Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA 
Textos literários em meio digital

Bolhas de sabão, de Bastos Tigre


Edição de referência:

BASTOS TIGRE, M. Bolhas de sabão.

Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1919.

 

ÍNDICE

FALANDO AO POETA

O SÁBIO

MÚSICA

ESCULTURA — PINTURA

UM BOM AMIGO

A UM ENAMORADO

A UM VELHO

O JOVEM MONGE

VERDADES

RECEITA PARA SER FELIZ

IMITAR

31 DE DEZEMBRO

ANO NOVO, VIDA NOVA

SER LIVRE

D. QUIXOTE "SÉCULO XX"

EXAME DE CONSCIÊNCIA

FREI TOMÁS LEGISLADOR

EGO SUM

VISITA DE FINADOS

CAVAR

VOZ INTERIOR

FEMINISMO

A MULHER PARLAMENTAR

A CRIANÇA DE BOM CORAÇÃO

INFLUÊNCIA DA MODA

RESTRIÇÕES À MODA

VISITA MÉDICA

SOSSEGO DE ESPÍRITO

EPITÁFIOS

O ESPERANTO

SUICÍDIO POR LEITURA

DIVÓRCIO AMIGÁVEL

A DEFESA DE JUDAS

MADRIGAL PIANÍSSIMO

SINCERIDADE

A PERPÉTUA VIUVEZ

50%

O MARIDO EGOÍSTA

ARGUMENTO DE DEFESA

VELHA HISTÓRIA

AS CONDIÇÕES DA PAZ

TERRIBILE DEA

CAMONIANO

O HÁBITO NÃO FAZ A MONJA

ETERNA DÚVIDA

PROMESSAS

RIDE...

A CRIAÇÃO

A TENTAÇÃO

O DILÚVIO

ESAÚ E JACÓ

JACÓ E RAQUEL

A VOLTA DO EGITO

NO DESERTO

A MULHER DE PUTIFAR

O CASTIGO

JUDAS

VÊNUS

CUPIDO

MERCÚRIO

BACO

MINERVA

JUNO

SILENO

FAETONTE

AMIZADE AMOROSA

AMOR BELIGERANTE

TEMPLO EM RUÍNAS

THE WOMAN, THE PLACE AND THE HOUR

MUDANÇA DE TRATAMENTO

UMA MULHER

PENÉLOPE

CATORZE DE JULHO

QUADRAS

NO CLAUSTRO

CONSTÂNCIA MÁXIMA

CIÚME PÓSTUMO

AMOR GASTRONÔMICO

LUA DE MEL

NÃO HÁ COMO O LAR

AMOR SECRETO E VÁRIO

DESAFINAÇÃO

O BELO HORRÍVEL

AMOR FILOSOFANTE

TEATRO ALEGRE, O LEQUE

LULU E LILI

A MENINA VAIDOSA

VOCÊ NÃO SABE...

O LEMA DA PÁTRIA

A BRINCADEIRA

PEDRINHO

O CASAMENTO DA VELHA

A COZINHEIRA

A GLORIUS DAY

CIÚMES DE ESTRELA

MANHÃ DE PETRÓPOLIS

CASCAVEL AGRADECIDA

A CHUVA

POR CAUSA DA GUERRA

CAUSA MECÂNICA

MEDIEVAL

IDEIAS LEVES

OS TRÊS "CADÁVERES"

MEU ANO BOM

A CRISE

CONTRARIAR A VONTADE

MADRIGAL

DISCURSO FEMINISTA

TERESÓPOLIS

AS CORES DAS VOGAIS

ECONOMIA DOMÉSTICA (provérbio)

A SORTE GRANDE

AS CHAVES DO COFRE

ARTE, NÃO ARTIFÍCIO

O CAÇADOR

OLHARES CARNÍVOROS

A SORTE DO ZECA

FECHANDO O VOLUME

 

FALANDO AO POETA

Poeta, espedaça, corda a corda, a lira!

Não cantes mais, que tudo o que cantares,

— Brilhos de sol, de estrelas e de luares,

É de miragem feito e de mentira.

Falsa é a glória de amor que proclamares;

Falso é o peito do amante que suspira;

Mente-te a própria musa que te inspira,

Mentem-te os próprios santos dos altares!

Não existe a verdade por que anseias

E de que, lira em punho, andas no encalço,

Perscrutando a tua alma e almas alheias.

Mentira é o mal que exprobro, é o bem que exalço.

Ouve-me, poeta, mas em mim não creias,

Pois que isso mesmo que eu te digo... é falso.

 

O SÁBIO

Porque, sábio, o teu cérebro se empenha

No esforço de entender o "nada" e o "tudo"?

Porque encaneces, a buscar no estudo,

Para entrar no Mistério, o santo e a senha?

Fulge no espaço o sol, sem que, contudo,

Nesse fulgir teu cálculo intervenha;

E, impassível, o Céu de ti desdenha,

Se olhas o Céu, contemplativo e mudo!

Dos astros descrevendo a trajetória,

Ou mergulhado nas filosofias,

Sábio que, de vaidoso, em ti não cabes.

Pensa, gozando a tua própria glória,

Que enorme Enciclopédia escreverias

Sobre todas as cousas que não sabes!

 

MÚSICA

Bramir de oceano e ruídos de floresta,

Marulhos de regatos sussurrantes,

Gritos de dor, agitações de festa,

Vozes vindas de páramos distantes.

A tudo, ó Músico, o teu gênio empresta

Alma, estilo, bravura, ardor, cambiantes,

Em que a vida do som se manifesta

Em formas novas e expressões brilhantes.

O poder do teu estro extraordinário

Grava na pauta o beijo dissoluto

Ou a dor de Magdalena no Calvário.

E eu, Mestre, mudo de emoção, te escuto:

Preferindo, entretanto, o meu canário,

Que nunca foi aluno do Instituto...

 

ESCULTURA — PINTURA

Talha, escultor, no mármore, o mais puro,

A Humana forma; a linha, a mais distinta,

Grava a buril, com tão cuidado apuro

Que na pedra o teu gênio se pressinta.

E tu, pintor, a luz, o claro escuro,

Todas as cores e matizes pinta!

Um deus criador da vida em ti figuro,

Que faz a vida com o pincel e a tinta.

Deixa o artista glorioso e soberano

Na obra d'arte — no mármore e na tela —

A traça do seu gênio sobrehumano.

Mas ninguém um segredo me revela:

— Porque a vida fazer de pedra ou pano,

Se a Natureza nola dá tão bela?

 

UM BOM AMIGO

Um figadal inimigo

Falou muito mal de mim;

Mas eu palavras não ligo...

Más línguas são sempre assim.

Fez-me, porém, certo espanto

Que o autor de tanta maldade

Me descobrisse, entretanto,

Certa nobre qualidade.

Qual foi, desvendar não pude:

Mas o tipo achou, em suma,

Que no capítulo "virtude"

Eu possuo ao menos uma...

No mesmo dia de um amigo

Disse de mim muito bem;

E, aqui francamente o digo,

Não liguei muito também...

Nem sequer me causa espanto

Que, entre dotes tão perfeitos,

Ele notasse, entretanto,

Que eu tenho vários defeitos.

Quais, não sei... (ninguém presuma

Pecados extraordinários)

Mas meu amigo acha, em suma,

Que eu tenho defeitos "vários".

Notei pois: — meu inimigo

Dá-me "uma" virtude, apenas:

Ao passo que o meu amigo

Defeitos me dás às dezenas.

E nestas linhas comento

O fato, com certo gozo:

Como o inimigo é avarento!

Como o amigo é generoso!

 

A UM ENAMORADO

Tu, que inda crês no amor, pensa um instante

E verás que esse estranho sentimento

Que te conturba o vário pensamento

E te faz triste e pálido o semblante.

É um tributo ao teu próprio valimento:

— O amor de ser amado, sendo amante,

Vaidade de maior sentir-se, diante

Dessa que é o teu cuidado e o teu tormento.

Feição mais nobre (ou menos vil) do egoísmo,

O amor é sentimento subalterno;

— O orgulho de apresar almas alheias.

Desce dos corações ao fundo do abismo

E, então, verás que o próprio amor materno

É amor do próprio sangue em outras veias.

 

A UM VELHO

De que valeu viveres tantos anos,

A sofrer da existência os dissabores,

Enganado, a buscar novos enganos,

Curando a velha dor com as novas dores?

Falharam-te de glória os nobres planos;

Desejavas o amor, tiveste amores...

E hoje passas, cansado, entre os humanos,

Indiferente a ápodos e a louvores.

De nada, te serviu quanto aprendeste

Do mundo e tudo quanto viste e quanto

Em mil volumes, velho amigo, leste.

De nada. E a vida foi-se-te, entretanto;

Se para envelhecer é que viveste,

Não te valera a pena viver tanto!

 

O JOVEM MONGE

De longas barbas louras, derramadas

Sobre o negro burel, a vasta fronte

Rosada e as faces nédias e rosadas,

O monge cisma, de olhos no horizonte.

Vê as terras de Deus, iluminadas

Pelo sol da Esperança e a pura fonte

D'Água Viva da Fé e as sazonadas,

Fartas espigas do sagrado Monte.

Campos a cultivar!... trabalhar rude:

Arrancar as riquezas que entesoura

A Alma, rica em minérios de virtude!

E eu penso, ao ver-lhe a face, e a barba loura:

— Belo animal de músculo e saúde!

Que bons braços a Fé rouba à Lavoura!

 

VERDADES

D. Quixote

O que ao corpo a nudez nos reveste

Não nos muda a moral, nem de longe;

Pois — de monge, quem habito veste

Nem por isso tem alma de monge.

Sancho

Pois eu cá, meu senhor, não sou bobo

Que as orelhas de burro afivele!

— Quem não quer neste mundo ser lobo

Não se meta de um lobo na pele.

D. Quixote

Um rifão cuja autenticidade

Não é coisa de que se suspeite,

Diz que — vem sempre à tona a verdade

Como n'água uma gota de azeite.

Sancho

Quem tal diz está doido e delira!

Sempre ouvi, desde os tempos de moço,

Que — o que fica na tona é a mentira

E a verdade... no fundo do poço...

D. Quixote

A união nos dará forças raras

Por que o mundo tranquilo nos deixe;

— Se, uma a uma, se quebram dez varas,

Não se as quebram reunidas num feixe.

Sancho

Por um prisma distinto é que eu olho;

Vejo o caso, meu amo, diverso;

Sei que o — trigo emaçado num molho

É melhor de cortar que disperso.

D. Quixote

Esperar é virtude do forte;

É o escudo da vida a esperança:

Confiar nos favores da sorte...

— Quem espera, afinal, sempre alcança.

Sancho

Mas também há quem tenha concluído

Com o exame à razão mais severa,

Que esperar é trabalho perdido:

— Quem espera, afinal, desespera.

D. Quixote

É feliz quem na sorte confia;

Quem a tais desesperos se poupa:

O que é nosso até nós vem um dia:

— Deus dá o frio de acordo com a roupa.

Sancho

São Palavras, são ditos, são vozes,

Mas de vozes eu sei diferentes;

Tenho dentes? procuro ter nozes:

Deus dá nozes a quem não tem dentes.

D. Quixote

Que te trace a formiga o roteiro:

— A cigarra não sejas, vadia,

Que não cuida de encher o celeiro

E que vive a cantar todo o dia.

Sancho

Est modus in rebus. Conselho

Não é esse a um cantor de renome,

— A cigarra a não ter por espelho,

O Caruso morria de fome!

D. Quixote

Caminhemos, ó Sancho, o ditado

A verdade mais clara reflete:

— Todo o barco que fica parado,

Caro Sancho, não ganha o seu frete.

Sancho

Vede a onda que avança e recua:

Traz, no dorso, do oceano a salsugem.

Olhai cães que andam muito na rua...

— Ou apanham pancada ou rabugem.

Tem razão Sancho Pança ou seu amo?

Cada qual filosofa a seu jeito;

E se um diz: — a verdade proclamo!

Outro tem por melhor seu conceito.

A verdade encontrá-la a quem há-de?

A tentar descobri-la, eis-me às tontas!

E concluo que a perfeita Verdade

É um dilema. Escolhei: — qual das pontas?

 

RECEITA PARA SER FELIZ

— Para ser-se feliz cumpre: — primeiro

Ter, de corpo e de espírito, saúde;

Não será mau também ter-se dinheiro

Que o fardo a suportar, da vida, ajude.

Um grande amor sincero e verdadeiro

Da alma nos tome a máxima amplitude;

Tenha-se aberto o coração inteiro,

Ao culto da Justiça e ao da Virtude.

Quem condições que tais tiver por junto,

Tem do problema da felicidade

Resolvido a equação e achado o X.

Mas para achar tais condições? pergunto:

E torna-me o filósofo: — em verdade

Basta bem pouco, basta ser feliz.

 

IMITAR

Não se condene o plágio, a cópia!... Em suma

Tudo o que vive é igual ao que viveu,

Com mais um toque original, — alguma

Nota de outrem, que o autor possui de seu...

Vidas são reimpressões de Vida: de uma

Vida que há cem milênios se viveu;

E cada qual que a amplie ou que a resuma,

Põe, no oceano do alheio, a gota do eu.

Com o foi e com o será o é se parece;

Satanás é Jeová noutra edição

E uma praga é a paródia de uma prece.

Mas que se não condene a imitação:

Que fora o mundo se ele não tivesse

Imitado a mãe Eva e o pai Adão?

 

31 DE DEZEMBRO

Do vegetal, do orgânico detrito,

De folhas podres e curtido estrume,

Aduba o lavrador o solo; e a lume

À planta irrompe, como um verde grito!

E canta a flor o poema do Perfume;

E o fruto, em seu sabor fino, esquisito,

Diz da Transformação: — é Pã; é o mito,

Que a vida e a morte, tudo, em si resume.

Vós — crédulos que sois — lançais, sorrindo,

D'alma os detritos: — prantos, mágoas, dores,

Sustos e ânsias — do Tempo ao campo infindo.

Sonhando ver, ingênuos sonhadores!

Desse estrume, curtido no ano findo,

A ventura brotar, aberta em flores!

 

ANO NOVO, VIDA NOVA

Argentário burguês, trabalhador do povo,

       E tu, pariá de pés no chão,

Tendes, hoje, ao raiar do "feliz ano novo",

       A mesma cândida ilusão.

Pois que Dezembro morre e que nasce Janeiro

       E um ano mais se passa enfim,

Pensais todos que o amor, a saúde e o dinheiro

       Mudar-vos vêm a sorte ruim?...

Tal pensaste também, quando esse ano que finda

       Era um minúsculo petiz;

Tiveste a ilusão que hoje tendes ainda...

       - Ter ilusões é ser feliz. -

E os dias passarão e as semanas e os meses

       E outro "ano bom" por fim virá;

E os anos da existência hão de marcar às vezes

       Que o coração se iludirá.

Abençoada ilusão, generosa quimera

       Que uma vez no ano nos sorri!

Cada qual que sofreu, a sofrer, considera:

       - Não sofrerei como sofri,

Nem o rancor dos maus, nem o apróbrio mesquinho

       Dos de mesquinho coração;

Não sentirá minh'alma a falta de carinho

       Nem meu estômago a de pão!

Assim reflete o pobre, a mirar o futuro

       Primaveril, multicolor:

Se o ano que passou lhe foi amargo e duro

       O que hoje vem traz melhor cor...

E o rico, a ponderar num plano financeiro

       De altas e ousadas transações,

Pensa que este ano novo há de lhe dar dinheiro,

       Dobrando os juros das ações.

O Poeta espera ver que o gênio lhe descubra

       O mundo estúpido e revel,

E os seus versos vender por um preço que cubra

       O enorme custo do papel.

O casal solitário espera o complemento      

       Do conjugado verbo amar;

A moça espera o noivo, o pedido, o momento

       De pôr a aliança no anular.

Ano Novo! Ambição, esperança, quimera,

       Boite à surprise dos bebés!

La Palisse dizia (e com razão...) — que dera

       Um ano novo em cada mês!...

 

SER LIVRE

Sou livre; apenas preso ao Preconceito,

Sou de praxes e fórmulas cativo;

Dentro da pauta das doutrinas vivo,

Entre as quatro paredes do Direito.

Sou livre; e ao deus-Estado estou sujeito.

O meu querer, por que reclamo, altivo,

É passado dos códigos no crivo,

Comprimido das leis no dreno estreito.

Livre e senhor de mim, faço o que quero;

Mas é "o que quero" aquilo que me aponta

Do Unânime Consenso o dedo austero.

Porque não — sem que a alguém eu faça afronta —

Poderei ser "eu mesmo" e ser sincero,

Ser mau, ser bom, por minha própria conta?

 

D. QUIXOTE "SÉCULO XX"

Dom Quixote, que fazes hoje em dia?

Inda, hirto e bravo, correr à aventura?

Buscas teus livros de cavalaria?

Em vão buscá-los tu! queimou-os o Cura!

Ilustras teus brasões de fidalguia

Em lances de destreza e de bravura?

Olha Sancho que dorme! olha a ironia

Desse amplo ventre, impando de gordura!

Não. Dom Quixote imita Sancho Pança;

Prudente, calmo e de ótimo apetite,

Com as alheias desditas não se cansa.

E, porque molestar seu pelo evite,

Contra os Moinhos já não luta a lança,

Mas fá-los ruir, de longe, a dinamite!

 

EXAME DE CONSCIÊNCIA

Eva e Adão, esses dois desassisados,

Deram a causa a má sorte dos humanos,

Por isso todos nós temos pecados,

Quer sejam capitais ou... suburbanos.

Os meus eu os tenho como toda gente

Que se preza de ser um filho de Eva.

E tantos eles são que, certamente,

A alguns milhões a conta já se eleva.

Passo alto os simples, os pequenos,

Os que a Doutrina chama de veniais,

Pois contando os que têm por causa Vênus

Vão a meio milhão; talvez a mais...

Vem a quaresma. O exame de consciência

É tempo de fazer; o exame faço,

E corro ao Tribunal da Penitência

A ver se deles me desembaraço.

E a "prova" principio. Os sete "pontos"

— Que são sete os pecados capitais —

Analiso um por um; estudo-os, conto-os,

A ver se os tenho n'alma e como e quais.

SOBERBA. N'alma este por certo eu tenho,

Nos seus aspectos múltiplos, diversos.

Tenho o orgulho de ser senhor do engenho

Que fabrica o melado dos meus versos.

AVAREZA. Bem sei que sou avaro:

Quero só para mim os beijos "dela".

Peça quem m'os pedir que aqui declaro

Deles não cedo a mínima parcela.

IRA. Sinto-a se alguém me pisa um calo

Se sou mordido ou levo alguma espiga;

Ou se, apressado, ao telefone falo

E ao demônio da moça não "me liga"...

GULA. Quem não na tem? Quem há que a dome

Quando está sem vintém, ou está de dieta,

E sente, à porta de um hotel, com fome,

Uma feijoada a trescalar, completa?

LUXÚRIA. Ó vil pecado que o demônio

Nos pôs no olhar, no olfato e até no gosto!

Eu sinto as tentações de Santo Antônio

Sem ter coragem de voltar o rosto!

INVEJA. Invejo, sim, porque negá-lo,

O farto Crezo que o seu ouro esconde

E anda de limosine e eu a cavá-lo,

(A cavar o dinheiro) ando de bonde!

PREGUIÇA. Ó vil pecado delicioso!

Cultivo-te também; de ti me valho

Por gozar o bramânico repouso;

E só por consegui-lo é que trabalho!

Sete pecados capitais. Apenas?

Tão reduzida é a lista dos pecados?

De cada um deles eu já fiz centenas

De milhares, milhões multiplicados!

Pecado! És tu, de fato e de direito,

Senhor da humana gente endemoniada:

— Para servir-te um corpo aos gozos feito,

— Para querer-te uma alma ao Demo dada!

Eis terminado de consciência o exame:

Mereço Torquemada e o Santo Ofício!

E maldigo o Demônio, horrendo e infame,

Que fez assim, tão tentador, o vício!

E volto, leve e santo e tendo ouvido

Conselhos sãos; severos, mas corteses;

De tanto haver pecado arrependido

Mas certo de ir pecar muito mais vezes...

 

FREI TOMÁS LEGISLADOR

Amigo Frei Tomás, tu não me iludes;

Dispenso-te os sermões, deixa-me em paz!

Se, falando, és um poço de virtudes,

És, obrando, um demônio, ó Frei Tomás!

Água benta despendes aos almudes,

Exorcismando o Vício e Satanás;

Macaco velho, à alheia cauda aludes

E o apêndice não vês que tens atrás.

Ergues, em prol da Pátria, a rija lança

De Dom Quixote; e cobres de baldões

A quem nos cofres públicos avança.

Cortas ao pobre os últimos tostões...

E, calmamente, vais enchendo a pança

Em negócios, contratos, concessões...

 

EGO SUM

Sou o homo sapiens de Lineu; oriundo

Do antropóide simiesco primitivo;

Propenso ao bem, propenso ao mal, segundo

O tempo, o espaço e o meio em que convivo.

Vejo com certa simpatia o mundo

Se o mundo, de prazer, me dá motivo;

Contra ele sou de cóleras fecundo

Se, ao contrário, me fere e olha agressivo,

O mal passado não me dá saudade;

Faço apelo ao futuro, se é o presente

"Presente grego" que me desagrade.

— Homem vulgar! todos dirão. Somente

Tenho esta grande originalidade

De confessar-me igual a toda gente.

 

VISITA DE FINADOS

Finados. Dia solene

De lembrança e de saudade;

Tem a morte a misancêne

Das peças da atualidade.

A despesa não se poupa

Para a delícia das vistas:

Elegante é o guarda-roupa

Feito por grandes modistas.

Ali, nas mínimas cousas,

Parca, o teu gênio puseste!

Cenário de brancas lousas

E o fundo verde-cipreste.

A peça é a Saudade Eterna

De sucesso garantido;

Música de arte moderna

Que a gente apanha de ouvido.

Assim que o velário se abra,

Com brilho, a orquestra, de cor,

Ataca a Dança Macabra

Transportada em Dó Maior.

A peça brilhante e viva,

Com lances comovedores,

Vai, como na primitiva,

Com todos os... morredores.

A Morte é uma dançarina

De belas formas. Exibe-as

Numa dança serpentina

De rádios, fêmurs e tíbias.

Mefistófeles, no prólogo,

Rubro, elegante, correto,

Recita um velho monólogo,

— O do "Coveiro", do Hamleto.

E Plutão, baixo profundo,

Em graves notas dolentes,

Recorda que no Outro Mundo

Há pranto e ranger de dentes...

E há na peça extraordinária,

Tanta coisa que eu nem sei:

Do Tango das Cinzas à ária

Do Vale! memento mei!

E a peça, como é patente,

A melhor da temporada,

Termina brilhantemente

Pela apoteose do "Nada".

Julgando o programa sério,

Pelo anúncio das gazetas,

Hoje fui ao cemitério

Com as minhas roupas mais pretas.

E por mais que isto me pese,

Digo e a provar estou pronto,

Que o programa, belo em tese,

Foi de fato um grande conto.

No cemitério — isto atesta

Quem ser sincero quiser:

Houve apenas uma festa

Como outra festa qualquer...

II

Com o ar grave e gemebundo

De quem leva a morte a sério,

Eu fui, como todo mundo,

Em visita ao cemitério.

Vesti meu fraque execrando,

Um fraque preto já antigo

Com que vou, de vez em quando,

À missa de algum amigo.

Tomei um bonde em que havia

Gente de triste semblante,

E gente que ir parecia

A um faive ó clóque elegante.

Entrei por entre os jazigos

Risonho e muito à vontade,

Como em casa dos amigos,

Com quem se tem liberdade.

Vendo as brancas sepulturas

Refleti eu desta sorte:

— Envolta em tantas alvuras

Fica bem bonita a Morte!

Senhoras de olhos magoados

Vi, carregadas de flores,

Chorando amores passados,

Sonhando em novos amores...

Uma viúva de alto porte

Chorando, mas tão distinta,

Que eu concluí não ser a Morte

Tão feia como se pinta.

Da terra estrumada um lindo

Canteiro, em flores, se abria:

— É a Morte que está sorrindo

Das tristezas deste dia!

Muita gente havia junto

De um mausoléu belo e enorme:

— De certo é um grande defunto

Esse (pensei) que aqui dorme.

E ninguém nas dos pequenos

Que habitam nas covas rasas!

Estes estão, pelo menos,

Tranquilos nas suas casas.

Flores, sorrisos... a festa

Vai no seu auge; ao sair

Uma viúva linda... e honesta

Cumprimenta-me a sorrir.

Mas em qualquer festa a nota

Discordante sempre existe:

E em meio à alegre risota

Vislumbro uma cena triste:

Triste cena que toldava

da festa a elegância e o brilho:

Era uma mãe que chorava

Na sepultura de um filho...

 

CAVAR

Cava a enxada o terreno, onde a semente

Apodrece e, prolífica, germina;

Cavando o açude, sobre o solo ardente,

O magro busto o sertanejo inclina.

Cavando, fundo, a rocha resistente,

Abre o mineiro, veio a veio, a mina.

No mar... cavado, aventureira gente

Em frágil nave busca a Índia ou a China.

Cava-se o pão, a roupa, o teto, o lume

E até, no crânio, a fórmula escondida

De um prazer, de um desejo ou de um queixume.

És, Enxada, o estalão, és a medida

De comprimento, de área e de volume,

Na geometria prática da vida.

 

VOZ INTERIOR

Quem sou eu? De onde venho e onde acaso me leva

O Destino fatal que os meus passos conduz?

Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,

Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.

Grão, no campo da Vida, onde a morte se ceva?

Semente que apodrece e não se reproduz?

De onde vim? da monera? ou vim do beijo de Eva?

E onde vou a gemer, a sangrar, de pés nus?

Nessa esfinge da Vida a verdade se esconde;

O espírito concentro e consulto a razão

E uma voz interior, sincera, me responde:

— Quem és tu? Operário honesto da nação,

De onde é que vens? De casa. Onde é que estás? no bonde.

Para onde vais? Não vês? — Para a Repartição.

 

FEMINISMO

Se a mulher triunfar na árdua peleja

Em prol da liberdade que reclama

E tiver conquistado o que deseja

segundo o vasto feminil programa;

Quando o Congresso e o presidente eleja,

Metida da política na trama,

E de um forte partido a eleita seja

Em vez de ser a "eleita" do que a ama;

Na existência a mudança é absoluta:

Homem, calmo o teu lar, então, terás

Sem querela, sem briga, sem disputa.

Sair a esposa, de manhã verás

E, cansada, ao voltar da extrema luta,

Há de ir dormir, há de deixar-te em paz...

 

A MULHER PARLAMENTAR

A mulher nos políticos negócios

Se bem não nos fizer, mal não nos faz;

Pois tendo ao menos em que ocupe os ócios,

Algumas horas fica o esposo em paz.

Do lar deixando os santos sacerdócios

Ao Parlamento levará, loquaz,

Sem palavras ou gestos capadócios,

Os casos de Sergipe ou de Goiás.

Mas eis que surge na contrária roda

Uma egréte vistosa; aos escarcéus,

Sucede a calma e tudo se acomoda:

Desprezando políticos troféus,

Ei-las, amigas, discutindo a moda,

Projetando a despesa... dos chapéus.

 

A CRIANÇA DE BOM CORAÇÃO

Um bom menino, o Juquinha:

Entre outros dotes morais,

Um grande amor ele tinha

A todos os animais.

Havia em casa uma gata

Toda branquinha — um primor

Que, com a sua esperta pata,

Dos gatos era o terror.

Chamava-se Branca; um dia

Teve Branca três gatinhos:

Juca pulou de alegria!

Pegava-os com mil carinhos.

Espremia-os, apertava-os,

Enchia-os de carne e pão,

E cuidadoso, lavava-os

Com água, areia e sabão.

Os gatinhos definhavam,

dia a dia; de tal sorte

Que, se algum bem aspiravam,

Era esse, por certo, a morte...

Um dia a mãe do Juquinha

De os ver sofrer teve pena;

E achou que melhor convinha

Dar-lhes morte mais serena.

E, sem modos desumanos,

Que antes com mágoa ela o fez,

Metem num tanque os bichanos

E afogou-os a todos três.

O Juquinha, ao saber disso,

Fez uma fúria danada!

Foi em casa um reboliço

De pôr a rua alarmada!

E chorava em fortes gritos;

Corria-lhe em rio o pranto.

Diziam-lhe os pais aflitos:

Não é caso para tanto!

Não faças espalhafatos,

Meu filho; Juca, não chores,

Que hás de ganhar outros gatos

Mais bonitos e maiores.

Porém Juquinha não cessa

A choradeira tamanha!

Por mais que a mamãe lhe peça

ele prossegue na manha...

O pranto o rosto lhe alaga,

Passam-se quase duas horas

E o pai, afagando-o, indaga

— Juquinha, por que inda choras?

Torna a criança, em tom magoado,

Voltando o rosto aos carinhos:

— Deviam "tê-me deixado"

Que eu afogasse os gatinhos!...

 

INFLUÊNCIA DA MODA

É da moderna moda consequência

O gosto pelo tango, em fina roda;

Pois que há, não há negar, correspondência

Da moda no trajar, com a dança em moda.

As saias vão em célere ascendência...

Subindo... E a dona já não se incomoda

De apresentar das pernas a opulência

Que às vezes falsa, o nosso olhar engoda.

Assim, cada vez mais se expõe a perna:

Os casacos já quase não têm mangas

E do colo a nudez toda se externa.

Por causa disso, é que o vovô tem zangas;

E exclama: — É fresca a moda ultra-moderna!

Na dança os tangos, no vestido... as tangas!

 

RESTRIÇÕES À MODA

Pôr limites à moda! Essa medida

Certo em Paris revoluções fará!

Paris que tem na moda a própria vida

E que com a moda leis ao mundo dá!

Quer o Conselho a saia mais comprida?

Condena a seda, o falhe, o tafetá?

Toda Lutétia agita-se, incendida,

Do bairro Sam Germã ao Mom Martruá.

E o mundo inteiro inflama-se, ao protesto

De Paris; e obediente ao mesmo gesto,

A bandeira "pró-moda" eleva audaz.

E se da tal medida é causa a guerra,

Mulheres de Paris, de toda a terra,

Quereis, por certo, sem demora a paz

 

VISITA MÉDICA

Entrando num cemitério

Doutor Fulano de Tal

Tinha um ar sisudo e sério

De alguém que está sob o império

De forte impressão moral.

Alguém saúda-o: — Doutor!

Ele responde entre dentes,

Diz o outro, à parte: — Impostor!

Tem sempre um ar superior

Quando visita os clientes...

 

SOSSEGO DE ESPÍRITO

Diante da aguda crise financeira

Que atormenta o misérrimo Tesouro,

Diz quem no assunto fala de cadeira:

— Da bancarrota já se ante-ouve o estouro.

Quem tem fortuna tranque-a, de maneira

Que ela não role ao fundo sorvedouro!

A crise atual não é de brincadeira,

É de prata e de níquel, como é de ouro.

Feliz de mim que a crise encaro a frio;

Se lamento de ações os possuidores,

Não me traz ela o mínimo arrepio.

Tenho ao par (no colete) os meus valores

E nem sequer, de leve, desconfio

Da absoluta honradez dos meus credores...

 

EPITÁFIOS

DE UM MORDEDOR

Quanto este, frio, de gelo,

Viu da cova os sete pés,

Um verme veio mordê-lo

E ele pediu: — Passa dez!

DE UM DEMANDISTA

Demandou a vida inteira,

das demandas teve o cúmulo;

Ao vir da morte traiçoeira,

Lá foi... demandando o túmulo!

DE UM GRANDE MÉDICO

Foi um grande especialista:

A morte ao meter-lhe os dentes,

Segredou-lhe em tom trocista:

— Conheço-o muito de vista

Da cabeceira de uns doentes...

DE UMA ESPOSA (Pelo viúvo)

Viandante, pisa de manso,

Jaz aqui, neste remanso,

Iáiá, meu único bem.

Por seu eterno descanso

E meu também...

DE OUTRA ESPOSA (M. 1855)

Meu querido, a morte fera

Longe de ti me levou!

Fico ansiosa, à tua espera...

DO RESPECTIVO VIÚVO (M. 1915)

Querida minha, aqui estou!

DE UM PRONTO

Tantos cadáveres tive,

Que encontrva, a cada passo,

Um, dez, vinte, trinta, cem!...

Rolo da morte o declive

E o meu ideal satisfaço

De ser cadáver também.

DE UM MILIONÁRIO (Por um pronto)

Por sobre o corpo ainda quente

Deste grande milionário

Rola-me o pranto em torrente...

Não que fosse meu parente

Mas antes pelo contrário...

DE UM POLÍTICO

Até morrendo ele prova

Que de comer não descansa:

Quando o foram pôr na cova

Meteu a cova na pança!

DE UM PENETRA

Depois de uma vida airada

Quis ir ao céu sem licença

São Pedro pede-lhe a entrada:

— Qual entrada! Eu sou da Imprensa!

DE UM CAVADOR

Esta funda cova encerra

Um cavador de nomeada

Ao sentir a pá de terra

Exclamou: — dai-me uma enxada!

DE UM JOGADOR

Este velho batoleiro

Quando a morte o trouxe cá,

Ao ver a pá... do coveiro

Foi dizendo: — bacarrá!

DE UM HUMORISTA

Ai de mim, de todo o mundo,

Levei rindo a vida inteira

E inda cá estou, cá no fundo

Com um sorriso... na caveira...

 

O ESPERANTO

Esperanto: esperança de um idioma

Que toda gente leia, fale e entenda,

Seja filho de Cristo ou de Mafoma,

De Cham, de Sem, ou de Jafé descenda.

Língua feita a equação, a regra, a axioma,

Com palavras forjadas de encomenda,

Que em França faz francês, romano em Roma

A quem quer que, com gosto, a estude e aprenda.

Língua que os povos todos irmaniza

E entre as nações detrói marco e divisa

Pois no laço verbal todas se prendem.

Por não falarem língua tão sonora

É que os povos da Europa em luta, agora,

Falam todos a um tempo e não se entendem.

 

SUICÍDIO POR LEITURA

Do profuso escritor a ler começa

A prosa, prosa nunca dantes lida;

Sorve-a com tal ardos, com tanta pressa

Que foge o alento ao mísero suicida.

Porque tal ânsia na leitura? oméssa!

Se ele pretende liquidar com a vida,

Certo andara uma bala mais depressa

E não fora a agonia tão comprida!

Morte de mais penar o vil procura:

Um por um cem períodos percorre

No suplício chinês da má leitura.

Algido suor nas faces se lhe escorre

E, ao chegar do escritor à assinatura,

Anseia, crispa as mãos, arqueja e morre.

 

DIVÓRCIO AMIGÁVEL

Por tudo Rachel se queima;

Nunca vi mulher assim.

Discute, resmunda, teima,

É um bate-boca sem fim.

A tudo Rachel reponta,

Quer tenha motivo ou não.

Para ela o que menos conta

Em tal caso é — uma razão.

Se o marido se arrepia,

À noite, ela tem calor;

Se a acha quente, ela acha-a fria,

Tirita no cobertor.

Se estão à mesa do almoço

A discrepância é fatal:

— Não achas o peixe ensosso?

— Acho-o uma pedra de sal!

Diz verde o céu, se o consorte

Disse que o céu está azul.

E o que para o esposo é o norte,

É para a mulher o sul.

Briga por tudo e por tudo,

A teimar, batendo o pé.

Se o marido é cabeçudo

Muito mais a esposa o é.

Em casa sempre sai cinza,

Por causa das discussões;

Que ela é a mulher mais ranzinza

Das modernas gerações.

Chamou-a o esposo teimosa

Cert vez; Rachel fumou!

E o pé batendo, furiosa,

Que não teimava, teimou.

E assim, em constantes lutas,

Viviam qual gato e cão,

Sem buscar para as disputas

Nem lugar, nem ocasião.

Essa vida insuportável

Era o inferno para os dois

E ele um divórcio "amigável"

À esposa "amiga" propôs.

Ela aceitou — caso estranho! —

E até cara alegre fez

(De acordo entre os dois tamanho

Foi esta a primeira vez).

— Pois bem, o divórcio quero!

— Foi isto o que eu sempre quis...

— Nem mais um minuto espero!

E foram ambos ao juiz.

Disse, grave, o magistrado

Que, por julgar da questão,

Cada qual pelo seu lado

Desse o motivo da ação.

Vendo o fim dos seus tormentos

Disse o esposo: — É que, doutor,

São nossos temperamentos

Incompatíveis... — Que horror!

(Explode a cara metade),

Infame! bruto! sandeu!

Confessa ao juiz a verdade:

"Incompatível" é o teu!

 

A DEFESA DE JUDAS

Judas, tu que vendeste o Mestre e Amigo,

Por ter um pouco de oiro na algibeira,

A ti próprio te deste o vil castigo

No tribunal de um ramo de figueira.

Em nome da Justiça eu te bendigo,

Zurza-te, embora, a humanidade inteira!

Porque o teu crime se extinguiu contigo,

Alma forte, alma grande e justiceira!

Cristo perdoou no instante da agonia;

Entre os uivos brutais da turba-multa,

"Ó Pai, perdoa-lhes!" a morrer, dizia.

No entanto o mundo hostil com os seus rigores,

Te avilta, ó Judas, te degrada e insulta!

— Ó classe desunida a dos traidores...

II

Ninguém a alma te viu, mísero Judas,

Antes de te chamar torpe e maldito!

Ninguém n'alma de leu as ânsias mudas

Nem te ouviu o estertor do último grito.

Não te defendes; nem sequer te escudas

No castigo que deste ao teu delito.

E lançam sobre ti setas agudas

Os piedosos cristãos de todo rito!

O teu crime, afinal, melhor julgado,

Não merece clamor tão grande e tanto;

Não foi tão negro e capital pecado!

Porque não preferiste à corta o pranto?

Hoje, se não te houvesses enforcado,

Talvez que fosses, como Pedro, um santo!

III

Pobre Judas, coitado,

Morto há quase dois mil anos,

Hoje inda é tão insultado

Por modos tão desumanos!

Nem um só perdão, nem uma

Frase sequer de desculpa

Ao pobre diabo, que em suma,

Se puniu da própria culpa.

Quem ódio vê tão profundo,

Quem vê tamanho rancor

Pensará que ele no mundo

Foi o único traidor.

Porque tamanhos apodos

E escandalosos espantos

Se Juas nos tempos todos

Houve tantos, houve tantos,

Tantos que na Terra inteira,

E mais além, certamente,

Não haveria figueira

Que chegasse a tanta gente.

 

MADRIGAL PIANÍSSIMO

Já compararam teus dentes

De um teclado à miniatura.

Têm tanta ousada figura

Esses poetas decadentes!

Vi-os, ontem, com cuidado,

E, sem receio de engano,

Achei também que de um piano

Fazem lembrar o teclado.

Tão pretinhos, tão compridos,

Tão separados, que, em suma,

Ao vê-los penso ver uma

Escala de sustenidos.

 

SINCERIDADE

O Polidoro é um poeta de água doce

       Que eu conheço de vista;

Sei que ele fala de arte, qual fosse

       Um consumado artista.

Mas é burro, coitado! é burro e tolo;

       Nunca escreveu sequer

Uma linha em que houvesse suco ou miolo.

       Ou conceito qualquer.

Certo amigo, encontrando-o um destes dias,

       Disse-lhe: — Ó Polidoro,

Já não escreves mais como escrevias!

       Teu silêncio deploro...

— Que queres! tornou ele, lisonjeado,

       De vaidade a alma cheia;

Não tenho ultimamente trabalhado;

       Tem-me faltado a veia...

 

A PERPÉTUA VIUVEZ

— A Dona Inês vai-se casar; a morte

Do esposo não lhe deu grande pesar!

Dizia Dona Lídia ao seu consorte,

Vendo a viuvinha, Dona Inês, passar.

E ele comenta: — Não lhe gabo a sorte;

Quem enviuva e depois torna a casar

Jamais terá ventura que o conforte;

Casamento em reprise é sempre azar.

Sou, dentro da moral filosofia,

Pela perpetuidade da viuvez,

Como manda de Conte a sã teoria.

O segundo consórcio é insensatez!

Olha, se algum de nós morrer um dia,

Eu não me casarei segunda vez...

 

50%

Os anos passam... como envelheço...

Diz-me, dengosa, Dona Jacinta;

Sou bem mais velha do que pareço:

       Entrei nos trinta.

Perdão, respondo num galanteio,

Quinze anos juro que é a sua idade,

Do que as mulheres dizem não creio

       Senão metade...

 

O MARIDO EGOÍSTA

A Dona Estér queixava-se do esposo:

— Sujeito egoísta assim jamais eu vi!

Só pensa e cuida no seu próprio gozo

E nada faz senão tratar de si.

O marido que lida sem repouso

Para trazê-la sempre o derniê cri,

Ouve o ataque, de injusto, clamoroso,

Sem um protesto; e, irônico, sorri...

Mas, saltei eu, que tinha a queixa ouvido:

— Pois há dias o vi, aqui lhe juro,

A vida segurar... Replica a Estér:

— E que nome merece um tal marido

Que põe a própria vida no seguro

Em vez de segurar a da mulher?

 

ARGUMENTO DE DEFESA

Disse alguém, por maldade ou por intriga,

Que eu de Vossa Excelência mal dissera:

Que tinha amantes, que era "fácil", que era

Da virtude doméstica, inimiga.

Maldito seja o cérebro que gera

Infâmias tais que em cólera maldigo!

Se eu disse ta, que tenha por castigo

O beijo de uma sogra ou de uma fera!

Senhora! pondo a mão sobre a consciência,

Minha palavra, impávida, protesta

Contra essa intriga da maledicência!

Inda a amigos meus; qualquer atesta

Que eu acho e sempre achei Vossa Excelência

Feia demais para não ser honesta...

 

VELHA HISTÓRIA

É velha a história da luta

Entre marido e mulher:

Travaram forte disputa

Por um motivo qualquer.

Ttrocaram palavras duras:

— Tu és isto — tu és aquilo!

Um rol de descomposturas

Na velha forma do estilo.

E, afinal, sem mais aquela,

O marido, um cabra mau,

Na sua cara-costela,

Assentou, de rijo, o pau.

A mulher gritou (pudera!)

E um vizinho prestimoso

Acudiu, como uma fera,

Pela mulher, contra o esposo.

— Sua esposa não maltrate!

Não seja bruto, senhor!

Numa mulher não se bate,

Diz ele, nem com uma flor!

— Não se bate?! Ora essa agora!

Exclama a esposa ofendida,

Faça o favor de ir-se embora

E ocupar-se de sua vida.

Não se faça intrometido!

Qu é que o senhor cá perdeu?

O Cazuza é meu marido

Bate naquilo que é seu!

O interventor oficioso

Tenta explicar-se, mas nisso,

A esposa e o seu caro esposo

Metem-lhe o pau que é serviço!

Moralidade

Brigam mulher e marido?

Fugí, se prudente sois

E senão 'stais prevenido

Para o pau meter nos dois.

 

AS CONDIÇÕES DA PAZ

Cessado o bate-boca, as pazes feitas,

Minha mulher as condições propunha:

— Seremos, de ora em diante, as mais perfeitas

Almas, ligadas como carne à unha.

Nada de ciúmes! nada de suspeitas!

— Juro, tomando a deus por testemunha!

E as condições de ambos nós dois aceitas,

De um beijo o selo eu nos seus lábios punha.

E, porque a paz, de fato, se conclua,

(Neste artigo ela, firme, se mantinha)

Cumpre que a teima entre nós dois se exclua.

Fique traãda de conduta a linha:

Quando haja acordo, é que a razão é tua,

Quando haja divergência é toda minha!

 

TERRIBILE DEA

"Mulher! Causa de todos os tormentos

Que enchem o mundo de tristeza e pranto!"

Assim falou não sei que frade santo,

Enviando aos céus seus místicos lamentos.

"Quanto desgosto, quanto mágoa e quanto

Desespero espalhais aos quatro ventos!"

Dizia o frade e tinha uns argumentos

Fortes e sábios, de causar espanto.

"Vem da mulher o mal da humana lida,

Todas as grandes e pequenas dores

Que trazem dos mortais a alma abatida.

E como lhe não bastem tais horrores,

Ela nos faz apetecer a vida,

Apesar desses mesmos dissabores."

 

CAMONIANO

Mui sofrido já hei, senhora minha,

Porque me venhais dar mais forte pena;

Amor é planta mágica e daninha

Cujo perfume as almas envenena.

Eu liberto o meu ser outrora tinha;

Tão doce me era a vida e tão serena

Qual a do camponês que redra a vinha

Ou do árcade pastor que assopra a avena.

Hoje, mercê de vossa formosura,

A vida trago-a cheia de tormento

Que a tanto já não sei como resista.

Não queirais aumentar minha amargura

Exigindo-me o pronto pagamento

Da vossa enorme conta de modista.

 

O HÁBITO NÃO FAZ A MONJA

Nos ombros atada a fita.

Fina camisa de renda

Vejo através da fazenda

Da blusa, em suá, cor de vinho;

E o meu olhar, quando a fita,

Não sei ao que mais atenda

Se ao que a blusa me desvenda,

Se ao que apenas adivinho.

Não percebo utilidade

No véu que lhe veda o rosto;

Só dá prova de mau gosto

Quem tanto e tanto se vista...

Acho uma futilidade

Ter um véu por cima posto

Do que deve andar exposto

Dando gosto à humana vista.

A saia erguendo ao de leve,

Mostra um pé... feito na china

Calçado numa botina

Que nem deixa ver-se a meia;

Tal moda que o diabo a leve!

Pois quem não tem perna fina

Deve mostrá-la, menina,

Se não toda, ao menos meia.

Em luvas brancas calçadas

Oculta as mãos cor de rosa;

De modesta ou de vaidosa

Que infeliz ideia é a sua...

E anda por estas calçadas

Tanta gente mal cheirosa

De mão despida e calosa

Que a nossa aperta... e que sua.

Por ser firme, por ser tesa

Sua silhueta, resulta

Que o olhar dos homens a insulta

Com fria mordacidade.

Mas tem ela, por certeza,

Que aquilo que mais se oculta,

É o que aos olhos mais avulta

Da parte mor da cidade.

Onde é que, ó bela, encontraste

No iludir, tanta perícia?

De outra igual cato notícia...

debalde a cato e recato!

Pões no teu ser, em contraste,

A modéstia e a impudicicia...

Nos olhos toda a malícia

No trajar todo o recato!

 

ETERNA DÚVIDA

É debalde que o cérebro torturo

E o versátil espírito concentro;

E se da vida pelos meandros entro,

É debalde que o olhar e o ouvido apuro.

Quem adivinha o que é que se acha dentro

D'alma humana — covil profundo e escuro?

Quem decifra esta esfinge que é o Futuro?

Do círculo da Dor quem sabe o centro?

Vem, logo após a Dúvida, — o Intangível!

De um planeta que o espaço azul percorre

Quem nos diz o destino que terá?

Dos montes da ambição quem marca o nível?

Quem sabe o ideal que vive, o ideal que morre?

Quem nos diz amanhã que bicho dá?

 

PROMESSAS

Prometeste; e à promessa que fizeste

dei crédito demais e hoje, ai de mim!

Que me vejo iludido e já por fim,

Não creio mais em ti, visão celeste!

Traduza eu "não" quando disseres "sim";

Quando apontares leste, eu leia oeste;

Que é a tua jura que um sorriso veste,

Doce, mas frágil como um alfenim.

Teus lábios, cofre de caraminholas,

Mentem mais que os artigos de um jornal,

Que caçadores, beatas e carolas;

São as tuas promessas tal e tal

De um candidato as tretas e parolas

Num pomposo programa eleitoral...

 

RIDE...

É sempre a velha história do palhaço:

Alegre, a gargalhar, sem que no rosto

Se lhe note qualquer vestígio ou traço

Do que a alma oculta de íntimo desgosto.

Eu, meus amigos, muitas vezes faço,

As contrações de um riso a contragosto...

— Riso protocolar, feito a compasso,

Segundo um metro previamente imposto. —

Tristezas, guardo-as eu, avaramente,

Que tem o mundo a ver com a dor alheia

Se lhe não dá consolo e simpatia?

E eu rio; faz-me bem que toda gente

Me inveje, em vez de lamentar-me, e creia

Na minha eterna, estrídula alegria!

 

A CRIAÇÃO

No dia Um Deus diz, formando a terra:

"Fiat Lux!" E a luz se fez; e cria

O que a fulgir pelos espaços erra,

— Sóis e planetas, — no segundo dia.

Ao terceiro nos mares a água encerra,

Ao quarto surgem na policronia

De flores aos milhões, por vale e serra,

Plantas, árvores, musgos, à porfia.

Aves e peixes faz no dia quinto

E no sexto animais de instinto bravo

E o homem forma, de barro e fero instinto.

No sétimo repousa, enfim. Contudo

Que bela ideia se Jeová, no oitavo,

Melhor pensando, esbandalhasse tudo

 

A TENTAÇÃO

No Éden calmo, florido, recendente

A nardo, a rosa, a cravo, a cinamomo,

Viviam Eva e Adão, felizes como

Quem do pecado as tentações não sente.

Mas um dia (a Escritura à letra tomo)

Satanás, em figura de serpente,

A Eva dá a maçã e ela, imprudente,

Aceita-a e trinca o venenoso pomo.

Trinca e ao marido, amável, oferece;

Este, porém, de esperto, diz: — querida

Come-o tu, jantei bem, não me apetece!

Eva insiste — Não quero, que estou farto...

E assim foi que entre os males desta vida,

O homem poude escapar-se à dor do parto.

 

O DILÚVIO

Tornam-se os homens patifões de marca;

Jeová, severo manda-chuva antigo,

Manda a chuva que à terra cai e encharca

E a inunda toda, aos homens por castigo

Chama, porém, Noé, velho patriarca

Que sempre fora da virtude amigo,

E diz-lhe que de pau construa uma arca

E nela busque com a família abrigo.

Findo o dilúvio, diz-lhe Deus baixinho:

— Colhe o fruto da vida, espreme-o e o extrato

Deixa-o a fermentar e bebe-o: é o vinho.

Graças ao suco generoso da uva,

Foi o dilúvio "universal", de fato,

Pois nem Noé poude escapar-se à chuva!

 

ESAÚ E JACÓ

Comprara ao mano a primogenitura

Jacó, sujeito fino e de olho aberto;

Um prato de lentilhas, da escritura

Consta que foi da compra o ajuste certo.

Porque o mano Esaú fosse coberto

De um pelo de notável espessura,

Jacó, na pele de uma ovelha, esperto,

Mete-se e o velho e cego pai procura.

Isaque, de iludido, dá-lhe a benção:

— Eu, meu herdeiro aqui te reconheço

Rei da Tribo, cabeça dos pastores!

Que o Esaú foi no embrulho todos pensam;

Qual! O prato era de ouro, de alto preço,

E o velho Isaque só deixou... credores.

 

JACÓ E RAQUEL

"Sete anos de pastor Jacó servia

Labão, pai de Raquel". gentil criatura,

Porém, servindo ao pai, Jacó queria

A filha desposar, conta a Escritura.

Quando, entretanto, foi chegado o dia

De no contrato apor a assinatura,

Mestre Labão quis impingir-lhe a Lia,

Que era feia, zarolha e já madura.

Porém Jacó, que percebera o logro,

Gritou ao Pai Labão: — não vou no embrulho!

E ao demônio mandou a Lia e o sogro.

E ante os pastores escandalizados,

Jacó raptou Raquel e em doce arrulho

Foram viver os dois... "como casados".

 

A VOLTA DO EGITO

Parte do Egito o povo israelita;

Porque das provações o recompense,

Moisés, levando-os à região bendita

De Canaã, montes e vales vence.

E chega ao mar... (mar seco que pertence

À hidrografia tórrida, esquisita,

Que inclui os rios da região cearense

Que nos mapas figuram... só por fita).

Moisés cansado vinha da jornada,

Pois marchara, minuto por minuto,

De pés descalços, pela adusta estrada.

Mas, de plantas sangrando, resoluto,

Com a sua gente trôpega e cansa,

Passou, a pé vermelho, o Mar enxuto.

 

NO DESERTO

Eis que de Deus o povo se declara

Em revolta; pragueja, em fúria, a plebe:

— Água, Moisés! o sol requeima a seara!

Da nossa sede o céu não se apercebe!

Vendo Moisés a coisa feia, a vara

Vibra, raivoso, contra o monte Oré;

E eis que corre copiosa a fonte clara!

Água a fartar! e toda a gente bebe.

Bons tempos esses! Desmoralizou-se

Hoje em dia, o prestígio milagreiro

Que fez a vida deleitosa e doce!

Quando pela manhã busco o banheiro,

Penso tanto em Moisés... ah! se ele fosse

Manda-chuva... no Rio de Janeiro!

 

A MULHER DE PUTIFAR

De Putifar a esposa (o inteiro Egito

Murmurava) não passa por honesta;

Se ele algo sabe nada manifesta,

Para evitar, talvez, algum conflito.

Do Boi Ápis durante o santo rito

Mandame viu José; depois da festa

Escreveu-lhe; ele foi... (pontinhos nesta

Quadra pondo o escabroso ponto evito).

Batem à porta. — É Putifar! diz ela;

Foge, meu bem, que ele de nós suspeita!

E eis que José, precipite, se escape.

E logo no outro dia escreve à bela:

"Vou bem; saudades; beijos mil aceita

E pelo portador manda-me a capa..."

 

O CASTIGO

A terra de Sodoma o vício avassalava:

E soberba, avareza, inveja, ira, luxúria,

Gula e preguiça, — as sete irmãs do diabo, em fúria,

Tinham toda a cidade aos seus pés, como escrava.

Jeová que às suas leis não consentia injúria

E nestes tempos inda os crimes castigava,

Manda que sobre os maus o céu vomite lava;

E ei-la cobre Sodoma! e requeima-a e combure-a.

A família de Ló, pesardo feio incesto,

Foge à hecatombe. A esposa o rosto volta e espia

Curiosa, a terra a arder, de raiva o olhar congesto.

E Deus mudou-a em sal. Deus, ó céus! parodia

Um colega do Olimpo, um deus pagão modesto,

E entra, sem mais nem mais, pela Mitologia!...

 

JUDAS

Depois de receber a bolsa cheia,

Judas, cuja alma, um negro diabo atiça,

De mulheres alegres se rodeia

E na orgia uns dinheiros desperdiça.

Depois, porque na própria sorte creia,

Tenta-o do jogo a mórbida cobiça;

Joga e perde; e já vendo a coisa feia

Ei-lo com as próprias mãos se faz justiça.

— Sem honra e sem fortuna é que não vivo!

Próximo sinto da miséria o cheiro,

Enorme é já na praça o meu passico!

E matou-se. Pergunto ao mundo inteiro:

Desse suicídio célebre o motivo

Foi o remorso, ou a falta de dinheiro?

 

VÊNUS

Quando, no Olimpo, Vênus Afrodita

Surge, irradiando a lúbrica beleza,

Dos deuses a legião que os Céus habita

Pasma, cheia de inveja e de surpresa!

Filha do Mar, glória da Natureza,

Ela que o amor dos imortais excita,

De Marte ao coração se entrega preza,

Para do esposo mísera desdita.

Triste, Vulcano fala-lhe destarte:

— Vênus, não achas meu amor sincero

Tão Vulcano e intenso que te farte?

E ela responde (assim relata Homero)

— Ai! Vulcano, meu bem, quisera amar-te

Porém não posso, porque a Marte quero...

 

CUPIDO

Dissera Vênus a Cupido: — Filho

Parte a espalhar por todos os lugares

o áureo fogo do amor, a cujo brilho

Refuljam templos, gineceus e lares.

Seja de luz o teu glorioso trilho;

E que por onde, trêfego, passares,

deixes de amor o ignífero rastilho

Que faça arderem corações aos pares.

Parte o menino; mas a mãe, prudente,

O outro filho, Himeneu, atrás lhe envia

E logo, empós, Mercúrio diligente.

E assim não fora, ó míseras criaturas

Quem no mundo remédio nos daria

Dos incêndios do amor às queimaduras?

 

MERCÚRIO

Eis o filho de Júpiter e Maia,

Dos amorosos deuses mensageiro,

Cuja eloquência, se no Olimpo a ensaia,

Prende, encanta e convence o Olimpo inteiro.

Vênus nos braços seus de amor desmaia;

Mas zomba Hermes do amor e, aventureiro,

Vai do comércio dilatando a raia,

De pétaso à cabeça e pé ligeiro.

Os deuses vão-se por fatal augúrio!

Ninguém mais vê no velho pai de Pã

O amável protetor do amor espúrio.

E, ora, quem vai a Citera malsã,

Despreza os bons favores de Mercúrio

E pede auxílio ao novo Salvarsan.

 

BACO

Das Índias regressando, entre álacres clamores

De Ninfas e Egipans, à luz áurea dos fachos,

Baco o Olimpo penetra, ao rugar dos tambores,

Com as Mênades joviais a cavalgarem machos.

Traça o purpúreo manto e, enfeitado de flores,

Empunha à destra o tirso; ornam-lhe a fronte cachos

De uvas de Chipre. Evoé! ó pai dos bebedores,

Brômius, bulhento deus do vinho e dos borrachos!

Jovens Sátiros nus, com lúbricos acenos,

Cantam, na bacanal com que o Olimpo o recebe,

As glórias de Liseu, de Júpiter, de Vênus!

Mas quando Hebe aparece e serve os vinhos, de Hebe

Liseu recusa a taça! Os médicos helenos

Acham-no mal dos rins. Dionísio já não bebe!

 

MINERVA

Da cabeça de Zeus, armada em guerra,

Minerva, mãe d'alta sabedoria,

Saiu de égide em punho, um belo dia,

A ciência a propagar por vale e serra!

Sábia lição a da mitologia:

Palas que a ciência vai levar à Terra,

De precavida, o douto crânio encerra

No elmo forte que os golpes desafia.

As disputas científicas modernas

Mostram-nos, gregos, a sapiência vossa

Em tais criações simbólicas, eternas:

Quem sábio for, que se arme o quanto possa,

Pois de arte e ciência as discussões supremas

Dão sempre em rolo, em pau, em tunda grossa!

 

JUNO

— "Que tem Juno divina que assim chora?

Talvez ciúmes de Júpiter? São ciúmes

Do velho deus dos deuses que não cora

De ter na terra amantes aos cardumes?

Paciência, ó minha olímpica senhora!

Nada de brigas, queixas e azedumes;

Finja que nada vê, finja que ignora

Do seu bilontra esposo os maus costumes!"

Razão Mercúrio tem, que tal dizia

À pobre Juno, cuja face austera

Nublada estava de melancolia.

Fidelidade marital! Quimera,

Que entre as coisas variáveis não varia

E é na era de hoje o que era na era de Hera...

 

SILENO

Nem mais um gole, ó bêbedo Sileno,

Que jamais de beber te satisfazes!

Não sentes que do alcoólico veneno

Até os cornos já te sobem gazes?

Não mais o copo de ouro fulvo, pleno

De Cós ou Chipre, à mão, gloriosos trazes;

Tu, vergonha dos deuses, deus heleno,

Com as bebidas mais reles te comprazes!

Outrora, em fúria, mordicando a poma

De uma bacante, o peito ardente, em frágua,

Brilhavas nos festins de Grécia e Roma.

Hoje, Silene, vejo-te, com mágoa,

Bebendo em tascas, parati com goma,

Reduzido a padroeiro de paus d'água!

 

FAETONTE

Filho de Apolo, tu que te aventuras

A conduzir-lhe o carro aurifulgente,

Tens as mãos ao governo mal seguras

E o guias mal e desastradamente.

Sobes demais e deixas às escuras

A terra; ou descer tanto que a corrente

Secas dos rios, queimas as verduras,

Tornas o campo num braseiro ardente,

Exclama Jove, enquanto treme o solo:

— O inferno dou-te por castigo extremo.

Tomo-te a carta de "chofér" de Apolo!

Mas Faetonte, a sorrir, torna: — Não temo!

Com o meu carro atropelo, mato, esfolo,

Porque tenho "hábeas-córpus" do Supremo.

 

AMIZADE AMOROSA

Essa amizade amorosa

de que te falei, Maria,

Eu não a defino em prosa

Tanto ela tem de poesia.

jamais percebe o profano

O sabor discreto e fino

De um tal sentimento humano

De um gosto mais que divino.

É um desejar que não pede;

É um — quero — e... não quero mais —

Carinho que se não mede

Pelos carinhos banais.

Indefinido desejo,

Delicado e timorato,

Que não vai além de um beijo

Dado com certo recato.

Um beijo sem outro intuito,

À flor dos lábios somente,

Que pode aspirar a muito

Mas com pouco está contente.

Um querer sem desavença

Que apanha um lenço que cai;

Que ao entrar pede licença

E beija a mão quando sai.

Todo carícia e brandura,

Sem resquícios de azedume;

Tem do amor toda a doçura

Sem ter o amargor do ciúme.

Um bem querer todo feito

de suave e ingênua poesia,

Que não conhece o despeito,

Nem os risos da ironia.

Que é mais que amor não se afirme,

Que amor é amor, afinal;

Mas é mais doce, é mais firme

E é muito menos brutal.

Não tem do amor a violência,

A demasia, a aspereza;

É a flor da benevolência

A exalar delicadeza.

Dir-se-ia que Amor brincava

Com as suas musas diletas

E uma, a rir, na sua aljava

Trocou por flores as setas.

Querer que se não desgosta

Porque "ela" sorriu a alguém;

Ao contrário, a gente gosta

Que os outros lhe queiram bem.

É um verso em que falta rima

Mas sobra encanto na frase;

É amor — que apenas estima,

Amizade — que ama, quase.

Leve perfume de um lenço,

Soprar de brisa na rama;

É fogo de brilho intenso,

Mas brilha sem fazer chama.

Afeição que recomeça

Mais forte a cada segundo:

Tão pura que se confessa

À vista de todo mundo.

Que não tem gestos, nem frases,

Nem do amor as explosões;

— Ele e ela são dois rapazes...

Com as devidas restrições.

E, fruto em flor que, em verdade,

Jamais passará da flor;

É muito mais que amizade,

E, pouco menos que amor.

 

AMOR BELIGERANTE

Em vez de ervada seta, a cujo efeito

Vênus os braços aos heróis abria,

É de fuzil e grossa artilharia

Que vai Cupido ao belicoso pleito.

E foi assim, armado assim, que um dia,

Lançando, em fúria, o incêndio no meu peito,

Ele invadiu-me o pobre ser, de jeito

Que uma tropa do Kaiser parecia!

Sitiou-me o coração heroíco e forte;

E, como os Belgas nos mortais embates,

Das armas rindo à rude e ingrata sorte,

Tombo, afinal, depois de cem combates!

Mas derrota é vitória, e é vida a morte,

Sento tu que me venças e me mates!

 

TEMPLO EM RUÍNAS

Se no meu coração alguma vez entrares,

Pisa bem devagar e o teu passo acompanha

Do respeito e da unção com que em terras de Espanha

Transporias umbrais de antigos alcazares.

Ele é um templo cristão, de tristeza tamanha

Que de um mosteiro evoca as ruínas seculares;

E os coruchéus, o teto, os nichos, os altares

Estão cheios de poeira e de teias de aranha.

Não ouvirás, lá dentro, em murmúrios de prece,

Confissões de pecado ou o secreto rumor

De um beijo dado a furto e que nunca se esquece.

Tem, contudo, cautela, ao entrares, viajor!

Se, lá dentro, de amor nem vestígio aparece,

Vivem no ar, aos milhões, os micróbios do amor!

 

THE WOMAN, THE PLACE AND THE HOUR

Luz escassa de gás. — A situação

O momento e a mulher — Quem for capaz

Vendo-se assim, com todos três à mão,

Resista ao Mundo, à Carne e à Satanás!

Não resisti; preguei-lhe um beijo. E vão

Dizer agora que isto não se faz;

E eu respondo abençoando a solidão

E a "Companhia Anônima do Gás".

Ela irritou-se e um gesto brusco fez.

Eu percebi que, procedendo assim,

Dera mostra brutal de impolidez.

Supliquei-lhe perdão; disse-me: — sim.

Outro beijo lhe dei, mais dois, mais três...

E ah! se o soneto não chegasse ao fim...

 

MUDANÇA DE TRATAMENTO

Quando uma vez, por gracejo,

Lhe pedi, sorrindo, um beijo,

Ela gritou: — Que insolência!

Vendo-a rubra, vendo-a brava,

Vexado, eu me desculpava:

— Perdoe-me Vossa Excelência...

Perdoou. Foi isso há dois meses;

E eu repeti várias vezes

O pecado tentador.

— Que audácia! que atrevimento!

Dizia; e nesse momento,

Dava-me um seco — o senhor.

Fiz-me de surdo e beijei-a;

Ação atrevida e feia,

Mas gostosa como quê...

E eu: — Perdão, minha senhora...

E ela: — oméssa! vá-se embora!

Mas que audácia a de você!

Depois... tantos beijos houve...

Beijei-a onde bem me aprouve,

No rosto, no colo nu...

E ao beijá-la nem notava

Que eu de Você a chamava

E ela chamava-me: — Tu...

Vejam só que fazem beijos!

A mudanças dão ensejos

Nas regras de polidez.

E ela hoje tem, na verdade,

Muito mais de intimidade,

Que eu tinha de in-timidez...

Se continua o exercício

De beijos, que benefício

Isso a sintaxe trará!

Em concordância perfeita

É tu à esquerda e à direita,

É tu pra lá, tu pra cá...

 

UMA MULHER

Fascina-me este olhar que às vezes toma

Expressões de mistério e de magia:

E este puro perfil e esta sombria

Noite profunda desta negra coma.

E este colo de mármore... (dir-se-ia

De uma estátua pagã de Grécia ou Roma)

E todo o ser perturba-me este aroma

Que o seu corpo trescalar e me enebria.

E que graça no gesto! e que meiguice

Na voz! Ouvindo-a, é como se um faceto

Vivo trinar de pássaros se ouvisse!

Eis um ligeiro, um pálido esboceto

de uma estranha mulher que, se existisse,

Me haveria inspirado este soneto.

 

PENÉLOPE

Estaria ela a sós? E eu, na incerteza,

Pus-me a espreitar de fora; e olhando-a, via

Que ela, de costas e sentada à mesa,

Pensava em mim, ou que os meus versos lia.

Decidi-me a fazer-lhe uma surpresa

E, num gesto de insólita ousadia,

Entrar. E entrei... (Confesso, com franqueza,

Que todo eu, frio e pálido, tremia).

Entrei pé ante pé; com tal cautela

Que nem de mim era o meu passo ouvido;

E, ah! de o contar meu sangue se congela.

Vi-a que estava, o olhar embevecido,

Não meus versos a ler, tão cheios dela,

Mas a cerzir as meias do marido!

 

CATORZE DE JULHO

"Eu — povo, tu — nobre dama —

Tu — ricaça, eu — farroupilha

Para esse amor que me inflama

Teu orgulho é uma Bastilha.

Disse-lhe eu. Ela sorria

Como a rainha à canalha.

E a separar-nos havia

Intransponível muralha.

Brecha, fenda, racha, — nela

Meu olhar não descobriu;

Era mais forte que aquela

Que Desmulã demoliu.

Mas à má sorte do jogo

Ou do amor ninguém se humilha;

E eu resolvi, demagogo

Dar com a basta na Bastilha.

Fiz-lhe versos.. velho tema

De amor — a eterna comédia -

E, afinal, compus-lhe um poema

Que era a minha Enciclopédia.

Nos estilos mais diversos

Os mais variados descantes

Cantei. Descantei-a em versos

De rimas mirabolantes.

Disse-lhe o quanto sentia:

Cantei0lhe os lábios formosos

E os seus olhos de magia,

De brilhos Mará... vilhosos.

Eu tinha a pobre cachola

Aos mil trambalhões, porque ela

Jogava com a minha "bola"

Como no jogo da péla.

Meu amor incandescente

Ela a aceitar não se humilha.

(Neste mundo toda a gente

Encontra a sua bastilha...)

Mas alguém disse-me um dia:

— Não gastes rimas em vão!

Se ela não vai com poesia

Experimenta o atracão.

Tomei o conselho amigo

Dei o atracão na muralha.

E, sem temor do perigo,

Travei a cruenta batalha.

E, final, (disto me ufano),

Na brecha da fortaleza

Entôa o amor soberano

O canto da Marselhesa!

O fogo de um justo orgulho

Agora em meus olhos brilha!

Viva o catorze de Julho

Viva a queda da Bastilha!

 

QUADRAS

O amor, que intruso sujeito!

Ora, já viram vocês?

Um dia entrou no meu peito

E lá fez casa de vez.

Amo até o mais alto nível

E pouco me importa a quem:

É uma vontade invencível

A minha, de amar alguém.

Ninguém me exija um motivo

Deste fato singular:

Que eu só desejo estar vivo

Para ter direito a amar.

Dá o amor desgosto à gente?

Discordo de quem tal diz:

Quando eu amo é, justamente

Que me sinto mais feliz.

Que do amor ninguém desfaça

Nem diga intangível ser;

É só fumaça e a fumaça

Vem antes do fogo arder.

Com sorriso zombador

Eu desfiz dele e por fim

Hoje é o demônio do amor

Que faz e desfaz em mim.

 

NO CLAUSTRO

Mariquinhas, que vive num convento,

Passa as manhãs rezando na capela.

As freiras pasmam do recolhimento

Da piedosa expressão dos olhos dela.

O seu viver tristíssimo lamento:

Mariquinhas é boa, é moça, é bela;

Mas quando ouve falar em casamento

Seu manso coração ruge, em procela.

Foi noiva; — a sua história eu soube um dia -

Oposição dos pais, tudo acabado.

E a porta de um convento que se abria.

Vive agorados sonhos do passado,

De olhos fitos na imagem de Maria

E o pensamento na do namorado.

 

CONSTÂNCIA MÁXIMA

É, de fato, virtude o ser constante

Como tu me tens sido e eu bem mereço.

Tem doce coração, sincero e amante,

É jóia rara e do mais alto preço.

"Teu meu amor firmeza de diamante,

Enquanto é o teu tão frágil como gesso."

Dizes; e eu noto que há no teu semblante

Ares de mofa que te não conheço.

Responda-te a minh'alma que não mente:

Se, pelo teu, meu coração aferes,

Deste o maior valor verás patente.

Basta que, com justiça, consideres

Que, enquanto és tu constante a mim somente,

Constante eu sou a cinco ou seis mulheres.

 

CIÚME PÓSTUMO

Vejo-a. Todo o meu ser palpita em festa.

Seja embora de luto o seu vestido

E negro o crepe do chorão comprido

Com que a sua viuvez se manifeste.

E ela me vê como ao desconhecido

Que passa e a quem pouca atenção se presta;

Com o ar discreto de uma viúva honesta

Que vive das saudades do marido.

Mas, satisfeito, o meu egoísmo goza

A dor do esposo ao se encontrar metido

Do céu dos justos na mansão radiosa.

Ah! não teria o mísero morrido,

Se imaginasse como ela é formosa,

Assim, de negro e de chorão comprido.

 

AMOR GASTRONÔMICO

       Ao ver-lhe a linda face,

Aproximei-me e disse-lhe em surdina:

       Que bonita menina!

Tão tenra e fresca! é de um frescor de alface!

       Ela, ou fosse por medo

da velha, ou porque a alguém o amor consagre,

       Deu-me um muxoxo azedo

Como se fosse feito de vinagre.

       A mãe, de olhos hostis,

Que olhava a filha como um cão de guarda,

       Ficou, qual se a mostarda

Lhe chegasse, de súbito, ao nariz.

       E gritou-me: — Respeite

As famílias que passam, seu bolina!

       E eu vi que com a menina

Não podia fazer o meu "azeite"...

       E, de alma consternada,

Fiquei a maldizer a sorte minha;

       E o necessário eu tinha;

Para encher-me de amor... ou de salada.

 

LUA DE MEL

Casadinhos de há pouco: um mês, se tanto...

Do trabalho ao voltar, nota o marido

Que a esposa os olhos tem rasos de pranto

E indaga, entre curioso e enternecido:

— Que tens, amor? teu ar causa-me espanto!

E ela, a sorrir: nada de mais querido!

Continuam molhados, entretanto,

Seus belos olhos, berços de Cupido.

Uma lembrança triste? um beijo a cura...

E ele beija-lhe a boca, a fronte, o mento,

Os olhos onde o pranto inda perdura.

— Que tens? confessa... Um simples resfriamento

Diz ela, a rir, pedindo com ternura:

— Mas, meu bem, continua o tratamento...

 

NÃO HÁ COMO O LAR

Não venhas: sou casado; a minha esposa

       É um Otelo de saias.

Em mim pretendes "avançar"? Não caias

       Em semelhante cousa.

Disseste que por mim tens um "rabicho"

       Que é tua perdição.

Pois se a minha mulher sabe é que, então,

       De uma vez "vira bicho".

Além de tudo, digo-te em segredo,

       Eu sou fiel como que...

Não por gosto, já vês, mas só porque

       Da esposa tenho medo.

Eu compromissos — extra — não nos tomo;

       Como os cumprir depois,

Se o meu "arame" dá só para dois

       E dá... sabe Deus como?

Adeus, menina; cumpre que eu te evite;

       Fujo das tentações...

Minha mulher, as acumulações

       Julgas tu que ela admite?

De mais a mais, se faço o sacrifício,

       Sou obrigado a optar:

Tu no teu coração dás-me um lugar,

       Mas perco um... vitalício.

Vai-te, senão a minha vida estragas!

       Por este mundo, ó flor,

Há tantos rapagões, doidos de amor,

       À procura de vaga!...

Desculpa-me: bem vês, tenho motivo

       De não acumular;

Que não há como o lar, ah! como o lar!

       Afetivo e... efetivo.

 

AMOR SECRETO E VÁRIO

Sabes que existe alguém que te adora em segredo?

Que ao te escutar a voz, a existência bendiz?

Que anseia por te ver e, se te vê, tem medo

E quer dizer que te ama e treme e não t'o diz?

O amor em tua idade é o último brinquedo;

Boneca que antecede o primeiro petiz...

É o sonho de um anel que te há de pôr ao dedo

O formoso imbecil que te fará feliz.

Ele em breve há de vir, vaidoso e satisfeito,

Colher o suave mel do teu cálice, ó flor,

Levar-te pelo altar, em caminho do leito.

E eu, ao ver-vos passar, calarei meu rancor

E, sem gesto de inveja ou riso de despeito,

Mandarei a uma outra estes versos de amor.

 

DESAFINAÇÃO

Passaste; e, mal te vi, senti no peito

Bater descompassado o coração;

E, por te ver, ferido e satisfeito,

Vi que fora esquecer-te esforço em vão.

Palpitava-me o pobre de tal jeito,

Com tal veemência de palpitação

Que temi que rompesse o âmbito estreito

Que lhe serve de abrigo e de prisão.

Que eu te não veja mais, por entre a turba

Da Avenida, ou te veja a cada passo,

Para sossego do meu coração.

Que a inconstância em te ver é que perturba

Do cardíaco músculo o compasso

Destruindo-lhe toda a afinação.

 

O BELO HORRÍVEL

Esta estranha mulher que causa medo

Se nos olha, é, no entanto, irresistível!

Que profundo psicólogo o segredo

Desvendará dessa atração terrível?

Dizem que quem a viu, mais tarde ou cedo,

Dos seus caprichos há de pôr-se ao nível.

Magia, filtro, talismã, bruxedo,

Algo ela tem no olhar, incompreensível!

Ao vê-la, eu que amo o encanto da beleza,

Tremi de horror do seu perfil satânico,

Mas logo a amei, com pasmo e com surpresa!

Lutei debalde, entre a paixão e o pânico

Mas nada poude a minha "fortaleza"

Contra o canhão "quarenta e dois" germânico!...

 

AMOR FILOSOFANTE

Certo, se não passar, não tenho o ensejo

De te ver; talvez tenha, se passar;

E como é ver-te o meu maior desejo

Passo, em passo manhoso e devagar.

Arrisco um torto olhar de caranguejo

Buscando a carangueja, à beira-mar...

Olho e só vejo enfim que te não vejo

À janela que, ó santa, é o teu altar.

Sei, no entanto, que aí vens a cada passo;

E eis que em milhões de conjeturas entro

Para a causa encontrar do meu fracasso.

Neste dilema a dúvida concentro:

És tu que vais lá dentro quando eu passo?

Ou eu que passo quando vais lá dentro?

 

TEATRO ALEGRE, O LEQUE

Leque, instrumento o mais precioso

Nas mãos gentis de uma mulher;

Ora agitado, ora em repouso,

O leque diz o que ela quer.

Muito mais fácil que o esperanto,

A idioma tal leva vantagem;

O leque tem maior encanto

E é mais conciso na linguagem.

Abrir o leque e após fechá-lo,

Duas, três vezes, a seguir,

Traduz-se assim: — não posso amá-lo,

Faça o favor de desistir!

Quando, agitando-o, febrilmente,

A dona faz que tem calor,

Quer declarar: — meu peito ardente

Ferve por ti de rubro de amor!

Se sobre a fronte o leque é posto

Aberto em pala de boné,

A jovem diz: — se estás disposto

Dá ao papai o alamiré...

Bater na mão de um certo jeito,

— Espero-te hoje no jardim...

Pousá-lo aberto sobre o peito:

— Não vás que o velho faz chinfrim!

Cheirar o leque: — o amor perfume

Por todo o sempre a nossa vida!

Mordê-lo, assim: — maldito ciúme

N'alma me fez mortal ferida!

Levá-lo à face: — eu não me iludo;

Todos iguais vós homens sois...

Fingir que o quebra: agora tudo

Estás liquidado entre nós dois!

Abrir o leque sobre os olhos

E entre as varetas espreitar

Vale dizer: — encontro escolhos

Do nosso amor, no crespo mar!

Tudo, afinal, com o leque exprime

A arte sutil de uma mulher;

Desprezo atroz, amor sublime

E entre eles dois o que couber...

Mas quando o leque é de eloquência

Concisa, ideal, perfeita e rara

É dando o troco a uma insolência,

Do tipo audaz partindo a cara.

Quer de papel seja ou de seda,

De leve pluma ou fina gaze,

Que a algum de vós jamais suceda

De um leque ouvir tão dura frase!

Eis afinal o que desejo

Sem que por falsa acaso peque,

Aproveitando o belo ensejo

De voz dizer — adeus! — com o leque...

 

LULU E LILI

Lulu e Lili são manos;

Eles dois valem por três!

Lili vai fazer quatro anos

E Lulu cinco já fez.

O pai é um belo soldado,

Coronel de artilharia;

Forte, elegante — montado,

Que garbo e que galhardia!

E Lulu gosta de vê-lo,

Naquele cavalo enorme,

— Chapéu em bicos, de pelo

No seu primeiro uniforme.

As botas envernizadas,

Reluzem, negras, ao sol;

E há nas dragonas douradas

Em cada qual um farol.

A mãe é moça e bonita,

Veste bem, pisa com graça

E à tarde pela Avenida,

Chama a atenção quando passa.

Usa os penteados da moda,

— Em casa tem dez espelhos —

Tem saias de muita roda

Um dedo abaixo dos joelhos.

E umas botinas modernas,

Das que estão na moda agora,

Que cobrem de couro as pernas

Que as saias deixam de fora.

Lulu e Lili, filhinhos

Desse elegante casal,

Há dias pensam, doidinhos,

Nos brinquedos do Natal!

O Luli, que é dos mais finos,

Bem sabe que o Pai Noel

No Natal, aos bons meninos,

Traz brinquedos a granel;

Espingardas, soldadinhos,

Caixas, cornetas e pratos

Põe, com os maiores carinhos,

Dos meninos nos sapatos.

Lulu pensou:  vou ter menos

Brinquedos do que eu queria!

Uns sapatos tão pequenos...

E com o dedinho os media.

Pensou... pensou... De repente

Bateu na testa: afinal!

E fico muito contente

Com a sua ideia genial.

— Agora sim! É brinquedo

De nunca mais se acabar!

Amanhã de manhã cedo

Como a Lili vai ficar!

E, sorrindo de alegria,

Ao quarto dos fundos vai

E as botas de montaria

Traz, muito ancho, do Papai.

E pensa, fazendo a troca:

— Engano o Papá Noel!

E sob a cama coloca

As botas do Coronel.

Mas a Lili, muito esperta,

Nada perdera da cena;

Pela porta semiaberta

Olhava o mano, a pequena.

E diz-lhe baixo: — Lulu

Eu vi o que tu fazeu;

Mas óie, não pense que tu

Ganha mais coisa do que eu!

E zás! Lili, que é de fama,

Calada, com pés de lã,

Coloca em baixo da cama

As bolinas da mamã...

Mamã, se guardas segredos

O que sei digo-te aqui:

Quem recolheu mais brinquedos

Não foi Lulu, foi Lili!

 

A MENINA VAIDOSA

Laurinda é muito vaidosa;

Com seus dez anos apenas

Tem-se em conta de formosa

E ri das outras pequenas.

Mamãe repreende-a; procura

Corrigi-la e diz: — filhinha,

Cuida um pouco na costura,

Pensa na agulha e na linha...

Somos pobres; a vaidade,

Coisa feia em gente rica,

A quem não o é, na verdade,

Muito mais feias inda fica.

Pelo Natal a Laurinda

Pedira ao Papai Noel

Uma joia rica e linda:

Uma pulseira ou um anel.

A mãe ouvira o pedido

Feito ao meio de uma prece

E relatou-o ao marido:

— Que à filha o mimo ele desse...

O Papai, que então sorria,

Prometeu que sim; de fato,

Ele próprio, no outro dia,

De Laurinda no sapato

Foi pôr o belo presente

Sem deixar que a esposa o visse,

Por muito que esta, insistente,

P'ra ver a joia pedisse.

E dizia, carrancudo,

— Ora, não sejas curiosa!

É um estojo de veludo,

De veludo cor de rosa!

De manhã corre Laurinda

A examinar o sapato:

E — ó céus — que alegria infinda!

Fez Laurinda um espalhafato!

Sorriu, pulou de contente:

Meu Deus! que seria aquilo?

E abraçava-se ao presente,

Sem ter coragem de abri-lo.

O Papai, que estava perto,

Lhe diz, a sorrir: — Filhinha

Antes de o teres aberto,

O seu conteúdo adivinha.

— Não sei... diz Laurinda (e mira,

Remira o estojo fechado)

Porém, no íntimo, suspira

Pelo presente sonhado.

— Pois eu tenho a minha ideia...

Diz o Papai, no seu bojo

A mais valiosa teteia

Guarda este bonito estojo.

É de ouro... ou prata... (Laurinda

Escuta, sorrindo a medo)

E até te garanto ainda

Que é coisa de usar no dedo...

— Ora, já sei; é o presente

Que eu perdi ao Pai Noel!

E exclama, a rir de contente:

— É o anel! é o "meu" anel!

Mas torna-lhe o Pai: — Filhinha,

Não é o anel, não é tal!

E, abrindo a rósea caixinha,

Mostra-lhe o mimo: — um dedal.

Um lindo presente; inveje-o

Quem ser ditosa procura;

Laurinda hoje é no Colégio

A primeira na costura.

Da vida não teme o mal,

As horas duras e cruéis;

Graças àquele dedal

Há de ter muitos anéis!...

 

VOCÊ NÃO SABE...

Este Brasil é a terra da Importância

Em que "importâncias" pouca gente tem:

Mas que surgem, conforme a circunstância

Mesmo entre os "prontos" entre os sem vintém.

Qualquer cortado e adido funcionário

Assume uns ares de arrogância e mando,

E grifa à "parte", em tom autoritário:

— Você não sabe com que está falando!

Vi há dias um tipo maltrapilho

Com claraboias no chapéu, nas botas,

Casaco ruço, de sebáceo brilho,

Que fora preto em épocas remotas...

— Faço, diz-me ele, um financeiro estudo...

— Anda tratando de finanças? — Ando!

— Assim? E olhei-o, d'alto a baixo, mudo:

— Você não sabe com quem está falando!

Um rolo: trila o apito. Um tipo é preso.

Junta povo: — é gatuno! a turba exclama.

Mas resiste o ladrão, de olhar aceso,

E a "Viúva alegre" o policial reclama.

Nisto salta um da roda e, em gesto austero,

Cheio de empáfia, de importância impando,

Grita: — O preso não vai! — Por quê? — Não quero!

Você não sabe com quem está falando!

Um mendigo na rua pede esmola;

Tem ar de fazer pena: um ar de fome;

Umas palavras trôpegas engrola:

Diz que há dois dias ou que há três, não come...

Condoi-se a gente, dá-lhe uma pratinha

E diz-lhe assim, buscando o tom mais brando:

— Vai trabalhar... O gajo se abespinha:

— Você não sabe com quem está falando!

Há tempos vi um certo camarada

A discutir com o condutor do bonde:

— Esqueci a carteira! ó que maçada!

E agora? — Desça! o condutor responde.

— Quem? eu? descer? Eu morro mas não desço!

Infame Light! que pessoal nefando!

Então não me conhece? — É, não o conheço!

— Você não sabe com quem está falando!

Um desses manequins que fazem ponto

Na Galeria do Cruzeiro, há dias

Uma sova levou que não lhes custo

Em troco de umas tantas ousadias.

Um pai feroz que a coisa presenciara

Deu-lhe um mestre tabefe e eis senão quando

O "Moço" exclama, pondo a mão na cara:

— Você não sabe com quem está falando!

Não pertenço à alta roda que frequenta

Os chás e as frisas do Municipal,

Aos "trezentos" (que são talvez cinquenta)

Se exagero — por Deus — não é por mal.

Mas se a velha casaca às vezes visto,

Fico já certo que pertenço ao bando,

E tomo uns ares de quem diz, — É isto!

Vocês não sabem com quem estão falando!

 

O LEMA DA PÁTRIA

Neste país das palmeiras

Que tanta beleza encerra

Os homens fazem asneiras

Como no resto da terra;

O Zé-Povo se arrelia,

Protesta, faz reboliço...

Mas passa um dia e outro dia

E não se fala mais nisso!...

Qualquer desfalque valente

Dá que falar três semanas;

Grita, berra, toda gente:

— Que súcia de ratazanas!

Os jornais falam do caso

— Aliás um caso cediço —

Mas, ao fim de curto prazo,

Já ninguém fala mais nisso!...

Do imposto de honra falou-se

Com o mais sincero entusiasmo:

Toda a Câmara agitou-se:

— Saiamos de tal marasmo!

Para a Pátria, ó que desonra!

Se não salda o compromisso!

Mas... adeus imposto de honra!

Já não se fala mais nisso!

O país não tem defesa

Nem no mar e nem na terra!

Levaremos com certeza

A pior, em caso de guerra!

E toda a gente reclama

O obrigatório serviço.

Fez-se um bonito programa...

E ninguém falou mais nisso...

A carestia da vida

Provocou medonha encrenca;

Em forma ardente, incendida

Houve discursos em penca,

Falou-se em revolta; o povo

Tinha um ar espantadiço

Mas volta a calma de novo

E não se falou mais nisso...

Temos carvão em fartura,

E ferro mais que carvão,

Mas na estrada da amargura

Andamos, de prontidão.

Cumpre explorar nossos veios

De metal puro, castiço!

Mas a tal fim faltam meios...

E não se fala mais nisso!

Mas, apesar disso tudo

Fato anômalo se nota;

É que o Brasil vai, contudo,

Seguindo em bela derrota,

É que, vivendo na beira

Do abismo — por um feitiço —

Ele não cai, nem que queira,

Embora se fale nisso.

 

A BRINCADEIRA

Neste mundo de miséria

Irritar-se a gente é asneira.

A grande escola é a pilhéria:

Leve-se a coisa mais séria

       Na brincadeira.

Se alguém nos prega, zangado,

Terrível descalçadeira,

A gente escuta-a, calado;

Engole todo o recado

       Na brincadeira.

Se ele, além disso, inda ameaça

E dar pancada nos queira

Diz-se-lhe assim: "Mas tem graça...

Oh! meu amigo, não faça

       Tal brincadeira".

Amor próprio? Uma tolice!

Corre a vida tão ligeira!

Desaforo alguém nos disse?

A gente disfarça e ri-se

       Por brincadeira.

É em Paris je m'en fichismo,

Em Lisboa é a chuchadeira,

Era na Grécia cinismo;

Aqui no Brasil eu o crismo

       De brincadeira.

Atira-se à vida alheia

Da pérfida a arma traiçoeira.

A ação é má? baixa? feia?

Qual nada! É apenas a veia

       Da brincadeira...

Bem tolo é quem se amofina!

Se alguém nos bate à moleira,

É correr, dobrar a esquina

E aplicar-se a lugolina

       Da brincadeira.

Ser "fútil inda brincando"

É a doutrina verdadeira,

Vai-se trepando, trepando

E galga-se o alto, no brando,

       Na brincadeira...

E nessa terra, que é a nossa

Não val' ser de outra maneira;

Nada ao caráter faz mossa:

Pois se isso é um país de troça...

       De brincadeira!...

 

PEDRINHO

Meu noivo era um rapazinho

Chamado Pedro — Pedrinho —

E chofer de profissão;

Bonito, meigo, elegante,

Falou-me e no mesmo instante

Conquistou meu coração.

Quando passava lá em casa,

Eu tinha as faces em brasa,

Ao vê-lo no auto vermelho.

Mamãe conselhos me dava...

Quem ama como eu amava

Quer lá saber de conselho?

Certa vez parou na esquina

E eu escutei a buzina

Do seu auto a fonfonar...

Saltou, chegou-se à janela...

Fiquei vermelha e amarela,

Fiquei fria e a transpirar!

Pediu perdão da ousadia,

Disse que já não podia

Resistir ao meu feitiço...

Pegou-me a mão em segredo;

Puxei-a e disse com medo:

— Seu Pedro, não faça isso!

No dia seguinte veio

E eu, venturosa, esperei-o

No portão lá do cortiço.

Era escura... era de noite...

Quis beijar-me... — Não se afoite

Seu Pedro, não faça isso!

E ele voltou no outro dia:

— Deixa que eu beije, dizia,

Teu pescocinho roliço...

E eu... que fazer? já deixava...

Porém, a rir, protestava:

— Pedrinho, não faça isso!

Foram-se os dias passando

E tantos beijos foi dando,

Que eu nem reparava nisso...

Uma vez beijou-me a boca!

Fiquei tonta, fiquei louca:

— Pedrinho, não faça isso!

Uma vez, por meu castigo,

Saiu a passear comigo,

Ao terminar o serviço.

— Vou tocar para a Tijuca!...

— Meus Deus, que ideia maluca!

Pedrinho, não faça isso!

Fomos. O auto em disparada,

Devorava a linda estrada!

De repente — zás! — um enguiço.

Quem passasse ali por perto

Me ouvia dizer por certo:

— Pedrinho... não faça isso!

O resto é melhor calar-se.

Mas de comigo casar-se

Ele tomou compromisso...

— Vou comprar-te uma pulseira...

— Não quero nada! que asneira!

Pedrinho, não faça isso!

Mas passaram-se três meses;

Ele vinha algumas vezes...

Depois, levou tal sumiço...

Quando lá em casa voltava,

Eu, tristonha, suplicava:

— Pedrinho, não faça isso!

Eu, com tamanho desgosto,

Perdi as cores do rosto,

Perdi dos olhos o viço!

E, mirando o seu retrato:

— Pedrinho, não seja ingrato,

Pedrinho, não faça isso!

Um dia ele apareceu-me;

Muito frio um beijo deu-me,

Mas com um ar espantadiço...

Disse que estava de viagem...

— Meu Deus! você tem coragem?

Pedrinho, não faça isso!

Seu ofício não dava;

Ia tentar, explicava,

A vida de embarcadiço...

E eu dizia já com asco:

— Não seja assim tão carrasco!

Pedrinho, não faça isso!

E foi-se. Foi-se para o norte!

Hoje confesso que é a morte

O único bem que cobiço.

Talvez que outra, lá por fora,

Lhe esteja dizendo agora:

— Pedrinho, não faça isso!

 

O CASAMENTO DA VELHA

Vou-me casar! Estou contente!

Muito contente e com razão;

Que uma ventura é unir-se a gente

Como lhe ordena o coração.

Eu já não sou muito criança,

Porém não sou velha também...

Tenho no íntimo a esperança

Que o casamento me faz bem.

Meu noivo é lindo! E que bem posto!

Que olhos! que boca! e que nariz!

Que perfeição todo o seu rosto!

Ai, ai! como eu vou ser feliz!

Tem vinte e três anos somente;

Eu sou mais velha; ah! sou; não nego!

Mas que isso vale quando a gente

Ama com amor intenso e cego?!

Anda a dizer gente intrigante

Que fala mal até de Cristo,

Que o meu rapaz tem uma amante

E vai casar só atrás "disto"... (gesto de dinheiro)

Chamar meu noivo interesseiro!

Ele que estuda p'ra doutor,

Quer lá saber do meu dinheiro?

O que ele quer é o meu amor!

O nosso quarto é cor de rosa...

A cor eu mesmo é que escolhi,

Só em pensar fico nervosa,

Sinto uma coisa por aqui...

Sobe-me o corpo um formigueiro,

Há um não sei que dentro de mim!...

Meu coração bate ligeiro

Num palpitar que não tem fim!

A uma sobrinha que é casada

Neta de minha irmã caçula,

Eu perguntei, muito acanhado,

Como é que a gente se regula...

Ela explicou ponto por ponto,

Que horror, meu Deus! nunca pensei!

São coisas tais que eu nem lhe consto!

Enfim, na hora é que verei...

Só em pensar... a alcova, o leito...

E o doce instante do — enfim sós! -

Eu lhe direi: — tenha respeito!

E ele: — meu bem... baixando a voz.

Depois me chama de "filhinha"

Depois... depois... depois... depois...

Disse-me, a rir, minha sobrinha:

— O resto é lá com vocês dois!...

Inda agorinha ele me disse:

— Meu coração, estás contente?

E eu respondi: — mas que tolice!

E fique rubra de repente

Ele indagou:- porque é que cora?

— É que serei bem mais feliz...

— Ah, sim, já sei... mais do que agora,

Quando tivermos um petiz...

Chamam. Já vou! Chegou o momento!

À nossa espera está o pretor,

Que coisa boa é o casamento

E o casamento por amor!

Nervosa estou de tal maneira,

Que mal contenho os nervos meus!

Ai minha flor de laranjeira!

Adeus p'ra sempre, adeus! adeus!

 

A COZINHEIRA

Tou despedida. Essa agora!...

Por uma coisinha à toa,

O demonho da patroa

Danou-se e mandou-me embora!

A mim que sei quanto vaio,

Que intendo do meu ofiço,

Que sou boa no selviço,

Que sou fixe no trabaio!

Vorto de novo p'ra agença...

Vou arranjá patrões novo,

Quais novo nada! Esse povo

Quage não faz deferença!

É tudo da mesma raça,

Resmungão, impretente...

P'ra agradá eles a gente

Não sabe mais o que faça...

Pruquê eu cá sou cusinheira

Mas sou de forno e fogão!

Eu cá não sou de feijão,

Tofus e couve à mineira!

Trabaio em massas; corquettes,

Faço cusinas francesa,

Seio fazê subremesa

De pudingues e melettes!

Pois o diacho da patroa,

Que só dava p'ra cusinha,

Carne, feijão e farinha,

Queria comidas boa!

E inda ficava danada

Quando, de tarde, o marido

Fazia nariz trucido

P'ro feijão e a carne assada!

Eu com essa gente estou cheia!

Com esse povo não me aprumo!

Mas afiná... não costumo

Falá má da vida alheia!

Tenha ou não tenha rezão,

Eu quando uma casa deixo,

Não me ralo, não me queixo,

Nem falo má dos patrão.

O patrão deve na venda,

No açougue, no quitandeiro,

Na fremácia, no padeiro,

No turco, no home das rendo!

E inda ameaça com prisão

Os pobre dos cobradô!

Mas... bico! que eu cá não sou

De falá má dos patrão!...

Eu não conto, por inzempo,

Que, quando o patrão saía,

A patroa se vestia...

(Levava um bandão de tempo...)

Depois vinha um figurão,

Com partes de primo dela...

Mas eu não sou tagarela]

Nem falo má dos patrão!

O patrão de é um assanhado!

O mau costume ele tinha

De andá rondando a cuinha,

A fazê-se de engraçado...

Eu nunca dei atenção,

Mas a patroa é ciumenta,

Chegou-lhe a mostarda às venta,

Brigou, pintou com o patrão!

E ós despois mandou-me embora!

Já viro que desaforo!

Tenho nada c'os namoro

De seu marido, senhor?!

Eu cá não sou disso, não!

Diabo a leve c'os seus ciúme!

Eu nunca tive o costume

De dá confiança a patrão!

Tá dereito! Vou simbora!

Vorto de novo p'ra argença!

Minha gente, com lecença...

Meus senhores e senhora,

Eu sou de forno e fogão...

Percisando meus serviço,

Sabam que eu cá não sou disso

De falá má dos patrão!

 

A GLORIUS DAY

Belo dia de sol. Temperatura

Primaveril: vinte e dois graus amenos.

Fulge Apolo, magnífico, na altura,

Sem menos refulgir, por queimar menos.

Num dia assim é que da espúmea alvura

Surgiu, a um beijo de Netuno, — Vênus,

Um dia a pedir campo e brisa pura

Que se aspire, feliz, a pulmões plenos.

Rimas e ritmos andam no ar dispersos,

No íris do céu, no azul do mar, no viço

Das flores dos jardins, em luz imersos.

E eu sonho... A Musa chega... eu me enfeitiço;

Dá-me vontade de fazer uns versos

Não me contenho; e aí têm vocês, — fiz isso.

 

CIÚMES DE ESTRELA

ELE

Anda depressa! o contrário

Perderemos o começo...

ELA (com frieza)

Pouco importa; eu já conheço

A peça.

ELE (tomando café)

       É lindo o cenário

Do primeiro ato...

ELA (irônica)

       É mimoso:

Uma elegante moldura

Em que se engasta a figura,

O porte elegante e airoso,

Da "estrela".

ELE (acendendo o charuto)

       A música é linda...

ELA

É lindíssima. É um encanto!

E como realça o canto

Da "estrela", de graça infinda.

ELE

O diálogo é animado!

Com frases de muita graça.

ELA

Em que o espírito esvoaça

Da "estrela", tão requintado.

       (Ela sublinha sempre a "estrela")

       ELE (percebendo a intenção)

Tem piada!... Ora a novidade!

Por que sublinhas a "estrela"?

Pensarás que ardo por vê-la.

Julgas-me eletricidade,

Imã de força invencível!

Atraio por onde passo

Mulheres de todo nível

Qual fossem limalhas de aço!

       ELA

Dizes agora graçolas

E te fazes de engraçado!

Tantas desculpas engrolas

Que bem se vê que és culpado.

       ELE (zangando-se)

Culpado de que? Com o diabo!

       ELA (desabafando)

De andar namorando atrizes!

De gastar como um nababo

Com elas todas...

       ELE (irônico)

       Que me dizes?

Pois aí 'stá o que eu não sabia...

Irei tomar mais cuidado,

Que, senão, dia mais dia

Acabarei arruinado (outro tom)

Que me interessa a pessoa

Dessa notável senhora?

Estrela? Estrela!... Dir-se-ia

Que é do palco a Astronomia

Que mais me preocupa agora!

       ELA

Não te faças de inocente!

Teu ar cínico não pega!

Olha-me bem! bem de frente!

Pensas talvez que eu sou cega?

       ELE

Tu, cega? Ao contrário, penso,

Com teus olhos sem rivais,

Que vês muito, vês imenso,

Tanto vês, que vês de mais.

Com teu olhar enciumado

Vês mesmo o que ver não queres!

Se me olhar, vês ao meu lado

Mulheres e mais mulheres!

Tu és o ideal das esposas

Até me enches de vaidade

A atrair as mariposas,

Resistir-me, a mim, quem há-de?

       ELA

Pensas então que me iludes?

Sou talvez alguma criança?

És um poço de virtudes

Um santinho...

       ELE

       Que esperança!

Sou um demônio em carne e osso.

Sou um judas traidor, mereço

A corda pelo pescoço...

       ELA

Disfarça! Eu bem te conheço!

       ELE (outro tom)

Mas olha! Falemos sério

Talvez haja alguma intriga...

Deixa esse tom de mistério...

       ELA

Que queres mais que eu te diga?

       (chorosa)

Ah! meu Deus! ah! como somos

Nós, mulheres, infelizes!

A que horrores nos expomos!

       ELE

Mas que absurdo tu dizes!

       (Ela soluça. Ele afaga-a)

Quem foi o infame intrigante

Que te foi contar tal cousa?

       (Escandalizando-se)

Eu! capaz de ter amante!

De trair a minha esposa!

Andar namorando atrizes!

Mas cita uma prova, um fato!

Quem te contou?

       (Pausa)

       Vê-se o dizes!

       (trágico)

Se souber quem foi, eu o mato!

       ELA

Não preciso que me contem!

Meu coração tudo diz:

Pois eu não te vi anteontem

Namorando aquela atriz...

       ELE

Que atriz?

       ELA

       Não sabes?! Aquela

Que canta o Fado da Rosa...

       ELE

Ah! a estrela?

       ELA

       Sim, a estrela!

Cantava com a voz melosa,

Todo o tempo, olhos em alvo,

Na nossa friza; era a "doze"

E tu, com ar de papalvo,

Sorrindo e fazendo pose!

       ELE

Pois eu não notei?

       ELA

       Notaste

E até sorriste.

       ELE

       Eu sorri?

       ELA

E com os olhos lhe marcaste

Um rendez-vous que eu bem vi.

       ELE (zangado)

Não! É demais! Que ela olhasse

Não duvido! Eu é que juro

Que nunca, a vi, face a face

Nem no claro nem no escuro.

       ELA (incrédula)

Nunca a viste?

       ELE   

       Sim, na cena,

Fazendo os papéis da peça...

Não sei se é loura ou morena...

       ELA

Não sabes?... Eu lá vou nessa!

       ELE

Não sei. As damas no palco

Não são nunca as verdadeiras,

São faces de ruge e talco

E bistre fingindo olheiras,

A boca fazem pequena,

Os olhos abrem com uns traços

E faz-se a loura morena

Sem menores embaraços.

Assim, quando as vejo em cena

Fazendo um tipo qualquer

Podes ter certeza plena:

Vejo a atriz, nunca a mulher.

       ELA

Tens lábia! Até me irritas

Com tais cantos de sereias...

Então, tu olhas as bonitas

Do mesmo modo que as feias?

       ELE

Do mesmíssimo!

       ELA

       Mas creio

Que me chamaste atenção

De umazinha, no Recreio

E disseste: — É um canastrão!

(Pronuncia "canastrão" como se significasse

       - uma beleza)

       ELE (rindo)

Canastrão! Ora! mais esta!

Canastrão, ouve-me cá,

Diz-se da atriz que não presta,

Que não agrada, que é má!

       ELA

Tu tens sempre uma resposta

Na ponta da língua! És fino!

       ELE

Ora! isso até me desgosta!

Com teus ciúmes, desatino!

       ELA

Basta de conversa afiada...

Dize-me em frase concisa

Por que motivo a assanhada

Olhava p'ra vossa friza?

(Ele passeia, agitado, como que a procurar

       uma razão)

Senão pinto o diabo a quatro,

E se for o que eu suponho,

Entro na caixa do Teatro

Faço escândalo medonho.

       ELE (batendo na testa)

Ah! sou mesmo muito idiota!

Agora é que caio em mim,

Escuta, escuta, Nicota,

Vou dar-te o motivo

       ELA

       Enfim!

       ELE   

ouve lá: com que toilette

Foste ao teatro aquele dia?

       ELA

Com o novo chapéu de aigrette.

       ELE (interrompendo, amoroso)

Que tão linda te fazia...

       ELA

O vestido cinza e fraise

De gase chiffon, com folhos:

corpete creme, de laise

Valencienne...

       ELE   

       Aí tens: — Os olhos

Da atriz, meu anjo querido,

Devoravam-te a toilette,

Invejavam teu vestido!

       ELA

Lindo o meu chapéu de aigrette

Pois não é?

       ELE   

       Que maravilha!

A atriz não tirava os olhos

De toda aquela escumilha,

De todos aqueles folhos!

       ELA   

Lembro-me agora, de fato,

E ela tinha o seu motivo:

O dela, o do segundo ato,

De um encarnado tão vivo...

De cetim, fora de moda,

E uma saia tão comprida;

Comprida e de pouca roda!

       ELE   

Estava muito mal vestida!

       ELA

       (passando-lhe a mão na cabeça)

Esta foi muito engraçada!

Ela a invejar-me o meu vestido

E eu a mostrar-me enciumada!

       ELE (magoado)

Ter ciúmes do teu marido!

       ELA (beija-o)

Perdoa, filhinho! E agora?

Achas que este me vai bem?

       ELE

Vai; mas já passou da hora

Do espetáculo...

       ELA

       Que é que tem?

       ELE

chegamos tarde, Nicota!

       ELA

Que mal há nisso?

       ELE

       Se queres?...

       ELA

Estás cansado?

       ELE

       Eu sou idiota!...

       ELA

Peço-te apenas que esperes

Uns dez minutos querido!

Estou muito mal arranjada...

Vou mudar... o outro vestido.

       (junto à porta)

Vais ver! Não demoro nada!

       ELE (só — Pausa)

Esta cena se resume

Numa profunda verdade:

Na mulher é forte o ciúme

Mas é mais forte a vaidade.

Quanto a mim que — caso raro,

O que ela supôs não fiz,

Esta noite aqui declaro,

Que vou namorar a atriz.

Pano.

 

MANHÃ DE PETRÓPOLIS

Ao despontar do dia, abro a janela

E um lindo sol primaveril saúdo.

Cessou a chuva; e, sem saudades dela,

O céu contemplo, deslumbrado e mudo.

Há uma viva alegria tagarela

Nos insetos, nos pássaros, em tudo

Quanto respira, sob a azul umbela,

Esse ar que tem carícias de veludo.

Dia para ficar-se aqui na serra,

Na bela serra petropolitana

Que, se não chove, é o céu dentro da terra!

De Pã soprando a frauta parnasiana,

Sem ler os telegramas sobre a guerra,

Alheio às glórias da maldade humana!

 

CASCAVEL AGRADECIDA

Um dia um caçador saiu à caça

       Ao despontar da aurora,

E foi-se, alegre, pelo campo afora

Em companhia do seu cão de raça,

       Quando, em dado momento,

Viu entre as folhas uma cascavel

Da cauda os guizos agitando ao vento...

O caçador — chamamos-lhe Miguel -

(Com seu nome vulgar facilita-lhe a rima)

       Miguel, vendo a serpente

       Que dele se aproxima,

A arma aponta, mas eis que, de repente,

       Vê que ao lado da cobra

Outra coleia, pequenina e jovem.

       Milagre? ou simples obra

Do acaso? o caso é que os olhinhos se movem

Do pequenino ofídio e olham Miguel, serenos

       O caçador impressionou-se...

       - Nem era para menos... —

Era um lânguido olhar, tão lânguido e tão doce

       Tal qual como se fosse

       O olhar do cão fiel...

       A grande cascavel

Era mãe da pequena, certamente;

Se ele matasse a mãe, que vil maldade!

       A filhinha inocente

Cairia no abismo da orfandade!

Matar a filha? Bárbara matança!

Fora de Herodes sanguinária obra...

Ah! não se mata uma inocente criança

       Mesmo quando ela é cobra!

Miguel assim pensou (tem coração Miguel)

       Doce olhar comovido

Deitou-lhe a pequenina cascavel.

— Não, não as mato! é o caso decidido!

Disse com seus botões o caçador, enquanto

Iam as cobras demandando o ninho.

E Miguel, de emoção contendo o pranto,

       Prosseguiu seu caminho.

Anos o caçador andou caçando

       Por diversos lugares;

sem ver jamais as cobras familiares.

       Mas eis que um dia, quando

Por acaso passou pelo mesmo local,

       Viu Miguel

      A jovem cascavel

      Já então era cobra feita,

Risonha, bem nutrida e satisfeita,

      E tinha tal e qual

Aqueles mesmos traços elegantes

Dos tempos de menina; os olhinhos brilhantes

Algo tinham de amor, de carinho e de bondade;

No corpo esbelto, em plena mocidade,

       As mesmas linhas gregas da mamã...

       Ela — é o caso verídico —

Daria a nota no Instituto Ofídico

       De Butantã!

Ao ver o caçador que lhe poupara a vida

E a livrara do abismo da orfandade,

A cascavel, — acreditar quem há de? -

Olhou-o com meiguice e com ternura

       Grata e reconhecida.

Seguiu Miguel ao ponto que buscava;

       Mas, numa certa altura,

       Olhando para trás,

Notou que a cascavel o acompanhava,

— Deixá-la! disse; e prosseguiu Miguel.

       E quando o bom rapaz

Em casa entrou, entrou com ele a cascavel.

Instalou-se, à vontade, a um canto da cozinha,

       Tão mansa e familiar

Como um gato, um cachorro, uma galinha...

Sempre à hora do almoço ou do jantar,

       A jovem cobra vinha

Enroscada, postar-se ao pé da mesa.

       Ora, que um certo dia,

       Miguel que inda dormia

Despertou assustado e com surpresa,

Ouviu grande rumor que vinha do escritório.

       O revólver aperra

— Algum rapaz gatuno, era notório! —

       Mas quase cai por terra

       De assombrado!

Um ladrão negro e mau, de fera catadura,

       Tentara abrir o cofre.

       Quando, num triz, de chofre,

       - Oh! caso nunca visto! —

A jovem cascavel se lhe agarrara ao braço!

(O ladrão, panhado de imprevisto

Não poude dar sequer um passo)

E, enquanto assim mordia o infame roubador,

                 Ela

       Com método e perícia

Punha a cauda por fora da janela,

       Vibrando-a com furor

       A chamar a polícia!

       Este caso verídico demonstra,

       Do modo mais solene,

Que nem toda serpente é como aquela "monstra"

       De que fala o senhor de La Fontaine.

 

A CHUVA

A chuva, suor do Céu, que o Céu transpira

Quando um longo calor a terra inflama!

Chuva, desgraça do pessoal da "lira"

Que tem no "Hotel da Bela Estrela" a cama!

Chuva! sonho cearense! Ideal hegira

Das safras! Rega com que o céu derrama

Nas pobres sementeiras do caipira

A água, — leite do céu — que a terra mama.

Eu te amo e louvo, se a cidade banhas

Quando o inverno do Rio é uma fornalha

Em que o gordo burguês dissolve as banhas.

Mas és infame, és pérfida, és canalha,

Quando, em costume de verão, me apanhas

Sem guarda-chuva e de chapéu de palha.

 

POR CAUSA DA GUERRA

Guerra e mais guerra! guerra abaixo e acima,

Guerra adiante e detrás! por toda a parte

Que a musa alegre a deambular se anima,

Em vez de Apolo, dá, de cara, Marte.

Erra quem de erra não buscar a rima

Para fazer, em verso, uma obra de arte;

E não acha emoção que em verso exprima

Sem César, Alexandre ou Bonaparte!

Toda a cidade como que se encerra

Nesse ambiente guerreiro: a guerra é o abismo

Com sereias cantando: atrai e aterra!

Quando tomo da pena, eu suo e cismo:

Que diabo hei de escrever com graça? ó Guerra,

És o estado de sítio do humorismo!

 

CAUSA MECÂNICA

— Porque motivo o cão agitado o rabo?

Pergunta Mr. Show, um grave inglês,

A um sujeito que arrota orgulho e gabo

De saber tudo e fala como três.

— Ora, diz este, sem maior exame

Dou-lhe a razão mais clara do que o dia:

Se o cão o rabo agita, espanta o enxame

       De moscas que o arrelia

       Claríssimo, pois não?

       - Perdão!

Torna sorrindo Mr. Show, mas quando

Moscas não há, nem há sequer mosquito,

       Vê-se o cão agitando

       - Da mesma sorte o rabo!

       - Deveras esquisito,

Torna o sujeito; e, de um minuto ao cabo,

       Confesso francamente

Que não acha razão mais concludente.

— Pois o motivo exato eu dar-lho vou,

       Diz Mr. Show

       Fleugmaticamente:

Pelas leis da mecânica se explica

Este caso comum aos animais,

Que a muitos outros, como ao cão se aplica:

O cão agita o rabo porque é mais

Pesado do que o rabo... eis a razão;

Se o contrário se desse e se o animal

Fosse mais leve do que o rabo, então

       Era fatal

       A conclusão:

Seria o rabo que agitava o cão.

 

MEDIEVAL

Sonhei que eu era um príncipe formoso

Amado e amante de uma castelã

Que me queria para seu esposo,

— Pai dos sobrinhos de uma sua irmã.

O velho conde opunha-se furioso

Ao casamento — ó negra ação vilã!

Fez-me um dia prender no fundo ascoso

De uma masmorra lôbrega e malsã;

E eu na prisão quase de dor sucumbo;

Com os pés calçados em chapins de chumbo,

Sem me queixar sofri como um heroi!

Desperto, enfim, e a refletir me ponho

No quanto se padece, mesmo em sonho,

Quando se tem um calo e calo dói!

 

IDEIAS LEVES

Maio. Domingo. Um sol de primavera

Brilha no firmamento azul-cobalto.

Há leves nuvens de algodão pelo alto...

Asas leves palpitam na atmosfera.

Agora um leve pé pisando o asfalto

Atrai-me o olhar leviano. Oh! Céus, quisera

Ser botina e sentir, do bico ao salto,

A pressão desse pé, fugaz quimera...

Derreto-me em lirismo; essa leveza,

Que existe em tudo, eleva-me à Bondade!

Leve o diabo o que é mau na natureza!

Leve acho a vida e leve a humanidade!

E até da Europa a rubra luta acesa

Eu a julgo uma simples... leviandade.

 

OS TRÊS "CADÁVERES"

O mais gordo dos três, de ventre nédio, informe,

       O que me desatina

Quando, no fim do mês, me manda a conta enorme,

       É o vendeiro da esquina.

O segundo, que tem o aspecto de um meirinho

       Quando à porta me bate,

É o azar, que a tremer, deparo em meu caminho,

       É o meu alfaiate.

O outro é o homem fatal que o viver encrencado

       Me faz negro e sombrio;

Entre todos feroz, é o algoz desalmado,

       É o meu senhorio.

O mais gordo dos três, cobra... constrictor boa,

       Cujo veneno afronto,

Não compreende bem, nem releva ou perdoa

       Minha disga de "pronto".

O segundo é o credor de feia catadura,

       Atrevido, arrogante,

Não sabe olhar em mim mais que o corte e a factura...

       Do meu fato elegante.

O terceiro é o algoz-hidra, monstro, pantera,

       Ameaça, intimação!

Temo-o: No fim do mês, quando surge essa fera

       Não a conheço não!

Se o primeiro falisse, — ó ditosa ocorrência!

       Eu, de alegria tonto,

Correria a ajudar os juízes da falência

       Com o meu ódio de "pronto".

Se o segundo falisse, eu mesmo iria a juízo

       Contra o bicho depor!

Dir-lhe-ia: — O diabo aumente inda mais teu prejuízo,

       Desgraçado credor!

Se o terceiro falisse — oh! que felicidade!

       - O mais feroz do lote,

Com toda a correção, com toda probidade

       Passava-lhe o calote!

Se o primeiro morresse, ah! como eu gozaria

       Tão completa ventura!

As contas por pegar rezava-as noite e dia

       Na sua sepultura...

Se o segundo morresse — oh! meu prazer eterno

       Que num sonho diviso!

Ele iria rodando às profundas do inferno

       Nas rodas do meu riso.

Se o terceiro morresse, uns sete pés cavados

       No chão, em paz teria

E eu, na casa do bruto, aluguéis atrasados

       Jamais os pagaria!

 

MEU ANO BOM

Na doce paz do lar passei o dia

E a bem dormida noite de Ano Bom;

Não fui sequer a um baile a fantasia,

Não fui sequer de um Club ao reveillon.

Adormeci às dez da noite, ao som

De um "choro"... da criançada. Oh! que harmonia!

E entrei pelo ano novo a dentro com

A alma leve e uma ducha d'água fria.

E, abraçando a mulher, disse-lhe: — agora

No ano novo, às arengas demos fim!

Zangas e ciúmes atiremos fora!

Em tudo tens de obedecer-me: enfim,

Serei teu aio e tu — minha senhora;

Serei teu anjo e tu — meu ser afim...

 

A CRISE

Quando nasci já a crise começara;

E começara a crise de tal jeito,

Que eu, da mãe-preta reclamando o peito,

Já protestava contra a vida cara.

Crescei, fiquei rapaz e, ora, homem feito,

Vejo que a crise de crescer não pára;

E hoje maior que nunca se declara

E é dos males da Pátria a causa e o efeito!

Crise de carne seca e de presunto!

Será possível que ela se eternize?

Ao meu crítico estômago pergunto.

Porém confesso, sem menor deslize,

Que devo à crise de melhor assunto

Este soneto criticando a crise.

 

CONTRARIAR A VONTADE

— Sempre bem, seu Roberto? e rijo e forte

Com o seu saudável, seu garboso porte?

— É tal qual como vê, meu caro amigo;

Desafio a moléstia e a própria morte

Com os preceitos higiênicos que sigo.

— E esse processo?... — É meu, de meu invento;

Adoto-o desde a minha mocidade;

É, aliás, de uma tal simplicidade

Que com clareza o exponho num momento:

Contrário os impulsos da vontade!

Percebeu?

       - Com franqueza, não percebo.

— Contrario a vontade a todo o instante:

Quer, por exemplo, o estômago, que eu jante?

Não janto. E sede acaso tem? Não bebo.

Quer a vontade diversões? Trabalho;

Pede trabalho? Corro a divertir-me;

Incita-me a chorar? Rio e gargalho;

Quer que me sente? Fico de pé firme.

— É notável!

          — Notável? É excelente:

Se estou cansado e o corpo quer descanso,

Em vez de ir para o leito, eu pulo e danço

Ou marcho uma hora sob o sol ardente.

Contrariar a vontade. É o meu segredo!

Quer ser feliz? O meu conselho guarde:

Se o estômago quer doce, — dê-lhe azedo!

Se não tem sono, — durma até mais tarde!

Quando tenha, — levante-se mais cedo!

E assim por adiante, meu amigo: Veja

Que eu a vontade contrariada trago-a:

Se o paladar me pede um copo d'água,

Dou-lhe duas garrafas de cerveja!

— Agora percebi perfeitamente:

Quando a vontade quer cerveja, d'água

       Dois copos dá-lhe a gente...

       - Não! também tanto, não!

Cerveja mesmo eu dou, por exceção...

       Fora de causar mágoa

Um tal excesso de contrariedade

       À pobrezinha da vontade...

 

MADRIGAL

— Vossa Excelência em plena mocidade!

— Ora, qual nada! quer fazer-me troça...

— Perdão! Eu falo com sinceridade,

Pois de lisonjeador não tenho a bossa.

— Pois veja lá se me adivinha a idade?

— Não sou capaz... nem sei de alguém que o possa!

Um tal mistério desvendar quem há de

Se é o Tempo que, ao passar, mais a remoça?...

— Galanteador! Pois saiba que já tenho

Um filho de quinze anos no colégio

E uma menina... em ponto de marido.

— Sério? — Por Deus! — Pois tal será, convenho:

Vossa Excelência teve o privilégio

De se casar antes de ter nascido...

 

DISCURSO FEMINISTA

Uma jovem feminista

Ante o auditório perplexo

Falava sobre a conquista

Dos direitos de seu sexo.

Tinha fortes argumentos

De eloquência esmagadora;

Vibravam palmas aos centos

À entusiasmática oradora

Que exclamava, num transporte

— Os dois sexos não destaco:

Tanto vale o sexo forte

Quanto vale o sexo fraco.

Entre os dois sexos, em suma,

— Toda gente se convença —

Não existe mais do que uma

Pequenina diferença!

— Bonito! Mais que depressa

Brada uma voz masculina.

Senhores! Urrah por essa diferença

Diferença pequenina!

 

TERESÓPOLIS

Nestas soberbas montanhas

De ar tão puro e céu tão lindo,

O Sol desponta sorrindo

Com a alegria nas entranhas.

Desperta a manhã mais cedo,

Ansiosa por ver o Sol,

E estende um vasto lençol

De névoas sobre o arvoredo.

Em sons de todas as claves,

Mal vem despontando o dia,

Ataca uma sinfonia

A alada orquestra das aves.

Bailam pelo ar os insetos,

Enchendo com seus zumbidos

Os deleitados ouvidos

Das orquídeas e dos fetos.

Sons estrídulos de vaias

Trilam vozes de cigarras;

E dizem coisas bizarras

Os bambus às samambaias.

Têm as quaresmas nos braços

— Tecido em flores — um encanto!

A secar ao Sol, o manto

De Nosso Senhor dos Passos.

"Verde em baixo, azul em cima

E o cristal da luz ao meio"

E este ar, de frescura cheio

Que a alma e o corpo nos reanima.

Ó Grande Pintor que pintas

Estes céus na tela imensa,

Que artista da Renascença

Te ensinou tão belas tintas?!

Ó Poetas irmãos! Não serdes

Também pintores! Pintáveis

Estes bosques adoráveis,

Verdes, de todos os verdes!

Verde das frondes às raízes:

Musgo, esmeralda, azeitona...

Vestem-se Flora e Pomona

De verde de mil matizes.

Deus presenteou esta Serra

De encantos que se não medem;

É este de certo "o outro" Éden,

Se houve dois Édens na terra!

De um lado um morro se alteia

Envolto num véu violáceo:

Esta é a ogiva do Palácio

Onde o deus Pã veraneia.

Seu nobre culto, celebre-o

Minha lira virgiliana!

Hurrah! Viva a carraspana

Desta luz que me põe ébrio!

São, nos meus sonhos diuturnos,

Grandiosos planos os meus:

Enfiar no "Dedo de Deus"

Um dos anéis de Saturno...

Colher da aurora e do poente

As cores várias e finas

Pára, vendendo anilinas,

Enriquecer, de repente!

Eis entre os planos diversos

O que inda ontem concebi:

Montar, com as quedas do Imbuy,

Usinas de fazer versos!

E, enquanto sonho, percorro,

O olhar guloso e insaciado,

Todo o céu, de lado a lado,

A terra, de morro a morro.

Remoço. Repito as proezas

Dos meus quatorze anos; entro

Feliz, pelo mato a dentro

A conquista de framboesas.

Tenho apetite sem par

E como como! Revivo!

O almoço é o aperitivo

Que tomo para o jantar.

Subo os íngremes barrancos

A cata de parasitas;

Recebo as minhas visitas

No smartismo de uns tamancos.

Grotas, córregos, penhascos

Corro, bebendo a paisagem:

O Paraíso, a Ermitagem,

Paz, Garrafão, Quebra-frascos...

O perfil das montanhas

Traçado no firmamento,

Assume a cada momento

Formas diversas e estranhas;

Se o céu se aclara ou se turva,

Picos altos, fundas grotas

Parecem mudar de cotas,

Dão sempre uma nova curva.

Tomando por "zero" o bosque

Que fica em face à estação,

Para encontrar-lhe a equação

Recorro ao velho Tromposky.

E o Mestre, com a velha prática,

Diz-me, em palavras singelas,

Que aquela curva é d'aquelas

Que riem da matemática.

E Astronomia? o que a estude

À noite, por estes campos,

No Céu vara pirilampos,

E estrelas sobre o palude.

E o Paquequer? (São segredos

Que ouvi, de fonte segura)

Quer vendê-lo a Prefeitura

A um armazém de brinquedos.

Porque o chamou "rio caudal"

O Alencar, no Guarani,

Ei-lo a lançar-se no Imbuí

Convencido de que é tal.

E eu, vendo-o naquele salto,

A ideia vem-me à cabeça

De uma criancinha travessa

Pulando, assim, de tão alto...

E, os nervos em reboliço,

Eu tenho ideias malucas

De dizer: — tu te machucas,

Paquequer, não faças isso!

Tudo aqui é gente de bem;

Virtudes aqui, são sobras!

Pois se mesmo as próprias cobras

Não fazem mal a ninguém!...

Glória a ti, bendita Serra

De encantos que se não medem!

É este, de certo, "o outro" Éden

Se houve dois Édens na terra!

 

AS CORES DAS VOGAIS

Cada vogal tem sua cor distinta;

Que só o Artista pode ver exata,

Se os olhos livres tem de catarata

E sabe o nome dar a cada tinta.

O — A — é branco; quem há que me desminta

Ao ver a "cal", a "clara" (do ovo), a "prata"?...

— E — azul: "céu" (que n'água se retrata)

— I — vermelho: "Lili" (que os lábios pinta).

— O — amarelo: é o "sol", é o "ouro", é o "povo"

— U — negro: "urucubaca" (este vocábulo

É bem preto, apesar de muito novo).

E as consoantes têm cor como as vogais:

Folheai qualquer velhíssimo incunábulo

Vide as iluminura dos Missais...

 

ECONOMIA DOMÉSTICA (Provérbio)

Entre os meus companheiros

Do tempo de estudante,

Um havia, de pálido semblante,

       - O Matias Ribeiro,

Um tipo excepcional de ordem, metódico,

De ideias sérias sobre economia

       E que tinha a mania

De sempre conseguir pelo preço mais módico

Livros, roupas, sustento e moradia.

       Em suma, era voz pública

                 Que o Ribeiro,

Entre os vários rapazes da "República",

Era o que tinha o instinto financeiro.

       Se alguém lhe oferecia

Um refresco, um café, não os aceitava,

       Pois que logo pensava

No troco a dar àquela cortesia.

       Diziam que o Ribeiro

Apesar de ser filho de pais pobres,

A custa de juntar seus tostões num mealheiro,

Já guardava no banco uns tantos cobres.

Foi ao fim de seu curso de direito

       Que, de repente,

A ideia de casar lhe veio à mente.

       Fora um caso perfeito

De paixão fulminante que lhe dera;

       E só assim se explica

       Que não sendo (e não era)

A rapariga que o inspirara, rica,

       Resolvesse o Ribeiro

Deixar a vida de rapaz solteiro.

       Viu, pediu, e casou;

E tem sido feliz, ao que presumo,

       Pois que na esposa achou

De ordem e economia um perfeito resumo.

       Há dias encontrei-o

Mais gordo, rubicundo, ar prazenteiro,

Ele que eu conheci desengonçado e feio,

       - Feliz, então, Ribeiro?

— É verdade, tornou; não me queixo da sorte;

A vida vou levando economicamente,

       Pois, felizmente,

Achei uma alma irmã na minha ideal consorte.

E contou-me alguns casos

Da sua vida íntima: — "A princípio

Fui obrigado a um duro sacrifício

Para cobrir alguns financeiros atrasos;

       Mas, gradativamente,

Fui cortando as despesas prorrogáveis;

       Com maneiras amáveis

Aconselhava à esposa, sem no entanto

       Dizer-lhe claramente

Que era o meu fim fazer economia.

Sobre a nua verdade eu punha o manto

       Róseo da fantasia...

       Procurava um pretexto

Para chegar aos fins que pretendia;

Assim... E ele narrou-me o caso que aqui conto,

       Sem que do seu contexto

       Altere o menor ponto:

       "Antigamente as lavadeiras

Da minha roupa branca davam cabo;

       Eram dúzias inteiras

De meias e de lenços que eu perdia;

       E, não sendo um nababo,

Pois me custa a ganhar o pão de cada dia,

       Tratei de achar um meio

De pôr, depressa, um paradeiro àquilo;

— Farei o rol! disse comigo, creio,

Que assim a coisa se endireita. E fi-lo

       Mas qual! quando me vinha

       A roupa da lavagem,

Ao conferir o rol, tais revoltas eu tinha,

Por não ver nele a mínima vantagem,

Que acabei por deixar a coisa à revelia.

       Ora, uma vez casado

       Logo ao segundo dia,

Disse à minha mulher: — ouve, meu bem,

Lava os lenços tu mesma! isso convém,

Não te será trabalho algum pesado,

       Além do que, tu te distrais

                 E assim,

Meus lenços finos não se perdem mais.

Foi uma ideia bem feliz; ao fim

De quinze dias, feita a experiência,

       Falei-lhe: — tem paciência,

       Lava também os colarinhos...

Uma semana após fui às gavetas;

Das peças todas que ela me lavava

       Mais nenhuma faltava!

— Passa a lavar, querida, as camisetas...

Sugeri-lhe depois; e não precisas

Para fazê-lo mais de um quarto de hora,

       E caso é que ela, agora,

Lava as meias, os punhos, as camisas...

       A minha roupa

Já não se perde como antigamente;

Muito dinheiro e tempo assim se poupa

E com o sistema novo estou contente.

       - Dou-te de graça este conselho,

Concluiu meu amigo, é de primeira!

       Nunca mandes roupa à lavadeira...

                 Mira-te em meu espelho...

Moralidade

Ante um tal caso ninguém que há que fuja

A crer que do provérbio a verdade extravasa:

       "A roupa suja

       Lava-se me casa."

 

A SORTE GRANDE

Não tirei os mil contos; nem, ao menos,

Um reles prêmio de consolação.

A fortuna furtou-se aos meus acenos,

Com a mais brutal desconsideração;

Nem um dos prêmios grandes ou pequenos!

Foi-se-me agora a última ilusão!

Adeus festins de Orfeu, de Baco e de Vênus

Em que só se entra com o dinheiro em mão.

Nem um prêmio sequer que me conforte

Por três meses ou dois; mesmo por um...

E a vida me conserte e a desentorte.

Meu caso, aliás, é fora do comum:

Não tive prêmios, não por não ter sorte,

Mas porque não comprei bilhete algum.

 

AS CHAVES DO COFRE

"Manoel, Onofre & Companhia

Venda a varejo e a atacado"

É a tabuleta que se via

Numa sortida mercearia

Da antiga Praça do Mercado.

Pesar da grande concorrência,

De vento em popa ia o negócio;

E, com trabalho e persistência,

Iam caminho da opulência

Tanto o Manoel como o seu sócio.

— Nosso dinheiro na gaveta,

Diz o Manoel, não está seguro,

— Pois, torna o Onofre, que se o meta

Num banco sério, que prometa

Mais garantia e um forte juro.

— Banco? qual banco! É uma desgraça!

Se uma "corrida" acaso sofre,

Quem vai no embrulho é a gente, é a praça.

— Que é pois que entende que se faça?

— Eu, cá por mim, comprava um cofre.

— Pois bem, comprêmo-lo. A encomenda

Foi feita à agência, aqui no Rio.

Era magnífica "fazenda";

E hoje ele ostenta-se na venda,

Pesado, negro e luzidio.

O "Caixa", o "Diário", o "Costaneira"

Junto ao "Razão" e aos "Borradores"

Figuram guapos, em fileira,

Todos na mesma prateleira,

— Eterna ameaça aos devedores. -

E, nas gavetas bem forradas

De finas folhas brancas de aço,

Vêm-se as contas... atrasadas;

E, em notas gordas empilhadas

Igual quantia em cada maço.

Ora, acontece um certo dia

(Que jamais outra lhe aconteça)

Perde-se a chave! Antes queria

— Manoel, Onofre & Companhia"

Perder em vezes a cabeça!

— Perdida a chave! Ó que desgraça!

O sócio exclama. Houve um salceiro.

Manoel em claro a noite passa.

— Pois que outra chave então se faça!

Mandemos vir um serralheiro!

Propôs o sócio — É o mais prudente.

E sem demora o artista veio;

Olhou o cofre atentamente

E disse: — a chave é de "patente"

De outra fazer não vejo o meio.

— E agora? e agora? Explode, aflito,

Manoel que treme, em forte abalo.

— Mandem chamar um bom perito

(Lembra o operário) o Zeca Brito

Pode, em dois tempos, arrombá-lo.

Como? Arrombá-lo? — É o que lhe digo.

Uma pancada dada em cheio

E zás! Não há menor perigo;

Para o abrir, meu caro amigo,

Não há, garanto-lhe, outro meio;

Só se se achasse outra igualzinha...

Costumam vir em duplicata...

Grita o Manoel: — por vida minha,

Que uma outra chave o cofre tinha!

Por muito tempo andei-lhe à cata!

— Tinha e inda tem! a voz atroa

Como um trovão, do sócio, o Onofre,

— E onde está ela? — Hom'essa é boa!

P'ra não andar p'ra'hi à toa,

Eu na guardei dentro do cofre...

 

ARTE, NÃO ARTIFÍCIO

O fazer-se um soneto, usando a inteira gama

Das vogais, é, meu poeta, um difícil problema.

Seja o leve humorismo, a sátira, o epigrama,

Vê que, dentro da forma, a ideia não se esprema.

Das rimas deve ser perfeita a fina trama,

Sem que haja sacrifício, o mínimo, do tema,

A ideia é o fio de ouro, o verso é a tênue lhama

Em que da rima rara o artista engasta a gema.

Fazer malabarismo, acrobacia, esgrima,

Com o verso que a seu gosto o poeta amolda e doma,

Não é tarefa que de fácil se presuma;

Fá-lo aquele que entende os caprichos da rima

E fá-lo sem mostrar o mais leve sintoma

De que achasse, a vencer, dificuldade alguma.

 

O CAÇADOR

Arthur, o caçador, monta o Pequira

E ei-lo se vai para a floresta à caça;

Grita uma paca ao vê-lo, de olho a mira:

— Fujam, que aí chega um caçador de raça!

Mas a notícia, célere, transpira

Por toda a vasta zona em que ele passa.

Ronca um porco do mato: — ai, se ele atira,

Que sangueira, que dano e que desgraça!

Mas não temais, ó bichos da floresta!

Das balas que levou nenhuma resta

A Tartarin; e ele vos deixa em paz;

E volta, cheio de cansaço e poeira,

Trazendo, em vez de pacas, a algibeira

Repleta de framboesas e araçás...

 

OLHARES CARNÍVOROS

Poeta, se os olhos teus tivessem dentes,

Mirando aquele colo e aqueles braços,

Teus olhares carnívoros e ardentes

Neles, de carne, nem deixavam traços.

Teus olhos davam botes; — que serpentes!

Devassavam mistérios; — que devassos!

Iam de baixo a cima, renitentes,

Moles, famintos, lânguidos e baços...

Confesso que também alguns ligeiros

Olhares arrisquei; e, iguais aos nossos,

Outros vi, de sisudos cavalheiros.

Aquele colo e aqueles braços grossos

Voltaram, creio, incólumes e inteiros,

Mas reduzidos, moralmente, a ossos...

 

A SORTE DO ZECA

No mesmo colégio andamos

Eu e o Zeca — um bom rapaz —

Os mesmo jogos brincamos,

Sempre amigos, sempre em paz.

Zeca tinha muita sorte

De azar sempre andava eu...

Mas nossa amizade forte

Com isso jamais perdeu.

Mas com o demo! Mas com a breca

Que bruta sorte a do Zeca!

Juntos dois nos formamos

Com a mesma amizade antiga

E ambos nos apaixonamos

Pela mesma rapariga.

Zeca tinha muita sorte...

Eu sempre fui de um azar...

Foi ela a sua consorte

E eu cá fiquei a chuchar.

Mas com o demo! Mas com a breca

Que bruta sorte a do Zeca!

Passam-se anos. Meu amigo

Um belo dia morreu.

Ao seu derradeiro abrigo

Em prantos levei-o eu.

Mas... a morte é sempre a morte;

Com a viúva me fui casar...

Zeca teve muita sorte

Eu sempre fui de um azar...

Mas com o demo! Mas com a breca

Que bruta sorte a do Zeca!

 

FECHANDO O VOLUME

Aqui termina o livro que compus

Não porque me pedissem: porque quis.

Chegando ao fim, confesso-me feliz

Pois, sem muito gemer, o dei à luz.

Ele a bem pouca coisa se reduz;

Porquanto, sendo escrito em português,

— A "língua de chorar" de meus avós, —

Pretendeu ser alegre e, aqui para nós,

Conseguiu-o, por acaso, uma só vez:

Foi na pagina... qual, sou lá capaz

De saber a que rir, leitor, te fez?

Tu sorris, afinal, do que apraz...

E eu... de um breve sorriso que me dês.