LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Amor por
Anexins, de Artur Azevedo
Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras digitalizadas
Entreato cômico
Esta farsa, entremez, entreato, ou que melhor nome tenha
em juízo, o meu primeiro trabalho teatral, foi escrita há mais de sete anos, no
Maranhão, para as meninas Riosa, que a representaram em quase todo o Brasil e
até em Portugal. Pô-la em música e em boa música, Leocádio Raiol; mas
ultimamente representaram-na sem ela, Helena Cavalier e Silva Pereira: desencaminhara-se
a partitura. Tem agora nova música, e não inferior, de Carlos Cavalier.
A. A.
PERSONAGENS
ISAÍAS, solteirão
INÊS, viúva
UM CARTEIRO
A cena passa-se no Rio de Janeiro.
Época, atualidade.
Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à
direita. Mesa à esquerda com preparos de costura. Num dos cantos da sala uma
talha d’água. Cadeiras.
CENA I
[INÊS]
INÊS (Cose sentada à mesa, e olha para a rua,
pela janela.) — Lá está parado à esquina o homem dos anexins! Não há meio
de ver-me livre de semelhante cáustico! Ora, eu, uma viúva, e, de mais a mais
com promessa de casamento, havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E
ninguém o tira dali! Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de
cena.)
Eu que, por gosto, perdido
Tenho casamentos mil,
Com mais de um belo marido,
Garboso, rico e gentil,
De um velho agora a proposta,
Meu Deus! devia aceitar?
Demais um velho que gosta
De assim tão jarreta andar!
Nada! nada!
Não me agrada!
Quero um marido melhor!
É bem mau não ser casada,
Mas malcasada é pior.
Ainda
hoje escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda
em que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui
está. (Lê.) “Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão
encontrá-la no gozo da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido.
Antes assim que amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela segunda vez. Ruim
é quem em ruim conta se tem, e eu não me tenho nessa conta. Jamais senti por
outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira.” (Declamando.) Que
enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler.) “Tenho
uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus melhora, e
mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada a ninguém, e
quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo
seu, Isaías.” (Guardando a carta.) Está bem aviado, senhor Isaías! Vou às
compras; é um excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins.
Vou preparar-me. (Sai pela porta da direita. Pausa.)
CENA II
[ISAÍAS]
ISAÍAS (Deita com precaução a cabeça pela porta do
fundo.) — Porta aberta, o justo peca. (Avançando na ponta dos pés.) A
ocasião faz o ladrão. Preciso estudar o gênio desta mulher: antes que cases,
olha o que fazes. Dois gênios iguais não fazem liga; se a pequena não me sai ao
pintar, para cá vem de carrinho. É preciso olhar para o futuro: quem para
adiante não olha atrás fica; quem cospe para o ar cai-lhe na cara, e quem boa
cama faz nela se deita. Resolvi casar-me, mas bem sei que casar não é casaca.
Alguém dirá que resolvi um pouco tarde, porém, mais vale tarde que nunca. Deus
ajuda a quem madruga, é verdade; mas nem por muito madrugar se amanhece mais
cedo. Procurei uma mulher como quem procura ouro. Infeliz até ali! Vi-as a dar
com um pau: bonitas, que era um louvar a Deus de gatinhas; mas... nem tudo o
que luz é ouro; feias também que era um deus-nos-acuda; mas muitas vezes
donde não se espera, daí é que vem. Quem porfia mata caça dizia com meus
botões, e não foi nada, que enquanto o diabo esfrega um olho, cá a dona
encheu-me... o olho. Pois olhem que não me passou camarão pela malha... Esta é
viúva e costureira... Estou pelo beicinho, e creio que estou servido. Quem já
deu não tem para dar, é certo; mas, ora, adeus! quem muito quer muito perde. Já
tomei informações a seu respeito: foram as melhores possíveis; mas como o saber
não ocupa lugar, e mais vale um tolo no seu que um avisado no alheio,
observei-a. Eu sou como São Tomé: ver para crer. Vi-a andar sempre sozinha... e
nada de pândegas! Dize-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens. (Examinando
a casa.) Boa dona-de-casa parece ser! Asseio e simplicidade. Pelo dedo se
conhece o gigante. Há de ser o que Deus quiser: o casamento e a mortalha no céu
se talham. (Reparando.) Ai, que ela aí vem! (Perfilando-se.) Coragem,
Isaías! Lembra-te de que um homem... (Atrapalhando-se.) é um gato e um
bicho é um homem! Disse asneira.
CENA III
ISAÍAS e INÊS
INÊS (Vem pronta para sair, ao ver Isaías assusta-se e
quer fugir.) — Ai!
ISAÍAS (Embargando-lhe a passagem.) — Ninguém deve
correr sem ver de quê.
INÊS — Que quer o senhor aqui?
ISAÍAS — Vim em pessoa saber da resposta de minha carta:
quem quer vai e quem não quer manda; quem nunca arriscou nunca perdeu nem
ganhou; cautela e caldo de galinha...
INÊS (Interrompendo-o.) — Não tenho resposta
alguma que dar! Saia, senhor!
ISAÍAS — Não há carta sem resposta...
INÊS (Correndo à talha e trazendo um púcaro cheio
d’água.) — Saia, quando não...
ISAÍAS (Impassível.) — Se me molhar, mais tempo
passarei a seu lado; não hei de sair molhado à rua. Eh! eh! Foi buscar lã e
saiu tosquiada!...
INÊS — Eu grito!
ISAÍAS — Não faça tal! Não seja tola, que quem o é para
si, pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue! Não exponha a sua boa
reputação! Veja que sou um rapaz; a um rapaz nada fica mal...
INÊS — O senhor, um rapaz?! O senhor é um velho muito
idiota e muito impertinente!
ISAÍAS — O diabo não é tão feio como se pinta...
INÊS — É feio, é!...
ISAÍAS — Quem o feio ama bonito lhe parece.
INÊS — Amá-lo, eu?!... Nunca!...
ISAÍAS — Ninguém diga: desta água não beberei...
INÊS — É abominável! Irra!
ISAÍAS — Água mole em pedra dura, tanto dá...
INÊS — Repugnante!
ISAÍAS — Quem espera sempre alcança.
INÊS — Desengane-se!
ISAÍAS — O futuro a Deus pertence!
INÊS — Há alguém que me estima deveras...
ISAÍAS — Esse alguém (Naturalmente.) sou eu.
INÊS — Era o que faltava! (Suspirando.) Esse
alguém...
ISAÍAS — Quem conta um conto acrescenta um ponto...
INÊS
— Esse alguém é um moço tão bonito... de tão boas qualidades...
ISAÍAS — Quem elogia a noiva...
INÊS — O senhor forma com ele um verdadeiro contraste.
ISAÍAS — Quem desdenha quer comprar...
INÊS — Comprar! Um homem tão feio!...
ISAÍAS — Feio no corpo, bonito na alma.
INÊS (Sentando-se.) Deus me livre de semelhante
marido!
ISAÍAS
— Presunção e água benta cada qual toma a que quer... (Senta-se também.)
INÊS (Erguendo-se.) — Ah, o senhor senta-se?
Dispõe-se a ficar! Meu Deus, isto
foi um mal que me entrou pela porta!
ISAÍAS (Sempre impassível.) — Há males que vêm
para bem.
INÊS — Temo-la travada.
ISAÍAS — Venha sentar-se a meu lado. (Vendo que Inês
senta-se longe dele.) Se não quiser, vou eu... (Dispõe-se a aproximar a
cadeira.)
INÊS — Pois sim! Não se incomode! (Faz-lhe a vontade.)
Não há remédio!
ISAÍAS (Chegando mais a cadeira.) — O que não tem
remédio, remediado está.
INÊS (Afastando a sua.) — O que mais deseja?
ISAÍAS — Diga-me cá: o seu noivo?... (Faz-lhe uma
cara.)
INÊS — Não entendo.
ISAÍAS
— Para bom entendedor meia palavra basta...
INÊS
— Mas o senhor nem meia palavra disse!
ISAÍAS
— Pergunto se... fala francês...
INÊS
— Como?
ISAÍAS
— Ora, bolas! Quem é surdo não conversa!
INÊS
— Mas a que vem essa pergunta?
ISAÍAS
(Naturalmente.) — Quem pergunta quer saber.
INÊS
— Ora!
ISAÍAS
(Sentencioso.) — Dois sacos vazios não se podem ter de pé.
INÊS
— Essa teoria parece-se muito com o senhor.
ISAÍAS
— Por quê?
INÊS
— Porque já caducou também.
ISAÍAS
(Formalizado.) — Então eu já caduquei, menina? Isso é mentira.
INÊS
— É verdade.
ISAÍAS
— Não é.
INÊS — É.
ISAÍAS — Pois se é, nem todas as verdades se dizem. (Ergue-se
e passeia.)
INÊS — Ah! o senhor zanga-se? É porque quer; não me
viesse dizer tolices! (Ergue-se.)
ISAÍAS (Interrompendo o seu passeio, solenemente.) —
Na casa em que não há pão, todos ralham, ninguém tem razão.
INÊS — Ora! somos ainda muito moços!
ISAÍAS
— Quem? nós?
INÊS
— (De mau humor.) — Não falo do senhor: falo dele...
ISAÍAS
— Ah! fala dele...
INÊS
— Havemos de trabalhar um para o outro...
ISAÍAS
— É bom, é: Deus ajuda a quem trabalha.
Canto
INÊS
— Sem desgosto viveremos,
Seremos
ricos, talvez;
Muitos morgados teremos...
ISAÍAS — Mas um só de cada vez...
(Zangado.)
A faceira
Talvez convidar-me queira
Para padrinho de algum!
INÊS
— E não suponha que, apesar de pobre, não me faça bonitos presentes o meu
noivo.
ISAÍAS — É! Quem cabras não tem e cabritos...
INÊS — Insulta-o?
ISAÍAS — Cão danado, todos a ele! Pois eu havia de
insultá-lo, senhora?
INÊS — Se estivesse calado...
ISAÍAS — Sim, senhora: em boca fechada não entram
mosquitos... mas é que o seu futurozinho me interessa...
INÊS — Muito obrigada. (Senta-se.)
ISAÍAS — Não há de quê. Se bem que eu não seja nenhum
Matusalém, estou no caso de lhe dar conselhos. Ouça-me: quem me avisa meu amigo
é; quem à boa árvore se chega boa sombra o cobre.
INÊS — Mesmo por já estar no caso de me dar conselhos, é
que o não quero para marido.
ISAÍAS — Se eu fosse jovem, não me havia de aceitar, por
estar no caso de os receber. Preso por ter cão e preso por não ter!...
INÊS — Não desejo enviuvar de novo...
ISAÍAS — Vaso ruim não quebra...
INÊS — Desengane-se, senhor: não são os seus ditados que
me hão de fazer mudar de resolução! (Passeia.) Oh!
ISAÍAS — (Acompanhando-a.) — Talvez façam,
talvez!... Devagar se vai ao longe... muito tolo é quem se cansa... (Inês
volta-se, param defronte um do outro.) Menina, antes só do que mal
acompanhado... Olhe que o pior cego é aquele que não quer ver...
INÊS (À parte.) — Vou pregar-lhe uma peta. (Alto.)
Mas se me faltasse este noivo, outros rapazes há que me têm feito
pé-de-alferes.
ISAÍAS — Águas passadas não movem moinhos!
INÊS — E entre eles...
ISAÍAS — O passado, passado!
INÊS — Não me interrompa!... E entre eles há um ricaço
que em outro tempo...
ISAÍAS — O tempo que vai não volta!
INÊS — Não me interrompa, já disse! E entre eles há um
ricaço que noutro tempo se esqueceu da promessa...
ISAÍAS — O prometido é devido!
INÊS — Ai, mau!... se esqueceu da promessa que me havia
feito; mas que está outra vez pelo beicinho...
ISAÍAS — Cesteiro que faz um cesto, faz um cento... (Movimento
de Inês. Com força.) Se tiver verga e tempo! E quem é esse... ricaço?
INÊS — É segredo.
ISAÍAS — Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz...
(A um gesto de Inês.) de homem! Mas faz bem, faz bem: o segredo é a alma
do negócio...
INÊS — O senhor tem na cabeça um moinho de adágios!
Passa!...
ISAÍAS — O que abunda não prejudica.
INÊS — Bem! Para maçadas basta. Mude-se!
ISAÍAS — Os incomodados é que se mudam.
INÊS — Mas eu estou em minha casa, senhor!
ISAÍAS — Descobriu mel de pau!
INÊS — Irra! Que homem sem-vergonha!
ISAÍAS (Examinando cinicamente a costura.) — Quem
não tem vergonha todo o mundo é seu.
INÊS — Se o meu noivo o visse aqui! Ele, que jurou dar
cabo do primeiro rival que...
ISAÍAS — Cão que ladra não morde... E eu sou homem!...
tenho força... E contra a força não há resistência!...
INÊS (Irônica.) — Ora, por quem é, não faça mal ao
pobre moço, sim?
ISAÍAS — Faço!... Quem o seu inimigo poupa às mãos lhe
morre. Julga que não estou falando sério? Uma coisa é ver e outra...
INÊS (No mesmo.) — Ora, não faça tal.
ISAÍAS — Faço! isto tão certo como dois e três serem
cinco. São favas contadas. Quem não quiser ser lobo não lhe vista a pele!
INÊS — Mas sabe que ele é valente?
ISAÍAS — Também eu sou! Cá e lá más fadas há! Duro com
duro não faz bom muro, e dois bicudos não se beijam!
INÊS — Ponha-se ao fresco, preciso sair; tenho que fazer
lá fora.
ISAÍAS — E eu tenho que fazer cá dentro. Um dia bom
mete-se em casa. (Pausa.) Olhe, senhora, olhe bem para mim, acha-me
feio: não acha?
INÊS — Ai, ai, ai!...
ISAÍAS — Eu também acho, e feliz é o doente que se
conhece. Mas muitas vezes as aparências enganam e o hábito não faz o monge.
Experimente e verá. (Suplicante.) Case comigo.
INÊS — Gentes!
ISAÍAS — Ah! se fôssemos casadinhos, outro galo cantaria!
Por exemplo: em vez de sair agora à rua, com este sol de matar passarinho,
mandava-me a mim, ao seu maridinho...
INÊS (Arremedando-o.) — Ao seu maridinho... (À
parte.) Oh! que idéia! Vou
me ver livre dele. (Alto.) Então, sem sermos casados, não pode
prestar-me um pequeno serviço?
ISAÍAS — Conforme o serviço: ponha os pontos nos ii.
INÊS — Se me fosse comprar três metros de escumilha.
Olhe... aqui tem a amostra...
No armarinho do Godinho... Sabe onde é?
ISAÍAS — Sei; mas quando não soubesse? Quem tem boca vai
a Roma.
INÊS — Está contrariado?
ISAÍAS — O que vai por gosto regala a vida.
INÊS — Tome o dinheiro.
ISAÍAS — Nada... não é preciso... (Vai saindo e
estaca.) Diabo! não me lembra um ditado a propósito! (Sai.)
[INÊS]
INÊS — Estás bem aviado... Quando voltares, hás de achar
a porta fechada. Safa! que maçador! Agora, tratemos de sair: são mais que
horas. (Aparece à porta um carteiro.)
CENA V
O CARTEIRO — Boa-tarde, minha senhora.
INÊS — Boa-tarde. O que deseja?
O CARTEIRO — Aqui tem esta carta... é da caixa urbana...
INÊS — Uma carta? (Recebendo a carta, consigo.) De
quem será? (Ao carteiro.) Obrigada.
O CARTEIRO — Não há de quê, minha senhora. Passe muito
bem!
INÊS — Adeus. (O carteiro sai.)
CENA VI
[INÊS]
INÊS — Ah! a letra é de Filipe. Faz bem em escrever-me o
ingrato! Há doze dias que nos não vemos... (Abre a carta e lê. Jogo de
fisionomia.) “Inês. Peço-te perdão por ter dado causa a que perdesses
comigo o teu tempo. Ofereceram-me um casamento vantajoso, e não soube recusar.
Ainda uma vez perdão! Falta-me o ânimo para dizer-te mais alguma coisa. Dentro
em uma semana estarei casado. Esquece-te de mim — Filipe.” (Declamando.) Será
possível! Oh! meu Deus! (Relendo.) Sim... cá está... é a sua letra... (Depois
de ter ficado pensativa um momento.) Ora, adeus! Eu também não gostava dele
lá essas coisas... Digo mais, antes o Isaías; é mais velho, mais sensato, tem
dinheiro a render, e Filipe acaba de me provar que o dinheiro é tudo nestes
tempos. Espero aqui o Isaías com o meu “sim” perfeitamente engatilhado! Oh! o
dinheiro...
Louro dinheiro, soberano esplêndido,
Força, Direito, Rei dos reis, Razão.
Que ao trono teu auriluzente e fúlgido
Meus pobres hinos proclamar-te vão.
Do teu poder universal, enérgico,
Ninguém se atreve a duvidar! Ninguém!
Rígida mola desta imensa máquina,
Fácil conduto para o eterno bem!
Aos teus acenos, Deus antigo e déspota,
Aos teus acenos, Deus moderno e bom,
Caem virtudes e se exaltam vícios!
Todos te almejam, precioso dom!
Inda hás de ser o derradeiro ídolo,
Inda hás de ser a só religião,
Louro dinheiro, soberano esplêndido,
Força, Direito, Rei dos reis, Razão!...
ISAÍAS (Entrando.) — Quem canta seus males
espanta.
INÊS — Já de volta! O senhor foi a correr!
ISAÍAS — Nada! quem corre cansa. Encontrei outro
armarinho mais perto.
INÊS (Tomando a fazenda.) — Muito obrigada. Quanto
custou?
ISAÍAS — Um pau por um olho. Mil e duzentos o metro...
INÊS — Pois olhe: o outro vende mais barato.
ISAÍAS
— O barato sai caro, e mais vale um gosto do que quatro vinténs.
INÊS — Regateou?
ISAÍAS — Regatear! Para quê? Mais tem Deus para dar do
que o diabo para tomar.
INÊS — Já vejo que é tão pródigo de dinheiro como de
anexins!
ISAÍAS — Da pataca do sovina o diabo tem três tostões e
dez réis. Poupa do sim,
sovina não. Eu cá sou assim! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tenho um só
defeito: quero casar-me. Cada louco com sua mania.
Hei sido um gato-sapato;
Preciso do casamento!
O maldito celibato
Não é viver, é tormento.
Quero honesta rapariga
Entre as belas procurar,
Muito embora o mundo diga:
Quem já andou não tem pra andar...
A existência de casado
Talvez venturas me traga,
Se diz verdade o ditado:
Amor com amor se paga.
Se eu for constante e fervente,
Ela tudo isso será;
Se eu amá-la eternamente,
Ela também me amará!
Eu escravo e a esposa escrava,
Viveremos sem desgosto;
Uma mão a outra lava
E ambas lavam o rosto!...
Faço-lhe
pela milésima vez o meu pedido. Nem todos os dias há carne gorda. A senhora
falou-me em um apaixonado. Por onde andará ele? Eu estou aqui, e mais vale um
pássaro na mão do que dois a voar.
INÊS (À parte.) — Levemos a coisa com jeito. (Alto.)
O senhor... (Com uma idéia.) Ah!
ISAÍAS — Oh!
INÊS — Já viu representar As pragas do Capitão?
ISAÍAS — Não, senhora. De pragas ando eu farto.
INÊS — Era um militar que praguejava muito. A senhora que
ele amava deu-lhe a mão de esposa, mas depois de estabelecer-lhe a condição de
não praguejar durante meia hora.
ISAÍAS — Falo em alhos, e a senhora responde com
bugalhos!
INÊS — Já lá vamos aos alhos: aceito a sua proposta.
ISAÍAS (Impetuosamente.) — Aceita?
INÊS — Sim, senhor.
ISAÍAS (Incrédulo.) — Qual! Quando a esmola é
muita, o pobre desconfia...
INÊS — Mas imponho também a minha condição...
ISAÍAS — Imponha: manda quem pode.
INÊS — Se conseguir levar meia hora sem...
ISAÍAS — Sem praguejar?...
INÊS — Não! Sem dizer um anexim! Se o conseguir, é sua a
minha mão.
ISAÍAS — Deveras?
INÊS (Sentando-se.) — Deveras.
ISAÍAS — Mas eu posso estar calado?
INÊS — Como assim?! Era o que faltava! Há de falar pelos
cotovelos!
ISAÍAS — Isso é um pouco difícil: o costume faz lei...
INÊS — Ai, que escapou-lhe um!
ISAÍAS — Pois o que quer? a continuação do cachimbo...
INÊS — Faz a boca torta, já duas vezes.
ISAÍAS — Nas três o diabo as fez.
INÊS — Ai, ai, ai! Vamos muito mal!
ISAÍAS — Mas não tínhamos ainda entrado em campo...
Aqueles foram ditos de propósito. Agora sim! Agora é que são elas!
INÊS — Outro!
ISAÍAS — Protesto! “Agora é que são elas” nunca foi
anexim. A César o que é de César!
INÊS — O senhor vai perder... Olhe: são duas horas. (Aponta
para um relógio que deve estar sobre a mesa.) Aceita o desafio? (Pausa.)
Bem. Quem cala consente...
ISAÍAS — Ah! agora é a senhora quem os diz! Virou-se o
feitiço contra o feiticeiro...
INÊS — Ai, ai!
ISAÍAS — Foi engano.
INÊS — Dos enganos comem os escrivães. (Pausa.) Então?
Diga alguma coisa...
ISAÍAS — O que hei de dizer... senão... que gosto muito
da senhora... e...
INÊS — Pois diga: vai tantas vezes o cântaro à fonte, que
lá fica.
ISAÍAS — Não me provoque, senhora, não me provoque!
INÊS — Cada qual puxa a brasa para sua sardinha...
ISAÍAS (Agitado.) — Brasa! sardinha! Oh! que
suplício!
INÊS — O que tem o senhor?
ISAÍAS — Nada... não tenho nada... é que esta proibição
me incomoda... Este maldito costume... parece que não estou em mim...
INÊS — Sabe o que mais?
ISAÍAS — Vou saber.
INÊS — Diga o que quiser! Abra a torneira dos anexins,
ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios... Fale, fale para aí!
ISAÍAS — E a condição?
INÊS — Caducou. (Dando-lhe a mão.) Aqui tem: sou
sua.
ISAÍAS (Contente.) — Minha! (Em outro tom.) E
os outros?
INÊS — Não existem, nunca existiram!
ISAÍAS — Pois estou acordado? Se estiver dormindo,
deixa-me estar: não me acordes.
INÊS — Está bem acordado.
ISAÍAS — Estou?! (Pulando de contente.) Então viva
Deus! Viva o prazer!... Trá lá lá rá lá! (Quer abraçá-la.)
INÊS (Gritando.) — Alto lá! Mais amor e menor
confiança!
ISAÍAS — E que o rato nunca comeu mel, quando come... (Outro
tom.) Pode-se dizer este ditadozinho?...
INÊS — Quantos quiser!
ISAÍAS (Concluindo.) —... se lambuza! (Tomando-lhe
as mãos.) E tu? amas-me, meu bem?
INÊS — Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido e
deixe o barco andar!
ISAÍAS — Apoiado. Roma não se fez num dia!
INÊS — E tenha sempre muita fé nos seus anexins.
ISAÍAS — É verdade: O que tem de ser tem muita força. O
homem põe... e a mulher dispõe!...
INÊS — Basta! Despeça-se destes senhores, e vá tratar dos
papéis...
ISAÍAS — Quem tem boca não manda... cantar. Mas, enfim...
(Ao público.)
Antes que daqui nos vamos,
Inês vos dirá quais são
Os votos que alimentamos
No fundo do coração.
Fazemos nestes confins
(Deita a mão sobre o coração.)
É que nos ameis bastante
Embora por anexins.
AMBOS — Muitas palmas esperamos
De vós:
Metade
para o autor, metade para nós.
(Cai o pano.)
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG