Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Quincas Borba: Um estudo da oficina de criação de Machado de Assis[*],

de Elizabete Velloso de Margarido Barbosa da Silva



ÍNDICE

DEDICATÓRIA

AGRADECIMENTOS

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I – A OFICINA DA CRIAÇÃO

Do que eu falo

Tabela comparativa

Um trabalho de artesão

CAPÍTULO II – O NARRADOR

CAPÍTULO III – A ENUNCIAÇÃO DOS OPOSTOS

CAPÍTULO IV –A CARNAVALIZAÇÃO

O Título

A Roda bakhitiniana

O Destronamento

O Riso

O Grotesco

A Praça pública e os desfiles carnavalescos

Os Textos bíblicos e ditos populares

As Mascaradas

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

 

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Silvério Velloso de Margarido (in memoriam), pois sei que, aonde estiver, estará feliz por mais esta etapa cumprida e Severina Silva Velloso de Margarido, pela grande companheira que é, em todos os momentos da minha vida; ao meu marido, Luis Filipe, pela paciência nos meus momentos de stress, pelo companheirismo, pelo carinho e, principalmente, pela pessoa que é; ao nosso filho Gabriel, que, com apenas cincos meses, pôde me ensinar que não devemos prorrogar os problemas em tempo maior do que o necessário e, principalmente, que cada momento da vida é uma descoberta.


 

AGRADECIMENTOS

Ao meu Orientador, professor Luis Filipe Ribeiro, pela confiança, pela dedicação constante e pela seriedade do seu trabalho;

À Ana Maria Machado da Silva, colega de profissão e mãe afetiva, pelo incentivo inicial;

A José Augusto Abreu Nunes, ex-chefe de trabalho e à Vera Lucia Figueiredo, atual chefe, por sempre permitirem que eu conciliasse os horários de trabalho com os de estudo;

À minha eterna professora Vera Lúcia Reis, que tive o prazer de conhecer, ainda na graduação, que tão prontamente aceitou o convite para participar da avaliação do projeto dessa dissertação, oferecendo suas críticas e pelo auxílio na língua francesa;

Ao Professor Paulo Bezerra, pelas aulas teóricas, quando foi meu professor, que tanto me auxiliaram na produção desta tese;

Aos colegas de seminário, orientandos como eu, pelo diálogo e pelas críticas, que sempre resultam num trabalho melhor;

Aos meus colegas de trabalho, de ontem e hoje, pela convivência;

A todos aqueles que passaram pela vida, que me proporcionaram momentos bons ou ruins, pois contribuíram para a minha formação;

À professora Marlene Gomes Mendes, pelo carinho na revisão deste texto.

À banca examinadora, por ter aceito participar da avaliação deste trabalho.


 

INTRODUÇÃO

Existe aqui nesta leitora uma vontade, quase incontrolável, de ler sempre e de novo e mais uma vez, o bruxo do Cosme Velho. Daí a escolha do autor a ser examinado nesta dissertação. Afinal, sempre me fica a pergunta: e por que não Machado de Assis? É uma questão de gosto pessoal, sei bem disso. Mas gosto não se discute e, por isso mesmo, fico bem à vontade. E quando pensamos que já se estudou tudo sobre Machado de Assis, descobrimos que o bruxo do Cosme Velho é um tema inesgotável e que há sempre algo de novo a ser pesquisado, que não lemos por aí, em livros, revistas, internet, bem como nos textos dos machadianos mais notáveis. Ousadia e prepotência, você pode estar pensando. Não, não é. É apenas uma declaração de amor ao velho bruxo, este enigma inesgotável.

Bem, escolhido o autor, vamos à obra. E, esta sim, poderia ser uma tarefa muito mais difícil. Afinal, já admiti que sou uma apaixonada pelo bruxo do Cosme Velho. Mas aí, resolvi recordar a primeira vez em que tive contato com os textos de Machado de Assis. Eu tinha dez anos de idade quando li Quincas Borba pela primeira vez. Foi paixão à primeira leitura. Como não ficar apaixonada pelo cãozinho cor de chumbo? Na verdade, um bonito cão, meio tamanho, pêlo cor de chumbo, malhado de preto, com olhar meditativo, que não era gente como a outra gente, mas tinha coisas de sentimento, e até de juízo e que, além de tudo, é título da obra. Mas quem afinal dá título ao livro? O cão ou o filósofo?

Durante o trabalho tentaremos desvendar este segredo, se é que é possível! Entretanto, a pergunta que faço é, se realmente é preciso que cheguemos à conclusão definitiva se Machado de Assis prestigiou o filósofo ou o seu cão, quando da escolha do título. O nosso autor foi um escritor de enigmas, de mistérios... Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Novo mistério! Coisas do velho bruxo...

Mas as respostas podem estar ali, a olhos vistos, saltando diante dos nossos olhos de leitores. É preciso que fiquemos atentos, receptivos, a fim de que possamos encontrar as pistas deixadas pelo romancista.

No caso de Dom Casmurro, o narrador, que é o próprio marido traído, ou melhor, o marido que pensa que é traído, ou ainda, o marido traidor, revela: Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte(...). (ASSIS, 1962, p.817). Em Quincas Borba também é assim. Cabe a nós, leitores, acompanhar o olhar machadiano, que é móvel, como mostra Alfredo Bosi, em O enigma do olhar.

E estar atento é o grande segredo. Foi assim que surgiu a proposta desta dissertação. Do meu primeiro contato com o romance, já transcorreram mais de vinte anos e tal qual a bela Sofia, também sou uma trintona (mera coincidência!).

Bem, a história desta dissertação surgiu da seguinte maneira: meu exemplar de Quincas Borba já estava um tanto quanto prejudicado pelo tempo (que, por ventura, só não é cruel com a senhora Palha!), e com muitas anotações. Resolvi, então, adquirir um outro e entrei num sebo no centro da cidade, no Rio de Janeiro. Numa prateleira estavam vários Quincas Borba, mas os meus olhos fitaram uma lombada branca com letras alaranjadas. Folhei-o rapidamente, a fim de ver se não lhe faltava nenhuma página. De imediato, percebi que havia um capítulo a mais. Erro de edição? Podia ser. Fui ao primeiro capítulo e ao lê-lo, verifiquei que era totalmente diferente. Ao invés de Rubião fitava a enseada (....), o texto constava de uma conversa entre o filósofo, o médico e Rubião. Mas e o cão? Onde ele estava? Sim. Lá estava ele, ao pé da cama do doente e segundo o narrador não saía de lá há muitos dias. Mas este cão não tinha pêlo cor de chumbo, mas sim cor de café, sabe-se lá por quê. Fiquei intrigada. Afinal, que Quincas Borba era este, tão diferente?!

De acordo com a nota editorial da edição, constatei que se tratava de um texto, tal qual o publicado em folhetim, na revista A Estação, no período de 15 de junho de 1886 a 15 de setembro de 1891. E que revista era essa? Dias depois, em pesquisa na Biblioteca Nacional, vi que a revista A Estação era um suplemento literário do Jornal Ilustrado para a Família, periódico da época de Machado. O suplemento era editado duas vezes por semana e tratava, quase que exclusivamente, de moda e etiqueta. Possuía uma agenda cultural, em que constavam as peças de teatros que estavam em cartaz, bem como outros entretenimentos. Mas a revista tinha também um espaço reservado à literatura, no qual eram publicados crônicas, artigos, poesias, contos e romances.

Machado de Assis muito escreveu na revista, ou suplemento, de 1884 a 1891. Um dos romances publicados foi Quincas Borba. Foi na revista A Estação, no seu folhetim, que Machado de Assis divulgou, pela primeira vez, a história do mineiro Rubião de Alvarenga e da sua amada Sofia Palha, durante cinco anos, em edições quinzenais. Depois disso, mas ainda no mesmo ano, é que o autor publicou Quincas Borba, em volume, no formato livro, em fins de 1891. Só que esta edição não era mera cópia do folhetim.

Isto quer dizer que Machado de Assis fez alterações no seu texto original. Mas, quais serão as alterações feitas pelo nosso autor? O que ele resolveu suprimir, alterar ou acrescentar? O que ele resolveu conservar? E principalmente, qual o resultado de tudo isso? E, finalmente, se as modificações existem, quais são as novas possibilidades de leitura que se abrem?

A fim de encontrar as respostas, vamos confrontar dois textos, publicados pela Civilização Brasileira, em 1977, que fazem parte das Edições Críticas de Obras de Machado de Assis. O primeiro, que foi denominado de apêndice, pela própria editora, é a reprodução do texto publicado em folhetim e o segundo é o Quincas Borba em formato livro, cuja primeira edição Machado de Assis publicou em 1891, como já dissemos. É aquele Quincas Borba, que todos nós conhecemos.

Posso adiantar, objetivando aguçar a sua curiosidade de leitor, que quando comparamos o Quincas Borba que conhecemos com aquele publicado em folhetim, temos muitas diferenças, que vão muito além da cor do cão. Temos personagens diferentes e dois narradores distintos. O narrador do folhetim é muito mais descritivo e muito menos ácido. O outro é mais incisivo e cruel. Isso oferece alterações não apenas no olhar do narrador, mas também no foco narrativo.

Rubião, no folhetim, não é o mesmo matuto ingênuo e Sofia não é a mesma senhora dissimulada, que nunca perde o controle da situação. Dona Tonica, a filha do major Siqueira é a mesma solteirona, quarentona, mas não é apenas isso. É também personagem que comove o leitor no seu desejo de encontrar um companheiro. Carlos Maria tem alguns dos seus segredos revelados. E Cristiano Palha? Sim, ele também sofre alterações na pena do narrador. Esta é a minha proposta de trabalho: confrontar os dois escritos; identificar as diferenças e avaliar o resultado da reescrita machadiana.

A fim de chegar mais perto da oficina de criação de Quincas Borba, organizei esta dissertação em quatro capítulos:

O primeiro, denominado de “A OFICINA DA CRIAÇÃO”, é o momento no qual conheceremos as principais diferenças entre estes dois textos. Veremos o que Machado de Assis conservou, suprimiu ou alterou quando publicou Quincas Borba, posteriormente. Este capítulo é dividido em dois blocos distintos, que, por sua vez, estão intimamente entrelaçados. No primeiro, está a análise dos capítulos que foram alterados e no segundo as alterações que ocorreram dentro de um mesmo capítulo, tais como a substituição de uma oração ou de apenas um verbete, oferecendo, pois, uma nova possibilidade de leitura.

O segundo é “O NARRADOR”. Em outra situação, este seria o primeiro capítulo, já que é a partir da voz do narrador que conseguimos traçar um ponto de vista, uma vez que é ele quem conduz a trama. Mas como estamos trabalhando com um texto praticamente desconhecido (o folhetim), fez-se necessário o capítulo anterior. Aqui, encontramos dois narradores distintos, que têm estilos diferentes de narrar e que priorizam focos diferentes. Há pontos em comuns, obviamente, já que, a princípio, estariam narrando o mesmo livro. São narradores astutos, tagarelas e perspicazes, como todos os narradores do velho bruxo.

Depois de conhecermos o trabalho de cada narrador, depois da identificação das alterações existentes entre os dois textos, veremos “A ENUNCIAÇÃO DOS OPOSTOS”, meu capítulo terceiro. Neste momento, vamos confrontar personagens, situações, buscando identificar identidades e diferenças. É que, em Quincas Borba, as personagens são sempre apresentadas em confronto com outras, seja quando da apresentação das suas características, seja quando da realização de determinadas ações. Em Quincas Borba uma personagem pode agir só, mas o narrador coloca-a sempre em confronto com outra personagem, de característica antagônica, ou ainda numa situação de igualdade com outra personagem, objetivando reforçar uma determinada característica ou ação. Neste capítulo faremos também a comparação de uma mesma personagem, verificando seus aspectos contrários. Ou seja, analisaremos a Sofia que temos no folhetim com aquela que encontramos na reescrita e ainda a mesma personagem, na mesma edição, mas fazendo a comparação do seu comportamento e atitudes durante toda a narrativa, a fim de verificar as diferenças, por exemplo.

O quarto e último capítulo é “A CARNAVALIZAÇÃO”. A partir da teoria da carnavalização, de Mikhail Bakhtin, analisaremos este aspecto fazendo a comparação entre as duas edições. Adianto, desde já, que a reescrita machadiana é muito mais carnavalizada do que a do folhetim, em virtude de o narrador ser muito mais ácido e cruel. Desta feita, a ascensão de Rubião, bem como seu declínio, é carregado de um riso muito mais agudo.

Neste capítulo analisaremos a posição de Rubião enquanto rei do carnaval, cujo reinado é predefinido, com hora de início e término; o apogeu de Sofia; o riso; o grotesco; as máscaras do carnaval; a praça carnavalesca, entre outras características do Carnaval, segundo os preceitos de Mikhail Bakhtin.

Em nossa “CONCLUSÃO”, verificamos que a reescrita machadiana é muito mais cruel, quando denuncia a aristocracia da cidade do Rio de Janeiro. O folhetim também é carregado de denúncias e observações, mas como possui um narrador menos ácido, que mostra personagens mais emotivas, acaba por diluir um pouco esta crítica ferrenha, que o narrador da reescrita, tão primorosamente, apresentou.

O que mais me agradou, quando da escolha do tema e da realização desta dissertação, é que a crítica especificamente literária nada falou sobre isso até o momento. Ou seja, não percebeu que a primeira edição de Quincas Borba, divulgada em folhetim, é muito diferente daquela publicada em fins de 1891. Li, por vezes, em alguns livros teóricos, que Machado havia publicado Quincas Borba em folhetim, mas da maneira como estava escrito, sempre pensei que fosse o mesmo livro, até o momento em que pude confrontar as duas edições. Há trabalhos de crítica textual sobre essas duas edições, mas de ordem filológica. Ou seja, não fazem a análise da produção de significação, da análise do discurso, das possibilidades de leitura. Quer dizer, na pesquisa de crítica textual, reconhece-se a diferença entre uma edição e outra, quanto à alteração de vocábulos, supressão de vírgulas ou pontos, mas não se reconhecem as edições como livros diferentes, que é exatamente a proposta que defendo. Esta é a minha tese.

Para tanto, trabalhei com duas edições, ambas publicadas pela Editora Civilização Brasileira, em 1977. Mas a maneira como trabalhei, a fim de que você possa acompanhar nossa análise, explico a seguir, no início do primeiro capítulo.

Então, vem comigo, leitor, como diz o narrador de Quincas Borba. Vamos juntos descobrir este novo romance (o folhetim), que embora mais antigo, chega como novidade. Vamos juntos tentar dissecar estes dois textos. Vamos tentar enxergá-los com um olhar crítico, tentar ser argutos e perspicazes, tal qual os narradores de Machado de Assis. Vamos caminhar ao lado de Rubião nestas duas estradas que o levam à loucura. Vamos, junto com os narradores, entrar na Corte e valsar com Sofia, que tanto gosta de exibir-se nos salões. Vamos, tal qual Maria Benedita, acompanhar os passos da senhora Palha nos bailes, a fim de desvendar os segredos por ela guardados. Vamos participar dos banquetes de Rubião. Vamos sentar ao seu lado e nos fartar nos banquetes da vida. Vamos degustar cada descoberta, cada diferença, saboreando-a como se fosse a última fatia da sobremesa preferida, feita com uma fruta fora de estação. Então, não lhe parece sedutor?

 

CAPÍTULO I – A OFICINA DA CRIAÇÃO

 

1.1. — Do que eu falo

Dez anos após ter publicado Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, Machado de Assis publica a primeira edição de Quincas Borba, em 1891. Ocorre que esta obra havia sido publicada, anteriormente, em folhetim. Até aí, nenhuma novidade, já que muitos eram os autores, inclusive o próprio Machado, que se utilizavam do recurso do folhetim para a divulgação dos seus escritos, tais como: romances, contos, poesias, críticas, entre outros.

Pois bem, Quincas Borba teve sua primeira publicação na revista A Estação, que era um suplemento literário, um encarte do Jornal Ilustrado para a Família, no período de 15 de junho de 1886 a 15 de setembro de 1891, em edições quinzenais. A novidade está na comparação entre estes dois escritos: o divulgado em A Estação e o publicado em fins de 1891, no formato de livro. É que o segundo não é uma mera cópia do primeiro. O velho bruxo alterou e suprimiu diversos capítulos, além de redigir outros, deixando em evidência um fino trabalho de artesão. Isso nos faz perceber que, enquanto o autor divulgava seu texto na revista A Estação, já trabalhava a pena em sua reescrita. O resultado de tudo isso, daquilo que denominamos ser a primeira redação pública de Quincas Borba é, na verdade, a primeira versão do romance, já que, ao fazer tais alterações na sua segunda edição, escreveu, pois, um livro diferente.

Sim, caro amigo, um livro diferente, uma nova versão. Irá concordar comigo quando, juntos, verificarmos algumas dessas alterações. Mas nem tudo é tão simples assim, pois, a princípio, tudo parece ser exatamente a mesma coisa, o mesmo livro, já que ambos cuidam das mesmas personagens: Rubião, Palha, Sofia, Quincas Borba – o filósofo, Quincas Borba – o cão, entre tantos outros. Ao reescrever a obra, o autor introduziu modificações quanto à forma: ou seja, redistribuiu capítulos e suas numerações; diluiu alguns deles dentro de outros capítulos, suprimiu outros e alterou, por muitas vezes, a ordem do enredo, entre tantas outras alterações. Para estudar estas duas edições ou versões, e a fim de torná-las mais claras para você, didaticamente, vamos chamar de a e folhetim, aquela publicada na revista A Estação e de b, a versão em livro, que chamaremos de romance.

Vale a pena ressaltar, ainda aqui, nas primeiras páginas deste trabalho, que meu ponto de partida será o folhetim (a), já que se trata da primeira redação pública de Quincas Borba. Digo redação pública porque foi a primeira edição publicada pelo velho bruxo. Devemos levar em consideração a possibilidade de existirem outros textos em seus guardados que ainda não foram encontrados ou divulgados. É a partir da leitura do folhetim que acompanharemos as alterações realizadas na segunda edição (b).

Agora, mostraremos uma tabela comparativa para que você compreenda o que estamos tentando dizer. É, pois, uma tabela puramente didática, sem nenhuma pretensão de maior análise. É como duas fotografias panorâmicas de um determinado local, tomadas em momentos distintos. Podemos enxergar o todo, mas não os detalhes. As pequenas diferenças só são possíveis de serem vistas fazendo a análise das diversas fotos tiradas em diferentes pontos deste mesmo local, porém, aproximadas. Ou seja, uma análise mais detalhada somente é possível de ser feita fazendo a comparação de foto a foto. Por isso, este trabalho será constituído de dois momentos: o primeiro, que mostra esta visão panorâmica, este movimento ampliado: a tabela abaixo. O segundo, uma análise comparativa das várias fotos das duas edições. Ou seja, é o momento em que faremos uma comparação mais detalhada dos dois textos: o folhetim (a) e o romance (b).

Outro fato que merece explicação é que, como você já sabe, estamos trabalhando com duas edições diferentes e portanto, estaremos, no corpo deste trabalho, utilizando citações tanto do folhetim como do romance. Assim, para facilitar sua compreensão, resolvi, didaticamente, estabelecer critérios para utilizar uma citação de a ou de b. E, por isso, resolvi o seguinte: sempre que um texto estiver presente somente no folhetim, obviamente minha referência será a. Mas se, por ventura, o trecho citado estiver tanto no folhetim quanto no romance, optei por utilizar b.

1.2. — Tabela comparativa Quincas Borba = visão panorâmica[1]

1.      a: I, de 15.06.1886: em b: IV e V;

2.      a: II, de 15.06.1886: em b: V e VIII;

3.      a: III, de 30.06.1886: em b: I e IV;

4.      a: IV, de 30.06.1886: em b: V ;

5.      a: V, de 30.06.1886: em b: VIII;

6.      a: VI, de 15.07.1886: não é possível associar este capítulo em b;

7.      a: VII e VIII, de 15.07.1886: em b: IX

8.      a : IX e X, de 15.07.1886 e 31.07.1886 respectivamente: em b: X;

9.      a: XI, de 31.07.1886: em b: igual correspondência;

10.  a: XII, de 31.07.1886: em b: igual correspondência;

11.  a: XIII, de 31.07.1886: em b: igual correspondência;

12.  a: XIV, de 31.07.1886 e continuação em 15.08.1886: em b: igual correspondência;

13.  a: XV, de 15.08.1886: em b: igual correspondência;

14.  a: XVI, de 15.08.1886: em b: igual correspondência;

15.  a: XVII, de 15.08.1886: não é possível associar este capítulo em b;

16.  a: XVIII, de 15.08.1886: em b: XVII;

17.  a: XIX, de 31.08.1886 : não é possível associar este capítulo em B;

18.  a: XX, de 31.08.1886: em b: I;

19.  a: XXI, de 31.08.1886: em b: II;

20.  a: XXII de 31.08.1886 e continuação em 15.09.1886 e XXIII, de 15.09.1886: em b: III;

21.  a: XXIV, de 15.09.1886: em b: XXI e XXII;

22.  a: XXV, de 15.09.1886: em b: XXIII e XXIV;

23.  a: XXVI, de 30.09.1886: em b: XXV e XXVI;

24.  a: XXVII, de 30.09.1886: em b: igual correspondência;

25.  a: XXVIII, de 30.09.1886 e continuação em 15.10.1886: em b: igual correspndência;

26.  a: XXIX, de 15.10.1886: em b: igual correspondência;

27.  a: XXX, de 31.10.1886: não é possível associar este capítulo em b;

28.  a: XXXI, de 31.10.1886: em b: igual correspondência;

29.  a: XXXII, de 31.10.1886: em b: igual correspondência;

30.  a: XXXI, de 15.11.1886 (esta numeração de capítulo aparece repetida no follhetim. Vale observar que a repetição é quanto à numeração do capítulo e não quanto ao texto. Pode ser que o erro seja apenas tipográfico e não do autor, uma vez que o folhetim era impresso na França. Assim, o autor tinha a necessidade de enviar seus escritos com muita antecedência, o que pode ter ocasionado o erro) em b: XXXIII;

31.  a: XXXII, de 15.11.1886: em b: XXXIV;

32.  a: XXXIII e XXXIV, de 15.11.1886: em b: XXXV;

33.  a: XXXV, de 15.11.1886: em b: XXXVI;

34.  a: XXXVI, de 30.11.1886: em b: XXXVII;

35.  a: XXXVII, de 30.11.1886: em b: XXXVIII;

36.  a: XXXVIII, de 30.11.1886: em b: XXXIX;

37.  a: XXXIX, de 15.12.1886: em b: XL;

38.  a: XL, de 15.12.1886: em b: XLI;

39.  a: XLI, de 15.12.1886 e continuação em 31.12.1886: em b: XLII;

40.  a: XLII, de 31.12.1886: em b: XLIII;

41.  a: XLIII, de 31.12.1886. Não é possível associar este capítulo em b, bem como os capítulos XLIV, XLV, XLVI e XLVII de a;

42.  a: XLVIII, de 31.01.1887: em b: XLVIII;

43.  a: XLIX, de 31.01.1887: em b: XLIX ( há aqui um espaço temporal de trinta dias e não de apenas uma quinzena);

44.  a: L, de 31.01.1887 e continuação em 15.02.1887 e 28.02.1887: em b: L;

45.  a: LI, de 28.02.1887: em b: igual correspondência;

46.  a: LII, de 28.02.1887: em b: igual correspondência;

47.  a: Não consta no folhetim o capítulo LIII (talvez tenha sido erro de tipografia, pois o capítulo LIV no folhetim corresponde exatamente ao capítulo LIII do romance, após a igualdade de correspondência entre o folhetim e o romance no capítulo anterior – LII, sem que tenha sido interrompida a publicação quinzenal);

48.  a: LIV, 15.3.1887: em b: LIII;

49.  a:LV, de 15.03.1887: em b: LIV;

50.  a: LVI, de 15.03.1887: em b: LV;

51.  a: LVII, de 15.03.1887 e continuação em 31.03.1887 de LVI (Há aqui uma inversão de capítulos. Ou seja, LVI tem continuação após a publicação de LVII. Pode ser erro de publicação, pois o autor escrevia no Rio de Janeiro, mas o material era enviado e publicado em Paris, como já dissemos): em b: LVI;

52.  a: LVII, de 31.03.1887: em b: igual correspondência;

53.  a: Não foi possível a localização dos capítulos LVIII a LXI. É possível que tenham sido perdidos ao longo do tempo. O arquivo da Biblioteca Nacional possui A Estação de 15.04.1887, que traz a parte final de um capítulo — do parágrafo 561 até 566. Parágrafos estes que, comparados com b, podem ser associados ao capítulo LX. A curiosidade fica por conta da data de publicação, na qual não houve interrupção, permanecendo a quinzena. Assim, neste espaço de tempo, é possível que tenha havido a publicação de quatro capítulos;

54.  a: LXIII, de 30.04.1887: em b: LXI e LXII;

55.  a: LXIV, de 30.04.1887 e continuação em 15.05.1887: em b: LXIII e LXIV;

56.  a: LXV, de 15.05.1887: em b: igual correspondência;

57.  a: LXVI, de 15.06.1887: em b: igual correspondência (há aqui um espaço temporal de trinta dias);

58.  a: LXVII, de 15.06.1887: em b: igual correspondência;

59.  a: LXVIII, de 15.06.1887 e continuação em 30.06.1887: em b: igual correspondência;

60.  a: LXIX, de 15.07.1887 e continuação em 31.07.1887: em b: igual correspondência ( há aqui um espaço temporal de trinta dias);

61.  a: LXX , 31.07.1887: em b: igual correspondência;

62.  a: LXXI, 31.07.1887 e LXXII, em 15.08.1887: em b: LXXI;

63.  a: LXXIII, 15.08.1887: em b: LXXII;

64.  a: LXXIV, 15.08.1887: não é possível associar este capítulo em b;

65.  a: LXXV, 15.08.1887 com continuação em 31.08.1887 e 15.09.1887 e LXXVIII, 30.09.1887: em b: LXXVII;

66.  a: LXXVI, 15.09.1887: não é possível associar este capítulo em b;

67.  a: LXXVII, 15.09.1887: não é possível associar este capítulo em b;

68.  a: LXXIX, 30.09.1887 com continuação em 15.10.1887: em b: LXXIV, LXXV, LXXVI:

69.  a: LXXX, 15.10.1887 com continuação em 15.11.1887 e 30.11.1887: não é possível associar este capítulo em b;

70.  a: LXXXI, 30.11.1887: não é possível associar este capítulo em b;

71.  a: LXXXII, 15.12.1887 com continuação em 31.12.1887; LXXXIII, 31.12.1887 com continuação em 15.01.1888: em b: LXXVIII;

72.  a: LXXXIV, 31.01.1888: em b: LXXIX;

73.  a: LXXXV, 31.01.1888 e LXXXVI: em b: LXXX;

74.  a: LXXXVII, 15.02.1888: em b: LXXXIII;

75.  a: LXXXVIII, 29.02.1888 e LXXXIX: em b: LXXXV;

76.  a: XC, 31.03.1888: em b: LXXXVI (Há aqui um espaço temporal de trinta dias);

77.  a: XCI, 15.04.1888: em b: LXXXVII;

78.  a: XCII, 15.04.1888: em b: LXXXVIII;

79.  a: XCIII, 15.04.1888: em b: LXXXIX;

80.  a: XCIV, 31.05.1888; XCV e XCVI: em b: XC, XCI e XCII (há aqui um espaço temporal de quarenta e cinco dias);

81.  a: XCVII, 31.05.1888 e XCVI, de 31.10.1888: em b: XCII (há aqui um espaço temporal de cinco meses, bem como a repetição da numeração de capítulos);

82.  a: XCVII, 31.10.1888: em b: XCIII;

83.  a: XCVIII, 31.10.1888: em b: XCIV;

84.  a: XCIX, de 15.11.1888: em b: XCV;

85.  a: C, de 15.11.1888: em b: XCVI;

86.  a: CI, de 15.11.1888: não é possível associar este capítulo em b;

87.  a: CII, de 15. 11.1888: não é possível associar este capítulo em b;

88.  a: CIII, de 15.11.1888, CIV e CV, de 30.11.1888 : em b: XCVII;

89.  a: CVI, de 30.11.1888, CX e CXI, de 15.12.1888: em b: XCVIII;

90.  a: CVII, de 30.11.1888: não é possível associar este capítulo em b;

91.  a: CVIII, de 15.12.1888: não é possível associar este capítulo em b;

92.  a: CIX, de 15.12.1888: não é possível associar este capítulo em b;

93.  Os capítulos CX e CXI não constam no folhetim. Não houve interrupção quanto às datas de publicação. Assim, ou foram perdidos ou o erro é tipográfico, quanto à numeração;

94.  a: CXII, de 31.12.1888, CXIII, de 31.12.1888, CXIV, de 31.12.1888, CXV, de 31.12.1888, CXII, de 28.01.1889: em b: XCIX;(há aqui a repetição na numeração do folhetim)

95.  a: XCII, de 28.02.1889: em b: XCIX, C e CI;(há aqui a repetição na numeração do folhetim)

96.  a: CXIII, de 31.01.1889: não é possível associar este capítulo em b (este capítulo foi publicado antes do XCII. O erro de tipografia é, pois, uma possibidade);

97.  a: XCIII, de 15.03.1889: em b: CI e CII;

98.  a: CXIV, de 31.03.1889: em b: C;

99.  a: CXV, de 30.04.1889: não é possível associar este capítulo em b;

100.              a: CXVI, de 30.04.1889, CXVII, de 30.04.1889, com continuação em 15.06.1889: em b: CIII ( é provável que exista aqui um erro de tipografia);

101.              a: CXVIII, de 30.04.1889, CXIX ( continuação), de 30.06.1889: em b: CIV;

102.              a: CXVIII, de 15.06.1889: não é possível associar este capítulo em b;(repetição na numeração. Possível erro de tipografia)

103.              a: CXIX ( continuação) de 30.06.1889 e CXX, de 31.07.1889: em b: CV;

104.              a: CXXI, de 31.07.1889 : em b: CXXXVIII;

105.              a: CXXII, e CXXXI, de 31.07.1889: em b: CXXX;

106.              a: CVI, de 30.11.1889: em b: igual correspondência;

107.              a: CVII, de 30.11.1889: em b: igual correspondência;

108.              a: CVIII, de 30.11.1889: em b: igual correspondência;

109.              a: CIX, de 30.11.1889: em b: igual correspondência;

110.              a: CX, de 15.12.1889: em b: igual correspondência;

111.              a: CXI, de 15.12.1889: em b: igual correspondência;

112.              a: CXII, de 15.12.1889: em b: igual correspondência;

113.              a: CXIII, de 15.12.1889: em b: igual correspondência;

114.              a: CXIV, de 31.12.1889: em b: igual correspondência;

115.              a: CXV, de 31.12.1889: em b: igual correspondência;

116.              a: CXVI, de 15.01.1990: em b: igual correspondência;

117.              a: CXVII, de 15.01.1890; em b: igual correspondência;

118.              a: CXVIII, de 15.01.1890, com continuação em 31.01.1890 e 15.02.1890: em b: CXXVIII;

119.              a: CXIX, de 15.02.1890: em b: igual correspondência;

120.              a:CXX, de 15.02.1890: em b: igual correspondência;

121.              a: CXXI, de 28.02.1890; em b: igual correspondência;

122.              a: CXXII, de 28.02.1890: em b: igual correspondência;

123.              a: CXXIII, de 28.02.1890: em b: igual correspondência;

124.              a: CXXIV, de 28.02.1890: em b: igual correspondência;

125.              a: CXXV, de 28.02.1890: em b: igual correspondência;

126.              não foi possível encontrar no folhetim o capítulo CXXVI. É possível que tenha sido perdido, já que o folhetim acusa, em 28.02.1890 uma continuação do capítulo CXXV. Data em que, provavelmente, foi publicado o capítulo CXXVI;

127.              a: CXXVII, de 15.03.1890: em b: CXXVI;

128.              a: CXXVIII, de 15.03.1890: em b: CXXVII;

129.              a: CXXIX, de 15.03.1890: em b: CXXVIII;

130.              a: CXXX, de 15.03.1890: em b: CXXIX;

131.              a: CXXXI, de 15.03.1890: em b: CXXX e CXXXVIII;

132.              a: CXXXII, de 31.03.1890: em b: CXXXI;

133.              a: CXXXIII e CXXXIV, de 31.03.1890 : em b: CXXXIII;

134.              a: CXXXIV, de 31.03.1890: em b: CXXXIII e CXXXIV;

135.              a: CXXXV, de 31.03.1890: em b: igual correspondência;

136.              a: CXXXVI, de 31.03.1890: em b: igual correspondência;

137.              a: CXXXVII, 15.04.1890: em b: igual correspondência;

138.              a: CXXXVIII, de 15.04.1890: em b: igual correspondência;

139.              a: CXXXIX, de 15.05.1889: em b: igual correspondência;

140.              a: CXL, de 15.05.1890: em b: igual correspondência;

141.              a: CXLI, de 15.05.1890: em b: igual correspondência;

142.              a: CXLII, de 31.05.1890: em b: igual correspondência;

143.              a: CXLIII, de 31.05.1890: não é possível associar este capítulo em b;

144.              a: CXLIV, de 31.05.1890: não é possível associar este capítulo em b;

145.              a: CXLV, de 31.05.1890: em b: CXLIII;

146.              a: CXLVI, de 15.06.1890: não é possível associar este capítulo em b;

147.              a: CXLVII, de 15.06.1890; não é possível associar este capítulo em b;

148.              a: CXLVIII, de 15.06.1890: não é possível associar este capítulo em b;

149.              a: CXLVI, de 15.07.1890: em b: CXLIV (há no folhetim a repetição numérica do capítulo publicado em 15.06.1890. O erro deve ser tipográfico. O capítulo CXLVIII é interrompido e acusa posterior publicação. Não há, intretanto, interrupção na seqüência do texto. Este capítulo é a continuação do anterior) ;

150.              a: CXLVII, de 15.07.90: em b: CXLV (como houve erro tipográfico na numeração do capítulo anterior, este capítulo acusa repetição de sequência quanto à numeração, no folhetim, bem como o capítulo seguinte);

151.              a: CXLVIII e CXLIX, de 15.07.1890 e continuação em 31.07.1890: em b: CXLVI;

152.              a: CL, de 31.07.1890: em b: CXLVII

153.              a: CLI e CLII, de 31.07.1890: em b: CXLVIII;

154.              a: CLIII, de 31.07.1890: em b: CXLIX;

155.              a: CLIV, de 31.07.1890: em b: CL;

156.              a: CLII, de 15.08.1890 : em b: CLI e CLII ( houve aqui nova repetição quanto à numeração dos capítulos, no folhetim, bem como nos capítulos seguintes, sem que tenha havido repetição no texto, que possui continuidade correta);

157.              a: CLIII, de 15.08.1890: em b: CLII( no folhetim, nova repetição quanto à numeração de capítulos, sem comprometimento do texto);

158.              a: CLII ( continuação) de 31.08.1890 e 30.09.18890: em b: CLIII (nova repetição, no folhetim, quanto à numeração do capítulo, sem comprometimento do texto ;

159.              a: CLIII, de 30.09.1890: em b: CLIV( repetição da numeração do capítulo, no folhetim, sem comprometimento do texto);

160.              a: CLIV, de 30.09.1890: não é possível associar este capítulo em b (nova repetição quanto à numeração do capítulo, no folhetim, sem comprometimento do texto);

161.              a: CLV, de 30.09.1890: não é possível associar este capítulo em b;

162.              a: CLVI, de 30.09.1890: não é possível associar este capítulo em b;

163.              a: CLV, de 15.10.1890: não é possível associar este capítulo em b (repetição de numeração do capítulo, no folhetim);

164.              a: CLVI, de 15.10.1890; não é possível associar este capítulo em b;

165.              a: CLVII, de 15.10.1890: em b: CLV;

166.              a: CLVI, de 15.11.1890; em b: igual correspondência;

167.              a: CLVII, de 15.10.1890: em b: igual correspondência;

168.              a: CLVIII, de 15.11.1890: em b: igual correspondência;

169.              a: CLIX, de 30.11.1890: em b: igual correspondência;

170.              a: CLX, de 30.11.1890: em b: igual correspondência;

171.              a: CLXI, de 30.11.1890, com continuação em 15.12.1890: em b: igual correspondência;

172.              a: CLXII, de 15.12.1890: em b: igual correspondência;

173.              a: CLXIII, de 15.12.1890: em b: igual correspondência;

174.              a: CLXIV, de 15.12.1890: em b: igual correspondência;

175.              a: CLXV, de 15.01.1891: em b: igual correspondência;

176.              a: CLXVI, de 15.01.1891: em b: igual correspondência;

177.              a: CLXVII, de 15.01.1891: em b: igual correspondência;

178.              a: CLXVIII, de 31.01.1891: em b: igual correspondência;

179.              a: CLXIX, de 31.01.1891: em b: igual correspondência;

180.              a: CLXX, de 31.01.1891: em b: igual correspondência;

181.              a: CLXXI, de 15.02.1891: em b: CLXXI, CLXXII, CLXXIII;

182.              a: CLXXII, de 28.02.1891: em b: CLXXIV;

183.              a: CLXXIII, de 28.02.1891 e continuação em 15.02.1891: em b: CLXXV;

184.              a: CLXXIV, de 15.03.1891: em b: CLXXVI;

185.              a: CLXXV, de 15.03.1891: em b: CLXXVII;

186.              a: CLXXVI, de 31.03.1891 e CLXXIX, de 31.03.1891: em b: CLXXXVIII;

187.              a: CLXXVII, de 31.03.1891: em b: CLXXXV e CXCII;

188.              a: CLXXVIII, de 31.03.1891: não é possível associar este capítulo em b;

189.              a: CLXXX, de 31.03.1891: em b: CLXXVIII;

190.              a: CLXXXI, de 15.04.1891: não é possível associar este capítulo em b:

191.              a: CLXXXII, de 15.04.1891: não é possível associar este capítulo em b;

192.              a: CLXXXIII, de 30.04.1891: em b: CLXXIX;

193.              a: CLXXXIV, de 30.04.1891: em b: CLXXX;

194.              a: CLXXXV, de 15.05.1891: em b: CLXXXI;

195.              a: CLXXXVI, de 15.05.1891: em b: CLXXXII;

196.              a: CLXXXVII, de 15.05.1891: em b: CLXXXIII;

197.              a: CLXXXVIII, de 15.06.1891: em b: CLXXXIV;

198.              a: CLXXXIX, de 15.06.1891: não é possível associar este capítulo em b;

199.              a: CXC, de 30.06.1891: em b: CLXXXV;

200.              a: CXCI, de 30.06.1891: em b: CLXXXVI;

201.              a: CXCII, de 30.06.1891: em b: CLXXXVII e CLXXXVIII;

202.              a: CXCIII, de 30.06.1891: em b: CLXXXIX;

203.              a: CXCIV, de 30.06.1891: em b: CXC;

204.              a: CXCII, de 31.08.1891: em b: CXCI;

205.              a: CXCIII, de 31.08.1891: em b: CXCII;

206.              a: CXCIV, de 31.08.1891: em b: CXCIII;

207.              a: CXCV, de 31.08.1891; em b: CXCIV;

208.              a: CXCVI, de 31.08.1891; em b: CXCV;

209.              a: CXCVII, de 31.08.1891: em b: CXCVI;

210.              a: CXCVIII, de 31.08.1891: em b: CXCVII;

211.              a: CXCIX, de 31.08.1891: em b: CXCVIII;

212.              a: CC, de 15.09.1891: em b: CXCIX;

213.              a: CCI, de 15.09.1891: em b: CC;

214.              a: CCII, de 15.09.1891: em b: CCI.

Antes de iniciarmos o próximo tópico existem ainda algumas considerações que eu gostaria de fazer. Observando a tabela acima podemos verificar que muitas vezes um determinado capítulo aparece repetido em data posterior. Esta repetição é apenas quanto à numeração deste capítulo. Não há aí nenhuma repetição quanto ao texto. As idéias são consecutivas e coerentes, com continuidade. Isto remete ao erro tipográfico, simplesmente. Como vimos, o material era enviado com antecedência para Paris, de navio, e àquela época não tínhamos os recursos gráficos que temos hoje. Estes problemas, entretanto, não oferecem nenhuma dificuldade quanto às diferenças existentes entre o folhetim e o romance, no que diz respeito às modificações feitas por Machado de Assis.

Outra questão que gostaríamos de lembrar é que a tabela acima traz apenas uma idéia associativa de a para b. Procuramos identificar os capítulos do folhetim que podem ser relacionados com o romance. Vejam bem que estamos falando de associação. Ou seja, um determinado capítulo do romance pode não ser totalmente idêntico ao do folhetim, embora tenhamos feito sua classificação como de igual correspondência. Isto quer dizer que as letras que dançam na folha de papel podem não ser exatamente as mesmas. A idéia é que pode ser parecida. E são essas diferenças que passaremos a analisar a partir de agora.


1.3. — Um trabalho de artesão

Muitos são os capítulos que estão no folhetim (a) e que foram suprimidos em (b), no romance. Por que Machado de Assis resolveu excluir capítulos inteiros? Não é possível sabermos com absoluta certeza. Afinal, não há, até o momento, nenhuma carta explicativa escrita pelo autor que tenha sido divulgada. O que podemos, neste momento, é fazer deduções e chegar a respostas que pareçam corretas, através da análise do discurso, de corte bakhtiniano.

Verificando os capítulos que foram suprimidos, podemos perceber que nosso autor resolveu “cortar a língua” do narrador. Sabemos que os narradores de Machado de Assis são sempre muito falantes, argutos, perspicazes, inteligentes. Mas o narrador de Quincas Borba, no folhetim, é muito mais tagarela, dialoga muito mais com o leitor do que o narrador do romance. Além disso, aquele emite opiniões próprias, é muito mais intrometido e antecipa ao leitor fatos que serão revelados em páginas posteriores. É como se o velho bruxo podasse o narrador, como se o autor usasse, como diz o próprio narrador de Quincas Borba, o cabo do chicote para controlá-lo. No entanto, somente com o folhetim nas mãos é que podemos fazer a comparação e perceber uma tagarelice muito mais exacerbada. Vale dizer, Machado de Assis suprimiu do romance capítulos em que o narrador travava um diálogo com o leitor. Por outro lado, sendo mais tagarela e dialogando mais no folhetim, temos um narrador mais explicativo, um narrador que expõe os fatos com muito mais clareza. Trabalha de forma diferente do narrador do romance, que muitas vezes permite que as conclusões sejam do leitor, não revelando, explicitamente suas opiniões, com relação aos fatos por eles narrados

Vejamos um exemplo daquilo que estamos tentando dizer:

A comadre era muito feia. Peço desculpa de ser tão feia a primeira mulher que aqui apparece; mas as bonitas hão de vir. Creio até que já estão nos bastidores, impacientes de entrar em scena. Socegai, muchachas! Não me façaes cair a peça. Aqui vireis todas, em tempo idoneo... Deixai a comadre que é feia, muito feia

(ASSIS,a:1977,p.20).

Ou seja, nesta citação, do folhetim, temos o diálogo com o leitor. Mas não apenas isso. O narrador adianta que apesar da comadre Angélica ser feia, outras mulheres, bonitas, surgirão brevemente. Além disso, sem que o leitor possa opinar a respeito, diz que a personagem é muito feia. É preciso lembrar que beleza e feiúra não são apenas características de padrão social, mas também de gosto pessoal, que sofrem alteração não apenas de sociedade para sociedade, mas de pessoa para pessoa.

Capítulos breves também foram suprimidos quando da reescrita de Quincas Borba. Um exemplo de capítulo breve está no de número XIX. Todo o capítulo se constitui da seguinte citação: Passemos o inventario, passemos a estrada de ferro, passemos alguns mezes.(ASSIS, a: 1977, p.22). Este capítulo é, exclusivamente, voz do narrador, que mantém um diálogo com o leitor e tece explicações. Ou seja, mostra ao leitor a necessidade de se avançar no texto, no raciocínio e o conduz ao avanço espaço-temporal. Além disso, demonstra que uma nova narrativa será iniciada e que irá surgir uma nova história dentro da história que está sendo contada ou ainda a retomada da mesma história em outro tempo e/ou espaço, quem sabe...É, pois, um indicativo de mudanças. É aquele narrador explicativo e paciente que amarra o texto com a pena da sua caneta.

O capítulo XIX, obviamente é anterior ao capítulo XX, que por sua vez, introduz uma nova situação. É no capítulo XX, do folhetim, que o leitor irá se deparar com Rubião no Rio de Janeiro, na sua casa em Botafogo, fitando a enseada. Assim, passemos o inventário, já que neste capítulo a cláusula do testamento já foi revelada, Rubião já tomou posse do legado e (...)passemos a estrada de ferro(...)que conduz Rubião de Barbacena ao Rio de Janeiro. Obviamente, o capítulo XIX torna-se desnecessário na edição seguinte, no romance, porque a cena em que Rubião fita a enseada ocorre no primeiro capítulo. Ou seja, no romance, Rubião já surge para o leitor de posse dos seus bens, em sua casa, em Botafogo. Esta inversão narrativa e suas conseqüências será analisada no capítulo sobre carnavalização. Por enquanto, fiquemos com trechos das duas edições, apenas a título de comprovação de que podemos remetê-los à mesma cena. Vejam bem que eu disse a mesma cena e não a mesma situação e, como dissemos, tal análise será feita no capítulo sobre a carnavalização. Veremos primeiramente o trecho que consta no folhetim e a seguir aquele que podemos encontrar no romance:

Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro. Vês aquella figura de pé, com os polegares mettidos no cordão atado do chambre, á janella de uma linda casa da praia de Botafogo? É o nosso homem. Olha para a enseada; faz comsigo a reflexão de que se todo o mar fosse assim era um espelho. Depois lança os olhos pela praia, de uma ponta a outra; a casa delle fica mais ou menos no centro. Não conhece nada tão bonito: uma ordem circular de casas e jardins, deante de uma bacia de agua quieta, montanha ao fundo, como um panno de theatro

( ASSIS, a:1977, p.22).

RUBIÃO fitava a enseada,—eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade

(ASSIS,b:1977, p.107).

Vemos que podemos associar o capítulo XX do folhetim com o capítulo primeiro do romance. Há, entretanto, algumas questões que podemos analisar no que se refere ao texto do folhetim. Rubião está encantado com o mar que tem em sua frente e o considera o melhor, pois se todo o mar fosse igual àquele que tem diante dos seus olhos, seria um espelho. Lança os olhos à praia, de uma ponta a outra. Ou seja, Rubião detém, no seu olhar, toda a praia, sendo sua casa localizada quase no centro. É como se toda a praia fosse de sua propriedade, pois toda ela – de uma ponta a outra – está ao alcance do seu olhar e ele, Rubião, é o centro deste mundo. Na imaginação de Rubião tem-se o palco, que é a bacia de água quieta, casas e jardins, bem como sua própria casa. Neste palco, ele está no centro, ou quase. As montanhas, para Rubião, são as cortinas. Quer dizer, o mundo exterior é o espectador e ele, a personagem central. O mundo, no seu olhar, gira na direção dele.Vejam que esta é a primeira cena em que aparece Rubião, já no Rio de Janeiro. Assim, a visão de Rubião, apresentada pelo narrador, já é, pois, um indício de todo o caminho que será percorrido pelo mineiro, a partir de então. Rubião já se coloca numa posição privilegiada diante do mundo, como se fosse um rei. Sua praia é, talvez, mais bela que todo o mar e toda sua visão enxerga uma ordem circular em torno desta praia. Está, pois, no seu castelo, fitando seu reino.

Se fizermos a comparação com o capítulo primeiro do romance, vemos que, nesta edição, a sensação de propriedade de Rubião é bem maior. Ele não é somente proprietário da sua praia, mas de tudo aquilo que entra no seu campo de visão: do céu, da terra, do mar... Assim é, pois, proprietário de toda a natureza, do universo. Como sua sensação de propriedade é ampliada, também é ampliado o movimento da sua coroação enquanto rei, bem como do seu destronamento, como veremos no capítulo sobre a carnavalização.

Outros capítulos que foram suprimidos, quando da reescrita, são aqueles sobre a caracterização das personagens, que no folhetim ocorre de forma diferente daquela assumida pelo narrador do romance. Quer dizer, no narrador do romance a caracterização de uma personagem vai sendo tecida como uma teia vagarosa, com fios entrelaçados e simultaneamente com suas próprias ações, bem como as opiniões de demais personagens. Desta feita, somente ao final da narrativa o leitor terá construído a imagem do Rubião, da Sofia, do Palha, entre tantos outros. Vejamos um exemplo daquilo que estamos tentando explicar com um trecho contido no folhetim e que foi suprimido na versão seguinte.

Expansivos e francos! Imaginai o avesso disso, e tereis Carlos Maria; mas é o que a preguiça do leitor lhe não consente; ella quer que se lhe ponha aqui no papel a cara do homem, toda a cara, a pessoa inteira, e não há fugir-lhe.

De mim digo que sou totalmente outro: arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa collaborar no livro, com a minha propria imaginação. A melhor pagina não é só a que se relê, é tambem a que a gente completa de si para si. (...) Eia, faze um esforço, leitor amado. Já te disse que este Carlos Maria é o avesso do Freitas(...)

(ASSIS,a:1977, p.31).

Neste trecho temos a descrição de Carlos Maria e, de certa forma, a informação pejorativa do narrador com relação à personagem. Quer dizer, não é o leitor que construirá a imagem de Carlos Maria a partir das suas ações. As ações praticadas pela personagem durante a narrativa servirão apenas para confirmar a informação antecipada do narrador. Ou seja, este narrador do folhetim já fez seu julgamento diante do leitor. Carlos Maria é o avesso do Freitas, que é expansivo e franco. Isto contraria totalmente o que diz este próprio narrador com relação a sua participação no livro, bem como a do leitor. Afinal, é ele mesmo quem diz (...) arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa collaborar no livro, com a minha propria imaginação. E o que fez este narrador senão impedir que o leitor utilizasse sua imaginação e traçasse uma imagem de Carlos Maria ao final da narrativa, sem uma influência direta? Talvez por isso mesmo o nosso autor tenha suprimido o capítulo que contém apenas mais meia dúzia de linhas.

Sabemos que Quincas Borba tem Sofia como uma das protagonistas. Ou seria antagonista?! Pois bem, sabemos também que Sofia é dissimulada e que sempre possui o controle das suas emoções. Está sempre lá, fria e impassível. Quem não se lembra da anedota do padre Mendes, quando Rubião chamava Sofia para fitar o cruzeiro e de repente chega o major Siqueira? A citatação abaixo consta tanto do folhetim como do romance:

O major mal podia conter o assombro. Tinha visto as duas mãos presas, a cabeça do Rubião meio inclinada, o movimento rápido de ambos, quando ele entrou no jardim; e sai-lhe de tudo isto um Padre Mendes... Olhou para Sofia; viu-a risonha, tranqüila, impenetrável. Nenhum medo, nenhum acanhamento; falava com tal simplicidade, que o major pensou ter visto mal (grifos nossos)

(ASSIS,b:1977,p.150).

Pois bem, há uma única cena, em capítulo suprimido no romance, em que Sofia perde o controle da situação diante de Rubião. A cena faz parte de um dos capítulos em que Rubião vai à casa da bela dama levando a carta encontrada por ele no jardim e que era direcionada a Carlos Maria.

Rubião susteve a ponto uma risada ironica, depois, flamejando-lhe os olhos, respondeu em voz sumida:

— Sei ... Carlos Maria...

Pasmada e pallida, Sophia recuou um passo e durante alguns segundos, não poude descerrar os beiços: afinal, venceu-se e fallou

(ASSIS,a:1977, p.130).

Ao divulgar uma Sofia desconsertada, o narrador do folhetim fragiliza a personagem, tornando-a mais humanizada e mais distante da imagem de mulher dissimulada. Talvez por isso a cena tenha sido suprimida no romance. Em contrapartida, mostra um Rubião irônico diante de uma Sofia pasmada e pálida, fortalecendo sua imagem e tornando-o menos vulnerável. Um Rubião menos vulnerável é uma personagem menos propensa a servir de exemplo para a filosofia do humanitismo de Quincas Borba. Um Rubião capaz de ironizar a dissimulada Sofia é um Rubião capaz de não se deixar consumir por amor, ou melhor, pelo amor de Sofia, já que é um Rubião menos frágil. Um Rubião mais irônico é mais capaz de não se deixar enganar. Logo, não seria a mesma personagem. Aliás, as mudanças encontradas nas duas versões são tantas que eu diria que temos outra personagem se compararmos aquela que protagoniza o folhetim com aquela que consta do romance. É claro, que de qualquer maneira, ambos os narradores conduzem a narrativa de forma que ao final de tudo, nós leitores, possamos nos apiedar de Rubião, que não soube gerir sua fortuna, apaixonou-se perdidamente por Sofia, empobreceu e terminou seus dias sem destino, sem esperança de pouso ou de comida... (ASSIS,b:1977, p.343).

Mas o Rubião do folhetim é muito mais determinado e caminha na direção dos seus objetivos. São muitos os capítulos que foram suprimidos no romance que apontam tal característica. Tanto assim que o narrador do folhetim não titubeia em mostrar um Rubião que cuida do filósofo por interesse no legado, cuida do cão para agradar ao dono e que afasta do convívio do doente todos os amigos.

Rubião era um desenganado da politica. Vivia de ser professor, officio em que ia já cançado; mas de todas as ambições antigas ficara-lhe uma: a do dinheiro.(grifos nossos).Antes de ser professor, metteu-se em tres emprezas, que naufragaram todas; não podendo ser nada, nem ter nada, destinou-se ao ensino, para comer alguma cousa, e morrer em alguma parte

(ASSIS,a:1977,p.10).

É no capítulo terceiro do folhetim, quando o narrador começa a apresentar a personagem ao leitor, que ele descreve a ambição do mineiro. Aí podemos tecer algumas observações: Rubião havia tentado outras atividades:

1— Havia tentado ingressar na política, sem sucesso;

2— Por três vezes tentou administrar empresas e encontrou a falência;

3— O ofício do magistério chegou-lhe por falta de opção, apenas para ter o que comer. Da profissão não lucrava nenhum dinheiro, logo não era de seu agrado. Assim, Quincas Borba surgiu no caminho de Rubião como uma esperança pecuniária.

Foi por esse tempo que alli appareceu o nosso Quincas Borba, não já moço, mas levando comsigo a bella agua de Juventa chamada apolice.(...) Dos conhecidos antigos restavam poucos; e Rubião teve a arte de os arredar a todos

(ASSIS,a:1977,p.10).

Como dissemos há pouco, foi por interesse no legado que o ex-professor tratou de cuidar do cão. Em seguida, cuidou de amar o cão, tanto ou mais que o dono, caminho certo para entrar no coração do Quincas Borba.(ASSIS,a:1977,p.11). Aliás, o narrador do folhetim enumera três quesitos que levavam o mineiro a tal atitude. Está no capítulo VII do folhetim:

Certo é que o nosso homem cuidava delle como de um filho; não olvidou nenhum dos cuidados recommendados pelo dono. Nisto levava tres fins: cumprir a palavra dada, impedir a fuga do cão, que seria dolorosa para o dono ausente, e podia trazer algumas reformas testamentarias, e finalmente conseguir da parte do cão tamanho affecto que o dono, quando voltasse, achasse nisso mesmo a melhor prova de que obedecera em tudo

(ASSIS, a:1977, p.13).

Tudo isso foi revelado pelo narrador no capítulo VII do folhetim, quando no capítulo V, nós leitores, bem como Rubião, ficamos sabendo que o filósofo havia mandado chamar um tabelião para fazer seu testamento. Este capítulo também foi suprimido na edição do romance. Quer dizer, o narrador revela ao leitor os três objetivos de Rubião, após revelar também que Quincas Borba havia feito um testamento.

Rubião estava impaciente com a demora do tabelião. Começava a parecer-lhe desde alguns dias que o Quincas Borba não regulava bem, e temia que a loucura formal se declarasse, antes do testamento. Afinal chegou o tabellião.Veiu o pagem á porta do quarto annuncial-o.

— Quem é?

— O tabellião, explicou Rubião; você não o mandou chamar?

—Parece que sim...Ah! sim, é verdade, o testamento: que entre, que entre.

Quando o tabellião se retirou de casa com as testemunhas, Rubião bem quizera adivinhar quaes tinham sido as disposições do enfermo a seu respeito. Pareceu-lhe que vira no rosto do tabellião alguma cousa singular e animadora, uma expressão de assombro e curiosidade, quando olhou para elle á despedida; mas quanto seria? – ficava sempre esta duvida relativa á importancia do legado. Fosse o que fosse, Rubião desvelou-se como até alli

(ASSIS, a:1977, p.11).

Quer dizer, há uma mudança total se fizermos a comparação entre as duas edições, pois no romance o mineiro apenas deseja que o filósofo lhe deixe algum dinheiro, como uma maneira de o retribuir pela dedicação. Já nas páginas do folhetim, Rubião sabe que o doente fez um testamento e como o próprio narrador relata, a julgar pela fisionomia de assombro e de curiosidade animadores do tabelião, era de imaginar que ele tivesse sido incluído no testamento. Se ele foi realmente incluído na herança, e isso era quase uma certeza, a dedicação ao filósofo necessita continuar, pois assim como o tabelião redigiu o testamento, por ordem de Quincas Borba, também poderia fazer nova redação, a pedido do enfermo, excluindo-o. Por outro lado, caso o filósofo não tivesse se lembrado de incluir o ex-professor, tamanha dedicação podia merecer uma reavaliação.

Considerou que o Quincas Borba voltava no dia seguinte, e então era arriscar-se a ser arguido por elle, se soubesse que mostrara a carta ao medico; o doente podia dizer-lhe as cousas mais humilhantes, e elle as merecia, e muito, podia tirar-lhe o triste legado... ( grifos nossos )

(ASSIS, a:1977, p.16).

No folhetim, como vimos, temos um Rubião muito mais ousado e que chega, inclusive, a declarar seu amor por Sofia. Tal fato ocorre no capítulo CXVI, mais ou menos no meio da história, o que gera a possibilidade de outras análises. No romance, Rubião não confessa a ninguém seu sentimento, nem mesmo à mulher amada. Portanto, como não há a confissão, Sofia pode apenas supor que o mineiro é apaixonado por ela e vaidosa como é, aceita a corte, bem como os presentes comprados por ele. Tira vantagem disso, conforme lhe foi pedido pelo marido, Cristiano Palha, tendo em vista o dinheiro que o casal devia ao capitalista.

No folhetim, Rubião confessa o amor que sente por Sofia, reconhece que ela manteve atitudes dúbias, sem afastar-se ou aproximar-se do mineiro, mas entende que a senhora Palha jamais poderá ser sua.

— O senhor não calcula o mal que me fez com isso, disse ella. Tenho-lhe muita amizade; não há ninguem, mulher nem homem, a quem eu estime tanto; por isso mesmo, ouvindo-lhe cousas dessas, creia que fico triste, triste como não póde imaginar.

Rubião ia a fallar.

— Sabe porque é que o desculpo? Interrompeu ella. É que o senhor é bom e generoso; apesar de tudo o que haverá sentido.

— Diga: soffrido.

— Soffrido, vá.

— Oh! Mas soffrido como não calcula. Rio-me, disfarço, mas só eu sei o que tenho cá dentro do coração. Nunca me esqueceu a noite de Santa Thereza... Quer que lhe diga uma cousa? Juro por esta luz, juro por seus olhos; já fiz quarenta annos, e nunca, nunca tive uma paixão neste mundo, nem grande nem pequena; a primeira é a senhora. Minha vida de outro tempo não dava logar a amores... É verdade, foi a primeira...

Sophia pedia-lhe com o gesto que se calasse, e olhava de quando em quando para a porta; mas Rubião, embriagado da propria audacia, dizia tudo o que até agora retivera. Provavelmente, não haveria medo de ninguem, nem de Maria Benedita, nem de algum escravo, nem do proprio marido. Não pedia esperanças; abria e despejava a alma. As vozes sahiam-lhe impetuosas.(...)

(...) Estava nervoso, tinha os olhos desvairados, a voz continuava a brotar-lhe, apenas abafada pelo instincto da conveniencia, mas em si mesma rude e franca. Repetiu que Sophia o enganara, não lhe cortando as esperanças, dando-lhes vida, quando era certo que não lhe tinha amor...

(ASSIS, a:1977, p.128-130).

Ao confessar seu amor, ao perceber que, ao longo do tempo, esse sentimento não era retribuído e ao não pleitear esperanças, a personagem mostra amadurecimento em relação ao Rubião do romance. Podemos pensar, inclusive, que Rubião enlouqueceu não pelo amor não correspondido de Sofia, mas sim pela perda do dinheiro e do poder. Por isso, quanto mais pobre, maior é seu período em delírio. E quando não lhe sobrou nada, assumiu definitivamente a condição imaginária de imperador.

A loucura de Rubião, no romance, dá-se pelo mesmo motivo, mas é no folhetim que as razões são mais esclarecedoras, tendo em vista o narrador muito mais detalhista e explicativo. Quer dizer, o narrador do folhetim revela um Rubião que tem consciência de que Sofia não pode ser sua, como vimos. Além disso, revela também um Rubião que deseja se casar com uma mulher nobre e não exatamente com Sofia, como podemos comprovar na citação a seguir, que por sua vez também foi retirada do romance.

Ora, é certo que o nosso Rubião cobiçava a mulher elegante, e ainda fidalga, se fosse possivel; aceital-a-hia corrompida, e, em falta de outra, até sem graça. A riqueza, caindo tarde nas mãos daquelle galé da fortuna, deu-lhe a embriagues da grandeza e do apparato

(ASSIS,1977, a:p.103).

Há quem pense que o mineiro enlouqueceu pelo amor não correspondido. Mas é preciso atentar que em seus momentos de delírio o ex-professor não se imaginava casado com sua Sofia. Seu imaginário era o império. Quando imaginava a imperatriz, a Eugênia, esta sim, tinha o rosto de Sofia. Assim, todo seu delírio era a pompa e a riqueza, não o amor. Vejamos uma citação que consta tanto no romance como no folhetim, que vem mostrar que, em ambas as edições, o mineiro enlouqueceu mais pela perda do dinheiro e do poder não alcançado, a não adaptação à capital, do que pelo amor não correspondido da senhora Palha.

(…) Não se dirigia à parede, à suposta imperatriz; mas era ainda imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquele véu, através do qual todas as cousas eram outras, contrárias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma feição de reposteiro. Rubião seguia direito à sala do trono, para receber um embaixador qualquer, mas o paço era interminável, cumpria atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes, — e por entre alabardeiros, altos e robustos

(ASSIS, b:1977, p.334-335).

Durante o delírio do ex-professor o mais importante é o movimento, ou seja, seu caminhar dentro do palácio imaginário em direção ao trono, símbolo do poder. O momento corresponde ao auge do delírio, quando Rubião assume definitivamente a imagem de imperador, quando é “auto-coroado” na rua da Ajuda. Neste período, o mineiro já perdeu todo o dinheiro e está prestes a ser recolhido à casa de saúde. Ou seja, quanto menos dinheiro e poder, maior é seu delírio. Tanto é assim que, quando ele não tem nada, quando não lhe sobrou nem mesmo a dignidade, quando é encontrado pela comadre Angélica, já em Barbacena, ele perde também a identidade, coroando-se de ilusão.

Uma vez imperador, difícil é voltar à realidade, como diz o doutor Freitas a D. Fernanda na citação a seguir, que só pode ser encontrada no folhetim. Aliás, o médico questiona sobre o que lucrará Rubião em recuperar a consciência. Em sua loucura ele comanda exércitos, mora num palácio, tem uma bela mulher e acima de tudo, poder. Em sua realidade, não tem dinheiro, não tem amigos, não possui a mulher amada. Conhece, agora, a pobreza, a solidão e o abandono.

— A mania do Rubião não é das que devam ser curadas...Não se espante; ouça-me. Elle pensa ser imperador, crê que dispõe de uma nação, de um exercito, e, por quebra, de uma esposa bonita. Que beneficio lhe quer a senhora dar, arrancando-lhe essa ilusão? O pobre homem, tornado ao que era, sentir-se-há desgraçado. Quem sabe se elle não terá padecido a serio, por simples ilusões? Agora é feliz, por outra illusão. Tudo se compensa neste mundo. Ao meu ver, o melhor é deixal-o Bonaparte. A personalidade alheia vae consumindo a propria até substituil-a de todo.

( ASSIS, a:1977, p.237).

Ainda com relação às ousadias de Rubião, que são muito mais do que convidar a mulher amada a fitar o cruzeiro, temos a cena em que o mineiro vai à casa de Sofia portando um revólver. O objetivo é fazer com que ela mostre a carta enviada a Carlos Maria. A mesma carta que ele encontrou no jardim da casa, por ter sido perdida pelo portador, cujo lacre não foi violado.

No dia seguinte, pouco mais de uma hora, estava Rubião á porta da casa. Não levava só a carta; tinha comsigo um revólver de quatro tiros.

— Pode ser que ella, uma vez de posse da carta, a guarde comsigo, e eu fico sem saber nada. Neste caso ameaço-a; se tentar correr, mato-a.

( ASSIS, a:1977, p.131).

Temos aí um Rubião de pensamentos violentos, menos cândidos, capaz de ameaçar ou mesmo capaz de simular a morte de Sofia. Não por ciúmes, o que seria bastante passional, mas apenas por curiosidade. Sim, curiosidade de saber o que estava escrito na carta. É claro que na imaginação do mineiro, se Sofia não pode mostrar o que está escrito, é porque o conteúdo é uma confissão de adultério.

Além de uma Sofia pasmada e pálida, como vimos há pouco, o narrador do folhetim mostra uma Sofia desejosa de amor. Isso vem mostrar um relacionamento enfraquecido com o marido Cristiano Palha. Se Sofia deseja amar e ser amada é porque não encontra tais sentimentos em seu casamento. Está no capítulo CLXI do folhetim.

Sophia resignou-se à reclusão. Sentou-se á janella para fartar-se do enfado com o expectaculo do tempo; mas esse expectaculo ia já agora com a situação moral da moça, e não tardou que ella esquecesse o tedio e a rua. De facto, a cerração, não permittindo distinguir nada, navio ou montanha, reproduziu-se dentro della, relativamente aos homens. Tendo recordado muitos delles, e os seus nomes e as suas figuras, perdia-os a todos para ver somente uma grande massa confusa, incoercivel. Não tinha agora mais que um desejo sem eleição, uma curiosidade em designada pessoa. Queria amar, amar, amar (grifos nossos). Tanto melhor se fosse ao melhor dos homens; mas o mais insignificante delles, o mais banal ou vão, era ainda assim um homem, — tão legitimo como outro qualquer, uma vez que lhe viesse dar a mão no meio da sala, onde Carlos Maria a deixára sem parceiro.

(ASSIS, a:1977, p.204).

Vemos que Sofia tem um casamento enfadonho e que somente em sua imaginação consegue fugir do tédio. Nessa fuga utiliza-se da recordação. Se recorda, é porque vivenciou tais situações. Se não as vivenciou de fato, vivenciou em seus sonhos e desejos, não há como saber, pois o narrador nada revela sobre o passado da personagem. De qualquer forma, recordar tem origem em coração (cor, cordis) e é diferente de memorizar, em que utilizamos apenas a memória, sem nenhuma emoção. Em seu desejo não há um preferido ou eleito, o melhor ou o mais insignificante dos homens, há apenas o desejo de amar. Para tanto, bastava apenas que ele, o melhor ou o pior deles, a quisesse.

Na verdade, parece que paixão e casamento não têm necessariamente que viver juntos, como denuncia o narrador. Amar e ser amada é uma realização pessoal e casamento é uma realização social. Afinal, não é exatamente isso que Sofia diz à prima Maria Benedita? Está lá, no capítulo LXXVIII, em trecho que só consta no folhetim.

— Casar? Você já me deu piano e francez; agora quer tambem que me case; é muita cousa em menos de um anno. Marido tambem é prenda de sociedade?

— Seguramente, e até mais facil de estudar: não tem escalas nem grammatica.

(ASSIS, a:1977, p.81).

Entretanto, como as duas citações acima só constam no folhetim, em nenhum momento, no romance, é questionado o relacionamento de Sofia e Cristiano, nem mesmo os sentimentos da senhora Palha para com ele e vice-versa.

Por falar em Cristiano Palha, existem capítulos muito interessantes no folhetim que foram suprimidos no romance, com relação à personagem. Ao que sabemos, o ex-zangão de praça tinha uma característica inusitada: gostava de exibir a mulher. Característica essa que pode ser encontrada nas duas edições. A conseqüência disso é que ocorre diferentemente no folhetim: (…)Tinha essa vaidade singular, decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares (ASSIS,b:1977,p.144).

Palha gostava de publicar a mulher e ficava satisfeito com a inveja alheia. Publicava Sofia porque nela confiava. Palha tinha certeza de que a bela dama, por mais cortejada que fosse, jamais cometeria o adultério. No romance, inclusive, não há uma única linha em que Palha perca a compostura ou divulgue sentir ciúmes da mulher. Nem mesmo o relato de Sofia quanto à corte de Rubião, que fez o convite para que fitassem o cruzeiro, o comoveu.

No folhetim, entretanto, as coisas são bem diferentes. O velho bruxo suprime cinco capítulos em que Cristiano teria desconfiado da mulher, acreditando que ela e Rubião eram amantes. As cenas acontecem quando Sofia vai contar ao marido que Rubião estava louco, por conta da cena da carruagem, quando o mineiro sobe no cupê em que estava Sofia.

O Palha deixou-se estar com os olhos nella. Pegava-se-lhe a suspeita de que eram amantes, e que a mulher, vista por alguem na carruagem com o outro, explicava daquele modo a aventura. Quando a ideia se lhe pegou de todo, teve um impeto: saltar á mulher, fazel-a ajoelhar e obrigal-a a confessar tudo. (…)

Naquelle trajecto, levou sempre ante os olhos os dous suppostos culpados. Não os insultava, não tinha um nome ruim para os enxovalhar, á meia voz ou de cabeça. Todo elle era pouco para imaginar. Ouvia os carinhos de ambos, inventava os quadros, coloria-os, dava-lhes vida, e a raiva crescia e a dôr ficava mais lancinante. Tinha estremeções, vertigens, á medida que a probabilidade da posse ia-se-lhe enterrando no cerebro, e a imaginação a tornava real. Vinham-lhe desejos de pegar de um ferro, e correr a matal-o; — a ella, não, porque o adulterio não lhe trazia incompatiblilidade moral. Talvez não o matasse, se a condição fosse perdel-a. Toda a sua paixão era physica, e nem por isso menos cruel.

As vezes, duvidava. O Rubião? Que diabo de extravagancia! O Rubião? Que feitiço acharia ella naquelle homem sem graça? Recordava-se que, mais de uma vez, havia mofado delle a sós, e que ella notava sempre algum ditto ou gesto, que movia ao riso de ambos, posto que a lembrança dos mimos e larguezas do amigo prontamente os fizesse emendar a mão.(…)

Mas essa mesma recordação agravava a suspeita; a mulher fallaria para adormecer a vigilancia do marido(…)

(ASSIS, a:1977, p.194-195).

Aí existem algumas questões que merecem ser apontadas. Palha desconfiava que a mulher e Rubião eram amantes. Isto não o incomodava moralmente, o que nos faz pensar que o fato era comum naquela sociedade. Outra possibilidade é de que Cristiano Palha não era personagem de se preocupar com a opinião alheia e com questões de “moral e de bom costume”. O que o incomodava era a posse. Imaginar que Rubião possuía sua mulher era perturbador.

A posse, por outro lado, pode ser analisada, a meu ver, pelo menos de duas maneiras diferentes: Sofia era sua propriedade, um bem, assim como tantos outros. Logo, alguém possuir Sofia era invadir sua propriedade. Palha investia em Sofia da mesma forma que o fazia em seus negócios. Cristiano gostava de publicar a mulher e para tanto precisava gastar em jóias, vestidos, teatro, reuniões. Tudo para conseguir a inveja alheia. Além disso, cobrir sua mulher de sedas e de valiosas jóias era uma das maneiras de mostrar status social e poder econômico. Tanto investimento significava que Palha empregou tempo e principalmente dinheiro. Desta forma, possuir Sofia era usufruir de um bem que lhe custava caro, como comprovamos a seguir:

O pior é que ele despendia todo o ganho e mais. Era dado à boa-chinfra; reuniões freqüentes, vestidos caros e jóias para a mulher, adornos de casa, mormente se eram de invenção ou adoção recente,— levavam-lhe os lucros presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao teatro sem gostar dele, e a bailes, em que se divertia um pouco,— mas ia menos por si que para aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa vaidade singular, decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules, mais restrito por um lado, e, por outro, mais público.

(ASSIS, b:1977, p.144).

Outra discussão sobre a posse é a paixão de Palha por Sofia. O marido não lhe tinha amor, apenas uma paixão física. Assim, mais uma vez voltamos à questão do casamento como uma realização social. Por outro lado, segundo os entendimentos de Palha, Sofia e Rubião seriam amantes apenas por uma circunstância qualquer, pois era ele quem havia se descuidado da vigilância sobre a mulher, conforme consta da citação. Seguindo este raciocínio, Sofia seria uma adúltera em potencial, pois a concretização ou não do adultério dependia exclusivamente da intensidade da vigilância do marido sobre a mulher.

Seu desejo era matar Rubião, usurpador da propriedade alheia. Seu desejo não era o de matar a mulher, a suposta traidora. Exterminar a mulher era, pois, dilapidar um patrimônio. Afinal, em nenhum momento o narrador falou sobre a questão da honra, de quando um marido traído comete o homicídio. Palha permitiu que Sofia se deixasse cortejar por Rubião, por questões exclusivamente financeiras. Logo, questões de defesa da honra não devem ser relacionadas à personagem. Quer dizer, dinheiro e poder estão acima das questões afetivas e emocionais.

A fim de comprovar ou não os fantasmas que o atordoavam, Cristiano vai à casa de Rubião. Lá, percebe os delírios do mineiro. Somente após verificar que Rubião realmente estava enlouquecido, é que Palha confirmou não haver adultério e que a versão da mulher era verdadeira. Está no capítulo CLV, também suprimido do romance.

Palha reconheceu, poucas horas depois, a veracidade da mulher. Na manhã seguinte foi a Botafogo, achou Rubião, que a primeira cousa que lhe perguntou foi se já tinha visto o seu busto; e, sabendo que não, correu a mostrar-lh’o: era o de Napoleão III.

— Que tal?

— Está bom.

— Parecido?

— Sim parecido. Rubião fitou por alguns instantes o Palha; depois, bateu-lhe no hombro com enthusiasmo:

— Chistiano Palha, estás nomeado duque.

 Na alma do Palha houve um minuto em que a pena e o gosto se misturavam de tal maneira, que era difficil distinguir qual dos dous sentimentos prevaleceria; mas os outros minutos vieram trazendo a solução. Desde que a certeza do delirio restituia ao espírito do Palha a paz e a felicidade, o gosto cedeu o passo á pena, que ficou só, deante do nosso homem. Pobre Rubião! Murmurava elle. Sim, era verdade que , na vespera, esse enfermo andara de carro com Sophia, e, accordada a paixão antiga, proferira aquellas palavras desattentas.

(ASSIS, a:1977, p.197).

Temos aí a dúvida entre o gosto e a pena. O gosto por comprovar que a mulher não lhe havia mentido e a pena pelo delírio do mineiro. Ficou então com o primeiro sentimento. Aí, o narrador do folhetim não apenas mostra a fragilidade e a insegurança da personagem de Cristiano Palha, como o egoísmo do ser humano, que se vê satisfeito com a desgraça alheia, se isso vier beneficiá-lo.

Outros capítulos suprimidos do romance são a seqüência LXXX a LXXXVI, que totalizam doze páginas. Todos esses capítulos têm como assunto principal a fuga do cão Quincas Borba. Sim, no folhetim o cão foge, não por aversão ao dono, mas sim por amor e por descuido dos criados. Quincas Borba saiu correndo atrás da carruagem em que Rubião estava e não conseguindo alcançá-la, acabou por perder-se. Quem viu o cão perdido foi Carlos Maria, poucos minutos antes de ter recebido Rubião em sua residência. Apesar de ter reconhecido o cão desorientado nas ruas do Largo do Machado, foi incapaz de recolher o animal ou mesmo avisar ao dono. E somente após alguns bons minutos de conversa é que Carlos Maria lembrou de comentar o ocorrido com o ex-professor. Além disso, o fez como quem não dá a mínima importância ao fato. Bem, vemos que é o mesmo Carlos Maria, a que estamos acostumados, incapaz de qualquer sentimento.

Rubião recebe a notícia e desesperado com o que lhe foi dito, vai à casa constatar a veracidade. Comprovado o desaparecimento do cão, o mineiro oferece uma recompensa para quem o encontrar, totalizando cem mil réis.

O cão foi encontrado por um sobrinho do major Siqueira e este, ao ler o anúncio, vai à casa do dono. Lá chegando, o major percebe tratar-se de Rubião. É então criado um impasse: embora o major Siqueira esteja muito interessado na recompensa, não vê muito jeito de cobrá-la de Rubião. Este também não sabe como oferecer o dinheiro ao major.

De qualquer forma, o major convida o mineiro a comparecer à sua residência, a fim de resgatar o cão, que está sendo cuidado por d.Tonica, com dedicação e desvelo. Rubião comparece portando um par de brincos, que lhe custou cento e trinta mil réis, a fim de presentear d.Tonica, como agradecimento, por ter tratado do cão. Mas ao chegar à casa do major é surpreendido com a cobrança da recompensa. D. Tonica pede que Rubião doe o valor à Nossa Senhora, na igreja do Largo do Machado e exige que a doação seja feita em nome dele. Rubião cumpre a promessa e lhe entrega, posteriormente, o recibo que confirma a doação.

Por que Machado de Assis suprimiu tantas páginas? Talvez por acreditar não ser importante dedicar tanto espaço ao cão. É uma das hipóteses. Entretanto, prefiro aquela que, ao retirar esses capítulos, suprime muitas páginas que vêm enobrecer o caráter de d. Tonica, personagem desvalorizada durante todo o enredo. Do jeito que está no folhetim, temos, em d.Tonica, qualidades que não podem ser encontradas em Sofia, em Maria Benedita ou mesmo em D. Fernanda. E a meu ver, valorizar a personagem não parece ser desejo do nosso autor. D. Tonica, no romance, é personagem construída de maneira caricata, que serve ao narrador apenas para exaltar a beleza de Sofia. Sim, pois sempre que o narrador coloca a filha do major Siqueira em cena, ele o faz em contraste com Sofia. Lembra-se da cena em que D. Tonica aparece pela primeira vez ? O narrador mostra uma Tonica com os olhos cansados de esperar, com graças murchas, em contrapartida com a beleza de Sofia.

D. Tonica e o major Siqueira são pobres e muito poderiam fazer com o dinheiro da recompensa. Com cem mil réis talvez D. Tonica pudesse ficar mais atraente e até mesmo conseguir um casamento. Afinal, como já vimos, casamento é prenda da sociedade e deve ser também um bom negócio. Talvez não lhe faltasse um noivo interessado no dinheiro. Tanto a hipótese pode ser a verdadeira, que Rubião, no capítulo LXXXIII, suprimido do romance, tem o seguinte raciocínio:

— A moça é devota, reflexionou o Rubião ao sair de lá, na carruagem, com o focinho do cão entre os joelhos. Na verdade, quando ella me disse que não dispensava os cem mil réis, achei exquisito; mas o fim explicou o principio. Nossa Senhora é sua madrinha… Comtudo, sendo elles pobres, davam para um vestido ou dous, e um chapéo. Não é qualquer aquella moça…isto é, ella já hade rastejar pelos quarenta, mas tão bem arranhadinha, tão esbelta que não parece. Não é qualquer; teve graça no modo de resolver o caso.

(ASSIS, a:1977, p.92).

Não devemos descartar também a hipótese de que Machado de Assis resolveu fazer uma correção nas páginas do romance. Sim, pois o major Siqueira, ao ler o anúncio da recompensa nos jornais, supôs ser o mesmo cão que tinha em sua casa, tendo em vista suas características. Entretanto, não reconheceu, no endereço publicado, a residência de Rubião. Não teria ele freqüentado a residência do mineiro em ocasiões anteriores?

Neste capítulo, no folhetim, temos uma D.Tonica não apenas interessada num marido, mas principalmente carente de amor. Logo, temos uma personagem diferente daquela encontrada no romance, cujo único objetivo era encontrar um marido. Temos uma personagem desejosa de afeto, que pensa inclusive em comprar um cão para si, tamanha a solidão e carência de amor. Assim, nestas circumstancias, o cão era um companhia, uma affeição (ASSIS, a:1977, p.89). E a fim de suprir a solidão, havia de comprar um para seu companheiro; precisava de uma affeição daquellas, exclusiva, obediente…(ASSIS, a:1977, p.91).

É interessante observar que as personagens que demonstraram afeto para com o cão, ou melhor, que conviveram com ele, tinham algo em que coincidiam: a solidão. Eram solteiros e sozinhos o filósofo, Rubião e D. Tonica e talvez por isso mesmo fossem tão apegados ao cão, que entregava a eles um afeto na ausência de um parceiro.

Na seqüência sobre a fuga do cão, comentamos sobre Carlos Maria. Pois é, esta personagem também sofreu alterações por parte do narrador, quando, em capítulos suprimidos no romance, deixamos de conhecer algumas revelações. Na conversa entre Carlos Maria e Rubião, em que o primeiro revela ter visto Quincas Borba perdido nas ruas do Largo do Machado, as personagens falam sobre amor. Rubião foi até a casa de Carlos Maria descobrir se ele possuía algum envolvimento com Sofia. Lá, Carlos Maria abre o coração e diz que não é apaixonado por nenhuma mulher e que nenhuma delas conseguirá roubar seu coração, em razão de um motivo simples: é avesso aos amores.

Mas eu sou avesso a amores, meu caro senhor Rubião. Gosto de conversar com mulheres, uso dizer cousas duvidosas e até francas; ás vezes, chego a supor-me namorado. Nada mais. Tenho um livro lá em cima que diz que o amor eguala Marco-Aurelio e o seu lacaio. O senhor provavelmente não sabe quem foi Marco-Aurelio… Bem, fique sabendo que não sou eu; para que heide imitar o lacaio?(…)

Carlos Maria declarou-lhe finalmente e seriamente que não trazia amores com senhoras casadas. Corriam boatos a seu respeito, pela razão de que elle gostava mais de conversar com mulheres que com homens. Os homens eram insupportaveis. Naturalmente, concluiam das suas conversações para os seus amores; mas a verdade é que nenhuma senhora, casada nem outra cousa, podia dizer que lhe possuia o coração.

(ASSIS, a:1977, p.86-87).

Carlos Maria se vê como um ser superior e por isso é avesso aos amores, às paixões, às entregas do coração. Carlos Maria vive para ser contemplado e admirado e não para contemplar e admirar alguém. Aliás, Carlos Maria contempla somente a si mesmo. Pelo diálogo com Rubião, mais do que não ser apaixonado por nenhuma mulher, parece que Carlos Maria não possui nenhum envolvimento amoroso. O seu objetivo é fazer a corte, é galantear, é lançar a isca, para pular fora, quando esta for fisgada. Por isso, convidou Sofia (…) à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão.(ASSIS,b:1977,p.302).

Sofia, que também estava acostumada a ser admirada não entendeu porque Carlos Maria a abandonou após cortejá-la.Talvez esta seja a primeira vez que a senhora Palha é rejeitada e isso parece ser demais para ela. Sofia está acostumada a preterir, não a ser preterida por alguém. Entretanto, “entrou no jogo” de Carlos Maria, sem saber que isso seria o suficiente para que ele a deixasse. É o que explica o narrador do folhetim.

Eram dois a querel-a; dous, porque Carlos Maria não fez mais que deixal-a em caminho, se é que a deixára deveras. Riram-lhe muito os olhos, achou-se bem consigo, cuidou de suas glorias, antigas ou recentes, dos murmurios que ia deixando, quando sahia á rua, ou entrava em alguma sala de baile. Sentia-se muito bem feita; era a opinião do marido, eram as vozes anonymas. Carlos Maria devia pensar a mesma cousa; Sophia lembrava-se das admirações em que o apanhou muita vez, por mais que elle as dissimulasse logo em carinho proprio de um deus para uma deusa inferior. Esta comparação pagã não é de Sophia, que ignorava, mas é um modo de definir o melhor possivel a attitude de um e a impressão da outra; impressão que a deprimia agora, que a humilhava…Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira…

(ASSIS, a:1977,.p.134-135).

Carlos Maria termina por se casar com a prima de Sofia, Maria Benedita. Este acontecimento fez com que a senhora Palha se sentisse rejeitada. Afinal, segundo os raciocínios de Sofia, a prima não tinha atributos suficientes para vencer a competição. Maria Benedita foi trazida da roça por ela e tudo o que aprendeu sobre as prendas domésticas, tais como governar uma casa, conversas de salões, valsas, francês, piano, vestidos e jóias, foi ensinado por ela, Sofia. Como a discípula poderia superar a mestre? É claro que não poderia, pois isso não é o desejo do narrador. Afinal, na última aparição de Sofia, ela está deslumbrante. Em outubro, Sofia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais célebre do tempo. Estava deslumbrante (ASSIS, b:1977, p.341). Ocorre que Carlos Maria não desejava uma mulher superior como Sofia, que necessitava ser admirada. Carlos Maria precisava simplesmente de uma mulher que o adorasse. Carlos Maria queria e precisava verdadeiramente de alguém que, na sua concepção, fosse inferior a ele, que ao seu lado se parecesse insignificante, tal qual Maria Benedita, porque a suppõe insipida ou estupida (ASSIS, a:1977, p.151).

Carlos Maria queria estar ao lado de Sofia somente nas rodas da sociedade. Afinal, ela era a mais bela dama dos salões. Era como ostentar aos outros suas próprias qualidades.

A bela dama, em seus pensamentos, apesar de saber que foi preterida pelo rapaz galhardo, custa a se convencer disso, mesmo reconhecendo que se comportou de maneira rasteira, segundo sua concepção. Se assim não tivesse feito, é possível que o tivesse a seus pés. Vejam que tanto Carlos Maria como Sofia desejam um parceiro submisso, não acreditam num relacionamento amoroso em posição de igualdade, de equivalência. Ele é avesso a amores porque acredita que o amor iguala Marco Aurélio ao lacaio e ela queria Carlos Maria aos seus pés. Duas criaturas que se acreditam superiores e como a um deus devem ser adoradas. Abaixo, um texto referente a Carlos Maria, que pode ser encontrado tanto no romance como no folhetim, que fala justamente do desejo de Carlos Maria em perceber a inveja alheia.

Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note bem; ele carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa do baile entregava-se-lhe.

(ASSIS, b:1977, p. 201).

Por outro lado, duas questões o perturbariam interiormente: Sofia poderia parecer, aos olhos dos outros, melhor do que ele e isso é algo inconcebível para um narcisista. Outro ponto é aquele que já discutimos: Carlos Maria precisa de alguém que o admire, pois ele não consegue admirar ninguém.

Ao lado dela, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos plácidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras súbditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; exprimia-se com a graça de um rei benévolo. Entretanto, se, à primeira vista, parecia fazer apenas um obséquio àquela senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sofia era para ele como a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia acordasse imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo.

(ASSIS, b:1977, p.194).

De acordo com o narrador, Carlos Maria sente-se envaidecido por ter ao seu lado a mais bela mulher, Sofia. Ou seja, reconhece nela uma certa superioridade. Mas o sentimento da inveja e da admiração alheia é o que chama mais atenção. Afinal, ao reconhecer a superioridade de Sofia, reconhece, ou melhor, acredita na sua própria superioridade em relação aos outros.

Quanto a Maria Benedita, vimos que Carlos Maria a considera insípida e estúpida. Mas ao que parece, esta opinião não é só da personagem, mas também do narrador. Vejamos então o que diz o narrador sobre a prima de Sofia nos capítulos LXXV e LXXVI do folhetim, que, por sua vez, também foram suprimidos do romance.

Muitas cousas aturdiam o cerebro da ex-roceira, — sensações complicadas, rascunhos de ideias, fragmentos de raciocinios, calculos de probalidade, perguntas sem resposta, respostas sem pergunta…

Cerebro não tem syntaxe. A phrase que lá fica no outro capitulo não se formulou assim na cabeça da nossa amiguinha. É correcta, posto que vaga e obscura, para nós; para ella é clara e definida, mas não a formulou assim textualmente.

(ASSIS, a:1977, p.79).

Então, a citação acima não lhe parece familiar? Já não teríamos lido alguma coisa parecida em capítulos anteriores? Pois é, o que faz o narrador, em seu texto, é permitir que possamos assemelhar Maria Benedita ao cão Quincas Borba. Vejamos algumas linhas escritas pelo narrador sobre o cão.

Mas já são muitas idéias,—são idéias demais; em todo caso são idéias de cachorro, poeira de idéias, — menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que este olho que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua humana.

(ASSIS, b:1977, p.134-135).

Que exagero! Comparar o cão a Maria Benedita?! É o que você pode estar pensando. Mas é o que consigo associar. Afinal não são o cão e Maria Benedita que têm fragmentos ou poeiras de raciocínio? Mas a maldade do narrador não pára por aí. É possível que comparemos a idolatria que o cão tem para com o dono com aquela que Maria Benedita tem para com Carlos Maria.

A casa era o amigo. Não deu pela falta do jardim, nem pela escassez de luz. Vivia ao pé de Rubião, diante delle, em volta delle(…) para que que o cão continuasse a fitar o dono e amal-o.

(ASSIS, a: 1977, p.209-210).

Quanto a Maria Benedita, aos olhos de Carlos Maria, parece um cãozinho adestrado que vive para adorar ao dono. Vejam que a cena descrita sobre ela é bem parecida com a citação acima, sobre o cão. Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nele, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada (ASSIS, b:1977, p.266).

Ao esvaziar Maria Benedita, inserindo nela a negação da existência (toda nada), o narrador promove também o esvaziamento de Sofia, a partir da revelação de que Maria Benedita, apesar de ser “toda nada” está em condições de competir com a prima. Este capítulo também só pode ser encontrado no folhetim.

Não vão crer que tinha odio; mas a dama casquilha, conscia de suas graças, não atura de bom rosto uma rival, que, pelo menos, equilibra as impressões. Na vespera, Maria Benedicta tinha sido objecto de cortezias rasgadas, de preferencias na dansa, e até mulheres a acharam deliciosa, e foram dizel-o a prima.

(ASSIS, a:1977, p.77).

Mas não é de se espantar que Maria Benedita esteja em condições de rivalizar com a prima. Afinal, muito restrita era sua cultura, como vemos na citação abaixo. Sofia vivia de aparências e como diz o narrador do folhetim, era casquilha. Ou seja, preocupava-se exclusivamente com as coisas da moda, com o vestir, com sua aparência, esquecendo-se do interior.

Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempo: lia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às cousas do vestido, da sala e do galanteio.

(ASSIS, b:1977, p.191).

Sofia era pura aparência, uma casca envolta pelos vestidos, jóias e amizades que o dinheiro podia comprar. Sem estes acessórios era tão somente aquela mulher vista por Rubião na estação de Vassouras, envolta numa capa, olhando para os pés. É assim que Sofia surge pela primeira vez aos nossos olhos: tímida, de poucas falas e encolhida. Em sua última aparição, entretanto, quando da inauguração dos salões de Botafogo, está deslumbrante, ostentando braços, espáduas e bastante senhora de si.

Mas ao esvaziar Maria Benedita com seus rascunhos de idéias e fragmentos de raciocínio e por extensão, ao esvaziar Sofia, o narrador do folhetim promove a humanização do cão, a partir do momento que coloca os três na mesma horizontalidade. Situação esta que persiste até o final da narrativa. Lembremos a cena em que D.Fernanda e Sofia vão até a casa da rua do Príncipe resgatar o cão para entregá-lo a Rubião.

Quando D. Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro. (…) e estendia ao animal uma parte de si mesma (…) como se ambos representassem a mesma espécie.

(ASSIS, b:1977, p.339).

Vemos que nesta cena de carinho e de generosidade de D. Fernanda para com o cão e por extensão a Rubião, bem como a aceitação do afago pelo cão, de acordo com o narrador, aproximou tanto as duas personagem que ambas pareciam ser da mesma espécie. A cena se repete, mais duas vezes: a penúltima, quando Rubião, já em Barbacena, dorme nas escadarias da igreja, pois quando acordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados (ASSIS, b:1977, p.334). A última ocorre quando temos a morte do mineiro e posteriormente do seu cão.

Mas a humanização do cão é mesmo promovida ainda no primeiro capítulo do folhetim, quando o narrador atribui ao filósofo, ao Rubião, ao médico que cuidava do doente e ao cão o mesmo substantivo: criatura, como veremos no capítulo sobre carnavalização.

— Então, Doutor, como vou?

— Vae bem. Estas molestias são demoradas, mas o senhor vae bem. Tomou o remedio?

— Tomei.

— As horas marcadas?

— Creio que sim. Não foi, Rubião?

Rubião, que estava familiarmente sentado na cama, confirmou a resposta. Havia alli ainda outra creatura, deitada no chão, com a cabeça levantada, olhando para o medico, interrogativo: era um cão, o cão do doente, que mal sahia do quarto, desde longas semanas.

(ASSIS, a: 1977, p.07).

No segundo capítulo, que também só consta no folhetim, temos o mesmo raciocínio: a humanização do cão. Diferentemente de Rubião, que mostra não se importar muito com o doente, o cão aparece entristecido com a enfermidade do dono. Neste trecho há, de certa maneira, uma indicação dos reais sentimentos de Rubião e da verdadeira intenção do mineiro ao cuidar do filósofo. O interesse pelo legado ainda não nos foi revelado neste capítulo, mas quando o narrador o faz no capítulo seguinte, não há de surpreender o leitor. Aí também é promovida a humanização do cão e a desumanização do homem. Ou seja, desde as primeiras páginas o narrador do romance e mais ainda, o narrador do folhetim, mostram ao leitor personagens ocas por dentro, em contrapartida com os sentimentos nobres do cão: afeto e dedicação. É o cão, então, a única personagem capaz de amor puro e desinteressado.

Rubião fazia festas ao cachorro; esfregou-lhe as orelhas com as mãos espalmadas, beijou-o acima dos olhos, e quiz excital-o a dar pulos; mas o cão, como se tivesse melhor comprehensão da inconveniencia do rumor, ao pé do doente, olhou triste para a cama, e foi deitar-se ao pé da cabeceira.

(ASSIS, a:1977, p.08).

O capítulo CLXXVII, também excluído do romance, traz uma interessante revelação em relação ao casal Palha: o desejo da nobreza. No romance parece que o casal conseguiu realizar todos os sonhos, todos os desejos. O casal surge pela primeira vez na estação de Vassouras e pelas descrições do narrador, vemos que é um casal simples, de parcos recursos financeiros, haja vista a profissão do marido: zangão de praça. Já nas últimas páginas, tanto do romance como do folhetim, temos a inauguração dos salões de Botafogo. Sofia e Palha se transformam, então, num rico casal da sociedade carioca, com dinheiro e poder: sinônimo da realização completa. No folhetim, entretanto, falta algo para que Sofia e Palha se sintam realizados: um título nobre. Vejamos um trecho do folhetim que comprova o que estamos falando:

— Sabem que estou fazendo um palacete?

—Não, disse D. Fernanda.

Em Botafogo. Digo palacete, porque assim lhe chama o architecto, na planta que me deu. Realmente, é obra bonita. Havemos de inaugural-o, quando o nosso presidente vier para a camara, e se quizer inaugurar o palacete de um barão, é só arranjar-me o titulo; não me nego ao titulo, concluiu rindo.

—Póde se muito bem; Teophilo agora é todo-poderoso.

D. Fernanda satisfazia assim ao hospede e ao marido; ambos sorriram, e o Palha acrescentou com seriedade que era mais pela mulher que por elle. No dia em que visse Sophia baroneza, teria immenso gosto, já porque ella o merecia, já porque estava certo de que o desejava. Era a sua unica ambição.

—Não digo unica, emendou-se; mas com certeza a maior. E olhe que não lhe ficava mal. Sempre teve assim um ar de nobreza…Não lhe direi o que se passou agora entre nós; V. Ex. ha de sorprehender-nos; eu prometo ficar sorprenhendido, continuou rindo muito. Quando vir o decreto… É decreto? Seja o que fôr. Quando vir o papel, ou a noticia nos jornaes, prometto dar um pulo: “Sophia, Sophia, lê aqui uma cousa.”— “Que é?”— “Lê, vê o teu nome…”

—Mas não será o nome délla, interrompeu Theophilo é o seu. O titulo é dado ao marido.

—Ah! É verdade…Mas eu digo assim para chamar a attenção. Creia que ha de ficar contente.

(ASSIS, a: 1977, p.224).

Vemos aí que podemos comparar o desejo de Rubião com o desejo do casal Palha. Tanto o mineiro quanto Sofia e Cristiano, mais do que dinheiro e poder, aspiravam à nobreza. Em seu delírio, Rubião escolheu para si o mais alto dos títulos: o de imperador. De professor a capitalista. De plebeu a imperador. Considerando a riqueza herdada e a sociedade na qual passou a viver, até que o título não lhe ficava mal. Afinal, ele se sentia proprietário de tudo o que estava a sua volta, bem como da própria natureza e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade (ASSIS, b:1977, p.107). Logo, por que não imperador?

Percebemos, pois, que a loucura de Rubião é coisa relativamente comum. O problema é que, em seu delírio, o mineiro mais do que externou seu desejo, ele o colocou em prática e em seu delírio tornou-se o imperador. Cristiano Palha, mais comedido, assumiu diante de Teófilo sua vontade, bem como a da sua mulher, segundo seu relato. Quer dizer, a loucura não está em querer, mas sim na maneira como você externa e coloca em prática seu desejo.

Por que então o velho bruxo teria suprimido este capítulo? Penso que se Palha revela que além do dinheiro também aspira a um título nobre, a loucura de Rubião torna-se menos densa. Quer dizer, a loucura do ex-professor decresce em nível.

Outra questão, com relação à loucura de Rubião é que ele, em delírio, era o imperador, mas ninguém o via assim. Por isso, foi considerado louco pela sociedade na qual vivia. Agora é interessante notar que Rubião era considerado mais louco à medida que ficava mais pobre. No capítulo CLV, do folhetim, quando Palha pensa em ir à casa de Rubião, a fim de comprovar se ele e Sofia são amantes, Cristiano encontra com dois amigos do mineiro que freqüentavam a mansão de Botafogo.

Pediu-lhes noticias do amigo; confiou-lhes o receio que alguem lhe comunicára de estar meio doente da cabeça. Um dos comensaes, alto e magro – Magalhães por nome – confirmou promptamente o receio; mas o outro negou tal cousa.

— Perdão, Sr. Gama, tornou o primeiro, ha de lembrar-se que outro dia, á sobremesa…

— Que foi, á sobremesa? Perguntou o Gama, olhando de cima, fulminante.

— Quando elle nos disse que era imperador, — não se lembra? – por signal que chamou ao Pimentel marechal…

— Sim? Que tem isso? Disse o Gama.

E virando se para o Palha:

— Foi um gracejo delle – porque elle comprou ha pouco um busto de Napoleão III e commo é grande enthusiasta fallou assim, dizendo que o imperador era elle. Faça-me o favor de dizer em que é que ha nisto signal de loucura?

— Eu não disse loucura, atalhou Magalhães

— Tambem não me fallaram em loucura propriamente dita, obtemperou o Palha.

(ASSIS, a: 1977, p.195) .

Posteriormente, no capítulo CLXVI, tanto no folhetim quanto no romance, Rubião muda-se para a casa da rua do Príncipe. Uma vez pobre, Rubião perde todos os amigos, restando-lhe apenas o cão e um criado. Vale lembrar aqui, que mesmo na pobreza, resta a Rubião um criado, a fim de fazer as tarefas consideradas inaceitáveis para um homem branco e livre. Ou seja, apesar de pobre, ainda era servido por alguém que estaria abaixo dele na pirâmide social.

Rubião notou que eles não o acompanharam à casa nova, e mandou-os chamar: nenhum veio, e a ausência encheu de tristeza o nosso amigo,—durante as primeiras semanas. Era a família que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.

(ASSIS, a:1977, p.309).

Somente a partir daí, quando já está pobre, é que o ex-capitalista é considerado louco. –Como vae o gira?(…) Elle, quando está de pancada, parece que é como quem governa o mundo (ASSIS, b:1977, p.325). Se não estivesse pobre, talvez Rubião fosse considerado apenas um excêntrico. O problema não está no desejo, pois assim como Rubião, Cristiano Palha também aspirava um título nobre. A loucura de Rubião também não está em se achar o imperador. O problema é que ninguém o via como tal. Quer dizer, loucura não está nos seus gestos e atitudes, mas no olhar do outro, que o vê são ou louco. É o olhar do outro que condena ou absolve.

Podemos ainda fazer algumas observações com relação à senhora Palha: o encerramento da narrativa — no folhetim — dá-se com uma Sofia gloriosa, mas o dinheiro e a alta sociedade não a realizaram completamente, pois falta à senhora Palha o amor. É verdade que a personagem é amada por Rubião ao extremo e é galanteada por Carlos Maria e por tantos outros parceiros das rodas de salão, bem como pelo marido, que a cobre de jóias e vestidos. Isso faz bem ao ego da senhora, a deixa feliz, mas não a realiza. Falta-lhe amor. Ou melhor: falta-lhe amar, como vimos em citações anteriores. Maria Benedita, ao contrário, encerra sua participação feliz ao lado do marido e da filha.

Aliás, é interessante notar que as personagens com maiores recursos financeiros não conseguiram a realização pessoal, tais como Rubião e Sofia. Talvez o velho bruxo quisesse mostrar à sociedade que todo o dinheiro não é capaz de comprar a felicidade, assim como a falta dele pode promover a infelicidade, haja vista d.Tonica, Freitas, o filósofo, enquanto mendigo e mesmo Rubião nos seus últimos momentos de agonia. Na citação a seguir, que consta do capítulo IV do folhetim, o narrador explica muito bem o que estamos tentando dizer:

Não é só a riqueza, a miseria tambem deixa as suas heranças, menos faceis de dissipar, antes propícias a acumulação de juros. Quincas Borba patinhára na miseria, algum tempo; não saiu de lá com as mãos abanando, e as molestias, que aliás também se contrahem na opulencia, mais depressa as apanhou elle quando não tinha onde dormir.

(ASSIS, a:1977, p.10).

Talvez tenha sido essa a maneira que Machado de Assis encontrou para criticar o luxo da elite da sociedade do seu tempo, sem entretanto deixar de registrar que a miséria, que ele conheceu de perto na juventude, também pode trazer infelicidade.

Vimos os capítulos que constam na primeira redação pública de Quincas Borba, publicada na revista A Estação, suplemento literário do Jornal para a Família e que foram suprimidos posteriormente. Vimos também nossas suposições para a eliminação de tais textos e o resultado disso quanto ao enredo e à caracterização das personagens, além das alterações quanto ao narrador. Agora, partiremos para a análise da diluição e acréscimos de textos. Ou seja, há capítulos no folhetim que continuam existindo no romance, mas não são exatamente iguais, havendo a inclusão de períodos, alterações de verbetes e junções de capítulos. Além disso, às vezes, dois ou mais capítulos foram diluídos e transformados em apenas um, havendo, entretanto, alterações nos textos. Os capítulos continuam lá, mas as letras que dançam nas folhas de papel, muitas vezes não são as mesmas. Vamos, agora, portanto, descobrir essas alterações.

No capítulo III do folhetim, tal qual nos capítulos I e IV do romance, o narrador explica como se conheceram Rubião e o filósofo, bem como a esperança do mineiro de casar sua irmã com Quincas Borba, a fim de, como cunhado, ter parte no legado. As edições revelam um Rubião fracassado profissional e financeiramente, pois antes de conhecer o filósofo tentou empreendimento em algumas empresas, ou em apenas três, conforme afirma o narrador do folhetim. Empresas estas, de natureza não revelada. Em seus empreendimentos, encontrou, pois, a falência. O magistério surgiu-lhe, no folhetim, como a única possibilidade de sobreviver, pois não podendo ser nada, nem ter nada, destinou-se ao ensino, para comer alguma cousa e morrer em alguma parte (ASSIS, a:1977. p.10).

O narrador do folhetim revela também que Rubião não tinha ambições, à exceção do dinheiro. Rubião era um desenganado da politica. Vivia de ser professor, officio em que ia já cançado; mas de todas as ambições antigas ficara-lhe uma: a do dinheiro (ASSIS, a: 1977, p.10). Em razão da sua única ambição, o mineiro providenciou o afastamento dos poucos amigos que restaram ao filósofo, a fim de que ele se tornasse a única companhia do enfermo. Dos conhecidos antigos restavam poucos; e Rubião teve a arte de os arredar a todos (ASSIS, a: 1977, p.10). No romance, entretanto, só nos é mostrado o interesse do mineiro em casar a irmã com Quincas Borba, como esperança pecuniária. Isto vem nos mostrar que Rubião, no folhetim, é muito mais frio e calculista, pois aproxima-se do filósofo por interesse e não em virtude de amizade. É claro que no romance há este tipo de aproximação, mas no folhetim o narrador não poupa sua língua ferina para revelar o fato ao leitor. Ou seja, no folhetim nos é revelado um Rubião muito menos ingênuo, apesar de tão incompetente quanto no romance, haja vista as tentativas fracassadas de enriquecimento. Desta feita, o fim de Rubião não é imprevisível: não conseguiu ser deputado (no folhetim) e não conseguiu gerir o capital deixado pelo amigo. Estes dados são importantes e alteram o perfil de outras personagens, tais como Sofia e Palha, por exemplo, como já comentamos. Afinal, quando o narrador revela um Rubião muito mais interesseiro, acaba por suavizar o casal e demais amigos do ex-professor, que compartilhavam da sua companhia, objetivando usufruir do seu dinheiro. Como criticar essas personagens se elas agiram tal qual Rubião? O mineiro foi usado pelas outras personagens, porém, isto nada mais é do que a repetição dos seus próprios atos. É o “homem lobo do homem”. É a filosofia do humanitismo de Quincas Borba, pois é a opinião de Schiller que a fome e o amor governam este mundo. Incluamos na fome a ambição, que não é outra cousa mais que a gula moral, social e politica, e fica explicado o nosso Rubião (ASSIS, a:1977, p.127). Assim, não é somente Rubião um exemplo prático da filosofia do humanitismo: o próprio filósofo já o é, pois também foi usado pelo mineiro. Ou seja, o ato antropofágico foi realizado por todas as personagens, inclusive por Rubião. A única exceção, é o cão, que por sua vez também foi objeto de antropofagia. Aliás, não é à toa que, de acordo com a filosofia de Quincas Borba, ele irá sobreviver no seu cão quando de sua morte. Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro (ASSIS, b:1977, p.110). No folhetim, inclusive, Rubião manda fazer um só painel com as fotografias dos dois Quincas Borba para colocá-las em seu gabinete. Com esta atitute Rubião une o filósofo e o cão, dando-lhes condição equivalente. Rubião coloca, pois, os dois Quincas Borba na mesma linha de horizontalidade, como veremos no capítulo sobre carnavalização.

Entre ellas estava uma photographia de Quincas Borba (o homem) e outra de Quincas Borba (o cão), pelas quaes, Rubião mandára fazer um só painel, que tinha no gabinete, por cima da escrevaninha.

(ASSIS, a:1977, p.122).

Não só o cão é uma extensão do filósofo, como Rubião também o é. E é o próprio Rubião que pensa a respeito. Está no capítulo CXV do folhetim.

— Que bom e grande amigo! Que homem superior! Disse Rubião em voz baixa, andando.

— Que homem superior! Repetiu uma voz.

Olhou, não viu ninguem. Has de ter ouvido vozes dessas, leitor discreto, sem que te assustes mais que com um phenomeno commum; mas tu não és Rubião nem Pascal. Este via ao pé de si um abysmo. A voz sem boca, ouvida por aquelle, articulára as palavras de um modo claro e sonoro. Já um dia (está no capitulo) LXXXII deste livro) ouviu Rubião uma pergunta no ar, e attribuira-a á alma do Quincas Borba, que estaria mettida no cão herdado. Agora não havia cão; traria elle a alma do outro em si mesmo? Seria elle dous?

(ASSIS, a:1977, p.127).

Ainda devemos tecer algumas considerações quanto à filosofia do humanitismo. No folhetim, o filósofo faz explicações genéricas e não vai além da questão do seu nome e do seu cão, no que se refere à sobrevivência do primeiro no segundo. Entretanto, o narrador fala com mais veemência sobre o interesse de Rubião no legado e sua ambição de riqueza, bem como sobre os dois substantivos que governam o mundo: fome e amor. Já no romance, Quincas Borba fala sobre sua filosofia e exemplifica-a incansavelmente a Rubião, que só a compreende quando da sua morte, nos seus últimos momentos de agonia.

Outra alteração interessante e que carece de análise está no capítulo XXII do folhetim e no capítulo III do romance. Estamos nos referindo aos dois bustos de bronze que Rubião tinha em sua sala. No folhetim o mineiro possui um Dom Quixote e um Fausto e no romance os bustos são de um Mefistófeles e um Fausto.

Por que razão teria o velho bruxo retirado das suas páginas o Cavaleiro da Triste Figura? Talvez porque seu Rubião, apesar de ser um sonhador, não estivesse preocupado em corrigir as injustiças sociais. Em seus desejos, Rubião sonhava com Sofia, com a glória e com os prazeres que o dinheiro podia comprar. Rubião, diferentemente do cavaleiro andante, não se interessava pelas leituras e nunca teve o desejo de querer consertar as coisa tortas e desfazer os agravos do mundo. Rubião jamais colocaria uma sela em seu Rocinante, jamais calçaria as velhas armas dos seus antepassados. Rubião não era um cavaleiro em busca de façanhas. No lugar de um escudo, portava sua bengala de unicórnio, bem como sua coroa imaginária, símbolos de poder.

Há, entretanto, algumas coisas em comum entre Quixote e Rubião: ambos morreram em delírio e na ausência da razão criaram seu próprio mundo, em detrimento da realidade que os cercava. Ambos se imaginavam superiores: Rubião era o imperador e Alonso Quijano era Dom. Ou seja, ambas as personagens se deram um título nobre. Além disso, assim como Dom Quixote precisava do seu Sancho Pança, também precisava Rubião do seu Quincas Borba, sendo, pois, o escudeiro e o cão a extensão dos seus amos. Desta feita, é Sancho Pança o duplo de Quixote e é o cão, bem como o filósofo, por extensão, o duplo de Rubião. É Sancho que observa o cavaleiro, que o julga, que o define, como diz Paulo Bezerra em seu ensaio: Sancho Pança: esse duplo de dom Quixote [2] . E é também o cão que define Rubião. Também é Sancho que testemunha o delírio do seu senhor, tal qual Quincas Borba acompanha o do mineiro.

Dissemos que os amos não sobrevivem sem seus companheiros, mas estes também não sobrevivem sem seus senhores. Sancho deixou o governo da sua ilha para encontrar novamente com o cavalheiro andante e Quincas Borba, o cão, também foi encontrado morto três dias após a morte de Rubião. A importância de Dom Quixote, no romance homônimo, está na mesma proporção da importância de Sancho Pança. Esta equivalência também é encontrada no mineiro, que começa a ter relevância no seu papel a partir do momento em que passa a ser o dono do cão. Entendendo o animal como o duplo do capitalista, observamos a duplicação do mineiro em Quincas Borba e a humanização do cachorro em Rubião

Apesar de coincidirem num estado de delírio, o cavaleiro andante e o ex-professor divergem nos sonhos. Talvez por isso o bruxo do Cosme Velho tenha substituído o busto de bronze adquirido por Rubião, pois Dom Quixote não seria a imagem utópica que o autor quis atribuir ao ex-professor, diferentemente de Fausto, que vendeu sua alma ao diabo.

Ao substituir Quixote por Mefistófoles, temos uma outra personagem em Quincas Borba. Mefistófeles e Fausto (romance homônimo) são personagens de Goethe. Fausto tem sede de onipotência e domina várias ciências. Entretanto, em nenhuma delas ele encontrou respostas para o mistério da existência. Sua ânsia é por tornar-se uma espécie de deus, todo poderoso, com acesso ilimitado a todos os tipos de manifestações da natureza. Sua ânsia é a de conhecer incondicionalmente a vida, o amor, a alegria… Mas em um determinado momento, ele toma consciência de seus limites e tem o primeiro encontro com Mefistófeles, a representação do diabo.

Neste contato, é oferecido a Fausto um novo mundo, no qual todas as emoções são infinitas e tudo está em perfeita harmonia. Mais do que isso, Mefistófeles lhe oferece o prazer pleno, além do poder de controlar os sentimentos e as pessoas. Em contrapartida, Fausto deverá entregar-se a Mefistófeles, vendendo-lhe a alma. Todavia, é importante lembrar que o encontro de Mefistófeles com Fausto não é imposto pelo demônio, muito pelo contrário. Para que o diabo consiga a alma de Fausto, algumas regras são estabelecidas: é preciso que o estudioso o deseje e o convide três vezes para que ele, então, entre em sua sala. Além disso, é preciso que um contrato seja assinado, a fim de comprovar a ligação existente entre os dois. Tudo isso tem como um dos objetivos, mostrar que Fausto não é inocente, pois é ele quem invoca Mefistófeles.

Rubião, tanto quanto Fausto, se acha um pouco deus e quer ser dono da natureza. Lembra-se da cena de quando o narrador descreve o mineiro fitando a enseada da janela da sua casa em Botafogo? Pois é, não se sente ele proprietário de tudo, dos morros, do mar, do céu? Assim como Fausto, o ex-professor queria prazer sem limites, alegria incondicional e um amor apaixonado. Por isso Rubião saiu de Barbacena em direção à Capital, lugar onde pretendia “fartar-se do banquete da vida”. Banquete este que, na concepção de Rubião, somente o dinheiro poderia comprar.

Ideou as batatas em suas várias formas, classificou-as pelo sabor, pelo aspecto, pelo poder nutritivo, fartou-se antemão do banquete da vida. Era tempo de acabar com as raízes pobres e secas, que apenas enganavam o estômago, triste comida de longos anos; agora o farto, o sólido, o perpétuo, comer até morrer, e morrer em colchas de seda, que é melhor que trapos. E voltava à afirmação de ser duro e implacável, e à fórmula da alegoria. Chegou a compor de cabeça um sinete para seu uso, com este lema: AO VENCEDOR AS BATATAS.

(ASSIS, b: 1977, p.126).

Para alcançar seu objetivo, o mineiro também vendeu sua alma a Mefistófeles, reservadas as devidas proporções, tal qual Fausto. E assim como o estudioso, o mineiro também se deu conta dos seus limites e foi exterminado pelo seu próprio sonho.

Vemos, portanto, que ao substituir o busto do Cavaleiro da Triste Figura por Mefistófeles, talvez Machado quisesse mostrar que Rubião também não era um inocente e nem tampouco vítima do sistema, mas sim da sua própria ambição. Foi Rubião quem se aproximou do filósofo e cuidou dele com o objetivo de obter parte do legado. Foi o mineiro quem resolveu deixar sua pequena Barbacena e viver na Capital. Foi o ex-professor quem esbanjou desregradamente seu dinheiro. Foi o capitalista quem quis o império a seus pés. Ou seja, foi Rubião quem vendeu sua alma a Mefistófeles.

Em sua sede de amor pleno, Rubião acabou se apaixonando por Sofia, que segundo o narrador do folhetim é um rio, azul, sereno, profundo e mysterioso (ASSIS, a:1977, p.24). Mas não procureis esse rio em cartas geographicas. Nenhumas dellas o dá (ASSIS, a:1977, p.24).

“Todos vós que tendes sede, vinde ás aguas” clama o propheta Isaias; e o nosso Rubião sentiu dentro de si esta exhortação bíblica, logo que, pela primeira vez, deu com os olhos na agua convidativa e pura. Não trazia ideias adequadas ao encontro; vinha de Minas com a herança na cabeça, o testamento, o inventario, uma commenda, cavallos, bonitos cavallos; mas ainda assim, não se pôde ter que não admirasse uma obra tão engraçada, aguas claras, margem verdes, curso sinuoso, sem cachoeiras, nem nada.

(ASSIS, a: 1977, p.25).

E sendo Sofia um rio sereno, é de se imaginar que Rubião se sentisse seduzido pelo equilíbrio e pela calmaria. Mas em sendo também profundo e misterioso não é de se espantar que Rubião se afogasse nas suas águas. É preciso verificar também que Sofia não precisava de muito esforço para ter o mineiro a seus pés, já que este tinha sede. Sedento ele era de amor, de dinheiro, de glória.

Rubião sofreu pelo amor da senhora Palha. Ela, por sua vez, nunca recusou seus galanteios, apesar de não se aproximar dele. O mineiro sofreu com sua própria ilusão, bem vimos em alguns parágrafos anteriores. Sim, porque Sofia o tratava com cortesia, a pedido do seu marido Cristiano Palha, mas nunca proferiu palavras que pudessem estimular um relacionamento. Aí, você deve estar se perguntando: e a cestinha de morangos? Não estaria Sofia estimulando o amor de Rubião com tal gesto?

É curioso observar que a cena da cestinha de morangos ocorre no capítulo XXVIII, tanto no romance quanto no folhetim e Sofia somente percebe uma atitude enamorada de Rubião no capítulo XXXIX, do romance e no XXXVIII do folhetim, quando o mineiro observa a lua, juntamente com Sofia e a convida para fitar o cruzeiro todas as noites. O narrador revela o espanto de Sofia diante do ocorrido. É a primeira cena em que Sofia não sabe qual atitude tomar. Vejam bem que Sofia não esperava que Rubião, sempre tão educado, tivesse maneiras tão ousadas, segundo sua concepção.

Era preciso responder, fazê-lo parar, dizer que ia por onde ela não queria ir, e tudo isso, sem que ele se zangasse, sem que se fosse embora... Sofia procurava alguma cousa; não achava, porque esbarrava na questão, para ela insolúvel, se era melhor mostrar que entendia, ou que não entendia. Aqui lembraram-lhe os próprios gestos dela, as palavrinhas doces, as atenções particulares; concluía que em tal situação, não podia ignorar o sentido das finezas do homem. Mas confessar que entendia, e não despedi-lo de casa, eis aí o ponto melindroso.

(ASSIS, b:1977, p.147).

Sofia conta o fato ao seu marido, na intenção de que ele tomasse alguma atitude. Mas Cristiano, cujos princípios estão ligados diretamente ao dinheiro, pede que a mulher não afaste o mineiro do convívio dos dois. Aliás, a partir da paixão de Rubião por Sofia, o marido enxerga a possibilidade de lucrar ainda mais. O que Sofia poderia fazer? Estamos falando de uma mulher oitocentista, que vivia numa sociedade patriarcal. Se o marido não concordou em afastar o mineiro em razão das atitudes enamoradas, o que restava a ela? Talvez lhe restasse somente atender ao pedido do marido. Alguns capítulos depois, inclusive, penso que Sofia não possa mesmo fazer mais nada, pois o marido arranja uma sociedade com o capitalista. Como afastá-lo, a partir de então, do seu convívio?

Mas voltemos à cestinha de morangos. É bem verdade que Sofia a enviou, juntamente com um bilhete que dizia o seguinte: Mando-lhe estas frutinhas para o almoço, se chegarem a tempo; e, por ordem do Cristiano, fica intimado a vir jantar conosco, hoje, sem falta. Sua verdadeira amiga, SOFIA (ASSIS, b:1977, p.139).

É bem verdade também que somente o leitor sabe que a idéia de enviar a cestinha foi de Cristiano Palha. À Sofia só lhe coube copiar o bilhete, com sua letra, escrito antes por ele. Ou seja, não é Sofia quem, a priori, estaria incentivando as esperanças de Rubião, mas sim o marido. Entretanto, as interpretações sobre o bilhete são de Rubião.

Vimos há pouco que Rubião tinha sede de amor e que, portanto, era presa fácil. Encarou o bilhete de Sofia como uma doação de si mesma. Enxergou na interpretação do escrito “verdadeira amiga” uma metáfora. Leu na assinatura da senhora Palha, que não utilizou o nome do marido, um convite ao adultério. Assinar “Sofia” simplesmente, segundo as interpretações de Rubião, era romper, naquele instante, os laços do casamento. O bilhete tem, pelo menos, quatro momentos, que Rubião percebeu muito bem: o primeiro, que está na primeira pessoa. Ou seja, é ela quem lhe envia as frutas, estabelecendo uma aproximação entre os dois. Gesto singelo, cândido e generoso, de acordo com Rubião; o segundo é a intimação de Cristiano Palha para que vá jantar (a existência do marido); o terceiro, a confirmação da possibilidade da sociedade conjugal (conosco) e o quarto, a entrega de Sofia (mulher) sem sobrenomes de família ou do marido, simplesmente ela. E após estas interpretações, que não são minhas, mas sim do Rubião, ele a tocou, a sentiu e a beijou. Ou seja, ao beijar seu nome naquela folha de papel, simbolicamente ele a possuiu, firmando o consórcio “Palha & Comp”.

O adultério não aconteceu de fato. Ocorreu somente no plano simbólico. Mas é fato que Sofia também desejou Rubião. Ou melhor, desejou o desejo de Rubião por ela. Está lá no capítulo LXXVIII do folhetim, quando Palha tem a idéia de casar Maria Benedita com o mineiro. Vejamos o trecho em que Sofia conversa com a prima sobre o assunto:

— Gosta de alguem! Disse consigo Sophia. E querendo descobrir quem era, imaginou citar os nomes conhecidos. Começaria pelo Rubião; fez um pequeno esforço, mas o nome desse homem, que ella sabia que a amava em silencio, não chegava a sahir da boca. O que parece é que lhe custava dar á outra um homem que ella não queria para si, mas que lhe queria a ella, que a comia com os olhos, furtivamente; especie mui particular de ciume, o de uma mulher que não cede o que desdenha, e não faz o caso de lagrimas que não quer ver enxutas por outrem (grifos nossos).

(ASSIS, a:1977, p.81-82).

Nesta citação temos, pelo menos, duas observações a fazer: a confirmação do adultério simbólico também por parte de Sofia. Sim, pois a senhora Palha não queria “dar ou ceder” Rubião à prima. Ora, só podemos dar algo a alguém se o objeto nos pertence. Logo está, desta forma, o sentimento de propriedade de Sofia com relação ao mineiro. Sentimento este que ela não possuía com relação a Carlos Maria. Sim, simbolicamente Sofia pensa ter a posse de Rubião, confirmando o consórcio “Palha & Comp”. Mais do que isso, a senhora Palha sente ciúmes, quando pensa na possibilidade de o mineiro casar com Maria Benedita. Agora pergunto: podemos sentir ciúmes de algo que pertence a outrem e que não desejamos?

A segunda observação é ainda com relação ao ciúme de Sofia. O narrador revela um ciúme egoísta e mesquinho, mas talvez muito comum entre as pessoas: não quer Rubião junto consigo, mas também não quer vê-lo ao lado de ninguém, como se detivesse nas suas mãos a propriedade física e emocional do outro.

Cristiano Palha queria casar Maria Benedita com Rubião porque acreditava estar fazendo ali um ótimo negócio. Era uma forma de unificar a sociedade (financeira), de transformar o rico capitalista num membro da sua família. Na verdade, não seria um bom negócio somente para o Palha, mas também para o mineiro. Talvez fosse esta a única maneira de Rubião não dilapidar todo seu capital. Ou seja, Rubião não entendia nem de negócios e nem das regras da sociedade na qual vivia. Vimos que o mineiro viveu de ser professor, após falir algumas empresas. Não é de se espantar que também acabaria por exterminar sua fortuna, já que nada entendia de negócios. Quem administrava seu dinheiro era Cristiano Palha, dando-lhe muitos lucros. Está lá, no folhetim:

O socio dava-lhe noticias das vendas, do estado da praça, do movimento dos negocios, que fazendas achavam agora melhor preço. As casimiras francezas iam bem. A proposito, tinham-lhe dito uma cousa boa na vespera; a casa Moraes & Cunha pagava todos os credores, integralmente.

— Ah! Respondeu Rubião.

Este ah! Saiu sem grande alegria(…)

Rubião ouvia o que o socio lhe dizia, fitando muito os olhos nelle, tornando ás mesmas cousas, inclinando-se, apalpando isto e aquillo. Dous freguezes vieram ter com o Palha, e os separaram.

Rubião ficou só, olhando á toa. Percebeu que os empregados o miravam, e assumiu um ar de dono e de entendido. Virava e revirava as amostras, estendia o beiço, mexia a cabeça.

(ASSIS, a:1977, p. 98-99).

Para a alegria de Cristiano, Maria Benedita casou-se com Carlos Maria, que estava de posse dos bens do pai e da mãe. Ele parece bom rapaz, ela é excelente criatura; hão de ser felizes, por força. É bom negócio, sabe? E1e está de posse de todos os bens do pai e da mãe (ASSIS, b:1977, p.250). O casamento, por sua vez, termina por dar lucros com o nascimento de uma filha, que ocorre nas duas edições. A diferença está na importância que lhe é dada. No romance, o nascimento da criança passa quase desapercebido. No folhetim, entretanto, o narrador oferece maior destaque ao caso, dando, inclusive a comunicação do seu nascimento. Está no capítulo CXCIV do folhetim:

Sofia recebeu uma carta que acabavam de trazer da Tijuca. Para que negar que a abriu com grande curiosidade, quando vira que a letra era de Carlos Maria? Abriu-a; era uma communicação de nascimento(…).

(ASSIS, a:1977, p.243).

Por que no romance não é dada a mesma atenção ao nascimento da filha de Carlos Maria e Maria Benedita, que passa quase que desapercebido, principalmente se fizermos a comparação com o folhetim? Porque isto vem prestigiar Maria Benedita, no folhetim, em detrimento de Sofia. Maria Benedita, ao se tornar mãe, sente-se duplamente realizada: está casada com o homem que ama e ainda tem uma filha com ele. Sofia, ao contrário, não ama e não conheceu a maternidade. Já no romance, como o narrador não atribui grande importância ao nascimento da filha do casal, é diluído também o fato de Sofia não conhecer a maternidade. É aquela questão que já comentamos: o folhetim mostra uma Sofia que não encontrou a realização pessoal, diferentemente da personagem encontrada no romance, cuja realização parece estar completa.

A alegria pelo casamento de Carlos Maria e Maria Benedita era tão somente de Cristiano Palha. Sofia, como sabemos, não estava feliz com o ocorrido. Ela o desejou e foi preterida por ele. Mais do que ser preterida, perdeu-o para sua prima, a quem ensinara tudo, como já comentamos. Pior do que isso, Carlos Maria era agora seu primo.

E tudo nasceu da maldita carta da vespera, e das recordações que lhe trouxe de Carlos Maria, um homem que era agora seu primo. Sinceramente, cuidára ter arrancado de si a herva ruim que alli brotara, em certa noite fatidica. Verificava que não; ainda lá estavam raizes, que deram de si mesma herva do demonio, tomando o espaço ás bellas assucenas, ás rosas puras, candidas e cheirosas. Tudo matto, agora, e da peior especie. E foi elle quem deitou alli a semente fecunda e damninha. Foi esse vadio enfatuado e egoista que a convidou um dia ao passo do adulterio, e a deixou sósinha no meio do salão

(ASSIS, a:1977, p.202).

Vejam bem que Sofia não só desejou o desejo de Carlos Maria, como também o desejou, diferentemente do seu sentimento com relação a Rubião. No caso de Rubião, ela desejou o amor de Rubião, mas por ele não nutria nenhum sentimento. Já com relação a Carlos Maria, o adultério não ocorreu porque o rapaz galhardo não a quis. Nisto há que se pensar no adultério simbólico, que foram dois: Rubião com relação a Sofia, que em seu delírio a tornou, inclusive, imperatriz e aquele de Sofia para com Carlos Maria. Falamos em adultério simbólico porque estas personagens (Rubião — Sofia / Sofia — Carlos Maria) desejaram ao outro. A posse física é, pois, somente a concretização do desejo latente.

Quanto ao delírio de Rubião, é preciso que façamos mais uma observação. É possível perceber, no romance, que Rubião está delirando quando dos seus gestos e atitudes. Seu delírio sempre ocorre quando há um espectador (um criado, o cão, os amigos ou os moleques da rua da Ajuda). Já no folhetim, o delírio pode ocorrer sem que ninguém possa “apreciá-lo” e esse detalhe muda tudo, pois como vimos, somos, subjetivamente, aquilo que vêem em nós. Rubião só foi considerado louco porque a sociedade na qual ele estava inserido o via assim. Desta feita, como poderia Rubião ser considerado louco se não havia espectador? O nosso autor percebeu isso muito bem e tratou de fazer a correção na edição seguinte. Eis o trecho que consta somente no folhetim:

Algumas vezes o imperador não se manifestava por actos externos, vivia em si mesmo, calado, ruminando a grandeza. A realidade exterior trocava a mascara, e não havia carroça nem loja de charutos que não parecesse coche ou salão. Cores sombrias e desmaiadas faziam-se vivas e alegres. Caso houve em que os chapéos, sem se deslocarem, tinham o geito de descobrir as cabeças, para comprimental-lo. Elle tocava então com a ponta dos dedos no seu. Ouvia fallar francez em torno de si. E não sei que voz enorme, como de multidão, — mas ao longe, muito longe, bradava: Imperador!viva!imperador!Napoleão!.

(ASSIS, a: 1977, p.184).

Nem súdito, nem vencido. Sentindo-se o imperador morreu nosso Rubião. Morreu na pobreza, no abandono e na doença. Nos seus últimos minutos de agonia, erguendo meio corpo, conseguiu tocar sua coroa rútila de brilhantes, numa expressão gloriosa. Entregou-a para que fosse guardada, abdicando do seu trono e conseqüentemente da vida.

Duas pequenas alterações, numa única palavra, diferenciam os dois últimos capítulos, que tratam das mortes de Rubião e do cão. O velho bruxo suprimiu do romance o verbete “eterno”, que consta somente na edição do folhetim.

A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um tregeito horrivel, e estava assignada a eterna (grifos nossos) abdicação.

(ASSIS, a:1977, p.248).

Em seu fino trabalho de artesão, Machado de Assis percebeu que, de acordo com a filosofia de humanitas, a questão da morte não pode ser considerada de maneira eternizada. O que também contraria a visão de Bakhtin sobre carnavalização, como veremos no capítulo correspondente. A abdicação de Rubião não pode, pois, ser eternizada, pois a vida é uma continuidade e não há morte. Há apenas o encontro de duas expansões.

— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra.

(ASSIS, b: 1977, p.114).

Com relação ao final do último capítulo, temos o seguinte no folhetim: O Cruzeiro, que a bella Sophia não quiz fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discenir os risos e as lagrimas dos homens: alto e quasi eterno (grifos nossos) (ASSIS, a:1977, p.248).

Por que razão teria Machado de Assis feito tal alteração? O que pensou o velho bruxo no instante em que riscou sua folha de papel? Talvez ele quisesse nos mostrar que histórias como a de Rubião e de Sofia não acontecem somente nos livros. Que histórias como essa podem acontecer a quem tem desejos, seja de glória ou de amor.

Um cruzeiro alto está longe das nossas mãos e principalmente dos nossos olhos. É um olhar vertical de cima para baixo, que também contraria a teoria sobre a carnavalização. Por outro lado, o cruzeiro está lá e as estrelas, como disse um dia Rubião, são os olhos da sua Sofia, da sua imperatriz. Quase eterno? Não! Eterno será este cruzeiro enquanto houver leitores. Eterno será este cruzeiro enquanto houver um leitor que abra as páginas de Quincas Borba e embarque com Rubião no trem da estrada de ferro, saindo de Minas em direção à Capital, em busca dos seus sonhos. Afinal, você nunca sonhou ser imperador ?

 

 

CAPÍTULO II — O NARRADOR

Uma das personagens mais importantes de um romance é sem dúvida o narrador, mesmo quando este não faz parte do enredo, como é o caso do narrador de Quincas Borba, seja do folhetim ou do romance. Isto porque é o narrador quem conduz a trama e detém um importante ponto de vista.

Mas aí, meu caro parceiro, você pode questionar: Mas em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, o narrador não é o conselheiro Aires, mas é ele quem detém o ponto de vista no romance, não é? Bem, o ponto de vista do narrador pode não ser o único do romance. No caso específico de Esaú e Jacó há um autor que é Machado de Assis, que cria um autor, que é o conselheiro Aires e que cria também um narrador, em terceira pessoa, que vai narrar entre outras coisas, a personagem do conselheiro. Além disso, podem existir num romance outros pontos de vistas, que não somente o do narrador. As personagens também podem ser caracterizadas pelo seu próprio discurso ou pelo discurso de outras personagens. Ou seja, podem ser caracterizadas pelo seu próprio ponto de vista, bem como pelo ponto de vista de outras personagens. E aí, como é que fica a questão do narrador? Para sua pergunta, caríssimo, tenho uma única resposta, dada pelo próprio narrador de Quincas Borba. Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão (ASSIS, b:1977, p.126-127). Isto quer dizer que podemos ler todas as personagens, desde que o narrador o permita, pois é o narrador quem conduz a trama e que detém em suas mãos a pena da caneta.

Mas é importante ressaltar que, muitas vezes, o ponto de vista do narrador não é o ponto de vista do autor. Lembremos de Brás Cubas, narrador de suas memórias. Teria Machado de Assis compactuado com as opiniões do seu narrador? Creio que não! E a questão do ponto de vista, neste caso específico, assume algumas dimensões: o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas está em primeira pessoa e é ele quem fala de si e das demais personagens que participam da trama. Brás não dá voz a ninguém, nem mesmo a Virgília, sua amante durante longos anos. Assim, temos uma visão unilateral de toda a situação. É o mesmo caso de Dom Casmurro, que tem a narração de Bentinho, única personagem que têm voz durante a história. Logo, perguntamos: afinal, Capitu traiu ou não traiu Bento? Como ter uma resposta definitiva se não podemos ouvir o que diz Capitu? Se só temos a visão do marido rancoroso?

No caso de Quincas Borba, as coisas são um pouco diferentes, pois assumem outros ângulos, uma vez que o narrador não é personagem do romance. Logo, em estando do lado de fora, pode narrar de maneira mais distanciada toda a história. Mas que fique bem claro que narrar à distância não é sinônimo de imparcialidade.

Vamos explicar melhor: em Quincas Borba temos a visão que o filósofo constrói de Rubião; a visão que o casal Palha constrói de Rubião; a visão que Carlos Maria constrói de Rubião; a visão que D. Fernanda constrói de Rubião; a visão que as demais personagens constroem de Rubião; a visão que Rubião constrói dele mesmo e a visão que o narrador constrói de Rubião. Depois disso tudo, a visão que o leitor constrói de Rubião. Claro está, que só temos essa visão polifônica porque o narrador assim o permitiu. Quer dizer, o narrador de Quincas Borba está numa posição distanciada, mas não isenta de opiniões e pontos de vista, uma vez que a partir do seu relato, via de regra, não há como não ficarmos antipáticos ao casal Palha e não nos apiedarmos do mineiro, que foi usurpado pelos amigos, principalmente por esse casal, até que lhe acabasse o último conto de réis e que fosse abandonado, nos momentos de miséria e de loucura. E não sou somente eu que me enterneço com o dilema e com a dor de Rubião. Vejamos o que diz o professor Luis Filipe Ribeiro, em seu livro Mulheres de Papel:

Rubião aqui comparece para, de um lado, ratificar a tese burguesa de que os pobres não sabem o que fazer com o dinheiro. Quando o pilham, gastam-no todo sem saber fazê-lo render e multiplicar-se. Ele chega à riqueza, imaginando que ela é uma qualidade natural que, uma vez atribuída, nunca mais se despega da pele de quem foi bafejado. Assume o seu papel, sem saber que não lhe deram o texto completo de seu drama e põe-se a viver como rico, generosamente. Vive com eles, tem as mesmas aspirações que eles, mas não é como eles. Se sonha com a política, não sonha com a titularidade, aspiração maior que pode alimentar um rico brasileiro. Quando voa, voa mais alto e quer ser direto imperador da França, mas não pelos caminhos do capital. Chega lá pela identificação esquizofrênica, pelas vias do imaginário despegado de qualquer solo minimamente real. Seu sonho não tem cálculo; seu imaginário não rende tributos ao ritmo da acumulação primitiva. E este é todo o seu drama.

Pois, assim como chega à riqueza, é dela despedido sem qualquer cerimônia. Abandonado por todos — menos pelo cão — , rejeitado por quem se fizera às suas custas, evitado por quem lhe comera da mesa farta e generosa, ele vai morrer na sua Barbacena, na cama de uma sua comadre. Morre na miséria – miséria econômica e miséria humana. Porque, na Corte fora despojado de tudo, inclusive de sua humanidade. Ele se torna, assim, um paradigma da crueldade das regras sociais, ao ser uma das únicas personagens de Machado de Assis que nos desperta a piedade e a solidariedade. Não tem a arrogância fátua de um Brás Cubas; nem o cinismo reprimido de um Bentinho. É um simples. Como muitos de nós, na nossa incurável vontade de ajudar aos demais.

(RIBEIRO, 1996, p.367).

E ao narrar o drama de Rubião, temos em Quincas Borba dois narradores distintos, se considerarmos a edição do romance e a do folhetim. O narrador machadiano é sempre cruel, tagarela, vivaz, cínico, inteligente, atento, astuto, gozador, irônico, debochado, sutil, intrometido, comedido, arguto, perspicaz. E por que não dizer que este narrador, especialmente, é o próprio riso? Este narrador é carnavalesco, se considerarmos seu deboche, seu escárnio, seu riso, sua crítica, seu exagero.

Mas quando eu disse que temos dois narradores é porque existem diferenças entre eles. É claro que as características acima permanecem nos dois, já que ambos são perspicazes, tagarelas e mantêm um diálogo constante com o leitor. Mas as semelhanças param mais ou menos por aí. Eles têm estilos, maneiras diferentes de contar a história e apresentam traços distintos nas narrativas. E a maneira que um utiliza para contar a mesma história altera completamente o resultado da narrativa. Por exemplo, enquanto o narrador do romance é mais ácido, o do folhetim é mais explicativo. O narrador do folhetim é muito mais detalhista, muito mais descritivo, muito menos cruel que o do romance. O primeiro tem uma característica diferenciadora: por diversas vezes antecipa aquilo que será narrado. Vejamos um exemplo:

Aqui, toda a gente que me fez o favor de ler as Memórias Póstumas de Braz Cubas, lembra-se, póde ser que se lembre – de que aparece alli, em tres ou quatro capitulos, um tal Quincas Borba, e pergunta e cuida naturalmente que é o mesmo.

Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memórias; basta saber que é o mesmo, e que vae morrer, como disse o médico. Póde ir, que não precisamos delle. Que fosse creança graciosa, mendigo algum tempo, herdeiro inopinado e inventor de uma philosophia, não temos nada com isso. Quando muito, é bom saber ( e aqui lh’o digo) que alguns annos antes, um médico supôz que este Quincas Borba tinha um grãozinho de sandice, cousa de nada (está no cap. CLIII das Memórias), e é bom sabel-o para explicar algumas disposições testamentárias do homem, que vae morrer daqui a pouco (grifos nossos).

Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem, não pelo homem, senão pelo cão, por este mesmo cão que o amigo enfermeiro acarinha, explicando-lhe que quando fallou em Quincas Borba não se referia a elle, mas ao senhor. O que quer dizer, em duas palavras, que o nome era commum ao cachorro e ao dono.

(ASSIS, b:1977, p.08).

Como dissemos, o narrador do folhetim é muito mais explicativo que o do romance e mantém com o leitor um diálogo, uma conversa bastante detalhista. Talvez uma das coisas que vem intrigando os leitores há mais de um século é o título do livro: Quincas Borba. Parece difícil chegarmos a uma conclusão se a referência é ao cão ou ao seu dono. Ou mesmo aos dois, por que não? Mas é o narrador do folhetim que parece nos dar a resposta, como veremos no capítulo sobre carnavalização.

Vemos que nas primeiras páginas do folhetim, ainda na página 08, em seu segundo capítulo, o narrador adianta que o filósofo irá morrer. Mais do que isso, adverte que a personagem é desnecessária e que o importante é apenas seu nome, em razão de ser o mesmo nome do cão. E, ao antecipar a morte do filósofo, ele se utiliza do cinismo, do deboche, do escárnio, num efetivo diálogo com o leitor. Essa maneira de narrar, antecipando fatos, é costurada com pontos cuidadosos, pois apesar de o leitor tomar conhecimento de situações que acontecerão futuramente, sua curiosidade ou seu envolvimento com o que está sendo narrado não é comprometido. É dessa forma que sinto, como leitora. Quer dizer, no segundo capítulo eu tomo conhecimento de que o filósofo irá morrer em breve. O fato, longe de desestimular esta leitora, aguça a curiosidade, a fim de verificar, em detalhes, o que o narrador nos contou superficialmente. É um estilo de narrar diferente do narrador do romance, que não anuncia ao leitor o que ainda será revelado. Vejamos mais um exemplo dessas antecipações do narrador do folhetim, que utiliza o deboche e a descontração, quando se dirige ao leitor.

A comadre era muita feia. Peço desculpa de ser tão feia a primeira mulher que aqui apparece; mas as bonitas hão de vir. Creio até que já estão nos bastidores, impacientes de entrar em scena. Socegai, muchachas! Não me façaes cair a peça. Aqui vireis todas, em tempo idoneo... Deixai a comadre que é feia, muito feia.

(ASSIS, a:1977, p.20).

O narrador, como vimos no capítulo denominado “A OFICINA DA CRIAÇÃO”, expõe sua opinião sobre a feiúra da comadre Angélica, não oferecendo oportunidade de o leitor opinar sobre a questão. Este narrador é de opinião que a comadre de Rubião é feia e que Sofia é belíssima, bem como outras personagens que ainda surgirão na obra. Aliás, nenhuma caracterização física nos é fornecida sobre a comadre, a fim de que nós, leitores, possamos chegar à conclusão sobre sua feiúra ou beleza. Ou seja, esta antecipação de fatos é também uma maneira que o narrador encontrou de manter o leitor interessado na sua história.

Mas este narrador debochado, que expõe suas opiniões diante do leitor e que antecipa o que ainda vai ser narrado, é também paciente. E em sendo paciente, parece que prefere auxiliar o leitor no entendimento da trama que deseja narrar. No início do capítulo III, do folhetim, o narrador constrói a localização espacial e geográfica em que estão inseridos Rubião, o filósofo e o cão, dizendo o seguinte: Mas que Rubião é este? E, antes, de tudo onde estamos nós? Estamos, por ora, em Barbacena, Minas Geraes (ASSIS, a:1977, p. 09 ).

Vejam bem que o narrador não faz somente a localização de Rubião em Barbacena, mas, quando utiliza a conjunção “por ora”, ele já antecipa que haverá mudanças de lugar na narrativa. Mais adiante, no capítulo XX, temos a cena em que Rubião fita a enseada, olhando-a da sua janela, na mansão de Botafogo. Ao introduzir o capítulo, o narrador faz, mais uma vez, a localização geográfica. Desta vez a cena ocorre no Rio de Janeiro.

Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro. Vês aquela figura de pé, com os polegares mettidos no cordão atado do chambre, á janella de uma linda casa da praia de Botafogo. É o nosso homem.

(ASSIS, a:1977, p.22).

Além da preocupação de não deixar dúvidas quanto à narrativa, a fim de que o leitor a acompanhe sem maiores problemas, podemos perceber que, no folhetim, temos um narrador que mantém um diálogo muito ativo com o leitor. É claro que o narrador do romance também o faz. Mas o narrador do folhetim é muito mais tagarela, mantendo uma conversa constante com o leitor, emitindo suas opiniões sobre o que é narrado e convidando o leitor a participar do seu livro com suas reflexões, como numa estrada de mão dupla, em que os dois têm voz ativa: o narrador e o leitor. Vejamos um exemplo:

Não contaria toda essa odysséa miuda de uma alma, senão tivesse dous motivos capitaes,— explicar a benevolencia do empurrado, e dar ao leitor um bom ensejo de fazer uma reflexão. A benevolencia está explicada; resta só refletir.

(ASSIS, a:1977, p.113-114).

E ele continua opinando e filosofando sobre a humanidade, mas colocando também sua pitada de ironia. A citação a seguir refere-se aos momentos de angústia de Rubião, quando este encontra, jogado no jardim, o envelope com a letra de Sofia, em carta endereçada a Carlos Maria, que o mensageiro deixou cair sem perceber. Rubião não abre o envelope para verificar o que estava escrito. Fica sim, enlouquecido de ciúmes, pois pensa que existe um envolvimento amoroso entre os dois. O narrador do folhetim opina, então, ao leitor:

Tudo acabaria se elle lesse a carta logo...Oh! se Julio Cesar tem lido a carta de aviso que lhe entregaram na rua, quando ia ser assassinado! O seculo tomaria outro curso. – Nem Cesar nem Rubião: o destino parece que os marcou bem com o sello da morte e da amargura. Fique esta linha de parallela á maneira de Plutarcho. Em alguma cousa se hão de parecer os homens.

(ASSIS, a:1977, p. 117).

É interessante a maneira que o narrador do folhetim encontra para contar sua história. Vejam que na citação acima ele já adianta sutilmente, ao leitor, o final da trama: a morte de Rubião, bastando, para tanto, uma leitura um pouquinho mais atenta e verificar que já está gravado, antes da metade da obra, que Rubião, assim como Júlio César, encontrará a morte e a amargura. Além disso, brinca com o leitor, pois adianta que o mineiro não abrirá a carta e, ao menos, por enquanto, nós, leitores, ficaremos sem conhecer o conteúdo. E se Rubião a abrisse, a história tomaria outro curso e, obviamente, o final poderia ser outro. E o narrador continua o mesmo raciocínio duas páginas adiante:

Qualquer pessoa que lê isto, a frio, acha naturalmente que a carta caiu do bolso ou da mão do portador, por descuido. Não aconteceu o mesmo ao espirito do Rubião; esse, sempre que buscava explicar a presença da carta, escorregava para a autora, para o destinatario, e finalmente para o conteudo.

Oh! O conteúdo! Que iria alli escripto dentro daquele papel homicida? Perversida de luxuria (sic!), toda a linguagem do mal e da demencia, resumidas em duas ou tres linhas...Não; mais, muito mais. Com esta ideia, Rubião levantou a carta, deante dos olhos, a ver se descobria alguma cousa. Não descobriu nada; o papel era grosso; não podia ver se todo elle estava escripto(...)

De repente, salteou-o o receio de que o moleque, dando por falta da carta, em caminho, voltasse a procural-a Rubião metteu-a atrapoalhadamente no bolso do chambre. Depois, com a ideia de não poder encobrir a perturbação, se o portador voltasse, retirou-se do jardim.

Deve ser assim, quando um homem medita algum crime(...)

Illusões, illusões. Bem podia ser que, aberta a carta, lido o texto, longe de fugir ao “abysmo de opprobios”, Rubião corresse a lançar-se nelle de uma vez, ou a quebrar a cabeça de encontro ás bordas. Isto é que é meu — e nosso, se o leitor vae acompanhando attento os movimentos intimos daquele homem. Hade concordar que este resultado era bem possivel, e talvez o único possivel. O texto poderia ser um desafio a todas as suas forças; elle as enfeixaria contra essa mulher enigmática.

(ASSIS, a:1977, p.119-120).

Quer dizer, o narrador não apenas revela suas opiniões, como induz o leitor a concordar com elas. Afinal, por que nós, leitores, não poderíamos pensar que realmente Sofia e Carlos Maria eram amantes? Se chegamos a pensar, é porque o narrador assim o quis e ele mesmo desfez nosso pensamento, direcionando-nos a concluir que a precipitação do raciocínio era exclusivamente de Rubião. Tal artimanha também conduz à idéia de veracidade. Sim, porque o narrador discorda de Rubião, opinando diferentemente. E como sua história é “verdadeira”, não pode inventar ou mentir a respeito. É aquela história sobre a cláusula do testamento, que segundo o narrador, é “esquisita”, mas ele não poderia mentir ou inventar apenas para agradar ao leitor.

E no seu estilo todo particular de narrar, o leitor vai, sem perceber, sendo envolvido numa teia. A partir do momento em que o narrador reserva várias páginas para falar sobre a carta endereçada a Carlos Maria, que foi encontrada por Rubião no jardim, ele vai aguçando a curiosidade do leitor em alguns pontos: 1— qual o conteúdo da carta? 2— Sofia e Carlos Maria eram amantes? 3— Rubião vai ou não abrir a carta, para pôr fim à nossa agonia? Sim, nossa agonia e não somente do mineiro. Pois, ao dar tanta ênfase ao episódio da carta encontrada no jardim, o narrador coloca o leitor numa situação de impotência, já que a carta está nas mãos do Rubião, que para nosso desespero de leitor, não a abre imediatamente, para que saibamos do conteúdo.

Outro fato que chama a atenção, é que a citação acima não consta no romance. Até aí, nenhuma novidade, já que isso acontece diversas vezes. Mas o interessante é que os dois narradores dão ênfase a questões diferentes, priorizam fatos distintos e isso conduz ambos a pontos de vista diferentes. Sim, porque se um dá importância a algo que o outro nem cita, é questão para pensarmos a respeito.

Quando o narrador do folhetim utiliza várias páginas do seu texto para falar sobre a carta, ele prorroga o assunto e alonga a história. O mineiro vai à casa de Sofia mostrar-lhe a carta, a fim de verificar a reação da senhora Palha e tentar concluir se ela tem ou não um envolvimento com Carlos Maria. O fato é que, no folhetim, o narrador amplia a questão. Mostra um Rubião enlouquecido de ciúmes, que planeja, inclusive, ameaçar Sofia com uma arma, caso ela resista a confessar a verdade. Chega a pensar, inclusive, em matá-la, caso ela não lhe mostre o conteúdo. Além disso, o mineiro confessa seu amor pela bela dama, como vimos no capítulo anterior. Ora, como sabemos, estes dois fatos não ocorrem no romance. Quer dizer, o narrador do folhetim torna suas personagens muito mais emocionais e dramáticas.

Quando utiliza várias páginas para falar sobre a tal carta, ele torna tal fato mais relevante. E este episódio vai ocupando uma linha imaginária crescente, até que o conteúdo da carta seja revelado. Neste trecho, o narrador lança mão de um novo movimento: a confissão de Rubião, a Sofia, de seus sentimentos. É um jogo, onde o narrador lança sempre uma nova isca ao leitor.

Mas não é somente o narrador do folhetim que conduz, a nós, leitores, a uma determinada linha de raciocínio. O narrador do romance também o faz, de maneira mais discreta. E quando conseguem o que querem, revelam que nós é que nos enganamos e dizem que não fizemos uma leitura com atenção. Ou seja, os narradores, com muita astúcia, conseguem a confiança do leitor. E uma vez que a conquistam, fazem de nós presas fáceis para alcançar seus objetivos. É o que afirma Hélio Guimarães Seixas, em sua obra Os leitores de Machado de Assis:

O narrador de Quincas Borba procura aproximar-se e conquistar a confiança do leitor com palavras lisonjeiras, afirmações sobre sua inteligência, referências a sua capacidade dedutiva e pressuposições de bom entendimento; mas ao mesmo tempo em que profere elogios, sistemática e insidiosamente semeia dúvidas sobre tudo o que afirma.

(GUIMARÃES, 2004, p.198).

Lembra-se da cena do cocheiro, caro amigo? Pois, lá, o narrador confere a autoria do pensamento ao leitor, isentando a si mesmo, a Rubião e ao cocheiro de qualquer culpa. Primeiro, o narrador induz a possibilidade de Sofia e Carlos Maria serem amantes. Depois, diz que o equívoco é do leitor.

— Que lhe dizia eu? redargüiu o homem. Vossa Senhoria é fino, e faz muito bem; mas eu sou pessoa de segredo, e cá o carro tem servido para estas idas e vindas. Não há muitos dias trouxe um belo moço, muito bem vestido, pessoa fina, —já se sabe, negócio de rabo de saia.

— Mas eu... interrompeu Rubião.

Mal podia conter-se; a suposição agradava-lhe; o cocheiro cuidou que ele dissimulava a culpa.

— Olhe, eu bem digo,—continuou ele; tal qual o moço da Rua dos Inválidos. Vossa Senhoria pode ficar descansado; não digo nada; cá estou para outras. Então, quer que eu acredite que é por gosto que uma pessoa, que tem carro às ordens, vem andando a pé desde a Praia Formosa até aqui? Vossa Senhoria veio ao lugar marcado, a pessoa não veio...

— Que pessoa? Fui ver um doente, um amigo que está para morrer.

— Tal qual o moço da Rua dos Inválidos, repetiu o homem. Esse veio ver uma costureira da mulher, como se fosse casado. . .

— Da Rua dos Inválidos? perguntou Rubião, que só agora atentava no nome da rua.

—Não digo mais nada, acudiu o cocheiro. Era da Rua dos Inválidos, bonito, um moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Oh! eu também se fosse mulher, era capaz de apaixonar-me por ele... Ela não sei donde era, nem diria ainda que soubesse; sei só que era um peixão.

E vendo que o freguês o escutava com os olhos arregalados:

— Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era de boa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por um véu, cousa papa-fina. A gente, por ser pobre, não deixa de apreciar o que é bom.

— Mas... como foi? murmurou Rubião.

— Ora, como foi! Ele chegou como Vossa Senhoria, no meu tílburi, apeou-se e entrou numa casa de rótula; disse que ia ver a costureira da mulher. Como eu não lhe perguntei nada, e ele tinha vindo calado toda a viagem, muito cheio de si, compreendi logo a finura. Agora, podia ser verdade, porque é mesmo uma costureira que mora na casa da Rua da Harmonia. . .

— Da Harmonia? repetiu Rubião.

— Mau! Vossa Senhoria está arrancando o meu segredo; mudemos de assunto; não digo mais nada.

Rubião olhava atônito para o homem, que de fato se calou por dous ou três minutos, mas logo depois continuou:

— Também não há muita cousa mais. O moço entrou; eu fiquei esperando, meia hora depois vi um vulto de mulher, ao longe, e desconfiei logo que ia para lá. Meu dito, meu feito; ela veio, veio, devagar, olhando disfarçadamente para todos os lados; ao passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisou bater; foi como nas mágicas, a rótula abriu-se por si, e ela enfiou por ali dentro. Se eu já conheço isto. Em que é que Vossa Senhoria quer que a gente ganhe cobrinhos mais? O preço da tabela mal dá para comer; é preciso fazer estes ganchos.

(ASSIS, b:1977, p.217-218).

Como vimos, na citação acima, o narrador, na voz do cocheiro, induz Rubião a acreditar que as personagens citadas são Carlos Maria e Sofia, e que mantêm seus encontros numa casa na rua da Harmonia. As características das duas figuras são idênticas àquelas atribuídas às duas personagens: o rapaz é muito cheio de si, bonito e morador na rua dos Inválidos, tal qual o moço galhardo e ela, uma belíssima senhora, vestida com roupas finas, que sugerem pertencer à alta classe social, tal qual Sofia. O cocheiro diz que o moço desejava ser entendido como um homem casado, coisa que o cocheiro não acreditou. A mulher, antes de entrar à casa, olhava para todos os lados, a fim de verificar se não era vista. Ou seja, certamente era casada. No folhetim, inclusive, o narrador estende o assunto por mais um capítulo, no qual predominam os pensamentos de Rubião: Desde que chegára (e veiu directamente) cogitou quase exclusivamente do assumpto. Os “olhos grandes”do rapaz e a “boa figura”da senhora roiam lhe as entranhas(...) (ASSIS, a: 1977, p.106).

Cerca de vinte páginas depois, o narrador faz uma gozação com o leitor, afirmando que suas deduções foram erradas, em razão da falta de atenção na leitura, pois a história contada pelo cocheiro não era verdadeira. Como poderia o leitor saber, se uma das preocupações do narrador é mostrar veracidade naquilo que é narrado, a fim de não perder a credibilidade do leitor? Mas é preciso atentar que o episódio foi contado pelo cocheiro e não pelo narrador. A citação abaixo consta nas duas edições:

OU, MAIS PROPRIAMENTE, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso: —Então a entrevista da Rua da Harmonia, Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinqüentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia,—ruas transversais, onde o tilburi podia ficar esperando.

—Bem; o cocheiro não soube compor. Mas que interesse tinha em inventar a anedota?

Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quase duas horas, sem o despedir; viu-o sair, entrar no tílburi, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu que era ótimo freguês; mas, ainda assim não se lembrou de inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino,—a da Rua da Saúde, —e Rubião quedou-se a olhar para ela com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por lascivo, além de pródigo, e encomendou-lhe as suas prendas. Se falou em Rua da Harmonia foi por sugestão do bairro donde vinham; e, se disse que trouxera um moço da Rua dos Inválidos, é que naturalmente transportara de lá algum, na véspera,—talvez o próprio Carlos Maria,—ou porque lá morasse, ou porque lá tivesse a cocheira,—qualquer outra circunstância que lhe ajudou a invenção, como as reminiscências do dia servem de matéria aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito consertar farrapos da realidade.

Resta só a coincidência de morar na Rua da Harmonia uma das costureiras do luto. Aqui, sim, parece um propósito do acaso. Mas a culpa é da costureira — não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade, se quisesse deixar a agulha e o marido. Ao contrário disso, ama-os sobre todas as cousas deste mundo. Não era razão para que eu cortasse o episódio, ou interrompesse o livro.

(ASSIS, b:1977, p.236-237).

Quer dizer, o narrador induz o leitor ao erro, após cativar sua confiança Aliás, isso está em contradição com as próprias palavras do narrador do folhetim, que num capítulo anterior disse o seguinte sobre a cláusula do testamento de Quincas Borba: Ahi tem a clausula inteira. Não a queria dar por medo de aborrecer o leitor nem a leitora, pessoas principaes em tudo isso, e ás quaes não desejo mais que saude e tempo (ASSIS, b:1977, p.19).

Mas o episódio do cocheiro não trairia a confiança do leitor, segundo o narrador. Se o leitor pensou que o cocheiro estava narrando a verdade é porque não leu, com atenção, seu diálogo com o mineiro. Uma das costureiras de Sofia morava na rua da Harmonia, por coincidência. Carlos Maria morava na rua dos Inválidos, outra coincidência. Ambos eram bonitos e elegantes. Outra coincidência. Mas o cocheiro não soube inventar muito bem a história, pois disse que o rapaz pediu para parar o coche em frente à casa em que os dois entraram. Ou seja, se a moça e o rapaz pretendiam passar desapercebidos e foram àquela casa para ficarem escondidos, parar o tílburi em frente à residência era indicar o local do encontro. Deslize do cocheiro. Precipitação do Rubião. Falta de atenção do leitor.

Quer dizer, este narrador brincalhão e debochado avisa que, em razão de achar a cláusula do testamento esquisita, embora verdadeira, quase não a informa ao leitor. Entretanto, conduz o leitor a acreditar em informações inverídicas sobre duas personagens, como no caso do cocheiro.

Vimos também, em citações anteriores, que uma das grandes preocupações do narrador do folhetim é mostrar veracidade naquilo que está sendo narrado. Para tanto, ele estabelece um diálogo contínuo com o leitor. O narrador do romance também quer mostrar que a história contada por ele é verossímil. Mas é no folhetim esse desejo parece ser mais evidente.

Tão alegre! Tão filósofo! E sae-se com lagrymas. Chora miseravelmente por um cão! Lagrymas verdadeiras, não há negal-o; o Rubião viu-as cahir, e o sol as alumiou no momento em que ellas desciam pela face abaixo. Verdadeiras são; mas porque? (sic!) Já está dito: é o tal grãosinho de sandice que lhe entrou no cerebro, semente que dá tudo, desde lagryma até á cutilada. Rubião creu nellas, porque as viu, e porque sabia bem a estima que elle tinha ao cão, mas vós todos...

Vós que passaes pelo caminho da vida, alegres como eternos rapazes, duvidaes certamente do que estou contando. Cá trarei uma dessas lagrymas, daqui a pouco, fechada n’uma bocetinha antiga, e mostral-a-hei tão verdadeira e tão amarga como no dia em que brotou dos olhos do nosso Quincas Borba.

Repito: o Rubião que as viu, não precisou de outra prova. Viu-as, despediu-se, e foi calado para casa.

(ASSIS, a:1977, p.12).

Tal citação não só mostra os argumentos do narrador objetivando demonstrar veracidade, como também evidencia a característica de antecipar o fato (amargo) que ainda vai ser narrado, como vimos exemplos acima. Vejamos mais um deles, que serve para justificar a persistência do narrador do folhetim em demonstrar veracidade em tudo aquilo que ele narra. A citação refere-se à abertura e à cláusula do testamento.

Nunca uma noiva assistiu aos preliminares do casamento tão tremula e medrosa como o nosso Rubião assistiu dalli a dias, depois de feitas todas as diligencias judiciaes, á abertura do testamento. Não era testamento, era o marmore de La Fontaine: sera-t-il dieu, table ou cuvette? Tal era a pergunta silenciosa que fazia a alma do professor. Cuvette que fosse, era um pedaço de artista. E elle olhava e ouvia as primeiras palavras sacramentaes do papel, impaciente de ouvir o seu nome...Cá está o nome...

(...)Ahi tem a clausula inteira. Não a queria dar por medo de aborrecer o leitor nem a leitora, pessoas principaes em tudo isto, e ás quaes não desejo mais que saude e tempo. Ahi tem a clausula. Que é exquisita, não há duvida; mas eu não heide inventar um testamento nem mentir a minha história só pelo gosto de pôr aqui uma clausula vulgar. Toda a questão é que o herdeiro não a achasse humilhante.

(ASSIS, a:1977, p.18-19).

Como já dissemos, temos um narrador, no folhetim, que prefere explicar com mais detalhes sua narrativa. Bem, sabemos que Rubião se afeiçoara ao cão por interesse em herdar uma parte do legado do filósofo. E é exatamente isso que o narrador do folhetim explica ao leitor. Ele revela as três razões que levaram o ex-professor a cuidar do Quincas Borba – o cão, enquanto o filósofo Quincas Borba estava em viagem no Rio de Janeiro, na casa de Brás Cubas. Está no capítulo VI do folhetim.

Certo é que o nosso homem cuidava delle como de um filho; não olvidou nenhum dos cuidados recommendados pelo dono. Nisto levava tres fins: cumprir a palavra dada, impedir a fuga do cão, que seria dolorosa para o dono ausente, e podia trazer algumas reformas testamentarias e finalmente conseguir da parte do cão tamanho affecto que o dono, quando voltasse, achasse nisso mesmo a melhor prova de que obedecêra em tudo. Mas voltaria elle? Eis ahi o ponto escuro.

(ASSIS, a:1977, p.13).

Quer dizer, ao falar sobre os motivos que levaram Rubião a cuidar do cão, o narrador introduz uma nova questão: o filósofo poderia não retornar da sua viagem. É uma possibilidade. Afinal, o leitor já foi advertido que o filósofo irá morrer, capítulos antes. É um narrador que amarra o leitor, preso ao seu livro, já que sempre lança uma nova isca, como dissemos.

Neste mesmo capítulo o narrador introduz os sentimentos de Rubião pela bela Sofia. Esta citação também é analisada no item sobre a carnavalização, no que se refere à vitória da vida sobre a morte.

Aqui o pensamento parou, vexado de tanto egoismo; parou, recuou, e foi de uma cousa a outra cousa muito differente; mas o coração, educado nos mesmos principios, não o acompanhou na diversão, e deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa o cavallo que alli passa na praia nem o cavalleiro que o monta, e que os olhos do Rubião acompanham com interesse, arregalados? Elle, coração, vae dizendo que foi muito bom que, uma vez que a mana Marica tinha de morrer, não se realisasse o consorcio; podia vir um filho ou uma filha...— Bonito cavallo! – Antes assim! – Cabeça levantada, dando ás crinas...— O certo é que ella está no ceu. –

E o pensamento e o coração do homem, não podendo entender-se, cuidaram de ver assumpto que os reunisse, e foram direitinhos ao collo da bella Sophia...

Não era facil; tinham de galgar o espaço que ia dalli ao morro de Santa Thereza, mas subiram depressa, chegaram á porta do jardim; lá estava o belo collo, coberto por um chale, com uma cabeça engraçada por cima, e repousando sobre um corpo airoso e delicado. Póde ser que nem tudo fosse exactamente assim, mas a realidade accomodava-se do estylo, e demais (que é o que importa) essa era, e não de outra a impressão do hommem. Os olhos entraram desvairados, foram á dama, e rasgaram-lhe o chale, emquanto o coração ia batendo a marselheza do amor:

Liberte, liberté, chérie!

(ASSIS, a:1977, p.23).

Temos, neste trecho, a primeira vez em que o nome de Sofia é citado e já nesse primeiro contato, o leitor toma conhecimento de que Rubião nutre certo amor por esta bela mulher e que a deseja. Em seus pensamentos, com olhos desvairados, arranca o xale da moça e a possui. Quer dizer, temos um narrador que, com sutileza, muda seu objeto narrativo. Sai de Rubião, em Botafogo e vai à Sofia, em Santa Teresa, sem que percebamos. É um narrador que conduz o leitor aonde ele quer, sem nenhuma resistência deste. E quando nos damos conta disso, já estamos lá, flutuando nos pensamentos de Rubião, no colo da bela Sofia, arrancando-lhe o xale.

Mas é importante ressaltar também que este narrador, que mantém uma conversa ativa com o leitor, procura permitir que o segundo dê ênfase à sua imaginação diante daquilo que está sendo narrado, permitindo o que poderíamos denominar de participação do leitor. Está no capítulo XXX e XXXI do folhetim, quando este vai caracterizar Carlos Maria, em oposição ao Freitas.

Expansivos e francos! Imaginai o avesso disso, e tereis Carlos Maria; mas é o que a preguiça do leitor lhe não consente; ella quer que se lhe ponha aqui no papel a cara do homem, toda a cara, a pessoa inteira, e não ha fugir-lhe.

De mim digo que sou totalmente outro: arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa collaborar no livro, com a minha propria imaginação. A melhor pagina não é só a que se relê, é tambem a que a gente completa de si para si. Tres linhas de Pascal dão cinco a oito minutos de reflexão. Vede aqui, por exemplo, certa ideia que sae do papel para a cabeça, entra na cabeça, e de manso acorda outra ideia, falla-lhe, a coversação das duas desperta outra, as tres mais outras, e ahi ficam dez ou doze, em boa, longa e familiar palestra.

...........................................................................

Eia, faze um exforço, leitor amado.

(ASSIS, b:1977, p.31).

Quer dizer, a maneira como o narrador se comporta durante toda a obra cria um leitor participativo, livre para fazer sua leitura e para julgar as personagens. Sim, pois quem as julga é sempre o leitor e nesse julgamento o leitor interfere naquilo que, aparentemente, está pronto e acabado. Vejamos se posso explicar-me melhor. Como o leitor pode interferir em linhas que já estão escritas desde o século XIX? Como o leitor pode alterar o enredo? Com sua própria leitura, com sua própria imaginação, com sua própria experiência, com sua própria história. Quer dizer, existem diferentes leituras em cada tempo e em cada sociedade sobre um mesmo livro. Quantas leituras já foram feitas sobre Quincas Borba? A que mostro aqui é apenas mais uma delas. Ou seja, existirão tantas leituras quantos leitores existirem. E as interpretações sobre o que está sendo lido sofrerão alterações de um leitor para outro, de um local para outro, de uma sociedade para outra.

Então, vejamos: afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Quem decide é o leitor, se ele o quiser decidir. Suponhamos que o leitor chegue à conclusão de que Bentinho foi traído. Então, o leitor pode dizer que D. Casmurro tem em seu enredo uma mulher adúltera, cuja traição é descoberta pelo marido. Mas se o leitor concluir que Capitu, apesar dos seus “olhos de ressaca”, não cometeu o adultério? Aí teremos o enredo de um marido ciumento ao extremo, que dá margem às suas imaginações mirabolantes. E a pobre mulher, cujo marido não permitiu que se defendesse, morreu como culpada, apesar da sua inocência. Percebeu a diferença? Percebeu como o mesmo livro pode possuir enredos tão diferentes, dependendo da leitura que tenha sido feita?

É claro que Machado de Assis poderia mostrar claramente ao leitor se Capitu traiu ou não o marido. Ele não o fez porque não o quis. Sorte nossa! Pois se o tivesse feito, perderíamos essa obra grandiosa que é Dom Casmurro. Mas, se ainda não está convencido de que há possíveis leituras, que por sua vez podem alterar o enredo de um romance, que tal lermos que em Dom Casmurro todos traíram e todos foram traídos? Sim, isso mesmo. Bentinho foi amante de Sancha e Capitu foi amante de Escobar. Assim o lemos porque o narrador, que é o próprio Bentinho, nos deu a indicação. Está no capítulo X, o trecho que posso, como leitora, admitir ser uma confissão:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte(...).

(ASSIS,1962, p.817).

Se ainda assim não consegui convencê-lo, podemos comparar o estilo de Machado de Assis, no que se refere à participação do leitor no enredo, com o de José de Alencar, por exemplo, que não dá chance ao imaginário do leitor. Alencar tem “o cabo do chicote na mão” e o segura firmemente, conduzindo todo o enredo e definindo-o. Alencar condena e inocenta, pois não permite ao leitor fazê-lo. Lembra-se de Lucíola? Cortesã, não há nenhuma dúvida! Mas ao leitor não cabe condená-la, pois Alencar decidiu que apesar de Lucíola não ter a pureza do corpo, tem a “pureza da alma”.

E objetivando ganhar a confiança e a simpatia do leitor, o narrador de Quincas Borba, tanto do romance como do folhetim, dialogam conosco, leitores, durante toda a narrativa, chamando-nos, convidando-nos à “participação” na obra. Diferente dos narradores de José de Alencar, por exemplo, que mantêm o leitor sempre distante da sua obra, do objeto narrado, como se o considerassem apenas um espectador de toda a história.

Assim, o leitor machadiano é convidado a permanecer no mesmo camarote do narrador, podendo apreciar o “desfile das personagens” e o espetáculo que é o próprio romance, a própria obra.

Os narradores — romance e folhetim — tentam fazer o primeiro contato com o leitor nas primeiras linhas do texto, logo no primeiro capítulo. Destacamos um trecho do primeiro capítulo de cada edição, haja vista serem diferentes. Vejamos primeiro o do folhetim e depois o do romance:

Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memorias; basta saber que é o mesmo, e que vae morrer, como disse o medico. Póde ir, que não precisamos delle(...)

Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem, e não pelo homem, senão pelo cão(...) (grifos nossos).

(ASSIS, a:1977, p.08).

Pois bem, não precisamos dele quem? O narrador e nós, leitores, é que não precisamos do filósofo. Ou uma outra possibilidade de interpretação seria o narrador, Rubião e o cão. Estaríamos nós excluídos? Acredito que não, pois no capítulo seguinte o narrador retoma o diálogo: Mas que Rubião é este? E, antes, de tudo onde estamos nós? Estamos, por ora em Barbacena, Minas Geraes. Logo que aqui chegou (...) (ASSIS, a:1977, p.09).

Vejam que o narrador indaga ao leitor, para depois mais uma vez utilizar a primeira pessoa do plural, juntamente com o presente do indicativo: “onde estamos nós”. Após localizar tempo e espaço, aí sim, o narrador faz referência apenas ao Rubião.

No capítulo I do romance, o narrador também tenta fazer o primeiro contato com o leitor.

RUBIÃO fitava a enseada,—eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa.

(ASSIS, b: 1977, p.107).

Ora, “vos” digo a quem? Digo a você, leitor. Diz o narrador. É o primeiro contato do leitor, não apenas com o romance e com Rubião, mas principalmente com o narrador, que já inicia o diálogo, que não por acaso, será mantido até a última linha da obra.

No capítulo seguinte do romance, o narrador inicia a primeira das suas indagações, como se dirigisse sua pergunta ao leitor, que dá início, então, à sua participação.

QUE ABISMO que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados?.

(ASSIS, b:1977, p.107).

No capítulo III do romance, novo contato do narrador com o leitor e novo chamamento:

Deixemos (grifo nosso) Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba

(ASSIS, b:1977, p.68).

Neste trecho o narrador é bem enfático. Quer dizer, ele diz: Deixemos Rubião. Ou seja: deixemos quem? Quem pratica a ação de deixar o Rubião na sala de Botafogo? Ora, mais uma vez são o narrador e o leitor. A utilização da primeira pessoa do plural é bastante clara. Além disso, ao utilizar o nós (deixemos), nesse apelo ao leitor, o narrador estabelece uma parceria entre os dois: narrador e leitor, que, juntos, retornam no tempo, num flash-back, a fim de conhecerem a história de Rubião e sua herança. Isso, no romance, é bom lembrar, já que como vimos no capítulo “A OFICINA DA CRIAÇÃO”, e como ainda veremos, mais detalhadamente no último capítulo deste trabalho, “A CARNAVALIZAÇÃO”, há uma diferença cronológica na narrativa das duas edições.

Assim, a partir do momento em que o narrador permite a colaboração do leitor no livro, por que o leitor não poderia pensar que Sofia e Carlos Maria têm um relacionamento amoroso, haja vista a cena do cocheiro? É realmente um narrador astuto e perspicaz, que adoça a boca do leitor e depois lhe retira o doce das mãos. É um narrador escorregadio, que se aproxima e se distancia, que oferece um doce com uma das mãos e na outra tem um chicote, que dialoga, mas que também impõe, que “manipula” o leitor, que afirma dar liberdade à imaginação do leitor parceiro, mas que ao mesmo tempo impõe sua autoridade de autor.

Crê, leitor, tal foi a origem secreta e inconsciente da ideia conjugal. As outras explicações são boas, por serem razoaveis e até honestas, mas a verdadeira e única é a que ahi fica. Crê ou fecha o livro (grifos nossos).

(ASSIS, a:1977, p.96).

Mas por que estes narradores, tanto do folhetim como do romance, conseguem manipular o leitor sem que este, a princípio, se dê conta disso? Porque estabelece, com ele, uma cumplicidade. No capítulo primeiro, do folhetim e no capítulo IV, do romance, o narrador convida o leitor a ler Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas longe de ser arrogante, pois o narrador machadiano é sempre muito perspicaz, a leitura não é obrigatória, é apenas sugerida como um favor do leitor ao próprio narrador. É aí que a cumplicidade é estabelecida, por que não? O narrador chama o leitor e o coloca como seu parceiro, que pode, inclusive, lhe fazer um favor. Vejamos os textos do folhetim e do romance, que são um pouco diferentes, mas têm o mesmo objetivo:

Aqui, toda a gente que me fez o favor de ler as Memorias Posthumas de Braz Cubas, lembra-se, — póde ser que se lembre – de que apparece alli, em tres ou quatro capitulos, um tal Quincas Borba, e pergunta e cuida naturalmente que é o mesmo.

(ASSIS, a:1977, p.08).

ESTE QUINCAS BORBA, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena.

(ASSIS, b:1977, p.109).

Mas o narrador vai se aproximando vagarosamente do leitor. Note que a utilização do pretérito perfeito (fez / fizeste) torna a leitura um pré-requisito para melhor entendimento de Quincas Borba, embora o leitor não esteja obrigado a fazê-la. E aí, percebemos que há uma progressão para que a cumplicidade seja totalizada.

Quando Rubião está fitando a enseada, no capítulo primeiro do romance, o narrador utiliza o vós:

RUBIÃO fitava a enseada,—eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo (negritos nossos ) que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente.

(ASSIS, b:1977, p.107).

Adiante, ele utiliza o nós: Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando da bela Sofia. Vem comigo, leitor, vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba (ASSIS, b:1977, p.109).

E quando o narrador convida o leitor a ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, como vimos, ele utiliza o tu: “se acaso me fizeste o favor”. Ao utilizar o tu, o narrador faz o livre contato familiar com o leitor. Ou seja, ele deixa de utilizar a segunda pessoa do plural, que manteria, talvez, uma certa distância. Então, à medida que o leitor vai avançando na leitura do romance, o tratamento do narrador para com o leitor vai sendo modificado, numa, talvez, intenção de proximidade. O narrador — do romance — inicia o capítulo primeiro com vós (vos digo), passa para nós (deixemos) e a seguir já está em tu (fizeste). Inclusive a pessoa que pratica a ação também vai sendo alterada. No primeiro caso, é o narrador quem pratica a ação. No segundo, são o narrador e o leitor e no terceiro, apenas o leitor. Mas o que faz, então, o narrador do folhetim? Será que se utiliza da mesma técnica de envolvimento?

No folhetim, as coisas acontecem por um caminho diferente. No capítulo primeiro, o narrador fala do mesmo favor do leitor em ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas. É o primeiro contato entre narrador e leitor. Entretanto, ele o faz de maneira distanciada, utilizando-se da terceira pessoa do singular: Aqui, toda a gente que me fez o favor de ler as Memorias posthumas de Braz Cubas(...) (ASSIS, a:1977, p.08). Depois, no parágrafo seguinte, o narrador já se utiliza do tu, mas ainda detém o comando, ainda tem um olhar vertical, de cima para baixo, já que o faz no imperativo: Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memorias(...)(ASSIS, a:1977, p.08). No próximo parágrafo, já tem início a parceria, com a utilização do nós : Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem(...) (ASSIS, a:1977, p.08). Quer dizer, no mesmo capítulo, ou melhor, no primeiro capítulo do folhetim, o narrador faz a aproximação e o contrato de parceria com o leitor. Mais adiante, quando fala da feiúra da comadre Angélica, pede desculpas ao leitor: A comadre era muito feia. Peço desculpa de ser tão feia a primeira mulher que aqui apparece(...) (ASSIS, a:1977, p.20). Ao pedir desculpas, humilde e sabiamente, o narrador coloca o leitor numa posição privilegiada e é exatamente aí, quando nós, leitores, nos sentimos importantes, que somos totalmente envolvidos na narrativa. Essa é a minha percepção de leitora, a minha experiência ao ler o folhetim.

Mas talvez não seja preciso tanta artimanha para que sejamos tragados. Ambos os narradores, quando se referem ao mineiro, o fazem da seguinte maneira: nosso Rubião. Quer maior comprometimento, maior parceria que esta?

Os diálogos do narrador do folhetim com o leitor são contínuos, bem como suas opiniões a respeito daquilo que narra. É um narrador que tem a mania de refletir sobre as personagens e seus comportamentos. Ou seja, o narrador do folhetim não é isento, não se distancia do objeto narrado. Ao contrário, apesar de não fazer parte do enredo, opina sobre ele, travando uma conversa com o leitor, numa tentativa de fazê-lo, também, refletir a respeito, de chamar sua atenção, de não deixar que nada passe desapercebido em questões que ele, narrador, acredita serem importantes. E em alguns dos seus comentários o narrador faz um jogo: primeiro opina e depois diz que seu papel é apenas narrar a história. Vejamos um exemplo:

Não, não. A nostalgia do nosso amigo não era poética nem profunda; não trazia nada daquella melancolia, que um classico lusitano chamou dos sabedores, e uma princeza qualificou de sentimento de almas patricias, — des âmes bien nées. A quem é que lhe não nasceu bem a alma. Deus de justiça? Ao nosso Rubião, cujo sentimento era pura e simplesmente a nostalgia do farrapo, da vida escassa, acalcanhada e sem vexames; era, nos proprios termos, a visão da liberdade perdida. Que o luxo possa opprimir, e o superfluo chegue a enfastiar, cousa é de difficil comprehensão; nem eu estou agora para explicar, senão para narrar.

(ASSIS, a:1977, p.103).

Nesta citação, o narrador inicia as explicações para a nostalgia de Rubião, para suas saudades da terra natal. Talvez um leitor desavisado não compreendesse porque o mineiro tem saudades de Barbacena, onde só tinha a pobreza, onde destinou-se ao ensino para comer alguma coisa, e morrer em alguma parte (ASSIS, a: 1977, p.10). Não senhor, talvez não entenda essa nostalgia, quando na capital tinha a possibilidade de fartar-se do banquete da vida. Aí, vem o narrador – do folhetim – para justificar. Rubião sentia saudades da liberdade perdida.

Vimos, no primeiro capítulo deste trabalho, que os sonhos do nosso mineiro eram muito grandes para que sua pequena Barbacena pudesse abraçá-los e que a capital, por sua vez, era grande demais, e os diluía. Mas na sua cidade ele tinha liberdade, pois estava na sua casa. Na capital, era como se estivesse vivendo na casa dos outros, onde seus passos eram limitados e vigiados, fazendo com que não se sentisse à vontade. Na capital, Rubião, em razão da sociedade na qual estava vivendo, era obrigado a ir ao teatro, a reuniões políticas, a encontros sociais, mesmo sem entender ou não estar interessado. Em sua casa não tinha liberdade para almoçar e jantar sozinho. À mesa, estava sempre acompanhado e vimos que, muitas vezes, era obrigado a adiar compromissos ou retornar à casa, apressadamente, para receber estes convidados, que lá compareciam, diariamente, sem serem chamados.

A fim de ser um pouco dono de si, dos seus passos, Rubião teve uma atitude inusitada: decidiu que se não estivesse em casa na hora do jantar, este deveria ser servido a quem lá estivesse. Ou seja, sua casa não era sua e o mineiro não era dono da própria vontade. Assim, sentia que perdera sua liberdade. Por isso, tantas saudades. Mas poderia nosso Rubião viver sem o glamour da Corte? Poderia o nosso mineiro retornar à simplicidade da sua terra natal? Rubião se tornou, pois, um sem-lugar. Foi seduzido pelos encantamentos da cidade grande, colocou nova indumentária, mas não conseguiu travestir-se por dentro, diferentemente de Sofia. Rubião continuou sendo um simplório. Tinha dinheiro, mas não conseguiu ser um aristocrata. Por outro lado, ao viver as experiências no Rio de Janeiro, mudou qualquer coisa dentro de si, adquiriu novos hábitos, conheceu outras gentes, outra cidade e, portanto, já não era mais o mesmo. Por tudo isso, também não encontraria lugar na sua terra natal, à qual retornou apenas para despedir-se da vida.

A vida de Rubião era, pois, um conflito constante: não conseguia se adaptar à vida da capital, embora se sentisse seduzido por ela. Por conta disso, sentia saudades de Barbacena, mas seu desejo não era suficiente para deixar as belezas da Corte e retornar à pequena cidade. Tinha o desejo de grandeza, de se casar com uma mulher da Corte, sentia-se seduzido pelos tecidos, decotes, babados, chapéus, ventarolas, polcas e valsaretes, como explica o narrador do folhetim, no mesmo capítulo em que narra as saudades do mineiro pela sua cidade.

Ora, é certo que o nosso Rubião cobiçava a mulher elegante, e ainda fidalga, se fosse possivel; aceital-a-hia corrompida, e, em falta de outra, até sem graça. A riqueza, caindo tarde nas mãos daquelle galé da fortuna, deu-lhe a embriagues da grandeza e do apparato. Mas tendes visto que já as pobrezas de outro tempo lhe traziam não sei que de saudades exquisitas. E depois tudo o que contribuisse de uma vez por todas para libertal-o daquela mulher do diabo, — dizia ele consigo, arrependendo-se logo, — tudo era um beneficio do céu.

(ASSIS, a:1977, p.103).

Rubião é seduzido pelo poder, pela aparência e pelo título. Seu desejo é casar-se com uma fidalga, preferencialmente. Casa-se, pois, com a nobreza e não com a mulher. E nesse desejo não escolhe, basta que seja nobre. Seu amor, entretanto, é por Sofia. E esses pensamentos são uma maneira de afugentá-la da sua mente.

Podemos pensar que este desejo de Rubião pode ser comparado ao de D.Tonica, ainda que pesem as diferenças dos títulos. Assim como o do mineiro, o desejo da filha do major era de casar-se e para tanto não escolhia o homem. Queria um marido e portanto, não havia nenhum eleito. Em todo o caso, se fosse rico, como Rubião, um tanto melhor. Rubião é rico, vive como um aristocrata e por isso seu desejo é maior: quer uma fidalga. Já D.Tonica é pobre, passa por privações materiais, e portanto, não tem os sonhos de grandeza. Basta-lhe o casamento. Mas por que tanto desejo em se casar, sem que esteja, nesta vontade, incluída uma paixão? Porque marido também é prenda social, conforme diz, no folhetim, Sofia a Maria Benedita .

— Casar? Você já me deu piano e francez; agora quer tambem que me case; é muita cousa em menos de um anno. Marido tambem é prenda de sociedade?

— Seguramente, e até mais facil de estudar; não tem escalas nem grammatica.

(ASSIS, a:1977, p.81).

Mas as igualdades e diferenças entre Rubião e Maria Benedita vão muito mais além, se estivermos fazendo referência ao folhetim. O desejo de Rubião de casar com uma fidalga foi subtraído do romance, que preserva seu desejo de casamento apenas com sua Sofia. Quer dizer, a idéia do casório lhe agrada, desde que seja com a senhora Palha. No folhetim, sua vontade está na mesma dama, mas estende-se às fidalgas.

Na mesma edição, no folhetim, o sonho de D.Tonica não é apenas o de casamento, como já vimos, mas também o de ser amada, como relata o narrador no episódio sobre a fuga de Quincas Borba (o cão) . D. Tonica, que se apegou ao animal, deseja comprar um para si, pelo simples fato de poder ser, então, amada devotamente , ainda que seja por um cachorro. Aí, no caso dela, o desejo de amor é maior do que o de casamento. O que ela deseja é carinho e companheirismo.

Esse detalhe, que existe apenas no folhetim, muda a análise das duas personagens, pois torna Rubião muito mais materialista e a filha do major, muito mais sentimental, mais humanizada do que o mineiro.

Há que se lembrar também que, no folhetim, temos uma Sofia desejosa de amor, apesar do seu casamento com Cristiano Palha. Isso vem mostrar que casamento e amor nem sempre estão no mesmo relacionamento amoroso. Assim, temos as seguintes diferenças, quando analisamos as duas edições: no folhetim temos um Rubião que ama Sofia e que deseja casamento com uma fidalga; uma Sofia que deseja amar e uma Tonica que quer casamento, mas principalmente ser amada. Já no romance, temos quase que a inversão disso tudo: um Rubião que quer apenas a senhora Palha; uma Sofia que parece feliz e completa no seu casamento com Cristiano e uma Tonica, cujo único objetivo é casar-se.

O narrador do folhetim revela um Rubião seduzido pela glória. Primeiro mostra um homem solícito, que pratica boas ações, que se preocupa com outras pessoas e depois, esvazia a personagem. Nesta edição, o mineiro auxilia um velho, indo depor a favor dele na delegacia e o fato é publicado nos jornais. A história, contada pelo narrador é lida pelo mineiro:

...um velho fôra esbofeteado por alguém que desappareceu. Cavalheiro que passava encontrou o velho chorando; ouviu a historia, foi chamar um policia; este veiu, bradou que o velho estava bebado, vibrou-lhe algumas pranchadas, e levou-o preso. O cavalheiro foi com os dous á estação policial. O tenente ouviu a praça e o cavalheiro, que deu todas as explicações e fianças necessarias. O policial berrou e puxou pela espada; reconheceu-se que estava fóra de si, avinhado ou louco; foi recolhido ao xadrez. Depois, o tenente poz o velho em liberdade.

(ASSIS, a:1977, p.115).

Rubião lia a notícia com interesse, conforme conta o narrador:

Rubião pensava na noticia da folha, porque o cavalheiro era elle proprio: elle é que fez tudo para salvar o pobre diabo, que acabava de receber uma bofetada, — ao que parece, sem vislumbre de odio, nem nada, por desfastio ou talvez por graça. Era tudo verdade. Rubião arrepiára caminho para ir á estação depôr contra o policial, e ver se punha o velho em liberdade; tal qual a folha dizia.

O que a folha não dizia é que o velho, a um canto da sala da estação, enxugava os olhos na manga, emquanto se examinavam as cousas. Quando lhe deram liberdade, ainda enxugou os olhos, o rosto serenou-se-lhe, elle acabou dizendo ao tenente e ao Rubião, “que ficava muito obrigado a Suas Senhorias”, e saiu. Rubião saiu tambem; viu o homem atravessar a rua, coser-se ás casas do outro lado, e perder-se, como a costureira e o marido (se o era ) na noite e no silencio.

Rubião seguira outra vez para casa, meio desconsolado, porque o velho lá ia, sem lhe dar um particular agradecimento; parecia-lhe que não avaliára bem o favor, nem mais se lembraria delle, senão para relatar o caso aos amigos: “Um senhor que ia passando...” Um senhor! Um anonymo! Nem lhe perguntou quem era, onde morava, para ir comprimental-o no dia seguinte e, ainda uma vez, agradecer. Não lhe apertou a mão, não a levou ao peito ou qualquer outro modo assim demonstrativo; não fez nada, nada.

— Fico obrigado a Vossas Senhorias.

Olhou ainda para traz; o velho ia passando por um lampião, com o chapéo inclinado sobre os olhos, e hombro direito meio cahido. Talvez fosse pensando justamente na bofetada anonyma.

(ASSIS, a:1977, p.116).

Vemos, pois, que Rubião, ao ler a notícia, sentiu certo desagrado: não foi reconhecido por sua atitude, não recebeu a glorificação pelo seu ato: nem no texto do jornal, nem do velho. Afinal, ele era Rubião de Alvarenga, a lenda, o ricaço de Minas e não apenas um senhor. Um dos grandes problemas de Rubião, na cidade grande, era o anonimato, pois era conhecido apenas de um determinado grupo de pessoas, coisa que provavelmente não aconteceria em Barbacena, haja vista ser uma cidade pequena, onde todos se conheciam. Mas o problema não é somente sentir-se um anônimo. O narrador do folhetim revela uma boa ação do mineiro, mas mostra também sua indignação, ou melhor, um jeito desconsolado, quando o velho não veio lhe agradecer o favor, particularmente. O narrador mostra, inicialmente, um Rubião caridoso e preocupado com o outro e, ao mostrar a indignação do mineiro, esvazia os sentimentos iniciais, já que o ex-professor carece da devoção alheia. Rubião queria que o velho não apenas lhe agradecesse na delegacia, mas o fizesse também particularmente e ainda no dia seguinte, em sua residência.

Vemos, na citação, que Rubião sente-se um anônimo e seu ato de bondade não divulgou seu nome. Isso também aconteceu com quem praticou a bofetada no velho. Ou seja, dois gestos antagônicos, sendo tratados da mesma maneira: o anonimato. O velho agradeceu ao tenente e ao Rubião conjuntamente, igualando as atitudes dos dois, sem se dar conta de que o primeiro o colocou em liberdade em razão do depoimento do mineiro e do pagamento da fiança, segundo os raciocínios do ex-professor. Talvez ele estivesse esperando que seu gesto lhe rendesse as mesmas glórias que o caso do salvamento do menino Deolindo, ocorrido muitos capítulos antes. No folhetim, o episódio de Deolindo ocorre no capítulo LXII, página 59, e o do velho ocorre no capítulo C, página 115. Mas há que se pensar, entretanto, de onde partiu a enunciação. No episódio de Deolindo, tudo foi narrado pelo Camacho, nas páginas de um jornal de sua propriedade, O Atalaia. Há que se levar em consideração que Camacho estava com seu jornal em estado de falência e que precisava, urgentemente, de colaboradores para mantê-lo funcionando. Os recursos de Rubião iriam, desta forma, resolver os problemas do editor. Assim, necessário seria agradá-lo, glorificá-lo, fazer com que se sentisse importante.

Já as informações sobre o velho foram dadas ao jornal, cujo nome o narrador não revelou, talvez pelo próprio tenente aos repórteres que compareceram à delegacia em busca de notícias. Não havia aí o interesse de enaltecer as atitudes de Rubião, haja vista estar exaltando um civil em detrimento da farda. Aí, as atitudes do mineiro podem ser exatamente as mesmas: Deolindo, o menino, foi salvo da morte e ao velho, foi restituída a vida, a liberdade. Os enunciadores é que foram diferentes e talvez até mesmo os enunciatários, haja vista as matérias, as notícias, terem ocupado destaques diferentes, em, talvez, jornais distintos, já que Rubião assinava vários deles.

O narrador do folhetim (e também o do romance) deseja um leitor sempre atento, com olhos de lince, capaz de compreender cada linha escrita, capaz de penetrar intimamente no seu imaginário, em cada personagem. E para tanto, não economiza nos chamamentos, sublinhando cada detalhe, dialogando constante e incansavelmente. Voltemos, pois, ao episódio da carta que Rubião encontrou no jardim e que era endereçada a Carlos Maria. Enquanto o narrador relata os gestos e atitudes do mineiro ao encontrá-la, que titubeia em abri-la ou não, ele trava uma conversa com o leitor.

Illusões, illusões. Bem podia ser que, aberta a carta, lido o texto, longe de fugir ao “abysmo de opprobios”, Rubião corresse a lançar-se de uma vez, ou a quebrar a cabeça de encontro ás bordas. Isto é que é meu, — e nosso, se o leitor vae acompanhando attento os movimentos intimos daquelle homem. Hade concordar que este resultado era bem possivel, e talvez o único possivel. O texto poderia ser um desafio a todas as suas forças; elle as enfeixaria contra essa mulher enigmática.

(ASSIS, a:1977, p.120).

O narrador mostra que Rubião sofre não apenas com a possibilidade de Sofia e Carlos Maria serem amantes, mas, principalmente, com a possibilidade de comprovar o fato. Como analisa o narrador, Rubião teria duas opções, muito mais fáceis, em sua decisão. 1— ignorar a carta e mantê-la fechada; 2— abrir a carta e conhecer seu conteúdo. Entretanto, opta por uma terceira: a indecisão. Não abre a carta e fica remoendo idéias sobre o seu possível conteúdo. A indecisão do mineiro é, ao que parece, mais fatídica do que conhecer o escrito. Para Rubião o envolvimento de Carlos Maria e Sofia é o “abismo de opróbrios” e pensar nisso também o é, da mesma forma. Assim, ao abrir a carta, ele entraria de vez nesse abismo, caso comprovasse o envolvimento dos dois, ou sairia dele, caso fosse comprovado o engano. Então, ao optar pela indecisão, fica, pois, no abismo, sem saída, sem salvamento possível

E enquanto o narrador descreve toda essa odisséia, vai conversando com o leitor e convocando sua atenção ao texto, bem como à angústia de Rubião. Mais do que isso, se o leitor for atento, conforme solicita o narrador, irá, pois, concordar com sua análise (do narrador). Como já verificamos, é um narrador que tece considerações, opiniões, sobre a história que ele mesmo conta.

Sabemos que o narrador do folhetim é muito mais explicativo e, por vezes, prolixo. Mas, em muitos momentos, com poucas palavras ele acrescenta, ao texto, muitas considerações. É como ele mesmo diz: Tres linhas de Pascal dão cinco a oito minutos de reflexão (ASSIS, a:1977, p.31). Um exemplo disso está no episódio em que D.Fernanda e Sofia saem da casa de Rubião, na rua do Príncipe, quando este narrador faz suas observações. Vejamos primeiro o texto que consta do romance e depois, o do folhetim:

SAÍRAM. Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se vinha alguém; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga, Sofia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de D. Fernanda. Falou-lhe de Rubião e da grande desgraça da loucura; assim também do palacete de Botafogo. Por que não ia com ela ver as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam imediatamente.

(ASSIS, b:1977, p.339).

Vemos, na citação, que a preocupação de Sofia, ao sair da casa da rua do Príncipe, era a de ser vista por alguém. A casa de Rubião “era o abandono do desmazelo” e a senhora Palha, uma grande dama da aristocracia, perto de inaugurar seu palacete, não queria ser vista saindo de uma casa tão humilde, ou como ela mesma classifica: uma pocilga. Quer dizer, sua preocupação está ligada à vergonha e à rejeição à pobreza, diferentemente do que revela o narrador do folhetim, como veremos a seguir:

Sahiram. Sophia, antes de por o pé na rua, olhou para um e outro lado, verificando se vinha alguem, ou com receio de ser vista sahir da habitação de um homem, ou com vexame de sahir de uma casa tão pequena. São mysterios intimos. Vexame e receio parecem-se muito. Vestido bonito tambem tem o seu pudor. Felizmente, a rua estava deserta. Ao ver se livre da possilga, Sophia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de D. Fernanda. Fallou-lhe de Rubião e da grande desgraça da loucura; fallou tambem do palacete de Botafogo. Porque não ia com ella ver as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam immediatamente. O coupé já devia estar á porta.

(ASSIS, a:1977, p.242).

Neste trecho, o narrador acrescenta alguns dados: Sofia sente receio de ser vista por alguém. Mas este sentimento pode estar relacionado à moral, pois não deseja ser vista saindo da casa de um homem. O vexame está em sair de uma casa tão pequena. Depois, na linha seguinte, o narrador substitui a conjunção alternativa “ou” pela aditiva “e”, fundindo o vexame e o receio de Sofia em ser vista saindo da casa de um homem pobre. E aí este narrador faz mais uma observação, ao falar do pudor de Sofia, relacionando-o ao seu vestido. Quer dizer, o pudor de Sofia está vinculado à sua posição social e não ao seu caráter. Talvez por isso, este trecho tenha sido suprimido da edição seguinte, uma vez que o narrador do romance quer enfatizar o caráter de Sofia vinculando-o à sua personalidade. Isso é diferente de vincular tal caráter à posição social. Se assim fosse, D. Fernanda, que também pertence à aristocracia, casada com deputado e futuro presidente de Província, também teria o mesmo vexame e receio: o mesmo pudor. Vale dizer que, com poucas palavras, o narrador do folhetim imprime uma caracterização diferente às personagens, principalmente à Sofia, no mesmo episódio.

Em observações como essa, como vimos, o narrador do folhetim imprime análises diferenciadas para o mesmo caso. Assim também ele o faz quando fala sobre as condições que levaram Carlos Maria a casar com Maria Benedita.

Sabemos que Carlos Maria carece da admiração alheia, que deseja ser amado, adorado e idolatrado como a um deus. Sabemos também que Maria Benedita o ama incondicionalmente. Mas no capítulo CXVII, o narrador do folhetim faz alguns comentários, que o narrador do romance não revelou.

A historia do casamento de Maria Benedicta é curta; e, posto Sophia a ache vulgar, vale a pena dizel-a. Bom é advertir que, se não fosse a epidemia das Alagoas,Maria Benedicta não chegaria a casar jamais, pois a nenhum outro homem amaria; assim o pensava, ao menos. Não vamos, porém, tão longe; admittamos só que não casaria com elle, se não fosse a epidemia das Alagoas. Consequencia: as catastrophes são uteis, e até necessarias. Os exemplos historicos são taes e tantos, que encheriam o resto do livro, sem proveito para o leitor, que os sabe de cor.

(ASSIS, a:1977, p. 150).

Temos, nestas poucas linhas, vários pontos que podem ser analisados. O narrador desprestigia Maria Benedita, ao resumir a história do seu casamento à epidemia de Alagoas. Não pôs na narrativa nenhum romantismo, nada que possa fazer suspirar uma leitora com histórias de amor. Prestigia, de certa forma, a senhora Palha, revelando sua opinião junto ao leitor. Mas ainda que Sofia a ache vulgar, o narrador resolve revelá-la, numa idéia de parceria. Ou seja, nos coloca em primeiro plano, elevando-nos ao topo da pirâmide, creditando-nos grande importância, ainda que pesem as opiniões da senhora Palha sobre o assunto.

Há ainda o dialogismo, existindo, pois, no mínimo, quatro opiniões distintas: a de Maria Benedita, que acreditava que não casaria jamais, se não fosse a epidemia de Alagoas; a do narrador, que vê possibilidade de haver casamento, ainda que não fosse com Carlos Maria; a de Sofia, que acha tudo isso vulgar e a do leitor, que a partir das revelações e da leitura das diversas opiniões, chega a sua própria conclusão. Isso, sem contar com as opiniões de D. Fernanda e de Carlos Maria que não estão reveladas nestas linhas.

Quando o narrador diz que as catástrofes são úteis, ou mesmo necessárias, podemos lembrar da teoria que envolve a filosofia do humanitismo, em que a paz é a destruição e a guerra a conservação. De acordo com o narrador, a história mundial se faz a partir das catástrofes, que oferecem oportunidade de destaque de líderes e personalidades. Assim, não só Maria Benedita se beneficiou da epidemia de Alagoas, conseguindo o casamento com seu amado, mas também D. Fernanda e a própria Sofia. Em razão da desgraça alheia, as senhoras conseguiram destaque social. A primeira, pôde favorecer o marido, deputado e futuro presidente de Província. A segunda, conseguiu uma aproximação junto a D. Fernanda e passou a fazer parte do seu círculo de amizades.

Mas é preciso ressaltar, também, que no caso da epidemia de Alagoas, como em muitas outras situações, é o mais forte conseguindo benefícios através dos mais fracos. É o mais rico conseguindo benesses por conta da miséria alheia. É o homem lobo do homem, tal qual explica Quincas Borba em sua filosofia.

Vimos que as atitudes de Sofia e de D. Fernanda com relação à epidemia de Alagoas eram puramente sociais. Ou seja, Sofia desejava conseguir projeção junto à aristocracia e estar junto a D. Fernanda, era uma maneira de alcançar mais facilmente seu objetivo. A mulher do deputado, como vimos, queria ser bem vista pela mesma classe. Liderar determinados movimentos, já que pedia como quem manda, era, pois, uma maneira de conseguir projeção política para o marido. O narrador do romance somente destaca o lado positivo do casal (D. Fernanda e Teófilo). Já o do folhetim revela muito mais o interior das duas personagens e suas intenções. No folhetim, o narrador diz. Já no romance, cabe ao leitor perceber.

Quando Teófilo é nomeado presidente de uma Província, o narrador do folhetim mostra que tal cargo não resultará em nenhum benefício à população, ou mesmo a quem o elegeu. Está no capítulo CLXXXI:

A separação custou naturalmente a D. Fernanda. Aos filhos custou menos ou nada; ella disse-lhes que papae tinha ido buscar um brinquedo, a França, que voltaria dalli a poucas semanas, e elles esperavam tranquillamente.

— Brinquedo grande?       

— Um grande e outro pequeno.

Elles bateram palmas: ella sorria de prazer. Em substancia, não promettia aos filhos mais do que o marido aos eleitores, com a differença de que o marido, provavelmente, traria os dous brinquedos e novos impostos.

(ASSIS, a:1977, p.226).

Teófilo, em seus empreendimentos políticos, nada fará para favorecer àqueles que não fazem parte da família. Aos filhos dará novos brinquedos; à mulher, nova projeção junto à aristocracia e aos outros, novos impostos. Os filhos, que, por serem crianças, vivem num outro mundo diferente daquele dos adultos, numa outra realidade, não percebem a questão. No seu mundo de contos-de-fadas e de faz-de-conta, quase não sentem a ausência do pai, ou nem mesmo sentem, conforme diz o narrador. Acreditam naquilo que lhes fala a mãe e aguardam os brinquedos novos. Vivem, pois, no mundo carnavalizado, onde as mazelas não existem, onde impera a imaginação, onde é possível transformar uma viagem na magia dos presentes. Não estaria aí, neste episódio, o autor, na voz do narrador, criticando a nós, adultos? Elegemos nossos governantes acreditando que eles serão capazes de trocar mazelas por presentes. Não seríamos aí, tão infantis quanto os filhos de D. Fernanda? Apenas o foco dos desejos é diferente, as necessidades são outras. Mas nenhuma delas diferente do desejo de felicidade e de que o mundo carnavalizado se torne uma realidade constante. E aqueles, detentores do poder, ao invés do presente prometido, trazem impostos. Bela metáfora!

Mas o poder inebria, embriaga e torna-se objeto de desejo daqueles que não o têm. Teófilo não foi nomeado ministro, mas o novo cargo, presidente de província, deu a ele nova ascensão, elevou-o mais uma vez na pirâmide social, como revela o narrador do folhetim: Não era ministro, mas era alguma cousa grande, que chamava a atenção dos outros, que o fazia por algum tempo centro da consideração, do applauso, e não sei se diga da inveja(ASSIS, a:1977, p.225). É isso que almejava nosso Rubião. Isso e muito mais. Desejava o poder que nem sempre o dinheiro podia comprar.

O narrador do folhetim, bem como o do romance, mostram que para subir os degraus da pirâmide, é preciso ser esperto, é preciso saber enxergar como conseguir projeção social, é preciso saber tirar proveito de determinadas situações, principalmente das mazelas alheias, como fizeram D. Fernanda, Palha e Sofia. É preciso ter perspicácia. Tudo o que faltou ao nosso mineiro. É o que o narrador do folhetim revela, na voz de Cristiano Palha, quando diz que confiança e simpatia nem sempre andam juntas, conforme veremos a seguir:

— Não exponha o seu caso a pessoas extranhas; fel-o a mim, não o faça a outros; póde dar com algum espertalhão, que o prejudique em alguma cousa...Lisongea-me ter-lhe inspirado a mesma sympathia; a confiança é reciproca; mas confiança e sympathia nem sempre andam juntas.

(ASSIS, a:1977, p.26).

Este episódio ocorre ainda no início da narrativa, quando Palha e Rubião se conhecem no vagão de trem e o mineiro comenta, ao ainda zangão de praça, que estava rico em razão da herança recebida. Quer dizer, lá o narrador já revela que, por conta da ingenuidade, Rubião poderá pagar um preço bastante alto, ao mesmo tempo que revela o risco do ser humano ao confiar em outro ser humano. Faltava a Rubião a persuasão, como disse o próprio narrador. Palha, ao contrário, era o melhor, pois sabia como ninguém gerir e fazer dinheiro. Está no folhetim, capítulo CXXII.

— Perdão, não diga nada; dispenso tudo. Da sua parte é natural; o senhor não é sócio do marido?

— Sou.

—Bem, confessa...

—Naturalmente.

—Naturalmente? Faz muito bem; afinal é o melhor, entre amigos.

(ASSIS, a:1977, p.137).

O diálogo acima refere-se ao encontro de Rubião com o major Siqueira, quando este comenta, pesaroso, com o mineiro, que Sofia havia se afastado dos antigos amigos, pobres, para ficar na alta roda da sociedade.

No folhetim, temos um narrador explicativo, opinante e também interrogativo. O narrador do folhetim se utiliza do recurso da interrogação, a fim de que o leitor encontre as respostas para as perguntas lançadas. As respostas, entretanto, estão no próprio texto. Um exemplo disso são as interrogações que o narrador faz quando descreve um dos momentos de delírio de Rubião:

— Que bom e grande amigo! Que homem superior! Disse Rubião em voz baixa, andando.

—Que homem superior! repetiu uma voz.

Olhou, não viu ninguem. Has de ter ouvido vozes dessas, leitor discreto, sem que te assustes mais que com um phenomeno commum; mas tu não és Rubião nem Pascal. Este via ao pé de si um abysmo. A voz sem boca, ouvida por aquelle, articulára as palavras de um modo claro e sonoro. Já um dia (está no capitulo LXXXII deste livro) ouviu Rubião uma pergunta no ar, e attribuira-a á alma do Quincas Borba, que estaria mettida no cão herdado. Agora não havia cão; traria elle a alma do outro em si mesmo? Seria elle dous? Eis ahi um mysterio psychologico, physiologico se não puramente pathologico.

(ASSIS, a:1977, p.127).

Ao incluir o pathos, o sofrimento, o narrador do folhetim retira do nosso mineiro as questões fisiológicas e psicológicas. Com isso, ele descarta não só a idéia da transmigração da alma do finado Quincas Borba para Rubião, idéia esta sugerida durante toda a narrativa, como exclui também a possibilidade de o mineiro estar doente da cabeça. A loucura do nosso Rubião é puramente patológica, puro sofrimento, por haver tido uma vida sempre carente de preenchimento, de realizações. Em Barbacena, não era feliz: não encontrava satisfação no seu trabalho, que era apenas a profissão encontrada para sobreviver. Sua ganância era o dinheiro e, para tanto, havia tentado o empreendimento em algumas empresas. Na Capital, Rubião pensou que realizaria todos os seus sonhos e que preencheria todos os seus vazios. Enganou-se, mais uma vez. Na Corte, não conseguiu encontrar a unidade procurada; o amor desejado; o poder almejado; os amigos sinceros. Na aristocracia, esvaziou-se, perdeu-se e encontrou o sofrimento e a morte. Seus momentos de imperador eram a fuga da realidade sofrida. Mas, ao que parece, nosso mineiro tinha consciência dos seus delírios e isso lhe causava um sofrimento ainda maior, conforme consta da citação a seguir:

Quando Rubião voltava do delírio, toda aquela fantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes, uma tristeza calada. A consciência, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegá-los de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abismo, trepando pelas paredes, arrancando a pele, deixando as unhas, para chegar acima, para não tombar outra vez e perder-se.

(ASSIS, b:1977, p.326).

Rubião lutava constantemente para não perder-se novamente, quando retornava do seu império. Mas sua luta era em vão. Em delírio, comandava exércitos imaginários. Mas, quando consciente, não conseguia controlar sua própria vida. Então, perdeu-se mais uma vez, e mais outra, até perder-se em definitivo, até negar-se por inteiro e autocoroar-se. Coroou-se de nada, em seus últimos momentos de agonia, pois esvaziou-se totalmente.

Esvaziou-se completamente em sonhos de poder, da mesma maneira que os aristocratas eram vazios, de acordo com o olhar do narrador, tal qual Sofia, que também tinha os seus sonhos de nobreza.

Sophia acompanhou o marido até á porta, fez-lhe umas encommendas, e tornou aos jornaes. Ia justamente em meio de um folhetim, traduzido do francez, cuja acção era passada grande parte em um castello. Não gostava de outros romances; trazia a cabeça cheia de marquezas, condessas e duquezas.

— Duqueza! Rutilou-lhe agora uma grande mosca de ouro pelo cerebro, ou zumbiu-lhe ao ouvido; não se sabe bem. Mas não se demorou muito, calou-se ou desappareceu. Alas, poor Yorick! Pobre Rubião! Um doudo, um simples doudo!

(ASSIS, a:1977, p.197).

Vemos que Sofia também era vazia e tal qual Rubião também sonhava com seus castelos, haja vista suas leituras preferidas, conforme revela o narrador do folhetim. Sabemos que a leitura de um romance pode ser uma grande viagem, dependendo do leitor, sujeita a prazer e dor. Quando lemos um texto literário nos travestimos e deixamos de ser nós durante aquele período da leitura. Transportamo-nos para outras cidades, para outros tempos e compartilhamos de outras vidas, que não a nossa. E aí, mais uma vez, lembramos Mikhail Bakhtin e a teoria da carnavalização na qual o que acabamos de dizer constitui-se em um dos aspectos: a vitória da vida sobre a morte, a vitória sobre as leis que vigoram no cotidiano, a conquista da liberdade, como se estivéssemos restaurando uma forma perdida de harmonia com nós mesmos e a colocação de uma máscara no rosto, para que deixemos de ser nós mesmos e nos transformemos nos heróis e heroínas que povoam as nossas mentes e corações.

Sofia trazia a mente cheia de marquesas, duquesas, condessas e por isso somente gostava de ler as histórias cujo enredo se passava nos castelos. Logo, não é à toa que estava construindo seu palacete de Botafogo. Lá, de certa maneira, realizaria seus sonhos. Em seu imaginário, no seu castelo, seria marquesa, duquesa, condessa, ou mesmo imperatriz. Vimos também, no primeiro capítulo deste trabalho, que ela e Palha aspiravam a um título de nobreza e contavam com a influência política de Teófilo para consegui-lo. Quer dizer, a partir do momento em que ela e Rubião passaram a fazer parte da aristocracia, tornaram-se vazios, como denuncia o narrador. Rubião não tinha o que fazer: preenchia seu tempo em reuniões de salão, polcas, valsaretes e visitas a amigos, sem nenhum objetivo. Talvez, por isso mesmo, gostava da casa cheia e de companhia nos almoços e jantares, já que não tinha o que fazer, apesar de sentir que isso tudo lhe tirava a liberdade. É, pois, mais um conflito vivido pelo mineiro. Sofia, do mesmo modo, preocupava-se com vestidos e babados. Sua participação no caso da epidemia de Alagoas, como vimos, foi apenas com o intuito de conseguir prestígio social. No mais, preocupava-se com etiqueta e moda. Vazios eram Sofia, Palha e Rubião, pois vazia era a aristocracia, na visão do autor, na voz do narrador. Mas as semelhanças entre os sonhos de Sofia e de Rubião, se compararmos a edição do folhetim com a do romance, param por aí. É que no folhetim, como vimos no capítulo anterior, a senhora Palha é desejosa de amor. Ou seja, no folhetim, a bela dama não conseguiu a realização pessoal. Sua vida era de aparência, belos vestidos e jóias, mas interiormente carecia de amar. Como vimos, o narrador do romance não revela tal desejo da senhora, nem seu desejo de nobreza. Ao contrário, no romance, Sofia conseguiu a realização plena; conseguiu dinheiro e ascensão social. Ou seja, no romance, temos uma Sofia vazia e realizada. No folhetim, diferentemente, ainda resta qualquer coisa de sentimento na dama casquilha.

Vemos que, ambos os narradores, o do folhetim e o do romance, são muito astutos e perspicazes e que o narrador do folhetim é muito mais explicativo, como já dissemos, ou melhor, muito mais detalhista. Percebemos também que eles, por muitas vezes, priorizam situações distintas, têm focos diferenciados, permitindo, desta feita, outras análises sobre o que seria o mesmo objeto. O narrador do folhetim enfoca muito mais, em suas personagens, as emoções, diferentemente do narrador do romance. No folhetim, o narrador revela personagens com sentimentos à flor da pele, lutando, valentemente, para não expô-los à sociedade. Já o narrador do romance mostra personagens que controlam seus sentimentos diante da sociedade. É como se as mazelas pessoais de cada um estivessem mais escondidas. Mas é interessante notar que, embora os focos sejam distintos, embora cada narrador tenha escolhido um caminho diferente para contar sua história, o destino das personagens não sofreu alteração. O caminho por elas percorrido é que foi muito mais sofrido, no folhetim.

No folhetim, temos a imensa dor de um Rubião que, com os olhos desvairados abre seu coração para a mulher amada e com as lágrimas escorrendo pela face, despeja sua alma sedenta de amor. Um Rubião que rasteja, humilha-se e põe-se de joelhos diante da sua imperatriz. Acredito que nosso autor tenha suprimido estes detalhes, na edição seguinte, em razão de não ser um comportamento digno de um imperador. Ou seja, no folhetim temos um imperador que se humilha e ajoelha-se diante de alguém. Um imperador súdito e vencido. Mas, apesar da imensidão do seu sofrimento, no folhetim, não teve diminuídos seus sonhos, no romance. Ambos os narradores, mostraram um Rubião desejoso de fartar-se do banquete da vida. Ambos os narradores revelaram um Rubião que saiu da pequena Barbacena, em direção à capital do Rio de Janeiro, para viver o luxo, a ostentação, a fartura e o poder. Mas, tanto no folhetim como no romance, ao invés do prazer, encontrou a desesperança, a dor, a solidão e a morte. Ao tentar buscar o que não tinha, perdeu o que tinha. Perdeu-se. Na aristocracia esvaziou-se e sem nada para preencher o espírito, entrou em delírio. Em seu delírio, tornou-se imperador e autocoroou-se. Não morreu súdito, nem vencido. Viu, ainda, sua coroa rútila de brilhantes e pedras preciosas e ergueu-a. Subiu ao trono e abdicou da vida.

CAPÍTULO III— A ENUNCIAÇÃO DOS OPOSTOS

Durante a leitura, tanto do romance como do folhetim, o que pudemos verificar, é o que resolvemos denominar, genericamente, de enunciação dos opostos. O narrador combina situações simultaneamente opostas, ou seja, contraditórias e as coloca num plano de equivalência, a fim de compor toda a seqüência da trama. Dessa maneira, vemos diante de nós, leitores, o explorador e o explorado, o vencedor e o vencido, o rico e o pobre, a loucura e a razão, a beleza e a feiúra, a vida e a morte, entre tantas outras significações. Assim, o narrador traça duas linhas: uma vertical e outra horizontal, totalmente equivalentes. Mais do que isso, simultâneas. Ou seja, linhas melódicas distintas e superpostas em diálogos de identidades e de diferenças, a idéia de polifonia. Na verdade, a idéia de oposição nada mais é do que uma das características da carnavalização, como veremos no próximo capítulo: o oxímoro carnavalesco, que evidencia a alternância, a justaposição, os contrastes. Eis, pois, alguns exemplos, que servem para ilustrar o que acabamos de dizer:

Quando o narrador apresenta a comadre Angélica, no folhetim, ele coloca em contraste a beleza e a feiúra, com o seguinte texto: A comadre era muito feia. Peço desculpa de ser tão feia a primeira mulher que aqui apparece; mas as bonitas hão de vir(...) (ASSIS, a:1977, p.20). Ou seja, nestas poucas linhas, que podem conduzir ao nosso riso, o narrador já adianta que belas moças farão parte da sua narrativa, numa maneira, talvez, de aguçar a curiosidade do leitor e que a comandre Angélica, em sua opinião, é muito feia. Na página seguinte, ainda sobre a comadre Angélica, temos o seguinte: Ella continuou a dizer as melancolias do bicho; falava com taes ternuras que (Deus me perdoe!) que até parecia bonita (ASSIS, a:1977, p.21). A pergunta que faço é: será que, ao olhar do narrador, todas as mulheres ternas são bonitas? Ou, de acordo com ele, a ternura é um dos ingredientes da beleza? Segundo o narrador do folhetim, a comadre Angélica é feia, mas num gesto de ternura até lhe parece bonita. Mas o que é ternura, para este narrador? E o que dizer então de Sofia, que nada tem de terna, segundo ele, mas que em sua opinião, é belíssima?

No primeiro contato de Rubião com o casal Palha, na Estação de Vassouras, o leitor pode notar que Cristiano é um homem observador e nem tão pouco ingênuo, ao contrário do nosso mineiro. Talvez ingênuo não seja o adjetivo correto, pois, como sabemos, Rubião tornou-se “enfermeiro” do filósofo por interesse em ficar com uma parte do legado. Principalmente no folhetim, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, esta questão é colocada muito mais claramente. Neste, não há como ter dúvidas de que Rubião era um interesseiro. O que podemos dizer é que Rubião pensou que era muito esperto. Afinal de contas, havia se tornado herdeiro universal do filósofo. Porém, não era tão astuto quanto Christiano Palha.

Mas voltemos à estação de Vassouras. Quando Christiano é posto em cena, características da personagem já são apresentadas pelo narrador. Características estas que são colocadas em contraste com aquelas apresentadas quando Rubião aparece.

Pouca gente no carro; e toda ella carrancuda ou aborrecida. Rubião era o único rosto alegre e plácido. Tal foi o primeiro encontro. No fim de poucos minutos, Rubião e Christiano conversavam de várias cousas, lavoura, gado, estrada de ferro, que o Palha execrava, um pouco de política. Christiano foi o primeiro que rompeu o silencio; Rubião, que não deseja outra cousa, acompanhou-o francamente, largamente, opinando isto, aquillo. Sophia, á esquerda do marido (Rubião ficava á direita) inclinava-se ás vezes para ouvir alguma cousa.

— Vem ficar na Corte ou volta para Barbacena? Perguntou o Palha no fim de três quartos de hora de conversação.

_ Creio que fico, acudiu Rubião; estou cançado da província; quero agora gozar a vida. Póde ser até que vá á Europa, não sei ainda. Os olhos de Christiano brilharam instantaneamente. (grifos nossos).

(ASSIS, a:1977,p.25).

E disse-lhe que não, que se deixasse disso, mas não alcançou nada; creio que lhe faltava o talento da persuasão. Creio também que as palavras já lhe sahiam da alma desejosas de ser inúteis.

(ASSIS, a:1977, p. 09).

Palha conversa com Rubião no vagão de trem e o mineiro adianta que talvez vá à Europa, demonstrando com esta pequena atitude, que possui recursos financeiros. Cristiano, que parece perceber a ingenuidade do mineiro, visualiza a possibilidade de tirar proveito da situação e justamente por isso aproxima-se dele, convida-o para jantar em sua residência e o auxilia, arranjando-lhe um advogado, a fim de finalizar as questões testamentárias.

Vejam, que nas citações acima, temos um Palha que percebe, com olhos de lince, uma maneira de ganhar dinheiro e um Rubião, que havia tentado o empreendimento em algumas empresas, sem sucesso.

Quando Rubião fita a enseada, em Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, ele compara sua situação financeira em Barbacena, de ex-professor, com aquela que possui após ter recebido o legado: proprietário, no folhetim e capitalista, no romance, cuja diferença analisaremos no capítulo sobre carnavalização. Aí, temos duas situações em contraste: a questão pecuniária do mineiro e a cidade do interior comparada com a capital. Assim são os textos no folhetim: Mas que Rubião é este? E, antes, de tudo onde estamos nós? Estamos, por ora, em Barbacena, Minas Geraes(...)” (ASSIS, a:1977, p.09). No capítulo XX, ainda no folhetim, temos o seguinte trecho: Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro(...) (ASSIS, a:1977, p.22). Já no romance, Rubião contempla a enseada na primeira página.

Ainda com relação às finanças de Rubião, algumas comparações podem ser feitas. O mineiro, enquanto herdeiro de Quincas Borba, possui uma quantia de dinheiro bastante considerável. O narrador, por sua vez, não chega a esclarecer realmente qual é o valor, mas nosso mineiro acredita ser uma fortuna incalculável. Talvez este tenha sido um dos seus grandes erros. Por acreditar que era infinita, esbanjou-a sem qualquer limite, até esgotá-la por completo. Assim, acabou encontrando a pobreza. Mas o que importa, neste momento, é fazer a comparação da situação financeira de Rubião com a de outras personagens. Comparemos, então, com a do Freitas. Este trecho só pode ser encontrado no folhetim.

Rubião visita o amigo, que está doente. A cena descrita pelo narrador do folhetim mostra a situação precária em que vivia o amigo do mineiro naquele momento, em oposição à situação financeira do ex-professor. Rubião doa, inclusive, uma boa quantia de réis para a mãe do doente, a fim de auxiliá-la nas despesas. Mas é preciso lembrar também que Rubião foi à casa do Freitas apenas para preencher o tempo. Ou seja, nada tinha naquele momento para fazer. Isso mostra, uma das visões do autor, na voz do narrador, sobre a sociedade aristocrática do seu tempo, na qual estava inserido, onde o outro não é seu problema e as relações de amizades verdadeiras não existem. Há também o esvaziamento desta aristocracia, quando o narrador revela um Rubião que não tinha com o que se ocupar.

Tanto assim, que Rubião visita Freitas porque sobra-lhe tempo. Rubião, quando empobreceu e foi internado em estado de delírio, também foi esquecido, inclusive por Palha e Sofia, que tanto usufruiram dele e do seu dinheiro. Mas voltemos à comparação da situação financeira do Freitas e do Rubião:

Felizmente (ha também um deus para os enojados) felizmente lembrou-lhe que o Freitas estava á morte, na Praia Formosa, onde residia. Rubião chamou um tilbury e foi visital-o.

Achou-o estirado em uma cadeira baixa, magro, pallido, com a barba crescida, os olhos meio mortos(...)

A mãe, — uma triste velha magra e pequenina, que estava ao pé delle, — levantou os olhos medrosos para o Rubião, como a pedir-lhe desculpa do delírio do filho. Depois, pé ante pé, foi buscar uma cadeira e offereceu-a á visita. Rubião sentou-se, relanceando a vista pela sala; era pobre, os trastes desiguaes, muito usados e poucos. O chão estava gretado; o caio das paredes encardido(...).

Rubião não tinha repugnância á pobresa; achou-lhe até um sabor mysterioso, entre doce e amargo, — como a saudade do poeta;— lembrava-lhe tempos idos, e pode ser que bons tempos.

A senhora hade ter tido grandes dificuldades de dinheiro, disse o Rubião; e, vendo-a morder o beiço e baixar os olhos: Não se envergonhe; necessidade afflige, mas não envergonha. Eu o que queria era que a senhora aceitasse alguma cousa, que lhe vou deixar para acudir a despeza; pagará um dia, se puder...

Tinha aberto a carteira, tirou seis notas de vinte mil reis, fez um bolo de todas ellas, e deixou-lho na mão. Abriu a porta e saiu.

(ASSIS, a:1977, p.99-101).

No texto acima, como acabamos de verificar, Rubião, que herdou uma fortuna, doa certa quantia à mãe do doente. O valor, entretanto, é semelhante à recompensa dada a quem encontrasse Quincas Borba, o cão, que havia fugido de casa, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho. A quem encontrasse o cão, o mineiro recompensaria com cem mil réis. Está aí atribuído, pelo narrador, os valores do animal e do ser humano. Se compararmos a quantia, Rubião doou à mãe do Freitas pouco mais do que pretendia pagar pelo cão. É preciso que analisemos, entretanto, a relação financeira entre Rubião e a família do Freitas. Para o doente, cento e vinte mil réis era muito e para o mineiro, que acreditava que sua fortuna era infinita, cento e vinte mil réis não significava nada. Rubião comprou para D. Tonica um par de brincos que lhe custou cento e trinta mil réis. Isto quer dizer que o mineiro considerava, que para a pobreza do Freitas, vinte mil réis era o suficiente. Para um anônimo que encontrasse seu Quincas Borba, cem mil réis era uma excelente recompensa. E quando se trata de fazer uma certa presença, é necessário gastar um pouco mais de dinheiro, como foi o caso do par de brincos que comprou para D. Tonica. Ou seja, estão na mesma linha de equivalência o Freitas, o cão e D. Tonica.

O que ocorre é que, principalmente no folhetim, a pobreza do doente pode ser contrastada com a riqueza de Rubião, que não tem “repugnância à pobreza”, diferentemente de Sofia, como veremos daqui a pouco. Aliás, a pobreza produz em Rubião um sentimento de contraste: “doce e amargo”. Este, tempos de (...) raízes pobres e secas, que apenas enganavam o estômago, triste comida de longos anos” (ASSIS, b:1977, p.126). Aquele, pela lembrança de Barbacena, que sempre causa certa nostalgia ao nosso professor, principalmente nas páginas do folhetim. A saudade de Barbacena e a sedução pelo Rio de Janeiro eram constantes em nosso Rubião. Mais uma vez, sentimentos em posição de contraste, como veremos daqui a pouco.

Na citação acima, vemos a oposição entre a pobreza do Freitas, que possui apenas trastes em sua casa, o chão gretado e o caio encardido, com a riqueza de Rubião, que reside numa mansão de Botafogo, ostenta bronzes, prata e tem, inclusive, uma porção de moedas de ouro, guardadas apenas para contemplação.

A aparência física de Freitas e de sua mãe também estão em contraste com a de Rubião. O amigo está magro, abatido e com a barba por fazer e sua mãe é “uma triste velha magra e miúda”. Já Rubião, como vimos na cena em que ele observa a enseada, tem a barba feita e macia, está vestido no seu roupão de chambre e contempla a bandeja de prata, trazida pelo criado.

Quanto às saudades de Barbacena, sobre a qual falamos há pouco, devemos dizer que ela existia em razão de Rubião não haver se identificado com a grande cidade. Na pequena Barbacena, ele conhecia a todos e era conhecido. No Rio de Janeiro, era apenas mais um no meio da multidão. E, por mais que tentasse preencher seu tempo indo aqui e ali, teatros e reuniões, havia um vazio interior que não seria preenchido com uma polca ou um valsarete. Por mais que o mineiro tivesse convidados para o almoço e jantar, por mais que freqüentasse reuniões e visitasse conhecidos, sentia-se só e a Corte não preenchia seus sonhos de poder. Talvez seus sonhos fossem por demais grandiosos e sua cidade natal fosse pequena para abraçá-los. Por outro lado, a Capital era grande demais e seus sonhos ficavam diluídos no meio de tantos outros, talvez igualmente grandiosos.Ao que parece, o sonho de grandeza e de nobreza eram muito comuns na sociedade na qual Rubião estava inserido. É o que denuncia o autor, na voz do narrador.

Sim, leitor profundo. A vida de Rubião carecia de unidade (...)

Mas, ainda assim, a vida pode ter unidade, — ou na alma ou na situação do homem. Nem a situação nem a alma do nosso homem estava em tal caso. A vida partira-se-lhe. Vivera mais de metades em outro logar, com outras gentes, outros meios, outros horizontes (...). Rubião, ás vezes, com saudades de Minas, recompunha a existência obscura de outro tempo. Obscura não senhor; era muito mais notória que a actual, que se perdia na multidão de tantas vidas. Era simples, limitada ao pouco, mas egual a si mesma e estável; entre o homem e o meio existia communhão de idéias, de reminiscências, de amor ou de aversão, de nojo ou de alegria, — de hábitos ao menos. Lá, um trecho de rua ou um retalho de phrase acordava toda a gente a lembrança do mesmo sucesso ou pessoa. Cá tudo era novo; nada fazia sentir nada.

(ASSIS, a:1977, p.95-96).

Vemos que Rubião tem dificuldades em sua adaptação na capital, sentindo muita falta de Barbacena, que é uma pequena cidade, onde todos se conhecem e há comunhão de idéias. Passara lá toda sua vida, constituindo hábitos e costumes. No Rio de Janeiro, ao contrário, apesar de todo o dinheiro, Rubião era apenas mais um entre uma multidão diversificada. Mas por que então Rubião não retornava à sua cidade natal? Talvez Christiano Palha tenha a resposta. Está lá no folhetim: A corte é o diabo; apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação; basta uma fresta de ar, fica-se perdido (ASSIS, a:1977,p.43).

Ainda em relação à questão financeira, o narrador faz outras duas comparações. No inicio da narrativa vemos que o casal Palha é de origem simples, sem muitos recursos e que da mesma forma também o são o major Siqueira e sua filha, d. Tonica. Como pertencem à mesma classe social, freqüentam os mesmos locais, as mesmas festas. O único que se destaca, financeiramente, como sabemos, é o nosso Rubião. Mas à medida que vamos chegando ao final da narrativa, vemos que o major Siqueira e sua filha vão sofrendo um processo de empobrecimento, enquanto o casal Palha enriquece.

No início da narrativa o major Siqueira e sua filha moram na rua do Senado, depois se mudam para a rua Dois de Dezembro e a história chega ao fim com os dois residindo na rua dos Barbonos. No século XIX as ruas comerciais ficavam no centro da cidade e quanto mais em direção à zona sul alguém residia, melhor era a sua condição financeira. Mas a zona sul, naquela época, chegava no máximo ao Flamengo e Botafogo, que estavam sendo loteados. Logo, residir na rua do Senado e depois avançar para a rua Dois de Dezembro, era sinal de melhor condição financeira, uma vez que temos a saída do centro da cidade para uma das ruas do bairro do Catete. Mas vemos a queda financeira do major quando verificamos sua mudança de domicílio para a rua dos Barbonos, novamente no centro da cidade, a atual rua Evaristo da Veiga.

Ladeira abaixo, D. Tonica foi ouvindo o resto do discurso do pae, que mudou de assumpto, sem mudar de estylo,— difuso e derramado. Ouvia sem entender. Ia mettida em si mesma, absorta, remoendo a noite, recompondo os olhares de Sophia e de Rubião.

Chegaram a casa na rua do Senado; (grifos nossos) o pae foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estar em uma cadeirinha, ao pé da commoda onde tinha uma imagem da Virgem.

(ASSIS, a:1977, p.44).

O Major Siqueira repetiu isto á filha, moradores agora na rua Dous de Dezembro.(grifos nossos).

(ASSIS, a:1977, p.89).

—QUEM DIRIA que a gente do Palha nos trataria deste modo? Já não valemos nada. Escusa de os defender...

—Não defendo, estou explicando; há de ter havido confusão.

—Fazer anos, casar a prima, e nem um triste convite ao major, ao grande major, ao impagável major, ao velho amigo major. Eram os nomes que me davam; eu era impagável, amigo velho, grandes outros nomes. Agora, nada, nem um triste convite, um recado de boca, ao menos, por um moleque: "Nhanhã faz anos, ou casa prima, diz que a casa está às suas ordens, e que vão com luxo. Não iríamos; luxo não é para nós. Mas era alguma cousa, era recado, um moleque, ao impagável major...

—Papai!

Rubião, vendo a intervenção de D. Tonica, animou-se a defender longamente a família Palha. Era em casa do major, não já na Rua Dous de Dezembro, mas na dos Barbonos, modesto sobradinho.

(grifos nossos) (ASSIS, b:1977, 271-273).

Enquanto o major empobrece, o casal Palha enriquece e à medida que avançamos na leitura, vamos percebendo o aumento do distanciamento social entre o major Siqueira e os Palha. Sofia provoca o afastamento de todos os conhecidos antigos, que eram simples nos modos e de poucos recursos financeiros. E o major Siqueira pertencia a este antigo grupo de amigos que foram esquecidos pela bela dama.

Vemos, na citação acima, o descontentamento do major, que se sentiu abandonado e desprestigiado com o esquecimento do casal, que não mais o convida para as reuniões sociais. É bem possível que as atitudes da glamourosa dama cause repugnância à maioria das pessoas. Afinal de contas, a maioria da população não pertence à elite. É aquela velha história do olhar de baixo para cima. Mas devemos admitir que, via de regra, quando vemos, fora das páginas de um livro, uma situação similar à de Sofia, de alguém que ascende na escala social, verificamos também seu afastamento do antigo espaço (geográfico, social ou cultural) para viver no seu novo meio. Logo, embora a atitude de Sofia nos cause antipatia, temos apenas a leitura do autor, já no século XIX, sobre uma situação que geralmente acontece nos dias de hoje.

O casal Palha, como acabamos de dizer, obteve progresso financeiro: no início da narrativa os dois residem em Santa Teresa, passam para o bairro do Flamengo e sua participação chega ao final da narrativa com Palha e Sofia inaugurando o palacete em Botafogo. Quer dizer, no mesmo bairro onde Rubião teve sua mansão e fitava a enseada.

Vinte e quatro hora depois, estava Rubião ancioso por ter ao pé de si o recente amigo do trem de ferro, e determinou ir a Santa Thereza (grifos nossos) no dia seguinte á tarde; mas foi o próprio Palha que o procurou, de manhã, na Hospedaria.

(ASSIS, a:1977, p.26).

D.Fernanda, alcançado o consentimento do director, cuidou de satisfazer o desejo do doente. Quiz escrever a Sophia, mas foi ella própria ao Flamengo e convidou a outra a irem á casa do Rubião para ver o estado do animal; podia ter morrido.

(ASSIS, a:1977, p.240).

Em outubro, Sophia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais celebre do tempo.

(ASSIS, a:1977, p.244).

Vemos que o casal Palha ascendeu na escala social, ao contrário de Rubião, que perdeu toda a fortuna. Ele foi obrigado a sair de Botafogo para morar numa pequena casa na rua do Príncipe. Na verdade, Rubião perdeu não só a fortuna, mas também todos seus amigos.

Tudo se fez socegadamente. Palha arranjou uma casinha na rua do Príncipe, cerca do mar, onde metteu o nosso Rubião, alguns trastes e o cachorro amigo. Rubião acceitou a mudança sem desgosto, e, desde que lhe tornou o delírio, com enthusiasmo. Estava nos seus paços de S. Cloud.

(ASSIS, a:1977, p.208).

Vimos, no episódio da morte do Freitas, que Rubião não tinha repugnância à pobreza. Mas para quem viveu na fartura, como foi seu caso, podia não ser tão simples voltar a viver na pobreza. O nosso mineiro aceitou o fato sem desgosto: sair de sua mansão e mudar-se para a casinha da rua do Príncipe. Mas é preciso observar que, naquele momento, estava em delírio, na fuga da realidade. Rubião não estava numa casinha simples, estava , entusiasmadamente, nos paços de S. Cloud.

Enquanto Palha enriquece, Rubião empobrece, na mesma proporção. A diferença está que quanto mais Rubião empobrece de fato, mais seus momentos de delírios vão se tornando uma constante. E quando já não tem mais nada, quando já então dorme nas escadarias da igreja de Barbacena, quando já está sem destino, pouso ou comida, assume completamente o Bonaparte, negando-se a si próprio e se tornando, ainda que em seu imaginário, o imperador.

Mas, voltemos, mais uma vez, à questão da morte do Freitas. Quando o narrador revela que Rubião não tem asco à pobreza, podemos estabelecer uma comparação com a cena em que Sofia e D. Fernanda vão à casa do ex-professor, na rua do Príncipe, quando ele já está pobre e internado numa clínica para tratamento da sua loucura. Aí, podemos comparar Sofia não apenas com Rubião, mas também com D.Fernanda. É que o narrador põe as duas senhoras na mesma cena, frente ao leitor, para que este tire suas próprias conclusões.

Dona Fernanda agia de forma benevolente com Rubião porque “possuía em larga escala, as qualidades da simpatia”. Sofia precisa aparentar “bom-tom” junto à amiga de prestígio, mulher de um deputado, quase ministro e futuro presidente de província. Como deseja ascender socialmente e fazer parte do mesmo meio de D. Fernanda, a senhora Palha não pode descartar publicamente certas formas de comportamento, mesmo que, de si para si, as considere “românticas ou afetadas”. Ou seja, o olhar de Machado vê aqui a ação social do modelo ético nobre exercer-se tão só na hora em que é oportuno à nova rica afivelar a máscara da distinção (BOSI, 1999, p.65).

Rubião, internado para tratamento da sua loucura, manifestou o desejo de ter consigo seu cão Quincas Borba, que havia ficado aos cuidados de um criado, na casa da rua do Príncipe. Dona Fernanda resolveu atender ao pedido do mineiro e solicitou que Sofia, como antiga amiga, a ajudasse na intenção.

De um lado, temos o comportamento das duas senhoras, que são totalmente opostos. Dona Fernanda foi à casa da rua do Príncipe e lá estava com boa vontade, por, de acordo com as demonstrações do narrador, ser pessoa caridosa, principalmente no romance. Sofia, ao contrário, foi porque não visualizou outra alternativa: não queria contrariar a amiga que podia lhe dar um empurrãozinho social. Mas seu comportamento era totalmente destoante, se comparado ao de D. Fernanda. Este trecho é encontrado nas duas edições.

Foram a pé do Flamengo à Rua do Príncipe, três a quatro minutos. Raimundo estava na rua, mas viu gente à porta e veio abri-la. O interior da casa tinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidade das cousas, que parecem conservar um resto da vida interrompida; era o abandono do desmazelo. Mas, por outro lado, o transtorno dos móveis da sala exprimia bem o delírio do morador, suas idéias tortas e confusas.

—Ele foi muito rico? perguntou D. Fernanda a Sofia.

—Tinha alguma cousa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre há um século.

Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incúria. Nem por isso o criado explicava nada, olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polca do dia. Sofia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por fugir "daquela imundíce", dizia a si mesma, e tinha vontade de indagar do cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por ele nem pelo resto. A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. "Que bobagem!" ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.

(ASSIS, b:1977 p.336).

Vemos, na citação acima, que cão e dono estão numa situação de abandono. A queda do cão dá-se juntamente com a de Rubião. E aí não estamos falando somente de queda financeira, mas também moral, social e de afeto. Rubião está abandonado na clínica para tratamento da loucura e o cão está abandonado na pequena casinha da rua do Príncipe, no “abandono do desmazelo”.

Muito Sofia recebeu Rubião em sua residência e muitos foram os presentes (jóias valiosas) que aceitou do mineiro. Muito era ainda o dinheiro que Palha devia a Rubião, já que não pagou nada do que lhe devia. Mas nada disso comovia a bela senhora. Afinal, a pobreza de Rubião talvez lhe trouxesse reminicências, lembrando-lhe sua origem. E isso, ela queria esquecer, já que esqueceu também todos os seus antigos amigos, para, enfim, emergir na sociedade aristocrática.

Sofia, que prometera a D. Fernanda cuidar de Rubião, juntamente com o seu marido, Cristiano Palha, esqueceu-se rapidamente da promessa. Estavam construindo o palacete de Botafogo e cuidar de Rubião seria uma amolação, de acordo com o próprio narrador. D. Fernanda, ao contrário, apesar de o conhecer pouco, oferece seus próprios recursos na intenção de curá-lo. Esta passagem ocorre apenas no folhetim.

—Bem, que quer a senhora de mim? Perguntou Falcão.

—Que intervenha como medico, recommendando, e, se for preciso, acompanhando o doente á casa de saúde. Elle tem ainda recursos, em poder do Palha; mas, se faltar algum dinheiro, respondo pelo resto.

(ASSIS, a:1977, p.238).

Quer dizer, Sofia é totalmente insensível a tudo o que acontece à sua volta, preocupando-se apenas com a construção do seu palacete, que deseja inaugurar no inverno, quando toda a aristocracia pode comparecer e presenciar o seu triunfo.

Mas aquele espetáculo não lhe trazia um tema de reflexões gerais, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos, nem a tristeza do mundo, dizia-lhe tão-somente a moléstia de um homem (ASSIS, b:1977, p. 337). O narrador abre aqui um novo ponto de análise, quando se refere à fragilidade dos tempos. Ou seja, a vida é construída por diversos momentos. No passado, Rubião não tinha dinheiro e ficou rico em virtude da herança recebida. Não tendo administrado seu capital de maneira satisfatória, perdeu tudo, não lhe restando nem mesmo um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão (ASSIS, b:1977, p 345). Antes da sua morte, Rubião pegou em nada, levantou nada e cingiu nada (ASSIS, b:1977, p. 345). Palha, como bem o sabemos, é bastante esperto em relação aos negócios, mas nada impede que, por uma dessas manobras da vida, o casal conheça a pobreza novamente, em razão da “fragilidade dos tempos”. Afinal, (...) a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos (ASSIS, b:1977, p.336).

Diferentemente de D. Fernanda, como vimos, Sofia não ficou sensibilizada com a situação em que Rubião se encontrava. Como disse o narrador, a casa da rua do Príncipe era reflexo do próprio doente: desmazelo e abandono. Ainda no que se refere a D.Fernanda e Sofia, podemos comparar outros sentimentos contrastantes. Uma das muitas cenas que servem como exemplo é a visita que as duas fazem à casa de Carlos Maria e Maria Benedita, quando do nascimento da filha do casal. A mulher de Teófilo está preocupada com o nascimento da criança, desejosa de saber se tudo está bem e realmente se interessa pelos fatos. Sofia, ao contrário, acompanha D. Fernanda em tudo, mas o faz por hábito e costume, bem como para agradar à amiga tão prestigiada socialmente, como já dissemos. Novamente, nada a sensibiliza. Nem a morte, nem a vida. Nem a morte de Rubião, nem uma nova vida que tem início, o nascimento da filha de Carlos Maria e Maria Benedita. Aliás, este é mais um fator em oposição: enquanto morre Rubião, nasce a menina. Ainda que estas duas vidas, aparentemente não tenham nenhuma relação, vemos o lado carnavalesco da vida, na vitória da vida sobre a morte, na roda, no ciclo incessante e sempre inacabado.

Chegaram á casa. Sophia recebeu uma carta que acabavam de trazer da Tijuca. Para que negar que a abriu, com grande curiosidade, quando vira que a letra era de Carlos Maria? Abriu-a; era uma communicação de nascimento.

— Minha prima teve hontem, á noite, uma filhinha, disse ella dando a carta a D. Fernanda.

D. Fernanda ficou alvoraçadamente (sic!), e cuidou logo de ir á Tijuca. Convidou a outra, e foram(...).

Sophia fazia as mesmas perguntas á prima., baixinho, apertando-lhe a mão entre as suas. Não teria grande interesse, mas também não era hypocrisia, nem meio termo, um costume de momento, um persignar distrahido de dama, que entra na egreja pensando em outra cousa.

(grifos nossos ) (ASSIS, a:1977, p.242-243).

No que se refere à Maria Benedita e Sofia, vemos sentimentos contraditórios. Aquela está feliz em razão do casamento e do nascimento da sua filha. Esta tem dentro de si o sentimento do tédio, apesar da feliz notícia. Ou seja, notícias que deixariam normalmente as pessoas felizes, o nascimento do filho de um parente próximo, bem como a felicidade do casal, não exercem nenhum efeito em Sofia.

Entregou a carta a Sophia, que a abriu sem enthusiasmo, e a leu com tédio. Era mais que uma vulgar carta transatlântica, era um deposito moral, uma confissão intima e completa de pessoa feliz e agradecida.

Sophia dobrou o papel, não já com tédio, senão com azedume.

(ASSIS, a:1977, p.201).

Sofia não só sente tédio, mas também azedume ao ler a carta da sua prima Maria Benedita, que está em lua de mel, feliz ao lado do marido. Ocorre que a prima casou-se com Carlos Maria, objeto de desejo de Sofia. Azedume porque ela foi preterida por Carlos Maria, que a convidou um dia à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão (ASSIS, b:1977, p.302).

Como estamos percebendo, o narrador sempre coloca uma personagem ou uma determinada situação em contraste com outra. Passemos então para a análise de d.Tonica, que quando é apresentada ao leitor, é feita uma comparação não apenas com as outras senhoras que estão na mesma cena, mas principalmente com a senhora Palha, a fim de que mais uma vez seja ressaltada a beleza desta. Veremos primeiro a descrição do narrador sobre Sofia:

As SENHORAS casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco anos; mas Sofia primava entre todas elas .

Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era muito. Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias. Essas esculturas lentas são miraculosas; Sofia rastejava os vinte e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por dous ou três anos(…)

A boca parece mais fresca. Ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos.

Para as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos.

(ASSIS, b:1977, p.143).

Agora, o que diz o narrador sobre D. Tonica:

ENTENDE-SE bem que D. Tonica observasse a contemplação dos dous. Desde que Rubião ali chegou, não cuidou ela mais que de atraí-lo. Os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas. Volvê-los uma e muitas vezes requebrando-os, era o longo ofício dela. Não lhe custou nada armá-los contra o capitalista (…)

Ei-la que redobra esforços. Todas as suas graças foram chamadas a postos, e obedeceram, ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de lábios, olhos oblíquos, marchas, contramarchas para mostrar bem a elegância do corpo e a cintura fina que tinha, tudo foi empregado.

(ASSIS, b:1977, p.146).

Comparando as duas citações, vemos que o narrador tem preferência por Sofia e pretere D. Tonica. Aliás, não poupa esforços nos elogios à senhora Palha, como também não os poupa para rebaixar a imagem da filha do major Siqueira. Para tanto, utiliza-se de vários argumentos:

1— Com relação à idade, sabemos que a diferença entre elas é de uma década. Entretanto, Sofia, quanto mais velha, mais bela fica. Já D.Tonica, ao contrário, não deve ter sido feia quando era mais jovem;

2— O tempo para Sofia é um escultor vagaroso. A idéia é de movimento, num aperfeiçoamento da obra de arte;

3— Os recursos utilizados para descrever os olhos ou o olhar das duas senhoras são totalmente opostos. Para Sofia ele utiliza adjetivos que dão a idéia de movimento e para d. Tonica utiliza substantivos que dão a idéia de algo estático (ridentes, inquietos, convidativos X cansaço, desesperança );

4— Sofia é uma escultura feita para contemplação, cuja beleza chama a atenção em virtude dos gestos escolhidos. D.Tonica, ao contrário, tenta chamar a atenção através de gestos exagerados (gestos de ventarola, apertos de lábios, olhos oblíquos, marchas e contramarchas );

5— Os nomes escolhidos para as duas senhoras também dizem muito das preferências do narrador. Sofia tem origem grega e significa sabedoria. E Tonica, o que significa? Tonica é apenas um diminutivo. Quer dizer, o narrador não cita uma única vez, durante toda narrativa, o prenome de D. Tonica: Antonia, derivação de Antonio;

6— Vemos, durante a narrativa, que Sofia é bela e objeto de admiração de todos os olhares masculinos. Já d. Tonica faz esforços para ser notada.

Como já dissemos, o narrador sempre coloca em cena uma determinada personagem em contraste com outra. Assim, ele também o faz quando apresenta Carlos Maria e Freitas. A citação a seguir, da maneira como está, só pode ser encontrada no folhetim.

Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas o segundo. Rubião gostava de ambos, mas differentemente; não era só a idade que o ligava mais ao Freitas, era também a índole deste homem. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma phrase particular, delicada, e sahia de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a quaesquer outros (...) era vivo, interessante, anecdotico, alegre como um homem que tivesse cincoenta contos de renda.

Não tardou muito que os dous se tornassem familiares; Freitas, vae alli freqüentemente, as vezes almoçar ou jantar, e o Rubião gosta d’elle, dos seus modos “expansivos e francos”.

Expansivos e francos! Imaginai o avesso disso, e tereis Carlos Maria; mas é o que a preguiça do leitor lhe não consente; ella quer que se lhe ponha aqui no papel a cara do homem, toda a cara, a pessoa inteira, e não ha fugir-lhe.

Eia, faze um exforço, leitor amado. Já te disse que este Carlos Maria é o avesso do Freitas, e se o outro tem os modos “expansivos e francos”, — no bom sentido laudatório,— claro é que elle os tem contrários. Assim, não te custará nada vel-o entrar na sala, lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas, e estender-lhe a mão, olhando para outra parte.

(ASSIS, a:1977, p.31).

Esta é a primeira cena em que aparecem Freitas e Carlos Maria. Este último tem papel de grande importância, tanto no romance quanto no folhetim. Neste primeiro contato, vemos que Carlos Maria tem como característica a frieza e possui ar superior, como se a sua presença em qualquer ambiente, bem como a convivência com qualquer pessoa, fosse um favor de sua parte. Tal comportamento merecerá destaque, quando estivermos realizando sua comparação com Sofia.

Rubião prefere ao Freitas, pois este elogia tudo com modos expansivos. Carlos Maria é o avesso disso. Vejam que o narrador do folhetim caracteriza as duas personagens mostrando seus contrários através de dois adjetivos: expansivos e francos. Mais do que isso, deixa uma lacuna para que o leitor preencha. Convoca o leitor para que utilize sua imaginação, que complete seu raciocínio, que faça a leitura de acordo com sua experiência. O narrador convoca o leitor para que utilize sua imaginação visual, a fim de completar as características de Carlos Maria. Claro está que cada leitor o fará a seu modo. Atenderá ou não, o narrador, de maneira muito particular. O narrador convoca o leitor à análise do discurso e à produção de significações. Este narrador quer que o leitor colabore com sua obra, quando ele mesmo diz o seguinte: Arrenego um autor que me diz tudo, que me não deixa collaborar no livro, com a minha própria imaginação. A melhor pagina não é só a que se relê, é tambem a que a gente completa de si para si (ASSIS, a:1977, p.31).

É interessante observar que este narrador do folhetim não se coloca somente em tal posição, mas também na de leitor de outros textos, que não gosta quando não lhe é permitido, enquanto leitor, utilizar sua criatividade durante a leitura. Assim, este narrador consegue ter pelo menos dois pontos de vista: o de quem escreve e o de quem lê um escrito.

Vimos, há pouco, a comparação entre Sofia e D. Fernanda. Agora vejamos a comparação que faz o narrador de Maria Benedita com D. Fernanda. Esta, jovial, expansiva, corada e robusta, além de simpática. Aquela, contrariando tudo isso, também possui uma aparência de grande tristeza.

D.Fernanda tinha pouco mais de trinta annos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nascera em Porto Alegre, casara com um bacharel das Alagoas, deputado agora por outra província, e, segundo corria, prestes a ser ministro de Estado. A naturalidade do marido foi o pretexto para mettel-a na commissão; e bem acertado foi, porque ella pedia como quem manda, não tinha acanhamento nem admittia recusa. Maria Benedicta era o contrario disso, acrescendo a tristeza que a abatia por esse tempo, mas foi justamente a disparidade que as prendeu. D. Fernanda possuía em larga escala, a qualidade da sympathia; amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavam-se della muitos actos de piedade com gentes e com bichos. Maria Benedicta acolheu-se naturalmente ás suas azas.

(ASSIS, a:1977, p.151).

Dona Fernanda, como sabemos, pertence à aristocracia, ou seja, pertence ao topo da pirâmide. Seu marido ocupa um cargo político, é deputado, pretende ser ministro e necessita da simpatia dos eleitores . É alagoano, embora não mais resida naquele estado. Entretanto, colocou a mulher numa comissão para ajudar desabrigados daquela região. Embora viva e exerça suas funções políticas na capital, aproveitou sua naturalidade para inscrever a mulher em tal comissão. Uma idéia para lhe dar prestígio político. D. Fernanda, por sua vez, acatou a idéia do marido. Tinha o dom da simpatia, o que era conveniente para o deputado e gostava de ajudar “os fracos e os tristes”. Era uma das formas encontradas para fazer uma boa imagem diante dos eleitores, que também pertencem à alta classe. Sim, porque naquele período o voto só era concedido a quem possuía uma alta renda. Os pobres não tinham direito ao voto. Entretanto, aqueles da mesma classe se tornavam beneficiários indiretos das boas ações, já que elas tinham por objetivo manter a ordem social da época. Então, atitudes como a de D. Fernanda, provavelmente, reverteriam em votos para o marido.

D.Fernanda aproveitava-se não só da sua condição financeira, mas também do poder político do marido. Com isso, de acordo com o narrador, mandava como quem pedia, mas exercendo sua autoridade, não admitia recusa. Mas mandava em quem? Naqueles pertencentes à mesma classe. Vejam que o narrador diz que pedia como mandava. Assim, o fazia aos aristocratas do seu círculo de relações. Quer dizer, parece muito mais fácil mandar quando se tem poder social e político. O narrador descreve que contavam dela muitos “atos de piedade com gentes e com bichos”. Se divulgavam é porque suas atitudes revertiam na admiração alheia. Tais atitudes provavelmente reverteriam em votos certos para o marido Teófilo, como acabamos de falar. Mas é interessante observar a mesma linha de horizontalidade em que o narrador coloca aqueles que recebem o auxílio de D. Fernanda: gentes e bichos. Gentes, anonimamente. Gentes não pertencentes à aristocracia. Ou seja, os pobres e os bichos.

Maria Benedita, ao contrário de D. Fernanda, é triste e introvertida. Mas qual a origem da moça? Nasceu no interior, era pobre, de costumes simples e nada sabia da cidade grande. Sua mãe era analfabeta e nunca incutiu na filha as necessidades da elite social da capital, que agora freqüentava, em razão de morar com Sofia. Maria Benedita tornou-se órfã e veio morar com a prima. Entretanto, por diversas vezes, o narrador mostra que a personagem sente saudades da sua terra. Ou seja, uma menina de interior, órfã e que é colocada, de repente, numa cidade estranha. Natural que se apegasse a D.Fernanda e esta a ela. Maria Benedita necessitava se sentir protegida e a outra senhora gostava de proteger.

Outro contraste está na comparação de Maria Benedita e Sofia. Inicialmente o narrador do folhetim exalta a beleza de Sofia, que como sabemos: Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um esculptor vagaroso, não acaba logo, e vae polindo ao passar dos longos dias (...) (ASSIS, a:1977, p.36). Maria Benedita, ao contrário, não recebe o mesmo prestígio do narrador e vimos que Carlos Maria a supõe “insípda ou estúpida”. Está lá no folhetim:

Em verdade, não era uma formosura; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem dessas bocas que segredam alguma cousa, ainda caladas. Altinha, mãos grandes, grandes olhos attonitos quando escutavam somente, mas que sabiam rir e conversar, se a bocca fallava também(...).

(ASSIS, a:1977, p.63).

Quer dizer, o narrador exalta sempre a beleza de Sofia, colocando nela uma beleza superior em relação a qualquer outra personagem. Afinal, como disse Rubião, meu Deus! Como é bonita! (ASSIS, a:1977, p.37). Mesmo ao final do texto, quando da inauguração do palacete de Botafogo, Sofia continua bela, apesar do passar dos anos, pois estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espáduas. (...) Toda a gente admirava a gentileza daquella trintona fresca e robusta. (ASSIS, b:1977, p. 341). Previsão esta, do narrador, que já no capítulo XXXIII do folhetim e XXV, do romance, havia antecipado que (...) era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, senão quisesse prolongar ainda o trabalho, por dois ou três anos (ASSIS, b:1977, p.143).

Mas o narrador, tanto do folhetim como do romance, não pára por aí e apesar de ressaltar a beleza de Sofia, promove seu esvaziamento. Conhece aquele velho ditado, meu amigo? “Por fora bela viola. Por dentro pão bolorento”? Pois então, é assim que nosso narrador desmistifica a senhora Palha. Seu esvaziamento é promovido, enquanto ele faz justamente o inverso com Maria Benedita. Senão, vejamos as citações a seguir:

Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempo: lia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às cousas do vestido, da sala e do galanteio.

Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedita fazia progressos rápidos. A pessoa ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, dava cor a todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa diferença, é certo que a outra era vista e notada ao pé dela, de tal jeito que Sofia, que começara por louvá-la em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações.

(ASSIS, b:1977, p.191-192).

Vimos que Maria Benedita, que antes era uma roceira sem graça, adapta-se muito bem à Corte e começa a competir com Sofia em qualidades, tornando-se alvo de elogios e preferências na dança. Sofia, que já teve um esvaziamento dos seus “dotes” pelo narrador, quando é mostrado seu limitado vocabulário francês, revela que não gosta de competir. Ou melhor, não suporta ter uma rival à altura, que seja notada e admirada, conforme revelou o narrador.

Até mesmo Carlos Maria, que inicialmente achava Maria Benedita “insípida ou estúpida”, tem opinião diferente ao final do folhetim: Sophia estava cada vez mais expansiva, e agora quasi que só ella falava. Carlos Maria mirava aquella bella pessoa, que parecia vender saúde, ao lado da mulher abatida, magra e pallida, e achava a mulher mais bonita (ASSIS, a:1977, p.229). Quer dizer, o narrador do folhetim vem revelando nesta citação, bem como nas anteriores, que Sofia é belíssima. No entanto, essa beleza é somente física. Assim, personagens que não possuem tais atributos, podem ser, ainda, mais belas que Sofia, em razão das qualidades interiores. Lembra-se da comadre Angélica, que apesar de feia, falava com tais ternuras que até parecia bonita? Mesmo “abatida, magra e pallida”, Maria Benedita consegue ser vista como mais bela do que a senhora Palha. E há aí um detalhe curioso, caro leitor, a magreza e a palidez de Maria Benedita, vista por Carlos Maria e revelada pelo narrador, ocorre em razão de esta ter acabado de dar à luz a uma menina. Ao inserir a maternidade em Maria Benedita, ele faz ressaltar que Sofia não tem filhos, esvaziando, de certa forma, seu casamento com Cristiano Palha. Ou seja, um casamento voltado para o dinheiro, para a ascensão social, em que a concepção de um filho não faz parte dos planos do casal. Afinal, não há uma linha sequer, tanto no folhetim como no romance, onde a questão seja discutida. Vimos sim, no primeiro capítulo deste trabalho, que parece não existir amor na relação do casal, uma vez que Sofia é desejosa de amar.

É interessante notar, entretanto, que o narrador do romance não faz relação de oposição entre Carlos Maria e Sofia, diferentemente do narrador do folhetim, que põe um Carlos Maria avesso a amores e uma Sofia desejosa de amar. O narrador do romance, muito pelo contrário, coloca as duas personagens na mesma linha, no mesmo plano melódico, igualando-as. Talvez por isso mesmo não fosse possível um envolvimento amoroso entre Carlos Maria e Sofia. Afinal de contas, eles são idênticos em beleza e sentimentos. Ambos sentem a necessidade de serem adorados, amados, idolatrados e admirados. Logo, são incapazes de conviver um com o outro. Ele é o mais belo e ela é a mais linda dama. Então, vejamos as citações a seguir, sendo a primeira aquela que caracteriza Carlos Maria, em toda autocontemplação.

Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda virginal, — ou quasi, — daquelle coro de opera: Win Winden dir den Inngfernkranz... Nem todas seriam moças em flor; mas a distincção supria a juvenilidade melhor que posturas de toucador. Carlos Maria recebia-as, como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas offerendas. No borborinho geral distinguia as vozes de todas, — não todas a um tempo, — mas ás três e ás quatro.

(ASSIS, a:1977, p.83).

Lindas devotas e suas oferendas. É assim que Carlos Maria recebe as mulheres. Recebe-as como um deus. Assim, não é Carlos Maria que está acostumado a fazer a corte, contrariando o costume de muitos séculos. É Carlos Maria que é cortejado pelas mulheres, que se atiram a seus pés, como se oferendas fossem. Tal fato altera substancialmente a análise da impressão de Sofia, quando foi cortejada por Carlos Maria. Ou seja, a senhora Palha recebeu os galanteios do “deus grego”, que tem por hábito deixar-se cortejar pelas mulheres. É de se pensar, pois, que ela acreditasse no real envolvimento do rapaz galhardo. Além disso, Sofia também necessita sentir-se adorada e ser galanteada por Carlos Maria faz sua auto-estima ficar ainda mais alta.

Já o narrador do folhetim, como dissemos, não põe as duas personagens na mesma linha melódica das identidades, pois estabelece, entre elas, uma diferença, como vimos no capítulo “A OFICINA DA CRIAÇÃO”. Carlos Maria e Sofia desejam ser adorados, mas ela deseja também amar. Este ponto distingue as duas personagens, estabelecendo um contraste entre elas.

Sofia era desejosa de amor e para ter a posse de tal sentimento não escolhia parceiros, podendo ser o melhor, Carlos Maria, de acordo com sua concepção, ou o pior deles. O que importava para a bela dama era simplesmente amar, a fim de fazê-la sair do enfado que era seu casamento, como vimos no início deste trabalho.

Já Carlos Maria, no folhetim, em oposição à Sofia, não pretendia conhecer o amor. Carlos Maria acredita-se superior e segundo ele, quem ama desce do topo da pirâmide e fica na mesma linha de horizontalidade daquele por quem nutre tal sentimento, igualando-os.

Tendo, pois, expectativas distintas, as duas personagens se envolveram diferentemente. Houve, inicialmente, um jogo de sedução, de ambas as partes. Carlos Maria sentia-se lisonjeado, pois tinha aos seus pés a mais bela dama dos salões. Ela, de sua parte, tinha o mais belo rapaz cortejando-a, o que em muito a envaidecia. O narrador do folhetim não deixa dúvidas de que houve um “flerte” entre as personagens.

Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes invejosos, e distendeu-se todo n’um banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note se bem; elle carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delicia intima. A princeza do baile entregava-se-lhe... Definia assim a superioridade de Sophia, posto lhe conhecesse um defeito capital, — a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, e ainda assim não subiam do meio em que vivia. De resto, o baile da véspera não passava de uma réles academia de copistas. Carlos Maria achou-se tão humilhada (sic!) que nem pode rir desta sua definição... Vingava-se em dizer que a princeza do baile era sua. Princeza, nada menos.

(grifos nossos) (ASSIS, a:1977, p.82-83).

Vemos que Carlos Maria necessitava da inveja alheia e uma das maneiras de tê-la, era também tendo Sofia. Entretanto, não precisava do amor dela, mas apenas de exibi-la aos outros.

A citação acima pertence ao folhetim e o narrador induz que entre Carlos Maria e Sofia houve muito mais do que um simples convite para uma valsa no salão. Sofia entregou-se a Carlos Maria e aceitou o convite para a valsa do adultério, pois a princesa do baile era sua.

Ele inicia o jogo de sedução e Sofia deixa-se atrair, pois sente sempre a necessidade de ser cortejada. Carlos Maria, porém, recua em seus propósitos. Sofia, por sua vez, não consegue compreender porque Carlos Maria não prosseguiu com os galanteios. Afinal, como ela poderia ser recusada? Ela, a mais bela das damas foi preterida? Isso a perturbou bastante, a ponto de pegar-se pensando naquele homem várias vezes ao dia. Vimos que Carlos Maria recebe as mulheres como se um deus fosse. Vê as mulheres como oferendas. Mas Sofia, apesar de narcisista, não resistiu aos encantos do rapaz e também ofereceu-se, como vemos a seguir.

Eram dous a querel-a; dous, porque Carlos Maria não fez mais que deixal-a em caminho, se é que a deixára deveras. Riram-lhe muito os olhos, achou-se bem consigo, cuidou de suas glorias, antigas ou recentes, dos murmúrios que ia deixando, quando sahia á rua, ou entrava em alguma sala de baile. Sentia-se muito bem feita; era a opinião do marido, eram as vozes anonymas. Carlos Maria devia pensar a mesma cousa; Sophia lembrava-se das admirações em que o apanhou muita vez, por mais que elle as dissimulasse logo em carinho próprio de um deus para uma deusa inferior. Esta comparação pagã não é de Sophia, que ignorava, mas é um modo de definir o melhor possível attitude de um e a impressão da outra; impressão que a deprimia agora, que a humilhava... Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira...

A humilhação fez desapparecer com os cacos, e atou a nossa dama a uma cadeira. Sophia recordou todas as suas attitudes diante de Carlos Maria, as acquiescencias fáceis, os perdões antecipados, os olhos com que o buscava, os apertos de mão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aos pés. Depois, o sentimento foi mudando. Apezar de tudo era natural que elle gostasse d’ella e a conformidade moral de ambos não traria o abandono de um. Podia ser que a culpa fosse della. De instincto, sabia que, assim como uma boa palavra paga com phrases ruins, uma só ruim corrompe cem orações deliciosas. Escavou algumas razões possíveis, — um gesto duro e frio, alguma falta de attenção, — e uma vez que, por medo de o receber sosinha, mandou dizer que não estava em casa. O acto foi de ciúme; corriam então alguns mexiricos.

Sim, podia a culpa ser d’ella. Carlos Maria era orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Era d’ella a culpa, assim concluía, depois de muito apurar as reminiscências.

(ASSIS, a:1977, p.134-135).

Das reflexões de Sophia é que não ha que explicar. Todas tinham o pé na verdade. Era certo e certíssimo que Carlos Maria não correspondera as primeiras esperanças, — nem ás segundas e terceiras, — porque as houve em quadras diversas, ainda que menos verdes e bastas. Quanto a causa disso, vimos que Sophia, á mingua de uma, attribuiu-lhe successivamente três. Não chegou a pensar em alguns amores que elle porventura trouxesse e lhe tornassem insípidos quaesquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a verdadeira.

(ASSIS, a:1977, p.138).

Sofia egocêntrica como era, pensou em várias justificativas para a atitude de Carlos Maria, menos uma: a de que talvez ele amasse alguém a ponto de não desejar ninguém mais. Coisas do seu próprio narcisismo. Afinal, nenhuma mulher poderia ser mais importante do que ela. Nenhum amor jamais poderia resistir aos encantos da senhora Palha, segundo suas próprias concepções.

Certo é que Sofia deixou-se seduzir por Carlos Maria. Depois, ela não compreendeu o recuo dele. Mas acredita que a culpa foi dela, por ter se “mostrado tão agradecida, tão rasteira...” Pode ser que sua conclusão seja verdadeira. Afinal, como dissemos, Carlos Maria e Sofia são idênticos, pois ela mesma desdenha quem rasteja aos seus pés, apesar de gostar de ser adorada. Talvez a senhora Palha não desejasse Carlos Maria realmente. O que a faz pensar nele é o fato de ter sido rejeitada. Tal argumento serve para ilustrar a relação de Rubião com Sofia. Rubião a deseja, mais do que isso, ele tem adoração e idolatria por ela. Logo, é justamente por isso que o despreza e o rejeita. Em seu narcisismo, Sofia acredita ter sido amada por Rubião até a loucura.

Sofia teve medo de receber Carlos Maria em sua casa, sozinha. Assim, mandou a criada dizer ao moço galhardo que ela não estava. Mas por que o medo? Isso o narrador não revela. Ficam aí as deduções. Teria ela receio de receber um homem em sua casa sem que seu marido estivesse presente? Acredito que não, pois ela não tinha medo de receber Rubião. Sentia medo, talvez, dos seus próprios desejos.

Podemos analisar ainda a questão dos contrastes comparando Rubião e Maria Benedita. Na linha melódica da identidade, os dois estão no mesmo plano, a partir do momento em que a origem de ambos está na cidade do interior e não na capital, bem como no comportamento inicial das duas personagens.

Rubião veio para a Corte, proveniente de Barbacena, Minas Gerais. Maria Benedita, por sua vez, provinha da roça. Ele, como sabemos, veio para o Rio de Janeiro em razão de ter herdado dinheiro e não ter resistido à idéia de recomeçar a vida na cidade grande. Ela veio para a cidade a convite e por insistência dos seus primos Sofia e Cristiano Palha.

Apesar de ter relutado inicialmente, Maria Benedita terminou por ficar na cidade, em razão da morte da sua mãe. É verdade, porém, que a intenção dos Palha era casar Maria Benedita e Rubião, com o objetivo de aproximar ainda mais os dois sócios (Cristiano Palha e Rubião) e estreitar as relações financeiras existentes.

Tanto Rubião como Maria Benedita apresentam comportamentos diferentes daqueles que residem na capital, conservando, então, características interioranas. Rubião é tido, pelos Palha, como “matuto e ingênuo” e Maria Benedita resiste à idéia de aprender os hábitos da cidade, em razão dos seus “calundus”.

Tanto Rubião quanto Maria Benedita sentem saudades da terra natal. Ele ficou na cidade por sentimentos de sedução, tanto pela cidade quanto por Sofia. Ela em razão da morte da mãe e por interesse em Carlos Maria. Mas ambos sentem nostalgia pela terra natal. A citação a seguir consta apenas no folhetim.

Rubião, ás vezes, com saudades de Minas, recompunha a existência obscura de outro tempo. Obscura, não senhor; era muito mais notória que a actual, que se perdia na multidão de tantas vidas. Era simples, limitada ao pouco, mas egual a si mesma e estável; entre o homem e o meio existia communhão de idéias, de reminiscências, de amor ou de aversão, de nojo ou de alegria, — de hábitos, ao menos. Lá, um trecho de rua ou um retalho de phrase accordava toda a gente a lembrança do mesmo sucesso ou pessoa. Cá tudo era novo; nada fazia sentir nada.

(ASSIS, a:1977, p.96).

Rubião veio para a capital objetivando recomeçar a vida com outras gentes e novos hábitos. Este recomeço, de acordo com a teoria da carnavalização, significa, simbolicamente um renascimento. Rubião deseja esquecer sua vida em Barbacena, onde estava acostumado, “às raízes pobres e secas”, a fim de fartar-se do “banquete da vida”. Mas viver uma nova vida não é apenas mudar de cidade. Rubião colocou uma máscara, suas novas vestimentas, sua barba e bigode à Napoleão, mas não conseguiu mudar seus costumes. Assim, ficou como “um estranho no ninho”, pois sua pele estava coberta pelos luxos da capital, mas seu coração estava ainda preenchido pela simplicidade de Barbacena. Por isso, Rubião sente tanta saudade da sua terra natal. Lá ele conhecia a todos e era também conhecido. Seus hábitos eram idênticos aos dos outros. Lá, suas conversas e desejos faziam sentido. Na capital, na Corte do Rio de Janeiro, tudo era diferente: seus hábitos, seus sonhos... É exatamente por isso que Rubião e Maria Benedita sentem tanta saudade da terra natal, pois é na origem que está a identidade. É na nossa origem que formamos nossos conceitos mais enraizados, que adquirimos nossos primeiros hábitos. Desta feita, apesar de estar morando na Corte, assim como Rubião, Maria Benedita também sente saudades da sua roça. Nestes quesitos, origem e saudades, estão a prima de Sofia e o mineiro na mesma linha melódica das identidades.

Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita, gostou de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as saudades de Iguaçu. (grifos nossos) Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos móveis antigos, nas botinas chinelas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de S. João d'EI-Rei, — e que lá ficaram em casa. Sofia. não consentiu que ela as trouxesse.

(ASSIS, b:1977, p.191).

Vemos que Maria Benedita sente saudades de coisas com as quais se identifica e que para outras pessoas não fazem sentido. Ela queria levar para a Corte as chinelas que haviam sido dadas pelo padrinho, mas Sofia não consentiu. Queria levá-las consigo, pois simbolicamente estaria levando a sua roça para a capital. Sofia não consentiu tal atitude porque o importante para a senhora Palha era a moda e a etiqueta. Umas chinelas são, para Sofia, descartáveis. Afinal, são simples objetos. Sofia não se afastou dos amigos antigos quando teve início sua ascensão social, sem que isto representasse um problema? Se era possível, na sua concepção, descartar pessoas, por que Maria Benedita não poderia fazer o mesmo com suas chinelas? Além de tudo, levá-las para o Rio de Janeiro era colocar sempre à vista a origem das moças, coisa que a senhora Palha tenta esquecer definitivamente. Mas as chinelas de Maria Benedita representam também proteção. Sim, pois tinham sido presente do seu padrinho, simbolicamente um pai. Ter as chinelas consigo, simbolicamente, era ter sua companhia e sua proteção na cidade grande. Rubião, por sua vez, também quis levar para a capital a sua Barbacena: O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços (ASSIS, b:1977, p.108).

Ou seja, também foi um dos Palha, Cristiano, que convenceu-o a ter criados brancos, por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus creoulos de Minas (ASSIS, b:1977, p.108). Rubião não queria criados brancos, o espanhol e o francês, em razão de não querer línguas estrangeiras em casa. Vale dizer que, continuar com seu criado negro era uma maneira de transportar sua terra natal para a capital, seus hábitos e seus costumes. Vale a pena notar que Rubião queria o criado negro na sala. Ora, é na sala que recebemos as visitas, que nos apresentamos, que nos esforçamos para mostrar ao mundo quem somos. Isto significa que, inicialmente, Rubião não pretendia esconder sua origem. Talvez se tivesse aceito quem era, não tivesse enlouquecido. Ter o seu crioulo de Minas na sala, era assumir sua origem, era não querer ser igual aos da capital. Rubião, inicialmente, parecia querer viver como um membro da Corte, sem, entretanto, parecer ser, originariamente, um deles. A convivência com os Palha acabou por desviar nosso mineiro e suas idéias interioranas. Assim, ao aceitar os conselhos do casal, iniciou sua própria negação, sua anulação.

É interessante observar que nos momentos de saudade Maria Benedita acredita que pode romper com as amarras sociais da sociedade em que vivia e retornar para sua terra. E nos momentos de recordação, a moça trazia sua roça para a capital. Rubião, ao contrário, no auge do seu delírio, quando negou-se a si próprio e assumiu definitivamente o imperador, simbolicamente foi para a Europa, mandar no mundo. Mas seu mundo real era sua Barbacena, para onde retornou. Em razão da falta de identidade com a aristocracia do Rio de Janeiro, retornou à sua terra natal. O problema é que retornou esvaziado: Levantou nada, cingiu nada e coroou-se de nada. Não conseguiu estar apto para ficar no Rio de Janeiro e tornou-se diferente demais para ficar na sua cidade. Estando, então, sem lugar, foi, em delírio, para a Europa.

Portanto, as identidades entre as duas personagens param por aí, nas saudades da terra natal. A linha melódica das diferenças está na adaptação dos dois à cidade, como acabamos de dizer. Rubião, apesar do dinheiro, não conseguiu adaptar-se, embora fosse grande seu esforço para tal. Sua vida era vazia e “carecia de unidade”. Maria Benedita, ao contrário, embora sentisse saudades da sua terra, adaptou-se à vida no Rio de Janeiro, tendo, inclusive, o reconhecimento de outras damas da sociedade, além do reconhecimento de Sofia, que passou a ver na prima uma rival.

Continuando a análise das oposições e dos contrastes, podemos ainda fazê-la comparando o cão, Quincas Borba, com as personagens existentes na obra. É que o narrador revela, no cão, sentimentos caracterizados como humanos e descaracteriza os seres humanos, retirando-lhes o que poderíamos designar de virtudes. Ou seja, ele “humaniza” o cão e “desumaniza” o homem. O narrador atribui ao cão sentimentos que representam fidelidade, amizade, amor, lealdade, companheirismo, entre outros e atribui ao homem o instinto de sobrevivência. Quer maior oposição que esta, caríssimo leitor? Quer maior humanização do que o próprio nome do cão?

Quando Rubião resolve ser o enfermeiro do filósofo, quando da sua doença, bem sabemos que o foi por interesse no legado. Mas quando o cão guarda seu dono com a dedicação de um enfermeiro, ficando ao seu lado dentro do quarto, ao pé da cama, sabemos que é por afinidade. Ou – por que não dizê-lo? – por amor. É este mesmo cão que acompanha Rubião até a morte.

Podemos ainda comparar os sentimentos do cão com os de Rubião, no que se refere ao interesse no legado. Quer dizer, o cão permanece ao lado do doente, dedicando-se a ele exclusivamente. Rubião, ao contrário, o faz por interesse e pela mesma razão resolve também conquistar o cão. Em seguida cuidou de amar o cão, tanto ou mais que o dono, caminho certo para entrar no coração do Quincas Borba (ASSIS, a:1977, p.11).

Quando o filósofo viaja para o Rio de Janeiro, à casa de Brás Cubas, o cão realmente sente a falta do dono. Rubião, ao contrário, não sente a ausência. Preocupa-se apenas com o que os conhecidos de Quincas Borba (o filósofo) poderiam pensar da pessoa dele. Afinal, o filósofo viajou para longe, apesar de estar muito doente. Vejamos o jogo de contrastes, desenhado pelo narrador, entre os sentimentos de Rubião e do cão na citação a seguir, que consta somente no folhetim.

Em casa, passadas muitas horas, é que lhe acudiu uma idéia terrifica. Podiam crer que elle próprio incitara o outro á viagem, para fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do legado, se é que realmente estava incluso no testamento. Rubião ficou aturdido um dia inteiro; tinha vergonha e remorsos. Via na imaginação o cadáver do Quincas Borba, pallido, horrendo, fitando nelle um olhar de ameaça, ou, mais exactamente, abrindo-lhe dous óculos para a eternidade, pelos quaes via o julgamento e o castigo. Rubião era temente a Deus, e acção pareceu-lhe tão immoral que elle resolveu, se acaso o fatal desfecho se desse em viagem, abrir mão do que o outro lhe tivesse deixado em testamento. Só assim pôde passar tranqüilo a segunda noite.

Quincas Borba (fallo agora do cão) é que não passou mais tranquillo que a primeira; não podia dormir socegado, levantava-se de quando em quando para ir ganir ao pé da cama do Rubião. Este tinha o somno pesado, e não ouvia nada. O cachorro gania, levantava as patas, gania mais, e voltava a dormir; mas dormia pouco e tornava á mesma lamuria. De manhã, Rubião chamava-o á cama, e o cão acudia alegre; imaginava talvez que era o próprio dono; via depois que não era, mas aceitava as caricias, e fazia-lhe outras, como se Rubião tivesse de levar as suas ao amigo, ou trazel-o para alli. Demais, havia-se-lhe affeiçoado também, e para elle era a única ponte que o ligava á existência anterior.

(ASSIS, a:1977, p.13).

Rubião pretende “abrir mão” do legado, caso o filósofo venha morrer na viagem, pois tinha vergonha e remorsos dos seus próprios sentimentos. Como dissemos, Rubião está preocupado com o que os conhecidos irão pensar. Ocorre que, como sabemos, Rubião não abre mão do legado, não rejeita o que lhe foi deixado em testamento e toma posse de tudo aquilo que lhe foi deixado, em sentimentos de pleno êxtase e entusiasmo. Mais um jogo de contrastes realizado pelo narrador. Aliás, Rubião, de acordo com o narrador do folhetim, cuidava do cão por três razões: 1— cumprir a palavra dada; 2— impedir a fuga do cão; 3— trazer algumas reformas testamentárias.

Certo é que o nosso homem cuidava delle como de um filho; não olvidou nenhum dos cuidados recommendados pelo dono. Nisto levava três fins: cumprir a palavra dada, impedir a fuga do cão, que seria dolorosa para o dono ausente, e podia trazer algumas reformas testamentárias, e finalmente conseguir da parte do cão tamanho affecto que o dono, quando voltasse, achasse nisso mesmo a melhor prova de que obedecêra em tudo. Mas voltaria elle? Eis ahi o ponto escuro.

(ASSIS, a:1977, p.13).

O narrador do folhetim não poupa a língua ao mostrar os verdadeiros motivos que levavam Rubião a cuidar do cão na ausência do filósofo. Temos, pois, uma personagem mais calculista do que aquela revelada no romance, pois uma vez que tem interesse em ter parte do legado, precisa, a todo custo, trabalhar para que seu sonho se concretize. Vimos que Rubião era um fracassado e que segundo o narrador do folhetim, tinha o dinheiro como sua única ambição.

Quincas Borba, o filósofo, refere-se ao outro Quincas Borba, o cão, como se fosse este gente e atribui ao cão sentimentos e atitudes qualificados como de humanos. O próprio Rubião atribuía sentimentos humanos ao cão, tais como saudades. Ás vezes dava-se no cão um phenomeno, que Rubião dizia serem saudades (ASSIS, a: 1977,p.13).

O egoísmo do ser humano é retratado na próxima citação, em oposição aos sentimentos do cão. Mais uma vez a voz está no narrador do folhetim.

Conheci uma andorinha que definia assim o telegrapho electrico.

É um fio de arame estendido sobre postes de madeira para uso exclusivo das andorinhas, quando ellas querem repousar um pouco.

Raciocínio de azas cansadas? Não. Sentimento de creatura, que subordina tudo aos seus sentimentos específicos. Digo isto para que vejam bem o que é o egoísmo da espécie. Tratamos de tudo o que se passou nos últimos mezes, menos deste cão, origem e clausula da herança do nosso heroe. Verdade é que a historia delle, durante esse prazo, é obscura, confusa, misturada de carinhos e pontapés. Rubião recommendava-o aos criados na Hospedaria, dava a estes alguma molhadura; mas a paciência dos creados tem um limite, e a dignidade humana não póde ajustar-se muito tempo ao serviço canino: dahi os pontapés.

Mas pontapé era o menos: o que elle mais sentia eram as ausências longas do Rubião; de noite, não dormia emquanto elle não voltava, para recebel-o, como nenhuma mulher amada recebe o seu noivo...

Agora, por exemplo, no jardim quando Rubião desceu e abriu-lhe a porta, que alegria! Que entusiasmo! Que saltos em volta do amo! Chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião dá-lhe um tabefe, que lhe doe; elle recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; porém o senhor, dá um estalinho com os dedos, e eil-o que volta novamente com a mesma alegria.

Socega! socega! Brada-lhe Rubião andando e pensando em outra cousa.

( ASSIS, a:1977, p.28).

É como uma andorinha, que acredita que o fio do telégrafo foi feito para suas asas cansadas, que as diversas personagens também agem: com egoísmo. Incapazes de olhar o outro, de se preocupar com outras gentes, vêem apenas seu único interesse. É esse egoísmo, que o narrador caracteriza de tipicamente humano. Rubião, interessado somente na fortuna do filósofo, verdadeiramente não se interessa pelo enfermo; Sofia e Palha, preocupados com a construção do palacete de Botafogo, esquecem a promessa que haviam feito a D. Fernanda: cuidar de Rubião; Carlos Maria, no folhetim, ignora o cão Quincas Borba, que foi visto por ele perdido na rua e quase esquece de avisar ao dono. Egoísmo humano que não é encontrado no cão, que doa-se em amor ao dono, mesmo após pontapés. De curta memória, os maus-tratos são esquecidos, guardando apenas os carinhos. Mas por que nosso autor teria retirado o texto acima quando reescreveu Quincas Borba? É preciso notar que ao falar das andorinhas e o fio do telégrafo, ele generaliza os sentimentos de egoísmo, atribuindo-os ao ser humano. Desta feita, estaria criticando até mesmo quem não pertence à aristocracia ou convive com ela, foco principal do romance.

Assim, as personagens de Quincas Borba, da capital, são incapazes de se preocupar com o outro. Desta feita, não estão incluídas neste raciocínio a comadre Angélica, por exemplo. Quando Rubião passa a ocupar a casa na rua do Príncipe nenhum amigo vai visitá-lo, nem mesmo aqueles que freqüentavam a casa de Botafogo, diariamente, no almoço ou no jantar e que faziam da casa de Rubião uma extensão da própria casa. Sem dinheiro, Rubião ficou também sem amigos e sentiu o gosto amargo da solidão e do abandono. As únicas companhias na nova casa eram um criado e o cão, Quincas Borba.

Temos, pois, duas situações contrastantes: uma quando Rubião ainda reside em Botafogo e a outra, quando é transferido para a nova residência. No primeiro caso nunca lhe faltava companhia, seja para o almoço ou o jantar. O narrador nunca descreveu um lugar vago à mesa da mansão de Botafogo. Todos freqüentavam sua casa mesmo sem serem convidados e com o passar do tempo, o que antes era um convite, tornou-se obrigação.

Devido aos compromissos de Rubião, teatros e diversos encontros sociais, muitas vezes ficava difícil para ele estar em casa no horário das refeições. Assim tomou a seguinte medida: os criados tinham ordem para servirem aos hóspedes, caso o anfitrião não estivesse presente. A residência de Rubião era, pois, um espaço comum, a communitas carnavalesca, como veremos, onde todos os presentes estavam na mesma linha de horizontalidade: os convidados, Rubião e o cão, que também comia à mesa, no colo de um deles. Com isso, a casa de Rubião torna-se uma extensão do espaço público. Quando o mineiro muda-se para a casa da rua do Príncipe, os freqüentadores sentiram falta da convivência, o que não era exatamente da convivência de Rubião, mas da casa, do agora, ex-capitalista.

Tudo na antiga habitação fazia parte delles, o jardim, a grade, os canteiros, os degraus de pedra, a sala, a enseada. Traziam tudo de cor; eram capazes de transpor o portão com os olhos fechados, e ir direitinhos, sem encontrões, sem desvio de uma linha, até á cadeira do costume, á mesa do jantar, e estender a mão ao vinho, á fructa, á compota, aos palitos. E não fallo da differença entre as duas habitações, posto ninguém ignore ser mais aprasivel entrar em casa grande que em casa pequena, — não só por dar mais na vista, como por elevar muito mais o próprio espírito e a consideração de si mesmo. Acrescente-se o sentimento de domínio espertado e fortalecido pelo costume de entrar alli todos os dias, sem bater, porque o portão vivia escancarado, e a porta da casa abria-se, dando volta á maçaneta. Era entrar, pendurar o chapéu, e ir esperar na sala. Tinha perdido a noção da cousa alheia e do obsequio recebido; tudo era de todos e de cada um.

(ASSIS, a: 1977, p.208).

Rubião notou que elles não o acompanharam á casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veiu, e a ausência encheu de tristeza o nosso amigo, — durante as primeiras semanas. Era a família que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.

(ASSIS, b:1977, p.309).

Vejam que a casa fazia parte dos freqüentadores. Não só a casa, o espaço externo dela (canteiros e jardim), mas também a própria natureza (a enseada). Freqüentar a casa de Rubião era um hábito e cada um também tinha um lugar na casa, que utilizava sempre, costumeiramente. O portão da casa de Rubião não possuía trinco e estava sempre aberto, bem como a porta, estabelecendo, então, uma comunicação permanente entre o público e o privado.

A casa de Rubião servia para que seus convidados esquecessem suas mazelas, num lugar onde todos estão na mesma linha de horizontalidade. Nos encontros na casa de Rubião não havia, pois, nem súdito e nem vencido e todos eram iguais, todos recebiam o mesmo tratamento. Como disse o narrador, freqüentar a casa de Rubião servia para elevar muito mais o próprio espírito e a consideração de si mesmo. É por isso que Rubião ficou sozinho quando mudou-se para a casa da rua do Príncipe, sem que ninguém fosse visitá-lo. Se freqüentavam a casa de Rubião num sentido catártico, para que esquecessem suas próprias mazelas e pobreza, haja vista a suntuosidade da casa de Botafogo, como freqüentar a nova casa, que lembrava a falta de dinheiro, a miséria, o abandono, a decadência ?

É bem verdade que os convidados do mineiro lhe sugaram até o último réis, pois continuavam freqüentando os almoços e jantares, mesmo quando estes não exibiam um menu suntuoso. Quando em delírio, Rubião enxergava no frango magro que estava sendo servido um saboroso faisão e nomeava cada conviva com uma alta patente. Assim, pois, cada um ocupava um alto posto no seu exército imaginário. E quem disse que eles não simpatizavam com a situação? Naqueles instantes cada um era, pois, um importante marechal, longe das próprias mazelas, numa ação carnavalesca, como veremos no próximo capítulo.

Notem bem que as atitudes dos amigos de Rubião revelaram que não sentiriam a ausência da convivência com o mineiro. Sentiriam falta de não mais freqüentarem a casa de Botafogo. Não sentiriam falta do dono da casa, mas de tudo o que o dono da casa podia proporcionar aos convidados. Lá estavam pela casa e não pelo dono. Vimos, pois, alguns dos trechos em que o cão é “humanizado” pelo narrador. Agora, veremos alguns episódios em que o homem é “desumanizado”, estabelecendo, então, a oposição entre o cão e as demais personagens.

Como já vimos, no folhetim, D. Fernanda, ao conversar com o Dr. Falcão, sobre a saúde de Rubião, oferece seus próprios recursos, caso o mineiro não disponha do dinheiro para o tratamento. Afinal, já sabemos que D. Fernanda (...) amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavam-se della muitos actos de piedade com gentes e com bichos (ASSIS, a:1977, p.151). Mas a mente humana, de acordo com o narrador, não acredita na benevolência alheia, não acredita que o ser humano é capaz de uma atitude caridosa. Por desconfiar da alma humana, o Dr. Falcão concluiu ter havido um envolvimento amoroso entre D. Fernanda e Rubião.

E d’ahi, quem sabe? Repetiu o Dr. Falcão na manhã seguinte. A noite não apagára a desconfiança do homem. E d’ahi quem sabe? Sim, não seria só sympathia mórbida. Sem conhecer Shakspeare, elle emendou Hamlet: “Ha entre o céo e a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã philanthropia”. Alli andou dedo de amor. E não chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era sceptico; mas, como era também discreto, não transmitu a ninguém a sua conclusão.

(ASSIS, a:1977, p.212).

Quer dizer, o Dr. Falcão conclui que houve um envolvimento amoroso entre os dois, deixando, com isso, de enxergar o ato caridoso de D. Fernanda. Segundo o narrador, o médico é discreto e por isso não conversou com ninguém sobre suas conclusões. Ou seja, o importante não é um determinado ato que foi praticado, mais sim como o outro percebeu a ação. Somos o que somos, não pelo que fazemos ou pensamos, mas pela maneira como o outro nos vê.

D. Fernanda, como pessoa caridosa que é, insiste, por mais de uma vez, que o Dr. Falcão auxilie Rubião, como médico, na tentativa de curar o ex-professor do seu delírio. O médico, embora acredite que a cura possa existir, adverte D. Fernanda sobre o desvelo que ela tem para com o mineiro, em virtude de ser mal interpretada por outras pessoas. D. Fernanda, por ser bondosa, acredita severamente que a maioria das pessoas também o é e em virtude disso, não se importa com a opinião alheia. Argumenta, inclusive, que a preocupação e o tratamento que ela dispensa ao doente é bastante compreensível, por se tratar de outro ser humano e que atitudes como as suas são bastante comuns.

O narrador já advertiu ao leitor que D. Fernanda está enganada. Afinal, todos os amigos de Rubião o abandonaram. E Palha e Sofia, que tantos favores deviam ao mineiro, acham ser uma “amolação” investir no tratamento do doente. Quer dizer, no momento em que Rubião mais precisa do auxílio dos amigos, até mesmo financeiramente, não pode contar com ninguém.

Mas na análise da linha melódica das oposições há também as identidades e esta pode ser feita entre o cão e D. Fernanda. Talvez na tentativa de não universalizar o egoísmo humano, o autor tenha construído D. Fernanda como uma exceção e talvez por isso mesmo seus sentimentos possam ser comparados e identificados com os de Quincas Borba, o cão. É claro que o narrador também não isenta totalmente a bela guasca, pois é ele mesmo quem diz que ela era esposa de deputado, quase ministro de província.

Quincas Borba apareceu. Magro, abatido, parou à porta da sala, estranhando as duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Ia a dar meia-volta ao corpo na direção do interior da casa, quando D. Fernanda fez uns estalinhos com os dedos; ele parou, agitando a cauda.

— Como é mesmo que se chama? perguntou D. Fernanda.

— Quincas Borba, respondeu o criado, rindo com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vai lá! a senhora está chamando.

— Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu D. Fernanda.

Quincas Borba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre. D. Fernanda inclinou-se, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vê-lo. Assim mesmo inclinada, interrogava o criado sobre o trato do cão.

— Agora come, sim, senhora; logo que meu amo foi embora, não queria comer nem beber; —eu até pensei que estivesse danado.

—Come bem?

—Come pouco.

—Procura pelo senhor?

—Parece que procura, respondeu Raimundo tapando o riso com a mão; mas eu tranquei ele no quarto, para não fugir. Já não chora; a princípio chorava muito, que até me acordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para ele sossegar...

D. Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o primeiro afago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro (grifos nossos). A simpatia universal, que era a alma desta senhora, esquecia toda a consideração humana diante daquela miséria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés dela (grifos nossos). Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie. E sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria privá-lo de benefício.

(ASSIS, b:1977, p.338).

Nesta citação, vemos a relação de D. Fernanda com o cão. Na verdade, um envolvimento misturado com o sentimento da piedade, em razão do estado de abandono do cão e do seu dono. O narrador revela, então, o sentimento de identificação da própria D.Fernanda com o cão e vice-versa, quando este descreve o olhar de ambas as personagens, numa metamorfose. (...) ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro. E neste gesto, D. Fernanda estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés dela. Quer dizer, naquele instante, somente D. Fernanda, que é uma exceção, era capaz de compreender os sentimentos do cão e extensivamente os do seu dono, pois (...) sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria privá-lo de benefício.

Sophia, longe de tais emoções, sentia-se desconfortável na casa da rua do Príncipe e estava ausente à atenção que D. Fernanda proporcionava ao animal, advertindo-a apenas sobre as pulgas de Quincas Borba. O criado, por sua vez, não cuidava do animal, dando-lhe banho, bem como outros tratamentos necessários. Limitava-se a oferecer comida para que Quincas Borba não morresse de fome. Trancava-o no quarto e lá o deixava dias após dias, sem nenhum carinho. Ou seja, o cão recebe na casa da rua do Príncipe o mesmo tratamento que é dispensado a Rubião na casa de saúde. Como o narrador descreve, foi D.Fernanda quem lhe ofereceu o primeiro afago depois de um longo período. Abandonado estava Rubião. Abandonado estava o cão.

Ainda na análise da “desumanização” do homem, vimos que somente o cão e o criado acompanharam Rubião à casa da rua do Príncipe. Vimos também que Rubião foi abandonado por todos os amigos e que nenhum deles foi visitá-lo na nova residência. Logo, percebemos que a relação das amizades está diretamente envolvida com o dinheiro.

No início deste capítulo, quando comparávamos as finanças de Rubião com as do major Siqueira e sua filha Tonica, pudemos verificar que pai e filha eram sempre convidados a freqüentar a casa dos Palha e que sempre estavam juntos nos mesmos festejos. A partir do momento em que Sofia ascendeu na escala social, subindo até o topo da pirâmide, deixou as antigas amizades, procurando um novo círculo de amigos. Ou seja, passou a desejar como amigos aquelas pessoas que faziam parte da elite aristocrática, sendo uma delas, D. Fernanda. Exatamente por isso, a senhora Palha incentivava tanto a amizade da prima com a mulher de Teófilo, em razão da posição social desta. Este trecho só pode ser encontrado no folhetim.

Sophia concordou que a prima tinha jus á affeição da amiga; e já agora poz algum calor na palavra, para não desmerecer de D. Fernanda, personagem alta, brevemente (quem sabe?) esposa de ministro. Egual cuidado animava o marido, que fallava ao deputado em matérias econômicas, — a pretexto de um discurso de Theophilo, na câmara, — “um discurso que o indicava para substituir o ministro da fazenda”.

( ASSIS, a:1977, p.201).

Traçamos até agora algumas análises sobre o que resolvemos designar de enunciação dos opostos, fazendo comparações das identidades e diferenças entre diversas personagens. Ou seja, sempre comparamos uma determinada personagem com outra, seja nas suas ações, seja no seu comportamento. Isto porque o narrador nos permitiu. Desenhamos linhas que comparam Rubião com Sofia; Rubião com o Freitas; Sofia com Carlos Maria; Carlos Maria com Freitas; Rubião com o cão; o cão com outras personagens; Sofia com o major Siqueira; Sofia com D. Tonica; D. Tonica com D. Fernanda; D. Fernanda com o dr. Falcão e outras duplas comparativas. Agora, acreditamos ser interessante fazer o mesmo trabalho comparativo com uma única personagem. Ou seja, identificar situações em contrastes da mesma personagem durante a leitura da trama. Quer dizer, podemos comparar, por exemplo, nosso mineiro com ele mesmo, antes e durante o delírio, no que diz respeito ao seu comportamento, bem como comparar Sofia, verificando suas atitudes quando ainda não enriquecera, por exemplo.

Iniciemos a comparação fazendo uma análise do comportamento de Sofia. Para tanto, escolhemos duas citações. A primeira delas, é a apresentação de Sofia ao leitor, pelo narrador, quando o casal Palha conhece Rubião na estação de ferro, vindo de Vassouras. Entre o folhetim e o romance há algumas variações neste capítulo e por isso optamos por citar aquele que consta no primeiro.

Foi na estação de Vassouras; foi ahi que Sophia entrou no trem de ferro, vindo daquella cidade, aonde fora passar uma semana. Vinha com o marido, Christiano de Almeida e Palha, — um rapagão de trinta e dous annos; ella não passara de vinte e sete. Pouca gente no carro; e toda ella carrancuda ou aborrecida. Rubião era o único rosto alegre e plácido. Tal foi o primeiro encontro. No fim de poucos minutos, Rubião e Christiano conversavam de varias cousas, lavoura, gado, estrada de ferro, que o Palha execrava, um pouco de política. Christiano foi o primeiro que rompeu o silencio; Rubião, que não desejava outra cousa, acompanhou-o fracamente, largamente, opinando isto, aquillo. Sophia, á esquerda do marido (Rubião ficava á direita), inclinava-se ás vezes para ouvir alguma coisa.

(ASSIS, a:1977, p.25).

Quer dizer, quando Sofia é apresentada ao leitor, ela não fala, não lhe é dada a voz e apenas ouve, por vezes, as conversas do mineiro e do marido, inclinando-se, num típico gesto de submissão.

Quando Rubião vai à casa do casal Palha pela primeira vez, Sophia desfaz-se em obséquios ao nosso mineiro, iniciando mostras das suas “virtudes”.

Lá usava a capa, embora tivesse os olhos descobertos; cá trazia á vista os olhos e o corpo, elegantemente apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos que eram bonitas, e um principio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, fallava mais, desfazia-se em obséquios(...).

(ASSIS, a:1977, p.27).

Na primeira aparição Sofia usa capa, escondendo-se do mundo. Em casa, surge reservadamente, mostrando mãos e um princípio de braço. Quando em casa, no seu espaço, está mais à vontade, mas ainda assim tem uma atitude de submissão, desfazendo-se em obséquios para com Rubião. A oposição no comportamento de Sofia é confirmada quando o major Siqueira conversa com Rubião sobre as atitudes da bela dama, após o enriquecimento.

Com os homens das velhas relações, fazia exactamente o que o major contara, quando elles a viam passar de carruagem, — que era sua, — entre parenthesis. A diffença é que já nem os espreitava para descobrir se a viam e se a invejavam. Passara a lua de mel da grandeza; agora torcia os olhos duramente para outro lado, conjurando, de um gesto definitivo o perigo de alguma hesitação. Punha assim os velhos amigos na obrigação de lhe não tirarem o chapéo. Como eram poucos, foi breve a empreza.

(ASSIS, a:1977, p. 171-172).

Quer dizer, Sofia é apresentada num plano crescente: 1-a jovem encolhida, na estrada de ferro, escondida sob uma capa; 2— a jovem dona de casa que se desfaz em obséquios; 3— a dama que levanta o queixo e desvia o olhar, a fim de ignorar os possíveis cumprimentos, quando desfila na sua carruagem; 4— a senhora Palha deslumbrante que ostenta jóias, braços e espáduas quando da inauguração do palacete de Botafogo.

Alguns pensamentos e sentimentos de Sofia também ocorrem em contraste. Por exemplo: Sofia deixava-se cortejar por Rubião, mas o narrador deixa bastante claro que a bela dama não o queria. Entretanto, apesar de não o querer, tinha em desagrado a idéia de que Rubião e Maria Benedita viessem a se casar, conforme planejava seu marido Cristiano Palha. Não o queria para si, mas também não queria vê-lo nos braços de outra mulher.

O comportamento de Rubião, quando em delírio, é oposto àquele de quando não encarna o imperador. Tal fato consta tanto no folhetim quanto no romance. Quando não está em delírio, Rubião é muito mais tímido, diferentemente de quando está Napoleão, quando é muito mais audacioso. Essa alteração no comportamento tem, pois, uma explicação: quando está em delírio Rubião é o imperador, tem a coroa e o poder. Logo, não há porque encolher-se e esconder-se na timidez.

A COMPAIXÃO DE SOFIA, — explicado o mal de Rubião pelo amor que ele lhe tinha,—era um sentimento médio, não simpatia pura nem egoísmo ferrenho, mas participando de ambos. Uma vez que evitasse alguma situação idêntica à do coupé, tudo ia bem. Nas horas em que Rubião estava lúcido, escutava-o e falava-lhe com interesse, — até porque a doença, dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais.

(grifos nossos) (ASSIS, b:1977, p.299).

Muitas são as situações que estão em oposição durante toda a obra. Isto, considerando os dois textos, o folhetim e o romance. É aquela história que nós já vimos: um oxímoro. Uma engenhosa aliança contraditória. Embora a citação a seguir, de Bakhtin, seja referente à obra de Dostoiésvski, podemos associá-la ao que denominamos enunciação dos opostos, haja vista tratar-se de uma das características da carnavalização, como veremos no capítulo a seguir.

Ora, desta maneira pode-se definir o próprio princípio da obra de Dostoievski. Tudo em seu mundo vive em plena fronteira com o seu contrário. O amor vive em plena fronteira com o ódio, conhece-o e compreende-o, enquanto o ódio vive na fronteira com o amor e também o compreende (...) A fé vive em plena fronteira com o ateísmo, fita-o e o compreende, enquanto o ateísmo vive na fronteira com a fé e a compreende. A altura e a nobreza vivem na fronteira com a decadência e a baixeza. O amor pela vida vive ao lado da sede de auto-destruição. A pureza e a castidade compreendem o vício e a sensualidade.

(BAKHTIN, 1981, p.153 –154).

Vale dizer que, em Quincas Borba, tanto as personagens quanto suas ações estão sempre em posições opostas: o enriquecimento e a ascensão de Sofia com a pobreza e a decadência de Rubião; a beleza de Carlos Maria com a insipidez de Maria Benedita; a aversão de Carlos Maria a amores e o desejo de Sofia em amar; a pobreza de Freitas e a riqueza de Rubião, entre muitos outros.

Vejamos, pois, mais um exemplo daquilo que estamos tentando explicar. Com relação a Rubião e Quincas Borba: a morte do filósofo gera o ganho do legado por parte de Rubião. Quer dizer, somente com a morte do filósofo é que há o enriquecimento de Rubião. Assim também o foi com o próprio Quincas Borba. Ou seja, com a morte do seu único parente é que o filósofo enriqueceu. Foi também com a morte da irmã de Rubião, Maria da Conceição (no folhetim) ou Maria da Piedade (no romance) e que poderia ter casado com ele, que o filósofo ficou sem herdeiro. Rubião pretendia casar os dois, a fim de uma esperança pecuniária, como cunhado do filósofo. É como diz o próprio Rubião: Se tenho casado a mana Marica com o Quincas Borba, apenas alcançaria uma esperança collateral. Não os casei; ambos morreram e aqui está tudo commigo; de modo que o que parecia uma desgraça... (ASSIS, a:1977, p.22).

Na edição do folhetim, temos inclusive, mais uma relação de oposição no que se refere à doença do filósofo:

O doente respondeu que o médico era um charlatão e que a moléstia precisa de espairecer, tal qual a saúde. Moléstia e saúde eram irmãs gêmeas: a differença é que uma era magra e pallida, a outra corada e robusta. E posto que elle dissesse isto com voz ainda fraca, parecia realmente melhor (grifos nossos).

(ASSIS, b:1977, p.11).

Se fosse comprovada a loucura do filósofo, Rubião perderia a fortuna, pois o testamento poderia ser cancelado. Assim, confrontamos a sanidade com a loucura. Quanto à filosofia do humanitismo, também há a composição em opostos. Mas na edição do folhetim, há pouca explicação sobre isto. A edição se atém apenas à questão da vida e da morte e nada é citado sobre a sobrevivência, sobre os fracos e os fortes e sobre a metáfora canibalesca, o homem lobo do homem, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho.

Rigorosamente não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra (...) A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação(...) Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas(...) E todavia, esse suposto mal é um benefício. Temos, pois, duas tribos e o extermínio de uma é a sobrevivência da outra(...).

(ASSIS, b:1977, p.114).

Assim, temos: morte x vida; supressão x sobrevivência; destruição x benefício; paz x destruição; guerra x conservação; vencido x vencedor; ódio x compaixão; mal x benefício. São opostos que se atraem, pois convivem uns com os outros durante toda a narrativa de Quincas Borba.

Outra questão que merece análise é o fato de o filósofo deixar para Rubião tamanha fortuna. Certo é que Quincas Borba não tinha parentes ou amigos. Afinal, como vimos, principalmente no folhetim, Rubião tratou de “arredar a todos”. Mas o filósofo sabia muito bem que Rubião não tinha condições de gerir a herança. Rubião bem que tentou administrar algumas empresas, que faliram. Logo, era professor porque não encontrou outra alternativa e não o era por vocação e sim “para comer alguma coisa e morrer em alguma parte”. Quer dizer, Rubião é a cobaia perfeita para a comprovação da filosofia do humanitismo. Afinal, como dizia o próprio Quincas Borba, Rubião era um ignaro. Não seria, então, uma contradição deixar tanto dinheiro e bens para um ignorante? Ou seja, temos também a oposição entre a loucura e a razão, pois tal atitude, aparentemente, não é racional. É bem verdade que estamos falando daquilo que seria considerado razão de um ponto de vista. Pois do ponto de vista do filósofo tal atitude é totalmente racional, a partir do momento que serve para comprovar sua filosofia.

Os pensamentos de Rubião, quando da abertura do testamento, quando ele acredita ter entendido a filosofia do humanitismo e sonha em ir para a capital, também são compostos de antíteses. Este trecho, entretanto, não consta nas páginas do folhetim.

Gostava da fórmula, achava-a engenhosa, compediosa e eloqüente, além de verdadeira e profunda. Ideou as batatas em suas várias formas, classificou-as pelo sabor, pelo aspecto, pelo poder nutritivo, fartou-se de antemão do banquete da vida. Era tempo de acabar com as raízes pobres e secas, que apenas enganavam o estômago, triste comida de longos anos; agora o farto, o sólido, o perpétuo, comer até morrer, e morrer em colchas de seda, que é melhor que trapos(...).

(ASSIS, b:1977, p.126).

Temos as seguintes antíteses: fartar-se de antemão (fartar-se de comida antes de comer); raízes pobres e secas x farto e sólido; colchas de seda x trapos. As antíteses representam, pois, a teoria da carnavalização, de Mikhail Bakhtin, na qual há o desejo de esquecer a própria vida e viver uma outra, diferente. Este foi, pois, um dos grandes erros de Rubião. Vemos, na citação acima, o exagero que conduz ao grotesco. O narrador utiliza a metáfora das batatas para representar o desejo do mineiro de se empanturrar de tudo aquilo que ele pode comprar, haja vista a fortuna herdada ser infinita, segundo suas concepções. Este é, pois, seu segundo erro. Outra falha do ex-professor era acreditar que, com dinheiro no bolso e numa nova cidade, ele conseguiria esquecer sua origem e viver uma nova vida sem suas próprias amarras e fantasmas. No Carnaval, como veremos a seguir, travestimo-nos de outra personagem, mas somente durante os festejos. Se assumimos a fantasia em definitivo, temos nossa própria negação. Foi isso que fez Rubião. Assumiu o imperador e negou-se a si mesmo.

Com relação à nossa Sofia, por que não lembrar a metáfora dos olhos? Maior contradição é impossível:

Para as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos compara-los à lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes.

(ASSIS, b:1977, p.144).

Quando a lanterna da “hospedaria” está acesa, ao que sabemos, é um convite. Logo, há quartos disponíveis. De que serve o convite? De que serve a luz acesa, se não há quartos?

Quando a fortuna de Rubião ainda não havia esgotado completamente, antes da sua mudança para a rua do Príncipe, ele ainda recebe amigos para almoços e jantares. Mas aí ele já tem seus momentos de delírio. Delírio que era, na verdade, tentativa de fuga da realidade. Afinal, naquele momento, Rubião deixa de enxergar sua pobreza, para ainda ver o capitalista. O contraste está na vida que Rubião vivia naquela ocasião e naquela que ele pensava que vivia, em seus momentos de imperador.

Durante a análise deste capítulo vimos que o narrador sempre colocou suas personagens em situação de contraste e que assim também foram as diversas situações por ele apresentadas. É evidente, que as oposições não são aleatórias e que todas têm um objetivo: a caracterização das personagens, que é feita não apenas pela voz do narrador, mas também por suas ações e como diz o narrador do folhetim, pela conclusão do leitor, que também colabora com o livro. Dessa forma as personagens são confrontadas umas com outras, direcionadamente pelo narrador, numa visão dialógica. Ou seja, o leitor tem uma visão geral de toda a situação e vai tecendo a teia da sua análise.

Muitos são os exemplos e as associações que ainda poderíamos fazer durante esta análise. E muitas mais ainda serão as análises que poderemos realizar a partir de uma nova leitura. É que quando relemos um livro, temos, pois um outro livro. E aí não estamos falando do enredo, mas das diferentes interpretações que podemos fazer. Essas diferentes leituras ocorrem, pois, a partir das experiências do leitor, de outras obras lidas, das suas novas concepções, interpretações e leituras da vida. Ou seja, uma análise nunca pode ser finalizada, mas apenas interrompida. A primeira vez que eu li Quincas Borba eu tinha apenas dez anos de idade e foi paixão à primeira leitura. Logicamente, naquela época eu fiz análises diferenciadas daquelas que faço hoje. E isto o próprio Machado, na voz do narrador, nas ações das suas personagens, sabia muito bem. Senão, vejamos a cena em que o major Siqueira relê Saint-Clair das Ilhas ou Desterrados da Ilha da Barra, livro de origem inglesa, muito lido durante o século XIX. Ou seja, ninguém lê o mesmo livro duas vezes.

LOGO QUE RUBIÃO dobrou a esquina da Rua das Mangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pai, que se estendera no canapé, para reler o velho Saint-Clair das Ilhas ou os Desterrados da ilha da Barra. Foi o primeiro romance que conheceu; o exemplar tinha mais de vinte anos; era toda a biblioteca do pai e da filha. Siqueira abriu o primeiro volume, e deitou os olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cor. Achava-lhe agora um sabor particular, por motivo dos seus recentes desgostos.

(ASSIS, b:1977, p.273).

O major Siqueira tinha o exemplar há vinte anos, que constituía toda sua biblioteca. Com isso, o narrador quer mostrar que ele sempre corre os olhos pelas mesmas letras, mas não lê o mesmo livro. Desta feita, apesar de conhecer os capítulos de memória, ainda assim consegue ter prazer com a leitura e descobrir um sentimento diferente, uma nova percepção. Assim para mim é Quincas Borba: a cada leitura uma nova descoberta, uma nova viagem na mesma estrada de ferro. Uma viagem infinita nos delírios de Rubião.

 

CAPÍTULO IV — A CARNAVALIZAÇÃO

O Carnaval é uma festa sincrética popular, cujo tema central é a vitória da vida sobre a morte, numa imagem biunívoca de morte-ressurreição. Ou seja, no Carnaval, a morte é semente da vida. É a morte sempre prenhe de um novo nascimento. As principais idéias do Carnaval são a liberdade e a felicidade, num mundo sem barreiras, sem hierarquias sociais, raciais, sexuais, etárias ou de qualquer outro tipo. Vale dizer, no Carnaval, temos a igualdade, pois durante os festejos carnavalescos todos os participantes estão na mesma linha da horizontalidade, vivendo na praça pública carnavalesca. É o que Bakhtin denomina de mésalliance.

O Carnaval tem suas próprias leis, que diferem das nossas leis cotidianas, numa inversão total do estado das coisas e do mundo, determinando-o, assim, enquanto espetáculo. Mas, ainda de acordo com Bakhtin, este festejo não é uma forma artística de espetáculo teatral, mas sim uma maneira de representar a própria vida em sua plenitude, em que os participantes se esquecem das mazelas cotidianas. É, pois, a segunda vida do povo, organizada sobre os princípios do riso.

Mas este riso carnavalesco não tem uma relação somente com o que é engraçado. É também um riso crítico, que é proveniente de um olhar crítico, de um olhar, muitas vezes, de protesto. Mas, protesto em relação a que ou a quem? Olhar que critica o quê? E como a crítica e o protesto podem estar relacionados ao riso carnavalesco? Este olhar carnavalesco provém de um grupo, de uma classe que, utilizando-se do riso, contesta uma norma, uma imposição, um comportamento social dominante, do qual discorda. É um olhar ascendente, que critica quem está no topo de uma determinada pirâmide social. E nessa crítica vale utilizar-se das máscaras, das indumentárias caricatas, muitas vezes exageradas, do travestimento e principalmente da alegria. Sim, pois é a alegria quem governa o Carnaval.

Vale explicar que não estamos nos referindo à festa na Sapucaí, onde reinam luxo e ostentação, onde é importante competir e a parcela excluída da população não tem voz. Na Sapucaí, quem ganha o prêmio é quem não perdeu o compasso do samba e quem passou pela avenida de maneira mais alinhada e ordenadamente. O carnaval do Sambódromo não é um carnaval de protesto, mas sim uma festa de homenagens. E o pior, na maioria das vezes, uma homenagem à elite social, que é um dos financiadores do evento. Não! Esse não é o carnaval ao qual Bakhtin se refere. O Carnaval, segundo sua teoria, é um movimento popular de efeito catártico, onde não há excluídos. Assim, a partir da teoria de Mikhail Bakhtin, vamos neste capítulo, analisar os aspectos carnavalescos existentes em Quincas Borba, tanto no romance quanto no folhetim.

4.1. — O Título

Quando Machado de Assis escolhe por título da sua obra Quincas Borba, o escritor traz à tona a dúvida se quem dá nome à sua história é o cão ou o filósofo. O próprio narrador, tanto do romance como do folhetim, em sua última conversa com o leitor, quando conta sobre a morte do cão, diz o seguinte: (...) é provável que me perguntes se elle ou se o seu defuncto homonymo é que dá título ao livro, e porque antes um que outro, — questão prenhe de questões que nos levariam longe... (ASSIS, b: 1977, p.346).

Temos aí, pois, a possibilidade de as duas personagens, o cão e o filósofo, terem sido objeto da escolha do título da obra. Mas a possibilidade de uma resposta, a fim de que a dúvida possa ser dirimida, está lá no folhetim, ainda no primeiro capítulo, cujo texto foi alterado no romance.

Aqui, toda a gente que me fez o favor de ler as Memórias Posthumas de Braz Cubas, lembra-se, — póde ser que se lembre – de que apparece alli, em tres ou quatro capítulos, um tal Quincas Borba, e pergunta e cuida naturalmente que é o mesmo.

Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memórias; basta saber que é o mesmo, e que vae morrer, como disse o medico. Póde ir, que não precisamos delle. Que fosse creança graciosa, mendigo algum tempo, herdeiro inopinado e inventor de uma philosophia, não temos nada com isso. Quando muito, é bom saber (e aqui lh’o digo) que alguns annos antes, um medico suppôz que este Quincas Borba tinha um grãosinho de sandice, cousa de nada (está no cap. CLIII das Memórias) , é bom sabel-o para explicar algumas disposições testamentárias do homem, que vae morrer d’aqui a pouco.

Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem, e não pelo homem, senão pelo cão (grifos nossos), por este mesmo cão que o amigo enfermeiro acarinha, explicando-lhe que quando fallou em Quincas Borba não se referia a elle, mas ao senhor. O que quer dizer, em duas palavras, que o nome era commum ao cachorro e ao dono.

(ASSIS, a:1977, p.08).

É possível que, realmente, o título do livro seja referente ao cão e não ao homem, pois como diz o narrador do folhetim, só foi preciso utilizar o nome do filósofo (não por ele, mas sim pelo cão). Esta decisão já constitui-se, pois, numa das características da carnavalização: a inversão e o destronamento. Ou seja, o autor privilegia o cão, em detrimento do filósofo, colocando o cão num patamar elevado e conduzindo seu dono à base da pirâmide, se consideramos a inversão. O importante, segundo o narrador, não é o filósofo, mas o cão. Aliás, já nos é revelado, ainda no primeiro capítulo, que ele irá morrer e que sua presença é desnecessária. Ou seja, o homem, nesse caso, não é importante e talvez tenhamos vida longa ao cão.

Quanto ao destronamento, temos alguns aspectos: a filosofia do humanitismo sai do discurso humano e emudece no mutismo verbal do cão. Quincas Borba (o primeiro) é um filósofo, cidadão de notório saber, estudioso do homem e da natureza, que utiliza a razão em seus entendimentos. Já o cão, por sua vez, é um animal irracional, incapaz de se expressar numa linguagem articulada. Quando o nome do cão for pronunciado, o homem será lembrado, mas não sua filosofia, já que o cão será incapaz de expressá-la.

Também podemos considerar que o título, tanto no romance como no folhetim, privilegia ambas as personagens (o cão e o filósofo), se observarmos o último capítulo das duas edições, que retrata a morte do cão: “e porque antes um que outro”.

Outra perspectiva que também não pode ser descartada é a de que o título do livro refere-se ao homem, o que justificaria, mais uma vez, a própria filosofia do humanitismo, criada pelo filósofo Quincas Borba, que tem consciência da morte em breve. Assim, como uma forma de driblá-la, atribuiu seu nome ao cão. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro(...) (ASSIS, b:1977, p.110-111).

Há, entre o filósofo e o cão, a relação de vida e de morte. Ou melhor, uma continuação da vida. Ou seja, se o filósofo morre, passa a “sobreviver” no cão, numa relação simbólica de morte-ressurreição, num processo de renovação. Digo ressurreição porque o objetivo do filósofo é vencer a morte, dando continuidade à sua vida em seu cão, numa perpetuação. Afinal, o Carnaval, de acordo com Bakhtin, simboliza o nascimento, a morte, o renascimento, num processo de eterna renovação. Vale dizer, a vitória da vida sobre a morte.

 Ou seja, o filósofo, utilizando seu cão, consegue driblar a morte física, ressuscitando, simbolicamente, nessa transmigração. Assim, quando o nome do cão for pronunciado, estará sendo pronunciado também o nome do filósofo, que continuará existindo na lembrança daqueles que o conheceram ou apenas ouviram falar dele, através da referência feita ao cão.

Temos aí, então, a discussão sobre o que é real e o que é imaginário. Ou seja, se o filósofo morre, tem-se a sua morte física, que é um fato biológico indiscutível, com direito a certidão de óbito e testamento. Mas se o filósofo permanece vivo no imaginário das demais personagens, simbolicamente há a vida. E vivo estará o filósofo para quem acreditar na sua filosofia. Vivo estará o filósofo para quem acreditar que ele sobrevive no seu cão. Mas se o cão morre, então o filósofo morrerá também, não é? Não! O filósofo não morre definitivamente com a morte do cão, pois segundo o princípio de humanitas, não há morte, há vida. Uma vida pode ser suprimida, como é o caso dele e futuramente do seu cão, mas este fato irá repercutir em outra vida, num processo contínuo de eterna renovação. Assim, vale dizer que se o filósofo morre, passa a sobreviver no cão, ou no próprio Rubião, já que é o mineiro quem herda sua fortuna. Se Rubião morre, passa a sobreviver no casal Palha, que é quem recebe parte da fortuna de Rubião, e assim por diante, num ciclo eterno, numa roda incessante.

Mas no momento em que o narrador insere a questão da “vida e morte”, o filósofo e o cão são colocados num mesmo nível, no mesmo plano da horizontalidade, já que um se torna extensão do outro, numa “sugestão” de metamorfose de ambas as personagens. Aliás, o narrador do folhetim já determina essa igualdade no primeiro parágrafo, quando ainda está apresentando a obra ao leitor. Na citação abaixo, temos as primeiras letras que dançam nas folhas de papel.

—Então, Doutor, como vou?

—Vae bem. Estas moléstias são demoradas, mas o senhor vae bem. Tomou o remédio?

—Tomei.

—Ás horas marcadas?

—Creio que sim. Não foi, Rubião?

Rubião, que estava familiarmente sentado na cama, confirmou a resposta. Havia alli ainda outra creatura, (grifos nossos) deitada no chão, com a cabeça levantada, olhando para o medico, interrogativo: era um cão, o cão do doente, que mal sahia do quarto, desde longas semanas.

(ASSIS, a: 1977, p.07).

Notem bem que o cão não está apenas em igualdade com seu dono, mas também com o Rubião e com o médico. O narrador apresenta, neste pequeno trecho, quatro personagens, ou criaturas, como ele mesmo as qualifica, sendo o cão uma delas.

A idéia da metamorfose é explorada durante toda a trama. São diversas as cenas em que o mineiro acredita que a alma do filósofo passou a existir no cão. Aliás, após a morte do filósofo, Rubião passou a ver no cão o mesmo olhar meditativo do seu dono. No folhetim, inclusive, Rubião tem em sua sala um painel onde constam as fotos dos dois Quincas Borba, numa idéia clara de metamorfose e de horizontalidade, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho.

Com relação à metamorfose, o narrador não introduz apenas a questão do riso, mas também a do grotesco. Sim, porque além de colocar o filósofo e o cão num mesmo nível, ele torna um a extensão do outro, “metamorfoseando” ambas as personagens. Isto é, quando da morte do primeiro, o segundo, de acordo com os olhares de Rubião, adquire as características da personagem, num híbrido carnavalesco. Aliás, segundo Bakhtin, a imagem grotesca do corpo caracteriza um fenômeno de metamorfose:

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. Seu segundo traço indispensável, que decorre do primeiro, é a sua ambivalência: os dois pólos da mudança — o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressados (ou esboçados) em uma outra forma.

(BAKHTIN,1987, p.309).

O cão, por sua vez, não é apenas uma extensão do filósofo, mas também de Rubião. Lembremos a cena em que D. Fernanda e Sofia vão à casa da rua do Príncipe buscar o cão para entregá-lo ao mineiro, que por sua vez está internado numa clínica para tratamento da sua loucura. Podemos, nesta cena, verificar no cão a expressão do abandono e da tristeza, tal qual ocorre com Rubião. E quando D. Fernanda o afaga é como se o fizesse ao próprio dono: A pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie (ASSIS, b: 1977, p.339).

Aliás, vale a pena lembrar que o cão está sempre na mesma linha de horizontalidade que seu dono. Isso tanto ocorre em Barbacena, quando o filósofo ainda está vivo, como na capital, quando o cão está junto com Rubião. Vemos, assim, que o declínio do cão acontece simultaneamente à pobreza de Rubião. Quando Rubião morre, o cão também morre, abandonado nas ruas, num abandono idêntico ao do seu dono.

O filósofo já está morto quando tem início o romance ou como adianta o narrador do folhetim, ele irá morrer em breve. Mas como vimos, a presença do filósofo, durante todo o desenrolar da história, é constante: seja pelo nome (como diz o narrador do folhetim); seja pela associação que faz Rubião em relação ao cão, no que tange à metamorfose; seja pela lembrança com relação ao legado; seja pela filosofia do humanitismo. Ou seja, é a morte que dá início à trama e é a morte que a encerra, bem como é também a vida que decorre dessa morte que dá início e finaliza a trama.

4.2. — A Roda bakhitiniana

Ao pensarmos no objeto roda, como uma circunferência, poderíamos imaginar que Bakhtin caracteriza a RODA, no fenômeno carnavalesco, como um ângulo de trezentos e sessenta graus da vida. Ou seja, apesar do decorrer do tempo, tudo retorna ao início, para mais uma vez começar, para que haja continuidade e reinicie infinitamente. É claro que é isso, mas não apenas isso, pois tal definição poderia recair na sensação do imobilismo. É preciso pensar a questão da roda numa relação com a vida, morte e renascimento. Afinal, como já falamos, a tentativa de “driblar a morte” está estreitamente ligada à visão carnavalesca bakhtiniana. A roda para Bakhtin assume a característica da eterna formação, num ciclo inacabado. O próprio narrador de Quincas Borba admite a idéia da RODA, sem necessariamente expor a teoria, quando diz: (...) mas a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos (grifos nossos) (ASSIS, b:1977, p. 336).

Pensemos, pois, na questão da herança, peça-chave para o desenvolvimento de toda a trama. O filósofo herdou a fortuna do seu único parente e deixou tudo o que adquiriu, por conta da sua morte, para Rubião, seu herdeiro universal ou ainda para seu cão, por que não? Rubião, por sua vez, repassou todo o dinheiro para diversos conhecidos, ao longo de alguns poucos anos, sendo o principal deles Cristiano Palha.

Rubião concedeu empréstimos a vários amigos, sem nunca ninguém ter lhe devolvido qualquer quantia; aplicou dinheiro em diversos negócios, sem futuro, na tentativa de ajudar tantos outros conhecidos; fez donativos a alguns necessitados; comprou presentes caros para Sofia, entre muitas outras “aplicações”. Isto quer dizer que a fortuna do filósofo, herdada de um parente, foi distribuída, através de Rubião, incansavelmente pela capital do Rio de Janeiro.

Rubião se torna um capitalista, como afirma o narrador do romance ou é um proprietário, como no folhetim. Mas não se trata de comparar terra com terra; trata-se de saltar do professor ao proprietário (ASSIS, a:1977, p.22,). Aí é interessante observar estes dois conceitos, que serão muito importantes quando da análise do item sobre destronamento. Capitalista está ligado diretamente com capital, ou seja, dinheiro e conseqüentemente ao lucro. Vale a pena lembrar, entretanto, que “capitalista”, a rigor, corresponderia hoje a “agiota”, sem as conotações negativas que lhe estão associadas. Ou seja, “capitalista” é o predecessor dos bancos, é quem vive de vender dinheiro. Está ligado à noção de “lucro”, “interesse”, ou seja, tudo o que Rubião não é, nem pensa em ser...

Se Rubião não é de fato capitalista, por que Machado teria feito a alteração, que originalmente no folhetim, correspondia a proprietário. Bem, Rubião pode não ser capitalista por esforço próprio, mas vive como tal, por conta de Cristiano Palha, seu sócio, que tentou orientá-lo nos meandros do lucro e do investimento. Rubião não é capitalista, mas vive da fama que o dinheiro pode proporcionar.

 Como capitalista o mineiro tem seu nome estampado nas páginas dos jornais; recebe convites sociais; convites de políticos influentes e recebe o “paparico” de todos aqueles que estão a sua volta. Sobre ele fazem, inclusive, uma lenda. Como capitalista Rubião vive exclusivamente do dinheiro e do poder por ele proporcionado. Como capitalista Rubião faz aplicações, investe em diversos negócios, empresta dinheiro a juros, compra imóveis para alugar, investe em ações e se torna sócio de diversas empresas em diferentes ramos, tais como o empreendimento Palha & Comp., o jornal Atalaia e tantas outras.

Proprietário assume um outro aspecto. Afinal de contas, d.Tonica e seu pai, apesar de pobres também são proprietários, bem como o são a comadre Angélica, o Freitas e sua mãe. Ou seja, possuir alguma terra na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, junto à aristocracia, sociedade em que Rubião passou a viver depois de tomar posse da sua herança, não era sinônimo de poder ou mesmo de dinheiro. Como sabemos, muitos dos seus negócios poderiam ter prosperado, haja vista a administração e orientação de Cristiano Palha em muitos dos investimentos. Ocorre que Rubião não seguiu os conselhos dados por Palha e, por isso, acabou perdendo tudo.

Mas voltemos à questão da roda bakhitiniana. A fortuna de Rubião provém do amigo, o filósofo Quincas Borba, que por sua vez a herdou de um tio. Era a única esperança pecuniária de Rubião, que antes da riqueza era derrotado e falido. Rubião, após tomar posse do que era seu de direito, em razão da abertura do testamento, vai para o Rio de Janeiro e aplica todo o dinheiro em negócios mal sucedidos, esbanja o capital em almoços e jantares com amigos, jóias valiosas para a mulher por quem ele é apaixonado. Utiliza todo o capital de forma desregrada, perdendo todo o dinheiro e retornando à miséria. Não à sua miséria, porque ele tinha uma vida simples, mas sobrevivia com recursos próprios. Rubião encerra sua história como mendigo, “náufrago da existência”, tal qual o amigo Quincas Borba, quando surge em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mais do que isso, Rubião finaliza sua história exatamente onde ela começou, na sua cidade natal, em Barbacena. Mas, meu caro amigo, você pode então afirmar: mas o filósofo, ao contrário de Rubião, morreu rico. Afinal, não foi o filósofo quem lhe deixou o legado? Então, como completar este raciocínio? Ou seja, o filósofo morreu rico e Rubião, pobre. Onde está a roda?

A roda é uma continuidade que se reinicia infinitamente. Logo, a riqueza de Rubião carece de ser repassada a outra personagem, a fim de que haja a perpetuação do ciclo. O legado de Rubião, em tese, passou a outras mãos: Cristiano Palha, que assume, tanto no romance como no folhetim, a posição de Rubião na sociedade. Palha não assume somente a posição financeira do ex-professor, mas também sua posição social, cujo auge ocorre quando da inauguração do palacete de Botafogo, na presença de toda a aristocracia.

Outro ponto que devemos considerar é a questão do destronamento, próximo item a ser explorado. Ou seja, em Quincas Borba, o rei a perder a coroa em praça pública, na praça carnavalesca, não é o filósofo, mas sim nosso Rubião. O filósofo, ao contrário, apesar de ser motivo de riso (pois o narrador sempre mostra – ao leitor – a questão da loucura quando se refere à personagem) não foi destronado. Mas aí, você pode questionar também: quando falava sobre o item anterior (o título) você não disse que o filósofo foi destronado, quando a filosofia do humanitismo sai do discurso humano e emudece no mutismo verbal do cão? É, realmente eu disse isso. Mas ali o destronamento assume um outro aspecto. O filósofo é destronado pelo narrador diante do leitor e a loucura do filósofo não é questionada por outras personagens. Houve um questionamento superficial quanto à sandice de Quincas Borba por personagens que nem mesmo são nomeadas pelo narrador. Personagens estas que estariam interessadas na fortuna do morto, inconformadas com o fato de Rubião ser o único herdeiro. Questionamento que não foi adiante! Nesse ponto, estamos ainda em Barbacena, quando nada se conseguiu provar quanto à loucura do morto.

Já na capital, muito ao contrário, o filósofo morre com a indicação pública de notório saber. O fato é, inclusive, publicado pela imprensa do Rio de Janeiro, confirmando publicamente que Quincas Borba era são. Isso valia mais do que um atestado médico. Como iriam os moradores da pequena Barbacena contestar a imprensa da Corte. A citação a seguir consta tanto no romance quanto no folhetim.

NO COMEÇO da semana seguinte, recebendo os jornais da corte (ainda assinaturas do Quincas Borba) leu Rubião esta notícia em um deles:

“Faleceu ontem o Senhor Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena”.

(ASSIS,b:1977, p.120).

De acordo com a publicação, Quincas Borba era um homem de muito saber, que delirou apenas nos seus últimos momentos de agonia, em razão da doença do corpo e não da mente, que suportou até o momento da morte.

Mas a questão da RODA também deve ser analisada com relação ao casal Palha. Quando Palha e Sofia aparecem pela primeira vez, num vagão de trem, na estação de Vassouras, bem vemos que se trata de um casal simples, que sonha com a ascensão social e com os benefícios que o dinheiro pode comprar. Daí o grande interesse de Palha em se tornar o grande amigo de Rubião, objetivando servir-se dele: da sua fortuna, dos seus amigos, da sua roda social e de tudo aquilo que o mineiro poderia lhe proporcionar na cidade. O casal reside, inicialmente, em Santa Teresa, passando ao Flamengo e tendo o auge social no palacete de Botafogo. Os próprios amigos do casal, no início, não pertencem à aristocracia. E, para fazer parte da alta roda social, Sofia e Palha não titubeiam em afastar de si os antigos amigos, de poucos recursos, que revelariam sua origem e sua condição social. Vejamos a citação abaixo, que também consta nas duas edições:

Foi assim que a nossa amiga, pouco a pouco, espanou a atmosfera. Cortou as relações antigas, familiares, algumas tão íntimas que dificilmente se poderiam dissolver; mas a arte de receber sem calor, ouvir sem interesse e despedir-se sem pesar, não era das suas menores prendas; e uma por uma, se foram indo as pobres criaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de pagodes caseiros, de hábitos singelos e sem elevação.

(ASSIS, b:1977, p. 279).

Os amigos de situação financeira modesta foram substituídos pelos pertencentes à aristocracia, tal como D. Fernanda, mulher do deputado, presidente de província, quase ministro, freqüentadora da alta roda e que muitas portas poderia abrir para Sofia.

Dinheiro e inserção social. Notem que o casal Palha vai enriquecendo na mesma proporção que Rubião empobrece. Quando o mineiro atinge o auge da miséria, quando o ex-professor não tem mais nada e dorme nas escadarias da igreja em Barbacena, o casal Palha realiza a festa de inauguração da sua mansão, que não é mera coincidência, mas é exatamente em Botafogo. Ora, como sabemos, é em Botafogo a bela residência de Rubião, em decorrência da herança, cuja enseada ele observa da janela, estendendo também o mar, o céu e a terra na mesma sensação de propriedade. Temos, pois, nesse episódio, uma grande gangorra simbólica. Na mesma noite em que Sofia inaugura seus salões em Botafogo, com um baile majestoso, ao qual compareceu toda a aristocracia, Rubião perambula solitário pelas ruas de Barbacena, sem destino, sem esperança de pouso e de comida sob a chuva forte que caía (...) (ASSIS, b:1977, p.343). Ou seja, enquanto Rubião dorme sobre as escadas da igreja de Barbacena (da mesma maneira que dormiu Quincas Borba, o filósofo, nas escadarias da Igreja de São Francisco, no Rio de Janeiro, no auge da pobreza) e vê nas estrelas os lustres de um grande salão, Sofia inaugura os salões de Botafogo com o grande baile que foi o mais célebre do tempo e tem verdadeiros lustres sobre sua cabeça, que fazem reluzir suas jóias, uma delas, inclusive, ainda presente de Rubião. Quer dizer, temos aí, no encontro dessas duas cenas, simbolicamente, a coroação da imperatriz e o destronamento do imperador. E a jóia que Sofia carrega no momento da sua coroação (presente de Rubião), representa a transferência do trono e do reinado. De acordo com Bakhtin, o movimento da roda constitui-se, pois, num movimento de subida e de quedas, onde contrastam o alto e o baixo numa troca permanente de posição, numa permuta incessante. Assim, nessa roda, Rubião perde o trono e Sofia assume o reinado.

O sistema de movimento desse corpo é orientado em função do alto e do baixo (vôos e quedas). Sua expressão mais elementar – por assim dizer – o fenômeno primeiro do cômico popular é o movimento da roda, isto é uma permutação permanente do alto e do baixo corpo e vice-versa (ou seu equivalente), a permutação da terra e do céu.

(BAKHTIN,1987, p.309).

O fato é que Quincas Borba, o filósofo, morre; Quincas Borba, o cão e Rubião morrem, após dormirem sobre as escadas da igreja em Barbacena. O mineiro finaliza sua vida da mesma forma que o filósofo inicia a sua. Ou melhor, da mesma forma por que o filósofo é apresentado ao leitor, ainda em Memória Póstumas de Brás Cubas, mendigo, dormindo nos degraus da escadaria de uma igreja. Além disso, o ex-professor perde a razão, ou seja, enlouquece, tal qual o filósofo. Enquanto isso, Sofia tem seu vôo majestoso, na aristocracia.

E por falar em loucura, a RODA também pode ser observada a partir deste ângulo. Como sabemos, o filósofo tem apenas um grãozinho de sandice. Grão este, suficiente para demonstrar, na prática, sua filosofia, através de Rubião. Ao leitor, o narrador apresenta o filósofo como louco. E quando é que Rubião profere as palavras do filósofo em perfeita compreensão? Quando está em delírio.

E a linguagem era também diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinários , como os do finado amigo Quincas Borba,—teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma,— às vezes, empregando as mesmas frases do filósofo. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricável, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E por que todas essas reminiscências desapareciam com a volta da razão?

(ASSIS, b:1977, p.299).

Por que Rubião só era capaz de compreender o filósofo quando lhe faltava a razão? Porque, estando em delírio, o mineiro raciocinava num outro plano, diferente daquele estabelecido como convencional. Em delírio, o mineiro era capaz de se afastar, de olhar em distância, de olhar do “lado de fora” o mundo em que vivia. Dizemos que somos capazes de melhor solucionar um problema quando nos afastamos dele. Pedimos conselhos e opiniões a amigos e parentes porque eles têm uma visão diferente da nossa, em razão de olharem distanciados. Pois bem, é isso o que acontecia com nosso imperador. Em delírio ele conseguia enxergar diferente a sociedade na qual vivia e conseguia perceber que aqueles que estavam a sua volta queriam usufruir dele e dos benefícios que ele podia proporcionar. Ou melhor, conseguia perceber que era usado por aqueles que estavam próximos a ele. Rubião também conseguiu perceber que não se adaptou à vida na Corte, que possuía dinheiro, mas não era nobre. Assim, resolveu seu problema: intitulou-se imperador e deu títulos de nobreza a todos aqueles que estavam a sua volta.

Mas o que é loucura? Pergunto-lhe. O que é razão? Onde está o limite entre os dois substantivos? Acaso não poderíamos identificar Palha e Sofia como loucos? A definição de loucura e de razão depende do ponto de vista a partir de que são caracterizadas. Então, a partir desse raciocínio, não seriam Palha e Sofia também, assim como Rubião, obcecados pelo poder e pelo dinheiro a ponto de perderem todos os escrúpulos e se desfazerem de antigas amizades? Não teria o casal Palha suas loucuras reveladas pelo narrador? Vimos, no primeiro capítulo, principalmente no folhetim, que Palha, ainda que tenha conseguido dinheiro e inserção na aristocracia, aspirava um título de nobreza. Assim, perguntamos: pertence ao estágio daquilo que podemos considerar normalidade, a obsessão de Cristiano Palha em publicar a mulher? Não teria Sofia um grau de loucura pela beleza e ostentação, até o limite de somente sentir-se feliz quando invejada, admirada e cortejada, não admitindo possuir, na sua concepção, uma rival, tal qual Maria Benedita? Não queriam Palha e Sofia, simbolicamente, ser proprietários do céu, da terra e do mar, tal qual Rubião? Sem invadir os meandros da psicologia ou psiquiatria, que não é nosso ramo, penso, como leitora de Quincas Borba, que a diferença é que tais comportamentos (de Palha e de Sofia) eram tidos como aceitáveis na sociedade a que eles passaram a pertencer. Logo, o limite entre a razão e a loucura está naquilo que é estabelecido por uma determinada sociedade, de um determinado lugar, de uma determinada época.

Não teriam também Carlos Maria e d. Tonica as suas loucuras? Esta tinha como um dos principais objetivos, senão o único, o casamento, principalmente no romance. Aquele era narcisista ao extremo, acreditando-se superior a qualquer outro ser humano, sendo ainda incapaz de amar, como explica o narrador do folhetim, pois segundo sua concepção, quem ama fica na mesma linha da horizontalidade de quem é amado e ele, Carlos Maria, tem que estar sempre numa situação de superioridade. O que fez Machado de Assis, senão uma leitura das características vistas por ele na sociedade aristocrática do Rio de Janeiro do século XIX? Aliás, tais comportamentos são característicos da carnavalização, como afirma Bakhtin.

(...) experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação de inusitados estados psicológico-morais anormais do homem – toda espécie de loucura ( “temática manícaca”) da dupla personalidade, do devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de paixões limítrofes com a loucura, de sucicídios, etc.

(BAKHTIN, p.100, 1981).

Outro aspecto que deve ser observado na questão da RODA, no que se refere ao filósofo e Rubião é a solidão. Nenhum dos dois tinha parentes, pois estes faleceram. O filósofo herdou a fortuna em virtude da morte do único parente que possuía. Rubião também perde a única irmã, mana Piedade (no romance) ou mana Marica (no folhetim). Ambos também não tinham amigos. Aliás, Rubião tratou de afastar todos os amigos do enfermo. O único amigo do filósofo seria Brás Cubas, que residia na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorre sua morte. Rubião, por sua vez, também não tinha amigos. Aqueles que foram conquistados durante sua permanência na capital também se afastaram, quando o mineiro empobreceu. Ou seja, o único amigo comum às duas personagens era o cão Quincas Borba. Quer dizer, a solidão também é um tema constante entre o filósofo e o ex-professor. Além disso, ambos morreram solteiros e sem filhos. Quincas Borba não conseguiu o reconhecimento da sua filosofia, principalmente em Barbacena. Aliás, a razão do filósofo é colocada em dúvida constantemente e durante toda a narrativa, embora, segundo o narrador, ele possua um grãozinho de sandice. Por conta desse grãozinho, de acordo com o narrador, é que sua filosofia era racional. O mineiro também não conseguiu sucesso nos seus empreendimentos financeiros, no amor e na política, não conseguindo, pois, ser deputado. Quincas Borba, quando finalmente consegue enriquecer, em virtude da herança recebida, é acometido pela doença e falece sem usufruir o dinheiro. Rubião, por sua vez, utiliza-o desregradamente até encontrar a pobreza. Enfim, ambos possuem uma vida de fracassos constantes. Isso faz lembrar o capítulo das negativas em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

— Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento(...) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

(ASSIS, c:1962, p.632).

Falamos muito sobre o interesse de Rubião em cuidar do filósofo, objetivando ser incluído no testamento. Rubião sabia que Quincas Borba não tinha parentes e, como já foi dito, tratou de arredar todos os conhecidos. Isso tudo é verdade. Mas há que se retratar também o interesse do filósofo em ter Rubião por perto, a fim de driblar a solidão e muito mais do que isso: ter um ouvinte para suas filosofias. Afinal, um filósofo carece de ser ouvido, necessita de alguém para expor suas idéias. Está lá, no follhetim, no início do capítulo IV:

(...) Não esqueçamos tambem o grãosinho de sandice, que cooperou em pol-o nas mãos de Rubião, porque a attenção deste, obsequiosa e paciente, não se cançava de ouvir-lhe a exposição das doutrinas novas, que elle trazia de cór, fazendo-lhe crer que as entendia, quando era certo que não entendia nada.

(ASSIS, a:1977, p.10).

 

4.3. — O Destronamento

Destronamento é um vocábulo ligado à coroa, ou seja, ao trono e ao seu rei. Quando Bakhtin fala sobre destronamento, a idéia é retirar o objeto da sua condição elevada e promover a sua descida. Isto é, realizar a sua aterrissagem. Quer dizer: para que se possa promover a aterrissagem é preciso que o objeto esteja no topo da pirâmide, num nível elevado. É preciso que exista “um rei”, para que este possa perder o cetro e a coroa. Além disso, para que um objeto seja fonte de riso, é preciso que haja seu destronamento. E é isso o que acontece com nosso Rubião. Ele é retirado da condição de simples professor, é colocado no topo da pirâmide como capitalista, no romance, ou proprietário, no folhetim, e depois o narrador promove sua aterrissagem, seu destronamento, rebaixando-o à condição de mendigo. Antes disso, porém, o narrador transforma-o em palhaço, com seu destronamento na rua da Ajuda. Vejamos duas citações contrastantes, que ocorrem tanto no folhetim como no romance, que ilustram o que estamos afirmando:

AINDA NÃO DISSE, — porque os capítulos atropelam-se debaixo da pena, —mas aqui está um para dizer que, por aquele tempo, as relações de Rubião tinham crescido em número. Camacho pusera-o em contacto com muitos homens políticos, a comissão das Alagoas com várias senhoras, os bancos e companhias com pessoas do comércio e da praça, os teatros com alguns freqüentadores e a Rua do Ouvidor com toda a gente. Já então era um nome repetido. Conhecia-se o homem. Quando apareciam as barbas e o par de bigodes longos uma sobrecasaca bem justa, um peito largo, bengala de unicórnio, e um andar firme e senhor, dizia-se logo que era o Rubião —um ricaço de Minas.

(grifos nossos ) (ASSIS, b:1977, p.274).

(...) Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, —uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada(...).

(grifos nossos) (ASSIS, b: 1977, p.345).

Vemos, na primeira citação, a bengala de unicórnio que Rubião carrega em uma das mãos. Tal objeto corresponde ao cetro do rei, que por sua vez constitui-se em um dos símbolos de poder. Já na citação seguinte, vemos o esvaziamento dos elementos que simbolizariam poder. As citações acima exemplificam o mineiro numa condição de rei carnavalesco, cujo reinado é pré-definido, simbolicamente, em três dias, tal como ocorre no Carnaval. Num momento ele tem em suas mãos o cetro e o poder e no outro, perde a coroa e o trono. Assim, Rubião é uma espécie de Momo, um rei-palhaço, que tem dinheiro, mas não consegue se adaptar à sociedade da qual passou a fazer parte. Sua condição naquele lugar é a de “estranho no ninho” e como já dissemos, com tempo de reinado provisório. Afinal, seu reinado durará enquanto durar seu dinheiro, o que simbolicamente remete aos três dias do reinado do rei carnaval.

O destronamento, entretanto, assume níveis diferentes quando comparamos as duas edições. No folhetim, a narrativa é contada na ordem cronológica dos acontecimentos, sendo elas: 1— o filósofo está doente e Rubião é seu enfermeiro; 2— O filósofo morre e Rubião é seu único herdeiro; 3— Rubião muda-se para a capital, onde fita a enseada, após receber a herança. Eis, pois o primeiro capítulo de Quincas Borba, no folhetim.

— Então, Doutor, como vou?

— Vae bem. Estas moléstias são demoradas, mas o senhor vae bem. Tomou o remédio?

—Tomei.

—Ás horas marcadas?

—Creio que sim. Não foi, Rubião?

Rubião, que estava familiarmente sentado na cama, confirmou a resposta. Havia alli ainda outra creatura, deitada o chão, com a cabeça levantada, olhando para o medico, interrogativo: era um cão, o cão do doente, que mal sahia do quarto, desde longas semanas.

O doutor levantou-se, para sahir; deu algumas indicações ao doente e ao amigo, e despediu-se de ambos; voltaria no dia seguinte. Rubião foi acompanhal-o até o patamar da escada. No patamar:

— Então? Perguntou Rubião.

— Perdido, completamente perdido. Viverá pouco tempo. Não posso repor-lhe as vísceras estragadas; mas vá confirmando o que digo. Para que tornar-lhe a morte mais afflictiva pela certeza...

— Lá isso, não; para elle é a causa mais indifferente deste mundo. Nunca leu um livro que elle escreveu, ha annos, não sei que negocio de philosophias...

— Não; mas philosophia é uma coisa, e morrer de verdade é outra; adeus.

Rubião voltou ao quarto; entrou prazenteiro, para obedecer ao medico, mas era certo que vinha constrangido. O doente estava de lado, junto á beira da cama, affagando o cachorro, que lhe lambia a mão.

— Que te disse elle? Vocês fallaram em particular.

— Disse o mesmo que tinha dito, demora necessária, muita cautella, nada de imprudências...

As palavras de Rubião não lhe sahiam naturalmente nem persuasivas; mas podiam illudir a um doente, e foi o que lhe pareceu. Acabou e fallou de outro assumpto. O doente, porém, abandonára o cão, que voltou a deitar-se ao pé da cama, desta vez com a cabeça entre as patas, e os olhos meio-cerrados; e voltando-se em cheio para o amigo que lhe servia de enfermeiro, disse rindo.

— Tu e o medico são dous empulhadores de marca maior...

Rubião ficou sério e confuso. Empulhador, elle? Não; lá se o medico mentia... Nem podia mentir, porque dissera-lhe a mesma cousa em particular. Doente era sempre desconfiado. Não, senhor, d’ahi a poucas semanas podiam ir á rua, e logo depois a cavallo... E então é que era ver outra vez o que era o Quincas Borba... Ouvindo este nome, o cão deu um salto, e foi ter com Rubião, que o acolheu com gestos de amigo, affagando-lhe as orelhas, batendo-lhe na anca, e dizendo-lhe, a rir, mas a rir mal:

— Não é comtigo, é com teu senhor, pelintra.

Aqui toda a gente que me fez o favor de ler as Memórias Posthumas de Braz Cubas, lembra-se, — póde ser que se lembre – de que apparece alli, em três ou quatro capítulos, um tal Quincas Borba, e pergunta e cuida naturalmente que é o mesmo.

Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memórias; basta saber que é o mesmo, e que vae morrer, como disse o medico. Póde ir, que não precisamos delle. Que fosse creança graciosa, mendigo algum tempo, herdeiro inopinado e inventor de uma philosophia, não temos nada com isso. Quando muito, é bom saber ( e aqui lh’o digo) que alguns annos antes, um medico suppôz que este Quincas Borba tinha um grãosinho de sandice, cousa de nada (está no cap. CLIII das Memórias) , é bom sabel-o para explicar algumas disposições testamentárias do homem, que vae morrer d’aqui a pouco.

Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem, e não pelo homem, senão pelo cão, por este mesmo cão que o amigo enfermeiro acarinha, explicando-lhe que quando fallou em Quincas Borba não se referia a elle, mas ao senhor. O que quer dizer, em duas palavras, que o nome era commum ao cachorro e ao dono.

(ASSIS, a:1977, p-07-08).

No romance, Rubião já é apresentado ao leitor como capitalista no primeiro capítulo. Desta maneira, o narrador já enfatiza sua posição no topo da pirâmide, antes mesmo de o leitor conhecer a origem da fortuna e saber quem é Rubião, o que no plano da aterrissagem assume características diferentes.

RUBIÃO fitava a enseada,—eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.(grifos nossos) Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.

“Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas”, pensa ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça...

(ASSIS, b:1977, p.107).

Neste primeiro capítulo, no romance, Rubião observa a natureza e sente-se proprietário dela. Sua sensação de posse é ampliada a tudo: dos pequenos objetos, como as chinelas, até mesmo a terra, o mar e o céu, tudo parecia ser de sua propriedade. Ou seja, na sua condição elevada, Rubião passa a fazer parte do universo cósmico. Vale dizer, Rubião transcende sua própria condição, ampliando-a de tal forma, com tal exagero, que passa a ser parte integrante do cosmo. É o que Bakhtin denomina de a doutrina dos quatro elementos, que é o lugar onde se apagam as fronteiras entre o corpo e o mundo. Os quatro elementos, como sabemos, são o ar, a água, o fogo e a terra. No capítulo primeiro do romance, Rubião, ao observar a enseada, tem os quatro elementos à sua frente. Ao fitar a enseada, Rubião tem os morros (terra), o céu (ar), a água (a enseada) e o sol (fogo) e comunga com eles.

Continuando o raciocínio do topo da pirâmide em que Rubião foi colocado pelo narrador, a personagem contempla a bandeja de prata lavrada trazida pelo criado, que era um primor de argentaria, execução fina e acabada (ASSIS, b:1977, p.107-108). O criado, por sua vez, era espanhol. Já na cozinha, tinha um francês. Tudo insistência de Cristiano Palha, que convenceu-o da importância de possuir criados brancos, a fim de demonstrar status social, dinheiro e poder. Afinal, Rubião teria por criados pessoas da mesma cor que ele.

E o narrador caracteriza, passo a passo, o nosso Rubião no plano elevado, distanciando-o, principalmente, da sua própria origem: (...) passou a mão pelo queixo barbeado todos os dias, cousa que não fazia dantes, por economia e desnecessidade. Um simples professor! (ASSIS, b:1977, p.108). Isso tudo, sem levar em consideração as chinelas de Túnis, o chambre e o pufe em que está sentado. No capítulo CLX, nas duas edições, o leitor toma conhecimento, inclusive, de que Rubião guardava também uma porção de moedas de ouro, porque tinha a mania de as colecionar para a contemplação (ASSIS, b:1977, p. 303).

Com relação ao ouro é interessante frisar que Palha recomendava bronze, que era de bom gosto e nobre. O ouro, naquele período, embora fosse preferência do mineiro, mais do que ostentação, era cafonice. Por isso Rubião tinha os dois bustos na sua sala, em bronze. Isto quer dizer que o mineiro muito se preocupava com a opinião alheia, em detrimento da sua própria. Colocava os bronzes para exibir aos convidados e guardava as moedas de ouro, em local escondido, para sua exclusiva contemplação.

Rubião, enquanto capitalista (no romance) ou proprietário (no folhetim), esbanjava dinheiro oferecendo almoços, jantares, fazendo negócios, associando-se a empresas e tornado-se conhecido. Referiam-se a ele como o ricaço de Minas, tinham-lhe feito uma lenda e diziam que ele era discípulo do filósofo morto.

Tinham-lhe feito uma lenda. (grifos nossos) Diziam-no discípulo de um grande filósofo, que lhe legara imensos bens,—um, três, cinco mil contos. Estranhavam alguns que ele não tratasse nunca de filosofia, mas a lenda explicava esse silêncio pelo próprio método filosófico do mestre, que consistia em ensinar somente aos homens de boa vontade. Onde estavam esses discípulos?

(ASSIS, b:1977, p.274).

Como lenda, Rubião deixa de ser um simples mortal e passa à categoria de herói. Heróis, por sua vez, são personagens colocadas em outro plano, inacessíveis. Rubião, enquanto lenda, aos olhos da população, transita entre o real e o imaginário, sai do plano comum e vai para uma categoria especial e como herói fica no topo da hierarquia. Afinal, todas as imagens do mundo elevado são construídas no verticalismo. Uma das passagens marcantes sobre a condição de “aristocrata” de Rubião é o tratamento que os freqüentadores da sua casa dão ao cão Quincas Borba, que andava ao colo de todos e era colocado à mesa, no almoço ou no jantar. Davam estalinhos, para vê-lo saltar; alguns chegavam a beijar-lhe a testa; um deles, mais hábil, achou modo de o ter à mesa, ao jantar ou almoço, sobre as pernas, para lhe dar migalhas de pão” (ASSIS, b:1977, p.275).

Temos aí, pois, mais uma cena carnavalizada: o cão é colocado em pé de igualdade com o dono da casa e seus convidados, na mesma linha de horizontalidade. É a elevação do cão e a aterrissagem do homem. Devemos levar em consideração também que a atitude de um dos convidados em ter o cão junto de si é uma repetição dos próprios atos de Rubião, quando ainda na casa do filósofo, que acariciava ao cão a fim de agradar ao dono.

E o narrador não pára por aí. É no episódio de Deolindo que Rubião atinge a glória. É coroado em praça pública e tem seu nome publicado nos jornais. Rubião salva um menino de três anos, chamado Deolindo, que se soltou das mãos da mãe e atravessou a rua no momento em que um cocheiro passava com os cavalos, na rua da Ajuda. Rubião salvou-o de ser pisoteado pelos animais. O ato de coragem do nosso herói corre a cidade e vai parar nas páginas do jornal Atalaia, empresa da qual Rubião torna-se acionista, após o episódio e após a leitura da narração do incidente. Vale lembrar aqui, que é também na rua da Ajuda que Rubião tem seu destronamento em praça pública. Ou seja, naquele local ele é coroado e mais tarde, lhe são retirados o cetro e a coroa. Além disso, o mesmo garoto, Deolindo, que é salvo da morte por Rubião, participa, mais tarde, da cena em que Rubião é destronado.

Rubião, apesar do dinheiro, não conseguiu tornar-se um burguês, um nobre, um aristocrata e inicia um processo de enlouquecimento: imagina-se imperador, mais exatamente Napoleão III, Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, vencedor da primeira eleição presidencial direta na França, em novembro de 1858, quando é proclamada a Constituição Republicana. Rubião precisava de uma nova identidade, na tentativa de ser aceito na sociedade e se sentir integrado. Nos momentos de delírio, era o imperador. Mas nos momentos de razão, ainda um título de nobreza era desejado. É verdade que suas relações haviam aumentado bastante e que já era grande o número de pessoas que o conheciam. Porém, ainda não era o suficiente.

Comprou um almanaque, e lia-o muitas vezes, deixando escorregar os olhos por ali abaixo, desde os marqueses até os barões, voltava atrás, repetia os nomes bonitos, trazia a muitos de cor. As vezes, pegava da pena e de uma folha de papel, escolhia um título moderno ou antigo, e escrevia-o repetidamente, como se fosse o próprio dono e assinasse alguma cousa:

Marquês de Barbacena

Marquês de Barbacena

Marquês de Barbacena

Marquês de Barbacena

Marquês de Barbacena

Marquês de Barbacena

Ia assim, até o fim da lauda, variando a letra, ora grossa, ora miúda, caída para trás, em pé, de todos os feitios. Quando acabava a folha, pegava nela, e comparava as assinaturas; deixava o papel e perdia-se no ar.

(ASSIS, b:1977, p.209).

Vejam bem que o título escolhido é “marquês de Barbacena”, numa alusão à sua terra natal, numa relação de identidade com Minas Gerais e não com a capital do Rio de Janeiro. Vale dizer, o narrador demonstra que Rubião não conseguia se adaptar, se integrar à capital, como se esta fosse sua cidade de origem. Não senhor, Barbacena ainda corria não só nas veias, mas na mente e no coração do mineiro. Tanto é verdade, que quando em delírio, quando abandonado pelos novos amigos, Rubião retorna à Barbacena, à sua origem, embora em seu imaginário estivesse na França. Apesar de ter deixado Minas, objetivando encontrar a glória na cidade grande, não havia conseguido se identificar com a nova terra. Esta seria, então, mais uma ilusão do mineiro. Ao vestir novas roupas, somos apenas máscaras, pois interiormente continuamos os mesmos. Não é fácil mudar de personalidade, apenas trocando de roupa. Não é possível alterar a origem, apenas colocando uma fantasia. Rubião vestiu-se de aristocrata, mas não era tal. Vestiu-se de imperador, mas racionalmente não tinha um reino para comandar.

Para que haja destronamento é preciso que exista o olhar do outro. E esse olhar que destrona acontece com relação a Rubião e não com o filósofo Quincas Borba. Um exemplo do que acabamos de dizer ocorre quando o mineiro, já enlouquecido, fala com as paredes, fazendo perguntas e encontrando ele mesmo as respostas. Tudo, entretanto, é presenciado pelo cão e por um dos seus criados, que se diverte com a loucura do patrão. Além disso, o criado descreve as cenas aos freqüentadores da casa. O fato também ocorre nas duas edições. Essa passagem mostra justamente o olhar de baixo para cima, do empregado com relação a Rubião. Cena esta que está relacionada ao riso, ao grotesco e principalmente ao destronamento. Aliás, como afirma Bakhtin, a ação carnavalesca principal é a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval (BAKTIN,1981, p.107).

Rubião perde todo o dinheiro. Aliás, é muito mais do que isso. Rubião perde a lucidez e, junto com ela, perde a própria identidade e chega ao mais baixo nível da aterrissagem. Rubião termina seus dias sem casa, sem amigos, sem comida, sem dinheiro e, se não fosse sua comadre, que o acolheu em momentos de frio e de fome, morreria nas ruas, talvez sobre os degraus da escada da igreja, em Barbacena. O final de Rubião, entretanto, já estava previsto, conforme afirma Bakhtin, sobre a coroação e o destronamento do rei do Carnaval.

A coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívoco, que expressa a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-renovação, a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição (hierárquica). Na coroação já está contida a idéia do futuro destronamento; ela é ambivalente desde o começo. Coroa-se o antípoda do verdadeiro rei – o escravo ou o bobo, como que inaugurando-se e consagrando-se o mundo carnavalesco às avessas.

(BAKHTIN,1981, p.107).

Ou seja, Rubião, como sabemos, é o rei do carnaval, cujo reinado é pré-definido em três dias. Assim, no ato da coroação já estava determinado o destronamento. É coroado o bobo, a fim de que se dê início aos festejos carnavalescos, no mundo às avessas. Vale dizer que Rubião é o bobo. Afinal, o próprio filósofo não o chamou de ignaro? O ignaro Rubião, que não compreendia a filosofia de Quincas Borba, teve em suas mãos uma fortuna. Logo ele, que havia falido algumas empresas e vivia de ser professor somente para ter o que comer e aonde dormir. Desta feita, o ignaro Rubião pôde exercer seu mandato carnavalesco na capital do Rio de Janeiro e colocar sua fantasia de imperador. Tudo, até que fosse destronado, perdesse a coroa e voltasse à sua origem, à Barbacena.

Rubião, ao ser destronado, perde todos os objetos simbólicos que caracterizavam seu reinado: sua residência em Botafogo (seu palácio) ; sua sobrecasaca (sua vestimenta imperial); todos os objetos da sua casa em ouro, prata e bronze, bem como sua bengala de unicórnio (seu cetro), símbolo de autoridade e poder, não lhe sobrando nem mesmo um chapéu velho ou uma bacia para que lhe fosse coroada a ilusão. Além disso, foi transformado em palhaço, na rua da Ajuda, no mesmo local, onde antes, se deu sua coroação. Afinal, o cerimonial do rito do destronamento se opõe ao rito da coroação; o destronado é despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos de poder, ridicularizado e surrado (BAKHTIN, 1977, p.107).

Ridicularizado e surrado em praça pública. Mas há uma passagem, no folhetim, que também caracterizamos como destronamento. Neste caso específico, não é o outro que lhe tira a coroa, mas ele é quem o faz diante do outro. Ou melhor, da outra: Sofia. Rubião declara seu amor a Sofia, eleva-a ao topo da pirâmide e em contrapartida, rebaixa-se diante da amada.

Sophia levantou-se; elle agarrou-lhe as mãos ajoelhou-se, fallando, exclamando. Sophia deixou-se resvalar ao sophá. A mandado della, Rubião levantou-se; mas não obedeceu a ordem de ir embora. Não, respondia elle; dir-lhe-hia ainda uma vez as cousas que o matavam; não lhe pedia perdão, nem desculpa, nem nada; tinha razão de dizer o que disse, pensar o que pensou, porque a adorava sobre todas as cousas do mundo; foi por causa della que entrou de socio com o marido; por ella, seria até caixeiro da casa, creado, varredor, carregador de fardos... Tudo isso era expresso com tal calor e tão desvairadamente, que ella, apezar do perigo de serem ouvidos, não o fazia calar. Não tardaram lagrimas; a principio eram só os olhos rasos dellas, mas a accumulação fel-as cair, quatro e quatro sem soluços.

—Não seja creança!

E em quanto elle, dando-lhe as costas, enxugava os olhos e o rosto.

(ASSIS, a:1977, p.133).

Rubião declara seu amor a Sofia, mas quando o faz, rebaixa-se, humilha-se, destrona-se e eleva Sofia ao plano elevado, colocando-a no topo da pirâmide. O mineiro coloca a amada num pedestal, santificando-a. Afinal, ele diz que a adora acima de qualquer coisa, o que nos faz pensar no primeiro mandamento da Bíblia: “amar a Deus sobre todas as coisas”. Rubião ama Sofia como se deve amar a Deus. Adora-a, como se deve adorar anjos e santos, segundo a doutrina da Igreja Católica. O mineiro põe Sofia no pedestal e se coloca na posição de seu criado, varredor e carregador de fardos, num total rebaixamento.

A cena pertence ao destronamento, mesmo que não seja o outro a praticar a ação. Ocorre que o episódio tem o olhar do outro (Sofia) e Rubião destrona-se diante dela, chegando mesmo a ajoelhar-se, num típico gesto de humilhação, de submissão. Rubião, ao ajoelhar-se, simbolicamente, está na base da pirâmide e Sofia, de pé, está no topo. É Rubião quem faz o próprio destronamento. Mas quando Sofia não interfere, é co-participante do ato. O destronamento ocorre, pois, porque além de Rubião rebaixar-se diante de Sofia e colocá-la no plano elevado, ela, a senhora Palha, não intervém na situação. Pede a ele que se levante, num gesto superior. Ele obedece, mas ainda mostra-se frágil, enxugando de costas, ou seja, envergonhado, as lágrimas que deslizaram sobre sua face.

Este episódio, entretanto, só pode ser encontrado no folhetim. Por que teria o velho bruxo suprimido essa cena? Ajoelhar-se e humilhar-se diante do outro, num gesto de submissão, é uma atitude de um imperador? Não, não é. Sabiamente nosso autor suprimiu esta passagem e poupou a nós, leitores, visualizarmos um imperador súdito e vencido.

4.4. — O Riso

No primeiro capítulo do romance, o narrador introduz o riso, sutilmente, quando Rubião está a fitar a enseada, embebido em sua posição de capitalista. É o momento em que o narrador vai explicar ao leitor a origem da fortuna do mineiro. O leitor toma conhecimento de que o ex-professor herdara o dinheiro por ocasião da morte de um amigo, solteiro e sem filhos.Vejamos a citação, sendo a primeira do romance e a seguinte, do folhetim, que só ocorre mais tardiamente, no capítulo XX.

(...)Ele, coração vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha... Bonita canoa! Antes assim!— Como obedece bem aos remos do homem! O certo é que estão no céu!

(ASSIS, b:1977, p.107).

Aqui o pensamento parou, vexado de tanto egoismo; parou, recuou e foi de uma cousa a outra cousa muito differente; mas o coração, educado nos mesmos princípios, não o acompanhou na diversão, e deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa o cavallo que alli passa na praia nem o cavalleiro que o monta, e que os olhos do Rubião acompanham com interesse, arregalados? Elle, coração vae dizendo que foi muito bom que, uma vez que a mana Marica tinha de morrer, não se realizasse o consorcio; podia vir um filho ou uma filha... -Bonito cavallo!-Antes assim! – Cabeça levantada, dando ás crinas...— O certo é que ella está no céu.

E o pensamento e o coração do homem, não podendo entender-se, cuidaram de ver assumpto que os reunisse, e foram direitinhos ao collo da bella Sophia.

(ASSIS, a:1977, p.23).

Em ambas as citações o riso está presente num consolo cínico. Ou seja, Rubião, que deveria estar entristecido pelas mortes da irmã e do amigo, encontra, na herança, o consolo para a inversão dos sentimentos. No folhetim, inclusive, a alegria de Rubião é narrada com o coração do mineiro batendo de alegria. Outro fator diferencial entre as duas edições é o desejo de Rubião, cujo pensamento vai direto a Sofia. Aí, temos a morte e o desejo convivendo simultaneamente, o que é mais um aspecto da carnavalização: as mortes da irmã e do filósofo levando Rubião ao colo de Sofia, caracterizando a imposição da vida sobre a morte.

No folhetim, Rubião observa, com olhos arregalados, um cavaleiro que caminha na praia. Olha, aparentemente interessado, mas seu coração bate pela fortuna que herdara. Nesse instante, surge o conflito: seus pensamentos sugerem que sinta tristeza pela morte dos dois, mas seu coração está alegre. Rubião pensou em casar o filósofo com sua irmã. Assim, seria um co-participante da fortuna. Ele mesmo classifica de consórcio tal empreitada. E no descompasso dos pensamentos e dos sentimentos, o mineiro resolveu o problema: lembrou de Sofia, onde raciocínio e emoção estavam unidos.

O riso também é das personagens que zombam de Rubião, quando da viagem de Quincas Borba, o filósofo, à capital e aquele fica em Barbacena para cuidar do outro Quincas Borba, o cão, transformando o mineiro em “sentinela de cachorro”.

Muitas vezes Machado de Assis dá ao narrador uma língua ferina e a maneira como ele apresenta uma personagem não é apenas risível, mas é também cruel. Sem dó nem piedade, o narrador tira a máscara de cada personagem, num desnudamento carnavalesco e a coloca nua e crua na frente do leitor. Exemplo bastante evidente é a descrição que o narrador faz de d. Tonica, filha do major Siqueira: “quarentona, solteirona, olhos cansados de esperar”. Não há como não achar graça da descrição que o narrador faz dos trejeitos da D. Tonica ao tentar chamar atenção do Rubião: olhos revirados, gestos com ventarolas e movimentos de lábios.

Todas as suas graças foram chamadas a postos, e obedeceram, ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de lábios, olhos oblíquos, marchas, contramarchas para mostrar bem a elegância do corpo e a cintura fina que tinha, tudo foi empregado. Era o velho formulário em ação; nada lhe rendera até ali, mas a loteria é assim mesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.

(ASSIS, b:1977, p.146).

É verdade que todas as cenas em que o narrador descreve D. Tonica à caça de um marido são exatamente iguais, num riso cínico e debochado. Acabamos de citar apenas um dos exemplos. Entretanto, é preciso admitir que o narrador do romance é muito mais ferino e impiedoso com a personagem. No romance não há nenhuma tentativa dele em mostrar uma Tonica que não esteja pensando em casamento, em um marido. Deseja se casar porque assim deve ser, na sociedade em que vive. Não há sentimentos e qualquer marido serve. Já no folhetim existe um narrador que talvez se apiede da personagem, pois mostra algumas características intrínsecas.

No folhetim, D. Tonica é a mesma quarentona que deseja casar. Mas não é só isso. Dona Tonica deseja um casamento e um companheiro, pois está cansada da solidão. A D. Tonica do folhetim deseja alguém que a queira e a ame. Lembra-se da passagem em que o cão foge e é cuidado pela filha do major? Vimos esta cena no primeiro capítulo deste trabalho e lá detectamos uma quarentona desejosa de companhia. Cenas como essa são capazes de diluir o riso anterior referente à personagem e conduzir o leitor a se apiedar dela e desejar que finalmente encontre seu amor. Assim, quando temos a morte do noivo da personagem três dias antes do casamento, que ocorre tanto no romance quanto no folhetim, temos também um diferencial. No romance o fato chega a mim como mais uma crueldade do narrador e sinto uma risada contida pela maldade praticada por ele. Quer dizer, de certa maneira, acabo por compactuar com sua decisão e a solteirice de D. Tonica não chega a me atingir. Já no folhetim, sinto dó da maldade praticada. Por que não deixou que se casasse a filha do major Siqueira? Por que lhe matou o noivo e deu a ela mais um sofrimento? A coitada só queria um companheiro, não escolhia beleza ou classe social. Quando da fuga de Quincas Borba, não aceitou a recompensa e embora fosse pobre, preferiu doar o dinheiro para a igreja. Além disso, pediu que Rubião o fizesse no próprio nome. Ou seja, gesto de bondade totalmente anônimo. Por que o narrador lhe matou o noivo? Por que deixou solitária tão boa alma?

Ainda com relação a d. Tonica, temos o riso quando o narrador utiliza números carnavalizados: Os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas (ASSIS, b:1977, p.145). Mais tarde o narrador retorna d. Tonica, já com quarenta anos. O número redondo, apesar de decorrido apenas um ano, uma única unidade, tem o peso da crueldade. Então, vejamos: A filha estava ainda qual a deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona (ASSIS, b:1977, p.205).

O narrador salta apenas um número, um único algarismo, fazendo a alteração de uma única unidade (39-40), mas o peso que ele atribui a essa pequena alteração... o peso que o próprio leitor percebe nas palavras do narrador, quando uma única unidade é somada ao número anterior, é incrível. Temos aí o exagero, uma enunciação em hipérbole do número exato. Isso é a utilização carnavalesca dos números. Temos o salto de um número não redondo para uma quantidade exata, com alteração de apenas uma unidade na qual é revelado todo o exagero da numeração. Assim, é preciso que levemos em conta o significado simbólico dos números. Desta feita, o fato do narrador ter acrescentado uma unidade à idade de D. Tonica, numericamente pode não significar grande coisa. Entretanto, se analisarmos pelo lado cultural, as mudanças são bastante grandes. Ou seja, antes D. Tonica era uma trintona, como diz o narrador. Agora, é uma quarentona. Culturalmente a alteração produz uma enorme significação.

Portanto, é possível tratar os números de forma carnavalizada. Para isso podem ser empregados alguns meios: quantidades que são expressas em cifras exageradas tendem a dissolver a verossimilhança, já que trazem à tona a hipérbole, tal como faz Rabelais em Pantagruel; números com pretensões exatas podem conduzir ao riso, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo: Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos (ASSIS, c:1962, p.534).

Mas voltemos a D. Tonica. Quantas são as personagens que têm mais de quarenta anos? O próprio Rubião tem mais idade: Não era velho; ia fazer quarenta e um anos; e rigorosamente , parecia menos (ASSIS, b:1977, p.108). Já na edição do folhetim Rubião tem um pouquinho mais de idade: Não era velho; ia fazer quarenta e quatro anos; e rigorosamente aparentava menos (ASSIS, a:1977, p.24). Bem, poderíamos atribuir a forma gentil do narrador, ao descrever a idade de Rubião pelo fato de uma personagem ser homem e a outra ser mulher. De uma ser rica e a outra pobre. Raciocínio incorreto, pois a maneira como o narrador descreve Sofia é bem diferente daquela com que ele narra a filha do major Siqueira.

Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias. Essas esculturas lentas são miraculosas; Sofia rastejava os vinte e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por dous ou três anos.

(ASSIS, b:1977, p.143).

Quando do grande baile, em razão da inauguração do palacete, em Botafogo, apesar de decorridos alguns poucos anos, pois Sofia já está com trinta anos, o narrador afirma que apesar do tempo, a senhora Palha está ainda mais bela. Toda a gente admirava a gentileza daquela trintona fresca e robusta; alguns homens falavam (com pena) das suas virtudes conjugais, da profunda adoração que ela tinha ao marido (ASSIS, b:1977, p.341). No folhetim, temos um texto quase idêntico: Toda a gente admirava a gentilleza daquela trintona fresca e robusta; os homens fallavam das suas virtudes domésticas, da adoração que ela tinha ao marido (ASSIS, a:1977, p.244).

Há que se interromper rapidamente a análise sobre as belezas de Sofia e de d.Tonica, a fim de que possamos fazer um comentário sobre as duas citações que acabamos de ler. É que ambas parecem iguais. Há apenas a troca de um único verbete: de virtudes domésticas, no folhetim, para conjugais, no romance. Qual o objetivo do autor fazendo tal alteração?

Quando os comentários são sobre as virtudes conjugais de Sofia, a relação está no sexo, no desejo. Se falam com pena em razão de Sofia adorar o marido, é possível que conheçam as “gentilezas” da senhora Palha. Se não as conhecem de fato, ao menos já ouviram falar. Daí, o desejo em também possuírem a bela dama, bem como suas virtudes conjugais. Já quando os comentários são sobre suas virtudes domésticas, tudo se resume nas prendas do lar, nos conhecimentos de francês, piano, administração da casa. Aí, Sofia deixa de ser a encantadora, aquela que provoca desejo, que invoca a libido, para ser tão somente uma boa administradora do lar. Deixa de ser Sofia, para ser a senhora Palha.

Mas, voltemos à questão da utilização dos números, quando o narrador enuncia sobre Sofia e d.Tonica. Quer dizer, a questão não é somente o fato de o narrador acrescentar algumas unidades ao número (39-40— dona Tonica / 27-30— Sofia). A questão é como é feito este acréscimo. Sofia sai dos vinte e sete anos e atinge os trinta anos “fresca e robusta” E a filha do major é apenas uma trintona com olhos cansados e desesperançosos. No capítulo sobre “A OFICINA DA CRIAÇÃO” fizemos a análise dos substantivos utilizados para designar D. Tonica e adjetivos utilizados, pelo narrador, para falar sobre Sofia. É interessante observarmos também que o sufixo acrescido aos radicais (trintONA e quarentONA) é exatamente o mesmo, bem como sua sonoridade, mas a leitura é totalmente diferente. Podemos perceber sua significação ampliada quando a referência é dona Tonica.

No item anterior vimos que, à medida que Rubião vai sofrendo o processo da aterrissagem, Sofia e seu marido Palha vão sendo colocados no plano elevado, como numa gangorra. Ou seja, sabemos que um objeto não pode ser cômico numa imagem distante, tornando-se imprescindível aproximá-lo para que se torne cômico. Segundo Bakhtin, é justamente o riso que destrói a distância. Assim, enquanto Rubião vai se tornando um objeto do cômico, o casal Palha vai subindo os degraus da pirâmide social, até chegar ao topo, no mais alto patamar da elevação.

Quando Rubião conhece Sofia e Palha na estação de trem, em Vassouras, o narrador deixa bem claro que se trata de um casal simples e humilde, como já vimos. Vieram sentar-se nos dois bancos fronteiros ao do Rubião, acomodaram as cestinhas e embrulhos de lembranças que traziam de Vassouras(...) (ASSIS, b:1977, p.127). O nosso mineiro, por outro lado, já está sendo apresentado ao leitor e como sabemos é o novo rico que tenta ser um aristocrata na cidade do Rio de Janeiro. Sofia é apresentada pelo narrador como uma mulher de gestos simples e introvertida e, à medida que o leitor vai avançando na leitura, acompanha também o desabrochar da senhora Palha, cujo auge acontece nas últimas páginas, com a inauguração do palacete, conforme já conversamos. Na verdade, Sofia tem sua última aparição, tanto no romance como no folhetim, gloriosamente bela, magnífica. Enquanto isso, morre Rubião, em extrema pobreza. Ou seja, a apoteose de Sofia, paralela à morte de Rubião, constitui, pois, o oxímoro carnavalesco.

É com a inauguração dos salões de Botafogo que Sofia atinge o mais alto grau de elevação, que sobe ao topo da pirâmide, da hierarquia social e como sabemos, lá estando, não pode ser objeto do riso, já que a distância o destrói. Vejamos, pois, o que diz Bakhtin em Questões de Literatura e Estética:

É justamente o riso que destrói a distância e, em geral, qualquer hierarquia de afastamento axiológico. Um objeto não pode ser cômico numa imagem distante. É imprescindível aproximá-lo, para que se torne cômico, todo cômico é próximo. Toda obra cômica trabalha na zona máxima de aproximação. O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona de contato direto; virá-lo do avesso, eliminá-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade.

(BAKHTIN, 1988, p.413).

Enquanto Sofia é levada ao plano superior, Rubião é colocado na horizontalidade. Como vimos, são realizados sua aterrissagem e seu destronamento. Neste plano, vimos que Rubião esteve no topo da pirâmide e que dele fizeram, inclusive, uma lenda. Na categoria mais elevada do riso, o mineiro é, então, ridicularizado em praça pública, rebaixado à condição de palhaço, na rua da Ajuda, na mesma rua onde tempos antes fora glorificado.

Outra personagem que se torna objeto do riso em Quincas Borba é Maria Benedita, que ao casar com Carlos Maria, é totalmente esvaziada. Afinal, como sabemos, Carlos Maria é narcisista e precisa de uma mulher “toda nada”, que apenas o admire, o idolatre e o adore como a um deus.

Oh! como a tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nele, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada.

(ASSIS, b:1977, p.266).

Quer dizer, Carlos Maria é tão narcisista, tão prepotente, que acredita verdadeiramente que é capaz de fazer alguém feliz, como se isso fosse poder exclusivamente dele. Ou seja, não é Maria Benedita quem pode se sentir feliz ou infeliz ao seu lado, mas sim ele que é capaz de torná-la feliz ou infeliz. Mas em Quincas Borba, tanto no romance como no folhetim, são muitas as passagens que conduzem ao riso. Vejamos mais algumas delas.

Sabemos qual é a cláusula do testamento do filósofo para que Rubião tome posse da herança: cuidar do cão. Mas é no folhetim que o narrrador põe o riso mais em evidência.

Nunca uma noiva assistiu aos preliminares do casamento tão tremula e medrosa como o nosso Rubião assistiu dalli a dias, depois de feitas todas as diligencias judiciaes, á abertura do testamento. Não era testamento, era o marmore de La Fontaine: sera-t-il dieu, table ou cuvette? Tal era a pergunta silenciosa que fazia a alma do professor. Cuvette que fosse, era um pedaço de artista. E elle olhava e ouvia as primeiras palavras sacramentaes do papel, impaciente de ouvir o seu nome... Cá está o nome...

Rubião quasi caiu para traz. Elle, o Rubião, era nomeado herdeiro universal dos bens do Quincas Borba. O escrivão leu muito espevitadamente esse pedaço; herdeiro universal dos bens, com uma só clausula, com a clausula de ter comsigo o cão, e cuidar delle até á morte.

Ahi tem a clausula inteira. Não a queria dar por medo e aborrecer o leitor nem a leitora, pessoas principaes em tudo isto, e ás quaes não desejo mais que saude e tempo. Ahi tem a clausula. Que é exquisita, não ha duvida; mas não heide inventar um testamento nem mentir á minha historia só pelo gosto de pôr aqui uma clausula vulgar. Toda questão é que o herdeiro não a achasse humilhante.

(ASSIS, a:1977, p.18-19).

O narrador enfatiza não somente a expectativa de Rubião quando da abertura do testamento, bem como a ansiedade do mineiro. Quanto à cláusula, o narrador opina sobre ela diante do leitor e, ao achá-la esquisita, coloca uma pitada de riso na situação e ridiculariza nossa personagem, não só diante do leitor, mas das demais personagens.

Mas “rir é o melhor remédio”, diz o ditado popular. E penso que o narrador de Quincas Borba sabia disso muito bem. Talvez, por isso mesmo, o riso esteja em muitos dos trechos da obra. E, às vezes, um riso que seria inoportuno, se visto do ponto de observação da lógica do cotidiano, não o é, se o considerarmos no clima carnavalesco. Assim, em Quincas Borba é permitido rir sem culpa, mesmo diante do drama, tanto no romance quanto no folhetim:

PERDOEM-LHE esse riso. Bem sei que o desassossego, a noite mal passada, o terror da opinião, tudo contrasta com esse riso inoportuno. Mas, leitora amada, talvez a senhora nunca visse cair um carteiro. Os deuses de Homero, — e mais eram deuses, — debatiam uma vez no Olimpo, gravemente, e até furiosamente. A orgulhosa Juno, ciosa dos colóquios de Tétis e Júpiter em favor de Aquiles, interrompe o filho de Saturno. Júpiter troveja e ameaça; a esposa treme de cólera. Os outros gemem e suspiram. Mas quando Vulcano pega da urna de néctar, e vai coxeando servir a todos, rompe no Olimpo uma enorme gargalhada inextinguível. Por quê? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro.

(ASSIS, b:1977, p.171).

Mas o narrador sabe que riso, simplesmente riso, talvez apague um pouco o brilho da obra. E deve ser justamente por isso que o riso vai sendo pinçado delicadamente, sutilmente, artesanalmente, junto aos dramas das personagens. Afinal, o equilíbrio da vida decorre do jogo de contrários, dos conflitos. E para percebê-lo é preciso que o leitor fique atento e receptivo. Afinal, rir somente seria cansativo, como ele próprio nos diz:

ENQUANTO uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo, mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida.

(ASSIS, b:1977,p.155).

 

4.5. — O Grotesco

O grotesco está ligado ao riso. Na verdade, depende do riso para acontecer, já que suscita o riso por sua extravagância. É o ridículo, o cômico, o caricato. Ou seja, o grotesco carrega o “feelling” do riso, mas vai muito mais além.

A principal característica do grotesco é o exagero, uma vez que é a própria essência do grotesco. E esse exagero é encontrado nos corpos, nos gestos, nas bebidas, nas comidas, por exemplo. Segundo Bakhtin, os sintomas da agonia, na linguagem do corpo agonizando, tornam a morte uma fase da vida, que obtém uma realidade corporal expressiva, que toma emprestada a própria linguagem do corpo. Dessa forma, a morte se inclui inteiramente no círculo da vida, da qual ela constitui um dos aspectos. Lembremos, pois, o episódio da morte da avó de Quincas Borba, que serve não apenas para explicar a filosofia do humanitismo: “humanitas precisa comer”, como também ilustra o que acabamos de dizer. Este episódio, entretanto, só ocorre no romance.

PARA ENTENDERES bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó (...) No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois(...) Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derrubou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo; Humanitas precisa comer.

(ASSIS, b:1977, p.112-113).

A cena que acabamos de ler é grotesca, não pela morte da avó do filósofo, mas pela maneira como a morte ocorreu, levando a avó do filósofo a ficar estirada na rua, com a cabeça rachada, perna e ombro partidos. Ou seja, temos, pois, o espetáculo do corpo despedaçado, banhado em sangue, agonizante, no meio da multidão. Assim, não só a vida da avó poderia ter sido preservada, se não fosse a fome do cocheiro, bem como o espetáculo do corpo despedaçado. O que o filósofo quis mostrar com essa história? Que há não somente o instinto de preservação no homem, que luta pela vida, ainda que esta luta resulte na morte de outro, mas também o egoísmo do ser humano, que se preocupa, antes de tudo, consigo mesmo. Mais grotesca ainda é talvez a narração que o filósofo faz ao contar o caso. A morte da sua avó não lhe traz sentimentos de tristeza ou saudade, serve-lhe apenas para explicar sua filosofia.

A comilança passeia pelas páginas dos textos. Em Quincas Borba come-se e bebe-se em demasia, pois o grotesco coloca ênfase nas partes do corpo. Quanto aos atos, tem-se a gravidez, o parto, a agonia, o beber e a satisfação das necessidades naturais, que o corpo revela, na sua essência, como princípio em crescimento e que por sua vez vai além dos seus próprios limites. Assim, o banquete, que faz parte do exagero, também faz parte do grotesco. Comer é, pois, uma necessidade natural de qualquer ser, seja ele humano ou não. Mas, quando falamos em Carnavalização, é preciso que lembremos daquele que olha de baixo para cima. Quais são as cenas em que a comilança aparece? Ora, as cenas em que estão presentes as personagens que estão no topo da pirâmide. É a questão do esvaziamento e da vacuidade da aristocracia, que enche os pensamentos de nada (bailes, reuniões e rapapés) e enche a barriga de comida. Podemos comprovar tal afirmação se compararmos os almoços e jantares oferecidos na casa de Rubião com aqueles realizados na casa do major Siqueira e D. Tonica, por exemplo. De um lado temos a ostentação da fartura, que enche não apenas o corpo, mas os olhos, o paladar e a própria imagem do anfitrião diante dos outros. Enche também o ego daqueles que freqüentam a casa do mineiro. Encontram uma bela casa e uma mesa farta, e , no mundo carnavalizado, esquecem suas mazelas, para conviverem no palácio do imperador. Do outro, a simplicidade de quem come apenas para sustentar o próprio corpo, enquanto necessidade vital.

Aliás, todas as cenas na casa de Rubião têm uma mesa posta e convidados disputando, juntamente com o cão, todas as fagulhas de faisão ou de pão. Os amigos do mineiro vão visitá-lo somente para jantar ou almoçar e não para estar com ele. Para que serve Rubião senão para encher seus corpos de comida e de bebida? Lembra-se das cenas em que os convidados passaram a jantar sem o anfitrião? Assim passaram-se os anos e, quando o mineiro empobreceu, quando Rubião não mais podia abastecer seus corpos, foi abandonado e o círculo de amigos se desfez. Afinal, se estavam lá para esquecerem-se também das suas mazelas, como poderiam freqüentar a casa da rua do Príncipe, que lembra a pobreza e a decadência?

Os convidados do mineiro não só empanturravam-se de comida e bebida, mas também dele mesmo. Consumiam não só as carnes que estavam sobre a mesa, mas também o próprio Rubião. As cenas de comilança na mansão de Botafogo representam, simbolicamente, a antropofagia, a filosofia de Quincas Borba: “humanitas precisa comer” e o “homem lobo do homem”.

Quando analisamos a loucura de Rubião no item anterior, estabelecemos sua relação com o destronamento. Mas é importante não esquecer que o motivo da loucura é característico de qualquer grotesco, uma vez que permite observar o mundo com um olhar diferente, não perturbado pelo ponto de vista “normal”, ou seja, pelos juízos comuns (...) (BAKHTIN,1977, p. 35).

Isto quer dizer que as cenas da loucura de Rubião são grotescas porque, em delírio, ele passa a enxergar um outro mundo, que não aquele estabelecido pelas leis vigentes naquela sociedade. Rubião tem seu olhar às avessas. Olhar este tipicamente carnavalesco, que tem suas próprias leis, divergentes das leis do cotidiano. Aliás, essas cenas são grotescas não somente porque temos o olhar de Rubião em confronto com as leis do cotidiano, mas porque temos o olhar da sociedade sobre Rubião. Quer dizer, há um outro que olha, opina, critica e determina que o comportamento de Rubião está fora da normalidade até então estabelecida.

Possuem aspectos grotescos as cenas em que Rubião, já em delírio, conversa com as paredes e tem como espectador um dos seus criados. Cenas em que Rubião comanda exércitos frente aos freqüentadores da sua casa; aquelas nas casas de Carlos Maria e do major Siqueira, ou a cena em que Rubião sobe junto com Sofia no cupê e a chama de imperatriz. Isso, sem esquecer da principal cena de destronamento e loucura, que ocorre na rua da Ajuda. Afinal, todas essas cenas têm um espectador, um olhar que critica e condena.

É preciso lembrar também a cena da morte de Rubião presenciada por parentes e vizinhos. São espectadores que estão a apreciar seus momentos de agonia em horríveis trejeitos, bem como seu último delírio. – Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor... A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um tregeito horrível, e estava assignada a eterna abdicação (ASSIS, a:1977, p.248). E é exatamente nas últimas linhas, do penúltimo capítulo, que temos a confirmação do destronamento de Rubião, pois quando em seus últimos momentos vida, ele se entrega à morte, entrega sua coroa e abdica do trono. Neste pequeno trecho temos, pelos menos, três aspectos da carnavalização: 1— o destronamento do rei do carnaval; 2— a loucura e 3— aspecto morte e ressurreição. Ou seja, a morte sempre prenhe de um novo nascimento.

Com a loucura, o destronamento e a morte de Rubião, temos o casal Palha assumindo o reinado, na inauguração do palacete de Botafogo (território do antigo rei). Aliás, quando da inauguração do palacete, Sofia exibe belas roupas e jóias. Mais do que isso, a senhora ostenta uma jóia lhe foi dada por Rubião. Quer dizer, podemos relacionar a jóia de Sofia ao poder e ao reinado, da mesma maneira que o fizemos com Rubião e um dos seus símbolos de poder: a bengala de unicórnio, que ele sempre ostentava em uma das mãos. Quando apareciam as barbas e o par de bigodes longos, uma sobrecasaca bem justa, um peito largo, bengala de unicórnio, e um andar firme e senhor, dizia-se logo que era o Rubião —um ricaço de Minas (ASSIS, b:1977, p.274). Aliás, unicórnio etimologicamente provém de corno (um único corno). Corno, por sua vez está relacionado a cornucópia, símbolo da autoridade e de poder. Corno, originalmente está relacionado a poder, diferentemente do sentido pejorativo que temos hoje. Vejamos o que diz o dicionário Houaiss: “lat. cornucopìa,ae ‘corno da abundância’, de cornu,us ‘chifre’ e copìa,ae abundância, muitos recursos, posses ( lat. cum ‘ajuntamento’ + ops,is ‘posses, recursos, meios’)”.

O corno ou chifre, como símbolo de poder, é utilizado nas mais diversas culturas. Na África, para anunciar as importantes cerimônias tribais, são utilizados os cornos de antílopes nobres, ou ainda de búfalo, preferencialmente. Aliás, o chifre deste animal também é utilizado na confecção do lakidibá, que é um fio de contas, considerado um emblema divino, com simbologia de poder e de elevação. Além disso, significa também o poder sobre a vida e a morte.

Para o povo hebreu o chifre também é considerado um símbolo de poder e uma das formas de utilizá-lo é na confecção do shofar, um instrumento musical no estilo corneta ou trombeta, que serve para louvar a Deus. Louvai-O com o som da trombeta(Salmo 150:3). Do original hebraico, a palavra shofar também é traduzida para o português como "trombeta" e indica as trombetas de prata (Números 10:2-3;9).

Não somente poder físico, Deut. 33:17, mas também do poder santo — o altar de bronze era decorado com quatro chifres:1— Êxodo 27:1; 30:2. O Senhor Ele mesmo é o chifre da nossa salvação — Samuel 22:3, Salmos 18:2. São, pois, muitas as ocasiões em que o shofar é tocado: no anúncio de uma guerra, em ocasiões alegres, em solenidades, num ato sagrado, entre outros. Consta na Bíblia que, por ordem divina, o Shofar era carregado de óleo para ungir reis — Samuel 16:1.

Mas o poder, como sabemos, pode ser utilizado tanto para o bem como para o mal. Assim, consta ainda na Bíblia, em “Daniel 8:5” o seguinte, sobre o sonho de Alexandre, o grande: Estando eu observando, eis que um bode vinha do ocidente sobre toda a terra, mas sem tocar no chão; este bode tinha um chifre notável entre os olhos. Aí, temos a referência a Satanás, Demônio, Besta, Diabo ou o nome que mais lhe agrade, com um chifre no meio da testa, similar ao unicórnio, que por sua vez é um animal mitológico, símbolo de excelência, de bela anatomia e muita habilidade. Sua força está em seu chifre, ao qual a crença popular atribuía poderes mágicos.

Bem, fizemos toda essa caminhada, para falar sobre a bengala de unicórnio de Rubião. É a bengala do mineiro símbolo de poder, lembrando o cetro do rei. Ao utilizar, pois, o unicórnio, podemos relacioná-la não apenas com poder, mas questionar o tipo de poder de Rubião, já que o unicórnio é um animal mitológico. Em sendo um ser lendário, que não existe, da mesma forma podemos caracterizar o poder que Rubião pensava possuir. Aliás, não fizeram também uma lenda para o nosso mineiro? Seu império também não era imaginário?

Quanto ao fato de o chifre de unicórnio também estar relacionado a Satanás, podemos associar a escolha do velho bruxo com os bustos de Mefistófeles e de Fausto que Rubião tinha em sua sala, cuja análise fizemos no primeiro capítulo. A bengala do mineiro pode representar o poder do mal, no sentido de que, ao portar o instrumento, assumia uma outra personalidade que não a sua, a do rei do carnaval, a do imperador. Além disso, a bengala do mineiro, enquanto poder, está relacionada ao dinheiro. E foi pelo desejo do dinheiro, da ostentação, do luxo e do poder que Rubião cuidou do filósofo, deixou sua pequena Barbacena e atirou-se na cidade grande.

Bem, mas voltemos à questão de Rubião e Sofia. O mineiro morreu sem nada, no total rebaixamento, no plano da aterrissagem, ao contrário de Sofia, que foi elevada, pelo narrador, ao topo da pirâmide. Esse rebaixamento, vivido por Rubião, é, pois, uma das características do grotesco, conforme afirma Bakhtin, na citação abaixo.

O rebaixamento é enfim o princípio artístico essencial do realismo grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí são reinterpretadas no plano material e corporal. É a gangorra grotesca que funde o céu e a terra o seu vertiginoso movimento, a ênfase, contudo, se coloca menos na subida que na queda, é o céu que desce à terra e não o inverso(...)

(BAKHTIN, 1987, p.325).

De acordo com Bakhtin, no grotesco, a ênfase está no movimento de queda e não no de subida. E é assim que percebemos o grotesco em Quincas Borba. Ou seja, a queda de Rubião, seu destronamento, nos chama mais atenção do que sua subida ao topo da pirâmide. Isto porque o narrador, obviamente, assim desejou.

Características monstruosas também fazem parte do grotesco. Afinal, o exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso, são sinais marcantes do grotesco. No grotesco, o exagero é levado ao extremo, tocando a monstruosidade, até os limites do impossível.

Na base das imagens grotescas, encontra-se uma concepção especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre o corpo e o mundo e entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas.

(BAKHTIN, 1987, p.38).

O corpo grotesco é muitas vezes metamorfoseado. É comum aparecer nos corpos grotescos: gigantes, anões, centauros, sereias, corpos monstros, corpos despedaçados, partes de corpos e aberrações. A mistura do sagrado e do profano também é característica do grotesco. Um dos episódios marcantes com relação ao sagrado e ao profano, bem como o corpo-monstro, acontece quando dona Tonica, ao retornar da casa de Sofia, tranca-se no quarto e sente raiva da senhora Palha, que “flertava” com Rubião. Ou melhor, a filha do major Siqueira percebe que Sofia deixa-se flertar por ele. E ela, “uma solteirona ou mais que solteirona”, “com uns olhos cansados de esperar”, não podia se conformar com tal situação. Esta cena acontece nas duas edições.

Chegaram à casa na Rua do Senado; o pai foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estar em uma cadeirinha, ao pé da cômoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não trazia idéias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha notícia do adultério, e a pessoa de Sofia pareceu-lhe hedionda. Via nela agora um monstro, metade gente, metade cobra.

(ASSIS, b:1977, p.153).

É no seu quarto, no seu leito, que D. Tonica tem imagens perversas sobre Sofia. Em seu imaginário a senhora Palha é um monstro: metade gente e metade cobra. A cobra, como sabemos, é considerada um dos símbolos da maldade, da artimanha e também da tentação. Afinal, não foi a serpente que tentou Eva e Adão no Paraíso? O imaginário de D. Tonica é povoado da imagem dantesca diante da imagem de uma santa, da Virgem Maria, a escolhida por Deus para ser a mãe do seu filho, o Salvador, símbolo da pureza, daquele que salvou a humanidade. Não só relacionamos o episódio com o grotesco, no que tange ao corpo-monstro, mas também ao sagrado e profano.

Outra cena inusitada, passível de riso e com características grotescas, é a conversa que Cristiano Palha tem com Sofia a respeito do amigo Ramos. A cena consta nas duas edições.

— A nossa festa esteve bem bonita, disse ele.

— Esteve.

— O Siqueira é um cacete, mas paciência; é alegre. A filha não estava mal arranjada. Viste o Ramos como devorava tudo o que se lhe pôs no prato? Tu verás que ele um dia engole a mulher.

— A mulher? disse Sofia, sorrindo.

— É gorda, concordo; mas a primeira era muito mais gorda, e creio que não morreu, ele engoliu-a, com certeza.

(ASSIS, b:1977, p.162).

É o riso zombeteiro que vai ao exagero. Não há somente o exagero quanto ao apetite da personagem, mas também quanto a relação disso com a gordura da ex e da atual mulher. Uma vez que o Ramos devora tudo que vê pela frente, necessário se faz que sua parceira tenha excessos de carne, a fim de satisfazer sua voracidade, numa analogia à gula, à comilança grotesca.

Outra das características do grotesco é a metamorfose. Rubião sente-se o imperador da França. Isto é mais do que imaginar. Ele realmente acredita que é o imperador e entra num processo de delírio irreversível. Logo, a visão é grotesca porque ninguém o vê como imperador. Mas ele alterna momentos de lucidez e loucura, numa simbologia do mundo às avessas em confronto com a ordem social. O desdobramento da personagem é uma das características da carnavalização.

Rubião era ainda dous. Não se misturavam nele a própria pessoa com o imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais.

(ASSIS, b:1977, p.289).

Vemos, na citação acima, que o Carnaval é necessário. Ou seja, através desse festejo, podemos esquecer as mazelas da vida, num efeito catártico. Assim, quando retornamos à ordem social, encontramos o equilíbrio da vida.

4.6. — A Praça pública e os desfiles carnavalescos

O Carnaval é uma grande festa popular, em que todo povo participa do evento. No Carnaval, não há diferenças ou hierarquias sociais e todos estão no mesmo nível da horizontalidade. Mas quando estamos falando em Carnaval, não estamos fazendo referência ao carnaval do Sambódromo, na cidade do Rio de Janeiro, onde há a ostentação do luxo e da riqueza, conforme já explicamos no início deste capítulo. Estamos fazendo referência ao Carnaval de antigamente, dos “tempos da vovó”, dos blocos de rua, dos “blocos do sujo”. Aliás, por falar em bloco do sujo, lembro de uma marchinha de Carnaval que eu sempre ouvia quando criança, cuja autoria até hoje eu desconheço. Olha o bloco do sujo,/ que não tem fantasia,/ mas que traz alegria/ para o povo cantar./ Olha o bloco do sujo,/ batendo na lata,/ alegria barata,/ carnaval é pular.

Vejam que uma simples marcha de Carnaval pode justificar, à luz de Bakhtin, a teoria da carnavalização. Quando se diz que o bloco do sujo não tem fantasia, estamos abolindo o luxo das vestimentas. Normalmente o bloco do sujo utiliza roupas velhas e até mesmo rasgadas, numa forma de contrariar a ordem social, que exige roupas limpas e tratadas para uma boa apresentação. Como estamos vendo, o bloco do sujo traz alegria. Afinal, essa é uma das características do Carnaval. Quando se diz alegria barata, estamos percebendo que qualquer um pode participar deste movimento: rico ou pobre, pois pular o Carnaval, num bloco do sujo, não custa nada. Ele é feito para pular, a fim de que possamos realizar a catarse e expurgar, nos dias de folia, as mazelas sociais do nosso pensamento. E, finalmente, a lembrança de que o Carnaval é para o povo e principalmente feito pelo povo, pois Carnaval é — ou foi! — uma festa eminentemente popular.

O Carnaval — na acepção de Bakhtin — é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual. É um espetáculo sem ribalta, sem divisão entre atores e espectadores. Todos são participantes ativos e a distância é eliminada. O Carnaval é a festa do povo. Além disso, todas as imagens do Carnaval são biunívocas, englobam dois campos de visão, pois o Carnaval desconhece tanto a afirmação quanto a negação absoluta. Assim, o riso carnavalesco é profundamente ambivalente, um riso dirigido contra o supremo. O riso carnavalesco destrói tudo o que é empolado, pomposo. Assim, há a liberdade de expressão, bem como a quebra da hierarquia, onde, no fenômeno da praça pública carnavalesca, todos são iguais, pois não há rei nem súditos. Não há súditos e nem vencidos. Ou seja, há a comunhão com o espaço da horizontalidade terrestre.

Na visão carnavalesca de mundo, o estatuto heróico também é destronado. Na inversão do estatuto social, o herói, ou aquele que antes estava no plano elevado, passa a viver no mundo baixo, na horizontalidade terrestre, onde todos são iguais perante a “lei do Carnaval”. Vale dizer: todos são iguais perante a ideologia do festejo. É a ideologia da communitas. É a cosmovisão carnavalesca.

A praça carnavalesca é um pandemônio, onde todos têm voz. Na praça carnavalesca, todos podem participar da festa e o riso acompanha toda a cerimônia. Nenhuma festa carnavalesca se realiza sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica. No Carnaval ignora-se toda a distinção entre atores e espectadores; ignora-se o palco. No Carnaval os espectadores não assistem, eles o vivem, pois o Carnaval existe para todo o povo.

Durante o carnaval é a própria vida que se representa e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. O riso carnavalesco é festivo. Não é uma reação individual. O mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; e por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.

(BAKHTIN, 1977, p.79).

Vemos, mais uma vez, que o Carnaval é um jogo, uma atividade lúdica, na qual, transformamos o momento do festejo em vida real. É o que faz Rubião, em seus momentos de delírio. Nesses instantes ele é o imperador, pois realmente vive sua fantasia, entrega-se a ela. Participam, também, deste Carnaval todos aqueles que convivem com Rubião e principalmente aqueles que se fartam à sua mesa, pois presenciam os delírios de Rubião, deixam-se envolver por eles, não demonstram desagrado, mas, longe do mineiro o criticam e riem dele. É o riso ambivalente, que afirma e que nega, que ressuscita e que amortalha concomitantemente.

A mesa de Rubião é, como já vimos, a communitas carnavalesca, onde todos são iguais. Rubião é o imperador, o rei do Carnaval, aquele que provoca o riso e seus visitantes são seus compatriotas, altos marechais, titulados por ele, o rei, que riem junto com ele e que, ao mesmo tempo, riem dele.

Mas nosso item é sobre os desfiles carnavalescos. E quando falamos nisso, estamos fazendo referência aos desfiles populares, aos blocos de rua, às mascaradas e à participação ativa da comunidade, pois o homem ressente a continuidade da vida na praça pública, misturado à multidão do carnaval, onde seu corpo está em contato com os das pessoas de todas as idades e condições (BAKHTIN, 1987, p.79).

Bem, como vimos no item sobre destronamento, Rubião é, simbolicamente, o rei do Carnaval, cujo reinado é pré-determinado e tem hora para terminar. Vive, por um momento, no topo da pirâmide. Mas como o rei do Carnaval precisa ser destronado e conforme já estava pré-estabelecido, Rubião sai da condição de rei e é rebaixado à condição de palhaço, na praça carnavalesca do riso.

Na ótica desse raciocínio, selecionamos uma passagem em Quincas Borba, que remete à praça pública carnavalesca, à praça pública do riso. Referimo-nos ao destronamento do mineiro (ex-professor e agora o lendário ricaço de Minas) na rua da Ajuda, naquilo que o narrador denomina de o espetáculo do delírio. O trecho é extenso, mas merece o destaque:

RUBIÃO não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavalaria. Foi dar consigo abaixo, andou por várias ruas, até que subiu pela de S. José. Desde o paço imperial, vinha gesticulando e falando a alguém que supunha trazer pelo braço, e era a imperatriz. Eugênia ou Sofia? Ambas em uma só criatura,—ou antes a segunda com o nome da primeira. Homens que iam passando, paravam, do interior das lojas corria gente às portas. Uns riam-se, outros ficavam indiferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos para poupá-los à aflição que lhes dava o espetáculo do delírio. Uma turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão próximos, que lhe ouviam as palavras. Crianças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando eles viram a curiosidade geral, entenderam dar voz à multidão, e começou a surriada:

—Ó gira! ó gira!

Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obséquio.

—Ó gira! ó gira! berravam os vadios.

Um deles muito menor que todos, apegava-se às calças de outro, taludo. Era já na Rua da Ajuda. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu, supôs que eram aclamações, e fez uma cortesia de agradecimento. A surriada aumentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher à porta de uma colchoaria:

—Deolindo! vem para casa, Deolindo!

Deolindo, a criança que se agarrava às calças da outra mais velha não obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pequerrucho, clamando com a vozinha miúda:

—Ó gira! ó gira!

—Deolindo!

Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar às vistas da mãe que o chamava; esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era pequeno demais para andar em tumultos de rua.

— Mamãe, deixa eu ver...

—Qual ver! anda!

Meteu-o em casa, e ficou à porta, a olhar para a rua. Rubião estacara o passo; ela pôde vê-lo bem, com os seus gestos e palavras. o peito alto, e uma barretada que deu em volta.

— Os malucos têm graça, às vezes, disse ela sorrindo a um vizinha.

Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo coro atrás de si. Deolindo, à porta da loja vendo o grupo alongar-se, pedia chorosamente à mãe que o deixasse ir também, ou então que o levasse. Quando perdeu as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritozinho esganiçado:

— Ó gira!

A VIZINHA RIU-SE. A mãe riu-se também. Confessou que o filho era uma pestezinha, um endiabrado, que não sossegava; não podia perdê-lo de vista. Qualquer distração, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dous anos, quando escapou de morrer embaixo de um carro, ali mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada oposta, atravessou a rua, e interrompeu a conversação. Trazia o cenho carregado, mal cumprimentou a vizinha, e entrou; a mulher foi ter com ele. Que era? O marido contou a surriada.

—Passou por aqui, disse ela.

—Não conheceste o homem?

—Não.

O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe quem era.

—É aquele homem que nos salvou o Deolindo da morte.

A mulher estremeceu.

—Viste bem? perguntou.

—Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava assim. Coitado! E a molecada berrava atrás dele. Qual! não há polícia nesta terra.

O que Ihe doía à mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada; mas a parte que teve nesta o filho,—a mesma criança que o homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhecê-lo, nem saber que lhe devia a vida? Doía-lhe o encontro, a coincidência. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o pequeno não havia saído, e não entraria na troça. Tremia de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe dous beijos.

—Você viu a cena toda? perguntou à mulher.

—Vi.

—Eu ainda quis dar o braço ao homem, e trazê-lo para aqui, mas, tive vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque ele podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria. Que triste cousa que é perder o juízo!

A mulher pensava na travessura do filho; não a referiu ao marido, pediu à vizinha que não aludisse a ela, e, de noite, só pregou olho tarde. Metera-se-lhe em cabeça que, anos depois, o filho endoudecia, era castigado pela mesma troça, e que ela cuspia para o céu, indignada, blasfemando.

DUAS HORAS DEPOIS da cena da Rua da Ajuda chegou Rubião à casa de D. Fernanda. Os vadios foram-se dispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam; os três últimos juntaram os seus adeuses em um berro único e formidável. Rubião continuou sozinho, mal percebido pelos moradores das casas, porque a gesticulação diminuía ou mudava de feitio. Não se dirigia à parede, à suposta imperatriz; mas era ainda imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquele véu, através do qual todas as cousas eram outras, contrárias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma feição de reposteiro. Rubião seguia direito à sala do trono, para receber um embaixador qualquer, mas o paço era interminável, cumpria atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes, —e por entre alabardeiros, altos e robustos.

Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavam das janelas, muitas suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preocupações do dia, os tédios, os ressentimentos, este uma dívida, outro uma doença, desprezos de amor, vilanias de amigo. Cada miséria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimento durava um relâmpago. Passado o enfermo, a realidade empolgava-os outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços suntuosos iam com Rubião. E mais de um tinha pena do pobre-diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao céu a parte que lhe coube,—amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao alcáçar fantasmagórico.

(ASSIS, b:1977, p.331-335).

Rubião inicia seu trajeto no Paço Imperial e culmina sua passagem na rua da Ajuda. Até lá, ele caminha por várias ruas, como fazem os desfiles dos blocos carnavalescos durante a exibição, objetivando “arrebanhar” mais participantes e levar a alegria àqueles que prestigiam o evento, O “desfile” de Rubião tem a duração de duas horas, tempo mais ou menos coerente com os desfiles dos blocos de rua. Durante o “desfile”, Rubião gesticula e fala com alguém que está apenas no seu imaginário. Ora, gestos, falas e cantos são atitudes dos compontentes dos blocos de rua durante a caminhada pelas ruas da cidade.

Durante o espetáculo do delírio todos participam. Temos aqueles que preferem apreciar o desfile de Rubião e aqueles que preferem seguir o rei pelas ruas da cidade, como os moleques que caminham aos gritos. Fato é que cada um participa a seu modo, mas de forma a estar integrado na festa. E as manifestações de cada um podem ser totalmente diferentes: alegria, entusiasmo, curiosidade, entre outras.

Na verdade é exatamente assim que acontece na vida real, quando apreciamos a vida da ilusão. Passando pela rua, muitas vezes paramos para observar o bloco carnavalesco ou simplesmente somos indiferentes. Quando o narrador descreve que “uma turba de moleques” acompanhava nosso Rubião durante o desfile carnavalesco, comprovamos que o carnaval não é um festejo individual. O Carnaval é uma festa coletiva onde todos podem participar, já que não há hierarquia social, onde todos são iguais, no mesmo plano da horizontalidade terrestre.

Crianças vinham juntar-se ao grupo(...) aparecem curiosos de ambos os sexos e de todas as idades. Ora, o Carnaval é uma festa feita pelo povo, onde além de não haver hierarquia social, todos podem participar; crianças, jovens, idosos, homens e mulheres. Aliás, uma das características mais marcantes do carnaval é a voz da multidão, uma festa que tem a capacidade de aglutinar pessoas. Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se(...), a fim de ver o desfile, de ver o bloco passar pelas ruas, de ver o “espetáculo do delírio”.

Aqueles que seguiam Rubião gritavam num único coro: Ó gira!Ó gira! (endoidado, amalucado, enlouquecido). A multidão gritava numa única voz, as mesmas palavras, como o refrão de um samba ou de uma marchinha de Carnaval. Rubião estava disperso de tudo, supôs que eram aclamações e fez uma cortesia de agradecimento. Isto porque Rubião se vê como o Imperador que é aclamado pelo público. Ou seja, em seu delírio, está vendo o mundo às avessas, onde, como diz o próprio narrador, todas as coisas eram contrárias e melhores. Ou seja, no “espetáculo do delírio” ele sai do mundo real e passa a viver no imaginário, vivendo o espetáculo da ilusão, governando a cidade como o rei do Carnaval. Os rapazes continuavam a bradar e a rir. Afinal, o Carnaval é o espetáculo do riso, que por sua vez é permitido a todos, sem distinção.

As pessoas se envolviam com o desfile de Rubião e naquele momento esqueciam suas próprias desgraças, suas próprias mazelas, como durante os festejos carnavalescos, quando eram suspensos pensamentos tristes ou enfastiados, os rancores, as dívidas, as doenças e todas as misérias. Esquecidas, pois, somente durante os instantes em que durou o espetáculo do delírio, porque os paços suntuosos iam com Rubião.

Quando o pai de Deolindo pensa em pegar Rubião pelo braço e levar à sua casa, desiste da idéia, imagina-se vaiado pela multidão. É que a vaia é sinal de descontentamento e sua atitude seria digna de um “estraga-prazer”, que tenta acabar com a festa do povo.

Duas horas depois os vadios foram se dispersando, pouco a pouco. Ou seja, duas horas depois o desfile chega ao fim, o livre contato familiar é encerrado e a communitas deixa de existir, pois o Carnaval chega ao fim. Os foliões têm de retornar às suas casas. Enfim, o mundo às avessas é encerrado e há o retorno à ordem social estabelecida.

E é claro, não poderia jamais faltar numa festa carnavalesca uma relação do profano com o sagrado. A responsável pelo episódio é a mãe de Deolindo, que sentindo-se culpada pela travessura do filho, que também participou do festejo, sonhou que ele era castigado “pela mesma troça” e ela, revoltada, cuspia para o céu, indignada, blasfemando.

Rubião, após o destronamento na rua da Ajuda, continua imperador em seu imaginário. Ou seja, continua vendo o mundo às avessas, em estado de loucura e delírio. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquele véu, através do qual todas as cousas eram outras, contrárias e melhores (ASSIS, a:1977, p.334-335). Quer dizer, Rubião continua no mundo carnavalizado, pois o Carnaval nada mais é do que o momento que as pessoas têm de despedirem-se, ao menos que temporariamente, das mazelas da vida. No Carnaval todo sonho é permitido. Naquele momento podemos nos travestir e nos transformar em outro . E por que não em imperador, com fez Rubião?

E é no folhetim que o narrador esclarece, de forma bastante satisfatória, a questão da vida carnavalesca em oposição à vida real. Vejamos a citação:

— A mania do Rubião não é das que devam ser curadas... Não se espante; ouça-me. Elle pensa ser imperador, crê que dispõe de uma nação, de um exercito, e, por quebra, de uma esposa bonita. Que beneficio lhe quer a senhora dar, arrancando-lhe essa ilusão? O pobre homem, tornado ao que era, sentir-se-a desgraçado. Quem sabe se elle não terá padecido a serio, por simples ilusões? Agora é feliz, por outra illusão. Tudo se compensa neste mundo. Ao meu ver, o melhor é deixal-o Bonaparte.(...)

— Tenha pena delle.

— É natural, mas por que não tem pena de si?(...)

Demais a mais, Rubião é um bom homem, liberal, affavel; adoeceu tristemente, e de molestia que o senhor mesmo acha curavel. Tratemos de cural-o; façamos, ao menos, o possivel. Se o senhor não quizer acompanhal-o, acompanhal-o-hei eu, e apresental-o-hei á administração e aos medicos.Que mal nos virá disto?.

(ASSIS, a:1977, p.238).

Vemos, na conversa que o doutor Falcão tem com D. Fernanda, que Rubião, enquanto imperador, está inserido no mundo carnavalesco, onde todas as coisas são melhores. Vive uma outra realidade, que não aquela estabelecida pela ordem social. O mundo carnavalizado do mineiro, dentro do seu império, é melhor do que o mundo do cotidiano. Ao invés de sentir pena de Rubião, por conta do seu delírio, o médico sugere a D. Fernanda que sinta pena dela, pois estando ela no mundo da ordem, é privada de realizar muitos dos seus desejos e sonhos, pode conhecer a desgraça, a doença e os conflitos que acontecem na vida. Rubião, ao contrário, inserido em seu império, realiza todos os seus desejos e sonhos, sem limites e sem preocupações. No seu mundo às avessas, ele não precisa conviver com a ordem estabelecida, pois ele a estabelece, deixando de ser súdito e tornando-se Bonaparte.

Por que o velho bruxo teria suprimido, em sua edição final, trechos, a meu ver, tão importantes? É uma crítica ferrenha à ordem social estabelecida, mostrando que o mundo dos sonhos é melhor e mais feliz que o mundo real.

Outro momento que remete à praça pública carnavalesca, como já dissemos, são as cenas realizadas na residência de Rubião. Lá vemos o espaço privado sendo transformado em espaço público. São muitas as ocasiões em que vemos Rubião almoçando ou jantando com os amigos. Ou seja, a mesa de Rubião é transformada num espaço comum, onde todos têm voz, todos comem, bebem e riem. Todos estão, portanto, na mesma linha da horizontalidade, não havendo hierarquia, da qual até mesmo o cão, colocado à mesa, participa da communitas carnavalesca.

4.7. — Textos Bíblicos e ditos populares

“Rir é o melhor remédio”, afirma o dito popular, no intuito de que suportemos as dificuldades da vida. E este é um dos objetivos do Carnaval. Rir do supremo, rir do elevado, ironizar o que está num nível hierárquico superior. O nosso bruxo tem olhos de lince, que desnudam a alma humana e revelam as mazelas sociais. Assim, seu narrador ri de tudo. O nosso autor, na voz do narrador, insere no mesmo pacote textos bíblicos e ditos populares, personagens da Bíblia e deuses pagãos, santos e personagens lendárias da literatura universal. Vale dizer, todas essas coisas são colocadas, em seus romances, no mesmo plano da horizontalidade e utilizadas, não apenas para caracterizar suas personagens, mas principalmente para ironizar sua própria sociedade.

Uma das primeiras referências ocorre quando o narrador faz as primeiras observações sobre Sofia. Nesse trecho, o leitor já terá consciência de que Sofia é bela, sedutora e que dificilmente Rubião conseguirá resistir aos seus encantos. Tem-se o riso diluído na ironia, bem como a relação do sagrado com o profano. Rubião, em sua casa, em Botafogo, sentado em sua sala, ainda pela manhã, recordava a primeira vez em que viu Sofia, na estrada de ferro, na estação de Vassouras.

O texto a que se refere o narrador é do profeta Isaías: Ó vinde à água, todos vós que tendes sede, mesmo que não tenhais dinheiro, vinde.(Is.55,1), cujos comentários já fizemos no primeiro capítullo.

Mais adiante, após já ter citado Byron e Gonçalves Dias, Quincas Borba, o filósofo, faz uma alusão à bebida e ao deus Dioniso: Bem irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! Nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embriague como a verdade (ASSIS, b:1977, p.113).

Dioniso era um dos filhos “ilegítimos” de Zeus com Perséfone, sua amante. Zeus era casado com Hera, uma esposa bastante furiosa. A fim de esconder o filho da mulher, Zeus pede que Apolo o esconda. Entretanto, ela descobre o rapaz e pede que os Titãs o matem. Os Titãs esquartejam Dioniso, cozinham as partes e comem. O pai, enfurecido, fulmina os homicidas e de suas cinzas, nascem os homens. Assim, os homens são originários de duas situações antagônicas: o bem (Dioniso) e o mal (Titãs).

Como os deuses são imortais, Dioniso não morre. Ele renasce transformado. Outra amante de Zeus salva seu coração, que ainda palpitava e o engole, ficando grávida do segundo Dioniso. A amante acaba morrendo, por conta de Hera, esposa de Zeus, mas o feto é salvo pelo pai. A gestação continua até o nascimento do menino, que ficou sendo gestado na coxa do pai. Após o segundo nascimento do filho, o pai teme nova vingança da esposa e transforma Dioniso em bode, que é levado para o monte Nisa, onde fica aos cuidados das ninfas e dos sátiros (metade homem e metade animal). É lá que o deus da transformação, juntamente com aqueles que o criaram, descobre as frutinhas vermelhas e, ao espremê-las, acaba inventado o vinho. Embriagados, começam a dançar e cantar.

Dioniso, ao descobrir o vinho, embriagou-se dele e entrou num processo de êxtase e entusiasmo. A bebida tem o poder de causar euforia. Além disso, quando embriagados, temos a capacidade de enxergar diferente o mundo no qual estamos inseridos. É isto que Quincas Borba quis dizer ao Rubião: que ao compreender sua filosofia, o mineiro seria tomado de êxtase e entusiasmo, tal qual Dioniso ao descobrir o sumo da fruta vermelha.

O filósofo, ao fazer alusão a Dioniso, permite que relacionemos o fato com a sua morte e a de Rubião, bem como a morte de ambos numa relação com a vida, no permanente e inacabado ciclo da roda, morte e renascimento. Isto porque Dioniso, deus da vegetação, é morto violentamente, mas retorna à vida. Assim como toda semente tem um período de plantio e de colheita, o deus morre, renasce, frutifica, torna a morrer e retorna, ciclicamente, pois como deus ele é imortal. Sua lenda reproduz as estações do ano: período de semear, de aguardar a semente germinar e finalmente realizar a colheita, quando depois todo o ciclo reinicia incessantemente. Assim o é também o ciclo da vida.

Dioniso, representado como um bode (ou touro em algumas variantes), simbolicamente, significa a capacidade de transformação do homem e da vida, numa típica característica carnavalesca: a vitória da vida sobre a morte. Há que lembrar também a questão da cornucópia, já discutida, uma vez que o bode ou touro também possui corno ou chifre, um dos símbolos do poder.

Dioniso morre nas mãos dos Titãs, é esquartejado e comido por eles, numa ação antropofágica. Este também é um dos princípios da filosofia de Quincas Borba: “humanitas precisa comer”. É o homem lobo do homem, numa antropofagia que significa a luta pela sobrevivência.

No mesmo capítulo, o filósofo Quincas Borba faz referência ao romance Dom Quixote. É interessante observar que, apesar do objeto citado ser a obra e não a personagem, o texto revela a fragilidade e a incapacidade de Rubião, quanto à resistência de suportar as dificuldades da vida. Tal como a personagem Dom Quixote, que também encontrou a loucura, já podemos visualizar aí um adiantamento à personagem Rubião. A citação é a seguinte:

Vês este livro? É D. Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.

(ASSIS, b:1977, p.114-115).

Nesta citação temos Dom Quixote (a obra) enquanto eternidade. Ou seja, sendo, pois, princípio da vida, num eterno ciclo, numa continuidade, a eliminação de um exemplar não interfere na continuidade da obra. Desta feita, as mortes do filósofo e de Rubião não interferem no ciclo da vida. No folhetim, como vimos no primeiro capítulo, Dom Quixote aparece nas páginas de Quincas Borba em um dos bustos que o mineiro tem em sua sala: um domquixote e um Fausto, cuja análise já fizemos.

Santo Agostinho também é citado. Vale notar que a lembrança serve para referir-se ao filósofo Quincas Borba, quando já está explícita, ao leitor, a loucura da personagem. Esta referência consta tanto no romance como no folhetim, quando o filósofo, passando alguns dias na casa de Brás Cubas, no Rio de Janeiro, remete uma carta a Rubião, com os seguintes dizeres:

Meu caro senhor e amigo.

Você há de ter estranhado o meu silêncio. Não lhe tenho escrito por certos motivos particulares, etc. Voltarei breve; mas quero comunicar-lhe desde já um negócio reservado, reservadíssimo.

Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro!

Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e cale-se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus.

(ASSIS, b:1977, p.118-119).

Nesse trecho o filósofo se compara a Santo Agostinho. Ou melhor, pensa que é o próprio santo, apesar de saber que ambos viveram em séculos diferentes. Compara suas atitudes com as daquele, contesta a filosofia do santo e logo, a própria Igreja. Ou seja, ao se comparar com o santo, este (o santo) torna-se objeto do riso, já que o leitor sabe que o filósofo Quincas Borba carece de sensatez, de lucidez. Com o objeto do riso, tem-se a aterrissagem, já que o santo e o filósofo ficaram, então, no mesmo plano da horizontalidade terrestre.

Quando o filósofo acredita ser o próprio santo, tem-se a metamorfose, a respeito da qual já falamos anteriormente. Não podemos esquecer também da questão da temporalidade. Quando o filósofo compara suas ações com aquelas praticadas por santo Agostinho, temos o cronótopo carnavalesco, ou seja, a ausência do tempo, a aproximação total com o objeto em foco e sua transferência para o tempo real. Aí, tempo real e tempo carnavalesco fundem-se e se tornam apenas um. É a metamorfose carnavalesca, a eliminação da noção de tempo e de espaço.

De acordo com o filósofo, ele e o santo divergem num único pensamento: a existência do mal. Para Quincas Borba, o mal não existe e todo ser humano é bom. O mal que carregamos dentro de nós, como um desvio da vontade, é, pois a prática da sua filosofia. Ou seja, Rubião não afastou os amigos do filósofo porque tem a maldade no coração, mas por sobrevivência. Por esta mesma necessidade Cristiano Palha explorou Rubião.

No capítulo XII, do romance, é Rubião quem faz menção a mais dois santos da Igreja Católica: santo Ambrósio e santo Hilário.

—ACABOU DE SOFRER! suspirou Rubião.

Em seguida, atentando na notícia, viu que falava de um homem que tinha apreço, consideração, a quem se atribuía uma peleja filosófica. Nenhuma alusão à demência. Ao contrário, o final dizia que ele delirara a última hora, efeito da moléstia. Ainda bem! Rubião leu novamente a carta, e a hipótese da troça pareceu outra vez mais verossímil. Concordou que ele tinha graça; com certeza, quis debicá-lo; foi a Santo Agostinho, como iria a Santo Ambrósio ou a Santo Hilário.

(ASSIS, b:1977, p.120-121).

Santo Ambrósio nasceu em Treves, no ano de 340 e, por aclamação popular, subiu à sede episcopal de Milão. Dedicou-se ao estudo da sagrada escritura, era um intelectual e ótimo administrador da comunidade cristã a ele confiada. Sua atividade diária era exatamente dirigida ao seu povo e Santo Agostinho foi o seu assíduo ouvinte, referindo-se a ele, inclusive, em Confissões. Santo Hilário nasceu na França e se converteu ao Cristianismo quando já era adulto, após a leitura da Bíblia e a reflexão sobre o fim do homem.

No capítulo XL do romance e no XXXIX do folhetim – que são idênticos – o narrador ironiza os poetas românticos e mistura astronomia com a cultura da Antigüidade Clássica.

EM CIMA, as estrelas pareciam rir daquela situação inextricável.

Vá que a lua os visse! A lua não sabe escarnecer; e os poetas, que a acham saudosa, terão percebido que ela amou outrora algum astro vagabundo, que a deixou ao cabo de muitos séculos. Pode ser até que ainda se amem. Os seus eclipses (perdoe-me a astronomia) talvez não sejam mais que entrevistas amorosas. O mito de Diana descendo a encontrar-se com Endimião bem pode ser verdadeiro. Descer é que é demais. Que mal há em que os dous se encontrem ali mesmo no céu, como os grilos entre as folhagens cá de baixo? A noite, mãe caritativa, encarrega-se de velar a todos.

Depois, a lua é solitária. A solidão faz a pessoa séria. As estrelas em chusma, são como as moças entre quinze e vinte anos, alegres, palreiras, rindo e falando a um tempo de tudo e de todos.

(ASSIS, b:1977, p.40).

De acordo com Junito de Souza Brandão, em seu Dicionário Mítico-Etimológico, página 328, volume I, Endimião é interpretado por alguns mitógrafos como “o sol poente, aquele que mergulha no mar”, o que segundo o autor explicaria o mito do sono profundo. Mas, em sua opinião, não há etimologia correta para o nome, que deve ter origem popular.

A genealogia de Endimião, ou de Endímion, como atribui o autor, é bastante confusa. Consoante alguns autores, o rei ou pastor do Peloponeso ou da Caria, não muito distante de Mileto, é filho de Étlio, rei mítico da Élida e de Cálice. Outros dão-lhe como pais o próprio Zeus e Selene (a lua). Jovem destemido, conduziu os eólios da Tessália para a Élida. A versão mais divulgada de Endimião consta de um pastor de beleza inimaginável e que foi objeto da paixão de Selene. Assim Zeus, a seu pedido, concedeu ao jovem o que ele tanto desejava: um sono eterno, a fim de que pudesse manter para sempre a juventude. Placidamente adormecido na encosta de um monte, recebia todas as noites a visita de Selene que, após cobri-lo de beijos, a ele se unia.

Mas há ainda, segundo Junito, mais duas variantes sobre o sono de Endimião, sendo a primeira delas, que esse sono mágico teria sido provocado pela própria Selene, que o adormeceu para que pudesse encontrá-lo, acariciá-lo e amá-lo, sempre que assim o quisesse. E a segunda, conta que Hipno, o deus do sono, apaixonado pelo pastor, concedeu-lhe o dom de dormir com os olhos abertos, para que assim pudesse olhar os olhos do amante, embora estivesse adormecido. Vejamos o trecho do poema sobre Endimião e Selene, escrito por Teócrito, poeta do século III.

Quando Endimião, o pastor[3],

Guardava seu rebanho,

Ela, a Lua, Selene,

Viu-o, amou e procurou-o,

Descendo do Céu

Para a clareira de Latmos,

Onde o beijou e deitou-se ao seu lado.

Abençoado o destino do pastor,

Que ficou para sempre a dormir

Isento de todas as perturbações

Endimião, o pastor.

Temos também, em Quincas Borba, a paródia de um ditado popular e uma crítica à sociedade. Segundo a inversão do texto, o trabalho não gera fortuna. Afinal, nos romances de Machado não vemos as classes mais abastadas trabalhando, a fim de conseguir seu próprio sustento. Normalmente o dinheiro vem de uma herança, passa de pai para filho ou é resultado de um casamento. Nunca é fruto do sacrifício. Brás Cubas vem de família rica; Helena, de repente, aparece como filha do conselheiro Vale, reconhecida em testamento; Quincas Borba, o filósofo, herdou a fortuna de um tio; Rubião herdou o dinheiro de Quincas Borba, e por aí vai. Logo, a inversão do ditado procede. O ditado tido como correto é: “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Mas o que lemos em Quincas Borba é a inversão, que por sua vez não consta no folhetim.

Rubião não esquecia que muitas vezes tentara enriquecer com empresas que morreram em flor. Supôs-se naquele tempo um desgraçado, um caipora, quando a verdade era que "mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga". Tanto não era impossível enriquecer, que estava rico.

(ASSIS, b:1977, p.123).

Quer dizer, mais uma vez temos a relação pejorativa com o trabalho. As classes mais favorecidas não precisam ir à labuta. Levantar cedo está relacionado ao trabalho escravo. Na edição do folhetim temos o seguinte trecho:

— Que fazia elle, ou que faz agora? Continuou o deputado.

— Nada, nem agora nem antes. Era rico, — mas gastador.

(ASSIS, a:1977, p.200).

Nessa ótica, podemos verificar que, nos textos de Machado de Assis, ninguém enriquece através do trabalho. Quer dizer, naquilo que hoje conceituamos como trabalho. Afinal, o que fez Cristiano Palha durante toma a trama, senão trabalhar? Cristiano trabalhou tanto que se tornou capitalista. Publicava e decotava a mulher; comprava-lhe jóias e ricos vestidos, a fim de que todos a admirassem; aceitava o flerte de Rubião em relação a sua mulher; oferecia festas e reuniões em sua casa à elite aristocrática, a fim de conseguir ser inserido no mesmo meio social; convenceu Rubião a formar sociedade nos negócios; emprestava dinheiro a juros, entre tantas outras atividades. Assim, depende daquilo que chamamos de trabalho, que por sua vez varia de uma sociedade para outra, de uma classe social para outra. Mas voltemos à questão: eu dizia que o dinheiro, se não for de herança de família, sempre chega às mãos das personagens de forma mágica, inesperada. Mas por que tanta crítica a essa sociedade favorecida financeiramente? Talvez porque – o nosso autor – tendo sido pobre e tendo começado a trabalhar muito cedo, aos quinze anos e por isso mesmo, ainda muito jovem, percebeu o quanto era difícil ganhar, ou melhor, fazer alguns contos. A pobreza é impaciente: Joaquim Maria precisava começar, e pequenos serviços, como coroinha na igreja da Lampadosa, terão sido a sua primeira atividade remunerada (VIANA, 1965, p.05) .

Mais uma citação que remete ao sagrado e ao profano, numa indicação bíblica, está num trecho, que somente consta no folhetim e que nos serve para caracterizar a senhora Palha. O trecho faz parte da cena em que Rubião foi à casa de Sofia levando a carta que encontrara no jardim e que a bela dama havia remetido a Carlos Maria. Na ocasião, Rubião declarou seu amor à senhora, que teve sentimentos contraditórios. Um pela satisfação pessoal de saber que o mineiro era apaixonado por ela (Sofia tinha carência de ser adorada) e outro por lembrar o verdadeiro motivo que o levou à casa dela. Agora se fez pomba e serpente, e pediu-lhe a verdade; não exigia nomes, queria só saber se era boato; podia ser um boato (ASSIS, a:1977, p.133). O mineiro acreditava que ela e Carlos Maria tinham um romance. Pomba e serpente. Não é esta a idéia que temos quando pensamos em Sofia. Afinal, a senhora Palha convive com Maria Benedita, trata-a bem, mas deseja que a prima retorne para a roça. Vai à casa de Rubião, acompanhando D.Fernanda, recolher o cão Quincas Borba, a fim de entregá-lo ao dono, mas seu desejo era de não estar ali. Recebe os amigos antigos, mas os trata com pouca consideração, objetivando que eles mesmos tomem a iniciativa de se afastarem. Já a pomba, que simbolicamente significa paz e nos remete à pomba da bem-aventurança da arca de Noé, é a imagem que Sofia transmite aos outros. A pomba é sua máscara, como veremos no próximo item a ser analisado. Serpente é, então, a Sofia revelada ao leitor, numa analogia à serpente de Adão e Eva, que induziu esta ao pecado e à perda do Paraíso.

4.8. — As Mascaradas

Em toda festa carnavalesca há a mascarada. A máscara, curiosamente, longe de esconder quem se é, mostra, na verdade, quem está por trás dela. E nosso bruxo do Cosme Velho, especialista na leitura da alma humana, sabe muito bem disso. Machado de Assis tem como uma das suas principais características colocar as personagens em cena justamente para desmascará-las. E ninguém fica impune aos seus olhos.

Quando o indivíduo usa a máscara, ele deixa de ser ele para transformar-se em outro. É a realidade do jogo. Assim, quando Rubião faz a barba e o bigode à Napoleão III, ele põe a máscara e acredita ser o imperador. Vale dizer, “é a expressão das transferências, das metamorfoses”, como afirma Bakhtin.

Ao colocar a máscara de imperador, Rubião esquece das suas mazelas, suas dificuldades, o amor não correspondido de Sofia, a pobreza que chegou à sua porta e comanda seus exércitos ao lado da sua imperatriz.

É o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da imagem, característica das formas mais antigas e dos ritos e espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável.

(BAKHTIN,1987, p.35).

Mas a máscara traduz também a alternância. Isto é, não se pode ser mascarado durante as vinte e quatro horas do dia. Caso contrário, não há Carnaval. É por isso que Rubião alterna momentos de loucura e de lucidez. Mas no caso específico de Rubião, o jogo foi mais forte que a realidade: o imaginário foi mais forte do que o real. Rubião, ao colocar definitivamente a máscara de imperador, negou-se a si próprio.

Rubião também põe a máscara enquanto cuida, como enfermeiro, do filósofo. Tanta dedicação tem um único objetivo: receber parte do legado. O narrador do folhetim enfatiza muito mais esta situação e revela, inclusive, que Rubião havia encontrado um jeito fácil de conquistar o coração do filósofo: aparentar dedicação sem limites ao seu cão. A máscara, é, pois, um disfarce para que possamos esconder nossa verdadeira intenção. Em seguida cuidou de amar o cão, tanto ou mais do que o dono, caminho certo para entrar no coração de Quincas Borba (ASSIS, a:1977, p.11).

Sofia também é desmascarada durante a narrativa. Longe de ser a boa e meiga protagonista dos romances do século XIX, Sofia, desde o início dos textos, já tem sua máscara, que vai sendo apenas aperfeiçoada, já que ela é convidativa, mas nada pode oferecer. Além disso, em ambas as edições, os narradores fazem questão de frisar que a senhora Palha sempre tinha o controle total dos seus sentimentos (a única exceção está no folhetim, como vimos) com relação às suas atitudes aparentes, como por exemplo no seu interesse por Carlos Maria; sua dedicação a Maria Benedita; a dedicação com que tratava Rubião, que acabou por despertar a paixão do mineiro, entre muitas outras situações.

Sofia alimenta o que Rubião sente por ela. Quer dizer, a partir do momento em que o trata com cortesia, em que aceita seus presentes, em que não lhe nega fitarem o cruzeiro, embora também não o aceite, alimenta, de certa forma, o amor de Rubião. Há momentos em que ela deseja afastar-se do mineiro, mas em razão do jogo de interesses, do desejo de ascensão social, das vantagens que ela e o marido recebem do ex-professor, é mais cômodo, na verdade mais interessante, não se afastarem do “amigo”. Assim, aceitam que ele continue cortejando a bela Sofia. Em razão de tais atitudes, que o ex-professor imagina serem praticadas e pensadas apenas por Sofia (lembra-se da cestinha de morangos, caro leitor?), Rubião deixa-se iludir. Ao final dos textos, o casal Palha, cada um a seu modo, após haver usado o mineiro, esquece-o e abandona-o.

Existem muitos outros episódios que mostram a máscara de Sofia. Quando ela e D. Fernanda estão na casa da rua do Príncipe, objetivando recolher Quincas Borba, o cão, a fim de o entregarem a Rubião, bem o sabemos que D. Fernanda lá estava por ser pessoa piedosa e que, realmente, queria ajudar o mineiro, oferecendo, inclusive, seus próprios recursos, se necessário, como vimos em citações anteriores. Mas Sofia lá estava com o único objetivo de não desagradar a D. Fernanda, esposa de um deputado, futuro presidente de província. Nada sobre Rubião a interessava, apesar de ter convivido com o mineiro por um longo período.

Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incúria. Nem por isso o criado explicava nada, olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polca do dia. Sofia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por fugir “daquela imundice”, dizia a si mesma, e tinha vontade de indagar do cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por ele nem pelo resto. A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. “Que bobagem!” ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.

(ASSIS, b:1977, p.337).

Seus sentimentos com relação a Maria Benedita também eram com máscaras. Tratava a prima com cordialidade e gentileza. Mas quando percebeu que a prima “roubava” as atenções nos lugares que as duas freqüentavam, tinha o desejo de enviar a prima de volta para a roça, embora não o demonstrasse. Esta passagem, entretanto, só ocorre no folhetim.

— “Pois sim, fallo”, tinha dito Sophia promettendo dissuadir a prima da idéia de voltar para a roça.

Mas ha palavras friorentas ou envergonhadas, que não saem fora do coração: nascem dentro delle, e ahi vivem o resto dos seus minutos. Quando muito, enfeitam outras, menos idôneas, e estas é que saem a passear, luzir, respirar os ares da conversação humana. Foi o que se deu com a nossa bella dama. Em quanto esta palavra lhe brotava dos lábios: “Pois sim, fallo”, eis a que lhe nascia e morria no coração: “Vá para a roça, que me não deixa saudades”.

(ASSIS, a:1977, p.77).

Carlos Maria também vive mascarado. Declara seu amor a diversas mulheres, inclusive a Sofia, mas seus sentimentos não correspondem às suas palavras. Aliás, Carlos Maria é incapaz de amar. E isso ele confessa a Rubião, na edição do folhetim:(...) mas a verdade é que nenhuma senhora, casada nem outra cousa, podia dizer que lhe possuía o coração (ASSIS, a:1977, p.86-87).

Freitas também utilizava sua máscara. O narrador, tanto o do folhetim como o do romance, não deixa claro o real sentimento dele para com Rubião. Entretanto, podemos perceber que ele elogiava absolutamente tudo que vinha do mineiro: a comida, as bebidas, os charutos, as rosas no jardim, como se na casa de Botafogo tudo fosse único. Rubião, é claro, gostava dos elogios e Freitas tirava proveito disso. Era sempre convidado para almoços e jantares e sempre saía com os bolsos cheios de charutos. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma frase particular, delicada, e saía de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a quaisquer outros (ASSIS, b:1977, p.135).

Camacho também era mascarado. Proprietário de um jornal, o Atalaia, e sem recursos para mantê-lo funcionando, aproveitou a oportunidade do incidente da rua da Ajuda, quando Rubião salvou o menino Deolindo de ser pisoteado por cavalos, para publicá-lo nas suas páginas. Camacho enxergou em Rubião a oportunidade de “arrancar-lhe” alguns contos de réis para que o jornal não tivesse a tiragem encerrada.

E as máscaras continuam a povoar as páginas das duas edições. Rubião, que antes era rodeado de amigos, que sempre tinha convidados para almoços e jantares, que tinha amigos que estampavam seu nome nas páginas dos jornais da cidade... Rubião, que era admirado por todos e que se tornou uma lenda, morre só, pois seus amigos eram apenas “mascaradas”.

Existem, entretanto, duas personagens que não possuem máscaras: D.Fernanda e o cão Quincas Borba. A primeira se preocupava com os pobres e desfavorecidos e o segundo, como sabemos, realmente amava ao seu dono. Aliás, foi o único companheiro de Rubião durante toda a trama, durante a pobreza, o delírio e a morte. Mas é interessante observar que o narrador compara D.Fernanda e o cão, não só atribuindo aos dois os mesmos sentimentos, mas igualando-os, como se todos os três (o cão, Rubião e D. Fernanda) fossem da mesma espécie.

D. Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o primeiro afago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro. A simpatia universal, que era a alma desta senhora, esquecia toda a consideração humana diante daquela miséria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés dela. Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie.

(ASSIS, b:1977, p.338-339).

Excluindo D. Fernanda, no romance, a única personagem que, aparentemente, não possui máscaras, cuja integridade “moral” é preservada, tanto no romance quanto no folhetim, é pura ironia: Quincas Borba, o cão. Num processo de inversão carnavalesca, este sim, tem sentimentos verdadeiros, ama verdadeiramente, sem nenhum interesse e à medida que o leitor avança nas páginas dos dois textos, vai percebendo nitidamente a degradação do homem e a humanização do animal ou aquilo que deveríamos supor encontrar no ser humano ou ainda o que desejamos encontrar. Será que a humanidade não vale nada e um cão tem sentimentos mais nobres do que o homem?

Na edição do folhetim, como já vimos, o cão é colocado, desde o primeiro capítulo, no mesmo patamar, na mesma linha de horizontalidade que o filósofo e Rubião. Quando Rubião vai morar na casa da rua do Príncipe, o único companheiro do mineiro, além de um criado, é o cão, que lá estava não pela casa, mas sim pelo dono. Quando Rubião, em pleno delírio, retorna à Barbacena, sem destino, pouso ou comida, o cão é seu grande parceiro, dormindo ao seu lado ao relento: adormeceu ali mesmo, com o cão ao pé de si. Quando acordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados (ASSIS, b:1977, p.344). Após a morte do dono, o cão, desvairado, desnorteado, desorientado, é encontrado morto nas ruas, três dias depois. Afinal, como vimos, Quincas Borba, o cão, era uma extensão do filósofo e também do próprio Rubião. Sua morte é, pois, narrada em capítulo especial, que por sua vez encerra tanto o romance como o folhetim. É interessante observar que o cão é encontrado morto após três dias da morte de Rubião. Afinal, terminou o carnaval, que dura exatos três dias.

QUERIA DIZER aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que outro,—questão prenhe de questões, que nos levariam longe... Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.

(ASSIS, b:1977, p,346).

Como vimos neste capítulo, Rubião entrou num processo de delírio irreversível, seja pelo amor não correspondido de Sofia, seja por não conseguir adaptar-se à capital, seja por ter empobrecido, seja pelo fim dos seus dias de poder, seja por não ter conseguido ser o marquês de Barbacena na capital, seja pelo poder não ter lhe dado seu título de nobreza ou ainda em razão de tudo isso. Mas, apesar de tudo isso, parece que o narrador de Quincas Borba nutre uma certa simpatia pelo mineiro, conduzindo a narrativa de maneira que nós, leitores, tenhamos um sentimento de piedade com relação ao ex-professor, principalmente no romance. Tanto parece ser verdade que o narrador, quando se refere a ele, chama-o de nosso Rubião, estabelecendo uma linha de aproximação entre os três ( narrador, personagem e leitor), como vimos no nosso capítulo segundo.

Rubião seria apenas um matuto ingênuo, saído do interior, que teve seu patrimônio dilapidado pelos amigos; que foi explorado por Palha e Sofia até o último centavo e ao final, quando perdeu todo o dinheiro, bem como a lucidez, restando-lhe apenas a miséria, foi abandonado por todos os conhecidos, indo morrer no abandono, sem destino, pouso ou comida.

Mas há que se analisar que Rubião não resistiu às tentações e ao glamour da cidade grande. Ele desconheceu que pertencer àquela sociedade tinha um preço que ele não foi capaz de, ou melhor, não conseguiu pagar. Desta feita, não há porque apiedar-se de Rubião, pois ele não é melhor e nem pior que qualquer outra personagem, não tem mais ou menos caráter do que elas. Por que, então, culpar principalmente Sofia e Palha? Afinal, o próprio Rubião não agiu da mesma forma que o casal Palha e as demais personagens? Rubião não se aproximou do filósofo por interesse em ter uma parte do legado? O interesse de Rubião não foi unicamente o dinheiro de Quincas Borba? Tanto é verdade que Rubião, ao saber da morte do filósofo, doou o cão à comadre Angélica e somente em virtude da cláusula do testamento é que foi buscá-lo.

Rubião saiu do interior e escolheu viver na aristocracia. Por que culpar Sofia por seu comportamento e por seu interesse em moda, etiqueta e jóias? Por que culpá-la de exibicionismo? Sofia utilizou-se do seu único recurso, a fim de ascender socialmente: a beleza e o dinheiro do marido. Por que culpar Palha em virtude de publicar a mulher e permitir que Rubião alimentasse o desejo por Sofia? Eram as regras do jogo da sociedade na qual eles viviam. Cada um utilizou-se, pois, dos seus próprios recursos:1— Sofia utilizou-se da sua beleza; 2— Palha , da beleza da mulher e da sua competência de fazer dinheiro; 3— Freitas, da oratória e da simpatia; 4-Camacho, da influência do seu próprio jornal e da vaidade do Rubião e este, utilizou-se dos seus préstimos de enfermeiro junto ao filósofo Quincas Borba. E Dona Fernanda, que “possuía, em larga escala, a qualidade da simpatia”, segundo o narrador? É preciso lembrar que era esposa de um deputado, quase ministro e futuro presidente de província. Ora, é preciso que repensemos sobre isso. Afinal, amar “os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos” pode ser uma grande contribuição junto à carreira política do marido. Tanto que o narrador não revela atitudes de benevolência de Dona Fernanda, à exceção da comissão formada para auxiliar as vítimas da epidemia de Alagoas, terra natal da mulher, mas não a cidade onde o casal vivia e contribuía com os impostos. Comissão esta formada pelas damas da aristocracia, inclusive a própria Sofia, que teve, em virtude disso, um empurrão em sua ascensão social. Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima” (ASSIS, b:1977, p.220).

Podemos ainda analisar o fim de Rubião pelo ângulo do filósofo. Segundo ele, Rubião era um “ignaro”. Logo, não teria condições de preservar a herança. Ou seja, Rubião seria a confirmação da filosofia do humanitismo, criada por Quincas Borba. Rubião, de posse do legado, não resistiu às tentações da cidade grande e lá chegando perdeu a identidade. Ou seja, na pequena cidade de Barbacena, Rubião seria único – simbolicamente o marquês de Barbacena. Na cidade grande, Rubião era apenas mais um. Daí, o desejo de poder e a fantasia de ser o imperador, coisa que o dinheiro não podia lhe proporcionar. Em Barbacena Rubião provavelmente tivesse conseguido o almejado poder, em razão do dinheiro, e teríamos aí um outro livro.

 

CONCLUSÃO

Vimos, durante este trabalho, que muitas foram as alterações produzidas por Machado de Assis, em Quincas Borba, após sua primeira publicação, em folhetim. Vimos que nosso autor suprimiu vários capítulos e modificou outros tantos. Não há como saber porque o velho bruxo resolveu modificar o texto original. Mas podemos entender qual foi o resultado disso. Quer dizer, a partir da teoria de Mikhail Bakhtin sobre a análise do discurso, pudemos apresentar uma das leituras possíveis, após a comparação entre os dois textos de Quincas Borba: a primeira redação pública, em folhetim, e a edição seguinte, em formato de livro.

Quanto ao narrador, dissemos, no capítulo correspondente, que temos dois narradores distintos, apesar de ambos apresentarem muitas características em comum. São narradores vivazes, astutos e tagarelas, mas que apresentam maneiras diferentes de narrar a mesma história e, portanto, revelam, ao leitor, personagens diferentes.

Verificamos que, no folhetim, as personagens por ele apresentadas são mais emotivas e o narrador revela muito mais o interior e os pensamentos de cada uma. Já no romance, as personagens são isentas de emoção, são mais calculistas e a ênfase do narrador está na crítica ao sistema. Embora o final da história, em ambas as versões, tenha sido o mesmo, as mortes de Rubião e do cão e o apogeu do casal Palha, ao revelar os sentimentos e pensamentos de cada personagem, mais detalhadamente, o narrador do folhetim apresentou, pois, um outro enredo.

Rubião, do folhetim, assim como o do romance, era um fracassado na política e em empreendimentos. Havia tentado a administração de algumas empresas, mas encontrou a falência. Faltava a ele persuasão. O magistério servia apenas para seu sustento: para comer alguma coisa e morrer em alguma parte. De tudo, ainda lhe sobrou uma única ambição: a do dinheiro. Assim, enxergou, no filósofo doente, uma maneira fácil de consegui-lo. Aproximou-se do filósofo por interesse em ter parte no legado; cuidou do cão a fim de agradar ao dono e afastou de Quincas Borba todos os amigos, objetivando ser exclusivo nos cuidados e na amizade do enfermo. Tudo isso nos foi revelado pelo narrador do folhetim.

 Já no romance, fica a dedução de que o mineiro se aproximou do filósofo pelo mesmo motivo. Mas isto não é dito pelo narrador, que se resume a relatar a esperança de Rubião com relação à herança de Quincas Borba. Esperança esta, praticamente alcançada pelo Rubião do folhetim, antes mesmo da abertura do testamento. Isto porque foi o mineiro quem mandou chamar o tabelião, a pedido do filósofo, para que o testamento pudesse ser redigido. O conteúdo não lhe foi revelado com antecedência, nem mesmo sua cláusula. Entretanto, ele pôde verificar a expressão de assombro do testamenteiro. A partir daí, Rubião lutou para demonstrar carinho ao cão, a fim de comover o filósofo, pois ele poderia mudar a cláusula do documento, a favor ou não, do mineiro. Mas, afinal, qual o resultado de tudo isso? O que podemos concluir, a partir de tais revelações?

Concluímos, pois, que o Rubião do folhetim não é vítima do sistema como aquele que consta no romance. Ele usou o filósofo, aproveitou-se dele, a fim de alcançar seus objetivos. Isto quer dizer que o ex-professor, no folhetim, não é diferente de Cristiano Palha. Agiu da mesma maneira, aproximou-se, tornou-se amigo da sua vítima, a fim de conseguir os tão sonhados réis. Cada um utilizou-se, então, das armas de que dispunha: Rubião dos seus préstimos de enfermeiro e Palha, da sua mulher e da competência de saber fazer dinheiro. Assim, existem, pelo menos, duas linhas melódicas e superpostas, que tanto unem as duas personagens (Rubião e Cristiano Palha) na igualdade, como as afastam na diferença.

Na linha das igualdades, vemos que as duas personagens têm ânsia de dinheiro e não descansam até que o tenham conseguido. Para tanto, utilizam-se de qualquer recurso e aproveitam as oportunidades que lhe chegam às mãos. Já na linha das diferenças está a incompetência de Rubião e a competência de Cristiano Palha, no gerenciamento do capital adquirido.

No folhetim, Rubião não é um ingênuo. É tão somente um incompetente. Isto porque, não foi por ingenuidade que contou a questão do testamento a Cristiano, ainda na estrada de ferro. Rubião falou-lhe sobre a herança porque queria dividir com alguém a novidade da riqueza que lhe chegava às mãos, ou melhor, aos bolsos, àquela altura da vida. Estava fascinado. Finalmente, estava rico, assim como Sofia e Cristiano, quando ficaram ricos, que também queriam ser invejados. É o que diz o narrador: A riqueza, caindo tarde nas mãos daquelle galé da fortuna, deu-lhe a embriagues da grandeza e do apparato (ASSIS, a:1977,p.103).

O Rubião do folhetim tornou-se sócio de Cristiano Palha, na tentativa de aproximar-se de Sofia e de agradá-la. Isto não é revelado pelo narrador do romance. Rubião acreditava que tinha dinheiro até não acabar mais e que sua fortuna era eterna. Portanto, de acordo com suas concepções, não precisava dos préstimos e da sociedade com Cristiano. Quer dizer, tivemos, nesse caso, uma estrada de mão dupla: Rubião tinha interesse em ter Sofia por perto e por isso emprestou e investiu seu capital junto ao ex-zangão de praça. Este, por sua vez, cansado da pobreza, também queria ganhar seus contos e através do mineiro, por conta de empréstimos, conseguiu a quantia necessária para iniciar seus ganhos. Desta feita, no folhetim, não foi somente Palha quem se aproveitou do mineiro, mas Rubião também o fez.

Vimos que, no folhetim, Rubião declara seu amor a Sofia. Entretanto, o faz como desabafo, objetivando revelar os sentimentos que estavam guardados dentro do seu coração. Não tinha, naquele momento, nenhuma esperança de que fosse correspondido e um dia viesse a possuir sua amada. Revelou seus sentimentos, apenas despejando a alma. Não tinha ilusões, como diz o próprio narrador. Tinha a consciência de que não era amado, percebeu o jogo de Sofia, que não se aproximou e nem se afastou dele, após o convite para fitarem o cruzeiro. Se Sofia jogou, não teria o mineiro jogado também? Jogou com o dinheiro para ter Sofia junto de si. É preciso atentar, que ambos os narradores revelam que Cristiano, certa vez, quis pagar ao mineiro parte do que lhe devia, mas Rubião recusou. Não teria aí, o ex-professor, jogado mais uma vez? Sim, pois se Palha lhe devolvesse o dinheiro emprestado e mais nada lhe ficasse devendo, é possível que o casal se afastasse dele. Além disso, como já dissemos, Rubião acreditava que sua fortuna jamais terminaria. Então, de que valeria receber o que lhe era devido? Seria conveniente arriscar que Sofia se afastasse dele, já que o marido não lhe devia nenhum favor?

Rubião apaixonou-se por Sofia. O narrador não revela quando teve início a paixão, revela-nos, somente, quando ele e Sofia se conheceram. Entretanto, pelo que conta o narrador, durante a viagem pela estrada de ferro, pouco o mineiro tinha notado a senhora Palha. Estava interessado em revelar suas venturas, sua herança, seu dinheiro... No vagão de trem, tínhamos uma Sofia pobre e apagada, de poucas falas, de gestos encolhidos, cabeça baixa, olhando os pés e com o corpo escondido sob uma capa.

No dia seguinte, Rubião vai à Santa Teresa, onde os Palha residiam. Naquela oportunidade, o mineiro estava ansioso para ver Cristiano, seu recente amigo, e não a Sofia. Ainda não havia notado a mulher, conforme relata o narrador, tanto do romance quanto do folhetim. NO DIA seguinte, estava Rubião ansioso por ter ao pé de si o recente amigo da estrada de ferro, e determinou ir a Santa Teresa, à tarde (ASSIS, b:1977, p. 131). Em Santa Teresa foi que o mineiro começou a notar a Sofia. Não pela sua beleza, mas pelas atenções a ele dispensadas. Sofia desfazia-se em obséquios e foi isso que começou a atraí-lo. Ele era tímido, acanhado e não sabia, segundo ele mesmo, haver-se com senhoras. Desta feita, as atenções de Sofia o seduziram.

RUBIÃO tinha vexame, por causa de Sofia; não sabia haver-se com senhoras. Felizmente, lembrou-se da promessa que a si mesmo fizera de ser forte e implacável. Foi jantar. Abençoada resolução! Onde acharia iguais horas? Sofia era, em casa, muito melhor que no trem de ferro. Lá vestia a capa, embora tivesse os olhos descobertos; cá trazia à vista os olhos e o corpo, elegantemente apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos que eram bonitas, e um princípio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, falava mais, desfazia-se em obséquios; Rubião desceu meio tonto. JANTOU lá muitas vezes. Era tímido e acanhado. A freqüência atenuou a impressão dos primeiros dias. Mas trazia sempre guardado, e mal guardado, certo fogo particular, que ele não podia extinguir.

(ASSIS, b:1977, p.132).

Rubião não tinha amigos, pelo menos o narrador não revela nenhum. Nem em Barbacena, à exceção da comadre Angélica, e muito menos na cidade à qual estava chegando. Rubião era, pois, um solitário. Assim, os obséquios da senhora Palha eram interpretados como gestos de amor. "É tão bonita! e parece querer-me tanto! Se aquilo não é gostar, não sei o que seja gostar. Aperta-me a mão com tanto agrado, com tanto calor. . . Não posso afastar-me; ainda que eles me deixem, eu é que não resisto" (ASSIS, b:1977, p.133).

Vimos, principalmente no folhetim, que Rubião tinha sede de amor, de glória e de uma mulher fidalga. Ora, sabemos que a senhora Palha conhecia muito bem as prendas do lar e embora seu vocabulário francês fosse restrito às coisas do vestido, da sala e do galanteio, era o suficiente para a sociedade da qual passou a fazer parte. Sabia tocar piano; receber com arte, se assim o quisesse; vestia-se com pompa e aparato e ainda era bela. Ou seja, Sofia era, portanto, simbolicamente, a mulher fidalga que Rubião tinha em seu imaginário.

Rubião queria um casamento, a fim de suprir sua cama celibata, como diz o narrador do folhetim. Vestiu-se de preto, para ir á noitinha, á praia do Flamengo. Tinha enfiado as calças; agora atava a gravata, andando. Era no quarto de dormir; duas janellas abriam para a chacara, nos fundos. No meio a cama celibata (ASSIS, a:1977, p.107). Em seus sonhos de casamento, o mineiro sonhava mais com a festa do que com o amor. Ou seja, sonhava com a glória.

ANTES DE CUIDAR da noiva, cuidou do casamento. Naquele dia e nos outros, compôs de cabeça as pompas matrimoniais, os coches,—se ainda os houvesse antigos e ricos, quais ele via gravados nos livros de usos passados. Oh! grandes e soberbos coches!(…) Um desses outros, ou ainda algum menor, podia servir-lhe às bodas, se toda a sociedade não estivesse já nivelada pelo vulgar coupé. Mas enfim, iria de coupé; imaginava-o forrado magnificamente, de quê? De uma fazenda que não fosse comum, que ele mesmo não distinguia, por ora; mas que daria ao veículo o ar que não tinha. Parelha rara. Cocheiro fardado de ouro. Oh! mas um ouro nunca visto. Convidados de primeira ordem, generais, diplomatas, senadores, um ou dous ministros, muitas sumidades do comércio, e as damas, as grandes damas? Rubião nomeava-as de cabeça (…) Lá vinham os condes de Tal, um varão guapo e uma singular dama. . . "Caro amigo, aqui estamos", dir-lhe-ia o conde, no alto; e, mais tarde, a condessa: "Senhor Rubião, a festa é esplêndida. .."

De repente, o internúncio. . . Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los; lá estaria ele com as suas meias roxas de monsenhor, e os grandes olhos napolitanos, em conversação com o ministro da Rússia. Os lustres de cristal e ouro alumiando os mais belos colos da cidade, casacas direitas, outras curvas ouvindo os leques que se abriam e fechavam, dragonas e diademas, a orquestra dando sinal para uma valsa(…).Ceia esplêndida. Cristais da Boêmia, louça da Hungria, vasos de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com as iniciais do Rubião na gola.

(ASSIS, b:1977, p.207-208). 

Rubião nada conhecia da burguesia, nunca havia viajado à Europa. O que Rubião conhecia da nobreza estava nos livros e no almanaque que havia comprado. O restante era por conta dos seus sonhos, da sua imaginação. Durante toda a trama, as mulheres que convivem com Rubião são as seguintes: D. Tonica, cuja pobreza fazia desaparecer todo o encantamento; Maria Benedita, cuja origem era a mesma de Rubião: saiu do interior, mais especificamente da roça, foi para a capital e o que aprendeu sobre comportamento da Corte foi ensinado por Sofia (por que o mineiro iria querer a discípula, se tinha aos seus olhos a mestra?) e D. Fernanda, que era interessada por política e não por etiqueta. Além disso, Rubião era o imperador. Logo, jamais desejaria uma mulher que pedia como quem mandava. Desta feita, não foi difícil para o solitário Rubião cair de amores pela dama casquilha.

Vimos que Rubião entrou num processo megalomaníaco e em virtude disso acabou enlouquecendo. Em seus delírios, conseguia realizar seus majestosos sonhos. É esta uma das principais diferenças entre o folhetim e o romance. Ou seja, sabemos que, no romance, Rubião também enlouqueceu pelos seus sonhos de grandeza. Mas é que nesta edição, parece que o narrador impõe um peso a mais nesta paixão platônica. No folhetim, como vimos, é Sofia quem pensa que o mineiro a amou até a loucura ( e isso muda tudo !).

Um dos grandes problemas de Rubião é que seus sonhos não eram daqueles que ele poderia apalpar. Em seus delírios, ele flutuava, retirava os pés do chão e voava, tocando as estrelas. Tinha o desejo de ser conhecido além do ambiente que freqüentava. Na cidade grande, tinha se tornado, pois, um anônimo. Lembra-se de quando o narrador, do folhetim, nos conta o episódio do velho, que Rubião livrou de ficar na cadeia? Qual foi a grande insatisfação do mineiro, após o ocorrido? Que o velho não foi lhe agradecer particularmente o gesto caridoso e que os jornais da cidade não divulgaram que foi ele, Rubião de Alvarenga, quem havia ajudado ao senhor. Vimos que este fato ocorreu depois do episódio de salvamento do menino Deolindo. Assim, acredito, pois, Rubião haver pensado que o episódio do velho bêbado iria lhe render as mesmas glórias que o caso da rua da Ajuda.

Temos, portanto, no folhetim, uma personagem diferente daquela que encontramos no romance. Uma personagem mais ousada, que declarou seu amor a Sofia; aproveitou-se do dinheiro para tê-la junto com ele e com um ato antropofágico equivalente ao de Cristiano Palha, aproveitou-se do filósofo, objetivando ser incluído no testamento. Ou seja, um Rubião nada ingênuo, como aquele que encontramos no romance. Desta feita, o Rubião do folhetim não seria o melhor exemplo para a filosofia do humanitismo, de Quincas Borba. No folhetim, o ponto de partida para exemplificar a filosofia do humanitismo seria o próprio filósofo, que foi usado por Rubião.

Um Rubião menos ingênuo, e, portanto, menos vítima do sistema, resulta numa vilania menos densa do casal Palha. Teriam agido, Sofia e Palha, de forma diferente do nosso mineiro? Sofia, ao enriquecer, esqueceu-se dos antigos amigos, que podiam, então, envergonhá-la. Antigos amigos, porém, pobres. E o que fez Rubião, senão afastar-se dos conhecidos de Barbacena? É bem verdade que o narrador não revela nenhum amigo, além da comadre Angélica, principalmente no folhetim. Depois que Rubião tomou posse do dinheiro herdado, afastou-se e não mais manteve contato com ninguém da sua cidade. Quando o mineiro vai morar na capital, o olhar do narrador vai junto com ele, retornando à Barbacena somente quando da sua morte. Então, enquanto Rubião está na Corte, a pequena Minas é um foco perdido, sendo lembrada, apenas, quando das saudades de Rubião da sua cidade natal. Saudades estas que começaram a tomar conta do mineiro quando ele percebeu, ainda que inconsciente, que na capital não havia lugar para seus sonhos.

E a dama casquilha? Sofia poderia ser tão somente o seguinte, conforme nos diz Araripe Júnior, em artigo publicado no jornal Gazeta de Notícias,em 16 de janeiro de 1892.[4]

Daí a razão pela qual, no seu último livro, Sofia nos aparece, entre Rubião e Carlos Maria, em uma eterna vacilação, que a muito custo se compreende. Encarada substancialmente, essa mulher é uma desonesta, senão uma descarada: admite que o marido especule e enriqueça através de sua formosura e à custa do amigo, de quem ela recebe presentes de jóias custosíssimas; aceita a corte de Carlos Maria e adultera em espírito com ele, essa indiferente; tem ciúmes de Maria Benedita, só porque se fala em casá-la com Rubião; chafurda-se no sensualismo do luxo; sonha grandezas orientais; e atira coquetemente convites impossíveis à virilidade indisposta do idiota do herdeiro de Quincas Borba; entretanto, esse idiota, no primeiro acesso de loucura, encerra-se com ela no fundo de uma carruagem, e a depravada, tendo bastante espírito para não arrecear-se do louco, hesita em satisfazer o hausto febricitante do seu erotismo vulgar e complacente.

Tem razão Araripe Júnior. Sofia é isso, mas não apenas isso. Como Rubião não é apenas este idiota de virilidade indisposta. Araripe condena a senhora Palha porque ela deseja o luxo e porque faz uso da ostentação. E o que faz o mineiro, depois que enriqueceu, senão o mesmo que Sofia e ainda um pouco mais? O que muda entre Rubião e a bela dama é a voz do narrador, que condena Sofia e nos conduz a fazer o mesmo, principalmente no romance. Se Sofia ostentava braços e espáduas, ricas jóias e belos vestidos, Rubião ostentava sua sobrecasaca, sua bengala de unicórnio, seu peito erguido, suntuosos almoços e jantares.

Não estou aqui, defendendo Sofia e acusando Rubião, apenas concluo que, por mais que o narrador deseje que eu tenha piedade dele, percebo que nosso amigo não é tão digno assim do meu sentimento de pena, principalmente no folhetim. Concordo que o sistema é perverso, que os fracos são sucumbidos e que só os fortes sobrevivem. Aí sim, Rubião entra como um exemplo da fragilidade e da incompetência, inadmissíveis num sistema capitalista.

Sofia também sofre modificações quando da escrita do romance. A principal delas, como já vimos, é o desejo que a dama casquilha tem de amar. Isto quer dizer que o narrador do folhetim mostra uma Sofia menos realizada. Ou seja, falta-lhe algo: um amor. Isto mostra uma Sofia menos esvaziada, pois tem sonhos que não apenas o dinheiro pode comprar. A Sofia do folhetim continua desejando Carlos Maria, a glória e o poder. Mas quando deseja amar, é, pois, humanizada em seus sentimentos. Não é tão e somente a Sofia que deseja ser invejada, mas ainda a mulher que deseja conhecer o amor. Diferentemente da Sofia do romance, ela talvez se pareça com tantas mulheres que existem por aí. Assim, é, pois, uma pessoa menos incomum e, portanto, menos dissimulada e mais humana. Vale dizer, uma personagem diferente daquela que nosso autor desejou para representar a aristocracia do seu tempo (e do nosso?!), haja vista as modificações nela realizadas.

Cristiano Palha, como comprovamos neste trabalho, também sofreu alterações na pena do narrador, na passagem do folhetim para o romance. A desconfiança de Palha, de que Sofia e Rubião têm um envolvimento amoroso, é o que nos chama mais atenção. Vemos, na edição do folhetim, um Palha ciumento, à beira de um ataque de nervos, que pensa, inclusive, em matar ao Rubião, caso comprove o adultério da mulher. Isto, longe de isentar Sofia, mostra um Cristiano Palha passível de emoções e que, como a maioria das pessoas, pode perder o controle diante de uma situação; pode falhar numa perspectiva; pode concluir errado; pode cometer erros e pode não ser o grande administrador, de visão múltipla e ampliada, mas sim de visão míope, em determinadas ocasiões. O narrador do folhetim mostra um Cristiano Palha mais parecido com a maioria de nós. E ao revelá-lo mais próximo de nós, o narrador o faz mais distante da sociedade que tanto critica. Sim, pois retira de Cristiano um pouco da frieza, do cinismo e deposita nele alguns momentos de emoções. Logo, temos, no folhetim, um Palha menos esvaziado e mais emotivo e, portanto, mais frágil, menos forte. E em sendo mais fraco, não serve de exemplo para a filosofia de Quincas Borba e não talvez não seja merecedor de ganhar a batalha e levar as batatas.

Dona Tonica, no folhetim, além do casamento, deseja encontrar um companheiro e principalmente quer ser amada. O narrador do folhetim não faz da filha do major Siqueira uma mulher mais bela, nem permite que ela se case, pois também mata seu noivo três dias antes do casamento. Mas este narrador revela uma Tonica bondosa e menos apegada às coisas materiais. Lembra-se de quando ela cuida do cão perdido e de quando pede ao Rubião que doe o valor da recompensa à Nossa Senhora, na igreja do Largo do Machado? É possível, também, que d. Tonica não tenha ficado com a recompensa a fim de chamar a atenção do mineiro, o que aconteceu, embora o gesto não tenha resultado em frutos, ou seja, numa relação entre os dois.

Mas certo é que, ao recusar o dinheiro, o narrador valoriza a personagem, como vimos no primeiro capítulo. E ao valorizá-la, faz, por analogia, o mesmo com Sofia. Isto porque, mostra uma Tonica que cuidou do cão, recusou a recompensa, deseja um casamento, mas além disso, também é desejosa de amor, da mesma maneira que Sofia. Desta maneira, o narrador do folhetim aproxima, em sentimentos, a filha do major Siqueira e a senhora Palha. O resultado disso é desastroso. Mais do que diluir o riso do leitor com relação a d. Tonica, que até então era uma quarentona, solteirona, com olhos cansados de tanto esperar, e agora é uma personagem capaz de realizar caridade com bichos (e, por que não, com gentes?!), é também uma Tonica desejosa de amor, tal qual Sofia.

Bem, sabemos que a filha do major Siqueira é pobre e não pertence à aristocracia. Talvez, não houvesse aí nenhum problema em mostrá-la de tal maneira. O problema é que a Tonica do folhetim é uma personagem especial, de atitudes nobres. E o que ocorre é que o narrador aproxima Tonica e Sofia. Por conseqüência, aproxima classes sociais distintas em sonhos idênticos, revelando uma aristocracia diferente daquela que pretende criticar. Logo, ao invés de promover o esvaziamento da senhora Palha, o narrador faz exatamente o contrário. Desta feita, foram retirados, das duas personagens, os sonhos de amor, na edição seguinte. E diferente de criticar somente a aristocracia, criticou o ser humano. Sim, porque a d. Tonica do romance não deseja um companheiro, mas simplesmente um casamento, seu único sonho, não realizado por conta da sua condição financeira. Quer dizer, se ela não fosse pobre, talvez não fosse a quarentona, solteirona que encontramos nas páginas de Quincas Borba. Se ela não fosse tão pobre, talvez tivesse encontrado um casamento ou mais do que isso, um amor, um companheiro.

Carlos Maria não sofre alterações no comportamento, apenas tem sua intimidade revelada pelo narrador do folhetim. O que nos conta este narrador é que o rapaz galhardo se recusa a amar. Segundo ele, como vimos, quem ama iguala-se, rebaixa-se: Tenho um livro lá em cima que diz que o amor eguala Marco-Aurelio e o seu lacaio. O senhor provavelmente não sabe quem foi Marco-Aurelio… Bem, fique sabendo que não sou eu; para que heide imitar o lacaio?(…) (ASSIS, a:1977, p.86-87). O narrador do folhetim esvazia Carlos Maria, mostrando uma personagem incapaz de amar alguém. Se é incapaz de amar, está explicado ao leitor porque ele não se envolveu com Sofia. Dessa maneira, não há como prestigiar Maria Benedita em detrimento de Sofia. Além disso, acredito que o objetivo do narrador seria aproximar Carlos Maria e Sofia, tornando-os personagens idênticas. Somente assim, promove a crítica à aristocracia, bem como seu esvaziamento. Assim, o narrador do folhetim mostra duas personagens muito diferentes: um Carlos Maria que não é capaz de amar e uma Sofia desejosa do mesmo sentimento, até então, rejeitado por ele.

Já o narrador do romance coloca Sofia e Carlos Maria na mesma linha horizontalizada, igualando-os. Ambos acreditam-se superiores: ele, o deus grego e ela, a mais bela dama. No romance, Carlos Maria convida Sofia ao adultério, mas a abandona. Ao que parece, o faz porque ele necessita ser adorado e amado. Sofia o é do mesmo modo e não compreende porque foi abandonada. São iguais, simplesmente. São idênticos porque pertencem à mesma classe social.

Dona Fernanda é uma personagem que não é atingida pela língua ferina do narrador do romance. Ao contrário, o narrador do romance suprime da bela guasca as características que poderiam desvalorizá-la. O narrador do folhetim é, pois, mais implacável com a mulher do Teófilo, pois revela uma personagem cuja ambição política está acima dos sentimentos. No folhetim, D. Fernanda passou a integrar a comissão de Alagoas a fim de auxiliar o marido politicamente. Ele aproveitou-se do fato da mulher ter nascido naquele Estado e colocou-a para liderar uma comissão formada para auxiliar seus desabrigados. Certo é que não mais viajavam à terra natal da mulher e nem havia sido eleito deputado por aquele lugar. Além disso, quando Teófilo foi designado para assumir a presidência de uma província, D. Fernanda agradou-se da idéia e vivia eufórica com o prestígio do marido. Certo é também, que a ascensão do marido só beneficiava a própria família. Aos outros, daria apenas novos impostos.

Quando lemos o romance, temos apenas uma D. Fernanda caridosa, que utiliza-se da política para ajudar aos pobres e aos necessitados. Ou seja, é uma personagem mais adequada para representar os sentimentos do cão, Quincas Borba. Lembremos, mais uma vez, da cena em que Dona Fernanda vai à casa da rua do Príncipe resgatar o cão, quando o narrador aproxima as duas personagens até representá-las como se ambas fossem da mesma espécie. Assim, para igualar D. Fernanda ao cão, é preciso que seja retirada da bela guasca qualquer característica que venha denegrir sua imagem enquanto ser humano. É preciso que tenhamos uma personagem de sentimentos nobres. Somente assim, pode ser feita sua analogia com o cão, que é humanizado durante toda a narrativa.

Quanto ao cachorro, tenha ele pêlo cor de chumbo — no romance — ou de café — no folhetim, temos exatamente o mesmo cão. Aí, não há divergência entre os narradores. É o mesmo Quincas Borba, que inicialmente pertence ao filósofo e depois, ao Rubião. É o mesmo cão amigo, apaixonado e principalmente fiel ao dono. É o mesmo animal que acompanha Rubião e que fica ao seu lado, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença. É o mesmo Quincas Borba que morre, após a morte de Rubião. É o mesmo cão que recebe, do narrador, um capítulo especial, apenas para narrar sua morte, tal qual seu dono. O que ocorre é que, no romance, a humanização do cão é mais densa, elevada ao extremo, porque o narrador esvazia as personagens que fazem parte da trama, à exceção de D.Fernanda.

No capítulo dedicado à carnavalização, vimos que o cão é uma extensão do filósofo e ainda do Rubião, constituindo-se, pois, no duplo deste. Esta questão é melhor compreendida no romance, que apresenta um Rubião mais ingênuo, vítima do sistema e que ama loucamente sua Sofia. No folhetim, a idéia de que o cão é uma extensão do mineiro é um pouco mais frágil ou talvez mais distante de ser o ideal. Isto porque, sendo Rubião um interesseiro, calculista e consciente da negação do amor de Sofia, o cão não deve ser seu duplo, apesar de ser ele (o cachorro) quem o observa e o julga, como já comentamos.

Quanto à filosofia de Quincas Borba, vimos que Rubião lhe serve melhor de exemplo no romance, já que é mais vitimado pelo narrador, que, por sua vez, consegue elevar a intensidade da nossa compaixão.

O bruxo do Cosme Velho realizou, pois, um verdadeiro trabalho de artesão. Um trabalho de quem tem um feixe de madeira bruta nas mãos e vai polindo, vagarosamente, cada uma, até transformá-la numa obra de arte. Um trabalho paciente, minucioso e delicado. Com toques sutis na sua pena, alterou, algumas vezes, um simples verbete e produziu uma infinidade de novos significados. Detalhes pequenos que se mostraram gigantescos. Ao reescrever Quincas Borba, escreveu, então, um outro livro.

Não vou dizer aqui que o segundo é melhor que o primeiro, ou o contrário disso. Não sou a leitora mais indicada para opinar, já que sou uma apaixonada pelo velho bruxo, e mais ainda por esta obra. Devo sim, mostrar, que de acordo com meu entendimento, a reescrita é mais ácida, quando da caracterização das personagens pertencentes à aristocracia e mais branda, quando caracteriza o Rubião. Já no folhetim, temos exatamente o inverso. Rubião recebe a lança pontiaguda do narrador, enquanto aqueles que ascendem ao topo da pirâmide são retratados de forma mais amena, se fizermos a comparação com o romance. Agora é interessante comentar, também, que o narrador do folhetim é mais ácido quando caracteriza o ser humano. Lembra-se da história sobre as andorinhas e o fio elétrico? É a caracterização do egoísmo do homem. Assim, como está, os sentimentos são generalizados e não direcionados a determinadas personagens, diferente do que acontece no romance. Quer dizer, o narrador do folhetim desprestigia o ser humano e o do romance, a aristocracia.

Detalhes... minúcias... delírios... loucuras... que me fizeram embarcar na mesma estrada de ferro e realizar uma nova viagem. Uma viagem que me permitiu conhecer ainda mais e um pouco melhor o velho bruxo. Quincas Borba sempre foi, desde os meus dez anos, quando o li pela primeira vez, meu livro preferido e deve continuar até o fim dos meus dias. E nessa preferência e paixão declarada, sinto-me uma privilegiada por ter tido a oportunidade de conhecer sua oficina de criação.

Percebo que Machado de ASSIS é um escultor vagaroso e acima de tudo muito crítico com sua produção. Não satisfeito com o que havia escrito, não titubeou ao fazer as mudanças. Reescreveu, então, um Rubião cândido, simplório, interessado em dinheiro, mas por demais ingênuo para administrá-lo. No romance, reescreveu um Rubião perdido de amor por sua Sofia, mas tímido demais para declarar-se, para abrir-lhe o coração. Assim, sofreu pela falta de coragem e nesse sofrimento, iludiu-se. Sofreu, calado, sua dor de amor. Não conseguiu sua amada e tampouco adaptar-se na cidade grande. Era interiorano demais, simples ao extremo para viver como se na capital tivesse nascido. Enquanto durou seu dinheiro, teve à sua volta muitos amigos. Enquanto tinha sua fortuna, ainda teve a presença da sua amada, ainda que ela não fosse sua. Mas quando o dinheiro começou a escapulir por entre os dedos, tal qual gota de mercúrio, começou, ainda que inconsciente, seu delírio. Em suas divagações comandou exércitos, conquistou o mundo e não apenas a capital. Diferentemente da sua vida real, em seu imaginário continuava possuindo a pompa, o luxo, a riqueza e principalmente o poder. Em seu delírio não estava só, pois tinha, ao seu lado, a imperatriz Eugênia, com o rosto de sua Sofia. Em seu imaginário, quando perdeu tudo, subiu ao trono. Coroou-se de nada, porque nada havia lhe sobrado. Perdeu a dignidade. Perdeu sua identidade. Encontrou, tão e somente, a solidão do abandono. E não encontrando lugar para viver seus sonhos, despediu-se da vida e entregou-se à morte. Entretanto, não morreu súdito, nem vencido, pois era ainda, nos seus últimos minutos de agonia, o imperador.

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Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras – Subárea de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Estudos de Literatura.

Orientador: Prof. Dr. LUIS FILIPE RIBEIRO

NITERÓI

2006

Aprovada em fevereiro de 2006

BANCA EXAMINADORA

Prof.Dr. Luis Filipe Ribeiro – Orientador

Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Ronaldes de Mello e Souza

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Paulo Bezerra

Universidade Federal Fluminense

 



[1] Esta tabela foi baseada nas Edições Críticas de Obras de Machado de Assis,vol 14, publicada pela Civilização Brasileira, em 1977, que realiza um estudo crítico-filológico, mas não discursivo, como é a proposta deste trabalho.

[2] -. BEZERRA, Paulo. Sancho Pança: esse duplo de dom Quixote. In: Dom Quixote: Utopias. Organização de André Trouche e Livia Reis .Niterói: EdUFF, 2005.

[3] Fonte: http://www.geocities.com/Athens/Styx/4087/endimiao

[4] MACHADO, Ubiratan (Org). Machado de Assis, Roteiro da Consagração, Rio de Janeiro, Eduerj,2003.