram-se, e homens vigorosos começaram a agitar-se, destacando-se às vezes, fantasticamente, à meia luz velada da grande lâmpada de ouro que ardia na câmara diante da Senhora dos Navegantes e cuja faixa amarelada, passando pela porta entreaberta, ia banhar à meia-nau, tolda e escotilhas.

De repente, um vulto atlético, saindo da escuridão da proa, encaminhou-se para o tombadilho, a bombordo, onde se achava Afonso, que deixara a gaiuta para examinar melhor as águas em torno. Era o segundo-piloto do brigue, o velho Guilherme Reyd, celebre entre os Irmãos da Costa pelas suas raras aptidões náuticas e seus músculos de leão que, apesar dos sessenta anos, o faziam bater-se ainda vitoriosamente, a pulso, com os mais jovens e possantes da guarnição. Este colosso era quem assumia o comando do Falcão, quando o chefe e o imediato tinham de dirigir algum assalto a navios inimigos ou a fortificações.

Aproximando-se do comandante, Reyd comunicou-lhe que a lancha estava de volta, pois se ouviam já contínuas remadas de embarcação pequena. Afonso desceu com ele para o portaló, onde descobriu, à distância, o casco esguio da lancha avançando por entre fosforejantes olhões de ardentia.

Em pouco a embarcação atracou e João d'Urville subiu apressado ao convés. Afonso perguntou-lhe se o desembarque podia efetuar-se com segurança. Em seguida, pediu-lhe informações sobre os fortes da terra firme e das ilhas, e sobre a posição e movimento da esquadra espanhola e das goletas-vigias.

João d'Urville narrou-lhe o reconhecimento que fizera. Logo ao partir de bordo costeara cautelosamente as Gualjaras, proando depois para as rochas do cabo Lancila. Cruzara aí por instantes, espreitando a sombra das muralhas: o forte de São Tiago jazia em silêncio, e nem se ouviam as sentinelas. Passara às outras fortalezas — a Carlos V, São Brás, e Pelágio. Rondara a baía durante algum tempo por entre os bergantins e as naus e cortara junto aos fortins litorais. Depois percorrera o cais de Alhambra, já deserto e silente, onde o solar de Dom Luís de Lara dormia...

Assim informado, Afonso mandou preparar para o assalto que se efetuaria sob o seu próprio mando; ordenou-lhe avisasse o segundo-piloto que mantivesse a gente a postos e vigilante ao primeiro alarme; e correu a armar-se. Entrou num dos camarins que ocupava no salão, mudou rapidamente as vestes e, após haver metido à cinta as pistolas e adagas, parou a contemplar uma pequena tela emoldurada de ouro que representava sua mãe, aos doze anos, com o lindo rosto oval e os negros olhos pestanudos, envolta num longo véu de virgem e cetinosas roupagens brancas, como para uma primeira comunhão. Depois, foi ajoelhar-se diante da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes: rezou, persignou-se, beijou três vezes a espada... E subiu para o tombadilho, ao momento mesmo em que à proa, sob o castelo abaulado, estalavam em coro as orações e cânticos que os flibusteiros costumavam entoar antes da ação. Os marinheiros oravam, genuflexos e curvados ante um grande Crucificado de prata, colocado numa espécie de oratório por entrevante do rancho e que se alumiava todas as noites com um farolete vermelho. Parou um momento junto ao mastro grande tirando o gorro de plumas, à espera que as rezas findassem. Seu espírito porém continuava voltado para Gibraltar, para Mercedes, a noiva adorada. E pensava já na hora em que a tomaria nos braços e a apertaria contra o peito, osculando-a numa palpitação e num devotamento.

As orações e cânticos findaram, os tripulantes recrutados para o desembarque correram para a lancha. Os dois pilotos aproximaram-se de Afonso comunicando que tudo estava pronto. E o capitão flibusteiro, muito ereto e poderoso nas suas armas, seguido de João d'Urville que o acompanhava no assalto, desceu destramente a escada saltando para a popa do bote, que largou imediatamente, a remadas de voga picada.

Ao meio da baía, como se ouvisse o marulho contínuo do singrar de pequenas embarcações cruzando por entre os grandes cascos dos navios de alto bordo, Afonso, na suposição de que fossem os escaleres de ronda da esquadra, para fugir a algum encontro, ordenou ao patrão contornasse por fora o ancoradouro e se fizesse ao largo sempre que avistassem qualquer bote nas proximidades. O velho marinheiro aproou logo para leste e, meia hora depois, a guarnição arvorava e levava remos a seis braças do cais de Alhambra, onde o solar de Dom Luís de Lara permanecia adormecido.

O vasto molhe de pedra achava-se àquela hora totalmente deserto. À direita, a larga rua de São Marcos estendia-se para o norte, mal alumiada pelos bruxuleantes lampiões de azeite, suspensos de triângulos de ferro, à esquina dos quarteirões. À esquerda, eram os altos gradis das vivendas fidalgas, perdendo-se em maciços negros de verdura, de onde se erguiam para o alto os caules finos das palmeiras, coroados pelos penachos de folhas que o vento desgrenhava tirando-lhes farfalhos gementes, e que mal se distinguiam à vista contra o azul cheio de estrelas. De um e outro lado do edifício apalaçado de Dom Luís de Lara, viam-se, ermas e desoladas sob a iluminação mortuária, as ruas de Santo Esteban e São Fernando partindo para o interior até à praça Manzanares. À distância, na linha do cais e para o fundo, a casaria da cidade debruando a imensa planície maracaibana...

De pé à alta popa da lancha, Afonso, enquanto a atracação se fazia, esquadrinhava o cais. Não havia um rumor, além do vago cicio das ondas. O bairro de Alhambra dir-se-ia em completo abandono, não se via viva alma.

Então, o capitão flibusteiro, saltou de um ímpeto para a proa da lancha e, galgando a escadaria do molhe, gritou:

— Ao solar!

A chusma, como se a impelisse de chofre uma mola de aço, atirou-se após ele com João d'Urville à frente. E instantaneamente, num rumor de raio, a porta principal do palácio de Dom Luís foi a dentro, sob os golpes das machadinhas de abordagem.

Afonso, seguido por todos, atirou-se pela escadaria que levava ao sobrado, em demanda dos aposentos de Mercedes. E assim, arrombando e destruindo tudo que lhes obstava a passagem, comandante e marinheiros, foram penetrando num tropel.

A rapidez do assalto tinha feito com que nem um só dos serviçais acudisse. Tremulo de terror corria todos os recantos do vasto edifício apagado, lançando em desmantelada fuga para o asilo das densas e protetoras ramagens do parque a numerosa criadagem. E só o velho fidalgo, animado por atavismo de alta heroicidade, correra mão às armas atirara-se para os assaltantes com extraordinário valor.

Foi justamente ao momento em que Afonso, sempre seguido dos seus, surgia dos aposentos de Mercedes trazendo-a desmaiada nos braços, que Dom Luís de Lara apareceu empunhando a espada. Ao deparar tal cena, à luz branda da veilleuse ardendo na câmara, furioso e como louco, descarregou um golpe contra a chusma invasora, mas caiu para logo esmagado. E certamente teria sido estraçalhado ali mesmo pelos flibusteiros, se Afonso não interviesse:

— “Não o matem!”

E assim, como morto, o velho magistrado castelhano ficou estendido no sobrado, enquanto Afonso e os marinheiros deixavam vitoriosamente o solar esgueirando-se em direção do cais deserto sob o céu estrelado...

IV

Mercedes só tornou a si a bordo. A princípio surpreendida de se ver ali, dentro daquele camarim de navio, para onde não sabia bem como fora transportada, julgava-se vagamente presa de uma alucinação. Mas quando verificou a realidade iniludível da situação, desatou a chorar perdidamente, na imensa dor de uma existência abalada por um grande choque, transmudada pela violência. E nas intermitências das suas lágrimas, embora ainda meio tonta, como que procurava restabelecer mentalmente tudo que se passara.

As ideias acudiam-lhe vagarosas, fragmentadas, sem nitidez. Lembrava-se de ter visto Afonso aparecer-lhe junto ao leito alumiado pelo clarão da veilleuse. O noivo estava em armas como um guerreiro e seguiam-no homens estranhos, de aspecto aterrador e em armas como ele. Era já muito tarde. Tinha acordado sobressaltada, porque ele tumultuosamente agarrava-a, tomava-a nos braços: “Vamos, querida... nada receies... o dia da nossa felicidade é chegado...” E a essas palavras, assombrada de tudo o que via e ouvia, numa profunda emoção, perdera os sentidos... Só agora voltava à realidade e sentia-se como entre desventurosa e feliz... Sabia que tinha Afonso a seu lado, pertencendo-lhe, mas seu pai, que a idolatrava, lá ficara no solar sem ninguém...

Ergueu-se no estreito beliche, tomada de uma grande aflição que a fez recair para logo sobre os travesseiros, a chorar convulsamente.

Nessa ocasião Afonso entrou no camarim. Vinha, de cima, do tombadilho, onde estivera absorvido todo o tempo com as manobras da partida. Mal chegara de terra e depusera Mercedes na cabine atirara-se à faina de levantar ferros o mais depressa possível, receando a esquadra espanhola descobrisse de repente o brigue. E só àquela hora, quando o Falcão, de pano largo, aproava para o estreito de Maracaibo em demanda do Mar das Antilhas, corria para a amada, na primeira grande expansão do seu amor tão longamente oprimido. Ao vê-lo entrar, Mercedes enlaçou-o ainda em pranto. Sossegou mais sob as carícias e promessas amorosas, entre as quais a de deixar em breve aquela vida e voltar a Gibraltar a fazer as pazes com Dom Luís. Seus belos olhos negros, reluzindo sob um clarão de melancolia, fixavam profundamente Afonso que, arrebatado e estreitando-a contra o peito, entrou a cobri-la de beijos...

A esses carinhos Mercedes desatou de novo a chorar, pronunciando de vez em quando o nome do pai e vagas palavras incoerentes, que pareciam como uma acusação. Afonso suspendeu-se e, muito de manso, na intensa vibração do imenso afeto:

— Querida! espero que me perdoarás toda esta loucura... Lembra-te de quantos desesperos e sofrimentos se acumularam durante dez anos. Por teu afeto vivo entre os flibusteiros, impiedoso, trucidando muitas vezes os míseros vencidos. Desde muito que ante mim não existe piedade, e só a minha grande paixão por ti far-me-ia poupar o causador de tanta aflição. Sou teu, teu para sempre!

Mercedes continuava a chorar em silêncio. As palavras de Afonso tão verdadeiras enchiam-na de funda tristeza. Via que a realização do seu amor fora comprada pelo crime. Seu pai, se já àquela hora não estivesse morto, sucumbiria em breve, cobrindo-a de maldições... Era uma desgraça, uma infinita desgraça!...

Após longas horas de apatia e de pranto, vendo Afonso sempre a seu lado, numa imensa dedicação, enlaçou-o outra vez com ardor:

— Tudo isto é horrível! Mas já agora inútil é discutir fatos irreparáveis. Sou tua...

Ele volveu então a beijá-la sofregamente, os olhos, o pescoço, a boca...

O dia ia alto quando o jovem comandante deixou o camarote, onde Mercedes adormecera profundamente. Subiu à pressa o tombadilho e dirigiu-se para o lado do leme, onde João d'Urville, que estava de quarto, começava a horizontar o oitante para a observação.

Após a continência do piloto e do homem do governo, foi até ao largo espelho de popa e aí se quedou, um momento, a olhar as terras verdes da Zulia afastando-se saudosamente além. Depois, voltando-se para bombordo, pôs-se a mirar detidamente o relevo da costa a oeste contra o qual um casco alto de polaca, coroado de gáveas brancas, corria para Gibraltar. Em seguida ergueu a cabeça examinando o céu de relance: o sol, no zênite, jorrava luz de ouro quente. Baixando os olhos, sondou todo o mar faiscando ao largo em vastas placas de cobre novo. E encaminhando-se para a gaiuta, onde o piloto vinha de colocar o oitante e rabiscava numa lousa, os primeiros algarismos do cálculo:

— A que distância do estreito?

— Cinquenta milhas.

Afonso deu alguns passos até à escada do salto, arqueou a mão sobre a testa e lançou o olhar para a proa, sob a amura do traquete, fixando o horizonte ao longe como para determinar mais ou menos a posição do navio e o tempo que levaria para entrar no golfo e depois no Mar das Antilhas. Minutos decorridos, voltando-se para d'Urville, que continuava no cálculo de latitude e longitude, exclamou alegremente:

— Bem! Se o vento refrescar e as águas nos ajudarem, transporemos o estreito pela madrugada. A singradura é boa, o Falcão bolina em cheio... Depois de amanhã, com certeza, sairemos o golfo, marcando Oruba por sotavento. E dois graus ao mar, é puxar todo para leste e ir buscar, na altura da Galante, o cordão de norte de março. A monção é excelente. Até abril a Trindade há de surgir-nos à proa...

Falou ainda com o piloto dando-lhe ordens sobre a navegação e, deixando o tombadilho, enfiou-se na câmara a solfejar a meia voz a xácara da Bella-Infanta, que ele tantas vezes ouvira, em menino, nas noites de lua, aos catraieiros de Gibraltar:

“Estaba la linda Infanta

A la sombra de una oliva,

Peine de oro en las sus manos,

Los sus cabellos ben cria,

Alzó sus ojos al cielo

En contra de el sol salia:

Vió venir un fuste armado

Por Guadalquivir arriba:

Dentro venía Alfonso Ramos,

Almirante de Castilla:

“Bien vengáis, Alfonso Ramos,

Buena sea tua venda...”

V

Doze dias depois o Falcão deixava pela popa as Pequenas Antilhas, navegando para o sul a todo o pano, sob o nordeste duro.

O grande rosário de pequenas ilhas graciosas, de uma paisagem verdejante e florida, que desce em curva caprichosa desde Porto Rico até à península de Paria e segue ainda pitorescamente, como um largo seio de cabo, ao longo da costa de Venezuela, da Margarida até Curaçau, à entrada de Maracaíbo, e abraça assim todo o Mar dos Caraíbas no seu gigantesco cordão de esmeraldas — esbatia-se à distância, sobre a planura azulada do mar em bonança, pelas montanhas meridionais da Granada.

Era ao entardecer. O sol descia lentamente por detrás das Granadilas, que flutuavam a este à maneira de uma multidão de cônicas boias escuras, destacando numa barra sulferina. Mais além, esmaiavam pouco a pouco, como vagas manchas de esfuminho, os cerros da Martinica. E para os lados de bombordo, onde a luz era mais viva e profusa, céu e mar se confundiam numa iluminação prodigiosa e fantástica lembrando um cenário de ópera mágica em quadros paradisíacos. Aí, na linha rasa do horizonte, as ondas dir-se-iam cobertas, em milhas e milhas, de uma rede de rubins. E como centro dessa imensa sanguínea e incandescente disco solar, já oculto pelas Granadilas, mas lançando espaço acima, através da transparência das nuvens, dos astros começava de fulgir no alto firmamento. Em torno ao casco do brigue o oceano ganhava cor azul-ferrete, listrado o dorso das ondas de rendas brancas de espuma.

Para os lados do ocaso, onde já haviam afundado os montes das Granadilas, Vésper, a estrela da tarde, traçava saudosamente por sobre o mar das Antilhas tremulo rastilho de ouro... grandes faixas de ouro flamante semelhando os braços de estranho moinho...

Num recanto da borda, junto aos entalhes de ramagens e os grossos frisos do alto remate acastelado da popa, fora da vista de todos, docemente enlaçados, Afonso e Mercedes contemplavam aquele poente admirável que coroava de uma apoteose de luz todo o vasto Mar das Antilhas.

Era essa a primeira vez que a moça vinha ao tombadilho, porque as tristezas daquela súbita mudança de vida e os aborrecimentos do enjoo tinham-na prostrado, no beliche, por dias e dias. E só nessa tarde, já mais resignada e afeita aos balanços de bordo, resolvera deixar o camarim. Estava agora mais pálida. Sua pele de um moreno claro, macia como cetim e rosada dantes, esmaiara docemente para uma tonalidade que dava maior espiritualidade às linhas. Os grandes olhos negros, sem a ingenuidade e candidez de outrora, fascinavam pela sua irradiação cariciosa e ardente. A boca fresca e carminada como a de uma criança, sorria limpidamente mostrando os belos dentes miudinhos e alvos. E os cabelos longos e abundantes, ondulados e negros, que lhe caíam soltos pelas costas como um estranho manto de fios de seda, davam particular encanto à pequenina cabeça bem feita. Envolto graciosamente num roupão alvacento, seu talhe esbelto e cheio, de remontada estirpe fidalga, lembrava linda princesa medieva de velha dinastia aragonesa.

Numa adoração e num enlevo, Afonso não cessava de acariciá-la mostrando-lhe com ternura todas as delicadas e infinitas matizes do céu e do mar, ao maravilhoso esplendor do poente. E, sobre o estreito banco de bordo, cada vez a estreitava mais contra o peito, na felicidade e expansão do profundo amor dos marinheiros...

Quando ambos deixaram o recanto acastelado da popa, descia a noite lentamente e a rede fulva dos astros começava de fugir no alto firmamento. Em torno ao casco do brigue o oceano ganhava cor azul-ferrete, listrado o dorso das ondas de rendas brancas de espuma. Para os lados do ocaso, onde já haviam afundado os montes das Granadilas, Vésper, a estrela da tarde, traçava saudosamente por sobre o mar das Antilhas tremulo rastilho de ouro...

VI

Fazia já quinze dias que o Falcão deixara as Antilhas cortando as ondas do Atlântico numa marcha magnífica. Velejando à popa rasa, sem largar ou ferrar pano graças à corda seguida da nortada dura, achava-se agora a seiscentas milhas da costa do Brasil, na altura do Espírito Santo. A enorme rapidez com que montara esta latitude embora com vento sempre favorável, surpreendera o próprio comandante e a companha qual um verdadeiro milagre de singradura. Afonso, que dirigia o brigue havia sete anos, jamais experimentara coisa semelhante, mesmo nas melhores monções de vento fresco e mar chão. Por isso, tão severo e carrancudo para os subordinados, ao subir para o tombadilho naquela manhã de céu azul e sol vivo, sentara-se sobre a gaiuta e pusera-se a conversar com o piloto de quarto. Pelos seus cálculos a Trindade estava a surgir à proa, e não passaria daquele dia. Na antevéspera tinha dito a Guilherme Reyd: “Depois de amanhã, pela tarde, uma ilha há de aparecer-nos ao pica-peixe...”

O brigue entrava agora numa zona de águas que não deixava dúvida, pois o azul intenso das grandes profundidades parecia desmaiar pouco a pouco, no dobrar da vaga, para um verde leve e límpido, como o das proximidades de terra. Dir-se-ia mesmo distinguir-se já vagamente, à distância, como uma tênue mancha de cerros ou penedias escuras através o enovelamento de nuvens claras que boiavam no horizonte, ao sul. E tais eram a proficiência náutica e o valor do prognóstico do chefe flibusteiro, que ao meio-dia, logo após a observação, Reyd, que vinha de entregar o quarto a d'Urville e se demorara no tombadilho a examinar o acúmulo de nuvens à proa, gritou:

— Olha! Parece que entre aquelas névoas há uma névoa escura. Aquilo deve ser a ilha de Trindade. É ela certamente. Aposto em como antes da noite vê-la-emos a menos de três milhas...

João d'Urville, de pé por entre vante da gaiuta, sorriu:

— Qual o quê! Aquele casco não era decerto nenhum golfinho! Que havia terra próxima era claro, mas não era também assim ao gurupés. Até lá — não lhe desse cuidado o tempo — muita vaga tinha ainda de passar pela quilha...

E encaminhou-se mais para ré a deitar a barquinha.

Afonso, ouvindo junto às enxárcias a controvérsia dos pilotos, gritou para um dos gajeiros que subisse lá acima aos galopes, e tomou para a câmara entrando no camarim de boreste, para escriturar o Diário Náutico e pôr o ponto na carta com a observação do dia.

Este camarote e o de bombordo eram os dois compartimentos principais da pequena câmara do Falcão, e tinham sido preparados com certo luxo e conforto por Miguel o Basco que destinara para si o navio quando começara a construí-lo. Contrastavam vivamente não só com aqueles onde se acomodavam os demais oficiais de bordo, como com o próprio salão que só tinha de verdadeiramente belo e artístico o grande retábulo ao fundo, todo em ramagens e douraduras onde se abria o suntuoso nicho da Senhora dos Navegantes e ao pé do qual pendia das traves do teto uma lâmpada de ouro lavorado que era uma maravilha da ourivesaria espanhola e que fora arrebatada num dos assaltos flibusteiros à catedral de Barcelona, na Capitania Geral de Caracas. Afora isso, o salão compunha-se de anteparas simples, envernizadas mas sem arabescos ou ornatos e sem frisos de ouro nas almofadas e cornijas. Não tinha alcatifas nem feddles balouçantes ou fixos. Miguel o Basco só caprichara na construção e ornamentação do retábulo e dos camarins, nestes sobretudo, pois teria de ocupá-los se viesse a comandar o navio. E assim fora tão somente aí que o afamado corsário e fidalgo biscainho dera largas à sua fantasia estética. Mas nada disso chegara a gozar, porque ao aparelhar-se o casco tivera de abandoná-lo por ordem superior da Comunidade, a fim de comandar com Sharp, Lussan, Van Horn e Sawkins uma grande expedição terrestre ao Panamá, onde veio a perecer batendo-se no formidável ataque à Puebla Nova. Foi justamente quando Basco partiu para essa comissão que Afonso, proclamado captam pelas façanhas praticadas em Porto Príncipe, Nicarágua e Campeche, assumira o comando do brigue, passando a ocupar os dois camarins — o de bombordo com instrumentos de guerra e objetos náuticos, ao mesmo tempo que o reservava a misteres de navegação; o outro reduzindo-o a apartamento seu.

Era ao camarim de bombordo que, todos os dias após a observação, se recolhia ele a trabalhar com os cálculos e as cartas hidrográficas e a escrever, conjuntamente com as ocorrências das singraduras, as da expedição.

Apenas se sentara à pequena escrivaninha, entrou a desdobrar, um por um, os grandes mapas de capa azul escuro que enchiam, em rolos numerosos, os espaços abertos entre as traves do teto correndo de popa à proa; e, depois de escolher entre muitos o que lhe convinha, pôs de parte os outros e estendeu sobre a mesa o que representava o Atlântico e costas do Brasil. Em seguida, começou a medir a compasso as distâncias marcadas em milhas e graus, e a traçar o rumo da viagem numa linha quebrada e de pontos que descia desde o alto onde estavam as Antilhas até às proximidades da Trindade. Após o que, estendendo o braço para uma pequena cantoneira-estante que ficava a um dos ângulos, retirou dela um grosso in-fólio: era o Diário Náutico. Abrindo-o numa folha em branco arriou-o sobre o mapa e, pegando da pena, ia lançar o cálculo da latitude e longitude do dia, quando Mercedes entrou, debruçando-se, apoiada ao seu ombro, sobre os papéis que rojavam na mesa. Enlaçando-a pela cinta, começava a beijá-la, quando um grito ecoou no tombadilho:

— A Trindade!

Os dois deixaram o camarote em direção à tolda.

No alto do castelo de proa toda a tripulação aglomerava-se, num alarido de satisfação, enquanto à ré os dois pilotos, o contramestre e o homem do leme, olhavam alegremente o horizonte ao sul onde enorme amontoado de rochas se desenhava, num relevo escuro, sobre o céu pálido da tarde.

Afonso e Mercedes pararam junto à gaiuta a contemplar também a Trindade que parecia caminhar para o brigue, erguendo-se pouco a pouco das águas pelas agulhas dos seus montes centrais, pelos blocos pontiagudos dos seus altos menhirs e pelas arcarias plutônicas das suas furnas onde o mar espocava atroadoramente.

VII

No outro dia, pela madrugada, o Falcão atravessava ferrando-se pano junto à ponta de oeste, a poucas amarras da costa que se erguia aí numa imensa muralha de penedias escarpadas, correndo em vasta linha recortada para o norte, para o sul. A essa hora o vento que soprara toda a noite de nordeste escasseava no embate dos cerros altos da ilha, e uma calmaria crescente continha desse lado as vagas que iam morrer em cordões lisos na arrebentação marulhosa das anfractuosidades alagadas. Do convés e bordas, ao sol que surgia espargindo luz de ouro abundante por detrás das cumeadas de leste, avistava-se, aqui e além pela costa, uma infinda profusão de rochedos sobrepostos que subiam caoticamente em pontas e arestas, ásperas e nuas, até ao centro da ilha. Escarcéus esparsos e largos, ainda assim reboantes e dum tumultuar de trovões ao longe, envolviam tudo em ampolados veões de espuma, rasgando-se à superfície da água numa efervescência alvíssima. A oriente listrões de lacre fulgiam na avançada triunfal para o alto dos primeiros clarões gloriosos do nascente. À popa do brigue, na direção nordeste onde a costa expirava na amplidão do quadrante, recortava-se no azul iluminado do céu a grande rocha piramidal do Monumento, meio inclinada sobre as ondas e toda coroada de uma gigantesca carapuça rendilhada de verdura densa. O horizonte a oeste clareava pouco a pouco na sua faixa nevoenta vincando-se, deserto e saudoso, contra o pálido lilás do firmamento. A sueste, à proa, desdobrava-se ainda o litoral, monótono e negro, estranhamente socalcado de penedias basálticas até ao Pão de Açúcar, o alto monólito empinado que fecha essa ponta da Trindade onde arco colossal se eleva, aberto na rocha viva como imenso pórtico de igreja, sob o qual, como antigo guerreiro romano em apoteose, o mar passa braviamente, vencedor irresistível trovejando cóleras ou sorrisos em catadupante espumarada, na tempestade ou na bonança. Pássaros marinhos, em multidão prodigiosa e formando nuvens, surgiam de toda parte voando direito ao brigue e aviventando o ar matinal com as suas asas palpitantes: os primeiros que tocavam os mastaréus, a cordoalha e as vergas, soltavam intensos gritos de surpresa álacre, vindo cair ofegantes sobre o convés e as bordas, por entre as velas ferradas.

Arriados os ferros e as longas amarras na leve curva do costão, Afonso ordenou fosse lançada ao mar uma das lanchas e que largasse para terra, a fazer aguada na primeira calma da manhã. A viagem do Falcão era para a outra costa onde, no cruzeiro precedente, estacionara várias vezes, operando a oficialidade e a companha algumas explorações às pequenas praias e colinas. Aquela ancoragem na Ponta de Oeste fora exclusivamente motivada pela escassez de água nos tanques. Na véspera à noite o contramestre, verificando que o tanque de bombordo se esgotara de todo e que o outro já ia abaixo de meio, correra a participar ao comandante que resolvera logo renovar a aguada, no receio de que, como soía suceder naquelas paragens quase inabordáveis, se levantasse de repente algum vento rijo e a sede começasse de flagelar a guarnição antes de montarem o litoral de leste, mais acessível e mais provido de nascentes.

Dentro em pouco a lancha largou volvendo duas horas depois com toda a aguada pronta, e, imediatamente, virado o molinete e amarras a pique, o brigue, branquejando em gáveas e joanetes, aproou para a Ponta do Sul a fim de alcançar a contracosta. Mas, nesse instante, o vento saltou ao gurupés e o esguio casco veleiro teve de lançar-se às bordadas para vencer rumo avante...

À tarde, apesar do vento duro, o extremo meridional da ilha era montado galhardamente pelo Falcão, que entrou a vogar à popa, com a costa à pequena distância, em demanda da Ponta de Leste, levado pelo rebojo numa marcha de dez milhas.

Agora o aspecto litoral da Trindade mudara: já não era mais aquele amontoado negro ou cor de ferro oxidado dos fraguedos de oeste superpondo-se a pino nas águas em alcantis estéreis, mas relevos e baixios de terra vegetal, desdobrando-se em breves lombadas ou vales de uma verdura risonha. Pequenas praias sucediam-se, abertas entre rochedos, com a sua barra de areias alvejando aqui e além. Minúsculos cachopos salientes erguiam-se dum aro de espumas, com os interstícios de pedras tomados de vegetação em tufos de renda verde. Ao longe, ao rumo do norte, as rochas de Martin Vaz, recortavam-se no horizonte, altas, esparsas, cinzentas.

Mas o brigue virava a Ponta de Leste e uma enseada de areia começou de aparecer a bombordo, pautando o sopé de um outeiro extenso de milha e meia. As águas aí tinham placidez relativa, abrigadas pelos cabeços da Ponta, onde o sueste vinha quebrar o furor das suas vagas indômitas, em novelos de ressaca que cobriam e alagavam mesmo altos penedos. O sol já se afundara nas ondas deixando imensa barra de ouro entre o mar e o firmamento. O céu arqueava-se no alto inteiramente despido de nuvens, que varridas pelo vento, iam juntar-se a oeste numa grande acumulação pardacenta.

O capitão mandou então carregar e ferrar joanetes, pois que o ancoradouro estava próximo: e a manobra foi executada em meio da algazarra geral da marinhagem que, na satisfação da chegada, se expandia vivamente.

À sombra das gáveas brancas bojando contra as bordas e as enxárcias, estirada numa longa cadeira de lona junto à gaiúta, Mercedes, vestida de claro, olhava com interesse o desenrolar da paisagem litoral daquela parte da ilha. Estava agora mais alegre. A viagem, com o seu grande ar puro e oxigenado, as suas sensações e aspectos sempre novos no meio dos ventos marinhos, havia-lhe dado ao sangue e aos nervos uma tonificação admirável. O rosto moreno ganhara, ao sol de bordo, um rosado vivo e quente que a tornava dia a dia mais linda. Os olhos brilhavam, cada vez mais lânguidos e fascinantes, sob os cílios negros. E seu talhe airoso e alto, dir-se-ia o de uma grande rosa chegada a pleno desabrochamento nas linhas redondas e cheias que a contornavam esculturalmente.

Afonso, que estava ao pé do leme com João d'Urville, naquela ocasião de quarto, não obstante a cerrada conversação em que vinha com o piloto sobre planos de futuros cruzeiros e assuntos de náutica, não despegava o olhar de Mercedes, a quem amava com enternecimento cada vez mais profundo, fixando-a com enlevo, quer no tombadilho diante da guarnição submissa, quer em baixo na câmara, entre os doces aconchegos do seu camarim. Mais à ré e debruçado da borda, Guilherme Reyd, com seus ombros atléticos, a estatura de colosso e as barbas alvíssimas, manejava, nas grossas mãos de marujo o grande óculo de bordo, a fim de reconhecer brancuras de velas que se esvaíam a leste, no horizonte além... Para a proa, sobre o molinete, ao pé da porta do rancho ou à amurada, junto às enxárcias do traquete, os marinheiros continuavam a algazarrar alegremente, na ociosidade que sucedera à última manobra e que era aumentada pelo vento de feição e a bela marcha do navio. Mais avante, sobre o castelo, quatro dentre eles tinham o semblante preocupado e carregado como no desempenho de difícil função: eram os vigias, encarregados de examinar as águas da costa para darem sinal dos cachopos imersos. No ar de gávea e no galope dos mastaréus oscilantes, outros homens apresentavam gesto severo na contínua preocupação de investigarem ao longe, em torno, a infinita amplidão oceânica.

Mas o Falcão aproximava-se de um ponto da costa onde um riacho desembocava num recanto de rochas que fechavam a enseada pelo norte. Para dentro desse amontoado de penedos ficava o pequeno planalto do outeiro, coberto de gramados e ralas moitas de arbustos.

Era esse o local destinado à fundação do Entreposto, pelo seu porto, as manchas de terras aráveis e a água abundante durante todo o ano, o que não sucedia em nenhuma outra parte da ilha. Com as obras que ia ali construir ficaria a Associação Flibusteira com posto de primeira ordem sobre o Atlântico Sul e sobre o Pacífico. Na viagem antecedente — a primeira que fizera à Trindade — levantara uma carta daquele ponto e deixara assinalado o ancoradouro por uma grande baliza, terminando por uma chapa de ferro pintada onde mandara lançar a data do cruzeiro e o nome do brigue...

No entanto, um dos homens do castelo entrou a gritar para a ré:

— A baliza à proa, pelo bordo de terra!

O comandante e os pilotos correram à amurada de bombordo, a mirar alegremente a baliza de ferro que tinha a cor do pavilhão inglês — quando a avistaram, muito alta e triunfal ao vento na rebentação esparcelada dos cachopos imersos. E logo a guarnição entusiasmada prorrompeu num alvoroço:

— Hurra a D. Afonso Morgan! Hurra à Comunidade do Mar das Antilhas!...

O brigue entrou a atravessar pouco a pouco, preparando-se para dar fundo, os panos todos carregados, a tripulação às vergas, numa faina alegríssima. Dadas as últimas ordens, o capitão veio encostar-se à gaiuta num grande júbilo íntimo, mostrando a Mercedes a praia da pequena enseada, a embocadura do riacho e o planalto do outeiro, esbatendo-se já, à cinza densa do crepúsculo, contra a massa montanhosa da ilha que a noite lentamente transformava numa imensa sombra negra. Quando as amarras correram, num tinir vivo de arinques, a marinhagem, de sobre as bordas e mastros, rompeu de novo:

— Hurra a D. Morgan! Hurra à Comunidade do Mar das Antilhas!...

Afonso e a moça ficaram ainda por muito tempo no tombadilho a olhar, embevecidos, o alto do firmamento já de todo anoitado e fulgindo agora num maravilhoso esplendor pelas malhas prateadas das constelações.

VIII

Ainda a estrela d’alva não se apagara no céu e já os tripulantes do brigue se agitavam por todo o convés e tombadilho nos trabalhos da baldeação, ao mesmo tempo que um escaler largava de bordo com, um dos pilotos e a primeira turma de operários que ia dar começo às construções.

As obras a levantar na ilha deviam ser na sua maior parte de madeira e constar da casa do comando e de quatro grandes armazéns, um dos quais destinado à habitação da gente que tivesse de ficar ali destacada enquanto o Falcão andasse em cruzeiros, e os demais para acomodação de sobresselentes e munições de guerra e de boca, e para depósito de carregamentos e presas. Após isso, aproveitando um dos pequeninos vales que corriam paralelos ao ribeiro, construir-se-ia sólida galeria subterrânea com entrada no batente do mar, aberta consoante à configuração do terreno de modo a confundir-se com o mesmo, a fim de não ser descoberta pelo inimigo no caso de ataque à ilha. Nessa galeria guardar-se-ia o ouro amoedado ou em barras que viesse a ser aprisionado, bem corno toda a sorte de pedrarias, e logo que ficasse concluída dever-se-ia levantar dela minucioso roteiro, com todos os sinais e dísticos, extraindo-se duas cópias, uma das quais seria enviada oportunamente para a Margarida, ficando a outra em poder da oficialidade do navio e o original nas mãos do comandante do Entreposto, a fim de garantir de futuro aos Irmãos da Costa o local certo dos tesouros.

Seguiram-se à primeira turma muitíssimas outras. O desembarque efetuava-se por meio de formaturas no convés. O contra-mestre, voltado para os homens, gritava o nome de cada inscrito numa grande lista, e o flibusteiro chamado dava um passo à frente, tomava das ferramentas que lhe eram destinadas e que se achavam dispostas em ordem sobre os quartéis das escotilhas fechadas, e dirigia-se para a escada de proa embarcando na lancha do serviço. Ao mesmo tempo, por uma aberta no resbordo do brigue, os tripulantes davam saída à madeira e demais material de construção embarcados nas Antilhas, e que eram conduzidos para a terra em balsas de grandes vigas.

Efetuada a descarga do material que durou alguns dias, Afonso passou a descer à terra cotidianamente a fiscalizar as obras: e quando o tempo o permitia, e a atracação se podia realizar facilmente, o que ali era raríssimo, mesmo naquele ponto da costa — levava em sua companhia Mercedes que, já um tanto marinheira, apreciava semelhantes excursões, das quais voltava sempre satisfeita, trazendo para bordo, onde os cultivava com carinho, magníficos espécimes de lindas e variadas espécies de orquídeas da ilha.

Nos primeiros dias os operários, bem como os tripulantes que se não ocupavam a tomar conta do navio sob as ordens do velho Reyd, empregavam-se exclusivamente em preparar o terreno, arrebentando pedras e aplainando tudo num perímetro de meia milha quadrada, desde o amontoado colossal das rochas que fechavam a ponta da enseada, pelo norte, até ao ponto onde começava o pequeno planalto do outeiro. As construções deviam erigir-se todas de forma que não pudessem ser vistas do mar nem de nenhuma situação abordável do litoral, a impedir que as frotas que sulcavam o Atlântico — principalmente as lusitanas, muito frequentes nas travessias para a índia e para a terra de Santa Cruz — fossem por elas atraídas. Era por esse mesmo motivo que o Falcão estava pronto para, caso velas em comboio aparecessem à vista, por amarras a pique e, se se verificasse rumarem naquela direção, de acordo com os vigias distribuídos e postados por todas as pontas da costa e cumeadas centrais e culminantes das montanhas da ilha, fazer sinal para terra reembarcando apressadamente a gente e soltando pano em bordadas ao largo, a fim de evitar qualquer ataque imprevisto.

Entretanto já três semanas tinham decorrido e nem uma só embarcação fora vista, além da que passara a leste no primeiro dia. Dois dos quatro grandes armazéns de madeira tinham sido concluídos e os outros iam já à meia construção, enquanto o mestre de obras, numa prodigiosa atividade, com sua turma de pedreiros, lançava os primeiros alicerces da casa da Administração, que devia ficar bem oculta entre as rochas altas da Ponta, dominando quase todo o litoral de leste a muitas milhas ao mar. Ao passo que estas obras prosseguiam a gente de bordo, ao mando do contramestre dividida em dois grupos, ocupava-se afanosamente na abertura da galeria e na construção de um caminho que desse acesso fácil ao alto do pequeno promontório do Entreposto, por onde se subia com dificuldades e perigos no meio da aglomeração caótica, infernal da penedia.

Afonso todas as manhãs, logo ao desembarcar, percorria, um a um, os pontos onde as turmas trabalhavam demorando-se a examinar as obras, ativando o pessoal e modificando aqui e ali, conforme as circunstâncias exigiam, o primitivo traçado das construções. E apenas as viu em certo pé de adiantamento, começou suas excursões, percorrendo o planalto do outeiro desde os cabeços do cabo até aos montes ao fundo erguendo-se, empinados e terríveis, na sua imensa e rude massa rochosa. Partia para essas explorações acompanhado de João d'Urville e de uma pequena escolta de homens, que além das armas habituais levavam consigo cordas e croques para as ascensões difíceis e arriscadas aos rochedos e topos a pino, que frequentemente se opunham à passagem e tornavam quase impraticável o caminho. Voltava sempre pela tarde, hora em que retomava a lancha e recolhia ao brigue, a cuja amurada Mercedes o esperava a sorrir, fascinante e adorável nas suas vestes leves de estio. De uma vez em que alargara a sua excursão pelo litoral até à Ponta de Leste que fechava a enseada pelo sul, descobriu, caído numa fenda entre duas rochas das mais avançadas nas águas, uma espécie de pilar de alvenaria, já em parte esboroado, de cerca de três braças de altura. Ele e o piloto, bem como os homens da escolta que os seguia, tiveram de repente uma exclamação de surpresa. Pensaram a princípio nalguma construção que porventura ali houvesse sido remotamente erigida, nos tempos das primeiras explorações portuguesas no Atlântico sul; mas examinando mais detidamente o pilar pareceu-lhes que era antes um padrão de conquista, posterior à descoberta da terra de Vera Cruz. E, ordenando aos marinheiros limpassem-no logo dos musgos e liquens que o cobriam quase totalmente, encontraram, na face que estava meio voltada para cima, letras talhadas em cobre que pareciam uma inscrição.

Picados de vivíssima curiosidade mandaram raspar à faca os caracteres para que mais nitidamente se destacassem e, com maior surpresa ainda, comandante e piloto puderam ver claramente as palavras do letreiro, grafadas em português quinhentista:

MDXLIX

5 DE MARÇO

PERO DE GÓIS DA SILVEIRA

CAPITÃO-MOR DA FROTA

QUE LARGARA DE LISBOA

A

2 DE FEVEREIRO

EM VIAGEM PARA

O

BRASIL

Afonso admirava-se de que não fosse aquele o padrão ali plantado por Tristão da Cunha em 1506, cinco anos depois que João da Nova descobrira a ilha. Afirmava ter sido Tristão da Cunha que tomara posse da Trindade em nome del-Rei Dom Manuel, na viagem para a índia em socorro de Dom Francisco d'Almeida, um mês antes de descobrir o grupo de ilhas que conservavam o seu nome. E voltando-se para d'Urville explicava em francês, porque o outro não conhecia como ele o espanhol para entender o português:

— Entretanto não é este o padrão de Tristão da Cunha, mas o sinal da estada nestas águas durante alguns dias do capitão-mor que há cento e dez anos, em viagem para a Bahia de Todos os Santos, conduzia a seu bordo o primeiro Governador Geral do Brasil. Descoberta por Tristão da Cunha, Estevão da Gama ou Afonso de Albuquerque agora a esta ilha pertence-nos... E ai daqueles que ousarem pisá-la durante o nosso domínio!...

E seguido do piloto e dos marinheiros retomou o caminho que levava às obras, descendo logo para o porto onde já o aguardava uma das lanchas do brigue flutuando sobre remos, ao largo, para fugir à rebentação bravia. Os tripulantes, ao avistarem Afonso, acostaram logo e, estendida a prancha, embarcaram todos, largando o batel para bordo numa vaga espaçada, que cantava nas toleteiras côncavas. Apenas a pequena embarcação atracou à escada, Mercedes, que estava no tombadilho a gozar o espetáculo do céu tropical e da suntuosa e imensa marinha, correu ao portaló a receber Afonso que, muito alegre e sorrindo, mal pisou o convés tomou-lhe as mãos e beijou-as. E juntos ambos, quase enlaçados, encaminharam-se para a câmara, onde a mesa do salão os esperava já resplandecendo pelas baixelas de ouro e prata e pelos cristais finíssimos...

Acabado o jantar Afonso e Mercedes subiram para o tombadilho.

Anoitecia. Para os lados de oeste tudo se enturvava numa cinza carbonosa. A Trindade perdia pouco a pouco, sob a escuridão que aumentava, as saliências rudes e ásperas das suas rochas que se fundiam numa só mancha negra, e se destacava mais nitidamente apenas pelo seu contorno denteado batendo o azul-ferrete do espaço. O mar já enegrecera de todo ao ocidente, mas em sua vasta superfície vagas ondulações de espelhino aqui e além faiscavam, às rajadas do vento do largo. E só a leste, no horizonte, precedendo decerto o nascer do plenilúnio, uma barra de luz láctea surgia, como um fundo hibernal de neblina. . .

IX

Prontos os armazéns e exteriormente a Casa da Administração, Afonso entrou a preparar tudo para o primeiro cruzeiro do corsário cujo itinerário, já de antemão estudado e traçado, constava de travessias entre cidades e povoados litorais das Capitanias meridionais do Brasil e no estuário do Prata. Tencionava levantar ferro por aquela semana, deixando na ilha pequeno corpo de guarda e o pessoal operário que ainda se fizesse necessário para a conclusão das obras, todos sob o comando de um mestre que seria tirado dentre os marinheiros mais antigos da companha. E na véspera da partida, um sábado, ordenou desembarcassem os mantimentos indispensáveis para uma estadia de três ou quatro meses (tempo que poderia durar o cruzeiro) e, naquela manhã, enviou à terra o segundo piloto com as últimas ordens à gente que ficava, bem como armas e munições para repelir qualquer assalto de inimigo que ousasse abordar a ilha durante a sua ausência.

O brigue, recorrido o aparelho e repintadas as alcaixas, com as portinholas erguidas por onde espiavam as bombardas e as bordas temerosamente eriçadas pelas forquetas de bronze onde assentavam os falconetes e berços — esperava unicamente à volta da última lancha para atestar a aguada e picar as amarras. E o seu casco esguio e fino, de um elegante tosamento à borda-falsa descendo da alta proa desenhada em florão de harpa sob o gurupés até ao elevado tombadilho de popa do chapitéu em ornatos, balouçava airosamente nas águas da enseada, como um admirável modelo de rara construção náutica, ostentando-se nas suas linhas aperfeiçoadas e estéticas, bem diferentes já do tipo primitivo e ancestral das pesadas naus, carracas, galeões ou caravelas em geral.

A guarnição, à proa, agitava-se nos primeiros arrebatamentos da viagem pensando decerto na delícia, incomparável para os marujos, das bordadas felizes, dos cenários multicores do alto mar e da berceuse marulhosa das vagas. E dividida por grupos, na sua atividade sempre ruidosa e álacre, ocupava-se nos derradeiros aprestos da partida, arrumando os picadeiros dos esquifes e batéis sobre as escotilhas, calçando as pipas contra o tincaniz, colhendo em ducha às malaguetas os cabos de laborar, ou safando as talhas dos turcos para içar ao convés a lancha que estava a voltar da aguada. Por entrevante do traquete o contramestre, com os cabos-marinheiros, palrava e fumava, junto ao molinete pintado a zarcão, em cujas grossas cabeças de metal se enroscavam as negras amarras inglesas que, à maneira de estranhos répteis monstruosos coleavam e fugiam, pelos escovéns abertos, em demanda do mar.

À popa, sobre o vasto tombadilho asseado onde faiscavam como ouro os amarelos da gaiuta e da bitácula, Afonso, com uma das mãos sobre a roda do leme, a outra no punho da espada, olhava, com certa impaciência, o recanto da costa onde a lancha recebia a aguada. Assim postado no alto chapitéu balouçante que as grandes ondas do largo deviam dentro em pouco babujar de espuma, cismava ele vagamente, num íntimo orgulho de poderoso capitão-de-mar, no encontro que em breve ia ter com o inimigo, ao longo das terras maravilhosas que Cabral descobrira e dessas outras não menos valiosas cortadas pelo grande rio magnífico que Solis chamara da Prata. O seu espírito romanesco e exaltado de espanhol, aventureiro e pirata, iluminava-se já à ideia de um estrondoso triunfo naquele primeiro assalto à América austral. Idealizava vitórias sobre vitórias para o Entreposto Flibusteiro do Sul que vinha de fundar e de que era chefe. Sob essas visões subjetivas, passando-lhe tumultuosamente no cérebro, iluminadas e vivas como imagens de caleidoscópio, mais se lhe acentuava a impaciência pelo batel que tardava. E seus olhos límpidos e claros, de azul transparente e suave acusando bem sua descendência britânica, mas onde não raro havia um brilho duro e metálico — irradiavam de vez em quando também pelas ondas em torno, ou pousavam, ansiosos e ávidos, no disco longínquo do horizonte azulado...

Meia hora depois a lancha largava da praia e, em remadas largas e possantes, atracava ao brigue, toda alagada pelas ondas bravias que o sol ardente de estio malhava duma incandescência de brasa. Guilherme Reyd galgou rápido a escada que foi imediatamente içada, e correu ao encontro do comandante a dar parte da chegada. Afonso, voltado então para a proa, avançou a largas passadas até à enxárcia grande, e, erguendo marcialmente a cabeça onde as penas brancas do gorro tremulavam ao vento, levou à boca o porta-voz ordenando a marinhagem içasse a lancha prestamente metendo-a nos picadeiros.

Num momento foram colhidas as pipas da aguada e a palamenta da lancha, sendo engatadas as talhas: e os marinheiros, arrumados em turmas ao chicote do cabo, entraram a suspender o batel sob a “lupa” rouca e alentante dos esforços marujos e o ranger seco e áspero dos cadernais. Outra vez então o porta-voz ressoou, arremessando rijamente para a proa:

— Ferro a pique! Salta arriba! Braceia! Larga!!

E em pouco, à aragem fresca do norte, o Falcão, tombado a um bordo e com todo o pano largo, soltou rumo para o sul numa esteira sinuosa de espuma.

Nesse instante Mercedes surgia no tombadilho. Afonso, que vinha de uma recomendação ao homem do leme, apenas a avistou correu para ela sorrindo. E de pé, encostados a gaiuta, as mãos enlaçadas, quedaram ambos a olhar longamente a silhueta colossal da Trindade que esmorecia a um bordo, destacando no céu de ouro da tarde como estranho relevo de bronze.

X

Após vinte três dias de viagem, ora à bolina ora à popa ou a um largo, numa madrugada de aguaceiros ao sul e grandes vagas, o gajeiro de proa gritou para baixo, por entre o nevoeiro e as bátegas do vento batendo a cordoalha:

— Faróis a barlavento! Embarcações contra a costa!...

A essa voz o contramestre correu para a popa a avisar o primeiro piloto que estava ao quarto d’alva. O oficial, ouvindo o grito do gajeiro, fora postar-se à amurada para melhor investigar as águas a boreste; mas nada descobria através a névoa densa. No entanto, por precaução, apesar de calcular pairarem as embarcações cujos faróis avistara o gajeiro a mais de quinze milhas prováveis — ordenou ao timoreiro arribasse meia quarta. E continuou à amurada, a esquadrinhar detidamente as vagas que alagavam, por vezes, em embates frementes, o convés à meia nau. Assim, quando o contramestre surgiu a seu lado para lhe transmitir as palavras do gajeiro, já este as repetia como num brado de alerta:

— Faróis a barlavento! Embarcações contra a costa!...

Com efeito, agora, devido à grande marcha do brigue e não obstante a arribada de meia quarta, começavam de avistar-se do tombadilho, por entre o nevoeiro e a chuva, pequenas luzes tremulas boiando a curto espaço umas das outras. João d'Urville examinando-as atentamente com os seus olhos de fina acuidade e a sua iniludível experiência náutica, descobriu logo que eram navios mareando em frota. Decerto alguma armada portuguesa em demanda do Rio de Janeiro! E, pelas coordenadas levantadas na véspera, certo de que naquele instante o Falcão devia achar-se a algumas milhas ao sul de Cabo Frio e temendo viesse ficar borda a borda com a esquadra ao clarear do dia — cambou subitamente da amura e meteu na bordada do mar. Então, vendo distanciar-se para logo os faróis inimigos, desceu à câmara a comunicar tudo ao comandante.

Num abrir e fechar de olhos Afonso subiu para a tolda, enfiado em grossas botas d’água e numa longa capa impermeável, o gorro de orelheiras para a chuva carregado até à nuca. Achegou-se imediatamente da alheta, tirou do longo óculo que trazia a tiracolo junto ao porta-voz e, através do nevoeiro incessante e das cordas d'água que de contínuo rolavam do céu torvo, entrou a investigar as vagas à popa onde mal se divisava, ao momento, o tremeluzir dos faróis recuantes da frota.

Já a leste uma vaga claridade pardacenta apontava por entre o filó denso de bruma que enoivava as águas. O horizonte continuava limitado e encoberto. Em de redor do Falcão singrando só em gáveas, e estas mesmo em terceiros, apenas o atropelo ameaçador e terrível das montanhas das ondas atirando-se e quebrando-se, fragorosamente, de encontro ao pequeno casco que rangia e cabriolava sem cessar, as bordas invadidas por vezes de novelos de rendas de espuma elevando-se a abatendo-se, a rasgar-se contra os mastros.

Deixando a alheta e encaminhando-se para a gaiuta, seguido de d'Urville e de Reyde, que estava de quarto em baixo e subira para a tolda apenas sentira as manobras da virada — o capitão flibusteiro, indagando do primeiro piloto qual a velocidade do navio nas últimas quatro horas de marcha, e baseado nela e no cálculo de latitude do dia anterior, afirmou aos dois oficiais que, apenas virassem na bordada de terra, os montes da barra do Rio de Janeiro deviam mostrar-se à proa. Na véspera, à hora da observação, havia-lhes dito com a verossimilhança que punha sempre nas suas palavras embora lançando um prognóstico que o mar, os ventos e as correntes contrárias podiam destruir de uma hora para outra:

— Depois de amanhã, pela tarde, a costa de São Vicente há de surgir-nos. É uma das Capitanias mais ricas do Brasil... Precisamos dar um voo ao litoral, cruzar à entrada de Santos e aguardar aí a saída da nau de linha portuguesa que costuma levar duas vezes por ano, para a metrópole, carregamentos de ouro e pedraria. Ali, decerto, havemos ter boa presa...

E os seus olhos flamejavam de sofreguidão e cobiça. Reyd e d'Urville, ávidos e rapinantes também como todo o flibusteiro de lei, exultavam àquelas palavras prometedoras e cheias de bons presságios. E os próprios marinheiros, à proa, fumando e palrando sob o alto castelo abaulado que as cristas espumantes das vagas alagavam de quando em quando, ao ouvirem tais falas, sorriam e experimentavam já certo desejo de luta, fixando com um olhar lampejante as amuradas, como se uma abordagem pairasse iminente: e apertavam contra o peito, num frêmito, as pistolas e adagas...

Naquela manhã, apesar do sul furioso que soprava desde a véspera à noite e do mar desmontado como num ciclone das Antilhas, tudo isso agravado pelo nevoeiro denso impedindo avistar-se a costa e observar-se as evoluções da esquadra navegando contra a terra — o brigue vencera folgadamente altura ao sul de Cabo Frio, conforme o avaliara d'Urville. Assim, Afonso para não delongar mais a derrota, atrasada muitas milhas com aquela bordada imprevista, fez-se na volta do litoral a fim de montar a ilha de São Sebastião, o mais tardar; até ao amanhecer do outro dia.

O tempo, agora, começava de amainar. Já o vento, posto que ainda pelo sul, enfraquecia pouco a pouco as rajadas, para dar lugar ao nordeste que certamente não tardaria. A chuva cessara de todo. A névoa rarefazia-se deixando já a descoberto o horizonte a leste. E as primeiras gaivotas, vindas decerto das ilhas que ficam à barra do Rio de Janeiro, voavam e gritavam, na alegria da bonança, em torno às velas do brigue.

O Falcão, correndo ao sudoeste, vinha deitando seis milhas. Mas o tempo aguentava seguro, e como era necessário ganhar tempo e reconhecer a costa antes que o vento afrouxasse de todo, o capitão flibusteiro mandou largar joanetes e sobres. Pelo meio-dia a Rasa desenhou-se de repente à proa, já livre do nevoeiro. Lentamente, então, as montanhas do litoral se acentuaram a oeste, no seu imenso recorte azulado, onde o Corcovado, a Gávea e os píncaros da Tijuca faziam pontas culminantes. E logo os pórticos monumentais da barra — o Pão de Açúcar e o Pico — se destacaram nitidamente, com grossas orlas de espuma clara à larga base de pedra, deixando ver uma grande parte das mansas águas da baía de Guanabara com sua magnificente e extraordinária paisagem.

Nesse instante, Afonso, que descera à câmara, volvia à tolda com Mercedes que se sentia arrebatada pelo sol de ouro e aquele céu tão azul. E por muito tempo os dois, como os pilotos e os tripulantes, ficaram a contemplar, enlevados, numa vaga saudade das Antilhas e das costas venezuelas, o maravilhoso panorama de florestas e montes que se desenrolava a perder de vista...

Mas uma grande preocupação agitava intimamente o chefe flibusteiro — o desaparecimento das embarcações que pela madrugada velejavam a barlavento do Falcão. É verdade que andara longa bordada para o largo e outra para terra, mas não era possível que a armada houvesse transposto a barra durante aquele tempo com a marcha lenta em que ia. E inclinava-se a crer que a frota tivesse ficado a pairar na altura de Cabo Frio por causa da tormenta, quando o gajeiro grande gritou de cima:

— Uma caravela redonda a boreste contra a costa, com todo o pano em cima! Mareia para a barra à bolina, e traz ao mastro grande o pavilhão das Quinas!...

O comandante e os pilotos correram a boreste, de onde logo avistaram por entrevante de uma ilha, ao norte, a embarcação indicada. Afonso assestou-lhe imediatamente o óculo de bordo e reconhecendo, pelo sinal de almirante, ser ele o navio capitânia, exclamou:

— Ah! é uma frota lusitana! Navega muito aterrada e vem decerto do norte do Brasil, de Pernambuco ou da Bahia...

E quedaram-se os três a olhar as gáveas muito caçadas da bela quilha portuguesa, quando mais quatro caravelas surgiram, bordejando em linha, à distância.

Retirando-se da borda precipitadamente, acompanhado dos dois oficiais, Afonso disse:

— Bem! Agora é puxar todo para o sul. Precisamos estar à barra de Santos aos primeiros clarões da manhã. Aquela frota vai render, sem dúvida, os navios que estão a largar do rio. O galeão que costuma partir de São Vicente, na primeira monção de inverno, já deve estar em caminho. O tempo mantém-se seguro. É mister agarrarmos quanto antes a presa opulenta e glorificar nestas águas, com uma vitória estrondosa, o Entreposto da Trindade, a Comunidade do Mar das Antilhas...

E embocou o porta-voz mandando largar cutelos e varredouras, sob o sol da meia tarde doirando tudo.

O Falcão, mais veloz, levava à proa um grosso estendal de escumilha. E quando a noite chegou, com o seu imenso véu de viúva todo pospontado de estrelas, as montanhas do Rio de Janeiro sumiram-se nostalgicamente à popa...

XI

Ao alvorar do outro dia, na vasta curva que a costa desenha para o sul, os Alcatrazes surgiram a um dos bordos do brigue, a dez milhas mais ou menos, com os seus rochedos estéreis que afetam, de longe, a forma de um enorme golfinho. O vento sul cessara durante a noite e após o terral fresco da antemanhã o nordeste principiava a cair, fazendo o Falcão velejar agora à popa. O dia subia magnífico. O céu no alto resplandecia, lavado e límpido, numa translucidez muito nítida. E o sol, dourado e ardente, clareava tudo abrindo nas águas largas faixas de pedraria, iluminando amplamente o horizonte e o litoral vicentino de remansosas baías, onde montanhas ondulavam num azulamento longínquo...

O navio, todo alvo no seu belo velame que o vento enfunava em bojo dos joanetes às gáveas —voava serenamente nas vagas, numa corrida de bonança, sob a luz vivíssima. Já à proa, onde o gurupés oscilava como um estranho ponteiro apontando além as Singraduras e aos Rumos o desconhecido e o incerto sobre o mar infinito — as montanhas de Santo Amaro e as pequenas ilhas da Bertioga apareciam, aproximando-se pouco a pouco numa barra de esfuminho.

A bordo todos vinham alegres, as almas cantando sob a alvura das velas agitadas pela brisa, nessa viagem feliz em que mar e céu radiavam propiciamente numa promessa de futuros triunfos, lançando doçuras e bênçãos à larga envergadura do grande pássaro marinho que, das Antilhas, desgarrara para o sul às lufadas da Aventura. À ré, à sombra dos toldos correndo sobre a gaiuta, na ambição e no ardor que, como nunca depois que tinha Mercedes junto a si, inflavam seu coração de guerreiro e de marujo, Afonso palrava entusiasticamente com os pilotos sobre os resultados prováveis daquele cruzeiro que lhe parecia viria a ser talvez o mais fecundo de quantos fizera até ali. E na sua imaginação de celtibero e de anglo-saxônio, a que a vida arrebatada e louca de corsário, bem como os grandiosos panoramas sem fim do oceano, davam feição quase contínua de idealidade e de sonho ao mesmo tempo que uma força suprema de energia e audácia — acendiam-se quadros de assaltos poderosos, golpes de mão imprevistos, vitórias sucessivas sobre esquadras, fortificações e povoados...

Próximo, num recanto da popa, sentada na sua longa cadeira de lona, Mercedes ouvia-o a sorrir. Vestia roupão de musselina clara e tinha entre as mãos pequeno livro de orações em cuja linda capa de marfim se recortava, em relevo, um crucifixo. Seus dedos delicados e brancos, colocados entre as páginas semiabertas, marcavam a passagem, cheia de vinhetas e iluminuras medievas, onde, momentos antes, seus olhos pousavam, as capelas baixas, franjadas de longos cílios.

Afonso, apesar da palração animada em que se absorvia, não se descuidava de a fitar, arrebatado pela fisionomia ideal dela e pelo brilho úmido das pupilas que eram a sua maior adoração, e que, muitas vezes, faziam estatelar, em vagos êxtases adorativos, a alma amantíssima e saudosa dos marinheiros que ali rolavam na viuvez das feminilidades queridas, lá deixadas nas Antilhas...

Mas, de repente, o contramestre gritou das enxárcias:

— Um galeão a sotavento! Bolina a uma quarta. E pela cruz de Malta das gáveas parece quilha lusitana...

Os pilotos correram ao castelo de proa, enquanto o comandante, ao bordo de terra, debruçado aos balaústres do tombadilho, assestava o óculo para observar bem.

Era com efeito um galeão, tendo arvorada no penol da mezena a bandeira das Quinas, branca e azul com as armas reais ao centro. Pelos galopes dos outros mastros tremulavam também galhardetes brancos com a Cruz de Cristo, em vermelho. Trazia o bojudo casco pintado a roxo e metido até ao verdugo, o que indicava achar-se atestado até às escotilhas. E bordejava contra o nordeste, em caturradas contínuas.

Afonso reconheceu logo uma das naus que, duas vezes por ano, costumavam conduzir o quinto do ouro para Lisboa. E como os pilotos volvessem já da proa a confirmar que era de fato um galeão português — decerto aquele de que o comandante lhes falara na véspera — este entrou a dizer-lhes:

— Que semelhantes embarcações costumavam carregar, primeiro, no Rio de Janeiro, onde aguardavam as bandeiras que desciam do interior, da região das minas; depois vinham atestar ou completar o carregamento naquele litoral, especialmente a Santos, onde embarcavam as partidas de pedras preciosas procedente de São Paulo e de Cerro Frio.

E concluía:

— De sorte que é exatamente este o galeão a que ontem me referi e que ali veleja para nós.

Descobriu-se, beijou três vezes um amuleto que trazia ao pescoço e ergueu os olhos ao céu, por entre as vergas e os mastaréus oscilando lá em cima. Os pilotos tiraram o gorro e murmuraram um salmo.

O comandante porém voltou a observar o galeão e, de repente, com a face iluminada de júbilo, encaminhou-se a grandes passadas até à escada do tombadilho, de onde ordenou pelo porta-voz:

— Às bandeiras, gajeiros! Arvorar, nos topes, os galhardetes brancos e o pavilhão das Quinas! Olha a cruz de Malta ao traquete e à gávea!...

Era uma das primeiras manobras dos flibusteiros, quando tinham de dar combate. A certa distância, reconhecida a bandeira inimiga, içavam outra igual fingindo-se da mesma nacionalidade a fim de se aproximarem o mais possível da presa e, no descuido natural desta, inesperadamente executavam o assalto. Tal estratagema e outros em que eram fecundos, lhes garantiam o sucesso. Daí o haverem-se tornado temidos no oceano e chegarem a dominar, como senhores absolutos durante mais de meio século, todo o Mar das Antilhas...

Num momento a cruz de Malta foi colada às gáveas e as bandeiras desfraldaram-se nos mastaréus do brigue, que a uma ordem de Afonso entrou a quinar lentamente para o largo, simulando fazer outro rumo.

De porta-voz erguido, voltado para a proa, o comandante continuava a dar ordens enquanto d'Urville percorria os berços e falconetes das bordas safando tudo que lhes pudesse embaraçar o movimento, examinando munhões e forquilhas. A esse tempo, na coberta, Guilherme Reyd com o pessoal das baterias revistava, uma a uma, as bombardas, experimentando os reparos, as coronhas, as trincas. E como o Falcão era pintado a alcaixa revelando-se navio artilhado, o contramestre, com um punhado de homens, como sempre procedia em idênticos ataques, correu a ocultar esse sinal das baterias com faixas de lona alcatroada, preparadas especialmente para esse disfarce.

Deste modo, em pouco, esconderam ao inimigo as aparências hostis.

O galeão pairava agora a seis milhas apenas.

Afonso, de pé junto a gaiuta, acenava para o homem do leme que guinasse ainda um pouco para o largo, quando viu içados a verga de gávea da quilha lusitana sinais do código que o chamavam à fala. Imediatamente ordenou ao timoneiro orçasse todo sobre o inimigo.

Rolos de espuma estouraram então, à proa, salpicando o convés e o tombadilho. E o Falcão, em cheio no vento, deu um grande arranco para vante resvalando ágil na vaga como um fuste em águas lisas. Já da sua balaustrada e da proa se dominava, em parte, o convés da nau que tinha toda a oficialidade à tolda e a guarnição sobre as bordas, as enxárcias, o castelo.

O capitão flibusteiro fez logo ressoar o grito guerreiro:

— Camaradas, às armas! Às armas, por Jesus!

Subitamente e com elétrica rapidez os pilotos e o contra-mestre, cada qual com sua turma de homens armados de pistolas, espingardas e adagas, puseram-se a postos; ao passo que os bombardeiros, na coberta e junto às bordas, correram a guarnecer a grossa artilharia, bem como os berços e falconetes.

A gente exclusivamente reservada às manobras náuticas agitava-se estranhamente no convés, onde os cabos-marinheiros dispunham já, para o primeiro momento, os arpéus de abordagem que avultavam temerosamente contra o trincaniz, com os seus grossos ganchos reluzentes e as suas possantes cadeias presas a fortes arganéus colossais que deviam jungir, dentro em pouco, o alto casco inimigo ao costado raso do brigue. À mesa das malaguetas correndo em toda a extensão da amurada alinhavam-se aqui e ali, entre os brandais e enxárcias, os chuços, as lanças e machadinhas afiadas, cujas lâminas chatas e em forma de cunha, davam uma sensação macabra e lembravam grandes chacinas, despedindo brilhos de aço.

Mercedes, que baixara à câmara aos primeiros preparativos de combate, muito surpreendida e vagamente pálida, quedara-se, a princípio, a olhar da vigia do camarote a azáfama desusada da marinhagem que se cruzava tumultuosamente sobre o convés, com morrões acesos e carregada de armas. Mas ao ouvir os gritos de Afonso e o retinir dos arpéus, pensando que a ação ia travar-se, invadida subitamente de terror, precipitou-se para o salão da câmara e, trêmula e livorecida, caiu de joelhos a orar, em frente à imagem da Senhora dos Navegantes...

Lá acima, o porta-voz do comandante vibrava, continuamente vibrava em sons estridulosos e bélicos que se casavam ao rumor surdo das ondas batendo contra o costado.

Nesse instante Afonso ordenou ao timoneiro que carregasse todo o leme sobre o galeão que bolinava ainda em direção ao brigue a duas milhas escassas. E em seguida, dava voz de “preparar” aos bombardeiros pois, no intento de confundir subitamente o inimigo e levar a desordem à sua guarnição, tencionava iniciar o ataque por uma descarga de artilharia. Depois, em evoluções rápidas como o relâmpago, atracaria o Falcão à nau e passaria a abordagem pisando ele próprio, acompanhado do contramestre, a ponte inimiga à frente de trinta homens escolhidos que já estavam sob o castelo à espera do primeiro sinal. Durante a sua ausência João d'Urville assumiria o comando do brigue manobrando viradores e arpéus, enquanto Guilherme Reyd, com o resto da guarnição, defenderia as amuradas...

E mandava dar o toque de rezas descendo imediatamente para a câmara onde encontrou Mercedes ajoelhada, a orar. Genuflexou-se também a seu lado, murmurando rapidamente a Salve Rainha e, beijando três vezes a espada, ergueu-se, abraçou e osculou a moça, que chorava, e disse-lhe precipitadamente:

— Não chores, querida! A vitória será nossa. A bênção do Senhor há de descer sobre o Falcão e a Senhora dos Navegantes e mais a Senhora da Glória, minha madrinha, hão de amparar-nos como sempre...

E fechando à chave a porta da câmara atirou-se para o tombadilho.

Entanto o brigue, avançando com enorme rapidez, demorara a oito amarras do galeão. Afonso, vendo chegado o momento oportuno, pois o inimigo já se achava ao alcance da artilharia, ordenou estivesse tudo pronto a boreste para a primeira descarga.

Agora da tolda do brigue devassava-se totalmente o interior da nau, que começava a atravessar oscilando pesadamente na vaga, com o pano a bater. O seu casco de grande bojo mostrava-se, nas grossas linhas primitivas, de um pontal desmesurado, embora metido como vinha até ao verdugo do cintado. O vasto chapitéu elevava-se, em largas vigias quadradas e longos ornatos em relevo, muitos metros acima da borda falsa. E a mastreação poderosa, mas ainda de pouca guinda, rangia e balouçava entre as enxárcias e brandais retesos, fixos, por fora, ao costado em grossos fuzis e em grandes bigotas circulares. Aos balaústres de popa bem como à proa, às amuradas e castelo, viam-se ainda o comandante, a oficialidade e a marinhagem absolutamente descuidosos de qualquer surpresa bélica, a olhar cheios de curiosidade e interesse marujo o porte e as linhas do brigue cujo tipo de construção, apesar de belo e inteiramente novo para eles, lhes parecia obra de exclusiva fatura colonial.

Entretanto o Falcão entrava a atravessar também para romper fogo contra a nau. E a esta manobra, a maruja portuguesa, percebendo agora, num relance, que tinha pela proa um audacíssimo corsário, e mais do que isso, o famoso brigue flibusteiro que era o terror das embarcações de guerra espanholas no Mar das Antilhas pela celeridade de seus ataques, a instantaneidade de suas surpresas e as invencíveis combinações de seus ardis, desse estranho navio cujos sinais desde muito corriam a bordo do galeão como em todas as armadas lusitanas que iam para a índia ou sulcavam águas do Brasil; a maruja portuguesa em alarme, entrou a manobrar, por sua vez, para levar o primeiro golpe ao corsário. Então, ao soar das trombetas em rebate, as portinholas foram abertas e todo o pano caçado.

Mas o casco flibusteiro, pequeno e muito maneiro, rápido como uma seta, deu-lhe facilmente o bordo e despejou-lhe a primeira carga. Em seguida, e com prontidão quase inverossímil graças à sua linha de água e bom governo, desfez essa manobra e, num voo seguro de ave de presa, que o seu nome tão bem simbolizava, veio roçar borda à borda o galeão, impedindo-lhe de todo o manejar das baterias.

Imediatamente os possantes arpéus colossais uniram-no contra o brigue, em esbarradas e choques que comprimiam as vagas entre os dois costados lançando a grande altura turbilhões de espuma. E tão inopinada investida, conforme o previra o chefe flibusteiro, levou com efeito enorme confusão a toda a gente da nau, entre cujas bordas silvos de apitos e sons de porta-voz se cruzavam tumultuosamente, em ordens que se não cumpriam sob o assalto formidável.

Então Afonso, transfigurado e como um Satã, os grandes olhos azuis cheios de cintilas metálicas, a espada em punho, galgou a borda de um salto atirando-se ao convés inimigo a gritar para os homens que o seguiam numa impetuosidade de feras:

— À abordagem! — pela Virgem santa e por São Jorge!

Numa rajada de tufão, sob uma grita de mil demônios erguida de parte a parte, o terrível pelotão do galeão invasor caiu furiosamente sobre a ponte do galeão, cujos oficiais e marinheiros, no meio dum sinistro retintim de armas brancas, ao primeiro impulso irresistível foram calcados para ré, de roldão. E foi só apertada contra os recantos da popa e sobre o tombadilho, quando não havia mais recuar, que a briosa guarnição portuguesa, já com perdas consideráveis alastrando o convés de cadáveres, recobrou o sangue frio por instantes perdido e entrou a contrastar leoninamente o assalto inimigo, à voz do seu heroico comandante bradando energicamente, incendido de impulsionante chama bélica e sagrado e altíloquo patriotismo:

— Por Santiago, camaradas! para a frente, para vante! Reconquistemos as nossas amuradas violentamente invadidas! Vencer ou morrer! — pelas cinco chagas de Cristo! pela nossa Pátria! pelo nosso Rei! pelo glorioso e bendito pavilhão das Quinas!...

Formou-se um torvelinho medonho em que flibusteiro e lusos lutavam renhidamente, corpo a corpo, aos berros, num desespero, num heroísmo em delírio, metidos num charco de sangue, ao baquear contínuo dos corpos e ao desabar atroador de vergas, velas, balaústres e cabos sobre o tombadilho. À fúria, que aumentava de momento a momento, o combate se generalizou: por toda a parte grupos de homens batiam-se — à ré, à proa, à meia-nau, às baterias; e até nas enxárcias, no gurupés e nas vergas que ainda se mantinham arvo¬radas, pistolas explodiam, chuços e lanças faiscavam no ar, cruzando-se, chocando-se, partindo-se num miudinho, arrepiante e tremendo repicar de aço fino. Mas onde o fogo e o embater de ferros brancos se concentraram mais, num redemoinho formidando, fora às anteparas da câmara e sobre o chapitéu onde Afonso, num ímpeto invencível após a primeira arrancada do inimigo, com o seu pelotão já reduzido a quinze homens apenas, acantonara comandante e oficialidade com a flor mais bela da guarnição lusitana, os quais, apesar de encurralados contra as bordas, pelejavam desvairadamente, loucamente, até ao último suspiro. Semelhante resistência afrouxava porém pouco a pouco, com os claros repetidos dos combatentes caindo. Já os melhores oficiais rojavam sobre a tolda, sem vida. E quando o contramestre Moranta, que por ordem do capitão flibusteiro correra ao brigue a buscar um reforço de mais um pelotão de vinte homens, pisou de novo o convés do galeão avançando e varrendo tudo para ré com os seus espingardeiros — um sopro de suprema aniquilação passou sobre o bravo punhado de lusos que enfraqueceu de súbito ante essa nova força superior, ao ver tombar morto de repente o seu ínclito comandante.

Nesse momento tristíssimo, sobre o corpo ainda quente do grande marinheiro que fora um denodado veterano dos mares e das celebradas campanhas da Índia, entre aquelas amuradas vencidas, a destruição e a chacina não conheceram limites. O sangue que inundava o convés, o castelo e todo o tombadilho, vazando-se pelos embornais do costado e do amplo chapitéu da nau, escorria para o mar avermelhando tragicamente as águas em torno. Como perversão de embriaguez ou de epilepsia, uma irresistível e tirânica avidez de massacre avassalou então o cérebro incandescido dos vencedores, que lançavam um vendaval de perseguição e de pânico a todos os recantos do navio. Varejavam furiosamente cobertas e câmaras, porões e baterias, caçando os sobreviventes, acutilando-os, mutilando-os, matando-os, numa furibunda batida inclemente. Os que por acaso lhes escapavam, desesperados e numa alucinação, saltavam impetuosamente às bordas atirando-se ao mar a pedir ao fundo seio das ondas, das frias ondas que amaram, a já então consoladora misericórdia suprema de irem dormir para sempre o derradeiro sono sob a alvíssima mortalha infinita das espumas...

Por fim, quando não houve mais uma só vida a ceifar, gritos repetidos de triunfo estrugiram, dos grupos flibusteiros, sob o alto azul do céu límpido, agora mais transparente e aos primeiros desbotamentos do sol no ocaso:

— Hurra a Dom Afonso Morgan! Hurra à Comunidade do Mar das Antilhas!...

Dominado inteiramente o galeão, Afonso ordenou fossem recolhidos ao brigue os feridos da sua marinhagem, procedendo-se imediatamente à verificação de identidade dos mortos, pelo nome e pelos sinais físicos, como sempre se fazia depois de cada combate. E procurando o contramestre Moranta, que desaparecera na confusão da última refrega, foi encontrá-lo caído junto à porta da câmara, com um dos braços decepado, a cabeça fendida de meio a meio por um certeiro golpe de machada.

Um momento quedou-se a contemplar o bravo maiorquino cujo corpo, deitado de costas, nas suas vestes de huguenote, jazia ali inerte para sempre, numa serenidade hirta. A fisionomia, óssea e alongada, revelando uns quarenta anos, estava como adormecida, e, assim lívida e imóvel na sua densa barba castanha e nos seus longos cabelos cacheados, lembrava vagamente a do Cristo, no velho marfim de um crucifixo medievo. Conhecera aquele homem, pela primeira vez, ao chegar à Margarida: fora com ele que fizera a sua viagem inicial de flibusteiro e fora a seu lado que afrontara pela primeira vez o perigo. Nele encontrara um dos melhores subordinados, e o afeiçoara desde logo pela sua dedicação e lealdade, coragem e sangue frio. Nos assaltos era sempre dos primeiros, mesmo nesses momentos terríveis em que, muitas vezes, vacilam e vergam as maiores ousadias. E era tal a sua impetuosidade guerreira que, de uma ocasião, à frente de dez homens apenas, assaltara e se apossara de um dos fortins principais da cidade, na tomada de Porto Príncipe. Essa vitória memorável, uma das mais célebres da Comunidade, pertencera-lhe em grande parte. Jamais supusera que a vida daquele herói acabaria ali, naquela abordagem, no momento mesmo em que o triunfo e a glória coroavam as armas flibusteiras nos mares do Brasil. E ajoelhou-se, curvando-se sobre o cadáver, beijando-o no coração e na face, onde o sangue das feridas coalhara em grossas pastas negro-sulferinas.

Depois penetrou na câmara da nau, percorrendo o salão principal, a praça de armas, os camarins e a sala do comando. Por instantes, deteve-se a olhar, admirado, os quadros dos grandes descobrimentos e façanhas marítimas portuguesas exibindo-se, em largas molduras de ouro, ao longo dos altos almofadados das anteparas. Eram A tomada de Ceuta, A descoberta da Madeira e Açores, A passagem do Cabo de Não, Bartolomeu Dias dobrando o Tormentoso, A grande viagem do Gama, O descobrimento do Brasil, A volta do mundo por Fernão de Magalhães, João Vaz Corte-Real descobrindo a América antes de Colombo e nunca mais voltando a Portugal, Os dois filhos deste, Gaspar e Miguel, partindo em busca do pai e descobrindo a península do Labrador e o estreito de Hudson de onde também não tornaram, e muitos outros ainda como a Defesa de Katschhi por Duarte Pacheco, Conquista d'Ormuz, Goa e Malaca por Afonso de Albuquerque, A tomada de Diu... Descia para a câmara de baixo, que era o santuário do navio, quando se lhe deparou um velho sacerdote que de fisionomia cavada e lívida de terror, orava fervorosamente, ajoelhado diante de uma imagem do Cristo destacando dentro de um nicho cavado no amplo e artístico retábulo que se elevava ao fundo.

O padre, que escapara à chacina geral oculto no bico de popa, ao ver surgir o chefe flibusteiro com a sua guarda guerreira de marujos todos ainda tintos de sangue e desfigurados pela luta de há pouco, voltou-se vagarosamente para ele na sua postura genuflexa e, ainda mais lívido e tremulo, pegando do pequeno crucifixo de prata pendente do rosário que trazia à cintura, ergueu as mãos descarnadas e implorou:

— Clemência! Clemência!

Afonso ajoelhou-se também seguido pelos marinheiros e, baixando humildemente a fronte altiva, tomou o crucifixo que o sacerdote mantinha ainda entre mãos, e osculou-o dizendo:

— Pai, nada temais. A vossa vida está salva. Nós só obedecemos aos mandados do Altíssimo...

E, beijando-lhe a mão direita, fê-lo levantar-se, subindo com ele para o salão de cima, acompanhado sempre pela escolta.

Ao sair para o convés, onde os flibusteiros se ocupavam em retirar as armas e demais objetos dos cadáveres que rojavam por toda a parte sobre camadas de sangue coagulado, o padre, horrorizado, escondia o rosto na capa do seu longo burel recitando baixo a Oração dos Aflitos. E, afastando assim dos seus olhos o medonho espetáculo, apoiado ao braço de Afonso que o conduzia, atravessou, a passos vacilantes, da tolda do galeão para a bela câmara do brigue. Por onde passava, os marinheiros ajoelhavam, entoando o Padre Nosso e beijando-lhe respeitosamente a sotaina e o Cristo do grande rosário que lhe pendia da cinta, enquanto ele os abençoava num largo gesto das suas mãos alvíssimas...

Mercedes, que durante aquelas horas agitadas e sinistras levara a rezar seguidamente diante da Senhora dos Navegantes, ao findar o combate, fatigada pela emoção que sofrera recolheu-se à cabine, onde a tomou um profundo sono. Mas naquele instante acordava estremunhada, muito pálida e invadida ainda de um certo temor, porque Afonso não aparecia. E, erguendo-se, fora ajoelhar de novo em frente à imagem da Senhora dos Navegantes, murmurando uma Ave Maria, quando Afonso, abrindo inopinadamente a porta da câmara, surgiu, triunfal e risonho, e, correndo para ela, a enlaçou e beijou longamente.

A primeira sombra da noite começava de envolver a leste o horizonte longínquo e ainda o Falcão continuava atracado à nau, de cujo interior passavam agora para os porões do brigue objetos de toda a ordem e o rico, extraordinário, inestimável carregamento. Assistiam a essa grande baldeação — que era feita com admirável rapidez por toda a marinhagem — os dois pilotos, que iam registrando os volumes nos seus cadernos de carga e descarga. E os atléticos flibusteiros, curvados sob o peso dos caixotes cheios de ouro e chapeados de ferro, a cruzarem continuamente de um para outro navio sobre grossas pranchas postadas às bordas balouçantes e alumiados agora por duas filas de archotes cujas chamas vermelhas e fumarentas o vento do mar desgrenhava as rajadas — formavam como um estranho quadro, a que o esfrolar rumoroso das ondas, o ranger triste dos mastros, o tinir sinistro dos arpéus e as repetidas esbarradas dos cascos um contra o outro, davam um toque sobrenatural, apavorador, dantesco.

No entanto a preciosa carga parecia infindável; e por isso os dois oficiais apressavam o transbordo mandando arrumar, mesmo sobre o convés e a coberta, uma grande parte dos volumes.

Fazia-se urgente safar o brigue quanto antes e deixar a matroca o galeão, porque o tempo podia mudar de repente o oceano, até então bonançoso, sublevar-se em altos vagalhões. Era preciso evitar que o transbordo da carga se prolongasse até alta noite, pois que tinham ainda de desenvergar o pano da nau e recolher as munições de guerra de boca, bem como os sobresselentes e instrumentos náuticos. Além disso o comandante ordenara que, apenas fosse a presa despojada de tudo, o Falcão largasse velas em demanda da Trindade por quanto, dentro de um mês mais ou menos, devia achar-se em viagem para o Prata onde costumavam cruzar os galeões e bergantins que vinham do Peru para a Espanha carregados de ouro e prata.

Mas, não obstante os esforços da guarnição lidando numa faina incessante, somente pela madrugada foi que o Falcão se fez de vela sob o esplendor do céu tropical abrindo majestosamente na alta abóbada do espaço o crivo de ouro das constelações.

XII

Oito dias passados, às primeiras claridades de uma manhã límpida e de sol, o Falcão, após uma salva de artilharia de vinte e um tiros, embandeirava festivamente, em arco. Então galhardetes e bandeiras de todas as espécies, de todas as cores e de todas as nacionalidades, em profusão, entraram a palpitar, aos ventos bonançosos do oceano, suspensos aos topes dos mastaréus, desde a ponta do pau da giba ao alto espelho lavorado de ré — tudo isto coroado pelos pavilhões inglês e francês desdobrados, como símbolos de suprema força e de supremo mando, mais altos que todos, ao penol da carangueja.

Em seguida à jubilosa descarga, indicando um dia de grande gala a bordo, a guarnição, num imenso alvoroço, prorrompeu em vivas estrepitosos — à Comunidade do Mar das Antilhas, ao almirante Henrique Morgan, seu chefe, ao comandante do brigue, e aos famosos subchefes vencedores dos grandes combates flibusteiros de Porto Belo, de Puebla Nova, do Panamá e de Porto Príncipe.

À popa, junto à gaiuta, entre os ornatos e balaústres do chapitéu inteiramente recobertos de tapetes e bandeiras, bem como os paveses e as amuradas ao longo da embarcação, tiniam e retiniam de quando em quando, chocando-se em entusiásticas saudações, as taças de ouro ou cristal, onde espumavam ou ferviam os capitosos vinhos da Martinica, de Málaga, de Xerez ou de Alicante, tirados às fartas adegas dos galeões espanhóis aprisionados em combate. E à proa, sob o claro bojo das velas oscilando docemente na calmaria reinante ao bafejo hibernal da manhã esgazeada e azul — os pequenos púcaros de madeira, da medida de um martelo, corriam de mão em mão, transbordantes de rum da Jamaica ou de velha aguardente do Brasil, em meio à algazarra estardalhaçante e jocunda de toda a chusma.

Era esse com efeito, um dia de gala para os flibusteiros. Fazia nove anos que os Irmãos da Costa haviam lançado e pactuado os fundamentos da grande sociedade de exploração rapinante por todos os recantos dos mares e costas antilhanas, com ampliações — quando se fizessem necessárias — ao Pacífico e ao Atlântico, vinculando-se e irmanando-se eles, para a vida e para a morte, numa solidariedade profunda e quase indestrutível, em que entraram a praticar desde logo os mais estupendos heroismos a par da mais execranda pilhagem que já um dia presenciaram as águas e o litoral gigantesco, então recém-descoberto, cheio de riquezas fabulosas e em princípio de exploração e civilização, do singular e extraordinário Continente Americano. Essa estranha sociedade marítima, que se formara de um bando de marujos ingleses e franceses, ociosos, audazes, aventureiros e romanescos, de mãos dadas aos buchaneros fazendo o pequeno e o grande comércio entre a América Central, as Antilhas e os países europeus, tivera primeiro por sede ou centro principal a ilha da Tartaruga e recebera dos seus incorporadores o nome oficial de COMUNIDADE LIVRE DO MAR DAS ANTILHAS. Tinha sido fundada sobretudo para atacar e saquear as esquadras e possessões da Espanha que, com irresistível e tenaz perseguição, lograra expulsar de uma parte do continente e especialmente de São Domingos, de Havana e de todo o interior de Cuba os mesmos buchaneros (em grande parte lordes ingleses e fidalgos franceses que tentavam reconstituir as fortunas dissipadas loucamente nas principais capitais das primeiras nações da Europa) acabando com a vasta empresa ou monopólio de exportação de peles que eles ali mantinham há dezenas de anos e de que tiravam resultados extraordinários. Mas a célebre associação só funcionara na ilha da Tartaruga durante dois anos, findos os quais passara à Margarida erigindo ali o povoado de Assunção de onde entraram a voar, ainda mais numerosamente que no primitivo local, alígeras e possantes como grandes aves de rapina, as leves quilhas flibusteiras, que sulcavam com inigualável intrepidez todo o Mar dos Caraíbas, assaltando leoninamente as frotas castelhanas, que, se nem sempre eram aprisionadas em totalidade, o eram pelo menos em parte, obrigando os demais navios a fugirem em pânico para o alto mar ou para os numerosos e labirínticos abrigos daquele infinito crivo de grandes e pequenas ilhas. A sociedade tivera como seu primeiro chefe o capitão-de-navio francês Jean David Nau, mais conhecido pelo seu nome de guerra l'Onnais, por ser natural de Sables d'Olonne, na Vendeia, homem que só contava como êmulos em impetuosidade, bravura, ardis, tenacidade e audácia nos ataques navais que empreendia, como nos assaltos terríveis levados às melhores cidades coloniais castelhanas das Antilhas, os seus dignos irmãos de façanhas Henrique John Morgan (agora com o supremo mando da Comunidade), Miguel o Basco, Montbars o Exterminador, Pedro Legrand, Francisco Grammont e o jovem comandante do Falcão — mais ninguém! Os Irmãos da Costa, não obstante o nome de suposta nacionalidade com que a si mesmos se galardoavam — nome que ficou para sempre obscuro — começaram a ser desde logo universalmente conhecidos pelos FLIBUSTEIROS, da palavra inglesa fly-boat ou da francesa flibot, ambas com o mesmo sentido — navio que rouba ou navio ladrão; ou ainda do inglês (como é mais geralmente aceito) free-booterlivre pilhagem ou roubo livre...

O comandante, na véspera, muito preocupado com a comemoração do grande dia, mandara preparar tudo para esse fim, tendo guardado para a mesma ocasião festejar também a vitória da primeira batalha naval por ele galhardamente pelejada em águas do Brasil. Coroaria grandiosamente esses festejos a solene cerimônia da legalização, perante a Igreja e o Mundo, da sua união com Mercedes, a qual devia celebrar-se daí a horas, em seguida à missa em ação de graças que ia ter lugar, no tombadilho e na câmara, à serenidade do céu azul, e do mar, e ao hibernal esplendor daquela linda manhã.

Efetivamente, pelas 9 horas, na sala da câmara, junto ao largo retábulo onde se abria o nicho da Senhora dos Navegantes, um pequeno altar foi armado com as ornamentações e paramentos sagrados tomados ao galeão. E, colocado sobre a toalha de rendas, entre duas filas de velas acesas, o grande Cristo de prata, uma maravilha artística de ourivesaria medieval da Lusitânia — o velho sacerdote apareceu, acompanhado de Afonso, envergando custosa alva bordada e trazendo nas mãos o cálice coberto por uma patena de damasco branco com estreita e rica orladura de ouro.

Os trombeteiros de bordo, dois robustos e morenos jovens venezuelanos, muito eretos nas suas vestes de paninho escarlate e formados à escada que levava ao chapitéu, embocaram então as polidas trombetas de metal reluzente: e um som vivo e marcial irrompeu de sob a amura das velas, indo morrer ao longe nas ondas. Então Guilherme Reyd e d'Urville deixaram à pressa o chapitéu, onde ficou apenas o homem do leme que não podia abandonar o seu posto. Os dois pilotos penetraram na câmara tomando lugar por detrás do comandante, que ia acolitar a missa, e ao pé de quem estava postada Mercedes, toda de alvo, a graciosa cabeça envolta numa leve mantilha rendada de seda, que lhe caía pelas costas como um pequeno véu de tule alvaçã, o rosto brandamente rosado, e os grandes e negros olhos formosos banhados de um fluido inefável.

No seu nicho de ramagens coloridas, todas profusamente recortadas e nervuradas de ouro, banhada gloriosa e paradisiacamente por um amplo jorro amarelo e quente da luz viva do sol entrando, alegre e faustoso, pelos vidros da gaiuta, na sua triunfal e majestosa escalada ao zênite do firmamento — a Virgem Senhora dos Navegantes faiscava na sua densa e pesada maciez de ouro, tendo nos seus pequeninos lábios esculturais e nos seus olhos de turquesas celestes um encantador e suavíssimo sorriso edênico, que ameigava primeiro Jesus infantil — o divino e querido filhinho que trazia estreitado contra o seu seio esquerdo — depois envolvia a miniatura do pobre naviozinho em tormenta sobre cuja mastreação desarvorada pousava, salvadora e milagrosa, a sua mão estendida e aberta como uma santa palma de lírio, sorriso que ainda depois irrompia câmara a fora espalhando-se, espiritual e misericordiosíssimo, por todo o casco balouçante do brigue e por todo o oceano infinito, que é o domínio incomparável dessa augusta e amantíssima Mãe dos Marinheiros...

Mas os trombeteiros deram o sinal de que o ofício divino ia começar. Imediatamente a marinhagem flibusteira; disposta em pelotões desde a porta da câmara até ao castelo, ajoelhou num vivo tilintar de armas a que se seguiu profundo recolhimento só cortado pelo vago e cristalino marulho das ondas lambendo lá fora o costado em carícias espumosas e pelo ranger seco e áspero dos mastros e da cordoalha oscilantes.

O sacerdote, de pé, tomara posição colocando-se bem ao centro do altar, persignando-se e fazendo a devida reverência. Depois, numa meia volta silente em que os pés dir-se-ia não se haverem movido, e com um gesto moroso e trêmulo, o velho capelão voltou-se para a marinhagem genuflexa e para a proa, inclinou beatificamente a veneranda cabeça branca e murmurou as palavras iniciais da missa:

Introibo ad altare Dei...

E o som cavo e fúnebre do latim ritual, espalhando-se no convés onde a brisa marinha salmodiava nas enxárcias e pano, dava ao Falcão o ar solene e místico de urna estranha catedral flutuante que andasse a cruzar os mares do Novo Mundo, ensinando às gentes selvagens que o habitavam as grandes e luminosas verdades da Bíblia e as sublimidades transcendentes do Verbo Cristão.

A missa prosseguia porém. Terminara o Prefácio, começara a Elevação.

O padre punha as mãos muito alvas sobre a toalha do altar e fazendo as quatro genuflexões erguia já o cálice de ouro faiscante. O acólito começou logo a vibrar a campainha e imediatamente a equipagem, curvando submissamente a cabeça como ante a aparição do Senhor, rompeu a bater no peito com a mão direita, em pancadas ritmadas, num frouxo e leve movimento do braço encurvado.

Domine nom sum dignos, exclamava o sacerdote, levando a mão ao coração, em vagas e rápidas punhadas. E a campainha continuava a tilintar, numa sonoridade recolhida.

No entanto o sol, furfúreo e deslumbrante, tocava já o zênite vertendo os seus raios a prumo e arrastando sobre as águas, em revérbero cegante, uma ponta do seu imenso albornoz de louro beduíno do espaço, todo tecido de malhas fulvas de fogo e vidrilhações de diamantes. De vez em quando, nos longos e compassados balanços das bordas, nas caturradas espumosas que apartavam as ondas, a sua luz muito viva descia por entre as velas, vestindo todo o navio de panos de ouro fulgente que alastravam o castelo, o convés e o tombadilho, temperando de uma esparsa mornidão confortável a vaga gelidez do ambiente em torno.

O ofício divino ia porém a mais de meio. Era nas Orações. O capelão voltava-se para a proa, para o comandante e Mercedes, para os oficiais e marinheiros, e, abrindo os braços por momentos, lançava a tudo e a todos como uma alta bênção ungidora. Depois, unindo as mãos espalmadas, baixava os olhos docemente, murmurando:

Dominus vobiscum...

Quando a missa findou a companha ergueu-se e entrou a desfilar para a coberta. Mas o primeiro piloto, vindo até à porta da câmara, fez um sinal aos trombeteiros que buzinaram de pronto outra ordem. Imediatamente os tripulantes, à voz do contramestre, desfizeram a marcha, volvendo à primitiva forma.

O comandante do Falcão, que acabava de depor a campainha junto ao retábulo, acercou-se risonho de Mercedes e tomando-lhe a mão conduziu-a até ao altar, onde o sacerdote envergava já a estola para a celebração do consórcio do chefe flibusteiro. Vendo o que João d'Urville e Guilherme Reyd correram a reunir-se-lhes, postando-se o primeiro à esquerda de Afonso, o outro à direita da moça, cada qual empunhando uma das velas acesas do altar como paraninfo dos nubentes. E logo o velho capelão, abrindo um livro sagrado, pôs-se a recitar em voz alta o latim sonoro e severo dos antigos textos litúrgicos, consagrativos da solene e eternal união dos corações que se amam e dos espíritos que comungam no mesmo ideal de alevantamento e perfeição humana, terminando por uma larga síntese moral com que, em todo o orbe católico, a Igreja procura perenalizar indestrutivelmente o casamento. Depois, pegando as destras dos noivos sobrepô-las uma a outra ficando ambas unidas palma a palma, e envolvendo-as numa das pontas da estola, como formando o laço simbólico, pronunciou a fórmula ritual esponsalícia. Por fim, pousando sobre a cabeça dos cônjuges, num rápido gesto carinhoso, a sua mão fina e branca, disse em voz tremula e rouca:

— Sede felizes, meus filhos! Os vossos corações acham-se, doravante, unidos e abençoados para sempre perante o Senhor!...

A essas palavras Mercedes, subitamente tomada de emoção e quase a desmaiar, amparou-se ao sacerdote, com os olhos inundados de lágrimas, soluçando vivamente.

É que, naquele instante de suprema felicidade, lhe viera à lembrança, mais enternecedora e tocantemente então, a veneranda imagem de seu pai, que a adorava como louco, a quem decerto não tornaria a ver nunca mais, e que lá ficara, em Gibraltar, abandonado para sempre...

Afonso, a quem os pilotos abraçavam agora estreitamente, sentia-se dominado também por uma grande emoção: e, decerto pela vez primeira em sua vida, um pranto de sincero e ideal sentimento arrasou-lhe os olhos, descendo-lhe mansamente pelas faces...

Era pela uma hora. A um e outro bordo do brigue os canhões voltaram a troar, numa segunda salva de saudações ao dia festivo. Pelos paveses alçados e o alto dos mastaréus os galhardetes e bandeiras bulhavam e palpitavam mais intensamente então à fresca brisa marinha, lembrando, na profusão de suas cores e de seus angulosos feitios, um estranho bando de borboletas colossais que houvesse invadido de repente o navio, emaranhando-se e prendendo-se inesperadamente às largas malhas escuras da cordoalha erguida e que ansiasse agora, loucamente, por se desprender daquela triste prisão sobre o pélago e demandar alegremente as planuras risonhas e doces dos campos floridos. Os trombeteiros levaram à boca, outra vez, os seus longos cornetins de latão — e um hino entusiástico e triunfal, de inebriante alacridade guerreira, elevou-se e ficou a ecoar e a rolar longamente, nostalgicamente, por entre as velas e cabos, sobre o vago marulhar bonançoso das ondas espumando junto ao costado do brigue, e foi repercutir sobre os desertos páramos oceânicos até à orla nevoenta do horizonte longínquo.

Outra vez, fartamente, o rum forte da Jamaica e a aguardente do Brasil, esta pilhada entre a carga baldeada do galeão afundado nas águas vicentinas, ferveram nos púcaros de pau, lá para os recantos da proa e sobre o castelo do Falcão, onde uma plebeia e grossa algazarra estourava festinante. E a ré, entre os ornatos recobertos de galhardetes e bandeiras do elevado chapitéu, à sombra da vela grande, os velhos vinhos deliciosos de Xerez e de Málaga, da Martinica e de Alicante, em honra não só ao aniversário da Comunidade mas a Afonso e à esposa, de novo gloriosa e prazerosamente espumavam, transbordando as taças de ouro...

À noite, quando a lua surgiu no horizonte, a iluminar a infinita abóbada azul escura do céu com a sua luz de leite e neve, um fluido de eteral poesia começou de rolar sobre as ondas, envolvendo encantadoramente o brigue, cujos mastros oscilando no alto abriam os braços gigantescos das vergas para as velas amorosas, que os enlaçavam como noivas. A marinhagem saudosa, fundamente saturada do vivo esplendor do espaço, rompeu melancolicamente a cantar:

La noche hermosa se viene,

La noche hermosa se va,

Y nos otros nos iremos

Y no volveremos mas!

Afonso e Mercedes, que àquela hora vinham subindo da câmara num enlaçamento e numa idealidade, pararam um instante nos degraus da escada que levava ao tombadilho, embevecidos de repente pelo doce canto da maruja. Depois foram encostar-se à balaustrada de bombordo, sob as gáveas claras. E longo tempo ali ficaram aconchegados docemente, a contemplar o imenso zainfe luminoso da lua cobrindo tudo com as suas malhas de prata.

XIII

Após mais treze dias de bonançosa viagem, utilizados em grande parte na pesca abundante para se renovarem às provisões de bordo, novamente reapareceu à proa, como numa tela gigantesca, o branco penacho de nuvens que paira perpetuamente sobre os altos cumes eriçados da Trindade. O navio puxava rijo a um largo, a fim de alcançar com a maior rapidez o litoral surgindo já, lentamente, por entre a rebentação alvacenta. Ao longe, a Baía de Sueste, meio em calma sob o norte que soprava, refulgia intensamente à luz faiscante do sol inundando tudo de ouro.

O comandante flibusteiro lembrou-se então de saltar naquele ponto com uma escolta de marinheiros, seguindo dali com Mercedes para o Porto de Leste por uma espécie de caminho que descobrira numa das últimas explorações realizadas antes de partir para aquele cruzeiro. Assim o Falcão renovaria ali mesmo a aguada dos tanques para a viagem do Prata, desde muito planeada e que devia realizar-se dentro de seis dias, apenas se fizesse o desembarque do carregamento tomado ao galeão lusitano e se recorressem o casco e aparelho. Semelhante viagem era de toda a urgência visto calcular navegarem já naquelas alturas as naus espanholas de torna viagem ao Peru e ao Chile. Depois aproveitaria também o belo dia de inverno para mostrar a Mercedes os aspectos e cenografias estranhas daquela ilha vulcânica. E consultando a respeito à moça, que vinha a seu lado no tombadilho, mandou fazer proa à ponta norte da Baía de Sueste, onde se elevava nitidamente contra a massa sobreposta de basaltos escuros o rochedo vermelho do Monumento que, como um bloco poderoso e fantástico, domina todo esse lado da costa.

Em pouco o brigue ancorava e dadas as ordens para que, feita a aguada, seguisse direito à enseada do Entreposto, Afonso e Mercedes, acompanhados de um pelotão de doze homens, embarcaram na lancha que fora arriada e imediatamente zarpara em direitura à praia. A poucas braças de distância o capitão, no interesse em que estava de mostrar a esposa todas as curiosidades daquela parte da Trindade, mandou que o batel rumasse para o sítio das Grandes Crateras onde se observava distintamente, abertos na rocha viva, o vasto túnel carregado de estalactites e coberto de placas negras e rubras, cujo aspecto interior dava uma impressão alucinante. Nem a Idade Média, nas suas estranhezas e pesadelos do Inferno, sonhara jamais tão completa mise-en-scène. O mar encapelado e horroroso, reboando na imensa caverna, bramando, estrondando em mil trovões, exibia um espetáculo formidável, sobrenatural, inaudito. Havia, sob a arcaria ciclópica, secularmente cavada pelas ondas, como um delírio dos elementos em terrível conflagração...

Em presença de um tal quadro Mercedes empalideceu de repente, agarrando-se nervosamente a Afonso que ordenou o batel fosse abicar ao fundo da enseada, num ponto da costa onde branquejava uma minúscula faixa de areias. Aí desembarcaram ambos seguidos pela escolta de flibusteiros, entrando a subir as primeiras rochas acessíveis da espécie de estrada que levava ao Entreposto.

Então, como se a ilha lendária lhes quisesse proporcionar cenas contrastantes, depararam, logo adiante, com estreitas planícies e vales em que a relva, macia e virginal, revestia tudo como um vasto e primoroso tapete dos Gobelinos. Florestas de acácias, delicadas como vegetações ornamentais de jardim, estendiam-se pelas encostas, rivalizando em beleza com as corbeilles e bouquets de lindos fetos verdejantes e arbustos de folhas a rendas e crivos. Subitamente, quase sem transições que neutralizassem esta paisagem idílica e grácil, numa volta de quebrada de onde se avistavam de relance nesgas reluzentes de mar, penhascos enormes, de um negror de carvão, amontoavam-se em caos, ao acaso, a um e outros lado do caminho, como lavas remotas que eram de passadas erupções. E por toda essa zona sinistra de Averno a inaudita, desordenada e terrível cenografia de formação plutônica, a que formidandas forças geológicas haviam dado um aspecto branco e brutal, jamais visto, de violência e terror.

Mercedes, muito impressionada em meio dessa paisagem dantesca, animada tão somente por uma misérrima fauna de duas ou três espécies de anfíbios e aves aquáticas, e fatigada já do acidentado inconcebível e único de todo o terreno por onde pisava, quase não podia caminhar, sobretudo nos pontos em que as anfractuosidades e grotas a obrigavam a uma verdadeira dança de saltos contínuos e até arriscados, não só para avançar de pedra em pedra como para fugir às numerosas e monstruosas fileiras de tartarugas e caranguejos que agora surgiam de toda a parte, e as quais a guarnição flibusteira, seguindo à vanguarda, ia repelindo e devastando a golpes de chuço e lança. Afonso tomou-a então nos braços e carregou-a como uma criança...

Duas horas após chegavam todos ao planalto do outeiro do Porto de Leste, em cujo local, fechado por um semicírculo de altos penedos, se elevavam já, acabados na sua construção, a casa do governo e os quatro galpões do Entreposto.

Ao avistar o chefe flibusteiro, o mestre de obras, com o seu pessoal, prorrompeu em vivas, que eram correspondidos entusiasticamente pela escolta, e adiantando-se foi recebê-lo com todas as continências e honras, passando logo depois a narrar-lhe as ocorrências havidas durante a ausência do Falcão.

Nesse instante, fazendo a volta da enseada e ferrando velas, o brigue lançava ferro no ancoradouro em frente à pequena praia para onde dava a grande galeria subterrânea cujas obras estavam a concluir-se.

Conforme as ordens de Afonso, João d'Urville mandou logo abrir escotilhas e arriar as lanchas dando princípio à descarga, a fim de que o navio, ao outro dia, pela tarde, flutuasse mais leve, para se examinar a querena, a mastreação e o cintado, e sobretudo este porque, não obstante as grossas defensas de cabos, muito sofrera na abordagem, em o combate com a nau portuguesa.

Carregados os primeiros batéis, que iam abicar entre pedras, à entrada da galeria, perfeitamente disfarçada no acidentado da costa e cuja abóbada se abria na densa massa argilosa do outeiro, a marinhagem começou de arrumar os preciosos caixotes de ouro amoedado e em barra, mas de modo que se não pudesse confundir uma espécie com outra. Todo esse trabalho era feito no subterrâneo, à luz de grossos archotes de breu agitando-se no escuro como lâmpadas de mineiros.

Efetivamente, no outro dia à tarde, a descarga terminava, passando os tripulantes do Falcão a ocuparem-se exclusivamente com os serviços de bordo e os aprestos do próximo cruzeiro ao Prata...

Quatro dias depois, um domingo e dia de Santa Ana, o chefe flibusteiro mandando desembarcar a guarnição e reunindo um grande préstito, armado e aguerrido como para um combate, tendo à frente frei Ângelo (tal se chamava o sacerdote aprisionado a bordo do galeão) levando todos os paramentos para o ofício da missa — pôs-se a caminho do cimo de um monte de rocha que ficava ao fundo do Entreposto e onde o mestre do pessoal deixado na ilha dizia ter encontrado uma cruz de pedra com uma longa inscrição. O cortejo caminhava entoando preces e cânticos, ora pisando curtas nódoas de terra vegetal cobertas de ligeiros gramados e pequenas moitas de arbustos, ora galgando superposições caóticas de penedos que dificultavam e demoravam consideravelmente a avançada para o alto. Entretanto, duas horas depois, sobre uma alta rocha corcovada e revestida no viso de gravatás, orquídeas e líquens entrelaçados à densa e vasta trama inextricável de outros vegetais rasteiros, de uma altitude donde se dominava toda a planura sem fim do oceano, uma grande cruz negra apareceu abrindo os largos braços poderosos sob o velário azul da amplidão. Era toda construída de grossos blocos faceados de pedra, unidos por fortes pregaduras de cobre soldadas a estanho, e achava-se rijamente encravada entre uma fenda granítica que os fetos fechavam com o verde bordado miudinho da sua folhagem artística. E desde o tope ao supedâneo, afundado já na verdura, alastrava-se pelos amplos braços gigantescos o seguinte expressivo letreiro, em caracteres de bronze e num português antigo:

1506

EM NOME DEL-REI D. MANUEL

E DE

NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

EU

TRISTÃO DA CUNHA, CAPITÃO-MOR DA REAL FROTA

LUSITANA QUE SEGUE PARA A ÍNDIA

EM EXPLORAÇÕES OCEÂNICAS

E

EM SOCORRO

DE

D. FRANCISCO D'ALMEIDA

MANDEI LEVANTAR

ESTE

SANTO PADRÃO

PARA DESTE MODO ASSEGURAR

COMO DE RIGOROSA LEI E DIREITO

A

POSSE DESTA ILHA

PARA

A COROA PORTUGUESA

DEVENDO RESPEITÁ-LA E HAVÊ-LA COMO TAL

TODOS

Os

NAVEGANTES, E OUTROS QUE AQUI SURGIREM,

E DESEMBARCAREM, E FIZEREM AGUADA,

PERTENCENTES ÀS DEMAIS NAÇÕES

DO

ORBE

ASSIM AMIGAS COMO INIMIGAS.

Afonso e os oficiais, numa profunda admiração pelos estrondosos feitos e descobrimentos marítimos dos portugueses, entraram a examinar minuciosamente o colossal PADRÃO que não sabiam bem como pudera ter sido ali fabricado e plantado por Tristão da Cunha.

Frei Ângelo aproximou-se então da Cruz, a cabeça curvada, os olhos baixos no chão, ajoelhando e murmurando uma prece. O comandante e os pilotos, como os demais flibusteiros, imitaram-no logo, num profundo silêncio, só cortado pela grossa tuba sonorosa do Oceano espumando e rugindo, na sua luta titânica e incoercível, contra os costões da ilha. E, lançada a alva toalha de renda como os demais objetos do culto sobre uma das pedras que cercavam o augusto Símbolo Cristão, o sacerdote deu começo ao ofício divino numa solenidade a que aquela estranha natureza vulcânica dir-se-ia emprestar um aspecto sobrenatural e fantástico, apesar do esplendor do sol de inverno jorrando profusamente do azul numa poeirada de luz morna, fulva, palpitante.

Depois, antes de começar a retirada para as habitações do Entreposto, o velho padre entoou ainda à voz alta e em coro, juntamente com o chefe flibusteiro e os marinheiros presentes, o antigo e soleníssimo Hino à Cruz do tempo de Godofredo de Bulhão e cujo expressivo estribilho reboava melancólica e devotamente sobre os negros píncaros rochosos recortados em ponta:

Salve! Cruz imaculada,

Belo e sagrado pendão

Desta bendita Cruzada

Pela nossa salvação!

XIV

No outro dia, feita a aguada e dadas todas as providências para o caso possível do aparecimento de alguma frota portuguesa enviada a vindicar o combate de Santos durante o novo cruzeiro, o brigue levantou ferro, fez-se de vela por uma noite de plenilúnio, deixando à popa os rochedos negros da Trindade e a perpétua espumarada bramante da sua costa bravia.

Mercedes já se habituara à vida de bordo. Vivos toques de saúde, dessa plena saúde que dá o oceano, avivavam-lhe docemente o rosado leve das faces veludosas e delicadas, de um moreno de jambo. Com esses tons inefáveis de vida, toda a sua fisionomia adquirira também a particular mas característica expressão de ternura lânguida que é como um véu sutilíssimo denunciando os primeiros movimentos recônditos da maternidade. Por isso, agora, Afonso sentia por ela mais que os ardores de uma paixão, mais que os impulsos de um grande afeto sincero — a adoração serena e convicta de um místico ante uma imagem divina. Parecia-lhe até que na pessoa dela uma transfiguração ocorrera, e que ela era uma outra Mercedes, vista pela primeira vez, bem diferente decerto daquela a quem votava imenso amor! Ela própria, que conservara por muito tempo a emoção da noite inolvidável em que fora arrebatada do lar paterno para bordo daquele navio, via já recuado, como para um passado longínquo e quase extinto, o estranho acontecimento, sentindo-se presentemente numa existência feliz, posto que aventurosa e agitada ainda. Entretanto, no começo, que de vezes o capitão flibusteiro não a encontrara chorando no camarim! Interrogava-a então sobre o motivo do seu pranto e obtinha dela tão somente resposta vagas, evasivas, desculpas de medo do mar e de moléstias que podiam sobrevir-lhe ali, longe de terra e de todos os recursos. Mas ele sabia plenamente que essa não era a verdade, atribuindo aquelas tristezas ao abalo extraordinário produzido pelas agitações do meio rude e singular de bordo sobre uma vida que antes correra mansa e calma. Não raro a surpreendera, nessas ocasiões, a pronunciar, em sonhos, palavras exprimindo ideias pavorosas, que a faziam gemer, gritar, sacudir convulsamente os membros como para fugir a perigos iminentes: e tudo isso de tal modo que o obrigava a acordá-la, tomá-la nos braços e serená-la com carinhos... Atualmente, porém, semelhantes coisas haviam cessado. A Natureza pronunciara uma palavra de confidência à mulher, já mãe, e esse verbo misterioso e augusto pacificara o tumultuar de pensamentos á da jovem esposa. Um interesse supremo — o da perpetuação da espécie — tinha lançado a sua esperança solene. E assim o destino único da filha de D. Luís de Lara se fixara, sem relação quase com o passado perdido. Agora, por isso, começava ela de ligar todo interesse às coisas de bordo, acompanhando Afonso nos longos quartos sobre o tombadilho, mesmo nas ocasiões de borrascas, ou seguindo-o na fatura dos cálculos da navegação, dos rumos, da direção das correntes, de tudo...

Entanto, havia cerca de um mês que o Falcão velejava para o sudoeste, montando já as alturas do cabo Santa Maria.

Raiava a manhã de um dia sombrio e cinzento prometendo tormenta, quando de bordo se avistou uma goleta pairando ao longe, como uma gaivota sobre as ondas. O brigue, arvorando a bandeira espanhola, aproximou-se, numa bordada, da pequena embarcação. E arriada uma das lanchas que singrou rápida para ela, um punhado de flibusteiros galgou-lhe o convés caindo inopinadamente entre os tripulantes.

João d'Urville, que comandava esse assalto, interrogou então os oito homens da guarnição da goleta, os quais lhe informaram que vinham da pesca no alto mar. Havia cinco dias que andavam a rolar com ventos contrários em demanda das Flores, isto devido à lestada que caíra, uma madrugada, com grande nevoeiro arrastando-os para o sul, até à Patagônia onde se viram quase perdidos durante três noites. Mas o tempo amainara na véspera, e eles agora ali iam para a Cisplatina.

Mandado o mestre da goleta ao brigue à presença de Afonso, perguntou-lhe este se avistara acaso a frota castelhana de torna viagem do Pacífico. O homem respondeu-lhe que a deixara capeando, com a lestada dura, algumas milhas ao sul da baía Blanca. Compunha-se a armada de três navios — dois galeões e um bergantim redondo. Os galeões vinham muito metidos e, posto não trouxessem arvorados os pendões, lhes parecera as costumadas naus de Espanha procedentes da contracosta carregadas de ouro...

Substituída a tripulação da goleta, que ficara sob o comando do primeiro piloto, duas bombardeiras e quatro falconetes portugueses tomados no combate de Santos, foram nela montados ao convés e às bordas. E como os prisioneiros impetrassem do chefe flibusteiro a graça de voltarem à pátria, ele, num desses ímpetos de magnanimidade que o levavam às vezes a perdoar os vencidos quando estes se lhe entregavam sem resistência, ordenou a d'Urville largasse imediatamente, na goleta, para o litoral, desembarcando-os, a todos, em Maldonado ou no cabo Castilhos.

Prestamente, o esguio casco aparelhado à iate, aproando para oeste, cambou os latinos e largou à bolina afastando-se para além, para a barra recortada da costa velada de uma névoa de cinza...

Ao outro dia, o comandante flibusteiro, aproveitando o banzeiro de vagas que ainda reinava para experimentar a goleta em manobras de guerra, ocupou-se, de manhã à tarde, em constantes exercícios de artilharia, com simulacros de abordagem e assaltos entre os dois navios. À noite entrou a puxar todo para o sul, a fim de virar pela madrugada sobre o cabo Santo Antônio, à entrada do grande estuário platino.

Avistado o bravio promontório, como a frota castelhana não aparecesse ainda, o Falcão, velas brancas abertas e seguido da goleta, como enorme e estranho albatroz seguido duma gaivota, pôs-se a cruzar ameaçadoramente à boca do largo rio. E só se amarava daquela ronda de ave de rapina quando o pampeiro rugia e o horizonte dessas latitudes, negro e cheio de bulcões no inverno, se vincava num cordão lívido e sinistro, à silhueta instantânea e rútila dos relâmpagos e ao tumultuar do oceano espumante sublevado pelo ciclone...

XV

Dois dias e duas noites iam já consumidos, em bordadas incessantes para terra e para o largo, junto ao cabo Santo Antônio. O horizonte continuava torvo e carregado como no começo da semana. Mas, ao amanhecer do terceiro dia, o céu volveu a clarear, descobrindo inteiramente todo o quadrante de sul, onde se não avistava entretanto uma vela.

Afonso, que estava ao pé do leme e examinava a atmosfera e o oceano, como conhecedor daquelas latitudes por ele duas vezes sulcadas no inverno anterior, franziu o sobrolho à limpidez súbita da manhã e, numa desconfiança de marinheiro experimentado, voltando-se para o segundo piloto que estava a seu lado, disse:

— A frota espanhola não aparece e o pampeiro está a pintar. Daqui a momentos temos de passá-las boas...

Efetivamente, desde a meia-noite que o barômetro baixava começando agora de subir lentamente, e o vento, que soprava de nornordeste, remontara ao norte, com sinais de apontar de repente a oeste.

O brigue, que tinha a amura por boreste, cambou-a logo e deitou-se todo ao mar, para fugir à costa rasa e poder aguentar a tormenta. A goleta, além, a uma milha distante, lançou-se no mesmo rumo, tão alígera e leve que dir-se-ia mal roçava a crista alta das vagas, onde os seus brancos latinos palpitavam e voavam semelhantes às asas de uma protelaria gigantesca.

A esse tempo, como por encanto, o vento do norte calmara. Para os lados de terra, a atmosfera principiou de enegrecer ameaçadoramente, cobrindo-se de nuvens espessas avançando de oeste e enoitando lugubremente o horizonte, cortado já de relâmpagos abrindo-se de quando em quando em finos ziguezagues vermelhos. Todo o ar, de um azul-ferrete sinistro, fazia diminuir singularmente as distâncias, como se quisesse estreitar a goleta e o brigue num círculo dantesco. E o mar e o céu, cheios dessa serenidade profunda e característica que precede sempre o pampeiro, impunham a tudo um silêncio, inquietando a alma maruja, enchendo-a de um pesadelo. Em pouco, um uivo terrível, satânico, estalou no ar: e o vendaval arrasador e tremendo estourou sobre as águas, erguendo vagalhões colossais que ondulavam e fremiam espumosamente, como grandes montanhas líquidas.

O Falcão e a companheira, com o pano rizado e à capa fugiam agora mais furiosamente para o largo, arrepiados, desmantelados nas suas asas de lona, como grandes pássaros marinhos às rajadas formidandas do ciclone. Durante três dias correram ao tempo, em meio ao turbilhão, sobre os escarcéus bramantes. A chuva diluvial encobria tudo com os seus grossos nevoeiros, e o oceano em torno parecia sublevado pelas agitações geológicas dos primeiros tempos do Globo...

Ao alvorar do quarto dia, porém, o vento fixou-se ao sueste, e, descerrados os imensos nevoeiros que tudo encobriam sob as suas grossas pastas pardacentas, mar e céu apareceram, radiantes, banhados do sol glorioso.

Mercedes, que durante a borrasca não arredara pé do camarim, subiu para a tolda onde Afonso a esperava sorrindo, atacado numa longa japona e ainda metido nas suas grossas botas d'água, o largo sueste à cabeça. Era para ela, a primeira vez, depois que embarcara, que o brigue apanhava um pampeiro tornado logo em lestada. Tivera sempre grande medo do mar e até à memorável e agitadíssima noite — de vez em quando Intimamente relembrada com emoção — em que Afonso a arrebatara do solar, jamais conhecera o oceano a não ser em pequenos passeios de escaler, uma ou outra vez, pelas águas espelhadas da rade de Gibraltar, no manso lago de Maracaibo. Fora por esse motivo que o pai renunciara voltar à Espanha, como era seu desejo, logo após ao falecimento da esposa. Mal sabia então Mercedes que, alguns anos depois, a sua paixão por aquele que era agora seu marido, a levaria a viver em longas e constantes viagens, dentro de um frágil casco de navio, sobre as ondas revoltas. E agora, passada a tormenta, curiosa de contemplar o oceano, correu à amurada debruçando-se aos balaústres. Quedou-se aí muito tempo a ver as vagas rolarem, ainda com vivo atropelo e coroadas de altas cristas de espumas, na infinita imensidade líquida. E sorria alegremente, os negros olhos inefáveis perdidos além, na linha erma e saudosa do horizonte onde as nuvens que, como tétricos sudários se haviam adensado pavorosamente em torno à goleta e ao Falcão durante o tempo do ciclone, revestiam, ao momento presente, os rosados esplêndidos que ora lhe davam os primeiros clarões do sol nascente.

Pelos cálculos do capitão e de seus imediatos o brigue e a goleta deviam achar-se mais ou menos a oitenta milhas da costa, e como o vento era largo, soltaram todo o pano, puxando vigorosamente para o estuário do Prata. Então, as duas quilhas flibusteiras, como duas grandes aves marinhas, gáveas e latinos inflados, inclinaram submissamente as bordas ao vento propício, voando velozmente nas vagas. Todo o dia correram assim. À noite, como estavam muito ao sul, guinaram ao noroeste sob a alta abóbada do firmamento feéricamente recamada de flamejantes, tremeluzentes rosários de astros. E ao festivo alvorecer da manhã seguinte cambaram amura para oeste onde, ao surgir radiantíssimo e magnificente do sol, o litoral se mostrou numa vasta linha azulada correndo do nordeste ao sudoeste.

Outra vez, o cabo Santo Antônio foi marcado de bordo na sua língua de areias; e os dois navios entraram a pairar sobre velas em observação às águas, ocupando-se as guarnições em experimentar e acionar a artilharia. E mais um dia se passou sem que fosse vista a armada espanhola. Mas no outro — belo dia radiante e sem nuvens — começaram finalmente de assomar no horizonte, ao sul, três pequenas manchas brancas que imediatamente se reconheceu serem as velas inimigas. Os gajeiros que primeiro as avistaram dos topes dos mastaréus e dos cestos de gávea, gritaram rijo para a popa:

— Uma frota à vista! Duas naus e um bergantim... E mareiam para cá a todo o pano!...

O comandante flibusteiro mandou logo rumar ao sul fazendo sinal à goleta para que o seguisse, enquanto ao castelo e às bordas de ambas estas embarcações a marinhagem alertada, sempre sôfrega de combate e pilhagem, se agitava já no alvoroço e no arrebatamento da primeira investida.

Mas Reyd, a uma ordem de Afonso, chamou marujos a postos, mandando içar a bandeira de Castela e mascarar as baterias. E o pavilhão escarlate e ouro que, com o pavilhão azul e branco das Quinas, dominava ainda gloriosa e universalmente os Mares, tremulou quase ao mesmo tempo na alta carangueja do brigue e à mezena da goleta. Quando os cascos flibusteiros chegaram mais ou menos a seis milhas da frota espanhola, de bordo de uma das naus desta, como de costume, os chamaram à fala. Obedecendo de pronto, brigue e goleta orçaram para o inimigo com as amuras a beijar. Já no convés e coberta de ambos a artilharia, de antemão bem disposta e guarnecida, era convenientemente conteirada para as primeiras bombardadas. E assim, apenas o Falcão teve ao alcance de tiro o galeão capitânia que era o navio testa, despejou-lhe as bombardas e berços numa só canhonada, ao mesmo tempo que d'Urville, na goleta, investia como um raio à outra nau, que pairava a milha e meia somente, tendo muito distanciado pela popa o bergantim redondo que, desgarrado da esquadra desde a véspera à noite, velejava agora velozmente para vante.

No entanto, à tolda e convés da capitânia espanhola, onde a guarnição se apinhava, o imprevisto do ataque inimigo levara tamanha confusão e pânico que a maior parte dos tripulantes correra a ocultar-se nos castelos e cobertas, sob o ruir esmagador do mastro grande que uma fala derrubara. Mas seu comandante em chefe — velho almirante veterano de batalha das Dunas e da tomada de Gravelina e Dunquerque — de pé sobre o chapitéu, cercado da oficialidade, reconhecendo que os dois pequenos navios agressores não eram da sua nacionalidade, nem portugueses como lhes parecera a princípio, mas flibusteiros, pois que claramente pertenciam a esses Demônios do Mar, nome por que tais corsários eram conhecidos na Espanha; o comandante em chefe, concitando leoninamente a sua gente à resistência suprema embora houvessem de perecer todos, energicamente procurava ganhar barlavento ao brigue inimigo para lhe despejar em cima os seus sessenta canhões. O galeão porém, totalmente atravancado no convés e amuradas pelo pano, mastaréu, vergas e cabos do mastro quebrado, já com cerca de trinta homens mortos e muitos mais feridos, mentiu absolutamente à manobra e ficou a boiar, inútil, inerte, desarvorado, vencido.

Afonso que, empenhado o combate, se transfigurava num terrível demônio, ubíquo e poderosamente ardiloso, dominando tudo, vendo que o navio-chefe castelhano nada mais poderia fazer ferido de morte como estava, mandou arriar prestamente um batel, logo guarnecido por homens bem armados, e determinou a Reyd largasse a assaltar e tomar o galeão em desastre; e como, ao instante, d'Urville, com o seu admirável denodo, já houvesse abordado a outra nau invadindo-a com um pujante pelotão de marinheiros — atirou-se ele, comandante, numa bordada veemente contra o bergantim que, alcançado e posto a sotavento, foi metralhado em cheio. O capitão do bergantim repostou-lhe em seguida, dando o bordo e despejando toda a pequena e grossa artilharia. E o combate engajou-se...

A bordo do Falcão, agora, as balas choviam numa nuvem de estilhaços de elos de correntes, pregos e miudinhos fragmentos de ferro. As bordas falsas foram para logo varadas tendo, em certos pontos, a mesa das malaguetas e corrimãos partidos. E por toda a parte, de popa à proa, corpos estendidos no meio de grossas poças de sangue manchando tragicamente de rubro as amuradas e os trincanizes.

Mercedes, que desde o começo do ataque recolhera à câmara em companhia de frei Ângelo, ajoelhada com ele ante a imagem da Senhora dos Navegantes resplandecendo à luz frouxa da grande lâmpada de prata no seu nicho de ramagens filetadas de ouro, acompanhava, nervosa e tremulamente, as preces entoadas em voz alta pelo sacerdote para a cessação do combate. E era assim que, por vezes, o murmúrio triste e implorativo das orações escapando-se pelas frinchas e vigias, vinha casar-se vagamente, no convés e na tolda, aos plangentes gemidos dos feridos e ao desolante estertor dos moribundos, em meio ao horríssono trovejar da artilharia e ao rumor dos balanços sacudindo de tal modo o navio que este dir-se-ia estar prestes a submergir-se...

Mas de parte a parte ainda a luta recrudescia, no estampido contínuo das bombardas cruzando-se entre os dois brigues: Novelos de fumo alvadio flutuavam em torno ocultando as perspectivas e os cascos inimigos que se procuravam raivosamente, em manobras seguidas, descarregando as bocas-de-fogo já a bem dizer ao acaso, às apalpadelas, às cegas, apenas na direção presumida. E a batalha prolongava-se, ainda meio indecisa...

Afonso então, enfurecido pelas grandes perdas e estragos recebidos e pela tenaz resistência inimiga, resolveu tentar um golpe supremo contra o bergantim, embora arriscando consideravelmente o brigue; e, fazendo evoluir o Falcão numa manobra súbita e violenta, fendeu vivo sobre o outro navio enfiando-lhe o gurupés entre a enxárcia de proa. Ato contínuo, à frente de um pelotão de flibusteiros, saltou-lhe ao convés, levando tudo por diante como uma avalancha irresistível.

O capitão espanhol, que esperava já a abordagem, correu a contrastá-la com todos os seus, à arma branca e à pistola. E fechou-se encarniçadíssima luta peito a peito, ao sinistro faiscar e tinir das machadinhas e lanças, ao fremente e contínuo espocar das espingardas e bacamartes, no meio do torvelinho e vandalisco sabbath de corpos entrechocando-se e caindo sobre o convés e contra as amuradas. Mas a esmagadora fúria flibusteira era insuperável e a guarnição do bergantim foi, afinal, obrigada a abandonar tudo em cima e barafustar, pelas escotilhas, para o porão e cobertas. Aí então, como nas baterias, uma tremenda chacina entrou a devastar ferozmente a brava mas infeliz marinhagem adversa, juncando tudo de cadáveres como numa hecatombe monstruosa ou num terrível cataclismo. Momentos depois Afonso, apenas com meia dúzia de homens, pois os demais haviam perecido já, ressurgiu na tolda, o gesto inflamado e desvairado ainda do calor da refrega, as vestes em desalinho, as penas do gorro quebradas, as mãos e a espada embebidas em sangue, bradando num triunfo sinistro:

— Viva a gloriosa Comunidade do Mar das Antilhas! Viva o Entreposto da Trindade! Vivam os heróis do combate de Santos e das águas platinas!...

Os seis marujos que o seguiam, tintos também de sangue, os uniformes rasgados, o olhar louco de assassinos, repetiam em coro os mesmos vivas, numa grita atroadora.

E logo do Falcão, que se desprendera do bergantim com o gurupés despedaçado, os estais correspondentes rojando soltos nas ondas e a roda de proa cheia de avarias — um batel largou a toda força de remos a buscar o comandante flibusteiro e a sua gente a bordo da quilha vencida...

Já a esse tempo os dois pilotos, com os galeões e toda a maruja que os tripulava apresados, rumavam ao encontro do brigue — um no seu batel de dez remos, o outro na sua goleta veleira.

Rapidamente distribuída uma força flibusteira pelas duas naus, cujo almirante e oficialidade sobreviventes se haviam submetido arriando bandeiras, Afonso, outra vez sobre o chapitéu do Falcão, mandou estaiar o mastro de proa contra o molinete e, improvisando um comboio com os quatro cascos como estavam, largou velas para o norte em demanda do Entreposto...

Cerrara a noite densamente, desdobrando no alto azul muito límpido do espaço, sobre a infinita planura oceânica, o seu imenso e prateado velário de estrelas, onde se destacavam nitidamente as imponentes constelações do Cruzeiro e do Escorpião. Uma grande melancolia pesava, com a treva, sobre a alma esmagada de vencidos e vencedores — de uns pela humilhante posição de prisioneiros a que se viam reduzidos, de outros porque aquela vitória custara dezenas e dezenas de vidas. Em todos os navios a marinhagem, repousando ao castelo ou debruçada nas bordas, enquanto os feridos gemiam dolorosamente nas cobertas sob as amputações e curativos que lhes faziam os cirurgiões e enfermeiros castelhanos, chorava, piedosamente os numerosos camaradas mortos. E à popa do Falcão, tendo Mercedes a seu lado, o próprio chefe flibusteiro, apesar do seu rígido e inflexível temperamento já tão longamente afeito à trucidação e à chacina, experimentava também uma vaga amargura e tristeza, principalmente agora que, para ré muitas milhas, ao vento fresco que começava a soprar de sueste, um incêndio se erguera a bordo do fumacento casco abandonado do bergantim, tão intenso e duradouro que ficou a iluminar por muitas horas a noite e as ondas com a enorme coluna nostálgica das suas chamas sanguíneas...

XVI

Quinze dias depois, numa manhã fria e nevoenta, a frota, a cuja frente vogava o Falcão, impelida pelo sueste, pairava em águas de Santa Catarina, na altura do Arvoredo, em demanda da barra do norte. Desde que largara do cabo Santo Antônio uma doce aragem do sul acompanhara-a até Maldonado onde se declarou em lestada desfeita com aguaceiros furibundos, obrigando-a a capear durante uma semana, em luta incessante com as vagas revoltas que o vento furiosamente empolava transformando-as em verdadeiras serras de espuma.

Haviam sido dias e noites seguidos de pesadíssima faina para a companha flibusteira e para a castelhana que, ainda bem se não tinham refeito de um combate que as exaurira arrebatando-lhes dezenas de vidas, já se viam de novo engajados com outro não menos terrível. Agravara ainda a situação a correntada violenta lançando-se para o norte com uma velocidade de mais de três milhas, atirada rijamente contra o litoral pelas ondas sacudidas de leste, o que obrigara os navios a forcejarem todos para o largo contra o naufrágio iminente, então milagrosamente evitado. E assim a maior força da tormenta pegara-os no pior ponto da costa, entre o Albardão e Santa Marta. Fora por isso que, ao terceiro ou quarto dia, o chefe flibusteiro tomara a resolução de arribar a qualquer abra ou calheta de Santa Catarina pois a presa principal, que partira o mastro grande durante a batalha e onde vinha a melhor parte da preciosa carga, ameaçava soçobrar às novas avarias trazidas pela borrasca. Mas nesse dia a água, no porão, marcava já palmo e meio e o imenso albatroz do oceano, ferido nas obras vivas, parecia a cada instante afundar-se...

No entanto o mar amainava pouco a pouco e o Falcão, à testa da fila velejante, puxava forte para a ponta do Rapa que já se debuxava vagamente à proa, a menos de vinte milhas. E o velho galeão penosamente se arrastava, num derradeiro arranco de flutuação, sob as lufadas propícias do sueste.

A essa hora o extremo setentrional da ilha catarinense e a orla do continente fronteiro acentuavam-se mais e mais, nas suas chanfraduras e bojos, ao desfazer da neblina. Os quatro navios, tendo o brigue sempre à frente, investiam intrepidamente à barra. Ao convés e à tolda, ao castelo e às amuradas de cada um, oficiais e marinheiros curiosos exultavam, sob a brancura das velas, à luz hilariante do sol que escalava triunfalmente o zênite, inundando terra e mar de raios fulgentes.

Já o Falcão começava a transpor a larga entrada de três milhas que se abre entre o Arvoredo e o Rapa; à sua esteira seguia a goleta, toda inclinada a um bordo sob os dois latinos altos; mais à ré, separada apenas quatro amarras, velejava uma das naus; e, ainda mais afastado nas águas, o galeão de água aberta, com a mastreação desmantelada, o casco metido até ao verdugo, a arrastar-se invalidamente, soçobrante e às guinadas — velha quilha moribunda buscando um sepulcro seguro no seio plácido das abras!

Montada a ponta do Rapa levantando-se a bombordo com as suas rochas escuras e as suas matas no alto, o brigue entrou a bordejar para ganhar Canavieiras, em cuja esplêndida enseada devia fundear toda a esquadra. Em bordadas para leste e oeste, contra o vento dando agora de proa, o comboio buscava alcançar quanto antes o surgidouro seguro da ilhota dos Franceses, singrando já em águas da baía do Norte que fica entre o continente catarinense e a formosa Juriré-mirim dos selvagens ou Ilhas dos Patos de Pero Lopes de Sousa, irmão e lugar-tenente de Martim Afonso de Sousa, e donatário indiferente e indeciso dessa grande joia preciosa da abandonada mas risonha e feliz Terra de Sant'Ana ou Capitania de Santo Amaro.

Afonso, ao cata-vento, observando demoradamente todos os recantos do magnífico golfo, sem dúvida alguma o melhor porto do Brasil ao sul do Rio de Janeiro, dizia a Guilherme Reyd:

— Eis aqui pois a bonançosa e excelente baía onde ancorou Juan Dias de Solis em 1515, quando descobriu esta ilha de Santa Catarina. E todas estas águas ele as denominou de Puerto de los Perdidos, por aqui se terem extraviado ou desertado, à hora da partida, alguns tripulantes dos seus navios...

Em pouco o navio-chefe e os três outros cascos que o seguiam ferravam pano e arriavam amarras meia milha ao norte da ilhota dos Franceses, em frente ao Canto das Pedras em cuja praia, remansosa ao momento, foi imediatamente encalhado, para fugir à total submersão, o velho galeão espanhol.

A tarde, sentados junto à gaiuta no amplo chapitéu do Falcão, Afonso e Mercedes, muito unidos e felizes no grande afeto que os ligava, fruíam ideal e embevecidamente os encantos da terra catarinense, assim continental como insular, às radiações caleidoscópicas de um esplêndido poente.

A essa hora o sol afundava-se por traz das montanhas de oeste. As águas da enseada, serenas, no embate do sueste, tinham uma baça resplandecência de zinco, orladas de fitas de espuma contra as pontas penhascosas onde as ondas quebravam num rumor grosso, longínquo. A pequena distância, à proa, a ilhota dos Franceses, com as suas rochas e pequenas colinas donde se erguiam tufos densos e rendados de vegetação, fazia como um imenso alto relevo pinturesco de lã sobre a azul e espelhante talagarça das águas. Longe, na costa fronteira, as serras da terra firme destacavam nitidamente, como infinita e túmida muralha de safira em recorte, contra o campo de açafrão luminoso da luz vesperal. Para o sul o promontório da Ponta Grossa alteava-se, com os seus penedos cor de sépia, sobre a língua extensa e arenosa do Pontal que uma foz de pequeno rio ou estreito braço de mar insignificantemente cindia do Ratón Grande, e ainda outra faixa de águas mais larga separava do ilhéu de Anhatomirim que, já muito achegado ao continente, se fundia inteiramente aos montes da outra banda. Desse lado, para o norte, viam-se as belas e sucessivas chanfraduras da costa abrindo-se em vastos sacos abrigados e povoados de verdejantes ilhotes que iam perder-se paisagisticamente ao largo, já na linha rasa e nostálgica do mar alto. Do outro lado, pela Armação e pela ponta do Rapa, o intérmino desenrolar do ermo horizonte a leste esbatendo-se contra o céu azul-ferrete onde, frouxamente ainda e em contraste com a iluminação esmorecente e de ouro do ocaso, começava a tremeluzir as primeiras estrelas...

Mas ao castelo do Falcão, como ao das outras naves, as trombetas entraram a ressoar no toque triste de Trindades. E logo os tripulantes puseram-se a estender as camas de lona sob o bico de proa ou as cobertas, enquanto os moços de convés à meia-nau entoavam nostalgicamente a oração da noite:

Bendita seja a hora

Em que Deus nasceu,

Santa Maria que o gerou

E S. João que o batizou.

Em seguida as guarnições ajoelharam no convés, recitando em coro e numa melopeia plangente e monótona o Padre-Nosso, a Ave Maria, a Saudação.

— Boas-noites camaradas! gritaram então os comandantes à sua gente.

— Boas-noites, em nome do Senhor! respondeu, a uma, a marujada em todas as embarcações.

A treva já ia fechada de todo. E em cada um dos navios ardia agora o farolim das veladas noturnas, suspenso à popa, vigiando as águas em torno com a sua rútila retina escarlate que se refletia nas ondas em longo e tremulante rastilho de sangue.

XVII

No outro dia, ao toque da alvorada a bordo do  brigue capitânia, Afonso surgiu no tombadilho onde, instantes depois, se apresentavam a receber ordens os dois pilotos, d'Urville e Reyd. O chefe flibusteiro não tencionava demorar-se naquele porto de arribada mais que o tempo indispensável à renovação da aguada, baldeação do carregamento das naus para o Falcão e a goleta, e pagamento às guarnições flibusteiras o qual, segundo as instruções dadas pelo chefe da Comunidade, devia sempre efetuar-se, pontualmente, de seis em seis meses. Além disso, urgente era regressar à Trindade a fim de reprimir qualquer ataque à ilha por forças portuguesas, visto já haver recolhido ao Reino a frota encontrada à barra do Rio de Janeiro no cruzeiro anterior, a qual decerto levara ao infante Dom Pedro (há dois anos regente desde a deposição de Afonso VI) a má nova do aprisionamento do galeão do quinto e da ocupação da pequenina ilha brasílica perdida no seio alto do Atlântico. Por isso o comandante determinara esses trabalhos começassem apenas rompesse a manhã.

Efetivamente, logo que se lhe apresentaram os dois pilotos, mandou formar a guarnição do brigue e, com o ouro amoedado que fora retirado de um dos galeões, iniciou o pagamento geral presidindo ele próprio à entrega dos quinhões, feita pelo contramestre à vista de uma lista organizada de antemão por d'Urville. Pagos com a maior equidade todos os tripulantes, separada religiosamente a importância que teria de ser entregue aos herdeiros dos que haviam perecido nos últimos combates, e recolhida ao cofre forte do navio a quantia restante — a equipagem flibusteira correu à faina da aguada e da baldeação dos carregamentos...

Uma semana depois, findo de todo o transporte da carga da nau de linha para os navios flibusteiros, Afonso, em cumprimento aos instantes pedidos de Mercedes e levado pelos seus próprios impulsos de magnanimidade, resolveu restituir a liberdade aos prisioneiros e fazê-los repatriarem-se. Nesse sentido expediu imediatamente todas as ordens.

Assim, nessa mesma manhã, oficiais e marinheiros sobreviventes da esquadra castelhana deixando os seus dois barcos compareciam todos a bordo do Falcão, estendendo-se em várias linhas de formatura sobre a larga tolda onde já os esperava Afonso. Aí, a uma ordem deste, o segundo-piloto Reyd sacando de uma longa folha de papel de Holanda, procedeu à chamada nominal dos prisioneiros, a quem o contramestre do brigue ia logo fazendo entrega de um certo número de moedas de ouro proporcional à patente de cada um... Esta cerimônia terminou à meia-tarde, justamente ao instante em que a nau menor, na qual deviam repatriar-se os prisioneiros, acabava de atracar ao Falcão.

Antes porém de ordenar o embarque à marinhagem espanhola — que desde a véspera já era de tudo sabedora e se sentia verdadeiramente pasma de tamanha generosidade entre flibusteiros — Afonso voltou-se para ela, ergueu a cabeça e disse:

— Em nome da Comunidade do Mar das Antilhas eu vos poupei a vida a todos, quando fostes feitos prisioneiros no combate do cabo Santo Antônio! Em nome dessa mesma Comunidade vos ofereço agora esses quinhões, concedendo-vos ao mesmo tempo a liberdade! Podeis, portanto, regressar à pátria na vossa própria nau de linha que ainda se acha em condições de navegar! E quando fordes de novo entre os vossos, dizei-lhes que no coração dos Irmãos da Costa ou dos “Demônios do Mar”, como vós outros costumais chamar-nos, existe ainda honra, religião e magnanimidade!!...

O almirante espanhol, velho marinheiro de alta estatura e longas barbas brancas, deixando então a fileira da vanguarda a cuja frente se achava, deu um passo para o comandante flibusteiro e, de cabeça erguida mas os olhos úmidos de emoção, apertou-lhe as mãos longamente e murmurou com nobreza:

Gracias vos sêan señor Capitan, por Diós e por D. Carlos II de Espana!...

E logo as trombetas soaram tocando a embarque.

Imediatamente o almirante, oficiais e marinheiros vencidos tomaram o caminho do portaló transbordando-se para a sua nau, onde já haviam sidos embarcados os quinhões, os sobresselentes, a aguada e o rancho indispensáveis à viagem. E daí a horas, em seguida a uma grande continência de guerra ao Falcão, o velho casco alteroso largava velas e rumava, barra fora, em demanda da Espanha...

O resto da tarde até à noite quase toda a guarnição flibusteira se ocupou no prosseguimento da baldeação da carga do galeão desmantelado para os seus dois navios. Semelhante faina prolongou-se ainda pelo dia seguinte até ao meio-dia, ficando o brigue e a goleta atestado até às escotilhas e ainda com numerosos volumes sobre o convés e às cobertas, por não caberem mais nos porões.

Nesse dia, Afonso e Mercedes, apenas a tarefa da carga terminou, tomaram um dos escaleres de bordo e baixaram à terra. Levavam-nos a essa pequena excursão a pitoresca paisagem local, o interesse delicado e artístico de coletarem alguns espécimes das esplêndidas orquídeas da ilha catarinense e a maneira lhana e quase fraternal por que os acolheram os habitantes do sítio, portugueses e espanhóis, e índios da mansa tribo dos Carijós, que cercavam os navios desde o primeiro dia a trocarem por chocalhos, fitas e miçangas, batatas doces, canas de açúcar, ananases, carne de capivara e galinhas, de que levavam carregadas as suas ligeiras e esguias pirogas.

Acompanhados de frei Ângelo e de uma escolta de marinheiros armados, o comandante e a esposa lançaram-se praia acima, internando-se até uns morretes próximos a cuja encosta se estendiam, rareadas e misérrimas, as grosseiras e mal acabadas choupanas de palha do então iniciante povoado de Canavieiras. Misérrimas eram na verdade tais choupanas, mas tão somente no que dizia respeito à sua construção, de ramos de árvores acumulados ao acaso e de pau a pique mal barreado, onde as frequentíssimas fendas que a torreira do sol abrira, logo em começo, na argila ainda fresca e mole, ressequindo-a e atorroando-a excessivamente, deixavam a luz do dia ou as fitas de ouro do sol, e os ventos, e as chuvas, atravessá-la de lado a lado, peneiradamente, como por um estranho crivo. No mais essas primitivas habitações tinham um grande pitoresco e encantavam pelos seus pequeninos mas bem cuidados jardins, ostentando-se ali, sobre o terrapleno dos barrosos e vermelhos terreiros em carrapitos, com o artístico, fino, grácil, doce, carinhoso, transcendente, emocionante e nobre cuidado da floricultura holandesa, única, célebre e incomparável então em todo o mundo.

Mercedes, que era louca por flores, ficou de súbito fascinada, principalmente pelos deliciosos cravos e rosas que, em densíssimos maciços colossais, erguiam para o azul a louçania feérica das suas pétalas recortadas, aromais e coloridas. Como desejaria obter deles umas “mudas” para as plantar na Trindade! E revelando o seu desejo a Afonso, este fez partir imediatamente quatro marujos flibusteiros a pedirem ou comprarem pelas casas canavieirenses “mudas” de cravos e rosas dos seus formosos jardins.

Apenas o comandante do Falcão e seu séquito foram pressentidos pelos habitantes, no terreiro ou à porta de cada uma dessas cabanas, homens, mulheres e crianças assomaram, curiosas, a olharem aqueles forasteiros cheios de armas com admiração e terror ao mesmo tempo, lembrando-se das truculentas depredações e violências que lhes haviam sido feitas — eram apenas decorridos seis anos — pelo corsário flamengo Roberto Lewis quando este voltara a desforrar-se da derrota que lhe infligira meses antes, ali, naquela mesma praia de Canavieiras, Francisco Dias Velho Monteiro, o abastado agricultor vicentista, fundador da vila do Desterro e primeiro colonizador e povoador europoide das terras de Santa Catarina, a quem aquele pirata aprisionara e assassinara com a sua desenfreada maruja, na própria igreja da povoação, assaltando e devastando tudo, de surpresa, pela calada de certa noite do ano de 1663...

Não obstante esse receio dos colonos canavieirenses, muito deles, que já conheciam Afonso e toda a sua companha por terem estado várias vezes a bordo do Falcão e da goleta, correram ao seu encontro trazendo consigo as esposas e os filhos. Os brancos foram os primeiros a acercarem-se do chefe flibusteiro e de Mercedes, falando-lhes em português e castelhano, mas num português e castelhano rudes e já adulterados, meio primitivos e selvagens, mesclados de vocábulos guaranis, compreensíveis entretanto aos flibusteiros que lhes respondiam em puro castelhano pela boca do seu jovem capitão. Dois pretos magros e altos, parecendo cabindas ou moçambiques, e uns vinte índios entre homens e mulheres, vieram após.

Trocadas as primeiras saudações, um velho, que parecia o patriarca de toda aquela gente, fisionomia veneranda posto que plebeia, longos cabelos e longas barbas brancas, colossal de porte embora já curvado e trêmulo pelos seus noventa e tantos anos de idade, amparado a um forte bordão de cambuatá surgiu de repente na estrada dentre um denso moital de bananeiras que sussurravam ao vento e veio apertar a mão de Afonso e da moça, convidando-os e aos demais da comitiva para descansarem um pouco no seu tugúrio, a algumas braças adiante. O capitão e Mercedes acederam logo encaminhando-se para a choça mais perto, onde lhes serviram aipi e milho cozidos, frutas, rapadura e melado, narrando-lhe o ancião á história do seu povoado:

— Todos os que ali viviam e ali tinham nascido — dizia — à exceção, está bem visto, dos naturais, descendiam, como ele, dos tripulantes das frotas de Solis, de Caboto, de Diogo Garcia, de Álvaro Nunes Cabeza de Vacca e de Martim Afonso de Sousa que se tinham deixado ficar em terra ou desertado à partida desses navios, e também eram provenientes de outros que de vez em quando àquelas paragens aportavam vindos da Capitania de São Vicente. Entretanto ia já para vinte anos que nenhuma grande armada de Portugal ou de Espanha ancorava nessas águas. E se não fossem os vicentistas, e sobretudo o bom e santo Francisco Dias Velho Monteiro, de venerável e abençoada memória, todas aquelas terras do continente e da ilha de Santa Catarina estariam ainda por povoar e no, maior abandono. De certo el-Rei de Portugal não sabia bem o que ali tinha: uma terra linda, rica, como não havia...    

Assim que o velho cessou, o bardo público do local, um homem ainda moço, delgado e alto, duma fisionomia inteligente, risonha e rústica, cabelos e barbas longos e encaracolados recordando vagamente um antigo trovador provençal, saiu para o meio do pequenino cômodo de chão de terra batida da mansarda e, afinando rapidamente um tosco machete que trazia consigo, obra de sua própria habilidade e fatura, pôs-se a cantar com voz rouca e áspera, mas numa certa melodia amorosa o rimance de Bernal-Francês:       

— “Quem bate à minha porta,

Quem bate, oh! quem está aí?”

— “Sou Bernal-Francês, senhora;

Vossa porta, amor, abri...”

Nesse instante chegavam os quatro marinheiros flibusteiros carregados de “mudas” de cravos e rosas que bastante alegraram Mercedes, já de resto muitíssimo deliciada daquela excursão. O velho quis ainda organizar umas características danças de roça e mandar o Bardo cantar mais algum rimance medievo para melhor obsequiar os seus hóspedes. Mas o sol descambava e a primeira sombra do crepúsculo começava de encinzar os montes a leste.  

Afonso ergueu-se então com Mercedes seguido por todo o cortejo, prometendo àquela pobre gente lhes mandaria de bordo, na manhã seguinte, fumo, pano de algodão, alguns mosquetes e pólvora, e instrumentos de pesca. E como frei Ângelo, que soubera existir a poucas quadras dali uma capela de tábuas sobre um outeiro junto ao mar, mostrasse grande desejo de ir orar um momento ao pequenino templo, o que de resto era também empenho de Mercedes ― Afonso, acompanhado da escolta, dos colonos e dos índios, para lá se dirigiu.

Chegados ao alto aludido outeiro defrontando a ilhota dos Franceses e de onde se avistaram o brigue, a goleta e o galeão desmantelado cujo casco se achava já na maior parte em seco e destacava colossalmente na praia, entraram todos na ermida onde não havia uma só imagem, em registro ou em vulto, mas tosca e grande cruz de madeira sobre uma espécie de altar feito de grossos toros. A ermida era consagrada a São Francisco de Paula por assim se denominar a nau da capitânia da esquadra de Martim Afonso de Sousa que por ali passara e estivera fundeada durante alguns dias, em 1531, na sua viagem de exploração e reconhecimento à costa até ao Rio da Prata, e que, à maneira como procedera desde que Lisboa aportara ao cabo Santo Agostinho e viera descendo para o sul ao longo e soberbo litoral brasileiro, denominara a ilha Santa Catarina por haver avistado e abordado no dia 25 de novembro, em que a Igreja apoteosa a virgem e mártir Santa Catarina. Com o chefe e frei Ângelo à frente o pequeno cortejo ajoelhou alguns momentos em oração...

Quando deixaram a ermida já a noite cerrara, límpida e fresca, toda alastrada da incomparável e radiosa florescência de ouro dos astros. Os marinheiros da escolta acenderam então grossos fachos de breu que levavam entre as armas: e acompanhados ainda pelos colonos e os índios, Afonso, Mercedes e o sacerdote, de regresso para bordo, entraram a descer o outeiro por um atalho sinuoso e agreste que ia justamente findar ao porto de embarque.

No outro dia, cedo, após haver distribuído como prometera pelos habitantes de Canavieiras fumo, pano de algodão, armas e instrumentos de pesca, o chefe flibusteiro mandou largar velas a goleta, ao brigue, e entrou a puxar de rijo para a barra contra a primeira nortada de outubro bordando já de largas gregas de prata a vastíssima toalha azul da baía do norte, à limpidez transparente e ao esplendor de ouro do céu primaveril.

XVIII

Clara, suave e álacre manhã azul de pleno mar. O sol dominava gloriosamente o espaço derramando por tudo sua luz fulva, viva, inefável. O tempo entoava, oceano fora, um sereno hino de bonança. Havia uma imensa doçura entre as velas. À popa e à proa toda a maruja andava satisfeita. A vida de bordo entrava agora numa grande paz, ganhava segurança, fascinando e sabendo bem à felicidade.

Já três semanas eram passadas que o Falcão e a goleta mareavam Atlântico adentro para leste, quando a Trindade surgiu à proa e uma nuvem de pássaros marinhos veio, como de costume, esvoaçar e grasnar alegremente em torno às velas e mastros.

Começaram de se mostrar a um bordo as curtas faixas de praia com as suas areias amareladas ou alvas. Aqui e ali cabeços cinzentos ou negros, escalvados ou cobertos de raquítica vegetação, caíam a pino nas águas cortando esses minúsculos crescentes de saibro com as suas pontas avançadas. Pelo alto da costa, adiante, na vaga reentrância que anunciava a enseada onde os navios deviam ancorar dentro em pouco, tapetes verdes de grama e o rendilhado mais alto dos maciços de arbustos destacavam numa imensa louçania estival. Em continuação desse começo de festiva paisagem exibia-se ainda a verdura densa e luxuriante do outeiro e do vale do Entreposto, onde as acácias, com as suas flores de jalde, punham uma risonha tonalidade de jardim fidalgo entre as ásperas fragas denegridas e tristes que se avolumavam para o interior da ilha, em grandes relevos basálticos.

Em duas ou três bordadas o Falcão e a companheira alcançaram a enseada, lançando ferro junto à bandeirola vermelha da baliza do porto.

Mercedes, que subira para o tombadilho apenas o navio entrara a acostar, divertia-se agora com as gaivotas, que continuavam a voar tumultuosamente, num enorme alvoroço, por entre os cabos e mastros e que alguns marinheiros à proa perseguiam a golpes de calabrote e lambaz. Às vezes algumas das aves caíam meio tontas sobre o convés e o castelo, mas imediatamente se erguiam, em voos incertos, que as faziam revolutear um momento contra as amuradas. Então todo o bando, assustado, rompia em piados mais vivos, espalhando-se nas águas. Mas isso era só um instante, porque para logo volvia coalhando topes e estais...

Afonso, como a guarnição da ilha demorasse em vir à fala, um tanto preocupado com isso, apenas deu as últimas ordens sobre a amarração da goleta, correu avante a mandar arriar um escaler para saber o que havia, quando o contramestre gritou para ré:

— Bandeira branca em terra! Tudo em paz!

A essas palavras, o comandante, que ia a descer a escada do chapitéu, estacou, a reconhecer a bandeira indicada. Voltou então para junto de Mercedes e, como um dos moços de câmara se aproximasse a comunicar que o almoço estava na mesa, desceu com a esposa em direção à praça de armas. Findo o almoço desembarcaram ambos, começando logo a descarga do brigue nas grandes lanchas de bordo.

À noite, na Casa da Administração, reunidos os dois pilotos, Afonso, com a solicitude e presteza que lhe eram características, comunicou-lhes a deliberação que tomara de enviar a goleta às Antilhas carregada como estava, apenas fossem reparadas as avarias recebidas no combate do cabo Santo Antônio e refrescado o aparelho. Semelhante viagem tornava-se urgente, indispensável, a fim de serem convenientemente distribuídos os quinhões dos flibusteiros mortos e recolhida, quanto antes, ao tesouro geral da Comunidade aquela parte das riquezas aprisionadas aos castelhanos e que ainda estava sobre água, a bordo do pequeno navio. Além disso, já era tempo de remeter o seu primeiro Relatório em que dava conta minuciosa da fundação do Entreposto e dos dois grandes combates engajados nos cruzeiros à costa do Brasil e ao Prata. Esse relatório fora feito com grande cuidado e a maior exatidão durante a calma travessia de Canavieiras para ali.

No outro dia, desembarcados os feridos para um dos galpões do Entreposto transformado em enfermaria, começaram ativamente as obras a bordo da goleta. No brigue, sob a direção de Reyd, a descarga prosseguia, sendo o precioso ouro das naus castelhanas que possuía arrobas e mais arrobas acomodado, volume a volume, no grande subterrâneo onde anteriormente tinha sido recolhida a rica presa executada à barra de Santos.

Afonso que, acompanhado de Mercedes e frei Ângelo, saíra cedo a inspecionar o serviço, percorrendo todas as dependências do Entreposto e pontos vizinhos, encaminhava-se agora com a sua comitiva para o alto do monte onde se erguia o grande e secular cruzeiro lusitano. O caminho, que fora preparado pelos operários durante a última ausência do Falcão, apesar das fragas abruptas por onde coleava, apresentava-se já perfeitamente acessível. Chegados todos ao cimo elevado de onde se divisava inteiramente o porto, o recortado escuro do litoral aqui e além mosqueado de curtos lençóis de areias, e a vastidão azul do Atlântico desdobrando-se infinitamente a toda rosa dos ventos — ajoelharam a orar ante o expressivo Símbolo Sagrado, ali portentosamente erguido outrora pelo célebre e admirável fidalgo e marujo, cheio de fé sublime e feitos gloriosos, que se chamara Dom Tristão da Cunha...

Pelo meio-dia, muito tempo após a primeira refeição, o comandante embarcou de volta com a esposa para bordo do brigue, enquanto frei Ângelo se dirigia piedosamente à enfermaria a visitar e animar os feridos.

No convés do Falcão, abrigado pelos toldos que o cobriam do sol ardente e a prumo, a tripulação agitava-se por toda à parte na faina da descarga. Esta terminava agora no porão de proa, e já um grupo de marinheiros, com o contramestre à frente, corria a levantar os encerados e quartéis da escotilha grande que vinha atestada até às braçolas.

Para aí também se encaminhou Afonso com o piloto Reyd, que levava numa das mãos o lápis e o Registro-de-Carga para assentar os volumes às talhas.

Sobre o tombadilho, acomodada num dos bancos da gaiuta, Mercedes gozava tranquilamente o esplendor daquela manhã de ancoragem e repouso, ora a seguir a singradura constante dos batéis remando entre a praia e os barcos, ora o alígero voo e flutuação graciosa das gaivotas em torno aos cabos e mastros.

Diante da larga escotilha aberta, sentado numa cadeira de lona tendo o piloto à sua esquerda, o capitão flibusteiro assistia agora, com um vago sorriso de orgulho e triunfo, às primeiras lingadas que subiam do porão onde, de mistura com os sacos de brim de vela pejados de moedas, os engradados de madeira guarnecidos de ferro deixavam entrever as pequenas barras de ouro e prata faiscando opulentamente à luz, sob os toldos, numa profusão extraordinária e que lembrava as riquezas fabulosas das Mil e uma noites.

Ao passo que os marinheiros e o piloto olhavam ávidos os preciosos volumes, o chefe corsário parecia ser-lhes indiferente, pois os seus grandes olhos azuis não externavam, nem de leve, o menor lampejo de ambição ou surpresa por aqueles supremos tesouros. Apesar de flibusteiro, vivendo da rapina e do saque como toda a Comunidade, para Afonso valiam e tinham brado alto na vida o Heroísmo, a Honra, o Amor, e era mais por essas três forças transcendentes que pela ânsia de enriquecimento e grandeza material que se entregara ao grande corso livre e percorria em aventuras, os mares...

Mas quando de repente, por um descuido do homem do guincho, uma das pesadas e grossas lingadas foi esbarrar contra a borda despedaçando os espessos sacos e derramando ouro e prata amoedados a todos os recantos do convés num chuveiro prolongado de tilintadas sonora e intensíssimas fulgurações metálicas, as belas pulas claras do grand old boy acenderam-se num clarão de alacridade e as paradisíacas regiões descobertas por Almagro e Pizarro, evocadas instantaneamente, surgiram-lhe no espírito, a radiarem maravilhosamente atraindo a imensa e insaciável cobiça e ambição europeias para as benditas terras da América Austral.

Vieram-lhe logo à memória as narrações semilendárias que tantas vezes ouvira na Margarida, nas reuniões dos grandes chefes flibusteiros, sobre essa CASTELA-DE-OURO famosa que aqueles dois terríveis e audazes aventureiros tinham descoberto, através de vicissitudes e perigos sem conta, em meio e aos planaltos desoladores e quase inacessíveis da gigantesca Cordilheira Andina. O esplendor incomparável de Cuzco, a cidade ideal que luminosamente bailava na imaginação dos espanhóis emigrando para o Novo Mundo num delírio de ambição e numa sede insaciável de riquezas — embalava-o também, agora, fazendo-lhe passar pelo cérebro essa Terra de Ouro suntuosa que tanto atraíra Pizarro e Almagro ao avistarem, pela primeira vez, uma manhã, do tombadilho da sua caravela, as montanhas atalaiantes do famoso império de Manco-Capac. Os volumes que ele via surgirem do porão como se fossem arrancados àquele solo prodigioso e inexaurível de ouro, afiguravam-se-lhe custosos e inestimáveis fragmentos do grande Templo do Sol que, segundo Bartolomeu Scharp, o chefe flibusteiro que mais conhecia o Peru, excedia em suntuosidade, fausto e maravilha a tudo quanto é possível imaginar de grandioso e portentoso na terra. Decerto aquelas pesadas barras cintilantes haviam sido tiradas à soberba catedral de Manco-Capac e eram, talvez, fragmentos augustos das largas portas lavoradas, dos altares e torres, das grandes capelas ou desse trono inigualável onde se assentou e reinou, por quatro séculos, a ilustre, elevada e poética dinastia dos Incas, filhos do Sol, heróis dos melancólicos poemas quichuas, e de uma nobre e radiante civilização que fora tão triste e tragicamente esmagada pela ferocidade, estupidez e ganância de Francisco Pizarro, o antigo guardador de porcos de Truxillo na Extremadura espanhola, o feliz mas execrando aventureiro descobridor do Peru. Parecia ter ante os olhos o vasto e alteroso lago azul de Chucuito em cuja mágica e florida ilha do mesmo nome se erguia o Grande Templo de ouro, tendo a oriente o Palácio dos Imperadores, a ocidente a Cidadela das Três Muralhas, ao norte o Castelo das Virgens do Sol e ao sul o Monumento de Manco-Capac, o Iniciador, o Magno, o Fundador, o Divino. E murmurava de si para si, numa emoção estética e mental, o nome dos célebres monarcas dessa artística, singular e ultra-aristocrática dinastia que sucedera à dos Aimara no século XII: eram Manco-Capac, o Grande, Sinchi-Roca, Lloqui-Iupanqui, Maita-Capac, Capac-Iupanqui, o Construtor de Estradas, Tupac-Iupanqui, Huaina-Capac, Huascar, e Ataualpa que Pizarro traiçoeira e cobardemente aprisionara e cruelmente matara em 1533. Depois ainda reinou um derradeiro rebento perdido dos Incas, o débil e triste Tupac-Amaru, que pereceu também assassinado, em 1571, às cruéis implacáveis mãos dos sanguinários Aventureiros espanhóis...

XIX

Daí a seis dias a descarga terminava, começando as reparações ou consertos dos altos do brigue que as balas do bergantim castelhano haviam danificado. Desde o castelo de proa aos arabescos e ornatos do chapitéu, as bordas e o cintado apresentavam brechas e rombos inumeráveis. E mesmo no rancho e na câmara um ou outro projétil certeiro fizera estragos.

Por esse tempo a goleta, findas as suas obras e a pintura, preparava-se para a viagem. Toda limpa e reaparelhada, com o seu longo verdugo escarlate, os seus mastros finos e altos onde o pano alvejava envergado de novo, aspirando pelos ventos livres do mar — o esguio e elegante veleiro balançava airosamente nas águas.

Na véspera da partida Afonso, em visita a bordo com Mercedes e frei Angelo, lembrara-se de que a goleta não fora ainda batizada, cerimônia imposta desde tempos imemoráveis pelos usos marítimos e pelos regulamentos da Comunidade. Então, ordenando a d'Urville mandasse formar a guarnição, desceu imediatamente à câmara a buscar os objetos para o ato sagrado.

Ao voltar à tolda, trazendo ele próprio uma grande bacia de prata com água e um hissope pertencentes ao santuário do barco, toda a marinhagem já se achava formada. E fazendo um sinal ao sacerdote, este desentranhou do burel um velho ripanço e folheou-o rapidamente e, com os olhos mergulhados nas páginas, entrou a percorrer o navio para a proa murmurando as orações cultuais. Todos o seguiam engrolando rezas.

De vez em quando o velho apóstolo estacava, abria os braços, deitava como uma grande bênção em redor e, tomando do hissope mergulhado na ampla bacia de prata lavorada e do feitio de uma concha que Afonso segurava às mãos ambas, sacudia-o no ar aspergindo o convés da escuna, as amuradas, as velas, as vergas, os mastros e os objetos em volta, num movimento gesticulante e que traçava como uma vasta cruz invisível no espaço.

No tombadilho, ao chegar as gaiútas já de volta da proa, frei Ângelo ajoelhou com todo o seu acompanhamento marujo, desfiando mais alto as orações rituais. E como aí o chefe flibusteiro lhe segredasse alguma coisa ao ouvido, a palavra Boa-Nova saiu-lhe subitamente dos lábios, por entre o zumbido funerário e sonoro do texto latino.

O lindo nome que Afonso acertadamente escolhera para designar a goleta entre os demais navios flibusteiros não podia ser nem mais adequado nem mais expressivo, significando como significava a alegria e esperança salvadoras da situação triste e desoladora em que se vira o brigue com toda a sua companha, quando essa pequena embarcação apareceu à embocadura do Prata, pressagiosa mas portadora de novas felizes em meio aos turbilhões da borrasca.

Finda a cerimônia d'Urville mandou abrir sobre a tolda os vinhos finos da Martinica, de Málaga, de Xerez e de Alicante que alegremente espumaram e alagaram as taças de ouro em saudações repetidas — à Comunidade do Mar das Antilhas, ao chefe do Entreposto da Trindade e às estrondosas vitórias flibusteiras no Atlântico do Sul.

Ao alvorecer do outro dia, depois das continências e salvas ao comandante do Falcão, a Boa-Nova, numa enfunada brancura de latinos largos, soltava rumo para o norte afastando-se saudosamente além, como uma pobre protelaria desgarrada e perdida no alto mar correndo em busca do seu pouso na costa já há muito apagada e sumida sob as cortinas brumais do horizonte...

XX

O Falcão levara ainda cinco semanas em consertos porque os reparos eram muitos, fazendo-se necessário substituir quase toda a roda de proa e meter um embono no cintado. Durante esse tempo, Afonso ocupou-se em completar as suas excursões e explorações a certos pontos ainda não visitados da ilha, assim na zona do Entreposto como na de oeste.

Todas as manhãs, apenas examinava as obras do navio e a construção da ermida que prosseguia agora com maior atividade por se achar já pronta a Casa do Comando ou da Administração, partia com uma escolta de flibusteiros pelo primeiro caminho que se lhe deparava, volvendo sempre pela tarde com plantas ou desenhos deste ou daquele novo local devassado, que se apressava em assinalar com precisão, pelas coordenadas, no mapa geral da Trindade.

Por esse modo, em quinze ou vinte dias, o pouco que para ele havia ainda de obscuro e recôndito em toda essa parte leste do ilhéu foi totalmente explorado, lançando-se então o chefe corsário para o litoral oposto, que conhecia tão somente nos sítios de desembarque e aguada. Aí teve ocasião de admirar as mais estranhas disposições e aspectos que pode revestir a matéria bruta sublevada por forças vulcânicas, na imensidade e profusão geológica de terrenos e fragas acumulados ao acaso em furnas, torres, castelos, menhirs e dolmens de proporções formidáveis e que o mais alto poder artístico de criação humana jamais poderia imitar. Deste lado, desde a ponta nordeste à ponta sueste, onde a primeira tênue vegetação começa de sorrir para o céu pelos seus lírios cor de pérola e pela sua relva de esmeralda — tudo foi visto e batido pela intemerata e tenaz falange exploradora do capitão flibusteiro.

Nesses dias de caminhadas e percursos à descoberta de novos pontos Mercedes, que não podia acompanhar o esposo por o não permitir mais o seu “estado” já um tanto pesado, passava as manhãs entretida na pequena horta jardim, plantada e cultivada junto à própria Casa da Administração como perfeita dependência desta, e que se erguia sobre perfeita dependência desta, e que se erguia sobre a estreita mas bela nesga de terra vegetal terminando entre as rochas altas do cabo. Essa horta jardim começava mesmo rente à larga varanda do prédio e era toda cercada de grossos pranchões de pinho alcatroados, postos ao alto no terreno e unidos uns aos outros, isolando inteiramente toda essa parte do pequeno promontório das dependências dos galpões, onde aquartelavam os marinheiros. Assim, esse agradável recanto do cabeço tornara-se desde logo de grande predileção para a moça, não só por se achar ela aí à vontade entre as flores que tanto amava e a solidão já agora também aprazível ao seu espírito, como pelo magnífico panorama do alto mar que dessa eminência se dominava plenamente, através às largas e recortadas abertas da penedia basáltica.

Frequentemente pois, logo que o esposo saía para bordo ou para as costumadas excursões, Mercedes, numa leve bata de linho alvo, encaminhava-se para o jardim, a percorrer cuidadosa e detidamente os canteiros onde, de envolta com as flores e hortaliças trazidas de Santa Catarina, viçavam fresca e pinturescamente os esplêndidos lírios e orquídeas da ilha. E ali, na quietação e no silêncio, só perturbados pelo rugir grosso e contínuo das ondas estourando contra as pedras, toda se devotava meigamente às suas plantas queridas, ou vagava pensativa à sombra das sebes de acácia, o espírito ora perdido nas doces recordações da terra natal, ora nas primeiras esperanças e preocupações da sua próxima maternidade, ou ainda na imagem infinitamente amada daquele que, ausente por instantes e sempre também com o pensamento nela, não tardaria em voltar presto a envolvê-la, como de costume, em seus braços possantes e em suas carícias másculas.

Quando o vivo sol de verão entrava a montar o zênite com os seus ardentes raios fulgurantes, ela recolhia à habitação a gozar docemente uma siesta ou a meditar os seus livros de orações. Pela tarde, faceira, graciosa e alegre na frescura das primeiras sombras, subia vagarosamente ao longo das floridas cercas de cactos até à encruzilhada das três estradas do Entreposto, e aí ficava a esperar Afonso que voltava com os seus homens das contínuas excursões ao outro lado da ilha. E, ambos, de mãos enlaçadas e numa grande ternura, enquanto a escolta, descendo por um atalho, demandava o quartel nos galpões, marchavam vagarosamente, a palrar, para a Casa do Comando, em cuja sala de jantar os aguardava já a mesa posta cintilando pelas baixelas de ouro e prata, e os finos cristais transparentes...

Durante aquela longa estadia frei Ângelo, que habitava um dos apartamentos da Administração, repartia o tempo desde o romper d’alva até à noite, em devotas peregrinações ao Cruzeiro e ao local onde se estava erigindo a ermida, ou em piedosas visitas aos que ainda permaneciam enfermos. A marinhagem do brigue fruía, com grande expansibilidade e júbilo, o demorado e precioso descanso daqueles dias de fabrico e ancoragem do Falcão, porque, desta vez, chegara consideravelmente maltratada e exausta, não só do renhido e desigual combate do cabo Santo Antônio como das terríveis e afanosíssimas manobras náuticas em que andara noite e dia, sob a suestada desfeita, desde Montevidéu até Santa Catarina.

Folgaram todos, enfim, achando já uma certa aprazibilidade naquele ilhéu desolado e afastado de todo o convívio e civilização, e que tanto e tanto lhes desagradara a princípio. E a muitos daqueles marujos e guerreiros, que não tinham família ou afeições ao longe a acenarem ansiosa e irresistivelmente por eles, não se lhes dava já de envelhecerem e findarem seus dias ali, entre aquelas negras rochas solitárias, no meio do mar sem fim...

Mas dezembro chegava, envolvendo a Trindade na pompa álacre e flamante das suas madrugadas e dos seus ocasos sublimes, e a bordo do Falcão, completamente reparado e aparelhado de novo, entraram a ativar-se os últimos aprestos da partida. E, por uma faustosa alvorada de púrpura, cortada musicalmente do grito agudo e triunfal das gaivotas felizes e do rolar ritmado das vagas sob a corda dos alísios, com o vasto Atlântico em bonança a afagar em largos beijos de espuma os negros penedos em caos, o esguio brigue largava levando a alvura noival das suas velas às vastidões azuis do Pacífico...

XXI

Dias e dias o Falcão rumou ao sudoeste, na deserta amplidão do oceano, sob o sereno azul do infinito.

Vieram então essas horas sem tonalidade, iguais, incaracterísticas, melancólicas e vazias do alto mar, em que a alma humana, em solidão, se embebe longamente, intensamente, na Monotonia e no Vago e, embalada pela contínua berceuse das ondas, infla e geme aflitamente, carregada de amores e sonhos, numa infinita e violenta saudade de terra, das pessoas e das coisas, das paisagens e dos lares...

As latitudes austrais desenrolavam-se agora à proa do brigue, nessa líquida e balouçante estepe azulada que não finda jamais, estendendo-se para além, para além, na desolação dos horizontes desertos até às névoas temerosas do Polo Antártico, onde as geleiras se eriçam em estranhas ameias radiosas guardando eternamente, talvez, indescortinável e inexplorável à poderosa genialidade do Homem, esse ponto geográfico em que se acham — quem sabe! — frígidos e inextricáveis mistérios da Terra.

Um sopro álgido e cortante começava já de sentir-se, não obstante o sol de estio jorrar do alto sobre as águas e sobre o casco do brigue. Às ave-marias, no convés e na tolda, oficiais e marinheiros agitavam-se, às manobras, encolhidos nas suas roupas de lã, envergando grossas luvas de peles para poderem mover as mãos que se negavam ao trabalho, encarangadas do frio. E, muitas vezes, pelas longas madrugadas úmidas e sempre encapotadas de nunca vistos nevoeiros, para se cambar uma amura era necessário dar o toque geral da guarnição acima, porque a gente de quarto. Só por si, hirta e tolhida debaixo do castelo, mal podia bracear uma verga sob o denso e constante dilúvio de neve que caía...

Um dia de tempo claro, ao entardecer montava-se o paralelo 60º, a mais alta latitude sul alcançada até então pelos raríssimos navios que se arrojavam ao Pacifico. O vento que “berrava” de oeste saltara de repente ao sueste, e o Falcão, com tão favorável circunstância, aproou ao noroeste, numa corrida extraordinária, num verdadeiro voo à “popa rasa”, ainda sobre o mar sem banquisas, a reconhecer o cabo Horn, por entre as ilhas Hermita.

Descera àquelas latitudes porque a “correntada”, impelida pela brisa de oeste, rolava com muita força para leste, de sorte que os navios que não alcançavam esse paralelo raramente logravam montar, sem maiores embaraços e perigos, e com relativa presteza, os imensos lençóis azuis rutilantes das águas do grande Mar de oeste, em cujas altas e longas dobras braviamente encrespadas de roladoras e subversivas espumas, o maior, o mais tenaz e temerário de todos os navegadores depois de Colombo, Fernão de Magalhães, ao deixar a saída ocidental do estreito onde quase perecera com seus em luta contra a fúria ciclônica dessa língua de águas apertada entre uma infinda multidão de ilhas escarpadas, rochosas e o Continente Americano, estreito que desde então ostenta gloriosamente o seu nome, Magalhães, de pé ao alto do chapitéu da Trindade, precedido pela Vitória (com este nome exprime tudo e sintetiza tão bem a grandiosa descoberta do estreito!) pousou satisfeitamente o seu olhar e, profundamente feliz e reconhecido, exclamou, em meio à sua guarnição desvairada de alegria: ― “Graças, Senhor, por vos servirdes proporcionar-nos agora este Oceano Pacífico!...”

Mas o brigue velejava numa só amura e dois dias depois pela madrugada, o píncaro mais alto da ilha de Horn desenhava-se à proa, todo algodoado de neve. A temperatura já entrava a subir ― e à proporção que o navio avançava para noroeste iam desfilando, a um bordo, as costas vulcânicas e negras da Terra do Fogo, de Londonderry e da Desolação até ao cabo Pilar, na boca ocidental do Estreito de Magalhães.

Mercedes, desde que o corsário penetrara águas antárticas, quase nunca vinha à tolda, encerrada constantemente no camarim e coberta de ricas peles da Patagônia. Passara o tempo  entocada num dos largos beliches, a ler os seus livros de orações ou dormitar, erguendo-se apenas para as refeições ou para os costumados “terços”, com frei Ângelo, à Senhora da Glória ou à Senhora dos Navegantes. Embaldes, às vezes, nas tardes mais suaves, Afonso instava carinhosamente com ela para vir ao tombadilho. Resistia sempre, com escusas: ― “Que não, que Deus a livrasse; morreria regelada!” E aninhava-se mais encolhidamente no beliche, enrodilhada em peles e lãs.

Dentro em pouco, porém, o sol doce e vivido da zona temperada voltou a aquecer o ambiente e o brigue: e, à medida que subiam as costas chilenas, acentuava-se mais e mais um delicioso conforto estival.

Então Mercedes voltou, como outrora, a passar as manhãs e as tardes na tolda, ao lado do esposo, entretida com manobras de bordo ou com o imenso panorama azul e de ouro do céu e do mar. A sua presença ali, após três semanas de enclausuramento na câmara, trazia de novo um encanto de lar ao convés e como uma alegria e consolo aos marujos, que viam nela a imagem adorada das esposas e mães que lá estavam, saudosas e com o espírito sempre neles, na Margarida ou nas suas terras natais. E Afonso, vendo-a outra vez a todo o instante a seu lado, sentia-se mais tranquilo e feliz na perene contemplação dela, que era o seu único e maior sonho de ventura na terra.

Numa dessas manhãs, pelas 11 horas mais ou menos, Mercedes viera sentar-se graciosamente a gaiuta. Resplandecia o sol a caminho do zênite. Afonso, mais afastado para ré, preparava o sextante para tomar a altura do navio e verificar as milhas andadas. O brigue, à brisa fresca de nordeste, bordejava suavemente, com todo o pano largo.

De repente, como às vezes sucedia nas zonas tropicais em dias bonançosos e de luz quente, ofuscante, os inquietos e loucos peixinhos voadores, nadando à superfície das vagas e irresistivelmente fascinados pela transparência do ar e o fulgor vivo do sol, entraram a saltar alegremente em torno ao casco do Falcão. E, apesar dos murmurejos ininterruptos das ondas quebrando-se espumosamente de encontro ao costado e do siflar contínuo e áspero do vento nas velas e cabos, percebia-se claramente o zumbir vago das pequeninas barbatanas nesgadas, ora transformadas em asas, desses estranhos voláteis do mar, e viam-se os seus minúsculos corpos prateados cruzarem, às vezes, rapidamente, como flechas rutilantes, em voos curtos mas altos, por sobre as bordas oscilantes do brigue. Alguns dentre eles, esbarrando casualmente contra as velas e enxárcias, despenhavam-se no convés, tontos e ofegantes, expirando instantes após se algum dos marinheiros, penalizado, não os vinha agarrar pela cauda e restituí-los ao mar.

Como de outras vezes, Mercedes, curiosa e interessada, pôs-se a acompanhá-los nas suas aéreas e arriscadas evoluções... Inesperadamente, porém, o velho Guilherme Reyd, que vinha da proa, ao passar por ela, no tombadilho, depôs-lhe nas mãos um dos infelizes voadores que fora arrojado morto ao convés, numa das pancadas da gávea. Ela, a princípio, teve um susto, mas verificando o que era, entrou a remirar tristemente o cadáver prateado do pobre peixinho. E, lembrando-se dos versos do Voador que, por noites de lindo luar, em Gibraltar, ouvira muitas vezes aos pescadores, começou a solfejá-los baixinho, numa voz adorável:

Oh, meu peixinho voador!

Oh, borboleta do Mar!

Por que aspiras ser senhor

Dos altos domínios do ar?!

Tu não nasceste para ave,

Mas para viver no Oceano.

Toma proceder mais grave:

Não sondes um novo arcano.

Sempre que deixas as águas

E te levantas no ambiente

É para sofreres mágoas

E morreres, finalmente.

Tu, bem como a mariposa,

Contra o Mal protestas, clamas:

Mas tentas ser ave airosa,

Ela abrasar-se nas chamas!

Às ambições infinitas

Deus dá um castigo forte:

Ou as aflige com desditas,

Ou as aniquila na morte.

Afonso, que terminara a observação e entregara os cálculos ao piloto, correu para ela a ver também o voador.

A esse tempo o brigue ia montando a península dos Três Montes com proa à Valdívia: mas nem uma única vela sobre as águas, ao largo, ou contra a longa costa andina! Não obstante, internou-se no golfo chileno, espumando todos os recantos litorais em grandes voos de condor, numa sede de rapina. As águas porém continuavam desertas; e desde Valparaíso a Calau nem a sombra de um galeão, de uma caravela, da mais pequena quilha!

O capitão, desapontado com tal coisa, perguntava a si mesmo que seria feito da esquadra espanhola que vinha do Peru e que, segundo as informações dos vencidos no combate do cabo Santo Antônio, achava-se ali a carregar e devia fazer-se ao mar na monção de estio. Além disso, sabia também que essa esquadra tinha como escala obrigada Valparaíso, de onde costumava zarpar, em geral, em fins de janeiro ou começos de fevereiro. Mas encontrara esse porto deserto. Que houvera, pois, sucedido? A frota teria ido porventura ancorar em outro ponto do Chile ou, muito amarada, lograra escapar ao Falcão? Esta hipótese parecia-lhe mais provável. Decerto a esquadra castelhana pairava já muito ao sul e talvez, desta feita, com o bom tempo que reinava, se houvesse arriscado às correntes e às águas bravias do Estreito.

Virou de bordo e com o norte fresco que soprava, numa corrida à popa, em duas semanas, avistou outra vez o longo perfil negro e denteado do Cabo Pilar, terminado pelo seu alto monólito basáltico talhado em forma de torre. E aproou resolutamente ao Estreito, na suposição de que a esquadra espanhola o tivesse afoitamente investido, sob aquela delícia de tempo. Mas em vão doze dias bateram essas águas, da Terra da Desolação ao Cabo São Diogo: a frota castelhana, bem mareada e com bom vento, singrava já na altura da Baía Blanca, na costa argentina.

Entretanto, nessa rebusca incessante pelos mares e costas americanas atrás das quilhas inimigas, o chefe corsário não abandonava um instante só o seu intento e, num largo voo ao longo da Patagônia, varejou tudo até ao Prata... Mas três meses iam já esgotados e nem um só casco sobre as ondas!

O grande master flibusteiro viu então que até às vindouras monções do ano que começava o Atlântico permaneceria deserto em todas aquelas latitudes. E meditando já em novos planos de ataques e assaltos lembrava-se outra vez do Brasil, “esse vasto e opulentíssimo território que ele guardava da Trindade como uma presa certa e de que se não apossava desde logo por a contar bem segura nas garras”.

A esta ideia sorria, e seus grandes olhos azuis, acusando bem a sua descendência anglo-saxônia, acendiam-se em vivos clarões rapaces, emprestando-lhe à fisionomia rosada e límpida linhas duras e ríspidas que recordavam perfeitamente a carranca de velha águia do tio, o supremo chefe flibusteiro, maior que Mansfield de quem fora lugar-tenente e discípulo, e único rei nesse momento de todo o Mar das Antilhas.

E mais altivo que nunca, embora intimamente despeitado e em fúria por essa caça frustrada, muito ereto sobre o chapitéu, uma das mãos à espada enquanto a outra pousava sobre os varões dourados da gaiúta, as plumas brancas do gorro tremendo galhardamente ao vento, Afonso voltou-se para o timoneiro ditando-lhe um novo rumo e, mandando largar todo o pano ao Falcão, deixou o estuário do Prata em demanda da Trindade.

O sol rolava lentamente no poente. As vastas águas atlânticas tinham fulgurações inauditas. Já a infinita e larga barra flamante do ocaso cobria de extraordinária e feérica apoteose a Argentina, o Chile, e, sobretudo, o Brasil, como estranho e maravilhoso prenúncio da sua grandeza, da sua glória e da sua felicidade futura em toda a América do Sul.

XXII

Foi por um dia límpido e suave que a pedregosa e longínqua ilhota brasílica surgiu pinturescamente, muito recortada em relevo sobre a púrpura do crepúsculo, à alta proa do brigue que, num voo da ave marinha e com as alvas asas de lona bem enfunadas ao vento, demandava o ancoradouro numa veloz singradura.

Fevereiro envolvia a Trindade em sua ardência e esplendores. Todo o litoral da baía de leste tinha um aspecto risonho, na vegetação que, agora, ali se alastrava com estranha exuberância. Os cabeços e outeiros, como os pequeninos planos e vales, estavam cobertos de arbustos e fetos; erguendo-se em tufos alegres na sua folhagem em crivo. Cá e lá, por sobre a ampla alfombra verdejante perdendo-se até às penedias centrais, também colmadas no alto por manchas de ervagens frescas, surgiam as lindas copas dos espinheiros e das acácias em flor, semelhando grandes umbelas alvaçãs de ouro tremulando ao vento. Orlavam o alto das breves praias brancacentas tapetes esmeraldinos de grama, desenrolando-se entre as rochas como estranhos gobelins. E sobre o plateau do Entreposto, no pequeno promontório empinado, uma vegetação mais elevada, frondejando em esplêndidas corbeilles numa vasta florescência.

As águas da minúscula enseada, numa relativa tranquilidade e abrigadas do vento do norte, resplandeciam ao ocaso. A fina haste da baliza destacava a um canto, pela proa do brigue, na sua bandeirola de cobre pintada a zarcão. Gaivotas, em bandos extraordinários, grasnavam alegremente, voejando em torno aos mastros, ou flutuando, em fileiras graciosas, no dorso verde das ondas. No recanto do córrego e nas curtas faixas de areias, era tal a serenidade das vagas que os escarcéus se denunciavam apenas por tênues debruns de alvaiade espumante. E só além, para fora de pontas, onde o oceano ia pleno, é que rolos grossos de ressaca estouravam, sonoramente, sobre os avançados cabeços basálticos.

Amarrado o Falcão e trocados com a terra os sinais combinados, Afonso saltou, acompanhado de Mercedes e de frei Ângelo, por entre as continências da guarnição do Entreposto que, como sempre, formara ao seu desembarque.

O terrapleno do outeiro apresentava, agora, um certo aspecto de terra fértil e tropical. As primeiras culturas de cana e milho que o chefe flibusteiro, conjuntamente com “mudas” de flores e sementes de hortaliça, trouxera de Santa Catarina cobriam, ao centro, o terrapleno, em quadras de verdes espadanas em fitas, ondulando ao vento e alinhadas às margens sinuosas dos caminhos. Rente à Casa do Comando, na pequena horta jardim, sobre os canteiros de terra fofa, os legumes e as flores vicejavam de envolta com os cravos e rosas, as orquídeas e lírios. E correndo ao longo do cabo até ao amontoado de rochas onde o mar espumava e bramia, as frescas pétalas das acácias pintalgando tudo de ouro como nas encostas da Margarida.

Mercedes, que já amava aquele sítio, tivera uma impressão deliciosa, por o encontrar ainda mais belo e atraente que quando o deixara ao partir para as águas do Pacífico. De novo então, e com maior alvoroço, voltou a passar as manhãs e as tardes entre as suas plantas queridas. Afonso, quando não andava nas excursões habituais, vinha fazer-lhe companhia.

Então ambos, muito unidos e expansivos no grande afeto que se consagravam, sentiam-se absolutamente felizes naquele ninho tranquilo. E tão desvanecidas se achavam já no espírito da moça as recordações e saudades da terra natal que, passeando entre os canteiros ou contemplando com doçura a infinita amplidão do mar, muitas vezes dissera ao esposo desejar viver longamente ali, tendo-o sempre a seu lado, em meio daquelas águas, sob aquele céu cor de anil.

Enquanto não regressava a Boa-Nova e se não resolviam outras expedições ou cruzeiros, o chefe corsário fez desembarcar a maior parte da gente, a fim de a arejar e desentorpecer das estreitezas de bordo.

Concluíam-se, por esse tempo, as obras externas da ermida e os operários passavam já aos trabalhos de ornamentação interna e levantamento do pequeno altar onde devia colocar-se a imagem da Senhora da Glória, que o comandante flibusteiro trazia no seu camarim, a bordo do brigue, e que venerava com particular cultualismo por ser “a sua santa Madrinha”. Pronto o altar, a imagem da Senhora — que ficaria sendo a padroeira da ilha — seria transportada, em procissão, de bordo para a capelinha.

Efetivamente, quinze dias depois, numa radiante manhã de domingo, muito cedo, desembarcada a imagem num dos batéis de bordo, e improvisado um pequenino andor recoberto de galhardetes e flores, entrou-se a preparar o préstito, à porta da Casa do Comando. Constituíam-no os marinheiros do brigue e a guarnição do Entreposto, levando cada qual o seu uniforme a huguenote e as suas armas, empunhando todos archotes acesos.

Organizado disciplinar e militarmente o cortejo, Afonso, o sacerdote, Guilherme Reyd e o Contra-mestre pegaram aos ombros o andor — e a desfilada começou, ao som de cânticos e hinos entoados pelos flibusteiros e ao estrugir álacre e metálico das trombetas náuticas, em demanda da ermida que ficava por detrás de uns penedos e quase oculta do mar, à pequena distância do local onde se erguia o Cruzeiro.

Ao lado do comandante ia Mercedes acomodada por causa do seu “estado” numa espécie de liteira ou palanquim de madeira, convenientemente preparado a bordo e toldado de galhardetes, que quatro possantes marujos carregavam aos ombros.

Em pouco, galgadas as voltas acidentadas e empinadas do caminho correndo sobre rochedos, alcançava-se a capelinha: e a imagem da Senhora da Glória era colocada, por entre rezas festivas, no seu pequeno altar de alvenaria cheio de ornatos que, na véspera, após a cerimônia da bênção, frei Ângelo e Mercedes haviam profusamente enfeitado de ramagens e flores.

Em seguida, foi celebrada missa solene e, feita uma rápida visita ao Cruzeiro, desceram todos, muitos alegres, para a Casa do Comando e os galpões, onde grandes mesas repletas de comestíveis e vinhos os esperavam, mandadas preparar por Afonso para festejar aquele dia assinalado da trasladação da Senhora da Glória e da inauguração do pequeno templo.

À noite, depois de um fogo de tigelinhas a bordo do Falcão, o comandante com a esposa, o sacerdote e o piloto, reuniu-se no terreiro do Entreposto, diante de uma imensa fogueira que mandara acender para uma velada festiva sob as estreias. E, congregada a marinhagem e operários em volta ao chefe flibusteiro, as antigas danças de bordo, formadas só de homens, com jogos destros e hábeis de espingardas e adagas, irromperam entusiasticamente de envolta às cantigas marítimas vibrando em toadas sonoras ao som das guitarras gementes:

Adeus, praias alvacentas,

Que eu vou singrar pelos mares,

Com bonanças ou tormentas,

Com venturas ou pesares.

Oh, Senhora da Bonança,

Acudi aos velhos galeões

Que já sem a luz da esperança

Se afundam nos vagalhões.

Coração de embarcadiço

É como o mar, como as flores:

Tem aromas e feitiço,

Tem tempestades... de amores.

XXIII

Daí a uma semana a Casa do Comando e os armazéns do Entreposto amanheciam embandeirados, bem como o Falcão, que despertava os ecos adormecidos da ilha com uma grande salva de artilharia.

O sol surgia de entre as névoas matinais do horizonte, como enorme balão. A enseada fulgia, pela sua larga curva de águas em bonança. Malhas fulvas de luz boiavam, ao largo, nas ondas. Contra a penedia, aglomerando-se mais profusamente nos cabos erguidos em silhueta de coroa, novelos grossos de espuma rolavam fragorosamente, cobrindo tudo de um véu prateado. À popa do Falcão, cujos galopes dos mastros oscilavam no ar com a trama artística da sua cordoalha suspensa, frisos de lacre ou rubim tremiam e fulguravam no verde gaio das vagas. E, por sobre os cabeços distantes, procelarias e gaivotas, em revoadas, pintalgavam com a brancura das asas o doce anil do firmamento.

No litoral em socalcos, os maciços de verdura, destacando à luz nascente, semelhavam gigantescos trabalhos de seda frouxa feitos sobre um relevo de bronze. As frondes frescas das acácias alteavam-se, entre os outros arbustos, em tufos cor de ouro. As plantações de cana e milho tinham um esmeraldino suave, ondulando a aragem do mar pelos repuxos densos das suas folhas que, às vezes, reluziam ao sol como uma floresta guerreira de cimitarras. E para os montes centrais da ilha, logo abaixo do abornoz de nuvens do ponto culminante, um ou outro veio de água cristalina descia de rocha em rocha, sinuosamente, como míticos répteis de escamas fulgurantes.

Afonso e Mercedes, acompanhados de frei Ângelo, faziam seu costumado passeio ao longo dos caminhos do Entreposto quando, ao enfrentarem os galpões festivamente ornamentados, a guarnição de terra e do brigue, ao mando do piloto, apresentando armas em continência e fazendo estrugir as trombetas náuticas, romperam em estrondosas aclamações.

Comemoravam o segundo aniversário da elevação de Afonso ao posto de comandante.

Havia sete anos que o grand old boy, tendo chegado à Margarida glorificado pelo combate naval da Martinica em que, numa flotilha de batéis conseguira, por um estratagema e golpe de audácia inauditos, tomar com os seus homens três galeões castelhanos, — assumira o comando do Falcão para explorar o Atlântico do Sul até ao Pacífico.

Apenas cessaram as aclamações Afonso, dirigindo breves palavras às guarnições, rememorou-lhes o alto feito da Martinica que fora em parte devido à pronta arremetida e denodo de alguns dos veteranos que ali ainda se achavam e que, logo depois, tanto deviam exalçar o valor das armas flibusteiras naquele Entreposto. E terminou concitando a todos a continuarem sempre, com a mesma dedicação e bravura, as tradições da poderosa Comunidade do Mar das Antilhas...

Depois de percorridos os galpões, o comandante retirou-se, com a esposa e o sacerdote, sob novas aclamações.

Após o almoço, Afonso e Mercedes, atravessando a pequena horta jardim, onde se demoraram alguns instantes, foram sentar-se à bela miranda, arranjada entre as rochas e recoberta por uma espécie de caramanchão de verdura, que ficava bem à ponta do cabo e donde se dominava todo o admirável panorama do oceano. E aí se enlevavam no espetáculo das águas amplamente banhadas pelo sol da manhã, quando de repente, além, por trás dos cachopos de Martim Vaz, apareceu, singrando lento nas ondas, um navio todo em pano.

O capitão, que esperava a Boa-Nova, ergueu-se satisfeito e, tomando do óculo de bordo, assestou-o por entre os altos cabeços. Nesse instante, outras velas se mostravam: eram quase todas redondas, indicando embarcações de alto bordo velejando a pano cheio. Mirando-as e remirando-as detidamente, o experimentado capitão cerrava a fisionomia, numa preocupação que aumentava de momento a momento.

Mercedes, ao vê-lo assim transmudar-se, teve uma palpitação temerosa já de que aqueles cascos viessem trazer qualquer perturbação à tranquilidade da ilha, à sua vida, ao seu bem-estar e sossego. E, muito preocupada, observava agora, minuciosamente, o marcar lento da frota, pairando então bastante aquém dos cachopos, bem em relevo nas vagas.

No entanto Afonso fora encostar-se a um rochedo ainda mais avançado da ponta, onde apoiava os cotovelos para se firmar melhor: e não retirava um momento o óculo de sobre os navios, cujos cascos escuros se distinguiam nitidamente, em detalhes, quando se alçavam, aos balanços, no dorso dos vagalhões. Buscava reconhecer-lhe o pavilhão, os galhardetes. Isso era por enquanto impossível com o rumo que traziam, todo a oeste, vendo-se-lhes apenas os bojos de proa. E assim absorvido, inteiramente alheado das coisas em torno, sem mesmo dar por Mercedes que viera postar-se a seu lado, o chefe corsário não perdia a mais pequenina evolução da esquadra, marchando em linha de frente.

A esse tempo, de bordo do brigue, onde a marinhagem acompanhava também cuidadosamente a singradura do comboio ao longe, o contramestre, por ordem do piloto, largava para terra, com três batéis e o esquife, a dar parte de que “velas suspeitas mareavam a oeste, junto aos ilhéus de Martim Vaz, e que o Falcão estava pronto a reembarcar toda a gente e fazer-se ao mar ao primeiro sinal.”

Quando o contra-mestre chegou às rochas altas do cabo e penetrou na miranda, o navio testa parecia orçar todo para o sudoeste, seguido dos outros que lhe vinham na esteira. O seu grosso casco revelou-se então nitidamente, pelo alto chapitéu e a mastreação de muita guinda. Era uma nau de linha, pintada a almagre, “raio de vela” nas cintas e cintões, na sua popa alterosa, quadrada, talhada em escudo: trazia todo o velame fora, como os demais cascos seus companheiros, e formava com eles um total de cinco quilhas. Mas nem a cruz de Cristo nas velas, nem uma só bandeira a mezena ou nos topes!

Afonso, baixando o óculo, deparou então com Mercedes que o enlaçava com os braços trêmulos, pálida e aflita, a perguntar-lhe tartamudeantemente que esquadra era aquela, que ali vinha e que tanto o preocupava. Ele fazia por aquietá-la com palavras a que, embalde, procurava imprimir firmeza e serenidade, quando se lhe apresentou o contramestre acompanhado de uma escolta de marinheiros armados. O homem, acercando-se logo com as armas em continência como o pelotão de marujos, transmitiu-lhe o recado do piloto e ficou a aguardar ordens.

A frota ainda vinha a dez milhas, mais ou menos, e caturrava lentamente na vaga.

O chefe flibusteiro, a fisionomia cada vez mais carregada, volvia a observá-la de novo quando percebeu que o galeão testa, num movimento simulado a outro rumo, parecia cair pouco a pouco sobre a ilha. Então, subitamente exaltado e congesto, exclamou:

— A esquadra manobra para cá! São os lusos que vêm dar-nos cerco, desforrar-se sem dúvida do combate de Santos... Ainda bem!...

E gritou ao contramestre:

— Para bordo, presto! E dizei da minha parte ao piloto que tenha tudo pronto para suspender, que mande distribuir munições e armas, abrir as escotilhas da coberta, safar a artilharia!...

E tomando Mercedes nos braços atirou-se para o Entreposto, ordenando o toque de embarque.

Imediatamente todos se prepararam e armaram e, sem perda de tempo, desceram a marche-marche o outeiro até às rochas alagadas onde os aguardavam os batéis, num dos quais embarcaram o capitão e a esposa. Em minutos, a remadas possantes, as pequenas embarcações atracaram ao brigue. O chefe flibusteiro, retomando a moça ao colo, galgou logo a escada, com aquela destreza e intrepidez marinheiras em que era inexcedível: e mandando arriar galhardetes e bandeiras, à exceção do pavilhão do navio, entrou a movimentar tudo, com a maior energia e presteza.

Era uma faina como nunca em todo o Falcão — pelo chapitéu, pelo convés, pelas cobertas, pelas baterias. E em pouco faiscavam ao sol, sinistramente espadas e lanças, falconetes e peças de grosso calibre, preparadas para uma batalha tremenda.

Ferros sob mão, panos a largar, a marinhagem distribuídas quer para as manobras náuticas quer para as de guerra, Afonso, que encerrara Mercedes no camarim, de pé no alto do chapitéu atentava agora, como um lobo solitário que é surpreendido por um bando de caçadores, em todos os movimentos da esquadra, que aparentava singrar ainda a outro rumo mas que descaía constantemente, às guinadas, para aquele ponto da ilha.

A simulação do inimigo, posto percebida por Afonso e toda a guarnição, era tão bem executada e perfeita, que deixava, às vezes, como uma dúvida no espírito dos flibusteiros sobre se as quilhas seguiam outra derrota ou se, com efeito, tentavam atacá-los ali. E tal dúvida tanto mais se acentuava ao momento, para o piloto e a marinhagem do brigue, quanto era já chegada a ocasião oportuna para a frota carregar toda para terra, numa bordada segura, e deixava de fazê-lo entretanto, continuando na sua proa de sudoeste!

Foi levado por isso que, de uma vez, o velho Reyd exclamara:

— Não, ainda não é desta que os lusos se animam!...

Mas o astucioso capitão, de pé junto à borda, nem lhe prestara ouvido, absorvido inteiramente na observação contínua do manhoso velejar dos navios, murmurando de si para si:

— Não ha dúvida, é a esquadra lusitana que vem dar-nos cerco!...

Efetivamente assim era. Desde a tomada do galeão castelhano junto à Trindade que ecoara pelos mares a notícia alarmante de que um brigue flibusteira andava ao corso pelo Brasil. Alguns capitães espanhóis, como as frotas de Lisboa, afirmavam tê-lo visto, uma ou outra vez, em bordadas ao largo na altura de São Vicente, correndo logo uma lenda assustadora sobre o Falcão, lenda em que se dizia “que esse navio velejava como um raio e que nem as maiores esquadras poderiam resistir-lhe. Essa nave fantástica cruzava e voava desde o Mar das Antilhas ao Prata, levando a derrota e a pilhagem, a destruição e a morte a todas as velas inimigas!...” A narração, que inflamara o espírito popular enchendo-o de alucinações e pesadelos, andava de boca em boca entre as populações litorais do Brasil, chegando por fim aos ouvidos do governador geral que mandara guardar por ligeiras mas fortes esquadrilhas, as povoações mais expostas da capitania de São Vicente e das que lhe ficavam mais próximas. Apesar disso, porém, a nau que conduzia anualmente o quinto do ouro para Lisboa tinha sido aprisionada, na monção de inverno, pelo “brigue sinistro”, pois que não chegara ao seu destino. E sabia-se que os pescadores da Bertioga diziam ter ouvido um dia, por este tempo, a poucas milhas da costa, próximo aos Alcatrazes, um tiroteio de artilharia que parecia travado entre dois navios, que começara à meia-tarde e se prolongara para além das Ave-Marias. Depois havia o testemunho de outros navegantes que, em viagens para a América do Sul ou para as índias, tinham avistado várias vezes, à noite, uma fogueira ardendo sobre as rochas da Trindade... Finalmente, surgira a nova terrível de que o Falcão chegava até a estacionar e fazer desembarques nas baías de Ubatuba, de Paranaguá ou de Santa Catarina... Ao ter conhecimento verdadeiro de semelhantes fatos, Alexandre de Sousa Freire, o 25º governador geral do Brasil, despachou à pressa uma caravela para a Metrópole, enviando sobre o caso todas as informações a el-Rei e solicitando prontas providências para um ataque completo ao navio flibusteiro, que tomara a Trindade e dela fizera ponto de operações no Atlântico. Preparou-se então, em Lisboa, a frota de cinco velas — uma nau de linha, duas caravelas redondas e duas latinas — que ali vogava agora lentamente, em manobras cautelosas, para por cerco seguro ao Falcão...

O almirante português acertara de entrar em águas da ilha na melhor oportunidade, quando o navio pirata se achava no “antro”, como dizia. Muito taticamente, porém, não aproara logo para o porto, simulando outro destino, no receio de que, pressentindo o seu intento pelos flibusteiros, estes, aproveitando a distância, forçassem velas em fuga no veleiríssimo brigue. E, do alto do tombadilho, aceso já num forte aguerrimento contra “os ladrões e assassinos do mar”, bradava entusiasticamente à sua gente:

— Camaradas! Em nome da Pátria, em nome del-Rei e em defesa do glorioso pavilhão das Quinas, devemos esmagar os corsários! Que a nefanda Comunidade do Mar das Antilhas pague, com o sangue dos seus, o aprisionamento do galeão do quinto e a afrontosa invasão do sagrado território colonial português! É urgente varrer e enxotar para sempre das águas brasílicas a negreganda e infamíssima bandeira inglesa dos flibusteiros!...

E puxava ainda para o sudoeste a fim de virar à altura conveniente, de onde correria à popa para o porto com o sueste fresco que começava a soprar, fechando então totalmente o Falcão no círculo de fogos dos seus navios...

Afonso, sobre a tolda do brigue, de porta-voz em punho, não perdia o menor movimento da frota. Como esta seguia ao mesmo rumo, sem se decidir a virar contra a costa quando a ocasião parecia a melhor e o vento o mais favorável, chegou a pensar por instantes que semelhante comboio não vinha com destino à Trindade, mas que assim se aproximava para fazer dela simples ponto de reconhecimento. Julgava mesmo que se ia realizar o que Reyd dissera a princípio: — “Ainda não é desta que os lusos se animam!” Mas estava alerta, bem alerta. Com a sua audácia característica, permanecia ainda fundeado, à espera do “último momento”, como sempre fazia. Fiava-se na sua estrela, na sua felicidade, no seu gênio! Depois conhecia bem o Falcão, sabia que ele costumava operar milagres mesmo nos momentos mais críticos, e que, parelheiro do mar, não havia quilha que o pudesse vencer na líquida estepe infinita...

A esquadra pairava, nesse instante, bem em frente à pequena enseada do Entreposto. E logo a nau capitânia, numa evolução repentina, atirou-se à popa rasa em direção ao brigue, seguida das caravelas descrevendo a mesma linha.

Afonso, voltando-se para o piloto, a seu lado, exclamou:

— Afinal, aí vêm eles sobre nós! Querem encurralar-nos entre pontas para nos impedirem a saída... Boas!...

E sorria vagamente, como num desdém do inimigo. Mas só agora, ao observar bem as velas portuguesas distantes apenas três milhas, é que podia avaliar precisamente a poderosa frota. Arrependia-se de não ter levantado âncora logo ao cair do sueste. Teria evitado, em tempo, um combate duas vezes desigual, pelo vento contrário e pelo número de navios; não arriscaria todas aquelas vidas que a sua vontade movia; e, apartando desastres terríveis, poderia estar já a salvo, a caminho das Antilhas, a reunir reforços e gente para a reconquista da ilha. Mas a indecisão da frota em fazer-se para a costa e a incerteza da verdadeira possança das quilhas, tudo isso junto ao dever de não abandonar os tesouros senão em extremo perigo, lhe haviam feito aguardar as manobras do inimigo, para uma deliberação decisiva.

Então, como nos momentos supremos, subitamente transfigurado num velho demônio — granel old boy! — embocou o porta-voz para vante:

— Ferro a pique! Largar joanetes e gáveas! E gente a postos sobre o convés, o castelo, as baterias!...

O brigue, muito leve e em lastro, mal as velas bojaram ao sueste fresquíssimo, arrancou para o largo, numa violenta bordada à bolina. No entanto a frota caía sobre ele como um bando de albatrozes vorazes sobre um pequeno peixe voador que, ao sentir-se perseguido, salta atônito de onda em onda.

Vogando em linha de frente meio recurva para o centro, as possantes naves lusas, já ao alcance de tiro, romperam num fogo vivo.

O chefe flibusteiro, que não contara a princípio com as pasmosa rapidez desenvolvida agora pelas naus investindo para a terra sob o vento propício, teve um súbito grito de fúria ao ver-se inopinadamente cercado no estreito espaço entre as pontas que extremavam a baía. Mas repostou imediatamente à descarga inimiga com toda a artilharia. E continuou a avançar audazmente para o ponto da esquadra que julgou expugnável em meio as caravelas latinas.

O combate tornou-se formidável, trocando-se verdadeiras nuvens de projéteis entre a frota e o brigue, que, em bordadas prodigiosas de um tática e perícia supremas, embora já com o convés devastado, atirava-se para o largo em busca da amplidão do mar livre...

Era pela meia tarde. No céu azul, muito límpido, a luz começava a desbotar em seu brilho. O mar rugia furiosamente sobre as penedias da costa, estendendo-se para além em grandes cristas de espuma trabalhadas pelo vento intensíssimo. Sobre o outeiro do Entreposto, a verdura vicejante esmaiava também as suas cores, cobertas pelas primeiras sombras angulosas dos montes mais altos da ilha. Para o norte, por todo o recorte litoral, as pontas negras em cabeço, povoadas agora de ecos sinistros — sumiam-se às vezes, por instantes, sob as densas pastas de fumo alvadio que o vento para logo levava nas rajadas bramantes.

E o canhoneio troava, sem descontinuar, num furor truculento.

O brigue, encurralado contra a costa e as naves, como não podia jamais recuar, porque seria fatalmente vencido, varado no alto pelas balas, mas contrastando ininterruptamente o fogo inimigo, em bordejos esforçados e manobrando com a velocidade de um caíque, ora ao norte, ora ao sul — não parava nas suas investidas e arrancos para o largo. Mas um momento houve em que uma confusão e tumulto se espalharam entre as guarnições das caravelas, perturbando-lhes de tal modo às manobras e disparos, que o navio flibusteiro, aproveitando-se disto, numa evolução repentina, passou-lhes pelos bordos, sem a menor resistência, ganhando destro o mar alto.

Então a nau capitânia largou-se-lhe a toda no encalço, perseguindo-o, perseguindo-o.

Mas o Falcão fendia a vaga numa marcha extraordinária e, em pouco, o pesado galeão português foi deixado à distância de milhas...

Afonso agora, naquela corrida à popa para o norte, respirava a longos haustos como no alívio de um grande pesadelo, mas no seu rosto e nos seus olhos claros viam-se ainda os fundos sinais do desespero. De pé, sobre o tombadilho alastrado de mortos e feridos que os marinheiros sobreviventes iam lançando ao mar ou carregando para a coberta, conforme o caso — fixava sem cessar os cabeços altos da ilha ocultando já o outeiro do Entreposto com o seu recorte vulcânico. Um misto de pesar e de cólera sacudia-o, por vezes, no seu orgulho abatido e, como um louco, erguia os punhos ao ar apontando as velas lusas com ameaças terríveis.

Daí a instantes, porém, recobrando a habitual serenidade, desceu ao camarim onde encontrou Mercedes desmaiada sobre um dos beliches: tomou-a nos braços meigamente, cobrindo-a de longas carícias. E apenas ela recobrou os sentidos, ainda pálida e aturdida do fragor do combate, porém já tranquila por saber o Falcão livre de perigo — conduziu-a para o salão da câmara e, ajoelhados ante a imagem da Senhora dos Navegantes, quedaram-se a rezar... Depois levou-a para o tombadilho e saiu a percorrer o navio, examinando detidamente os estragos recebidos, revistando aparelhos e mastros desde o castelo às baterias. Voltou à câmara, correndo todos os compartimentos e, não encontrando frei Ângelo, a quem não via desde pela manhã quando ao deixar a Casa da Administração tomara para o jardim com Mercedes, perguntou ao piloto o que era feito do velho sacerdote.

— Frei Ângelo — informou Reyd — tinha ficado da ilha. À hora do embarque o contramestre o procurara por todo o Entreposto, mas não o encontrara. Entretanto, momentos antes, o mestre de obras esbarrara com ele subindo o caminho que levava à capelinha. Depois, ninguém mais o vira. Decerto o sacerdote, coitado, demorara a orar na ermida...

Afonso volveu para ao pé de Mercedes e, encaminhando-se com ela ao escudo da popa, ali ficaram ambos a olhar, enlevados, o crepúsculo que descia. À proa do brigue, voando como uma pluma boiante sobre a vaga espumosa, desenrolava-se, toda livre e deserta sob o pica-peixe, a majestosa vastidão do oceano. E o gurupés esguio — ponteiro estranho das rotas — oscilava lentamente, apontando o rumo além, em direção às Antilhas. Do outro lado do céu, gigantescas nuvens acasteladas punham largas pastas cinzentas no moroso esmaiar do ocaso, levantando construções estranhas e de eterna mutação — rostos colossais, cabeças ciclópicas colocadas ao alto, figuras de primitivos tempos geológicos; ou, em outras metamorfoses, crateras enormes, hiantes, jorrando luz violácea, fotosferas ardendo os derradeiros brilhos, cobrindo-se das primeiras sombras na solene agonia do sol. A leste, o mar recebia o crepe da noite sob a pontilhação faiscante das primeiras estrelas e todo se limitava na tênue claridade do horizonte a oeste onde ainda se destacava em relevo, mas já diminuída, à distância, a silhueta áspera, rendada em pedra, da Trindade...

Rio de Janeiro, julho à outubro de 1895.

FIM



* Aqui, como em outras passagens, manteve-se a grafia da edição de referência, mesmo em desacordo com o uso atual nos idiomas em questão, como o castelhano. (Nota do NUPILL).