LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio digital
Bolhas de sabão, de Bastos Tigre
Edição de referência:
BASTOS TIGRE, M. Bolhas de sabão.
Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1919.
THE WOMAN, THE PLACE AND THE HOUR
ECONOMIA DOMÉSTICA (provérbio)
Poeta, espedaça, corda a corda, a lira!
Não cantes mais, que tudo o que cantares,
— Brilhos de sol, de estrelas e de luares,
É de miragem feito e de mentira.
Falsa é a glória de amor que proclamares;
Falso é o peito do amante que suspira;
Mente-te a própria musa que te inspira,
Mentem-te os próprios santos dos altares!
Não existe a verdade por que anseias
E de que, lira em punho, andas no encalço,
Perscrutando a tua alma e almas alheias.
Mentira é o mal que exprobro, é o bem que exalço.
Ouve-me, poeta, mas em mim não creias,
Pois que isso mesmo que eu te digo... é falso.
Porque, sábio, o teu cérebro se empenha
No esforço de entender o "nada" e o "tudo"?
Porque encaneces, a buscar no estudo,
Para entrar no Mistério, o santo e a senha?
Fulge no espaço o sol, sem que, contudo,
Nesse fulgir teu cálculo intervenha;
E, impassível, o Céu de ti desdenha,
Se olhas o Céu, contemplativo e mudo!
Dos astros descrevendo a trajetória,
Ou mergulhado nas filosofias,
Sábio que, de vaidoso, em ti não cabes.
Pensa, gozando a tua própria glória,
Que enorme Enciclopédia escreverias
Sobre todas as cousas que não sabes!
Bramir de oceano e ruídos de floresta,
Marulhos de regatos sussurrantes,
Gritos de dor, agitações de festa,
Vozes vindas de páramos distantes.
A tudo, ó Músico, o teu gênio empresta
Alma, estilo, bravura, ardor, cambiantes,
Em que a vida do som se manifesta
Em formas novas e expressões brilhantes.
O poder do teu estro extraordinário
Grava na pauta o beijo dissoluto
Ou a dor de Magdalena no Calvário.
E eu, Mestre, mudo de emoção, te escuto:
Preferindo, entretanto, o meu canário,
Que nunca foi aluno do Instituto...
Talha, escultor, no mármore, o mais puro,
A Humana forma; a linha, a mais distinta,
Grava a buril, com tão cuidado apuro
Que na pedra o teu gênio se pressinta.
E tu, pintor, a luz, o claro escuro,
Todas as cores e matizes pinta!
Um deus criador da vida em ti figuro,
Que faz a vida com o pincel e a tinta.
Deixa o artista glorioso e soberano
Na obra d'arte — no mármore e na tela —
A traça do seu gênio sobrehumano.
Mas ninguém um segredo me revela:
— Porque a vida fazer de pedra ou pano,
Se a Natureza nola dá tão bela?
Um figadal inimigo
Falou muito mal de mim;
Mas eu palavras não ligo...
Más línguas são sempre assim.
Fez-me, porém, certo espanto
Que o autor de tanta maldade
Me descobrisse, entretanto,
Certa nobre qualidade.
Qual foi, desvendar não pude:
Mas o tipo achou, em suma,
Que no capítulo "virtude"
Eu possuo ao menos uma...
No mesmo dia de um amigo
Disse de mim muito bem;
E, aqui francamente o digo,
Não liguei muito também...
Nem sequer me causa espanto
Que, entre dotes tão perfeitos,
Ele notasse, entretanto,
Que eu tenho vários defeitos.
Quais, não sei... (ninguém presuma
Pecados extraordinários)
Mas meu amigo acha, em suma,
Que eu tenho defeitos "vários".
Notei pois: — meu inimigo
Dá-me "uma" virtude, apenas:
Ao passo que o meu amigo
Defeitos me dás às dezenas.
E nestas linhas comento
O fato, com certo gozo:
Como o inimigo é avarento!
Como o amigo é generoso!
Tu, que inda crês no amor, pensa um instante
E verás que esse estranho sentimento
Que te conturba o vário pensamento
E te faz triste e pálido o semblante.
É um tributo ao teu próprio valimento:
— O amor de ser amado, sendo amante,
Vaidade de maior sentir-se, diante
Dessa que é o teu cuidado e o teu tormento.
Feição mais nobre (ou menos vil) do egoísmo,
O amor é sentimento subalterno;
— O orgulho de apresar almas alheias.
Desce dos corações ao fundo do abismo
E, então, verás que o próprio amor materno
É amor do próprio sangue em outras veias.
De que valeu viveres tantos anos,
A sofrer da existência os dissabores,
Enganado, a buscar novos enganos,
Curando a velha dor com as novas dores?
Falharam-te de glória os nobres planos;
Desejavas o amor, tiveste amores...
E hoje passas, cansado, entre os humanos,
Indiferente a ápodos e a louvores.
De nada, te serviu quanto aprendeste
Do mundo e tudo quanto viste e quanto
Em mil volumes, velho amigo, leste.
De nada. E a vida foi-se-te, entretanto;
Se para envelhecer é que viveste,
Não te valera a pena viver tanto!
De longas barbas louras, derramadas
Sobre o negro burel, a vasta fronte
Rosada e as faces nédias e rosadas,
O monge cisma, de olhos no horizonte.
Vê as terras de Deus, iluminadas
Pelo sol da Esperança e a pura fonte
D'Água Viva da Fé e as sazonadas,
Fartas espigas do sagrado Monte.
Campos a cultivar!... trabalhar rude:
Arrancar as riquezas que entesoura
A Alma, rica em minérios de virtude!
E eu penso, ao ver-lhe a face, e a barba loura:
— Belo animal de músculo e saúde!
Que bons braços a Fé rouba à Lavoura!
D. Quixote
O que ao corpo a nudez nos reveste
Não nos muda a moral, nem de longe;
Pois — de monge, quem habito veste
Nem por isso tem alma de monge.
Sancho
Pois eu cá, meu senhor, não sou bobo
Que as orelhas de burro afivele!
— Quem não quer neste mundo ser lobo
Não se meta de um lobo na pele.
D. Quixote
Um rifão cuja autenticidade
Não é coisa de que se suspeite,
Diz que — vem sempre à tona a verdade
Como n'água uma gota de azeite.
Sancho
Quem tal diz está doido e delira!
Sempre ouvi, desde os tempos de moço,
Que — o que fica na tona é a mentira
E a verdade... no fundo do poço...
D. Quixote
A união nos dará forças raras
Por que o mundo tranquilo nos deixe;
— Se, uma a uma, se quebram dez varas,
Não se as quebram reunidas num feixe.
Sancho
Por um prisma distinto é que eu olho;
Vejo o caso, meu amo, diverso;
Sei que o — trigo emaçado num molho
É melhor de cortar que disperso.
D. Quixote
Esperar é virtude do forte;
É o escudo da vida a esperança:
Confiar nos favores da sorte...
— Quem espera, afinal, sempre alcança.
Sancho
Mas também há quem tenha concluído
Com o exame à razão mais severa,
Que esperar é trabalho perdido:
— Quem espera, afinal, desespera.
D. Quixote
É feliz quem na sorte confia;
Quem a tais desesperos se poupa:
O que é nosso até nós vem um dia:
— Deus dá o frio de acordo com a roupa.
Sancho
São Palavras, são ditos, são vozes,
Mas de vozes eu sei diferentes;
Tenho dentes? procuro ter nozes:
Deus dá nozes a quem não tem dentes.
D. Quixote
Que te trace a formiga o roteiro:
— A cigarra não sejas, vadia,
Que não cuida de encher o celeiro
E que vive a cantar todo o dia.
Sancho
Est modus in rebus. Conselho
Não é esse a um cantor de renome,
— A cigarra a não ter por espelho,
O Caruso morria de fome!
D. Quixote
Caminhemos, ó Sancho, o ditado
A verdade mais clara reflete:
— Todo o barco que fica parado,
Caro Sancho, não ganha o seu frete.
Sancho
Vede a onda que avança e recua:
Traz, no dorso, do oceano a salsugem.
Olhai cães que andam muito na rua...
— Ou apanham pancada ou rabugem.
Tem razão Sancho Pança ou seu amo?
Cada qual filosofa a seu jeito;
E se um diz: — a verdade proclamo!
Outro tem por melhor seu conceito.
A verdade encontrá-la a quem há-de?
A tentar descobri-la, eis-me às tontas!
E concluo que a perfeita Verdade
É um dilema. Escolhei: — qual das pontas?
— Para ser-se feliz cumpre: — primeiro
Ter, de corpo e de espírito, saúde;
Não será mau também ter-se dinheiro
Que o fardo a suportar, da vida, ajude.
Um grande amor sincero e verdadeiro
Da alma nos tome a máxima amplitude;
Tenha-se aberto o coração inteiro,
Ao culto da Justiça e ao da Virtude.
Quem condições que tais tiver por junto,
Tem do problema da felicidade
Resolvido a equação e achado o X.
Mas para achar tais condições? pergunto:
E torna-me o filósofo: — em verdade
Basta bem pouco, basta ser feliz.
Não se condene o plágio, a cópia!... Em suma
Tudo o que vive é igual ao que viveu,
Com mais um toque original, — alguma
Nota de outrem, que o autor possui de seu...
Vidas são reimpressões de Vida: de uma
Vida que há cem milênios se viveu;
E cada qual que a amplie ou que a resuma,
Põe, no oceano do alheio, a gota do eu.
Com o foi e com o será o é se parece;
Satanás é Jeová noutra edição
E uma praga é a paródia de uma prece.
Mas que se não condene a imitação:
Que fora o mundo se ele não tivesse
Imitado a mãe Eva e o pai Adão?
Do vegetal, do orgânico detrito,
De folhas podres e curtido estrume,
Aduba o lavrador o solo; e a lume
À planta irrompe, como um verde grito!
E canta a flor o poema do Perfume;
E o fruto, em seu sabor fino, esquisito,
Diz da Transformação: — é Pã; é o mito,
Que a vida e a morte, tudo, em si resume.
Vós — crédulos que sois — lançais, sorrindo,
D'alma os detritos: — prantos, mágoas, dores,
Sustos e ânsias — do Tempo ao campo infindo.
Sonhando ver, ingênuos sonhadores!
Desse estrume, curtido no ano findo,
A ventura brotar, aberta em flores!
Argentário burguês, trabalhador do povo,
E tu, pariá de pés no chão,
Tendes, hoje, ao raiar do "feliz ano novo",
A mesma cândida ilusão.
Pois que Dezembro morre e que nasce Janeiro
E um ano mais se passa enfim,
Pensais todos que o amor, a saúde e o dinheiro
Mudar-vos vêm a sorte ruim?...
Tal pensaste também, quando esse ano que finda
Era um minúsculo petiz;
Tiveste a ilusão que hoje tendes ainda...
- Ter ilusões é ser feliz. -
E os dias passarão e as semanas e os meses
E outro "ano bom" por fim virá;
E os anos da existência hão de marcar às vezes
Que o coração se iludirá.
Abençoada ilusão, generosa quimera
Que uma vez no ano nos sorri!
Cada qual que sofreu, a sofrer, considera:
- Não sofrerei como sofri,
Nem o rancor dos maus, nem o apróbrio mesquinho
Dos de mesquinho coração;
Não sentirá minh'alma a falta de carinho
Nem meu estômago a de pão!
Assim reflete o pobre, a mirar o futuro
Primaveril, multicolor:
Se o ano que passou lhe foi amargo e duro
O que hoje vem traz melhor cor...
E o rico, a ponderar num plano financeiro
De altas e ousadas transações,
Pensa que este ano novo há de lhe dar dinheiro,
Dobrando os juros das ações.
O Poeta espera ver que o gênio lhe descubra
O mundo estúpido e revel,
E os seus versos vender por um preço que cubra
O enorme custo do papel.
O casal solitário espera o complemento
Do conjugado verbo amar;
A moça espera o noivo, o pedido, o momento
De pôr a aliança no anular.
Ano Novo! Ambição, esperança, quimera,
Boite à surprise dos bebés!
La Palisse dizia (e com razão...) — que dera
Um ano novo em cada mês!...
Sou livre; apenas preso ao Preconceito,
Sou de praxes e fórmulas cativo;
Dentro da pauta das doutrinas vivo,
Entre as quatro paredes do Direito.
Sou livre; e ao deus-Estado estou sujeito.
O meu querer, por que reclamo, altivo,
É passado dos códigos no crivo,
Comprimido das leis no dreno estreito.
Livre e senhor de mim, faço o que quero;
Mas é "o que quero" aquilo que me aponta
Do Unânime Consenso o dedo austero.
Porque não — sem que a alguém eu faça afronta —
Poderei ser "eu mesmo" e ser sincero,
Ser mau, ser bom, por minha própria conta?
Dom Quixote, que fazes hoje em dia?
Inda, hirto e bravo, correr à aventura?
Buscas teus livros de cavalaria?
Em vão buscá-los tu! queimou-os o Cura!
Ilustras teus brasões de fidalguia
Em lances de destreza e de bravura?
Olha Sancho que dorme! olha a ironia
Desse amplo ventre, impando de gordura!
Não. Dom Quixote imita Sancho Pança;
Prudente, calmo e de ótimo apetite,
Com as alheias desditas não se cansa.
E, porque molestar seu pelo evite,
Contra os Moinhos já não luta a lança,
Mas fá-los ruir, de longe, a dinamite!
Eva e Adão, esses dois desassisados,
Deram a causa a má sorte dos humanos,
Por isso todos nós temos pecados,
Quer sejam capitais ou... suburbanos.
Os meus eu os tenho como toda gente
Que se preza de ser um filho de Eva.
E tantos eles são que, certamente,
A alguns milhões a conta já se eleva.
Passo alto os simples, os pequenos,
Os que a Doutrina chama de veniais,
Pois contando os que têm por causa Vênus
Vão a meio milhão; talvez a mais...
Vem a quaresma. O exame de consciência
É tempo de fazer; o exame faço,
E corro ao Tribunal da Penitência
A ver se deles me desembaraço.
E a "prova" principio. Os sete "pontos"
— Que são sete os pecados capitais —
Analiso um por um; estudo-os, conto-os,
A ver se os tenho n'alma e como e quais.
SOBERBA. N'alma este por certo eu tenho,
Nos seus aspectos múltiplos, diversos.
Tenho o orgulho de ser senhor do engenho
Que fabrica o melado dos meus versos.
AVAREZA. Bem sei que sou avaro:
Quero só para mim os beijos "dela".
Peça quem m'os pedir que aqui declaro
Deles não cedo a mínima parcela.
IRA. Sinto-a se alguém me pisa um calo
Se sou mordido ou levo alguma espiga;
Ou se, apressado, ao telefone falo
E ao demônio da moça não "me liga"...
GULA. Quem não na tem? Quem há que a dome
Quando está sem vintém, ou está de dieta,
E sente, à porta de um hotel, com fome,
Uma feijoada a trescalar, completa?
LUXÚRIA. Ó vil pecado que o demônio
Nos pôs no olhar, no olfato e até no gosto!
Eu sinto as tentações de Santo Antônio
Sem ter coragem de voltar o rosto!
INVEJA. Invejo, sim, porque negá-lo,
O farto Crezo que o seu ouro esconde
E anda de limosine e eu a cavá-lo,
(A cavar o dinheiro) ando de bonde!
PREGUIÇA. Ó vil pecado delicioso!
Cultivo-te também; de ti me valho
Por gozar o bramânico repouso;
E só por consegui-lo é que trabalho!
Sete pecados capitais. Apenas?
Tão reduzida é a lista dos pecados?
De cada um deles eu já fiz centenas
De milhares, milhões multiplicados!
Pecado! És tu, de fato e de direito,
Senhor da humana gente endemoniada:
— Para servir-te um corpo aos gozos feito,
— Para querer-te uma alma ao Demo dada!
Eis terminado de consciência o exame:
Mereço Torquemada e o Santo Ofício!
E maldigo o Demônio, horrendo e infame,
Que fez assim, tão tentador, o vício!
E volto, leve e santo e tendo ouvido
Conselhos sãos; severos, mas corteses;
De tanto haver pecado arrependido
Mas certo de ir pecar muito mais vezes...
Amigo Frei Tomás, tu não me iludes;
Dispenso-te os sermões, deixa-me em paz!
Se, falando, és um poço de virtudes,
És, obrando, um demônio, ó Frei Tomás!
Água benta despendes aos almudes,
Exorcismando o Vício e Satanás;
Macaco velho, à alheia cauda aludes
E o apêndice não vês que tens atrás.
Ergues, em prol da Pátria, a rija lança
De Dom Quixote; e cobres de baldões
A quem nos cofres públicos avança.
Cortas ao pobre os últimos tostões...
E, calmamente, vais enchendo a pança
Em negócios, contratos, concessões...
Sou o homo sapiens de Lineu; oriundo
Do antropóide simiesco primitivo;
Propenso ao bem, propenso ao mal, segundo
O tempo, o espaço e o meio em que convivo.
Vejo com certa simpatia o mundo
Se o mundo, de prazer, me dá motivo;
Contra ele sou de cóleras fecundo
Se, ao contrário, me fere e olha agressivo,
O mal passado não me dá saudade;
Faço apelo ao futuro, se é o presente
"Presente grego" que me desagrade.
— Homem vulgar! todos dirão. Somente
Tenho esta grande originalidade
De confessar-me igual a toda gente.
Finados. Dia solene
De lembrança e de saudade;
Tem a morte a misancêne
Das peças da atualidade.
A despesa não se poupa
Para a delícia das vistas:
Elegante é o guarda-roupa
Feito por grandes modistas.
Ali, nas mínimas cousas,
Parca, o teu gênio puseste!
Cenário de brancas lousas
E o fundo verde-cipreste.
A peça é a Saudade Eterna
De sucesso garantido;
Música de arte moderna
Que a gente apanha de ouvido.
Assim que o velário se abra,
Com brilho, a orquestra, de cor,
Ataca a Dança Macabra
Transportada em Dó Maior.
A peça brilhante e viva,
Com lances comovedores,
Vai, como na primitiva,
Com todos os... morredores.
A Morte é uma dançarina
De belas formas. Exibe-as
Numa dança serpentina
De rádios, fêmurs e tíbias.
Mefistófeles, no prólogo,
Rubro, elegante, correto,
Recita um velho monólogo,
— O do "Coveiro", do Hamleto.
E Plutão, baixo profundo,
Em graves notas dolentes,
Recorda que no Outro Mundo
Há pranto e ranger de dentes...
E há na peça extraordinária,
Tanta coisa que eu nem sei:
Do Tango das Cinzas à ária
Do Vale! memento mei!
E a peça, como é patente,
A melhor da temporada,
Termina brilhantemente
Pela apoteose do "Nada".
Julgando o programa sério,
Pelo anúncio das gazetas,
Hoje fui ao cemitério
Com as minhas roupas mais pretas.
E por mais que isto me pese,
Digo e a provar estou pronto,
Que o programa, belo em tese,
Foi de fato um grande conto.
No cemitério — isto atesta
Quem ser sincero quiser:
Houve apenas uma festa
Como outra festa qualquer...
II
Com o ar grave e gemebundo
De quem leva a morte a sério,
Eu fui, como todo mundo,
Em visita ao cemitério.
Vesti meu fraque execrando,
Um fraque preto já antigo
Com que vou, de vez em quando,
À missa de algum amigo.
Tomei um bonde em que havia
Gente de triste semblante,
E gente que ir parecia
A um faive ó clóque elegante.
Entrei por entre os jazigos
Risonho e muito à vontade,
Como em casa dos amigos,
Com quem se tem liberdade.
Vendo as brancas sepulturas
Refleti eu desta sorte:
— Envolta em tantas alvuras
Fica bem bonita a Morte!
Senhoras de olhos magoados
Vi, carregadas de flores,
Chorando amores passados,
Sonhando em novos amores...
Uma viúva de alto porte
Chorando, mas tão distinta,
Que eu concluí não ser a Morte
Tão feia como se pinta.
Da terra estrumada um lindo
Canteiro, em flores, se abria:
— É a Morte que está sorrindo
Das tristezas deste dia!
Muita gente havia junto
De um mausoléu belo e enorme:
— De certo é um grande defunto
Esse (pensei) que aqui dorme.
E ninguém nas dos pequenos
Que habitam nas covas rasas!
Estes estão, pelo menos,
Tranquilos nas suas casas.
Flores, sorrisos... a festa
Vai no seu auge; ao sair
Uma viúva linda... e honesta
Cumprimenta-me a sorrir.
Mas em qualquer festa a nota
Discordante sempre existe:
E em meio à alegre risota
Vislumbro uma cena triste:
Triste cena que toldava
da festa a elegância e o brilho:
Era uma mãe que chorava
Na sepultura de um filho...
Cava a enxada o terreno, onde a semente
Apodrece e, prolífica, germina;
Cavando o açude, sobre o solo ardente,
O magro busto o sertanejo inclina.
Cavando, fundo, a rocha resistente,
Abre o mineiro, veio a veio, a mina.
No mar... cavado, aventureira gente
Em frágil nave busca a Índia ou a China.
Cava-se o pão, a roupa, o teto, o lume
E até, no crânio, a fórmula escondida
De um prazer, de um desejo ou de um queixume.
És, Enxada, o estalão, és a medida
De comprimento, de área e de volume,
Na geometria prática da vida.
Quem sou eu? De onde venho e onde acaso me leva
O Destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.
Grão, no campo da Vida, onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? da monera? ou vim do beijo de Eva?
E onde vou a gemer, a sangrar, de pés nus?
Nessa esfinge da Vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão
E uma voz interior, sincera, me responde:
— Quem és tu? Operário honesto da nação,
De onde é que vens? De casa. Onde é que estás? no bonde.
Para onde vais? Não vês? — Para a Repartição.
Se a mulher triunfar na árdua peleja
Em prol da liberdade que reclama
E tiver conquistado o que deseja
segundo o vasto feminil programa;
Quando o Congresso e o presidente eleja,
Metida da política na trama,
E de um forte partido a eleita seja
Em vez de ser a "eleita" do que a ama;
Na existência a mudança é absoluta:
Homem, calmo o teu lar, então, terás
Sem querela, sem briga, sem disputa.
Sair a esposa, de manhã verás
E, cansada, ao voltar da extrema luta,
Há de ir dormir, há de deixar-te em paz...
A mulher nos políticos negócios
Se bem não nos fizer, mal não nos faz;
Pois tendo ao menos em que ocupe os ócios,
Algumas horas fica o esposo em paz.
Do lar deixando os santos sacerdócios
Ao Parlamento levará, loquaz,
Sem palavras ou gestos capadócios,
Os casos de Sergipe ou de Goiás.
Mas eis que surge na contrária roda
Uma egréte vistosa; aos escarcéus,
Sucede a calma e tudo se acomoda:
Desprezando políticos troféus,
Ei-las, amigas, discutindo a moda,
Projetando a despesa... dos chapéus.
Um bom menino, o Juquinha:
Entre outros dotes morais,
Um grande amor ele tinha
A todos os animais.
Havia em casa uma gata
Toda branquinha — um primor
Que, com a sua esperta pata,
Dos gatos era o terror.
Chamava-se Branca; um dia
Teve Branca três gatinhos:
Juca pulou de alegria!
Pegava-os com mil carinhos.
Espremia-os, apertava-os,
Enchia-os de carne e pão,
E cuidadoso, lavava-os
Com água, areia e sabão.
Os gatinhos definhavam,
dia a dia; de tal sorte
Que, se algum bem aspiravam,
Era esse, por certo, a morte...
Um dia a mãe do Juquinha
De os ver sofrer teve pena;
E achou que melhor convinha
Dar-lhes morte mais serena.
E, sem modos desumanos,
Que antes com mágoa ela o fez,
Metem num tanque os bichanos
E afogou-os a todos três.
O Juquinha, ao saber disso,
Fez uma fúria danada!
Foi em casa um reboliço
De pôr a rua alarmada!
E chorava em fortes gritos;
Corria-lhe em rio o pranto.
Diziam-lhe os pais aflitos:
Não é caso para tanto!
Não faças espalhafatos,
Meu filho; Juca, não chores,
Que hás de ganhar outros gatos
Mais bonitos e maiores.
Porém Juquinha não cessa
A choradeira tamanha!
Por mais que a mamãe lhe peça
ele prossegue na manha...
O pranto o rosto lhe alaga,
Passam-se quase duas horas
E o pai, afagando-o, indaga
— Juquinha, por que inda choras?
Torna a criança, em tom magoado,
Voltando o rosto aos carinhos:
— Deviam "tê-me deixado"
Que eu afogasse os gatinhos!...
É da moderna moda consequência
O gosto pelo tango, em fina roda;
Pois que há, não há negar, correspondência
Da moda no trajar, com a dança em moda.
As saias vão em célere ascendência...
Subindo... E a dona já não se incomoda
De apresentar das pernas a opulência
Que às vezes falsa, o nosso olhar engoda.
Assim, cada vez mais se expõe a perna:
Os casacos já quase não têm mangas
E do colo a nudez toda se externa.
Por causa disso, é que o vovô tem zangas;
E exclama: — É fresca a moda ultra-moderna!
Na dança os tangos, no vestido... as tangas!
Pôr limites à moda! Essa medida
Certo em Paris revoluções fará!
Paris que tem na moda a própria vida
E que com a moda leis ao mundo dá!
Quer o Conselho a saia mais comprida?
Condena a seda, o falhe, o tafetá?
Toda Lutétia agita-se, incendida,
Do bairro Sam Germã ao Mom Martruá.
E o mundo inteiro inflama-se, ao protesto
De Paris; e obediente ao mesmo gesto,
A bandeira "pró-moda" eleva audaz.
E se da tal medida é causa a guerra,
Mulheres de Paris, de toda a terra,
Quereis, por certo, sem demora a paz
Entrando num cemitério
Doutor Fulano de Tal
Tinha um ar sisudo e sério
De alguém que está sob o império
De forte impressão moral.
Alguém saúda-o: — Doutor!
Ele responde entre dentes,
Diz o outro, à parte: — Impostor!
Tem sempre um ar superior
Quando visita os clientes...
Diante da aguda crise financeira
Que atormenta o misérrimo Tesouro,
Diz quem no assunto fala de cadeira:
— Da bancarrota já se ante-ouve o estouro.
Quem tem fortuna tranque-a, de maneira
Que ela não role ao fundo sorvedouro!
A crise atual não é de brincadeira,
É de prata e de níquel, como é de ouro.
Feliz de mim que a crise encaro a frio;
Se lamento de ações os possuidores,
Não me traz ela o mínimo arrepio.
Tenho ao par (no colete) os meus valores
E nem sequer, de leve, desconfio
Da absoluta honradez dos meus credores...
DE UM MORDEDOR
Quanto este, frio, de gelo,
Viu da cova os sete pés,
Um verme veio mordê-lo
E ele pediu: — Passa dez!
DE UM DEMANDISTA
Demandou a vida inteira,
das demandas teve o cúmulo;
Ao vir da morte traiçoeira,
Lá foi... demandando o túmulo!
DE UM GRANDE MÉDICO
Foi um grande especialista:
A morte ao meter-lhe os dentes,
Segredou-lhe em tom trocista:
— Conheço-o muito de vista
Da cabeceira de uns doentes...
DE UMA ESPOSA (Pelo viúvo)
Viandante, pisa de manso,
Jaz aqui, neste remanso,
Iáiá, meu único bem.
Por seu eterno descanso
E meu também...
DE OUTRA ESPOSA (M. 1855)
Meu querido, a morte fera
Longe de ti me levou!
Fico ansiosa, à tua espera...
DO RESPECTIVO VIÚVO (M. 1915)
Querida minha, aqui estou!
DE UM PRONTO
Tantos cadáveres tive,
Que encontrva, a cada passo,
Um, dez, vinte, trinta, cem!...
Rolo da morte o declive
E o meu ideal satisfaço
De ser cadáver também.
DE UM MILIONÁRIO (Por um pronto)
Por sobre o corpo ainda quente
Deste grande milionário
Rola-me o pranto em torrente...
Não que fosse meu parente
Mas antes pelo contrário...
DE UM POLÍTICO
Até morrendo ele prova
Que de comer não descansa:
Quando o foram pôr na cova
Meteu a cova na pança!
DE UM PENETRA
Depois de uma vida airada
Quis ir ao céu sem licença
São Pedro pede-lhe a entrada:
— Qual entrada! Eu sou da Imprensa!
DE UM CAVADOR
Esta funda cova encerra
Um cavador de nomeada
Ao sentir a pá de terra
Exclamou: — dai-me uma enxada!
DE UM JOGADOR
Este velho batoleiro
Quando a morte o trouxe cá,
Ao ver a pá... do coveiro
Foi dizendo: — bacarrá!
DE UM HUMORISTA
Ai de mim, de todo o mundo,
Levei rindo a vida inteira
E inda cá estou, cá no fundo
Com um sorriso... na caveira...
Esperanto: esperança de um idioma
Que toda gente leia, fale e entenda,
Seja filho de Cristo ou de Mafoma,
De Cham, de Sem, ou de Jafé descenda.
Língua feita a equação, a regra, a axioma,
Com palavras forjadas de encomenda,
Que em França faz francês, romano em Roma
A quem quer que, com gosto, a estude e aprenda.
Língua que os povos todos irmaniza
E entre as nações detrói marco e divisa
Pois no laço verbal todas se prendem.
Por não falarem língua tão sonora
É que os povos da Europa em luta, agora,
Falam todos a um tempo e não se entendem.
Do profuso escritor a ler começa
A prosa, prosa nunca dantes lida;
Sorve-a com tal ardos, com tanta pressa
Que foge o alento ao mísero suicida.
Porque tal ânsia na leitura? oméssa!
Se ele pretende liquidar com a vida,
Certo andara uma bala mais depressa
E não fora a agonia tão comprida!
Morte de mais penar o vil procura:
Um por um cem períodos percorre
No suplício chinês da má leitura.
Algido suor nas faces se lhe escorre
E, ao chegar do escritor à assinatura,
Anseia, crispa as mãos, arqueja e morre.
Por tudo Rachel se queima;
Nunca vi mulher assim.
Discute, resmunda, teima,
É um bate-boca sem fim.
A tudo Rachel reponta,
Quer tenha motivo ou não.
Para ela o que menos conta
Em tal caso é — uma razão.
Se o marido se arrepia,
À noite, ela tem calor;
Se a acha quente, ela acha-a fria,
Tirita no cobertor.
Se estão à mesa do almoço
A discrepância é fatal:
— Não achas o peixe ensosso?
— Acho-o uma pedra de sal!
Diz verde o céu, se o consorte
Disse que o céu está azul.
E o que para o esposo é o norte,
É para a mulher o sul.
Briga por tudo e por tudo,
A teimar, batendo o pé.
Se o marido é cabeçudo
Muito mais a esposa o é.
Em casa sempre sai cinza,
Por causa das discussões;
Que ela é a mulher mais ranzinza
Das modernas gerações.
Chamou-a o esposo teimosa
Cert vez; Rachel fumou!
E o pé batendo, furiosa,
Que não teimava, teimou.
E assim, em constantes lutas,
Viviam qual gato e cão,
Sem buscar para as disputas
Nem lugar, nem ocasião.
Essa vida insuportável
Era o inferno para os dois
E ele um divórcio "amigável"
À esposa "amiga" propôs.
Ela aceitou — caso estranho! —
E até cara alegre fez
(De acordo entre os dois tamanho
Foi esta a primeira vez).
— Pois bem, o divórcio quero!
— Foi isto o que eu sempre quis...
— Nem mais um minuto espero!
E foram ambos ao juiz.
Disse, grave, o magistrado
Que, por julgar da questão,
Cada qual pelo seu lado
Desse o motivo da ação.
Vendo o fim dos seus tormentos
Disse o esposo: — É que, doutor,
São nossos temperamentos
Incompatíveis... — Que horror!
(Explode a cara metade),
Infame! bruto! sandeu!
Confessa ao juiz a verdade:
"Incompatível" é o teu!
Judas, tu que vendeste o Mestre e Amigo,
Por ter um pouco de oiro na algibeira,
A ti próprio te deste o vil castigo
No tribunal de um ramo de figueira.
Em nome da Justiça eu te bendigo,
Zurza-te, embora, a humanidade inteira!
Porque o teu crime se extinguiu contigo,
Alma forte, alma grande e justiceira!
Cristo perdoou no instante da agonia;
Entre os uivos brutais da turba-multa,
"Ó Pai, perdoa-lhes!" a morrer, dizia.
No entanto o mundo hostil com os seus rigores,
Te avilta, ó Judas, te degrada e insulta!
— Ó classe desunida a dos traidores...
II
Ninguém a alma te viu, mísero Judas,
Antes de te chamar torpe e maldito!
Ninguém n'alma de leu as ânsias mudas
Nem te ouviu o estertor do último grito.
Não te defendes; nem sequer te escudas
No castigo que deste ao teu delito.
E lançam sobre ti setas agudas
Os piedosos cristãos de todo rito!
O teu crime, afinal, melhor julgado,
Não merece clamor tão grande e tanto;
Não foi tão negro e capital pecado!
Porque não preferiste à corta o pranto?
Hoje, se não te houvesses enforcado,
Talvez que fosses, como Pedro, um santo!
III
Pobre Judas, coitado,
Morto há quase dois mil anos,
Hoje inda é tão insultado
Por modos tão desumanos!
Nem um só perdão, nem uma
Frase sequer de desculpa
Ao pobre diabo, que em suma,
Se puniu da própria culpa.
Quem ódio vê tão profundo,
Quem vê tamanho rancor
Pensará que ele no mundo
Foi o único traidor.
Porque tamanhos apodos
E escandalosos espantos
Se Juas nos tempos todos
Houve tantos, houve tantos,
Tantos que na Terra inteira,
E mais além, certamente,
Não haveria figueira
Que chegasse a tanta gente.
Já compararam teus dentes
De um teclado à miniatura.
Têm tanta ousada figura
Esses poetas decadentes!
Vi-os, ontem, com cuidado,
E, sem receio de engano,
Achei também que de um piano
Fazem lembrar o teclado.
Tão pretinhos, tão compridos,
Tão separados, que, em suma,
Ao vê-los penso ver uma
Escala de sustenidos.
O Polidoro é um poeta de água doce
Que eu conheço de vista;
Sei que ele fala de arte, qual fosse
Um consumado artista.
Mas é burro, coitado! é burro e tolo;
Nunca escreveu sequer
Uma linha em que houvesse suco ou miolo.
Ou conceito qualquer.
Certo amigo, encontrando-o um destes dias,
Disse-lhe: — Ó Polidoro,
Já não escreves mais como escrevias!
Teu silêncio deploro...
— Que queres! tornou ele, lisonjeado,
De vaidade a alma cheia;
Não tenho ultimamente trabalhado;
Tem-me faltado a veia...
— A Dona Inês vai-se casar; a morte
Do esposo não lhe deu grande pesar!
Dizia Dona Lídia ao seu consorte,
Vendo a viuvinha, Dona Inês, passar.
E ele comenta: — Não lhe gabo a sorte;
Quem enviuva e depois torna a casar
Jamais terá ventura que o conforte;
Casamento em reprise é sempre azar.
Sou, dentro da moral filosofia,
Pela perpetuidade da viuvez,
Como manda de Conte a sã teoria.
O segundo consórcio é insensatez!
Olha, se algum de nós morrer um dia,
Eu não me casarei segunda vez...
Os anos passam... como envelheço...
Diz-me, dengosa, Dona Jacinta;
Sou bem mais velha do que pareço:
Entrei nos trinta.
Perdão, respondo num galanteio,
Quinze anos juro que é a sua idade,
Do que as mulheres dizem não creio
Senão metade...
A Dona Estér queixava-se do esposo:
— Sujeito egoísta assim jamais eu vi!
Só pensa e cuida no seu próprio gozo
E nada faz senão tratar de si.
O marido que lida sem repouso
Para trazê-la sempre o derniê cri,
Ouve o ataque, de injusto, clamoroso,
Sem um protesto; e, irônico, sorri...
Mas, saltei eu, que tinha a queixa ouvido:
— Pois há dias o vi, aqui lhe juro,
A vida segurar... Replica a Estér:
— E que nome merece um tal marido
Que põe a própria vida no seguro
Em vez de segurar a da mulher?
Disse alguém, por maldade ou por intriga,
Que eu de Vossa Excelência mal dissera:
Que tinha amantes, que era "fácil", que era
Da virtude doméstica, inimiga.
Maldito seja o cérebro que gera
Infâmias tais que em cólera maldigo!
Se eu disse ta, que tenha por castigo
O beijo de uma sogra ou de uma fera!
Senhora! pondo a mão sobre a consciência,
Minha palavra, impávida, protesta
Contra essa intriga da maledicência!
Inda a amigos meus; qualquer atesta
Que eu acho e sempre achei Vossa Excelência
Feia demais para não ser honesta...
É velha a história da luta
Entre marido e mulher:
Travaram forte disputa
Por um motivo qualquer.
Ttrocaram palavras duras:
— Tu és isto — tu és aquilo!
Um rol de descomposturas
Na velha forma do estilo.
E, afinal, sem mais aquela,
O marido, um cabra mau,
Na sua cara-costela,
Assentou, de rijo, o pau.
A mulher gritou (pudera!)
E um vizinho prestimoso
Acudiu, como uma fera,
Pela mulher, contra o esposo.
— Sua esposa não maltrate!
Não seja bruto, senhor!
Numa mulher não se bate,
Diz ele, nem com uma flor!
— Não se bate?! Ora essa agora!
Exclama a esposa ofendida,
Faça o favor de ir-se embora
E ocupar-se de sua vida.
Não se faça intrometido!
Qu é que o senhor cá perdeu?
O Cazuza é meu marido
Bate naquilo que é seu!
O interventor oficioso
Tenta explicar-se, mas nisso,
A esposa e o seu caro esposo
Metem-lhe o pau que é serviço!
Moralidade
Brigam mulher e marido?
Fugí, se prudente sois
E senão 'stais prevenido
Para o pau meter nos dois.
Cessado o bate-boca, as pazes feitas,
Minha mulher as condições propunha:
— Seremos, de ora em diante, as mais perfeitas
Almas, ligadas como carne à unha.
Nada de ciúmes! nada de suspeitas!
— Juro, tomando a deus por testemunha!
E as condições de ambos nós dois aceitas,
De um beijo o selo eu nos seus lábios punha.
E, porque a paz, de fato, se conclua,
(Neste artigo ela, firme, se mantinha)
Cumpre que a teima entre nós dois se exclua.
Fique traãda de conduta a linha:
Quando haja acordo, é que a razão é tua,
Quando haja divergência é toda minha!
"Mulher! Causa de todos os tormentos
Que enchem o mundo de tristeza e pranto!"
Assim falou não sei que frade santo,
Enviando aos céus seus místicos lamentos.
"Quanto desgosto, quanto mágoa e quanto
Desespero espalhais aos quatro ventos!"
Dizia o frade e tinha uns argumentos
Fortes e sábios, de causar espanto.
"Vem da mulher o mal da humana lida,
Todas as grandes e pequenas dores
Que trazem dos mortais a alma abatida.
E como lhe não bastem tais horrores,
Ela nos faz apetecer a vida,
Apesar desses mesmos dissabores."
Mui sofrido já hei, senhora minha,
Porque me venhais dar mais forte pena;
Amor é planta mágica e daninha
Cujo perfume as almas envenena.
Eu liberto o meu ser outrora tinha;
Tão doce me era a vida e tão serena
Qual a do camponês que redra a vinha
Ou do árcade pastor que assopra a avena.
Hoje, mercê de vossa formosura,
A vida trago-a cheia de tormento
Que a tanto já não sei como resista.
Não queirais aumentar minha amargura
Exigindo-me o pronto pagamento
Da vossa enorme conta de modista.
Nos ombros atada a fita.
Fina camisa de renda
Vejo através da fazenda
Da blusa, em suá, cor de vinho;
E o meu olhar, quando a fita,
Não sei ao que mais atenda
Se ao que a blusa me desvenda,
Se ao que apenas adivinho.
Não percebo utilidade
No véu que lhe veda o rosto;
Só dá prova de mau gosto
Quem tanto e tanto se vista...
Acho uma futilidade
Ter um véu por cima posto
Do que deve andar exposto
Dando gosto à humana vista.
A saia erguendo ao de leve,
Mostra um pé... feito na china
Calçado numa botina
Que nem deixa ver-se a meia;
Tal moda que o diabo a leve!
Pois quem não tem perna fina
Deve mostrá-la, menina,
Se não toda, ao menos meia.
Em luvas brancas calçadas
Oculta as mãos cor de rosa;
De modesta ou de vaidosa
Que infeliz ideia é a sua...
E anda por estas calçadas
Tanta gente mal cheirosa
De mão despida e calosa
Que a nossa aperta... e que sua.
Por ser firme, por ser tesa
Sua silhueta, resulta
Que o olhar dos homens a insulta
Com fria mordacidade.
Mas tem ela, por certeza,
Que aquilo que mais se oculta,
É o que aos olhos mais avulta
Da parte mor da cidade.
Onde é que, ó bela, encontraste
No iludir, tanta perícia?
De outra igual cato notícia...
debalde a cato e recato!
Pões no teu ser, em contraste,
A modéstia e a impudicicia...
Nos olhos toda a malícia
No trajar todo o recato!
É debalde que o cérebro torturo
E o versátil espírito concentro;
E se da vida pelos meandros entro,
É debalde que o olhar e o ouvido apuro.
Quem adivinha o que é que se acha dentro
D'alma humana — covil profundo e escuro?
Quem decifra esta esfinge que é o Futuro?
Do círculo da Dor quem sabe o centro?
Vem, logo após a Dúvida, — o Intangível!
De um planeta que o espaço azul percorre
Quem nos diz o destino que terá?
Dos montes da ambição quem marca o nível?
Quem sabe o ideal que vive, o ideal que morre?
Quem nos diz amanhã que bicho dá?
Prometeste; e à promessa que fizeste
dei crédito demais e hoje, ai de mim!
Que me vejo iludido e já por fim,
Não creio mais em ti, visão celeste!
Traduza eu "não" quando disseres "sim";
Quando apontares leste, eu leia oeste;
Que é a tua jura que um sorriso veste,
Doce, mas frágil como um alfenim.
Teus lábios, cofre de caraminholas,
Mentem mais que os artigos de um jornal,
Que caçadores, beatas e carolas;
São as tuas promessas tal e tal
De um candidato as tretas e parolas
Num pomposo programa eleitoral...
É sempre a velha história do palhaço:
Alegre, a gargalhar, sem que no rosto
Se lhe note qualquer vestígio ou traço
Do que a alma oculta de íntimo desgosto.
Eu, meus amigos, muitas vezes faço,
As contrações de um riso a contragosto...
— Riso protocolar, feito a compasso,
Segundo um metro previamente imposto. —
Tristezas, guardo-as eu, avaramente,
Que tem o mundo a ver com a dor alheia
Se lhe não dá consolo e simpatia?
E eu rio; faz-me bem que toda gente
Me inveje, em vez de lamentar-me, e creia
Na minha eterna, estrídula alegria!
No dia Um Deus diz, formando a terra:
"Fiat Lux!" E a luz se fez; e cria
O que a fulgir pelos espaços erra,
— Sóis e planetas, — no segundo dia.
Ao terceiro nos mares a água encerra,
Ao quarto surgem na policronia
De flores aos milhões, por vale e serra,
Plantas, árvores, musgos, à porfia.
Aves e peixes faz no dia quinto
E no sexto animais de instinto bravo
E o homem forma, de barro e fero instinto.
No sétimo repousa, enfim. Contudo
Que bela ideia se Jeová, no oitavo,
Melhor pensando, esbandalhasse tudo
No Éden calmo, florido, recendente
A nardo, a rosa, a cravo, a cinamomo,
Viviam Eva e Adão, felizes como
Quem do pecado as tentações não sente.
Mas um dia (a Escritura à letra tomo)
Satanás, em figura de serpente,
A Eva dá a maçã e ela, imprudente,
Aceita-a e trinca o venenoso pomo.
Trinca e ao marido, amável, oferece;
Este, porém, de esperto, diz: — querida
Come-o tu, jantei bem, não me apetece!
Eva insiste — Não quero, que estou farto...
E assim foi que entre os males desta vida,
O homem poude escapar-se à dor do parto.
Tornam-se os homens patifões de marca;
Jeová, severo manda-chuva antigo,
Manda a chuva que à terra cai e encharca
E a inunda toda, aos homens por castigo
Chama, porém, Noé, velho patriarca
Que sempre fora da virtude amigo,
E diz-lhe que de pau construa uma arca
E nela busque com a família abrigo.
Findo o dilúvio, diz-lhe Deus baixinho:
— Colhe o fruto da vida, espreme-o e o extrato
Deixa-o a fermentar e bebe-o: é o vinho.
Graças ao suco generoso da uva,
Foi o dilúvio "universal", de fato,
Pois nem Noé poude escapar-se à chuva!
Comprara ao mano a primogenitura
Jacó, sujeito fino e de olho aberto;
Um prato de lentilhas, da escritura
Consta que foi da compra o ajuste certo.
Porque o mano Esaú fosse coberto
De um pelo de notável espessura,
Jacó, na pele de uma ovelha, esperto,
Mete-se e o velho e cego pai procura.
Isaque, de iludido, dá-lhe a benção:
— Eu, meu herdeiro aqui te reconheço
Rei da Tribo, cabeça dos pastores!
Que o Esaú foi no embrulho todos pensam;
Qual! O prato era de ouro, de alto preço,
E o velho Isaque só deixou... credores.
"Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel". gentil criatura,
Porém, servindo ao pai, Jacó queria
A filha desposar, conta a Escritura.
Quando, entretanto, foi chegado o dia
De no contrato apor a assinatura,
Mestre Labão quis impingir-lhe a Lia,
Que era feia, zarolha e já madura.
Porém Jacó, que percebera o logro,
Gritou ao Pai Labão: — não vou no embrulho!
E ao demônio mandou a Lia e o sogro.
E ante os pastores escandalizados,
Jacó raptou Raquel e em doce arrulho
Foram viver os dois... "como casados".
Parte do Egito o povo israelita;
Porque das provações o recompense,
Moisés, levando-os à região bendita
De Canaã, montes e vales vence.
E chega ao mar... (mar seco que pertence
À hidrografia tórrida, esquisita,
Que inclui os rios da região cearense
Que nos mapas figuram... só por fita).
Moisés cansado vinha da jornada,
Pois marchara, minuto por minuto,
De pés descalços, pela adusta estrada.
Mas, de plantas sangrando, resoluto,
Com a sua gente trôpega e cansa,
Passou, a pé vermelho, o Mar enxuto.
Eis que de Deus o povo se declara
Em revolta; pragueja, em fúria, a plebe:
— Água, Moisés! o sol requeima a seara!
Da nossa sede o céu não se apercebe!
Vendo Moisés a coisa feia, a vara
Vibra, raivoso, contra o monte Oré;
E eis que corre copiosa a fonte clara!
Água a fartar! e toda a gente bebe.
Bons tempos esses! Desmoralizou-se
Hoje em dia, o prestígio milagreiro
Que fez a vida deleitosa e doce!
Quando pela manhã busco o banheiro,
Penso tanto em Moisés... ah! se ele fosse
Manda-chuva... no Rio de Janeiro!
De Putifar a esposa (o inteiro Egito
Murmurava) não passa por honesta;
Se ele algo sabe nada manifesta,
Para evitar, talvez, algum conflito.
Do Boi Ápis durante o santo rito
Mandame viu José; depois da festa
Escreveu-lhe; ele foi... (pontinhos nesta
Quadra pondo o escabroso ponto evito).
Batem à porta. — É Putifar! diz ela;
Foge, meu bem, que ele de nós suspeita!
E eis que José, precipite, se escape.
E logo no outro dia escreve à bela:
"Vou bem; saudades; beijos mil aceita
E pelo portador manda-me a capa..."
A terra de Sodoma o vício avassalava:
E soberba, avareza, inveja, ira, luxúria,
Gula e preguiça, — as sete irmãs do diabo, em fúria,
Tinham toda a cidade aos seus pés, como escrava.
Jeová que às suas leis não consentia injúria
E nestes tempos inda os crimes castigava,
Manda que sobre os maus o céu vomite lava;
E ei-la cobre Sodoma! e requeima-a e combure-a.
A família de Ló, pesardo feio incesto,
Foge à hecatombe. A esposa o rosto volta e espia
Curiosa, a terra a arder, de raiva o olhar congesto.
E Deus mudou-a em sal. Deus, ó céus! parodia
Um colega do Olimpo, um deus pagão modesto,
E entra, sem mais nem mais, pela Mitologia!...
Depois de receber a bolsa cheia,
Judas, cuja alma, um negro diabo atiça,
De mulheres alegres se rodeia
E na orgia uns dinheiros desperdiça.
Depois, porque na própria sorte creia,
Tenta-o do jogo a mórbida cobiça;
Joga e perde; e já vendo a coisa feia
Ei-lo com as próprias mãos se faz justiça.
— Sem honra e sem fortuna é que não vivo!
Próximo sinto da miséria o cheiro,
Enorme é já na praça o meu passico!
E matou-se. Pergunto ao mundo inteiro:
Desse suicídio célebre o motivo
Foi o remorso, ou a falta de dinheiro?
Quando, no Olimpo, Vênus Afrodita
Surge, irradiando a lúbrica beleza,
Dos deuses a legião que os Céus habita
Pasma, cheia de inveja e de surpresa!
Filha do Mar, glória da Natureza,
Ela que o amor dos imortais excita,
De Marte ao coração se entrega preza,
Para do esposo mísera desdita.
Triste, Vulcano fala-lhe destarte:
— Vênus, não achas meu amor sincero
Tão Vulcano e intenso que te farte?
E ela responde (assim relata Homero)
— Ai! Vulcano, meu bem, quisera amar-te
Porém não posso, porque a Marte quero...
Dissera Vênus a Cupido: — Filho
Parte a espalhar por todos os lugares
o áureo fogo do amor, a cujo brilho
Refuljam templos, gineceus e lares.
Seja de luz o teu glorioso trilho;
E que por onde, trêfego, passares,
deixes de amor o ignífero rastilho
Que faça arderem corações aos pares.
Parte o menino; mas a mãe, prudente,
O outro filho, Himeneu, atrás lhe envia
E logo, empós, Mercúrio diligente.
E assim não fora, ó míseras criaturas
Quem no mundo remédio nos daria
Dos incêndios do amor às queimaduras?
Eis o filho de Júpiter e Maia,
Dos amorosos deuses mensageiro,
Cuja eloquência, se no Olimpo a ensaia,
Prende, encanta e convence o Olimpo inteiro.
Vênus nos braços seus de amor desmaia;
Mas zomba Hermes do amor e, aventureiro,
Vai do comércio dilatando a raia,
De pétaso à cabeça e pé ligeiro.
Os deuses vão-se por fatal augúrio!
Ninguém mais vê no velho pai de Pã
O amável protetor do amor espúrio.
E, ora, quem vai a Citera malsã,
Despreza os bons favores de Mercúrio
E pede auxílio ao novo Salvarsan.
Das Índias regressando, entre álacres clamores
De Ninfas e Egipans, à luz áurea dos fachos,
Baco o Olimpo penetra, ao rugar dos tambores,
Com as Mênades joviais a cavalgarem machos.
Traça o purpúreo manto e, enfeitado de flores,
Empunha à destra o tirso; ornam-lhe a fronte cachos
De uvas de Chipre. Evoé! ó pai dos bebedores,
Brômius, bulhento deus do vinho e dos borrachos!
Jovens Sátiros nus, com lúbricos acenos,
Cantam, na bacanal com que o Olimpo o recebe,
As glórias de Liseu, de Júpiter, de Vênus!
Mas quando Hebe aparece e serve os vinhos, de Hebe
Liseu recusa a taça! Os médicos helenos
Acham-no mal dos rins. Dionísio já não bebe!
Da cabeça de Zeus, armada em guerra,
Minerva, mãe d'alta sabedoria,
Saiu de égide em punho, um belo dia,
A ciência a propagar por vale e serra!
Sábia lição a da mitologia:
Palas que a ciência vai levar à Terra,
De precavida, o douto crânio encerra
No elmo forte que os golpes desafia.
As disputas científicas modernas
Mostram-nos, gregos, a sapiência vossa
Em tais criações simbólicas, eternas:
Quem sábio for, que se arme o quanto possa,
Pois de arte e ciência as discussões supremas
Dão sempre em rolo, em pau, em tunda grossa!
— "Que tem Juno divina que assim chora?
Talvez ciúmes de Júpiter? São ciúmes
Do velho deus dos deuses que não cora
De ter na terra amantes aos cardumes?
Paciência, ó minha olímpica senhora!
Nada de brigas, queixas e azedumes;
Finja que nada vê, finja que ignora
Do seu bilontra esposo os maus costumes!"
Razão Mercúrio tem, que tal dizia
À pobre Juno, cuja face austera
Nublada estava de melancolia.
Fidelidade marital! Quimera,
Que entre as coisas variáveis não varia
E é na era de hoje o que era na era de Hera...
Nem mais um gole, ó bêbedo Sileno,
Que jamais de beber te satisfazes!
Não sentes que do alcoólico veneno
Até os cornos já te sobem gazes?
Não mais o copo de ouro fulvo, pleno
De Cós ou Chipre, à mão, gloriosos trazes;
Tu, vergonha dos deuses, deus heleno,
Com as bebidas mais reles te comprazes!
Outrora, em fúria, mordicando a poma
De uma bacante, o peito ardente, em frágua,
Brilhavas nos festins de Grécia e Roma.
Hoje, Silene, vejo-te, com mágoa,
Bebendo em tascas, parati com goma,
Reduzido a padroeiro de paus d'água!
Filho de Apolo, tu que te aventuras
A conduzir-lhe o carro aurifulgente,
Tens as mãos ao governo mal seguras
E o guias mal e desastradamente.
Sobes demais e deixas às escuras
A terra; ou descer tanto que a corrente
Secas dos rios, queimas as verduras,
Tornas o campo num braseiro ardente,
Exclama Jove, enquanto treme o solo:
— O inferno dou-te por castigo extremo.
Tomo-te a carta de "chofér" de Apolo!
Mas Faetonte, a sorrir, torna: — Não temo!
Com o meu carro atropelo, mato, esfolo,
Porque tenho "hábeas-córpus" do Supremo.
Essa amizade amorosa
de que te falei, Maria,
Eu não a defino em prosa
Tanto ela tem de poesia.
jamais percebe o profano
O sabor discreto e fino
De um tal sentimento humano
De um gosto mais que divino.
É um desejar que não pede;
É um — quero — e... não quero mais —
Carinho que se não mede
Pelos carinhos banais.
Indefinido desejo,
Delicado e timorato,
Que não vai além de um beijo
Dado com certo recato.
Um beijo sem outro intuito,
À flor dos lábios somente,
Que pode aspirar a muito
Mas com pouco está contente.
Um querer sem desavença
Que apanha um lenço que cai;
Que ao entrar pede licença
E beija a mão quando sai.
Todo carícia e brandura,
Sem resquícios de azedume;
Tem do amor toda a doçura
Sem ter o amargor do ciúme.
Um bem querer todo feito
de suave e ingênua poesia,
Que não conhece o despeito,
Nem os risos da ironia.
Que é mais que amor não se afirme,
Que amor é amor, afinal;
Mas é mais doce, é mais firme
E é muito menos brutal.
Não tem do amor a violência,
A demasia, a aspereza;
É a flor da benevolência
A exalar delicadeza.
Dir-se-ia que Amor brincava
Com as suas musas diletas
E uma, a rir, na sua aljava
Trocou por flores as setas.
Querer que se não desgosta
Porque "ela" sorriu a alguém;
Ao contrário, a gente gosta
Que os outros lhe queiram bem.
É um verso em que falta rima
Mas sobra encanto na frase;
É amor — que apenas estima,
Amizade — que ama, quase.
Leve perfume de um lenço,
Soprar de brisa na rama;
É fogo de brilho intenso,
Mas brilha sem fazer chama.
Afeição que recomeça
Mais forte a cada segundo:
Tão pura que se confessa
À vista de todo mundo.
Que não tem gestos, nem frases,
Nem do amor as explosões;
— Ele e ela são dois rapazes...
Com as devidas restrições.
E, fruto em flor que, em verdade,
Jamais passará da flor;
É muito mais que amizade,
E, pouco menos que amor.
Em vez de ervada seta, a cujo efeito
Vênus os braços aos heróis abria,
É de fuzil e grossa artilharia
Que vai Cupido ao belicoso pleito.
E foi assim, armado assim, que um dia,
Lançando, em fúria, o incêndio no meu peito,
Ele invadiu-me o pobre ser, de jeito
Que uma tropa do Kaiser parecia!
Sitiou-me o coração heroíco e forte;
E, como os Belgas nos mortais embates,
Das armas rindo à rude e ingrata sorte,
Tombo, afinal, depois de cem combates!
Mas derrota é vitória, e é vida a morte,
Sento tu que me venças e me mates!
Se no meu coração alguma vez entrares,
Pisa bem devagar e o teu passo acompanha
Do respeito e da unção com que em terras de Espanha
Transporias umbrais de antigos alcazares.
Ele é um templo cristão, de tristeza tamanha
Que de um mosteiro evoca as ruínas seculares;
E os coruchéus, o teto, os nichos, os altares
Estão cheios de poeira e de teias de aranha.
Não ouvirás, lá dentro, em murmúrios de prece,
Confissões de pecado ou o secreto rumor
De um beijo dado a furto e que nunca se esquece.
Tem, contudo, cautela, ao entrares, viajor!
Se, lá dentro, de amor nem vestígio aparece,
Vivem no ar, aos milhões, os micróbios do amor!
THE WOMAN, THE PLACE AND THE HOUR
Luz escassa de gás. — A situação
O momento e a mulher — Quem for capaz
Vendo-se assim, com todos três à mão,
Resista ao Mundo, à Carne e à Satanás!
Não resisti; preguei-lhe um beijo. E vão
Dizer agora que isto não se faz;
E eu respondo abençoando a solidão
E a "Companhia Anônima do Gás".
Ela irritou-se e um gesto brusco fez.
Eu percebi que, procedendo assim,
Dera mostra brutal de impolidez.
Supliquei-lhe perdão; disse-me: — sim.
Outro beijo lhe dei, mais dois, mais três...
E ah! se o soneto não chegasse ao fim...
Quando uma vez, por gracejo,
Lhe pedi, sorrindo, um beijo,
Ela gritou: — Que insolência!
Vendo-a rubra, vendo-a brava,
Vexado, eu me desculpava:
— Perdoe-me Vossa Excelência...
Perdoou. Foi isso há dois meses;
E eu repeti várias vezes
O pecado tentador.
— Que audácia! que atrevimento!
Dizia; e nesse momento,
Dava-me um seco — o senhor.
Fiz-me de surdo e beijei-a;
Ação atrevida e feia,
Mas gostosa como quê...
E eu: — Perdão, minha senhora...
E ela: — oméssa! vá-se embora!
Mas que audácia a de você!
Depois... tantos beijos houve...
Beijei-a onde bem me aprouve,
No rosto, no colo nu...
E ao beijá-la nem notava
Que eu de Você a chamava
E ela chamava-me: — Tu...
Vejam só que fazem beijos!
A mudanças dão ensejos
Nas regras de polidez.
E ela hoje tem, na verdade,
Muito mais de intimidade,
Que eu tinha de in-timidez...
Se continua o exercício
De beijos, que benefício
Isso a sintaxe trará!
Em concordância perfeita
É tu à esquerda e à direita,
É tu pra lá, tu pra cá...
Fascina-me este olhar que às vezes toma
Expressões de mistério e de magia:
E este puro perfil e esta sombria
Noite profunda desta negra coma.
E este colo de mármore... (dir-se-ia
De uma estátua pagã de Grécia ou Roma)
E todo o ser perturba-me este aroma
Que o seu corpo trescalar e me enebria.
E que graça no gesto! e que meiguice
Na voz! Ouvindo-a, é como se um faceto
Vivo trinar de pássaros se ouvisse!
Eis um ligeiro, um pálido esboceto
de uma estranha mulher que, se existisse,
Me haveria inspirado este soneto.
Estaria ela a sós? E eu, na incerteza,
Pus-me a espreitar de fora; e olhando-a, via
Que ela, de costas e sentada à mesa,
Pensava em mim, ou que os meus versos lia.
Decidi-me a fazer-lhe uma surpresa
E, num gesto de insólita ousadia,
Entrar. E entrei... (Confesso, com franqueza,
Que todo eu, frio e pálido, tremia).
Entrei pé ante pé; com tal cautela
Que nem de mim era o meu passo ouvido;
E, ah! de o contar meu sangue se congela.
Vi-a que estava, o olhar embevecido,
Não meus versos a ler, tão cheios dela,
Mas a cerzir as meias do marido!
"Eu — povo, tu — nobre dama —
Tu — ricaça, eu — farroupilha
Para esse amor que me inflama
Teu orgulho é uma Bastilha.
Disse-lhe eu. Ela sorria
Como a rainha à canalha.
E a separar-nos havia
Intransponível muralha.
Brecha, fenda, racha, — nela
Meu olhar não descobriu;
Era mais forte que aquela
Que Desmulã demoliu.
Mas à má sorte do jogo
Ou do amor ninguém se humilha;
E eu resolvi, demagogo
Dar com a basta na Bastilha.
Fiz-lhe versos.. velho tema
De amor — a eterna comédia -
E, afinal, compus-lhe um poema
Que era a minha Enciclopédia.
Nos estilos mais diversos
Os mais variados descantes
Cantei. Descantei-a em versos
De rimas mirabolantes.
Disse-lhe o quanto sentia:
Cantei0lhe os lábios formosos
E os seus olhos de magia,
De brilhos Mará... vilhosos.
Eu tinha a pobre cachola
Aos mil trambalhões, porque ela
Jogava com a minha "bola"
Como no jogo da péla.
Meu amor incandescente
Ela a aceitar não se humilha.
(Neste mundo toda a gente
Encontra a sua bastilha...)
Mas alguém disse-me um dia:
— Não gastes rimas em vão!
Se ela não vai com poesia
Experimenta o atracão.
Tomei o conselho amigo
Dei o atracão na muralha.
E, sem temor do perigo,
Travei a cruenta batalha.
E, final, (disto me ufano),
Na brecha da fortaleza
Entôa o amor soberano
O canto da Marselhesa!
O fogo de um justo orgulho
Agora em meus olhos brilha!
Viva o catorze de Julho
Viva a queda da Bastilha!
O amor, que intruso sujeito!
Ora, já viram vocês?
Um dia entrou no meu peito
E lá fez casa de vez.
Amo até o mais alto nível
E pouco me importa a quem:
É uma vontade invencível
A minha, de amar alguém.
Ninguém me exija um motivo
Deste fato singular:
Que eu só desejo estar vivo
Para ter direito a amar.
Dá o amor desgosto à gente?
Discordo de quem tal diz:
Quando eu amo é, justamente
Que me sinto mais feliz.
Que do amor ninguém desfaça
Nem diga intangível ser;
É só fumaça e a fumaça
Vem antes do fogo arder.
Com sorriso zombador
Eu desfiz dele e por fim
Hoje é o demônio do amor
Que faz e desfaz em mim.
Mariquinhas, que vive num convento,
Passa as manhãs rezando na capela.
As freiras pasmam do recolhimento
Da piedosa expressão dos olhos dela.
O seu viver tristíssimo lamento:
Mariquinhas é boa, é moça, é bela;
Mas quando ouve falar em casamento
Seu manso coração ruge, em procela.
Foi noiva; — a sua história eu soube um dia -
Oposição dos pais, tudo acabado.
E a porta de um convento que se abria.
Vive agorados sonhos do passado,
De olhos fitos na imagem de Maria
E o pensamento na do namorado.
É, de fato, virtude o ser constante
Como tu me tens sido e eu bem mereço.
Tem doce coração, sincero e amante,
É jóia rara e do mais alto preço.
"Teu meu amor firmeza de diamante,
Enquanto é o teu tão frágil como gesso."
Dizes; e eu noto que há no teu semblante
Ares de mofa que te não conheço.
Responda-te a minh'alma que não mente:
Se, pelo teu, meu coração aferes,
Deste o maior valor verás patente.
Basta que, com justiça, consideres
Que, enquanto és tu constante a mim somente,
Constante eu sou a cinco ou seis mulheres.
Vejo-a. Todo o meu ser palpita em festa.
Seja embora de luto o seu vestido
E negro o crepe do chorão comprido
Com que a sua viuvez se manifeste.
E ela me vê como ao desconhecido
Que passa e a quem pouca atenção se presta;
Com o ar discreto de uma viúva honesta
Que vive das saudades do marido.
Mas, satisfeito, o meu egoísmo goza
A dor do esposo ao se encontrar metido
Do céu dos justos na mansão radiosa.
Ah! não teria o mísero morrido,
Se imaginasse como ela é formosa,
Assim, de negro e de chorão comprido.
Ao ver-lhe a linda face,
Aproximei-me e disse-lhe em surdina:
Que bonita menina!
Tão tenra e fresca! é de um frescor de alface!
Ela, ou fosse por medo
da velha, ou porque a alguém o amor consagre,
Deu-me um muxoxo azedo
Como se fosse feito de vinagre.
A mãe, de olhos hostis,
Que olhava a filha como um cão de guarda,
Ficou, qual se a mostarda
Lhe chegasse, de súbito, ao nariz.
E gritou-me: — Respeite
As famílias que passam, seu bolina!
E eu vi que com a menina
Não podia fazer o meu "azeite"...
E, de alma consternada,
Fiquei a maldizer a sorte minha;
E o necessário eu tinha;
Para encher-me de amor... ou de salada.
Casadinhos de há pouco: um mês, se tanto...
Do trabalho ao voltar, nota o marido
Que a esposa os olhos tem rasos de pranto
E indaga, entre curioso e enternecido:
— Que tens, amor? teu ar causa-me espanto!
E ela, a sorrir: nada de mais querido!
Continuam molhados, entretanto,
Seus belos olhos, berços de Cupido.
Uma lembrança triste? um beijo a cura...
E ele beija-lhe a boca, a fronte, o mento,
Os olhos onde o pranto inda perdura.
— Que tens? confessa... Um simples resfriamento
Diz ela, a rir, pedindo com ternura:
— Mas, meu bem, continua o tratamento...
Não venhas: sou casado; a minha esposa
É um Otelo de saias.
Em mim pretendes "avançar"? Não caias
Em semelhante cousa.
Disseste que por mim tens um "rabicho"
Que é tua perdição.
Pois se a minha mulher sabe é que, então,
De uma vez "vira bicho".
Além de tudo, digo-te em segredo,
Eu sou fiel como que...
Não por gosto, já vês, mas só porque
Da esposa tenho medo.
Eu compromissos — extra — não nos tomo;
Como os cumprir depois,
Se o meu "arame" dá só para dois
E dá... sabe Deus como?
Adeus, menina; cumpre que eu te evite;
Fujo das tentações...
Minha mulher, as acumulações
Julgas tu que ela admite?
De mais a mais, se faço o sacrifício,
Sou obrigado a optar:
Tu no teu coração dás-me um lugar,
Mas perco um... vitalício.
Vai-te, senão a minha vida estragas!
Por este mundo, ó flor,
Há tantos rapagões, doidos de amor,
À procura de vaga!...
Desculpa-me: bem vês, tenho motivo
De não acumular;
Que não há como o lar, ah! como o lar!
Afetivo e... efetivo.
Sabes que existe alguém que te adora em segredo?
Que ao te escutar a voz, a existência bendiz?
Que anseia por te ver e, se te vê, tem medo
E quer dizer que te ama e treme e não t'o diz?
O amor em tua idade é o último brinquedo;
Boneca que antecede o primeiro petiz...
É o sonho de um anel que te há de pôr ao dedo
O formoso imbecil que te fará feliz.
Ele em breve há de vir, vaidoso e satisfeito,
Colher o suave mel do teu cálice, ó flor,
Levar-te pelo altar, em caminho do leito.
E eu, ao ver-vos passar, calarei meu rancor
E, sem gesto de inveja ou riso de despeito,
Mandarei a uma outra estes versos de amor.
Passaste; e, mal te vi, senti no peito
Bater descompassado o coração;
E, por te ver, ferido e satisfeito,
Vi que fora esquecer-te esforço em vão.
Palpitava-me o pobre de tal jeito,
Com tal veemência de palpitação
Que temi que rompesse o âmbito estreito
Que lhe serve de abrigo e de prisão.
Que eu te não veja mais, por entre a turba
Da Avenida, ou te veja a cada passo,
Para sossego do meu coração.
Que a inconstância em te ver é que perturba
Do cardíaco músculo o compasso
Destruindo-lhe toda a afinação.
Esta estranha mulher que causa medo
Se nos olha, é, no entanto, irresistível!
Que profundo psicólogo o segredo
Desvendará dessa atração terrível?
Dizem que quem a viu, mais tarde ou cedo,
Dos seus caprichos há de pôr-se ao nível.
Magia, filtro, talismã, bruxedo,
Algo ela tem no olhar, incompreensível!
Ao vê-la, eu que amo o encanto da beleza,
Tremi de horror do seu perfil satânico,
Mas logo a amei, com pasmo e com surpresa!
Lutei debalde, entre a paixão e o pânico
Mas nada poude a minha "fortaleza"
Contra o canhão "quarenta e dois" germânico!...
Certo, se não passar, não tenho o ensejo
De te ver; talvez tenha, se passar;
E como é ver-te o meu maior desejo
Passo, em passo manhoso e devagar.
Arrisco um torto olhar de caranguejo
Buscando a carangueja, à beira-mar...
Olho e só vejo enfim que te não vejo
À janela que, ó santa, é o teu altar.
Sei, no entanto, que aí vens a cada passo;
E eis que em milhões de conjeturas entro
Para a causa encontrar do meu fracasso.
Neste dilema a dúvida concentro:
És tu que vais lá dentro quando eu passo?
Ou eu que passo quando vais lá dentro?
Leque, instrumento o mais precioso
Nas mãos gentis de uma mulher;
Ora agitado, ora em repouso,
O leque diz o que ela quer.
Muito mais fácil que o esperanto,
A idioma tal leva vantagem;
O leque tem maior encanto
E é mais conciso na linguagem.
Abrir o leque e após fechá-lo,
Duas, três vezes, a seguir,
Traduz-se assim: — não posso amá-lo,
Faça o favor de desistir!
Quando, agitando-o, febrilmente,
A dona faz que tem calor,
Quer declarar: — meu peito ardente
Ferve por ti de rubro de amor!
Se sobre a fronte o leque é posto
Aberto em pala de boné,
A jovem diz: — se estás disposto
Dá ao papai o alamiré...
Bater na mão de um certo jeito,
— Espero-te hoje no jardim...
Pousá-lo aberto sobre o peito:
— Não vás que o velho faz chinfrim!
Cheirar o leque: — o amor perfume
Por todo o sempre a nossa vida!
Mordê-lo, assim: — maldito ciúme
N'alma me fez mortal ferida!
Levá-lo à face: — eu não me iludo;
Todos iguais vós homens sois...
Fingir que o quebra: agora tudo
Estás liquidado entre nós dois!
Abrir o leque sobre os olhos
E entre as varetas espreitar
Vale dizer: — encontro escolhos
Do nosso amor, no crespo mar!
Tudo, afinal, com o leque exprime
A arte sutil de uma mulher;
Desprezo atroz, amor sublime
E entre eles dois o que couber...
Mas quando o leque é de eloquência
Concisa, ideal, perfeita e rara
É dando o troco a uma insolência,
Do tipo audaz partindo a cara.
Quer de papel seja ou de seda,
De leve pluma ou fina gaze,
Que a algum de vós jamais suceda
De um leque ouvir tão dura frase!
Eis afinal o que desejo
Sem que por falsa acaso peque,
Aproveitando o belo ensejo
De voz dizer — adeus! — com o leque...
Lulu e Lili são manos;
Eles dois valem por três!
Lili vai fazer quatro anos
E Lulu cinco já fez.
O pai é um belo soldado,
Coronel de artilharia;
Forte, elegante — montado,
Que garbo e que galhardia!
E Lulu gosta de vê-lo,
Naquele cavalo enorme,
— Chapéu em bicos, de pelo
No seu primeiro uniforme.
As botas envernizadas,
Reluzem, negras, ao sol;
E há nas dragonas douradas
Em cada qual um farol.
A mãe é moça e bonita,
Veste bem, pisa com graça
E à tarde pela Avenida,
Chama a atenção quando passa.
Usa os penteados da moda,
— Em casa tem dez espelhos —
Tem saias de muita roda
Um dedo abaixo dos joelhos.
E umas botinas modernas,
Das que estão na moda agora,
Que cobrem de couro as pernas
Que as saias deixam de fora.
Lulu e Lili, filhinhos
Desse elegante casal,
Há dias pensam, doidinhos,
Nos brinquedos do Natal!
O Luli, que é dos mais finos,
Bem sabe que o Pai Noel
No Natal, aos bons meninos,
Traz brinquedos a granel;
Espingardas, soldadinhos,
Caixas, cornetas e pratos
Põe, com os maiores carinhos,
Dos meninos nos sapatos.
Lulu pensou: vou ter menos
Brinquedos do que eu queria!
Uns sapatos tão pequenos...
E com o dedinho os media.
Pensou... pensou... De repente
Bateu na testa: afinal!
E fico muito contente
Com a sua ideia genial.
— Agora sim! É brinquedo
De nunca mais se acabar!
Amanhã de manhã cedo
Como a Lili vai ficar!
E, sorrindo de alegria,
Ao quarto dos fundos vai
E as botas de montaria
Traz, muito ancho, do Papai.
E pensa, fazendo a troca:
— Engano o Papá Noel!
E sob a cama coloca
As botas do Coronel.
Mas a Lili, muito esperta,
Nada perdera da cena;
Pela porta semiaberta
Olhava o mano, a pequena.
E diz-lhe baixo: — Lulu
Eu vi o que tu fazeu;
Mas óie, não pense que tu
Ganha mais coisa do que eu!
E zás! Lili, que é de fama,
Calada, com pés de lã,
Coloca em baixo da cama
As bolinas da mamã...
Mamã, se guardas segredos
O que sei digo-te aqui:
Quem recolheu mais brinquedos
Não foi Lulu, foi Lili!
Laurinda é muito vaidosa;
Com seus dez anos apenas
Tem-se em conta de formosa
E ri das outras pequenas.
Mamãe repreende-a; procura
Corrigi-la e diz: — filhinha,
Cuida um pouco na costura,
Pensa na agulha e na linha...
Somos pobres; a vaidade,
Coisa feia em gente rica,
A quem não o é, na verdade,
Muito mais feias inda fica.
Pelo Natal a Laurinda
Pedira ao Papai Noel
Uma joia rica e linda:
Uma pulseira ou um anel.
A mãe ouvira o pedido
Feito ao meio de uma prece
E relatou-o ao marido:
— Que à filha o mimo ele desse...
O Papai, que então sorria,
Prometeu que sim; de fato,
Ele próprio, no outro dia,
De Laurinda no sapato
Foi pôr o belo presente
Sem deixar que a esposa o visse,
Por muito que esta, insistente,
P'ra ver a joia pedisse.
E dizia, carrancudo,
— Ora, não sejas curiosa!
É um estojo de veludo,
De veludo cor de rosa!
De manhã corre Laurinda
A examinar o sapato:
E — ó céus — que alegria infinda!
Fez Laurinda um espalhafato!
Sorriu, pulou de contente:
Meu Deus! que seria aquilo?
E abraçava-se ao presente,
Sem ter coragem de abri-lo.
O Papai, que estava perto,
Lhe diz, a sorrir: — Filhinha
Antes de o teres aberto,
O seu conteúdo adivinha.
— Não sei... diz Laurinda (e mira,
Remira o estojo fechado)
Porém, no íntimo, suspira
Pelo presente sonhado.
— Pois eu tenho a minha ideia...
Diz o Papai, no seu bojo
A mais valiosa teteia
Guarda este bonito estojo.
É de ouro... ou prata... (Laurinda
Escuta, sorrindo a medo)
E até te garanto ainda
Que é coisa de usar no dedo...
— Ora, já sei; é o presente
Que eu perdi ao Pai Noel!
E exclama, a rir de contente:
— É o anel! é o "meu" anel!
Mas torna-lhe o Pai: — Filhinha,
Não é o anel, não é tal!
E, abrindo a rósea caixinha,
Mostra-lhe o mimo: — um dedal.
Um lindo presente; inveje-o
Quem ser ditosa procura;
Laurinda hoje é no Colégio
A primeira na costura.
Da vida não teme o mal,
As horas duras e cruéis;
Graças àquele dedal
Há de ter muitos anéis!...
Este Brasil é a terra da Importância
Em que "importâncias" pouca gente tem:
Mas que surgem, conforme a circunstância
Mesmo entre os "prontos" entre os sem vintém.
Qualquer cortado e adido funcionário
Assume uns ares de arrogância e mando,
E grifa à "parte", em tom autoritário:
— Você não sabe com que está falando!
Vi há dias um tipo maltrapilho
Com claraboias no chapéu, nas botas,
Casaco ruço, de sebáceo brilho,
Que fora preto em épocas remotas...
— Faço, diz-me ele, um financeiro estudo...
— Anda tratando de finanças? — Ando!
— Assim? E olhei-o, d'alto a baixo, mudo:
— Você não sabe com quem está falando!
Um rolo: trila o apito. Um tipo é preso.
Junta povo: — é gatuno! a turba exclama.
Mas resiste o ladrão, de olhar aceso,
E a "Viúva alegre" o policial reclama.
Nisto salta um da roda e, em gesto austero,
Cheio de empáfia, de importância impando,
Grita: — O preso não vai! — Por quê? — Não quero!
Você não sabe com quem está falando!
Um mendigo na rua pede esmola;
Tem ar de fazer pena: um ar de fome;
Umas palavras trôpegas engrola:
Diz que há dois dias ou que há três, não come...
Condoi-se a gente, dá-lhe uma pratinha
E diz-lhe assim, buscando o tom mais brando:
— Vai trabalhar... O gajo se abespinha:
— Você não sabe com quem está falando!
Há tempos vi um certo camarada
A discutir com o condutor do bonde:
— Esqueci a carteira! ó que maçada!
E agora? — Desça! o condutor responde.
— Quem? eu? descer? Eu morro mas não desço!
Infame Light! que pessoal nefando!
Então não me conhece? — É, não o conheço!
— Você não sabe com quem está falando!
Um desses manequins que fazem ponto
Na Galeria do Cruzeiro, há dias
Uma sova levou que não lhes custo
Em troco de umas tantas ousadias.
Um pai feroz que a coisa presenciara
Deu-lhe um mestre tabefe e eis senão quando
O "Moço" exclama, pondo a mão na cara:
— Você não sabe com quem está falando!
Não pertenço à alta roda que frequenta
Os chás e as frisas do Municipal,
Aos "trezentos" (que são talvez cinquenta)
Se exagero — por Deus — não é por mal.
Mas se a velha casaca às vezes visto,
Fico já certo que pertenço ao bando,
E tomo uns ares de quem diz, — É isto!
Vocês não sabem com quem estão falando!
Neste país das palmeiras
Que tanta beleza encerra
Os homens fazem asneiras
Como no resto da terra;
O Zé-Povo se arrelia,
Protesta, faz reboliço...
Mas passa um dia e outro dia
E não se fala mais nisso!...
Qualquer desfalque valente
Dá que falar três semanas;
Grita, berra, toda gente:
— Que súcia de ratazanas!
Os jornais falam do caso
— Aliás um caso cediço —
Mas, ao fim de curto prazo,
Já ninguém fala mais nisso!...
Do imposto de honra falou-se
Com o mais sincero entusiasmo:
Toda a Câmara agitou-se:
— Saiamos de tal marasmo!
Para a Pátria, ó que desonra!
Se não salda o compromisso!
Mas... adeus imposto de honra!
Já não se fala mais nisso!
O país não tem defesa
Nem no mar e nem na terra!
Levaremos com certeza
A pior, em caso de guerra!
E toda a gente reclama
O obrigatório serviço.
Fez-se um bonito programa...
E ninguém falou mais nisso...
A carestia da vida
Provocou medonha encrenca;
Em forma ardente, incendida
Houve discursos em penca,
Falou-se em revolta; o povo
Tinha um ar espantadiço
Mas volta a calma de novo
E não se falou mais nisso...
Temos carvão em fartura,
E ferro mais que carvão,
Mas na estrada da amargura
Andamos, de prontidão.
Cumpre explorar nossos veios
De metal puro, castiço!
Mas a tal fim faltam meios...
E não se fala mais nisso!
Mas, apesar disso tudo
Fato anômalo se nota;
É que o Brasil vai, contudo,
Seguindo em bela derrota,
É que, vivendo na beira
Do abismo — por um feitiço —
Ele não cai, nem que queira,
Embora se fale nisso.
Neste mundo de miséria
Irritar-se a gente é asneira.
A grande escola é a pilhéria:
Leve-se a coisa mais séria
Na brincadeira.
Se alguém nos prega, zangado,
Terrível descalçadeira,
A gente escuta-a, calado;
Engole todo o recado
Na brincadeira.
Se ele, além disso, inda ameaça
E dar pancada nos queira
Diz-se-lhe assim: "Mas tem graça...
Oh! meu amigo, não faça
Tal brincadeira".
Amor próprio? Uma tolice!
Corre a vida tão ligeira!
Desaforo alguém nos disse?
A gente disfarça e ri-se
Por brincadeira.
É em Paris je m'en fichismo,
Em Lisboa é a chuchadeira,
Era na Grécia cinismo;
Aqui no Brasil eu o crismo
De brincadeira.
Atira-se à vida alheia
Da pérfida a arma traiçoeira.
A ação é má? baixa? feia?
Qual nada! É apenas a veia
Da brincadeira...
Bem tolo é quem se amofina!
Se alguém nos bate à moleira,
É correr, dobrar a esquina
E aplicar-se a lugolina
Da brincadeira.
Ser "fútil inda brincando"
É a doutrina verdadeira,
Vai-se trepando, trepando
E galga-se o alto, no brando,
Na brincadeira...
E nessa terra, que é a nossa
Não val' ser de outra maneira;
Nada ao caráter faz mossa:
Pois se isso é um país de troça...
De brincadeira!...
Meu noivo era um rapazinho
Chamado Pedro — Pedrinho —
E chofer de profissão;
Bonito, meigo, elegante,
Falou-me e no mesmo instante
Conquistou meu coração.
Quando passava lá em casa,
Eu tinha as faces em brasa,
Ao vê-lo no auto vermelho.
Mamãe conselhos me dava...
Quem ama como eu amava
Quer lá saber de conselho?
Certa vez parou na esquina
E eu escutei a buzina
Do seu auto a fonfonar...
Saltou, chegou-se à janela...
Fiquei vermelha e amarela,
Fiquei fria e a transpirar!
Pediu perdão da ousadia,
Disse que já não podia
Resistir ao meu feitiço...
Pegou-me a mão em segredo;
Puxei-a e disse com medo:
— Seu Pedro, não faça isso!
No dia seguinte veio
E eu, venturosa, esperei-o
No portão lá do cortiço.
Era escura... era de noite...
Quis beijar-me... — Não se afoite
Seu Pedro, não faça isso!
E ele voltou no outro dia:
— Deixa que eu beije, dizia,
Teu pescocinho roliço...
E eu... que fazer? já deixava...
Porém, a rir, protestava:
— Pedrinho, não faça isso!
Foram-se os dias passando
E tantos beijos foi dando,
Que eu nem reparava nisso...
Uma vez beijou-me a boca!
Fiquei tonta, fiquei louca:
— Pedrinho, não faça isso!
Uma vez, por meu castigo,
Saiu a passear comigo,
Ao terminar o serviço.
— Vou tocar para a Tijuca!...
— Meus Deus, que ideia maluca!
Pedrinho, não faça isso!
Fomos. O auto em disparada,
Devorava a linda estrada!
De repente — zás! — um enguiço.
Quem passasse ali por perto
Me ouvia dizer por certo:
— Pedrinho... não faça isso!
O resto é melhor calar-se.
Mas de comigo casar-se
Ele tomou compromisso...
— Vou comprar-te uma pulseira...
— Não quero nada! que asneira!
Pedrinho, não faça isso!
Mas passaram-se três meses;
Ele vinha algumas vezes...
Depois, levou tal sumiço...
Quando lá em casa voltava,
Eu, tristonha, suplicava:
— Pedrinho, não faça isso!
Eu, com tamanho desgosto,
Perdi as cores do rosto,
Perdi dos olhos o viço!
E, mirando o seu retrato:
— Pedrinho, não seja ingrato,
Pedrinho, não faça isso!
Um dia ele apareceu-me;
Muito frio um beijo deu-me,
Mas com um ar espantadiço...
Disse que estava de viagem...
— Meu Deus! você tem coragem?
Pedrinho, não faça isso!
Seu ofício não dava;
Ia tentar, explicava,
A vida de embarcadiço...
E eu dizia já com asco:
— Não seja assim tão carrasco!
Pedrinho, não faça isso!
E foi-se. Foi-se para o norte!
Hoje confesso que é a morte
O único bem que cobiço.
Talvez que outra, lá por fora,
Lhe esteja dizendo agora:
— Pedrinho, não faça isso!
Vou-me casar! Estou contente!
Muito contente e com razão;
Que uma ventura é unir-se a gente
Como lhe ordena o coração.
Eu já não sou muito criança,
Porém não sou velha também...
Tenho no íntimo a esperança
Que o casamento me faz bem.
Meu noivo é lindo! E que bem posto!
Que olhos! que boca! e que nariz!
Que perfeição todo o seu rosto!
Ai, ai! como eu vou ser feliz!
Tem vinte e três anos somente;
Eu sou mais velha; ah! sou; não nego!
Mas que isso vale quando a gente
Ama com amor intenso e cego?!
Anda a dizer gente intrigante
Que fala mal até de Cristo,
Que o meu rapaz tem uma amante
E vai casar só atrás "disto"... (gesto de dinheiro)
Chamar meu noivo interesseiro!
Ele que estuda p'ra doutor,
Quer lá saber do meu dinheiro?
O que ele quer é o meu amor!
O nosso quarto é cor de rosa...
A cor eu mesmo é que escolhi,
Só em pensar fico nervosa,
Sinto uma coisa por aqui...
Sobe-me o corpo um formigueiro,
Há um não sei que dentro de mim!...
Meu coração bate ligeiro
Num palpitar que não tem fim!
A uma sobrinha que é casada
Neta de minha irmã caçula,
Eu perguntei, muito acanhado,
Como é que a gente se regula...
Ela explicou ponto por ponto,
Que horror, meu Deus! nunca pensei!
São coisas tais que eu nem lhe consto!
Enfim, na hora é que verei...
Só em pensar... a alcova, o leito...
E o doce instante do — enfim sós! -
Eu lhe direi: — tenha respeito!
E ele: — meu bem... baixando a voz.
Depois me chama de "filhinha"
Depois... depois... depois... depois...
Disse-me, a rir, minha sobrinha:
— O resto é lá com vocês dois!...
Inda agorinha ele me disse:
— Meu coração, estás contente?
E eu respondi: — mas que tolice!
E fique rubra de repente
Ele indagou:- porque é que cora?
— É que serei bem mais feliz...
— Ah, sim, já sei... mais do que agora,
Quando tivermos um petiz...
Chamam. Já vou! Chegou o momento!
À nossa espera está o pretor,
Que coisa boa é o casamento
E o casamento por amor!
Nervosa estou de tal maneira,
Que mal contenho os nervos meus!
Ai minha flor de laranjeira!
Adeus p'ra sempre, adeus! adeus!
Tou despedida. Essa agora!...
Por uma coisinha à toa,
O demonho da patroa
Danou-se e mandou-me embora!
A mim que sei quanto vaio,
Que intendo do meu ofiço,
Que sou boa no selviço,
Que sou fixe no trabaio!
Vorto de novo p'ra agença...
Vou arranjá patrões novo,
Quais novo nada! Esse povo
Quage não faz deferença!
É tudo da mesma raça,
Resmungão, impretente...
P'ra agradá eles a gente
Não sabe mais o que faça...
Pruquê eu cá sou cusinheira
Mas sou de forno e fogão!
Eu cá não sou de feijão,
Tofus e couve à mineira!
Trabaio em massas; corquettes,
Faço cusinas francesa,
Seio fazê subremesa
De pudingues e melettes!
Pois o diacho da patroa,
Que só dava p'ra cusinha,
Carne, feijão e farinha,
Queria comidas boa!
E inda ficava danada
Quando, de tarde, o marido
Fazia nariz trucido
P'ro feijão e a carne assada!
Eu com essa gente estou cheia!
Com esse povo não me aprumo!
Mas afiná... não costumo
Falá má da vida alheia!
Tenha ou não tenha rezão,
Eu quando uma casa deixo,
Não me ralo, não me queixo,
Nem falo má dos patrão.
O patrão deve na venda,
No açougue, no quitandeiro,
Na fremácia, no padeiro,
No turco, no home das rendo!
E inda ameaça com prisão
Os pobre dos cobradô!
Mas... bico! que eu cá não sou
De falá má dos patrão!...
Eu não conto, por inzempo,
Que, quando o patrão saía,
A patroa se vestia...
(Levava um bandão de tempo...)
Depois vinha um figurão,
Com partes de primo dela...
Mas eu não sou tagarela]
Nem falo má dos patrão!
O patrão de é um assanhado!
O mau costume ele tinha
De andá rondando a cuinha,
A fazê-se de engraçado...
Eu nunca dei atenção,
Mas a patroa é ciumenta,
Chegou-lhe a mostarda às venta,
Brigou, pintou com o patrão!
E ós despois mandou-me embora!
Já viro que desaforo!
Tenho nada c'os namoro
De seu marido, senhor?!
Eu cá não sou disso, não!
Diabo a leve c'os seus ciúme!
Eu nunca tive o costume
De dá confiança a patrão!
Tá dereito! Vou simbora!
Vorto de novo p'ra argença!
Minha gente, com lecença...
Meus senhores e senhora,
Eu sou de forno e fogão...
Percisando meus serviço,
Sabam que eu cá não sou disso
De falá má dos patrão!
Belo dia de sol. Temperatura
Primaveril: vinte e dois graus amenos.
Fulge Apolo, magnífico, na altura,
Sem menos refulgir, por queimar menos.
Num dia assim é que da espúmea alvura
Surgiu, a um beijo de Netuno, — Vênus,
Um dia a pedir campo e brisa pura
Que se aspire, feliz, a pulmões plenos.
Rimas e ritmos andam no ar dispersos,
No íris do céu, no azul do mar, no viço
Das flores dos jardins, em luz imersos.
E eu sonho... A Musa chega... eu me enfeitiço;
Dá-me vontade de fazer uns versos
Não me contenho; e aí têm vocês, — fiz isso.
ELE
Anda depressa! o contrário
Perderemos o começo...
ELA (com frieza)
Pouco importa; eu já conheço
A peça.
ELE (tomando café)
É lindo o cenário
Do primeiro ato...
ELA (irônica)
É mimoso:
Uma elegante moldura
Em que se engasta a figura,
O porte elegante e airoso,
Da "estrela".
ELE (acendendo o charuto)
A música é linda...
ELA
É lindíssima. É um encanto!
E como realça o canto
Da "estrela", de graça infinda.
ELE
O diálogo é animado!
Com frases de muita graça.
ELA
Em que o espírito esvoaça
Da "estrela", tão requintado.
(Ela sublinha sempre a "estrela")
ELE (percebendo a intenção)
Tem piada!... Ora a novidade!
Por que sublinhas a "estrela"?
Pensarás que ardo por vê-la.
Julgas-me eletricidade,
Imã de força invencível!
Atraio por onde passo
Mulheres de todo nível
Qual fossem limalhas de aço!
ELA
Dizes agora graçolas
E te fazes de engraçado!
Tantas desculpas engrolas
Que bem se vê que és culpado.
ELE (zangando-se)
Culpado de que? Com o diabo!
ELA (desabafando)
De andar namorando atrizes!
De gastar como um nababo
Com elas todas...
ELE (irônico)
Que me dizes?
Pois aí 'stá o que eu não sabia...
Irei tomar mais cuidado,
Que, senão, dia mais dia
Acabarei arruinado (outro tom)
Que me interessa a pessoa
Dessa notável senhora?
Estrela? Estrela!... Dir-se-ia
Que é do palco a Astronomia
Que mais me preocupa agora!
ELA
Não te faças de inocente!
Teu ar cínico não pega!
Olha-me bem! bem de frente!
Pensas talvez que eu sou cega?
ELE
Tu, cega? Ao contrário, penso,
Com teus olhos sem rivais,
Que vês muito, vês imenso,
Tanto vês, que vês de mais.
Com teu olhar enciumado
Vês mesmo o que ver não queres!
Se me olhar, vês ao meu lado
Mulheres e mais mulheres!
Tu és o ideal das esposas
Até me enches de vaidade
A atrair as mariposas,
Resistir-me, a mim, quem há-de?
ELA
Pensas então que me iludes?
Sou talvez alguma criança?
És um poço de virtudes
Um santinho...
ELE
Que esperança!
Sou um demônio em carne e osso.
Sou um judas traidor, mereço
A corda pelo pescoço...
ELA
Disfarça! Eu bem te conheço!
ELE (outro tom)
Mas olha! Falemos sério
Talvez haja alguma intriga...
Deixa esse tom de mistério...
ELA
Que queres mais que eu te diga?
(chorosa)
Ah! meu Deus! ah! como somos
Nós, mulheres, infelizes!
A que horrores nos expomos!
ELE
Mas que absurdo tu dizes!
(Ela soluça. Ele afaga-a)
Quem foi o infame intrigante
Que te foi contar tal cousa?
(Escandalizando-se)
Eu! capaz de ter amante!
De trair a minha esposa!
Andar namorando atrizes!
Mas cita uma prova, um fato!
Quem te contou?
(Pausa)
Vê-se o dizes!
(trágico)
Se souber quem foi, eu o mato!
ELA
Não preciso que me contem!
Meu coração tudo diz:
Pois eu não te vi anteontem
Namorando aquela atriz...
ELE
Que atriz?
ELA
Não sabes?! Aquela
Que canta o Fado da Rosa...
ELE
Ah! a estrela?
ELA
Sim, a estrela!
Cantava com a voz melosa,
Todo o tempo, olhos em alvo,
Na nossa friza; era a "doze"
E tu, com ar de papalvo,
Sorrindo e fazendo pose!
ELE
Pois eu não notei?
ELA
Notaste
E até sorriste.
ELE
Eu sorri?
ELA
E com os olhos lhe marcaste
Um rendez-vous que eu bem vi.
ELE (zangado)
Não! É demais! Que ela olhasse
Não duvido! Eu é que juro
Que nunca, a vi, face a face
Nem no claro nem no escuro.
ELA (incrédula)
Nunca a viste?
ELE
Sim, na cena,
Fazendo os papéis da peça...
Não sei se é loura ou morena...
ELA
Não sabes?... Eu lá vou nessa!
ELE
Não sei. As damas no palco
Não são nunca as verdadeiras,
São faces de ruge e talco
E bistre fingindo olheiras,
A boca fazem pequena,
Os olhos abrem com uns traços
E faz-se a loura morena
Sem menores embaraços.
Assim, quando as vejo em cena
Fazendo um tipo qualquer
Podes ter certeza plena:
Vejo a atriz, nunca a mulher.
ELA
Tens lábia! Até me irritas
Com tais cantos de sereias...
Então, tu olhas as bonitas
Do mesmo modo que as feias?
ELE
Do mesmíssimo!
ELA
Mas creio
Que me chamaste atenção
De umazinha, no Recreio
E disseste: — É um canastrão!
(Pronuncia "canastrão" como se significasse
- uma beleza)
ELE (rindo)
Canastrão! Ora! mais esta!
Canastrão, ouve-me cá,
Diz-se da atriz que não presta,
Que não agrada, que é má!
ELA
Tu tens sempre uma resposta
Na ponta da língua! És fino!
ELE
Ora! isso até me desgosta!
Com teus ciúmes, desatino!
ELA
Basta de conversa afiada...
Dize-me em frase concisa
Por que motivo a assanhada
Olhava p'ra vossa friza?
(Ele passeia, agitado, como que a procurar
uma razão)
Senão pinto o diabo a quatro,
E se for o que eu suponho,
Entro na caixa do Teatro
Faço escândalo medonho.
ELE (batendo na testa)
Ah! sou mesmo muito idiota!
Agora é que caio em mim,
Escuta, escuta, Nicota,
Vou dar-te o motivo
ELA
Enfim!
ELE
ouve lá: com que toilette
Foste ao teatro aquele dia?
ELA
Com o novo chapéu de aigrette.
ELE (interrompendo, amoroso)
Que tão linda te fazia...
ELA
O vestido cinza e fraise
De gase chiffon, com folhos:
corpete creme, de laise
Valencienne...
ELE
Aí tens: — Os olhos
Da atriz, meu anjo querido,
Devoravam-te a toilette,
Invejavam teu vestido!
ELA
Lindo o meu chapéu de aigrette
Pois não é?
ELE
Que maravilha!
A atriz não tirava os olhos
De toda aquela escumilha,
De todos aqueles folhos!
ELA
Lembro-me agora, de fato,
E ela tinha o seu motivo:
O dela, o do segundo ato,
De um encarnado tão vivo...
De cetim, fora de moda,
E uma saia tão comprida;
Comprida e de pouca roda!
ELE
Estava muito mal vestida!
ELA
(passando-lhe a mão na cabeça)
Esta foi muito engraçada!
Ela a invejar-me o meu vestido
E eu a mostrar-me enciumada!
ELE (magoado)
Ter ciúmes do teu marido!
ELA (beija-o)
Perdoa, filhinho! E agora?
Achas que este me vai bem?
ELE
Vai; mas já passou da hora
Do espetáculo...
ELA
Que é que tem?
ELE
chegamos tarde, Nicota!
ELA
Que mal há nisso?
ELE
Se queres?...
ELA
Estás cansado?
ELE
Eu sou idiota!...
ELA
Peço-te apenas que esperes
Uns dez minutos querido!
Estou muito mal arranjada...
Vou mudar... o outro vestido.
(junto à porta)
Vais ver! Não demoro nada!
ELE (só — Pausa)
Esta cena se resume
Numa profunda verdade:
Na mulher é forte o ciúme
Mas é mais forte a vaidade.
Quanto a mim que — caso raro,
O que ela supôs não fiz,
Esta noite aqui declaro,
Que vou namorar a atriz.
Pano.
Ao despontar do dia, abro a janela
E um lindo sol primaveril saúdo.
Cessou a chuva; e, sem saudades dela,
O céu contemplo, deslumbrado e mudo.
Há uma viva alegria tagarela
Nos insetos, nos pássaros, em tudo
Quanto respira, sob a azul umbela,
Esse ar que tem carícias de veludo.
Dia para ficar-se aqui na serra,
Na bela serra petropolitana
Que, se não chove, é o céu dentro da terra!
De Pã soprando a frauta parnasiana,
Sem ler os telegramas sobre a guerra,
Alheio às glórias da maldade humana!
Um dia um caçador saiu à caça
Ao despontar da aurora,
E foi-se, alegre, pelo campo afora
Em companhia do seu cão de raça,
Quando, em dado momento,
Viu entre as folhas uma cascavel
Da cauda os guizos agitando ao vento...
O caçador — chamamos-lhe Miguel -
(Com seu nome vulgar facilita-lhe a rima)
Miguel, vendo a serpente
Que dele se aproxima,
A arma aponta, mas eis que, de repente,
Vê que ao lado da cobra
Outra coleia, pequenina e jovem.
Milagre? ou simples obra
Do acaso? o caso é que os olhinhos se movem
Do pequenino ofídio e olham Miguel, serenos
O caçador impressionou-se...
- Nem era para menos... —
Era um lânguido olhar, tão lânguido e tão doce
Tal qual como se fosse
O olhar do cão fiel...
A grande cascavel
Era mãe da pequena, certamente;
Se ele matasse a mãe, que vil maldade!
A filhinha inocente
Cairia no abismo da orfandade!
Matar a filha? Bárbara matança!
Fora de Herodes sanguinária obra...
Ah! não se mata uma inocente criança
Mesmo quando ela é cobra!
Miguel assim pensou (tem coração Miguel)
Doce olhar comovido
Deitou-lhe a pequenina cascavel.
— Não, não as mato! é o caso decidido!
Disse com seus botões o caçador, enquanto
Iam as cobras demandando o ninho.
E Miguel, de emoção contendo o pranto,
Prosseguiu seu caminho.
Anos o caçador andou caçando
Por diversos lugares;
sem ver jamais as cobras familiares.
Mas eis que um dia, quando
Por acaso passou pelo mesmo local,
Viu Miguel
A jovem cascavel
Já então era cobra feita,
Risonha, bem nutrida e satisfeita,
E tinha tal e qual
Aqueles mesmos traços elegantes
Dos tempos de menina; os olhinhos brilhantes
Algo tinham de amor, de carinho e de bondade;
No corpo esbelto, em plena mocidade,
As mesmas linhas gregas da mamã...
Ela — é o caso verídico —
Daria a nota no Instituto Ofídico
De Butantã!
Ao ver o caçador que lhe poupara a vida
E a livrara do abismo da orfandade,
A cascavel, — acreditar quem há de? -
Olhou-o com meiguice e com ternura
Grata e reconhecida.
Seguiu Miguel ao ponto que buscava;
Mas, numa certa altura,
Olhando para trás,
Notou que a cascavel o acompanhava,
— Deixá-la! disse; e prosseguiu Miguel.
E quando o bom rapaz
Em casa entrou, entrou com ele a cascavel.
Instalou-se, à vontade, a um canto da cozinha,
Tão mansa e familiar
Como um gato, um cachorro, uma galinha...
Sempre à hora do almoço ou do jantar,
A jovem cobra vinha
Enroscada, postar-se ao pé da mesa.
Ora, que um certo dia,
Miguel que inda dormia
Despertou assustado e com surpresa,
Ouviu grande rumor que vinha do escritório.
O revólver aperra
— Algum rapaz gatuno, era notório! —
Mas quase cai por terra
De assombrado!
Um ladrão negro e mau, de fera catadura,
Tentara abrir o cofre.
Quando, num triz, de chofre,
- Oh! caso nunca visto! —
A jovem cascavel se lhe agarrara ao braço!
(O ladrão, panhado de imprevisto
Não poude dar sequer um passo)
E, enquanto assim mordia o infame roubador,
Ela
Com método e perícia
Punha a cauda por fora da janela,
Vibrando-a com furor
A chamar a polícia!
Este caso verídico demonstra,
Do modo mais solene,
Que nem toda serpente é como aquela "monstra"
De que fala o senhor de La Fontaine.
A chuva, suor do Céu, que o Céu transpira
Quando um longo calor a terra inflama!
Chuva, desgraça do pessoal da "lira"
Que tem no "Hotel da Bela Estrela" a cama!
Chuva! sonho cearense! Ideal hegira
Das safras! Rega com que o céu derrama
Nas pobres sementeiras do caipira
A água, — leite do céu — que a terra mama.
Eu te amo e louvo, se a cidade banhas
Quando o inverno do Rio é uma fornalha
Em que o gordo burguês dissolve as banhas.
Mas és infame, és pérfida, és canalha,
Quando, em costume de verão, me apanhas
Sem guarda-chuva e de chapéu de palha.
Guerra e mais guerra! guerra abaixo e acima,
Guerra adiante e detrás! por toda a parte
Que a musa alegre a deambular se anima,
Em vez de Apolo, dá, de cara, Marte.
Erra quem de erra não buscar a rima
Para fazer, em verso, uma obra de arte;
E não acha emoção que em verso exprima
Sem César, Alexandre ou Bonaparte!
Toda a cidade como que se encerra
Nesse ambiente guerreiro: a guerra é o abismo
Com sereias cantando: atrai e aterra!
Quando tomo da pena, eu suo e cismo:
Que diabo hei de escrever com graça? ó Guerra,
És o estado de sítio do humorismo!
— Porque motivo o cão agitado o rabo?
Pergunta Mr. Show, um grave inglês,
A um sujeito que arrota orgulho e gabo
De saber tudo e fala como três.
— Ora, diz este, sem maior exame
Dou-lhe a razão mais clara do que o dia:
Se o cão o rabo agita, espanta o enxame
De moscas que o arrelia
Claríssimo, pois não?
- Perdão!
Torna sorrindo Mr. Show, mas quando
Moscas não há, nem há sequer mosquito,
Vê-se o cão agitando
- Da mesma sorte o rabo!
- Deveras esquisito,
Torna o sujeito; e, de um minuto ao cabo,
Confesso francamente
Que não acha razão mais concludente.
— Pois o motivo exato eu dar-lho vou,
Diz Mr. Show
Fleugmaticamente:
Pelas leis da mecânica se explica
Este caso comum aos animais,
Que a muitos outros, como ao cão se aplica:
O cão agita o rabo porque é mais
Pesado do que o rabo... eis a razão;
Se o contrário se desse e se o animal
Fosse mais leve do que o rabo, então
Era fatal
A conclusão:
Seria o rabo que agitava o cão.
Sonhei que eu era um príncipe formoso
Amado e amante de uma castelã
Que me queria para seu esposo,
— Pai dos sobrinhos de uma sua irmã.
O velho conde opunha-se furioso
Ao casamento — ó negra ação vilã!
Fez-me um dia prender no fundo ascoso
De uma masmorra lôbrega e malsã;
E eu na prisão quase de dor sucumbo;
Com os pés calçados em chapins de chumbo,
Sem me queixar sofri como um heroi!
Desperto, enfim, e a refletir me ponho
No quanto se padece, mesmo em sonho,
Quando se tem um calo e calo dói!
Maio. Domingo. Um sol de primavera
Brilha no firmamento azul-cobalto.
Há leves nuvens de algodão pelo alto...
Asas leves palpitam na atmosfera.
Agora um leve pé pisando o asfalto
Atrai-me o olhar leviano. Oh! Céus, quisera
Ser botina e sentir, do bico ao salto,
A pressão desse pé, fugaz quimera...
Derreto-me em lirismo; essa leveza,
Que existe em tudo, eleva-me à Bondade!
Leve o diabo o que é mau na natureza!
Leve acho a vida e leve a humanidade!
E até da Europa a rubra luta acesa
Eu a julgo uma simples... leviandade.
O mais gordo dos três, de ventre nédio, informe,
O que me desatina
Quando, no fim do mês, me manda a conta enorme,
É o vendeiro da esquina.
O segundo, que tem o aspecto de um meirinho
Quando à porta me bate,
É o azar, que a tremer, deparo em meu caminho,
É o meu alfaiate.
O outro é o homem fatal que o viver encrencado
Me faz negro e sombrio;
Entre todos feroz, é o algoz desalmado,
É o meu senhorio.
O mais gordo dos três, cobra... constrictor boa,
Cujo veneno afronto,
Não compreende bem, nem releva ou perdoa
Minha disga de "pronto".
O segundo é o credor de feia catadura,
Atrevido, arrogante,
Não sabe olhar em mim mais que o corte e a factura...
Do meu fato elegante.
O terceiro é o algoz-hidra, monstro, pantera,
Ameaça, intimação!
Temo-o: No fim do mês, quando surge essa fera
Não a conheço não!
Se o primeiro falisse, — ó ditosa ocorrência!
Eu, de alegria tonto,
Correria a ajudar os juízes da falência
Com o meu ódio de "pronto".
Se o segundo falisse, eu mesmo iria a juízo
Contra o bicho depor!
Dir-lhe-ia: — O diabo aumente inda mais teu prejuízo,
Desgraçado credor!
Se o terceiro falisse — oh! que felicidade!
- O mais feroz do lote,
Com toda a correção, com toda probidade
Passava-lhe o calote!
Se o primeiro morresse, ah! como eu gozaria
Tão completa ventura!
As contas por pegar rezava-as noite e dia
Na sua sepultura...
Se o segundo morresse — oh! meu prazer eterno
Que num sonho diviso!
Ele iria rodando às profundas do inferno
Nas rodas do meu riso.
Se o terceiro morresse, uns sete pés cavados
No chão, em paz teria
E eu, na casa do bruto, aluguéis atrasados
Jamais os pagaria!
Na doce paz do lar passei o dia
E a bem dormida noite de Ano Bom;
Não fui sequer a um baile a fantasia,
Não fui sequer de um Club ao reveillon.
Adormeci às dez da noite, ao som
De um "choro"... da criançada. Oh! que harmonia!
E entrei pelo ano novo a dentro com
A alma leve e uma ducha d'água fria.
E, abraçando a mulher, disse-lhe: — agora
No ano novo, às arengas demos fim!
Zangas e ciúmes atiremos fora!
Em tudo tens de obedecer-me: enfim,
Serei teu aio e tu — minha senhora;
Serei teu anjo e tu — meu ser afim...
Quando nasci já a crise começara;
E começara a crise de tal jeito,
Que eu, da mãe-preta reclamando o peito,
Já protestava contra a vida cara.
Crescei, fiquei rapaz e, ora, homem feito,
Vejo que a crise de crescer não pára;
E hoje maior que nunca se declara
E é dos males da Pátria a causa e o efeito!
Crise de carne seca e de presunto!
Será possível que ela se eternize?
Ao meu crítico estômago pergunto.
Porém confesso, sem menor deslize,
Que devo à crise de melhor assunto
Este soneto criticando a crise.
— Sempre bem, seu Roberto? e rijo e forte
Com o seu saudável, seu garboso porte?
— É tal qual como vê, meu caro amigo;
Desafio a moléstia e a própria morte
Com os preceitos higiênicos que sigo.
— E esse processo?... — É meu, de meu invento;
Adoto-o desde a minha mocidade;
É, aliás, de uma tal simplicidade
Que com clareza o exponho num momento:
Contrário os impulsos da vontade!
Percebeu?
- Com franqueza, não percebo.
— Contrario a vontade a todo o instante:
Quer, por exemplo, o estômago, que eu jante?
Não janto. E sede acaso tem? Não bebo.
Quer a vontade diversões? Trabalho;
Pede trabalho? Corro a divertir-me;
Incita-me a chorar? Rio e gargalho;
Quer que me sente? Fico de pé firme.
— É notável!
— Notável? É excelente:
Se estou cansado e o corpo quer descanso,
Em vez de ir para o leito, eu pulo e danço
Ou marcho uma hora sob o sol ardente.
Contrariar a vontade. É o meu segredo!
Quer ser feliz? O meu conselho guarde:
Se o estômago quer doce, — dê-lhe azedo!
Se não tem sono, — durma até mais tarde!
Quando tenha, — levante-se mais cedo!
E assim por adiante, meu amigo: Veja
Que eu a vontade contrariada trago-a:
Se o paladar me pede um copo d'água,
Dou-lhe duas garrafas de cerveja!
— Agora percebi perfeitamente:
Quando a vontade quer cerveja, d'água
Dois copos dá-lhe a gente...
- Não! também tanto, não!
Cerveja mesmo eu dou, por exceção...
Fora de causar mágoa
Um tal excesso de contrariedade
À pobrezinha da vontade...
— Vossa Excelência em plena mocidade!
— Ora, qual nada! quer fazer-me troça...
— Perdão! Eu falo com sinceridade,
Pois de lisonjeador não tenho a bossa.
— Pois veja lá se me adivinha a idade?
— Não sou capaz... nem sei de alguém que o possa!
Um tal mistério desvendar quem há de
Se é o Tempo que, ao passar, mais a remoça?...
— Galanteador! Pois saiba que já tenho
Um filho de quinze anos no colégio
E uma menina... em ponto de marido.
— Sério? — Por Deus! — Pois tal será, convenho:
Vossa Excelência teve o privilégio
De se casar antes de ter nascido...
Uma jovem feminista
Ante o auditório perplexo
Falava sobre a conquista
Dos direitos de seu sexo.
Tinha fortes argumentos
De eloquência esmagadora;
Vibravam palmas aos centos
À entusiasmática oradora
Que exclamava, num transporte
— Os dois sexos não destaco:
Tanto vale o sexo forte
Quanto vale o sexo fraco.
Entre os dois sexos, em suma,
— Toda gente se convença —
Não existe mais do que uma
Pequenina diferença!
— Bonito! Mais que depressa
Brada uma voz masculina.
Senhores! Urrah por essa diferença
Diferença pequenina!
Nestas soberbas montanhas
De ar tão puro e céu tão lindo,
O Sol desponta sorrindo
Com a alegria nas entranhas.
Desperta a manhã mais cedo,
Ansiosa por ver o Sol,
E estende um vasto lençol
De névoas sobre o arvoredo.
Em sons de todas as claves,
Mal vem despontando o dia,
Ataca uma sinfonia
A alada orquestra das aves.
Bailam pelo ar os insetos,
Enchendo com seus zumbidos
Os deleitados ouvidos
Das orquídeas e dos fetos.
Sons estrídulos de vaias
Trilam vozes de cigarras;
E dizem coisas bizarras
Os bambus às samambaias.
Têm as quaresmas nos braços
— Tecido em flores — um encanto!
A secar ao Sol, o manto
De Nosso Senhor dos Passos.
"Verde em baixo, azul em cima
E o cristal da luz ao meio"
E este ar, de frescura cheio
Que a alma e o corpo nos reanima.
Ó Grande Pintor que pintas
Estes céus na tela imensa,
Que artista da Renascença
Te ensinou tão belas tintas?!
Ó Poetas irmãos! Não serdes
Também pintores! Pintáveis
Estes bosques adoráveis,
Verdes, de todos os verdes!
Verde das frondes às raízes:
Musgo, esmeralda, azeitona...
Vestem-se Flora e Pomona
De verde de mil matizes.
Deus presenteou esta Serra
De encantos que se não medem;
É este de certo "o outro" Éden,
Se houve dois Édens na terra!
De um lado um morro se alteia
Envolto num véu violáceo:
Esta é a ogiva do Palácio
Onde o deus Pã veraneia.
Seu nobre culto, celebre-o
Minha lira virgiliana!
Hurrah! Viva a carraspana
Desta luz que me põe ébrio!
São, nos meus sonhos diuturnos,
Grandiosos planos os meus:
Enfiar no "Dedo de Deus"
Um dos anéis de Saturno...
Colher da aurora e do poente
As cores várias e finas
Pára, vendendo anilinas,
Enriquecer, de repente!
Eis entre os planos diversos
O que inda ontem concebi:
Montar, com as quedas do Imbuy,
Usinas de fazer versos!
E, enquanto sonho, percorro,
O olhar guloso e insaciado,
Todo o céu, de lado a lado,
A terra, de morro a morro.
Remoço. Repito as proezas
Dos meus quatorze anos; entro
Feliz, pelo mato a dentro
A conquista de framboesas.
Tenho apetite sem par
E como como! Revivo!
O almoço é o aperitivo
Que tomo para o jantar.
Subo os íngremes barrancos
A cata de parasitas;
Recebo as minhas visitas
No smartismo de uns tamancos.
Grotas, córregos, penhascos
Corro, bebendo a paisagem:
O Paraíso, a Ermitagem,
Paz, Garrafão, Quebra-frascos...
O perfil das montanhas
Traçado no firmamento,
Assume a cada momento
Formas diversas e estranhas;
Se o céu se aclara ou se turva,
Picos altos, fundas grotas
Parecem mudar de cotas,
Dão sempre uma nova curva.
Tomando por "zero" o bosque
Que fica em face à estação,
Para encontrar-lhe a equação
Recorro ao velho Tromposky.
E o Mestre, com a velha prática,
Diz-me, em palavras singelas,
Que aquela curva é d'aquelas
Que riem da matemática.
E Astronomia? o que a estude
À noite, por estes campos,
No Céu vara pirilampos,
E estrelas sobre o palude.
E o Paquequer? (São segredos
Que ouvi, de fonte segura)
Quer vendê-lo a Prefeitura
A um armazém de brinquedos.
Porque o chamou "rio caudal"
O Alencar, no Guarani,
Ei-lo a lançar-se no Imbuí
Convencido de que é tal.
E eu, vendo-o naquele salto,
A ideia vem-me à cabeça
De uma criancinha travessa
Pulando, assim, de tão alto...
E, os nervos em reboliço,
Eu tenho ideias malucas
De dizer: — tu te machucas,
Paquequer, não faças isso!
Tudo aqui é gente de bem;
Virtudes aqui, são sobras!
Pois se mesmo as próprias cobras
Não fazem mal a ninguém!...
Glória a ti, bendita Serra
De encantos que se não medem!
É este, de certo, "o outro" Éden
Se houve dois Édens na terra!
Cada vogal tem sua cor distinta;
Que só o Artista pode ver exata,
Se os olhos livres tem de catarata
E sabe o nome dar a cada tinta.
O — A — é branco; quem há que me desminta
Ao ver a "cal", a "clara" (do ovo), a "prata"?...
— E — azul: "céu" (que n'água se retrata)
— I — vermelho: "Lili" (que os lábios pinta).
— O — amarelo: é o "sol", é o "ouro", é o "povo"
— U — negro: "urucubaca" (este vocábulo
É bem preto, apesar de muito novo).
E as consoantes têm cor como as vogais:
Folheai qualquer velhíssimo incunábulo
Vide as iluminura dos Missais...
ECONOMIA DOMÉSTICA (Provérbio)
Entre os meus companheiros
Do tempo de estudante,
Um havia, de pálido semblante,
- O Matias Ribeiro,
Um tipo excepcional de ordem, metódico,
De ideias sérias sobre economia
E que tinha a mania
De sempre conseguir pelo preço mais módico
Livros, roupas, sustento e moradia.
Em suma, era voz pública
Que o Ribeiro,
Entre os vários rapazes da "República",
Era o que tinha o instinto financeiro.
Se alguém lhe oferecia
Um refresco, um café, não os aceitava,
Pois que logo pensava
No troco a dar àquela cortesia.
Diziam que o Ribeiro
Apesar de ser filho de pais pobres,
A custa de juntar seus tostões num mealheiro,
Já guardava no banco uns tantos cobres.
Foi ao fim de seu curso de direito
Que, de repente,
A ideia de casar lhe veio à mente.
Fora um caso perfeito
De paixão fulminante que lhe dera;
E só assim se explica
Que não sendo (e não era)
A rapariga que o inspirara, rica,
Resolvesse o Ribeiro
Deixar a vida de rapaz solteiro.
Viu, pediu, e casou;
E tem sido feliz, ao que presumo,
Pois que na esposa achou
De ordem e economia um perfeito resumo.
Há dias encontrei-o
Mais gordo, rubicundo, ar prazenteiro,
Ele que eu conheci desengonçado e feio,
- Feliz, então, Ribeiro?
— É verdade, tornou; não me queixo da sorte;
A vida vou levando economicamente,
Pois, felizmente,
Achei uma alma irmã na minha ideal consorte.
E contou-me alguns casos
Da sua vida íntima: — "A princípio
Fui obrigado a um duro sacrifício
Para cobrir alguns financeiros atrasos;
Mas, gradativamente,
Fui cortando as despesas prorrogáveis;
Com maneiras amáveis
Aconselhava à esposa, sem no entanto
Dizer-lhe claramente
Que era o meu fim fazer economia.
Sobre a nua verdade eu punha o manto
Róseo da fantasia...
Procurava um pretexto
Para chegar aos fins que pretendia;
Assim... E ele narrou-me o caso que aqui conto,
Sem que do seu contexto
Altere o menor ponto:
"Antigamente as lavadeiras
Da minha roupa branca davam cabo;
Eram dúzias inteiras
De meias e de lenços que eu perdia;
E, não sendo um nababo,
Pois me custa a ganhar o pão de cada dia,
Tratei de achar um meio
De pôr, depressa, um paradeiro àquilo;
— Farei o rol! disse comigo, creio,
Que assim a coisa se endireita. E fi-lo
Mas qual! quando me vinha
A roupa da lavagem,
Ao conferir o rol, tais revoltas eu tinha,
Por não ver nele a mínima vantagem,
Que acabei por deixar a coisa à revelia.
Ora, uma vez casado
Logo ao segundo dia,
Disse à minha mulher: — ouve, meu bem,
Lava os lenços tu mesma! isso convém,
Não te será trabalho algum pesado,
Além do que, tu te distrais
E assim,
Meus lenços finos não se perdem mais.
Foi uma ideia bem feliz; ao fim
De quinze dias, feita a experiência,
Falei-lhe: — tem paciência,
Lava também os colarinhos...
Uma semana após fui às gavetas;
Das peças todas que ela me lavava
Mais nenhuma faltava!
— Passa a lavar, querida, as camisetas...
Sugeri-lhe depois; e não precisas
Para fazê-lo mais de um quarto de hora,
E caso é que ela, agora,
Lava as meias, os punhos, as camisas...
A minha roupa
Já não se perde como antigamente;
Muito dinheiro e tempo assim se poupa
E com o sistema novo estou contente.
- Dou-te de graça este conselho,
Concluiu meu amigo, é de primeira!
Nunca mandes roupa à lavadeira...
Mira-te em meu espelho...
Moralidade
Ante um tal caso ninguém que há que fuja
A crer que do provérbio a verdade extravasa:
"A roupa suja
Lava-se me casa."
Não tirei os mil contos; nem, ao menos,
Um reles prêmio de consolação.
A fortuna furtou-se aos meus acenos,
Com a mais brutal desconsideração;
Nem um dos prêmios grandes ou pequenos!
Foi-se-me agora a última ilusão!
Adeus festins de Orfeu, de Baco e de Vênus
Em que só se entra com o dinheiro em mão.
Nem um prêmio sequer que me conforte
Por três meses ou dois; mesmo por um...
E a vida me conserte e a desentorte.
Meu caso, aliás, é fora do comum:
Não tive prêmios, não por não ter sorte,
Mas porque não comprei bilhete algum.
"Manoel, Onofre & Companhia
Venda a varejo e a atacado"
É a tabuleta que se via
Numa sortida mercearia
Da antiga Praça do Mercado.
Pesar da grande concorrência,
De vento em popa ia o negócio;
E, com trabalho e persistência,
Iam caminho da opulência
Tanto o Manoel como o seu sócio.
— Nosso dinheiro na gaveta,
Diz o Manoel, não está seguro,
— Pois, torna o Onofre, que se o meta
Num banco sério, que prometa
Mais garantia e um forte juro.
— Banco? qual banco! É uma desgraça!
Se uma "corrida" acaso sofre,
Quem vai no embrulho é a gente, é a praça.
— Que é pois que entende que se faça?
— Eu, cá por mim, comprava um cofre.
— Pois bem, comprêmo-lo. A encomenda
Foi feita à agência, aqui no Rio.
Era magnífica "fazenda";
E hoje ele ostenta-se na venda,
Pesado, negro e luzidio.
O "Caixa", o "Diário", o "Costaneira"
Junto ao "Razão" e aos "Borradores"
Figuram guapos, em fileira,
Todos na mesma prateleira,
— Eterna ameaça aos devedores. -
E, nas gavetas bem forradas
De finas folhas brancas de aço,
Vêm-se as contas... atrasadas;
E, em notas gordas empilhadas
Igual quantia em cada maço.
Ora, acontece um certo dia
(Que jamais outra lhe aconteça)
Perde-se a chave! Antes queria
— Manoel, Onofre & Companhia"
Perder em vezes a cabeça!
— Perdida a chave! Ó que desgraça!
O sócio exclama. Houve um salceiro.
Manoel em claro a noite passa.
— Pois que outra chave então se faça!
Mandemos vir um serralheiro!
Propôs o sócio — É o mais prudente.
E sem demora o artista veio;
Olhou o cofre atentamente
E disse: — a chave é de "patente"
De outra fazer não vejo o meio.
— E agora? e agora? Explode, aflito,
Manoel que treme, em forte abalo.
— Mandem chamar um bom perito
(Lembra o operário) o Zeca Brito
Pode, em dois tempos, arrombá-lo.
Como? Arrombá-lo? — É o que lhe digo.
Uma pancada dada em cheio
E zás! Não há menor perigo;
Para o abrir, meu caro amigo,
Não há, garanto-lhe, outro meio;
Só se se achasse outra igualzinha...
Costumam vir em duplicata...
Grita o Manoel: — por vida minha,
Que uma outra chave o cofre tinha!
Por muito tempo andei-lhe à cata!
— Tinha e inda tem! a voz atroa
Como um trovão, do sócio, o Onofre,
— E onde está ela? — Hom'essa é boa!
P'ra não andar p'ra'hi à toa,
Eu na guardei dentro do cofre...
O fazer-se um soneto, usando a inteira gama
Das vogais, é, meu poeta, um difícil problema.
Seja o leve humorismo, a sátira, o epigrama,
Vê que, dentro da forma, a ideia não se esprema.
Das rimas deve ser perfeita a fina trama,
Sem que haja sacrifício, o mínimo, do tema,
A ideia é o fio de ouro, o verso é a tênue lhama
Em que da rima rara o artista engasta a gema.
Fazer malabarismo, acrobacia, esgrima,
Com o verso que a seu gosto o poeta amolda e doma,
Não é tarefa que de fácil se presuma;
Fá-lo aquele que entende os caprichos da rima
E fá-lo sem mostrar o mais leve sintoma
De que achasse, a vencer, dificuldade alguma.
Arthur, o caçador, monta o Pequira
E ei-lo se vai para a floresta à caça;
Grita uma paca ao vê-lo, de olho a mira:
— Fujam, que aí chega um caçador de raça!
Mas a notícia, célere, transpira
Por toda a vasta zona em que ele passa.
Ronca um porco do mato: — ai, se ele atira,
Que sangueira, que dano e que desgraça!
Mas não temais, ó bichos da floresta!
Das balas que levou nenhuma resta
A Tartarin; e ele vos deixa em paz;
E volta, cheio de cansaço e poeira,
Trazendo, em vez de pacas, a algibeira
Repleta de framboesas e araçás...
Poeta, se os olhos teus tivessem dentes,
Mirando aquele colo e aqueles braços,
Teus olhares carnívoros e ardentes
Neles, de carne, nem deixavam traços.
Teus olhos davam botes; — que serpentes!
Devassavam mistérios; — que devassos!
Iam de baixo a cima, renitentes,
Moles, famintos, lânguidos e baços...
Confesso que também alguns ligeiros
Olhares arrisquei; e, iguais aos nossos,
Outros vi, de sisudos cavalheiros.
Aquele colo e aqueles braços grossos
Voltaram, creio, incólumes e inteiros,
Mas reduzidos, moralmente, a ossos...
No mesmo colégio andamos
Eu e o Zeca — um bom rapaz —
Os mesmo jogos brincamos,
Sempre amigos, sempre em paz.
Zeca tinha muita sorte
De azar sempre andava eu...
Mas nossa amizade forte
Com isso jamais perdeu.
Mas com o demo! Mas com a breca
Que bruta sorte a do Zeca!
Juntos dois nos formamos
Com a mesma amizade antiga
E ambos nos apaixonamos
Pela mesma rapariga.
Zeca tinha muita sorte...
Eu sempre fui de um azar...
Foi ela a sua consorte
E eu cá fiquei a chuchar.
Mas com o demo! Mas com a breca
Que bruta sorte a do Zeca!
Passam-se anos. Meu amigo
Um belo dia morreu.
Ao seu derradeiro abrigo
Em prantos levei-o eu.
Mas... a morte é sempre a morte;
Com a viúva me fui casar...
Zeca teve muita sorte
Eu sempre fui de um azar...
Mas com o demo! Mas com a breca
Que bruta sorte a do Zeca!
Aqui termina o livro que compus
Não porque me pedissem: porque quis.
Chegando ao fim, confesso-me feliz
Pois, sem muito gemer, o dei à luz.
Ele a bem pouca coisa se reduz;
Porquanto, sendo escrito em português,
— A "língua de chorar" de meus avós, —
Pretendeu ser alegre e, aqui para nós,
Conseguiu-o, por acaso, uma só vez:
Foi na pagina... qual, sou lá capaz
De saber a que rir, leitor, te fez?
Tu sorris, afinal, do que apraz...
E eu... de um breve sorriso que me dês.