LITERATURA
BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Ao Entardecer, de
Visconde de Taunay
Edição de Referência:
Biblioteca Virtual da Escola do Futuro
Em dia fresco e de chuva miuda, viajava eu na
estrada de ferro Central.
Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que
parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora regulamentar.
A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço
– na phrase consagrada – por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e
grandes atrazos, e o jornadear, calculado por tabella official de paradas
certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.
Na estação do Cruzeiro, onde desde largos annos –ia
dizendo séculos – imperam o porte dominados, a alentada bengala, a enérgica
gesticulação e as barbas medieváes e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma
família, regressando de Caxambú.
Pae, mãe, bastante moços, esta
ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13 annos, visivelmente doente, duas
creadas, uma branca, outra preta, e um molocóte, vestido de pagem, muitas
malinhas de mão, chales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e aguas
mineraes, embrulhos com restos, sem duvida, da matolotagem, comida á descida da
serra.
Tudo aquilo ás carreiras se arrumou nos bancos
vazios ao lado e ao redor de mim.
Afinal, apitou a machina e partiu o barulhento
comboio.
Cançado de ler, exgotados os jornaes de S. Paulo,
parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel
comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, puz-me a
observar os recem-chegados.
No rosto de todos, a inquietação, concentrada no
menino que, apenas sentado, pedira para se deitar.
- Sinto-me tão fraco! Exclamou dolente. Não tenho
mais forças!...
E com muita solicitude, creadas e molecote,
auxiliando apressados os amos e obedecendo-lhes ás indicações, arranjaram os
meios de dar melhor commodo ao doentinho, cujos pés ião além do banco e se
contraiam de cada vez que passavam os empregados do trem.
Sim, doente, muito doente até. E tão sympathico,
tão meigo, uma expressão de tanta doçura na physionomia, nos olhos bem
rasgados, pestanudos, negros, scintillantes, mais do que há vida normal, uns
olhos de sofrimento e febre!.... Os labios como que reviam sangue, de tão
rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas,
da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do mallogrado Napoleão IV,
mostravão-se brancas, diaphanas, num grão de deploravel e significativo
descoramento.
Impressionaram-me logo de princípio os modos e as
observações do menino.
A cada momento, sorria para os pais com immensa
ternura, repassada de melancolia, ainda que n’essa continua e commovedora caricia
transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.
_ Apezar de tudo, disse todo superexcitado, estou
mais valente do que homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela
janella. Que pena! Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a
valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve
haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante
dos olhos... E eu, que fazia outra idéa da Mantiqueira... mais sombria, mais
cheia de buracões e pedras. Tão catita, que ella é!...
E buscando outra posição, gemeu surdamente.
_ Sentes muita febre, boy? Perguntou a mãe com
augustia.
_ Muita, não... já disse á mamãe, menos do que
hontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a serra desde o
tunnel até ao Perequê!...
_ Talvez a frialdade da agua te tivesse feito mal,
observou o pai; dous copos cheios...
_ Que mal, papai? Nunca bebi com tanto gosto,
nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquella agua devia curar-me afinal...
E como que em subdelirio:
_ Que bonita a descida! Como o céo estava puro! Eu
quizera poder, como um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando,
voando, por cima de todas aquellas montanhas e dobras e matarias! E o sol como
brilhava, com um calor tão bom, de saude; não como calor de febre! Lorena, não
é, papai? Já em baixo, na varzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a
vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto
remedio amargo!
_ Vamos pôr-lhe o thermometro? Propoz a mãe para o
marido com uma lagrima a cahir-lhe da palpebra.
Recalcitrou um pouco o pobrezinho.
_ Não, mamãe; sempre esta massada! Ficar parado um
tempão... e para que, afinal? Esta febre não quer me deixar... bem feliz se
puder ir vivendo com ella... me acostumando aos poucos.
Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou se
immovel e silencioso, com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.
E os olhos negros, pestanudos, scintillantes,
giravam de um lado para outro, enquanto a ponta da lingua em continua vaivem,
molhava os labios recequidos e greatdos pelo ardor da terrivel consumpção.
Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram
como que um sorriso de sympathia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por
estar assim doente, anniquilado, n’aquella inferioridade da molestia
triumphadora, invicta.
Embora um tanto casmurro na viagem e nada propenso
a entabolar relações com adventicios companheiros de caminho, não me contive e,
inclinando-me para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:
_ Desde muito enfermo este interessante menino?
Respondeu-me e senhora com verdadeiro açodamento de
quem acha uma valvula de expansão a constante e incompressivel sobressalto.
_Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor
imagina como boy era forte e são... dormia como um chumbinho... bom apetite
sempre, avido de movimento... Boy não parava..., travesso como um cabritinho,
muito bomsinho porém, sempre...
E boy isto e boy aquillo. Chamava-o assim desde
creancinha. A madrinha, muito dada a leituras inglezas, lhe puzera essa
appellido familiar...
_ De que não gosto nada, interrompeu o menino com
engraçada seriedade. Eu me chamo Alberto.
Mas a mãe continuava:
_ Haviam feito, no mez anterior, um passeio fatal á
chacara de uns amigos para os lados do Jardim Botanico, elle se agitara de mais
com os camaradas n’umas correrias sem fim, se resfriara...
_Brincaram perto de uma valla aberta de pouco,
explicou o pai...
_ A’ noite, perturbação de digestão, e desde ahi
uma febre tenaz, rebelde, que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um
desproposito!... um horror!... Depois continuas mudança, Gavea, Engenho Novo,
Cascadura, Barbacena, Caxambu, tudo sem resultado...
_ Não há tal, contradictou o pequeno, já estive
pior... E’não desanimarmos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer...
Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atrazo este tempo todo em pura
perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é
que hei de pegal-os agora?...
Não pensava n’outra cousa, ia-me dizendo a mãe,
enquanto as lagrimas, como que já por habito, lhe corriam a fio. Tão boa
creança, tão estimada de todos, estudioso... tanto estimulo! Uma ambição
insaciavel de saber... Muitas vezes se levantara ella da cama para apagar-lhe a
vela e fazel-o deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as
lições, ouvir os professores... Nunca se vira cousa igual... Tirara já bonitos
premios... livros muito dourados, com gravuras...
_ Já mamãe está falando de mim, interrompeu Alberto
com ligeiro tom de reprehensão. Este senhor há de desculpar... é de toda a mãe.
Não sou melhor do que tantos outros...
E o seu rosto emsombreceu-se.
_ Pelo contrario, valem mais do que eu, muito
mais...
_ Porque, meu amiguinho? Perguntei commovido.
_Oh! Elles têm saude; eu nunca mais hei de tel-a,
ainda que escape d’esta... Tambem, d’ora em diante saberei arredar-me sempre de
vallas abertas... Verdade é que me diverti tanto!
E recomeçava o sub-delirio:
Cada qual nascera com a sua sorte. O Carlinhos, que
cahira dentro do fosso e se molhara dos pés á cabeça não tivera nada... e
elle!... Quanto se rira, que boas gargalhadas déra, vendo o companheiro
atolado... Sahira sujo de lama, que era uma miseria... E a borboleta azul que
estavam perseguindo fugira, fugira; subindo muito alto... E as azas tinham-se
aberto largas, immensas, como um manto... tomando d’alli o pouco o céo todo, de
ponta a ponta... Tambem, que lembrança, querermos pegar o céo... o céo!
Ahi, fazendo um esforço sobre si, perguntou
impaciente:
_ Papae, não é tempo de tirar o thermometro? Está
me incommodando. Além da febre e sêde... esta caceteação!...
Era tempo.
_Quantos graus? Indagou a mãe com dolorosa
sofreguidão.
_ 38º e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor d o
que hontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.
Via-se porém, que encobrira a verdade, pois
destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que simultaneamente se
lhe estampava no rosto. Ao guardar o thermometro no estojo de metal, fez-me
imperceptivel signal.
Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no
cubiculo ao lado, poeirento e sujo toilette do vagão.
D’ahi a pouco, chegava o homem.
_ 39 e 8, foram as suas primeiras palavras,
pontuadas de terror.
E, acabrunhado, poz-me a contar o caso, banal,
diario, tão commum, mas sempre pungitivo da sua immensa desgraça. Esse menino,
a alegria da sua vida, a vida da sua mulher, ricos elles, sem mais objectivo
algum na existencia. Agora, aquella febre invencivel, que zombára de tudo e
lhes estava matando a adorada creança, debaixo dos olhos, dia por dia. Mudem de
ares, era o incessante conselho dos medicos; o recurso único que lhes restava.
E não faziam outra cousa; de um lado para outro, semanas inteiras. Para onde
mais ir? E os terrores em logares distantes, ermos, sem recursos, sem para quem
appellar, quando vinham acessos de estupenda violencia!...
Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o
tirava de um brazeiro... queimava... Como poderia por mais tempo resistir
organismo tão delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação porque?
Afinal, nem elle, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Porque os
esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna?
Confessava Ter sido sempre bastante orgulhoso dos haveres herdados e sobretudo
d’aquelle filho tão perfeito... Mas quem o fizera assim? Não fora a propria
natureza? Casára-se por amor com uma moça pobre, rejeitando propostas de
enlaces ricos. Nunca se arrependera, porém... haviam, até pouco, sido tão
venturosos! Parecia que a felicidade era um crime. A vida devia ser triste,
agoniada, passada em lagrimas e travada de amargos desgostos...
E ao dizer tudo isso, apezar de violento esforço,
tinha as palpebras molhadas. Via-se que aquelle homem sofria cruelmente,
sobretudo na altivez innata, ao ter que abrir o peito, por irresistivel
impulso, a um desconhecido que arvorava, na conturbação da sua dor, em amigo e
amigo intimo.
Pouco se importàra, a principio, com a tal febre,
não pelas affirmações, sempre tranquillisadoras, dos muitos medicos
consultados, a mestrança, portanto, graças a Deus, podia pagal-os
generosamente; mas afigurava-se-lhe impossivel, fóra de toda a ordem, lei e
justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara
isso pela mente... nunca!...
Um menino destinado a tanta cousa! Havia de ser,
por força, homem excepcional, conquistar as mais altas posições no Brasil,
dando prestigio á enorme fortuna que lhe era destinada... Herdeiro universal do
avô riquissimo, com duas tias solteironas, de que era o ai-Jesus, ambas com
muitas posses, quem podia contar com futuro mais brilhante?... Elles, os pais,
tinham de renda mensal nada menos de cinco contos e gastavam-na com regra e
prudencia, fazendo ás vezes apertadas economias, para que o Alberto na sua
carreira política jamais se preocupasse com o dinheiro, encontrando-o sempre á
mão... Tudo isso, tudo seria debalde? Arredava do espirito á possibilidade de
irremediavel desastre...mas...
E a custo lhe sahiam as palavras... mas a morte a
nada attende... a nada! É inexoravel!
Prorompendo então em soluçoso pranto, agarrou-se a
mim, convulsivamente.
_ Ah! meu filho, Alberto! Quanto é castigada a
minha soberba! Está perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias
ainda o hei de possuir?
Sacudi-o com certa energia:
_ Silencio! Sua senhora póde ouvil-o! Olhe, lave o
rosto; esconda os signaes da sua commoção. Naturalmente exagerava o perigo...
O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me
oppresso e alquebrado.
Quando voltamos aos nossos bancos, parecia Alberto
presa de agitado sonno. Pelo menos, tinha as palpebras cahidas, como que
prostradas por vontade alheia ao organismo.
Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas
veias – faces escarlates, beiços rubros, estremecimentos repetidos por todo o
corpo, fulgurantes. Relampagos de frio – assim nos dissera – lhe zigzagavam
pela espinha dorsal, contrahindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros,
descarnados.
_ Agua, agua, murmurou a custo, depois de algum
tempo e abrindo com sofreguidão os labios seccos, ávidos.
O molecóte, Apresentou-lhe rapido um copinho de
leite, cortado com agua mineral.
_ Mió, nhonhô? Perguntou baixinho com
expressão de tocante e inquieto interesse, miósinho.
Com um gesto de dedo, respondeu não o pobre
do menino.
Em extatica e inexcedivel desolação, o contemplava
a mãi, achegando os cobertores, quando um movimento mais impacientado e vivo do
doente os atirava ao chão, n’aquellas crudelissimas alternativas de algidez e
de inaturavel calor.
_ Apenas chegarmos ao Rio- disse ella para o
marido, que, sorumbatico, olhava pela janela a fugitiva paisagem – devemos logo
embarcar, fazer uma longa viagem de mar, talvez até á Europa...
Entreabriu Alberto os olhos e, em tom de ligeira
malícia, objectou:
_ Ora, a malvada embarcará comnosco... Está dentro
de mim; não me largará mais...
E o trem corria, corria! Entre Mendes e Rodeio,
engolfou-se no tunnel grande, acordando barulhos ensurdecedores, de fantasticos
ferros a se chocarem, sopros gigantescos, estalos enormes e suffocadora fumaça.
_ Mamãe... mamãe! Chamou o menino com indizivel
angustia.
E ella, inclinando-se toda sobre o malsinado, como
que a defendel-o de mysterioso inimigo, a chorar, o acalentava, qual creancinha
de berço.
Ia então desembocando em offuscadora claridade a
locomotiva, triumphante e a apitar estridente e galhofeira.
_ Como é boa a luz, como é boa! Exclamou Alberto
erguendo nervosamente a cabeça e com ar de verdadeira exultação. Pensei que ia
morrer. A morte deve ser assim; um tunnel, do qual a gente não sai mais nunca,
comprido, comprido e tão escuro, Santo Deus!... E onde a boa mamãe para animar
o filhinho... só, abandonado!...
Não sei por que, julguei dever intervir, como que
desvendar consoladora clareira ás negras idéas d’aquelle menino tão combalido e
ameaçado.
_Não, Alberto, repliquei com involuntaria gravidade
e imposição, na morte há tambem muita luz, muita esperança, muito céo, o
verdadeiro céo, sempre azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos
esperam a alma, como a vida não as póde dar...O tunnel acaba logo... começa
depois sem demora a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores...
Ilimitada é a bondade do immenso Creador!
E estaquei, vexado do que acabara de expender
na vivacidade espontanea daquella especie de preleção tão descabida.
Mostrára Alberto certa sorpreza ao ouvir essas
palavras, e, encarando-me muito sério, respondeu com resignado desalento.
_ Póde ser, póde bem ser... mas eu não quero ainda
morrer!...
E retrahiu-se ao silencio. De vez em quando tiritava,
encolhendo-se todo e a bater os queixos. Buscava, porém, cauteloso, dominar
manifestações que impressionassem mais os paes, attentos ao menor symptoma de
aggravação, tão attentos quanto impotentes e vencidos; pobres, pobres paes!
Passada a estação de Belém, já noite escura,
observou a mãi, para dizer qualquer cousa, que o trem não parava mais senão no
Rio, no campo da Acclamação.
Contrariou-a Alberto com inesperada alacridade e,
nos olhos subitamente accesos, pareceu Ter singular prazer em assentar
incontestavel verdade:
_ Não, senhora; pára ainda em Cascadura.
E como suscitasse duvida o que affirmava, eu mesmo
opinando contra elle, mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a
sua asseveração.
_ Você não se lembra, José, que o trem de São Paulo
costuma parar em Cascadura? Perguntou para o molecóte, levantando-se a meio.
_ Iô,
nhonhô? Respondeu o pagemsinho todo assarapantado, iô, não... ué!
E tal a figura atrapalhada do negrinho pela
obrigação de interpôr juizo no debate, que não pudemos, todos nós, deixar de
sorrir.
_ Que tolinho! Exclamou Alberto.
E deu uma risadinha gostosa. Depois cahiu novamente
em comatoso abatimento.
E, á luz vacillante, cheia de vaivens, quasi
sinistra das fumosas lampadas, o iamos observando, cada qual entregue a penosas
meditações que se concentravam, em doloroso accôrdo, n’um ponto único.
Identificado, como se fosse velho amigo, ou, mais
ainda, parente chegado d’essa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome
ignorava e nem sequer procurava saber, soffria com elles n’uma contensão dura,
cruciante, numa affinidade affectiva de maior intensidade e violencia.
Que viagem interminavel! Que hora aquella! Tudo tão
sombrio em torno de nós! Cessara a chuva; mas as trevas humidas, gottejantes,
se condensavam carrancudas, caliginosas, como que palpaveis. E a cada estação
eram apitos e assobios de perfurarem os ouvidos, ou então clamores angustiosos
e um bater de sino melancolico, lugubre, a dobrar finados.
_ Ainda por cima este agouro, murmurou uma das
creadas num como muchôcho.
Em Cascadura parou, com effeito, o expresso,
e um trem de suburbios com elle cruzou n’um estrondear ensurdecedor de
fragorosos gritos, uivos e sibillos, como que a annunciarem pavoroso e
iremediavel desastre, choques horriveis, encontro medonho.
_ Boy, boy, clamou a mãi simulando certo
jubilo, você é que tinha razão! Olha...
_ Nhonhô, nhonhô, avisou por seu turno o molecóte
achegando-se e puxando de leve o doentinho por um braço, tá hi
Cascadura.
Conservou-se Alberto inerte, indifferente, suspirou
apenas com mais força.
_ O tunnel... o tunnel... Depois vem luz e céo...
Bem me disse o homem...
_ Não será bom vêr o thermometro? Propoz a mãi com
respiração cortada, offegante.
_ Não, mamãe, pelo amor de Deus, poude ainda
implorar o pequeno.
Já ahi entraramos na zona dos suburbios e os
lampeões de gaz, cada vez mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As
estações todas illuminadas, cheias de borborinho e animação populares. Numa
d’ellas tocava uma banda de musica saltitante peça e o contraste d’esses
allegres compassos mais me apertou o coração.
Revoltava-se, comtudo, o meu egoísmo. Que
necessidade essa de me associar a todo aquelle drama intimo, que me trazia tão
consternado enquanto me abalava o systema nervoso? Por que não mudava de logar,
não procurava outro qualquer vagão? Afinal, não era aquillo tão comesinho? Não
assistira a tantos episodios de agonia e morte? Mais uma criança que
desapparecia no barathro insondavel... para dar razão ás estatisticas. Que
importancia no desenrolar geral da existencia? Gotta d’agua pura e crystalina a
cahir no abysmo... Não era, mesmo por isto, um afortunado da sorte? Sahia da
vida sem as miserias e desillusões que a vão assaltando... limpo de toda a
poeira e lama...
Procurava distrahir o espirito; mas ahi se me
prenderam as vistas insistentes, teimosas, hypnotisadas aos olhos então
largamente abertos de Alberto, não mais desassocegados e em tresvario, mas num
movimento lento de oscillação, como que destacados das orbitas a se mexerem um
tanto ao acaso. De quando em quando parecia que se sumião, cahidos, sem mais
apoio, dentro do craneo vasio, oco. E me diziam, assim mesmo, tanta cousa, me
falavam de tantos mysterios, me interpellavam com tamanha anciedade!...
Interrogavam supplices, meigos, quem, em boa hora,
lhe déra do mundo de além idéa outra, que não de simples terror e aniquilamento
para sempre, n’aquelle instante tão proximo da suprema partida.
Sim, devéras, lá, fóra d’aqui, tambem sóes, tambem
flores, esperanças, carinhos? Tambem o aconchego doce, protector de entes bons,
superiores, compassivos? Palavra?! Podia confiar? Não o quizera enganar... A
leval-o d’alli a pouco, longe, longe, pela immensidade na desconhecida viagem,
o regaço de algum anjo, faria vezes da estremecida mãi? Para que, porém,
deixal-a? Para que despedaçar o coração d’aquelles fulminados pais? Amavam-n’o
tanto, tanto!
Quem incutira, porém, a esse homem desconhecido o
poder de saber quanto se passava da outra banda da vida? Talvez fosse um
d’esses anjos destinados a carregal-o, não era?... Ah! o disfarce mostrava-se
bem claro! Por que, porém, não se deixava enternecer? Não via a pungente dôr
dos que o cercavam? Pedisse a Deus misericordia... consentisse-lhe o viver... A
ninguem, nunca fizera mal algum... Promettia tudo... não por elle, mas pelos
paes... Passaria os annos a estudar, a dispensar o bem, o amor, a pagar a
divida solemne de interminavel gratidão! Senta quieto, reflectido, honesto,
caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...amigo dos humildes, dos
mendigos e desgraçados!... Mas tivesse pressa... do contrario não o acharia
mais na terra... Bem sentia a morte...sim, a morte...
Passou mais um trem de suburbios com assustador
estampido:
Ouvisse, ouvisse!... Ahi vinha ella... Que medo!...
E já estava como que sosinho... via-se na cova estreitra com um mundo de terra
por cima do seu corpinho tão batido pela molestia!
_ Não, não! Havia de Ter coragem... dominava o seu
terror, embora bem justo, bem natural!... Creança, saberia morrer como homem...
Poderia estar chorando nos braços de pae e mãe, mas para que? Para tortural-os
mais? Quem sabe se não haviam de morrer tambem alli! Viessem, viessem para
cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria no cemiterio, alvo,
consolador com tantos cruzes e anjinho de marmore a rezarem.
Debalde buscava eu fugir à obsessão. Duas vezes me
levantei; mas irresistivelmente voltava a conversar com aquelles olhos, cada
vez mais resignados, penetrantes e de dolorosa eloquencia, cheios de sorprezas,
desconsolos e revoltas, com energia sopitados...
É preciso, é preciso; que fazer?
Bem quizera estar pensando, como menino, em cousas
futeis e risonhas e da sua idade, mas tinha por força que cuidar no que há de
mais serio e triste, na morte... morte!
E já as pupillas negras, virando de vez em quando,
se escondiam sob as arcadas orbiculares, buscando vêr além, para dentro do
pobre organismo combalido... E já se fixava, no bater lento das paloebras
pesadas, plumbeas, impenetravel, o branco das escleroticas, como alvacento
panno cahido de scena finda, acabada...
E os bicos de gaz illuminavam de fóra,
intermitantemente, o vagão, como que em fantasmagorica visita, dando repentina
luz a todos os recantos ou deixando-o de subito em completa escuridão...
Iamos chegando, e no rostosinho de Alberto se
desdobrava o pallor dos ultimos instantes. Desbotava-se a rubidez das faces
incendidas e afilava-se, a mais e mais, o nariz correcto, aquilino.
Já a luz electrica chegava até nós.
E o trem estacou com o baque de definitiva parada,
salteado pelos carregadores em grita: “Malas, malas! Bagagens! N. 20, n. 53!”
_ Leve ao hombro o seu filho, disse eu para o pae,
elle está...
E a palavra “expirando” ficou-me atravessada na
garganta.
Parado, immovel, os vi partir, a todos. O pae, na
frente, com o sagrado fardo, a mãe, tropega, fóra de si, no braço das creadas
em soluços, atraz o molecote com cobertores e chales...
E no vagão vazio, como que continuei a fitar
aquelles olhos ardentes, indagadores, tão suaves no ingente desespero, na
duvida do problema eterno...
Poor boy, alas!
Ciganinha
(A Affonso Celso, primorosa escriptor)
Chamavam-lhe Ciganinha, e a principio tambem
Magriça.
Exasperava-a, porém, este apellido. Quando o ouvia
“ó, magriça!”voltava-se rapida, furiosa, com os olhos a chammejar, e torcia a
cara toda nuns esgares muito feios de bruxa velha, botando para fóra uma lingua
de palmo, fina, comprida, serpentina. Soltava até grossas palavradas.
Com a outra alcunha não se importava. Erguia os
hombros num gesto de expressivo pouco caso e concordava resmungando:
_ Se sou mesma!
Por lei fatidica dos
contrates, havia recebido na pia baptismal o nome, que nunca devêra confirmar,
de Angelica – d’ahi Gêgéca ou Gégéca, como costumava dizer a mãe, abrindo os ee
de modo especial e descançado, e accrescentando sempre com languido suspiro de
pezar:
_ Um diabrete, esta ménina.
Desde bem pequena, mostrara com effeito, indole
muito independente, genio violento, amigo de fazer as suas quatro vontades,
audaz, altivo e arrebatado, de par com muitos cahidos e engraçadas momices e
caricias com quem lhe cahia no gôto, ou permanentemente ou em horas de
caprichoso bom humor.
Positivamente endiabrada, só gostava de andar á
volta com rapazes e molequinhos, garotos de sua idade mais ou menos, furando matagaes,
correndo pelas varzeas, espojando-se na relva, deixando-se rolar pelo barranco
de areia até quasi dentro do rio, largo, magestoso, esfrangalhada sempre, com
as saias em molambos, o corpete a lhe cahir pelos hombrinhos magros,
descarnados, as pernas á vista, núas, nervosas, esgalgadas, pés no chão, um
tanto grandes e maltratados, mas não espalmados e chatos.
Até perto dos 14 anos, ninguem como ella, a
Ciganinha, para trepar nas arvores e apanhar frutas ou excogitar e descobrir
ninhos de passarinho na ramagem mais folhuda e entrançada e pôr-lhes o gadanho
em cima.
Agil como um sagui, leve que nem miudo e gracioso
caxinguelê, eram de ver-se o geito e a firmeza com que sabia agarrar-se ao
tronco liso e escorregadio das jaboticabeiras do matto e descascadas
goiabeiras, indo sem vacillar pelos galhos abertos até aos ramos mais finos,
que sacudia com vigor, para fazer tombar alguma goiaba teimosa e longe da mão
avida, impaciente.
E lá ia tambem pelas larangeiras acima, uma perna
aqui, outra acolá, escarrapachadas, sem se lhe dar com os espinhos agudos,
minazes, alcançando n’um apice as franças mais flexiveis e perigosas.
_ Não quero que olhem para cima, bradava lá do
alto, imperiosa, aos companheiros agrupados em baixo, á espera dos pomos que ia
colhendo e arremessando.
Obedeciam-lhe de prompto, porquanto o rosto de
algum mais curioso e petulante ficava logo sujeito a moralisador e temido
castigo e bombardeio.Para prova, o filho do Manéca Fructuoso, que se vira em
risco de perder o olho esquerdo, quasi vasado por uma laranja verde, atirada
com pulso vigoroso e afeito a acertar no alvo.
Muitos dias ficára como exemplo aquella face
inchada e rubra, á maneira de uma bóla vermelha; e a todos explicava o
ludibriado dono:
_ Artes do demonio da Ciganinha; mas há de
pagar-me, tão certo como dous e dous são quatro.
Quédas a valer levára ella das continuas e
atrevidas ascensões, mas com tão pouco não se occupava. Passado o atordoamento
do baque em sólo duro, e compondo-se depressa, pulava de contente ao verificar
que ainda d’essa vez não ficára com membro algum partido ou deslocado, tendo em
nenhuma conta arranhaduras fundas e dolorosas contusões.
No meio de todos esses desmando e reparaveis
extravagancias, singular recato, instinctivo e selvatico pudor. Assim, jamais
acceitara tomar, de dia, banho no rio, em sucia e duvidosa promiscuidade com os
camaradas de travessuras. Banhava-se diariamente, sim, mas sósinha, á hora em
que a tarde ia se fechando noute, e sempre protegida por frondoso salgueiro,
que ainda mais ensombrava a bacia natural, onde immergia o gracil e delgado
corpinho.
Uma feita, já bem
crescidinha, voltara á casa coberta de sangue vivo, uma grande brecha aberta na
cabeça.
_ Não é nada, mamãi, affirmava toda exultante, com
feição de legitimo triumpho: uma batalha de pedras, bonita como tudo, com os
filhos da Narcisa Mofina. Del-lhes que foi um regalo. O Juca anda sempre me
chamando para as bibócas, a fazer-se de cebo commigo, pois bem, levou até ao
céo da bocca. Eu... contra quatro, hein? Não arredei pé enquanto não os
debandei. Só agora é que senti que me tinham tirado mel da cachola... Canalhas!
E ainda se esgrimia exaltada, a pôr em fuga os
numerosos adversarios.
Não cabia em si de ufana.
_ Quatro, mamãi, quatro contra a filhinha de seu
coração!
_ Mas, menina, observava com tom plangente e
arrastado a pobre da mãe, isto lá são modos de raparigas? Onde vai vance parar?
Que désgostos me esperam mais n’esta vida de sópplicios? Não
basta o que tenho soffrido?
E desatava a chorar.
Muito dada a lagrimas essa D. Cula, diminutivo de
Clotilde, usual em todo o interior do Brasil; muito choramingadora, a boa da
mulher, Tambem, havia sido tão desventuroso na sua existencia penosa,
solitaria, predestinada aos abandonos!
Sempre feia, desenxabida, esgaivotada, pallida como
cêra, n’um emaciamento desconsolado de penuria constante e aniquiladora, era
filha de casal pauperrimo, que a deixára orphã bem cêdo, sem um cobre (1) no
fundo de velha bruáca.
Vivera ao Deus dará, muito quietinha, retrahida e
medrosa a curtir negra miseria de contorcer estomago e intestinos, e
aguentando-se como podia com umas costurazinhas e bordados de crivo, que lhe
pagavam uma ninharia.
Viéra, depois, um cigano de arribação, muito
prestimoso e bulhento, atirado a conquistador, e, sem mais nem menos, se mettera
com ella, procurando sobretudo explorar-lhe o trabalho e obrigando-a a fazer
doce de fruta de lobo, vendido aos tropeiros como marmelada, e mais
sequilhos e bolos de arroz e milho.
Quasi nada rendia o tal negocio, porque, além de
tudo, o malandrino, guloso e glutão por natureza, comia o melhor do que
pretendia expor á venda. Então, com grande dó e escandalo da vizinhança,
começou a infeliz a ser, dia e noite, quasi sem intervallo, malhada pelo patife
do amigo. Quanta bordoada! Que sovas de moerem os ossos!
De repente, após muita barganha aladroada,
falcatruas vergonhosas e innumeras dividas contrahidas a torto e a direito,
desappareceu o desbriado cigano- e para todo sempre. Foi-se embora, sem dizer
adeus a ninguem, internando-se pelo sertão fundo. Corria depois que acabara ás
mãos dos indios Affonsos, o que de certo bem merecera.
Signal da sua passagem, além do volumoso
abdomen da Cula, só um cofresinho de bom peso e fechado com cadeado de segredo
cabalistico, que a abandonada conservava com mysterioso cuidado e sério terror
de feitiçarias.
(1) Quarenta réis
Em todo o caso, ficara a coitada gravida
e só tinha de seu a casinha de esburacadas
paredes de
adôbo e cobertura de sapê na barranca do rio,
casinha em que de pancada lhe haviam morrido pae e mãe, e testemunha
indifferente das colossaes e repetidas tundas. Ella ignorava até se lhe
pertencia ou não.
Do terreirosinho de costume muito varrido e limpo,
se via de fronte o Paranahyba, todo espraiado, solemne, raramente ludroso,
quasi sempre puro e de aguas claras, a reflectir, como que em espelho animado e
corredio, tudo quanto se passava lá em cima, no Céo de Nosso Senhor Jesus
Christo e da Santissima Virgem Maria. No alto e embaixo, que combinações de
cores, ao esplendido arrebol da manhã e da tarde nas multiplas mutações e
phantasmagorias das nuvens leves e doudejantes ou pesadas e immoveis,
illuminadas pelo descambar do sol!...
Ao brilho sereno do luar, então, que encantos, que
quadros formosos, diversos, cambiantes, ora meigos e risonhos, ora
melancolicos, quasi sombrios, de deixarem a gente cheia de scismas tristes e
presagas!...
Da calmorreada e soffredora Cula se apiedaram,
porém, os vizinhos; e cada qual a ajudou como poude – uma galinha idosa, meia
duzia de ovos, ou uma cadeira furada, um catre de couro já inservivel, chicaras
e pote esborcinados, miudezas e trastes de refugo, em extremo usados, quasi de
todo imprestaveis.
Todos eram tão pobres!
A pouco e pouco, nascida a Gêgéca, foi se tornando
D. Cula estimada, credora até de certa consideração, sempre muito séria e digna
nos seus extremos apuros e necessidades, activa ao seu modo e fazendo quanto
podia pela vida.
Entretinha relações de amisade com familias boas do
logar, que lhe pagavam as visitas; e, quando o vigario do Curralinho vinha até
o povoado, parava sempre lá para apreciar o seu cafésinho gostoso e quente,
embora em chicara de folha de Flandres, que esfria depressa a bebida, queimando
osbeiços de quem a toma, cafésinho acompanhado de umas brôas e brevidades
muito bem feitas, pois ninguem as preparava melhor do que ella, após as severas
e tão accentuadas lições do perfido e brutal amante.
E assim se iam os dias escoando.
Segredavam as más linguas, e á frente de todos
mexericava com sorrisos ironico e ares de desprezo o José Bispo, dono da venda
mais bem sortida e afreguesada, que, alta noute, não havendo luar, costumavam
rondar a porta da sisuda D. Cula certos vultos suspeitos, talvez o vigario ou
gente mais limpa e apatacada das tropas e boiadas, por alli de pouso, antes de
transporem o grande rio.
Quem está, porém, livre de calumnias e denigrações?
Depois da sua primeira e sabida desgraça, tinha a
mulher tanta compostura e tão resignada dignidade que só mesmo a bisbilhotice
de aldeia podia esmerilhar duvidosas hypotheses, levando a mal as taes visitas,
ainda que a deshoras. E a miseria e a fome...bem más conselheiras!
Demais, já dissemos, não era nada appetecivel,
descorada e pamonha como tudo, nos modos e no fallar.
Com sotaque molle e cantado fazia justiça a si
mesma, em invencivel desalento e abandono:
_ Eu sou tão enjóada! Quem há de me quérer?
Devia, com effeito, a peste do cigano ter sido das
arabias, ou sel-o ainda, caso houvesse escapado das unhas dos temidos indios
Affonsos.
Fizera da natureza apathica, dorminhoca, congochosa
da Cula surdir, para pasmo constante de todos, lepida, escorreita, andarilha,
em continua mexonada, a Gêgéca, a Ciganinha, cousa totalmente diversa,
opposta, antinomica, um azougue, uma agua viva, legitimo producto do tinhoso.
Não podia estar quieta e parada dous minutos, com
uns modos azoinados, bruscos, espontaneos, selvagens.
Tinha, positivamente, bicho carpinteiro em certa
parte do corpo, que a gente de lá designava com a maior sem cerimonia.
E bem falante, muito explicada, respondona como a
maior das malcreadas, sempre com a palavra do Cambronne na boca, prompta para
desferil-a, como se estivesse no quadrado da guarda imperial, em Waterloo,
replicando á intimação dos inglezes.
Uma occasião em que a mãi, toda lacrimosa a
reprehendia, accusada, como fôra, de ter furtado um pombinho nuélo á Maria
Rabolona, lavadeira no porto, umas casas abaixo:
_ Não fui eu, defendia-se, nunca minto... se o
tivesse surrupiado, confessava... Já lhe disse... não fui eu.
E como D. Cula insistisse,
amaldiçoando as escapadas e traquinices já bastante graves, atirou-lhe ás
bochechas:
_ Ora, mamãi, de que serviu também mêcé ter sido
sempre boa, socegada, mettida comsigo, uma santinha? O malvado do cigano não
lhe fez mal, não a surrou como boi corneta e não a deixou de vez com a pança
cheia?
_ Menina! Bradou D. Cula aterrada levando as mãos á
cabeça, quem te ensinou tudo isso? Olha, diabinho, Deus te há de castigar!
Santo Christo, que será de nós?
_ Deixe-se d’isso, replicou philosophicamente a Ciganinha
correndo já para a porta, Deus tem muito em que cuidar. Quando se lembrar de
mim, já a raiva terá passado... A Maria Rebolona, que não se faça de engraçada
commigo... Sujo-lhe, num dia de chuva, toda a roupa estendida no gramado... Hei
de avisal-a uma vez por todas...
Esse furto do pombo nuélo... Para que insistir-mos?
... Por acaso, D. Cula não teve sempre bons caldos, quando esteve tão doente?
Quasi esticára a canella, coitadinha, sem cirurgião ou curandeiro, que a visse
por caridade, nem remedio nenhum, nenhum para tomar!- E melhorsinha, não comera
pratazios de arroz bem cozido, em que se poderiam vêr ossadas bastante
suspeitas, até de gordas galinhas?
Chegou a beber seus calicesinhos de vino do Porto,
comprado a 2$ o martello na venda do José Bispo, o que serviu, semanas e
semanas, de thema a muita historia gaiata, longos commentarios e malevolas
conjecturas.
Pois, senhores, tudo falso e
inventado, quanto ao vinho, pelo menos. Querem saber a verdade? Por Deus Nosso
Senhor Jesus Christo, que está nos vendo e nos ouvindo.
Disséra um tropeiro para D. Cula:
_ Vancê, dona, do que precisa é tomar todos
os dias uns dous bons dedos de vinho do Porto, da venda... Sem isto, não
sára... não pode arribar tão cedo.
_ Mãi de misericordia! Retrucava a agorentada
martyr, que é da cobreira para comprar a tal mézinha?...
_ Há de se arranjar, declarou Gêgéca, que se
impressionara com o conselho.
E como costumava a miudo sopesar curiosa o
cofresinho esquecido pelo trastalhão do cigano, n’esse dia o levou ás
escondidas para fóra de casa e o arrombou no cerrado, sem a menor
hesitação.
_ Vamos ver, disséra para si, o que nos deixou o
sem vergonha do meu pae.
Achou umas bugigangas,
galhosinhos de arruda seccos, umas pedras redondinhas pretas e verdes, tres
figas de madeira poida e dous collares compridos de ouro ou prata dourada, além
de muitos papeis com signaes esdruxulos, triangulos, meias luas, crescentes e
estrellas rabudas.
_ Diabo o leve, o bruxo, ou o guarde por lá!
Exclamou persignando-se, um tanto assustada. E, recolhendo só o que para ella
tinha valor, jogou o mais dentro do rio, em logar bem fundo.
Tratou logo de reduzir a dinheiro um dos collares,
guardando o outro para si ou para maior de espadas, e foi propôr a venda a um
boiadeiro pachola, que se gabarolava de apatacado.
_ Onde campeou vancê isto? Perguntou o homem
olhando-a de esguelha, todo desconfoado. Passou a unha?
_ Não é da sua conta, siô besta, foi a resposta.
Quanto quer dar pelo lavrado?
Propoz quantia visivelmente ridicula. Acordado,
porém, o instincto do negocio no sangue cigano, conseguiu a menina o dobro do
primeiro preço.
E assim póde a chlorotica mãi, a quem tudo logo
contou, saborear os seus dedosinhos do apregoado e luxuoso vinho do Porto.
_ Mas, filha dos meus pecados,
observou assombrada, quem nos diz que no cofre não havia mandinga? As
desgraças vão chover em cima de nós duas...
_ Qual! Foi muito bom; acabou-se agora a caipóra...
Mecê verá!...
_ Santa Rita nos proteja!... Se aquelle homem por
cá aparecer, dá cabo de nós, não há que duvidar... a poder de tanta bordoada.
Fez a Ciganinha significativo gesto de mófa
e incredulidade:
_ O diabo não é tão feio
como se pinta... Elle que venha!... Há de ouvir boas... da minha boca!
E partiu em disparada, chilrando como um
pintassilgo.
Atirava Gêgéca bodoque como poucos e lá ia com uma
sacóla de bolas de barro pelas mattas, de onde voltava sempre com alguma caça,
papagaios, tucanos, grallias e um ou outro mutum, que vendia por dous cruzados,
ou até vinte e cinco cobres a algum dono de tropa.
Preferia mil vezes essas correrias com meninotes de
sua idade, já então taludinha, a ficar estatelada á porta da casinha de sapê,
resguardando das moscas e vigiando o taboleiro de sequilhos e brevidades,
á espera dos possíveis freguezes. E, genuina herdeira do espirito guloso e
petiscador do pai, não vendia um bolinho, que logo não roesse um bocadinho,
dous ou tres na parte inferior, menos visivel.
Admitia sem pieguice muita graçola, até pesada, e
ria-se com gosto, mostrando os dentes bonitos, alvos, iguaes – cousa rara no
interior – quando á sua vista contavam historias e anedotas bem crespas; não
lhe tocassem, porém, no corpo, lá isto não. Tinha a mão leve como tudo e dava
bofetadas de estalar aos que lhe beliscassem os quadris e as pernas, ainda bem
finas. Musculosa e ligeira, passava então taes rasteiras, que os gaiatos e
pelintrotes iam ao chão com grandes batecús e lá ficavam chiando de dôr, no
meio das estrepidosas vaias do rapazio.
Não falassem mal da mãe, não se atrevessem a
agarral-a de certo modo, ou não lhe fizessem propostas equivocas, era
incontinenti uma surriada de nomes feios e cabelludos, capaz de pôr tonto
qualquer soldado tarimbeiro. E por cima, muitas caretas e ademanes violentos de
desafio e ameaça, com energicos bamboleios de capoeiragem.
Sempre mal ajorcada, esfarrapada, as faces meio
sujas, as unhas caireladas, cabellos desgrenhados, rebeldes, todos em caracóes
e calamistrados, verdadeira gaforina, fincava n’elles uma flôr vermelha, algum
mimo de Venus, e passeava serena o orgulho da sua raça, quando não dava
cabriolas caprinas ou fazia mil maluquices, na expansão dos inesperados
impetos.
Voz geral no povoado:
_ Esta rapariguinha leva a bréca de repente; acaba
muito mal. Pobre da D. Cula, que filha lhe pôz nos quartos o maldito do cigano!
Cruzes! Devéras, caipora assim é tambem demais... Talvez, o cujo fosse o diabo
Pelo que se vê, as surras de outr’ora haviam
entrado nas tradições populares. Tambem não poucas mulheres de má vida, as fadistas,
nas brigas com os tropeiros e scenas de ciumes, avisavam provocadoras e
afoutadas:
_ Olhe, sió moço, não sou nenhuma D. Cula. Para cá
vem de carrinho. Tire o seu cavallo da chuva, ouviu? Commigo nada de farófa...
Depois queixe-se ao bispo!
Tudo isso, tão longe, tão longe d’aqui, na villa de
Santa Rita de Cassia, a margem direita do bello rio Paranahyba, na minha pobre
e formosa terra natal _ Estado de Goyaz!...
Transportada a larga corrente n’uma balsa de duas
compridas canôas encambu lhadas por pranchões atravessados e um soalho por
cima, chega-se a uma praiasinha de areia fina - o porto de onde se empina
elevado barranco. Alguns bonitos salgueiros por perto. E n’aquella balsa
viajam, de um lado para outro do rio, homens e cavallos de sella ou bestas de
carga, então desarreadas e só com as cangalhas de páos de forquilha assentes em
chumaço grosso de macéga secca.
A boiada, muito chifruda, com os cornos compridos e
bem abertos, ás vezes elegantes lyras nas graciosas curvas, boiada goyana,
forte, grande, passa a nado; e os boiadeiros e camaradas a vão tangendo, na
diagonal da travessia, com uma grita immensa, que rebôa pela matta.
Refuga a principio o gado, apertado pela gente a
cavallo que montada em pello o toca e estimula, o pica e com elle se atira
dentro d’agua, afinal se decide agoniado e lá vai em denso cordão com cabeça
bem levantada, olhos aterrados e bocca offegante a deitar ruidosa respiração. A
extremidade oposta do pesado ruminante não mergulha tambem, surde e como que
seagita inquieta, presentindo perigos. É que, segundo voz geral, se aquella
parte do corpo, em que a Ciganinha tinha bicho carpinteiro, se molha, está
irremissivelmente perdido o pobre animal. Singular destino! Caso digno do
estudo dos entendidos e sabios!
De vem em quando, lá se destaca um boi e busca
voltar á margem segura e protectora, ou então roda de uma vez, embrulhado pela
violenta corrente do Paranahyba.
Levanta-se então brado de interesseira angustia e
gananciado desespero, não de piedade pela triste victima: _ Lá vai um; lá vão
dous! – E os camaradas azafamados apressam, com gestos e clamores a mais e
mais, a passagem, até que o guia tome pé na borda de lá.
Em cima logo do porto de Santa Rita de Cassia, uma
esplanadasinha de grama verde e folhuda, largo fechado nos tres lados por
linhas de pobres, casinhas terreas, algumas de telha, quasi todas de sapê.
No fundo, frente para o rio, a matriz, uma
igrejasinha baixa, rebocada de annos e annos, com um sino rachado á esquerda,
suspenso a uma especie de telheiro acaçapado, a cahir de podre.
E, ao redor da praça, assim pomposamente chrismada,
estendendo-se para aqui e acolá caprichosamente, umas moradasinhas, quasi
sempre de porta e duas janellas desguarnecidas de vidraças, moradasinhas bem
caiadas e alvas, encravadas em copado laranjal. Entre si, communicam por
tortuosas trilhas, que no tempo de florescencia ficam embalsamadas a pôr tonto
um christão.
Nessas laranjeiras canta pela manhã e á tarde um
mundo de maviosos sabiás, a que respondem os bandos de afinados e sibilantes
caraúnas posados nas palmeiras indaiás, que alli ficaram da primitiva floresta
virgem.
Cheia de travessuras no jaez das esboçadas foi, até
quasi fazer-se moça, a existencia toda da Angelica, além de uma ou outra
façanha de mais vulto, por exemplo, ir vagabundear, dias seguidos, da banda de
lá do rio.
_ Nossa Senhora da Abbadia bradava D. Cula
angustiada, sahindo da habitual pasmaceira, não é que a menina se passou para
as Geraes?!
Do outro lado, com effeito, de Paranahyba, fica o
triangulo mineiro, habitado por povos sérios, de certo, e pacificos, mas muito
retrahidos e com cara de poucos amigos.
Afinal, reapparecia a Ciganinha.
_ Onde andaste, menina dos meus peccados? Indagava
a desconsolada mãi.
_ Ora, respondia a damnadinha, estive correndo
mundo, assumptando, vendo...
_ Mas, rapariga dos seiscentos, com quem, minha
Santa Maria?
_ Com o José Bexiguento, o filho da portugueza.
Quis, certo dia, fazer-se de engraçado commigo; mas dei-lhe logo tal safanão,
que d’ahi por diante andou direitinho que nem um fuso.
Embora aos 16 annos, tinha ella, ainda que mais
assentada de juizo, pessima reputação; gozava de pessima reputação, dizem até
bons classicos.
E bonita como mil pecados em penca, buliçosa,
suggestiva, a pôr faulhas de ardente cobiça nos olhos dos mais indifferentes e
quietos.
Cabellos negros, bastos, então mais cuidados e
lustrosos, mas sempre com a sua forsinha, de preferencia vermelha, cabellos
ondeados, com uns crespinhos rebeldes na testa e na nuca roliça; rosto para o
comprido, n’um oval regular e como fechado por encantadora covinha no
queixo; tez não muito morena, tanto assim que bem largas sardas lembravam as
grandes soalheiras de outrora, apanhadas em criança; sobrancelhas de japoneza;
olhos enormes, negros, rutilantes, avelludados, com uns cillios que punham
sombra ás atrigueiradas faces em que florescia suave rubidez; labios humidos,
polposos, com o brilho de romã entre aberta, n’um arco deliciosamente desenhado,
orelhinhas pequeninas, como conchinhas nacaradas.
E que elegancia nativa e senhoril no porte; que
collo soberbo, cintura fina, estatura mais que meiã – emfim, um todo, um
conjuncto de fazer peccar Santo Antão, na sua gruta da Thebaida.
Namoradeira como tudo, a Gêgéca; muito ufana da sua
belleza, dos seus encantos, mas acceitando a côrte e as homenagens de qualquer
pé rapado.
A rapaziada de Santa Rita de Cassia e dos arredores
umas 20 leguas andava tonta, n’um rodopio.
Ao lusco-fusco, um corisco a diabinha, sempre á
cata de aventuras banaes, que sabia, porém, conter nos justos limites, avisada,
aliás, a cada instante pela voz arrastada, plangente da mãe, como agoureiro
pregão:
_ Ménina, vancé se perde... Tanto vai o pote ao
rio... Proteja-nos... Santo Christo dos Milagres.
_ Conheço o caminho, respondia a Ciganinha e não me
hei de perder assim com duas razões...Estou traquejada na estrada e no
atalho...
_ “Lá vai a pestesinha”, dizia-se ao lobrigar sobre
tarde uma sombrinha airosa, esbelta, esgueirando-se, sem grandes mysterios,
aliás, por baixo dos laranjaes. Ia até ás vezes cantalorando, com andar leve,
mas seguro e firme. E ouviam-se as gargalhadas de escarneo, que dava lá debaixo
das suas laranjeiras.
Com imprudencia sem par contava as bobagens que lhe
haviam dito fulano e sicrano, o tropeiro Vargas, o arrieiro Thomé do Valle, o
mascate José de Italia e mais este e mais aquelle, um povaréo grosso, emfim.
E imitava, com muita graça e valente debique, os
protestos de amor eterno, as declarações ardentes e claras ou timidas e
ridiculas, o gaguejado de quasi todos os pretendentes, os seus ademanes
desengonádos. E concluia:
_ Que pagode!
Todos lhe apontavam mil amantes; mas ninguem podia
gabar-se de o haver sido. O filho do Manéca Fructuoso fôra já á cama doente de
paixão. Debalde fizera valer o caso do olho quasi vasado pela laranja verde. A
ciganinha, sem compaixão, motejava do seu triste estado, no passado e no
presente.
_ Um palerma, dizia desfazendo-se em crystalina e
adoravel gargalhada, que a tornava ainda mais irresistivel. Já me falou em
casamento, como se fosse um favorão, algum bicho de sete cabeças... Tão bom,
como tão bom... Que é elle, afinal? Filho de um empalamado...
E continuava a dar escandalosa corda a quantos lhe
arrastavam a aza, quer moço do povoado, quer adventicio e de passagem por Santa
Rita.
_ Essa rapariga é uma perdição, affirmava com pausa
e todo convicto o José Bispo, da venda.
Perdição ou não, estava sempre a Gêgéca prompta
para as entrevistas vespertinas, a que ia sem susto, sósinha, com a galhardia
de se sahir sempre bem, incolume e a contento da altiva consciencia.
E uma vez ou outra pescava uns presentesinhos,
cótes de vestidos de chita franceza e até de cassinha, lençosinhos bordados ou
de seda, garrafinhas e frascos de oleo fino para o cabello, ou perfumes em moda
entre as senhoras donas do Rio de Janeiro, da côrte, o que tudo aceitava, não
por interesse, mas para obsequiar, muito instada e rogada – uma lembrançasinha
sem vallor daquella tarde... E accentuava a lembrança da tal tarde com um
aperto de mão mais forte, que nada significava, mas que a fazia dsprender-se e
fugir ás carreiras pelo laranjal afóra,
Puzera-se tambem a trabalhar, e ligeira como era,
ajudava com muito geito e bom resultado a pachorrenta da mãe. Ninguem resistia
ao seu sorriso, quando offerecia, convidativa e meiga, um docesinho de seu
taboleiro.
Um viajante, que por alli pousou com grande estado,
da familia até dos Jardins, salvo engano, chegou a pagar uma cocadasinha,
puxapuxa com uns brincos de pedrinhas verdadeiras, amarellas, muito vistosas;
tudo desinteressadamente e por achal-a bonita devéras, como não vira igual nem
em S.Paulo, nem na Capital Federal. Tambem essa fama de formosura enchia o
sertão todo.
_ Rapariga como a Ciganinha de Santa Rita de
Cassia, apregoava-se, não há duas nestas trezentas leguas á roda!... Cousa de
pôr tonto o homem mais valente!... E levada da carepa, um foguete, um
buscapé... cruzes!
Uma vez, com as suas facilidade, que tanto a
desacreditavam, correr Gêgéca sério perigo, bem sério.
Como era natural, não tardou o José Bispo, da
venda, a querer engraçar-se com ella e desejal-a com a impetuosidade do seu
genio atabalhoado, despotico, irascivel, mettendo medo a todo o mundo e cheio
de grandezas e valentias no meio d
Aquella arraia miuda.
Por cima, inspector do quarteirão, embora não se
tivesse naturalisado cidadão brasileiro.
De cada vez que a Ciganinha lá ia comprar
alguma cousa, um cobre de vinagre, meio tostão de azeite, um salamim de arroz,
contava-lhe historias, fazia-lhe mil promessas.
_ Deixa-se de partes, Sr. Portuga,
repellia-o Gêgéca; não se faça de tolo, estou com pressa...
_ Mas, Ciganinha...
_ Limpe os beiços, Sr. Pé de chumbo. Ande; que não
vim cá para atural-o..
E assim era sempre.
Ora, como tudo isso ocorria á vista de todos,
apinhada a venda de ociosos, tropeiros, creanças, fadistas, não raro havia
troça á custa do tal José Bispo.
_ Assim, rapariga, applaudiam. Dê-lhe para baixo
até mais não poder.
E se derretiam em caquinadas de chufa.
O homem bufava; procurava com esforço conter-se,
mostrar frieza e desdem, mas qual!
De cada vez que a Gêgéca reapparecida na immunda
tasca, afigurava-se-lhe que aquillo tudo se mudava em palacio encantado, n’um
esplendor de cegar.
E a fadasinha, cada vez mais
formosa, galhofeira e petulante, a ludibrial-o sem dó nem receio algum.
Repellido sempre, poz-se José Bispo, descuidando
até os negocios da venda, a armar esperas á ciganinha, umas especies de tocaia,
em que perdia muito tempo e consumia a paciencia, reduzido a roer frenetico as
unhas ou antes o sabugo, conforme cacoethe velho.
Presentiu Gêgéca o imminente risco e, embora um
tanto descuidosa e zombadora, de continuo lhe furtava as voltas.
Uma tardesinha, porém, em que, scismando, fora do
costume, com certa melancolia, se arredára mais do que convinha, foi de repente
emplogada. Quando de accordo de si, o portuguez lhe mettera a mão em cima, e
mão bem pesada, adunca e violenta garra.
_ Apanhei-te, pombinha de cascavel, exclamou com
triumpho; vamos agora ajustar nossas contas: basta de debiques e caçoadas.
Era o logar deserto, gritar de todo inutil. Só se
ouviam, no silencio dos ares, ciciar perto os flexiveis sarandys, cujos
finos caules encurvados pela correnteza do Paranahyba, a cada instante se
reguem para logo se dobrarem, produzindo brandos zunidos de plangente harpa
colia.
Sentiu na testa a nossa heroina camarinhas de
algido suor; mas, fazendo valente esforço sobre si, buscou não dar mostra do
menor receio.
_ Me largue, Sr. José Bispo, observou com serena
gravidade; não são modos de homem sério com uma moça como eu...
O tal apello á sua seriedade e ás maneiras
pausadas da Gêgéca desapontaram um tanto o vendeiro; uns simples minutos,
comtudo.
_ Que histórias, replicou brutalmente. Vejam, só a
santinha de páo ôco... olhem, que partista!... Você cahiu no alçapão, e não
solto o passarinho que custei tanto a agarrar...
_ Mas que é que o senhor quer de mim? Perguntou com
calma e sobranceira, envolvendo-o n’um olhar de supremo desprezo.
_ Que é que eu quero? ... Cousa muito simples...
que seje minha... e há de sel-o, olaré!... á força, se não houver outro
remedio... É de tantos... Para que se fazer de pimpona só commigo?
Intenso rubor subiu ás faces de Gêgéca; os olhos
faiscaram de raiva.
_ Me largue, siô gallego, exclamou
impetuosa. E com ameaça:
_ Depois não se arrependa...
Sorriu-se zombeteiro o José Bispo.
_ Ora, quero ver isto... há de ser gaiato... Eu me
arrepender? Nunca, nunca!
E riu-se devéras, quando a ciganinha, reforçada
como era, lhe imprimiu forte empuxão para libertar o braço preso. Nem se mexeu
do logar, enquanto ella reconhecia, com intimo terror, que os dedos do
portuguez a atanazavam como guante de ferro.
_ Não se faça de tola, Gêgéca, eu bem sei que você
esteve agora mesmo com o Nhôr Grande da esquina..._ Mentira, protestou a
rapariga._ Pois se os vi passeando juntos até se sumirem debaixo das arvores...
_ É verdade, passeei com elle...mais nada...Nhôr
Grande não é tão ordinario que abuse de seu talento.
(Entre parenthesis.)
Sabem os possiveis e complascentes leitores, que
cousa seja talento, em todo o sertão d’este nosso Brasil?
Força physica, nada mais.
Continuemos agora, caso valha a pena estarem
aturando esta massada, mas disso não sou juiz. Como conheci, de passagem, a tal
ciganinha levada da breca e lhe admirei, há uns pares de annos, a notavel
belleza, tomei a peito contar as suas façanhas e capetagens.
_ Pois eu cá, replicou a brichote do José Bispo,
entendo que talento para muito serve... Olhe, quero ser bom; escute um pouco...
_ Solte então o meu braço...
_ Iche,
lá isso não. Você disparava que nem veado matteiro. Assumpte...
entregue-se por gosto a mim e de amanhã em diante a bóto de portas a dentro
como minha caseira... D. Cula, sua mãi, virá morar commigo... Nada lhes há de
faltar...
Arfava de indignação, odio e pavor o peito da
pobresinha.
Vinha a tarde descendo depressa e, distante, á
beira do rio, avisava uma anhuma póca, com intervallado cantar á maneira
do bater de dous páos seccos, que a noite não tardava. A luz que ainda havia,
tenue, esbatida, descia de umas nuvens grandes, de intenso vermelho, a
purpurejarem todo o lado do poente.
Deu então Gêgéca novo arranco para traz com tal
impeto, desta vez, que o seu aggressor teve que avançar dous passos. Quasi de
todo lhe quebrou o animo esse esforço improficuo.
_ Juro-lhe, bradou ella com a respiração offegante
e immenso accento de verdade e angustia, que nenhum homem ainda me tocou no
corpo. Tenha pena de mim, José Bispo. Se há virgem n’este mundo, sou eu... Não
me desgrace... prefiro morrer...
_ Qual, não se morre por isto, zombeteou o
tendeiro.
_ Tão certo como Deus estar no céo, affirmou Gêgéca
arrebatada e ardendo em febre, saia eu d’aqui suja, desgraçada e me vou logo e
logo pinchar ao rio. Ninguem mais me há de ver.
Minha pobre mãi que se agarre com a Virgem
Santissima... não terá mais filha.
Viu José Bispo, no fundo, não de todo máo e
perverso, que essa jura lhe subia direitinha do coração – havia de executar o
que promettia.
Vacillou pois.
_ Mas se eu a amo como um perdido? Se a quero noite
e dia?
_ Razão de mais para me tratar com respeito... Não
sou nenhuma fadista para o capricho dos homens por qualquer meia
pataca...
_ Onde fica o mundo dos amigos e rufiões? Que
querem dizer todas essas conversas, á noitinha?... Santa Rita está cheia das
suas passadas tranquibernias...
_ Brinco, gracejo, ouço as tolices que me dizem...
deixo prégar á vontade, mas ninguem toca no pulpito...
E concordou quasi com humildade...
_ O senhor tem razão... Não é nada bonito o que
tenho feito. Prometto emendar-me. Ficarei-lhe querendo tanto, tanto bem!... A
lição foi muito séria.
Com a volubilidade de seu genio, Gêgéca,. Ao dizer
conceitos tão sensatos, já era outra, serenada a physionomia e, por isso mesmo,
mais formosa e seductora. Parecia-lhe que aquelle homem, cujas intenções a
aterraram, de subito se transformara em bom e leal censor.
Pouco durou a ilusão.
_ Não me levo por cantigas... Você falla em morrer,
quando agora é que a vida vai devéras principiar.
Recomeçava a dolorosa e indigna lucta.
_ Não nasci para os teus beiços, gallego, porco,
ladrão, tinhoso!
E as palavras sibilavam, ardentes, cuspidas com
nausea, o corpo derreado para traz em disposição de resistencia a todo o
transe, e até ao ultimo alento, lucta de morte.
Procurava José Bispo, vermelho, apoplectico de
furor e volupia, enlaçal-a pela cintura com o braço livre. Ia a dar-lhe o fatal
cambapé.
Foi quando a ciganinha, com inopinado movimento de
mergulho, agachou-se rapida. Ao erguer-se, trazia na mão direita uma grande
pedra providencialmente achada aos seus pés e, sem perder um segundo, com ella
bateu por modo tão brusco e contundente nos peitos de José Bispo, que este a
largou, soltando um grito de surpreza e dor.
Era quanto bastava.
Fuzilou a Gêgéca pelo cerrado afóra; mas á
distancia parou e, pondo os dedos nos cantos da bocca, atirou aos ares calmos
amornados uns assovios tão finos, agudos e penetrantes, que a mataria já
adormecida pareceu sobressaltar-se. Respondeu-lhes, á margem do Paranahyba, a
assustada grita dos bulhentos e mettidiços queroqueros, de subito
alvoroçados.
Ao chegar á casa, toda fóra de si, arquejando de
susto e de cansaço, abraçou a ciganinha a mãi com angustiada vehemencia e,
deixando-se cahir de joelhos, prorompeu em longo e nervoso pranto.
Debalde tentou D. Cula saber o motivo. Afinal,
suspeitando o que não era real, triste e resignada, chorou ao lado da filha até
alta noite.
Meu Deus, meu Deus, que será de nós? Exclamava a
cada instante.
Da terrivel aventura não disse a ciganinha palavra
a ninguem.
Tornou-se, porém, apprehensiva, muito mais prudente
e não era assim com duas razões que ia espairecer e dar um bocadinho de tréla
aos rapazes, lá debaixo das laranjeiras.
Preferia longos passeios sósinha, por caminho e
atalhos só della conhecidos, mas, apenas começavam, lá pelas 5 da tarde, a
desfilar nos ares os bandos de pombos torquazes, buscando sempre inquietos e
como que irresolutos até no vôo, o pouso para a noite, tambem se encafuava
acautelada em casa, na capuába da boa mamãe.
Ficára retrahida, inquieta,
menos confiante nos seus meios physicos de repulsa e tentativas de desacato.
Só se mostrava mais attenta aos requebros e
protestos de dous ou tres, era para tel-os á mão, como especie de guardas
vigilantes, o que desapontava não pouco os namorados de mais fresca data,
obrigados a gaguejar as suas declarações de paixão, quasi á vista de uns
estafermos, sorumbaticos, estatelados de tanto amor e estorvadores de
profissão.
Do filho do Manéca Fructuoso, o tal do olho meio
varado por uma laranja verde, fizera Gêgéca gato sapato. A tudo se prestava o
pobre do trangola, macilento apalermado, comtanto que lhe fosse permitido
respirar perto de quem lhe comera a alma, na energica expressão sertaneja.
_ O Malaquias da boiada chegada hontem, e o
Fortunato da tropa do Chico ricasso, dizia-lhe a ciganinha, querem por força
falar commigo, cousa de segredo. Quando o sol se metter na matta, venha mo
buscar, ouviu, Nhonhô?
_ Pois não, Gêgéca, vancê manda...
E o Mataquias da boiada e o Fortunato da tropa
ficavam, cada qual no seu turno, todo embabocados e desageitosos, ao verem
surgir ao lado da gentil apparição, anciosamente esperada, o typo escaniçado,
muito comprido e ridiculo d’aquelle patito do sertão, o nosso Nhonhô Fructuoso.
_ É excusado; com a Gêgéca ninguem póde, era voz
corrente em todo o povoado de Santa Rita.
E tal ou qual prestigio mystico a rodeava, pois
accrescentaram a meia voz:
_ Tem partes com o anhanega e o sacisé
réré; anda de pandega com currupiras e boitatás. Não poucos podem
jural-o aos Santos Evangelhos.
Talvez por isso, mas muito mais pelos seus olhos a
luzirem como brilhantes negros, entre orlas de cabelludas pestanas, pelo seu
narizinho espirituoso, um nadinha arrebitado na ponta, pelas faces penujadinhas
como pecego do cerrado, tão bonito no avelludado aspecto como
feio no nome (chamam-n’o cagaiteira), pelo seu corpo esbelto, cheio,
promettedor de mil thesouros, andava positivamente tonta, de miolo virado, toda
a rapaziada d’aquelles centros.
Não havia quem não parasse diante da chóça de D.
Cula e, puxando logo conversa, deixasse de comprar sem vontade mesmo, nem olhar
o preço, todas as brevidades e ingenuas goloseimas do interior, ali
expostas á venda. Florescia então por tal modo o negócio, que as duas mulheres
já podiam vestir com certa casquilhice umas saias de babados grandes de bom
crivo, e traziam sobre os hombros lenços finos de seda, barreados de azul, e
aos pés uns chinelinhos de couro de veado, enfeitados de debrum vermelho.
Não havia cocada, mãe benta, manaoé ou pé
de moleque que parasse. Além do que comiam, levavam os tropeitos lenços
cheios – um nunca acabar – e voltavam logo a pedir mais, só por causa do
dedosinho de gostosa prosa e contemplação.
E a ciganinha a vender tudo á porta da choupana
materna, com muito bons modos, risonha, escorreita, prompta á replica e
rebatendo, habil esgrimista, os cumprimentos demasiado ardentes á sua formosura
– legitima e bem instinctiva loureira, na sua Santa Rita do Paranahyba, como a
mais sabida e calculista americana do Norte n’esse incessante duello de
faceirice e esquivanças dos brilhantes salões de Washington e Nova-York.
Nem tardou a suprema e estrondosa consagração, dada
pelas trovas do João Valentim, o sabiá gogano, n’uma festa, quasi cururú,
que chamara á localidade muito povo de umas 30 leguas em torno.
Esse Valentim , que pachola ao violão! Quantos
cahidos de braços e revirados de olhos! Já meio velho, calvo, assim com uns
restos de homem bonito, atirado a suductur de mulheres com as suas quadrinhas,
que iam desfiando á medida da inspiração todo choroso e derretido!
Vadio como tudo, só queria trabalhar nas cordas da
guitarra ou no machete, em que devéras pintava o sete, com umas unhas immensas,
attestado da sua preguiça e que zelava como inestimável preciosidade, sempre
limpas de cairel e todas lustrosas
E como sapateava ao fado, o pernostico bailante,
apezar das juntas já bastante perras! Como puxava fieira, ao convidar, em
elegante derrengado de corpo, o par ainda sentado! Não queria outra dama senão
a Gêgéca, que n’essas occasiões pulava agil, airosa, provocadora, as faces
rubras que nem pimenta malagueta, os olhos faiscantes com uma pontinha de
lascivia, exuberante de seiva e mocidade, cousa mesmo de botar de pernas para o
ar moços até da capital federal!
N’essa especie de choradinho ou cururú que
ficou celebre, expandiu-se a homenagem á formosura da Gêgéca nas seguintes
quadras, cantadas com muita denguice e grandes derreados, pelo João Valentim.
Repinicando o violão, nuns preludios todos cheios
de blandicias, tomou largo hausto e plangentemente soltou a voz já um tanto
estragada e rouquenha:
“No Brasil jámais se viu
Rapariga tão bonita
Como seja a Ciganinha
D’esta nossa Santa Rita.”
Correu um sussurro de applauso
e admiração, que o artista acompanhou em surdina.
Erguendo, porém, o canto, obrigou o silencio que se
fez completo:
“Busquem outros prata e ouro
Nos mil sonhos d’ambição;
Que eu só quero, altivo a tudo,
Conquistar-l;he o coração.”
Gêgéca, lá do seu canto,
impando embora de vaidade, deu um ixe! significativo.
Concordou logo o cantor com as difficuldades da
ardua campanha e gloriosa posse:
“Mas ahi é que são ellas,
Pois a mais lindas das flôres,
Escarninha, volta o rosto,
Não enxerga as minhas dores.”
Appellando para o idylio,
prosseguiu, puxando as cordas do instrumento com os dedos, muito abertos e
recurvados:
“Se junto ao Paranahyba
Gemem tristes os salgueiros,
Perto d’ella em vão soluço
Preso aos olhos feiticeiros.”
_ Cruzes, observou a Ciganinha
a uma mocinha chlorotica que lhe ficára ao lado, dizer que os homens
levam a nós pobres mulheres com estas patacoadas e pacholices! Qual, este
mundo não anda direito!
A tal reparo paraceu
responder João Valentim, promettendo lugubre desfecho ao repellido amor, de que
se tornara illustre victima, éco aliás de muitos pacientes:
“Ó Gêgéca, meus pecados,
És um castigo da sorte;
Mas a tanto sofrimento
Eu prefiro a dura morte!”
_ Não morre não, Valentim,
replicou a interpelada bem alto, o que provocou até palmas no auditorio,
deixando bastante enfiado o guitarrista.
_ Que moça cuéra ! exclamou
um dos ouvintes. Verdadeira inspiração inflammou, porém, o cantor com aquelle
ironico desafio e com arroubado rapto acudiu elle, erguendo o tom:
“Ordem é do Ser Supremo
“De joelhos, natureza!
Abatei-vos. Terras, céos,
Ante a força da belleza!”
(1)
Não pôde porém sustentar
estro tão alto e descahiu logo em legitimo vôo icario para o ridiculo:
“Mas de tal consumição
Olha bem, cruel Gêgéca,
Vou ficando magro e secco,
Que nem feia perereca!”
E assim por diante, a
não acabar mais, tudo muito chupado, cheio de si! E uis! Com umas
pieguices de mulherengo vadio... a sua caceteação, em summa, que deixava a D.
Cula toda babosa enleiada com vontade de alli mesmo abrir um pranto enorme, mas
que a filha acolhia incredula, indifferente, meio a bocejar.
Quando alguma quadra lhe
cahia no goto, ria-se então, botando á mostra os dentes rutilantes de alvura,
sempre arêados com uns talosinhos molles de aroeira do campo, nacaradas
perolas tornadas mais brancas ainda pelo contraste do vermelho appetecedor dos
labios, frescos, carnudos, feitos para beijos de enlouquecer.
Da rubida bocca, porém,
partiam flechasinhas pungentes, como do seio das rosas sahem zumbindo
mordicantes abelhas.
Nem sequer soube poupar o
sabiá goyano, o melodioso glorificador dos seus encantos, pois sem respeito
algum á necessidade da rima, logo lhe paspegou ao cogote o appellido de João Pereréca,
que adheriu e d’alli em diante punha bambvo e furioso o nosso seductor
Valentim.
E entre a paixão real e a
vaidade de poeta travou-se breve lucta, que terminou pela victoria do Parnaso,
offendido em sua meticulosa dignidade.
Declarou-se inimigo de
Gêgéca, mas teve que desapparecer de Santa Rita de Cassia, onde muito
tempo depois cantavam outros bem convictos:
“Ordem é do Ser Supremo:
De joelhos, natureza!
Abatei-vos, terras, céos,
Ante a força da belleza!”
(1) Com
ligeiras alterações, ouvi todas estas quadrinhas da bocca de um d’esses
improvisadores populares.
Ou mais frequentemente
ainda, tanto o ridiculo sobrepuja o bom, até
“Mas de tal consumição
Olha bem, cruel Gêgéca,
Vou ficando magro e secco,
Que nem feia pereréca!”
Razão talvez mais plausivel
levára João Valentim a de pressa sahir d’aquelles locaes de inesperados
desenganos. Foi pedir em casamento a terrivel Ciganinha e levou
formidavel taboa tudo com grande pasmo de D. Cula, que quasi desmaiou de
emoção, ouvindo a despachada resposta da filha ao avelhentado e petulante
candidato:
_ Olhe, Sr. João, disse-lhe
a Gêgéca na bochecha, não se faz familia nem se sustentam mulher e filhos com
cantorias de pereréca!
Era, já se vê, rapariguinha
pratica, bem americana.
VIII
Desde ahi verdadeira
epidemia na rapaziada do povoado e adjacencias. Não havia agora quem não
quizesse casar com a Ciganinha.
A todos ia dizendo- não,
não!
Para que nada faltasse ao
seu triumpho, uma tarde appareceu de repente lá pela casinha de D. Cula o
vendeiro José Bispo, todo desajeitado, inquieto, a suar como um burro, mettido
n’um rodaque branco bem engommado, de meias aos pés, dentro de alentados
tamancos. Não tinha gravata, mas ostentava collarinhos altos e tesos, com muita
gomma.
Estavam as duas mulheres
merendando. Comiam com os dedos molle pirãosinho de farinha de mandioca a
acompanhar um sorubysinho pescado de fresco e cozido n’aqua e sal,
Ficaram ambas sobremaneira
sorpresas, até receiosas, sem saberem o que fazer.
_ Não é servido? Perguntou a
velha descorando muito, ao passo que Gêgéca fazia-se escarlate.
_ Obrigado, dona respondeu
José Bispo com timidez, transpondo a custo o limiar da chóça.
_ Mas porém abanque-se,
convidou a dona da casa indicando uma cadeira velha.
O homem foi, depois de algum
pigarro, entrando
Depois...! receios de ter
offendido D. Gêgéca, mas lhe perdoasse, não Fôra por querer, estava muito arrependido
das suas brutalidade...
Tudo muito gaguejado,
enquanto D. Cula abriu uns olhos muito grandes de coruja assombrada.
Afinal desembuchou.
A menina já era moça feita,
precisava tomar estado, Ter uma posição, e elle, no caso de principiar familia,
vinha, nem mais nem menos, pedir a sua mão.
E contou lá suas
fanfarronadas.
Possuia bastante de seu para
assegurar o futuro de ambas, pois até pretendia mudar-se d’aquelle logarejo,
que não lhe servia mais, retirando-se para a capital, onde daria maior extensão
ao negocio, para Goáyaz – como dizia.
E parece, com effeito, que
pronunciava mais certo do que os que dizem Goyaz, pois o Sr. Beaurepaire Rohan,
muito entendido em materia de bugres e cousas do tupi, assim tambem é que
falla, - Goáyaz. Muitas e muitas vezes, eu, Heitor Malheiros, o tenho
ouvido dizer d’esse modo, á fé meu gráu. Verdade é que o juramento está hoje
abolido, e não sou formado em cousa alguma.
Continuava, porém, José
Bispo. Dava aquelle passo na certeza de ser attendido, embora muita gente
certamente o devesse censurar. Não duvidava dos bons sentimentos da menina,
cujos modos entretanto serviam de motivo a muito mexericos e falatorios. Era
franco. Nutria, porém, a convicção de que tudo não passava de muita mocidade.
Uma vez mulher d’elle José Bispo, saberia portar-se de modo a só merecer
respeito e consideração dos povos todos de Santa Rita, e onde quer que fossem
parar.
_ Dé certo, dé certo,
ia affirmando a lesma da D. Cula toda a babar-se de gosto com a perspectiva de
semelhante enlace, uma fortuna do céo.
Conservava-se Gêgéca
retrahida, calada, com uns restos de pirão a seccar na pontasinha dos dedos.
Uma vez superados os
primeiros instantes de acanhamento, falou José Bispo a valer, fazendo sobretudo
alarde da sua qualidade de homem sério, de boa posição e apatacado, insistindo
muito nas vantagens que desse casamento advirão para ellas duas.
Deixou até entrever, que, do
seu lado, havia não pouco sacrifficio.
A isso Gêgéca rompeu o
silencio:
_ Então quem o mandou vir
cá? Perguntou desdenhosa e altiva.
Respondeu o vendeiro com
sinceridade.
_ A paixão, Gêgéca, a
paixão! Tudo fiz para conter-me, mas não pude. Estive quasi a fugir como um
perdido, alta noite. Formei mil planos... até de crimes. Achei que afinal era
melhor dar o passo que dou. Se vancê me disser não, mesmo assim ficarei
mais socegado.Estou disposto a tudo... comtanto que não me queira mal... não me
despreze, não se volte, ao ver-me, com escarneo e nojo...
E aquelle homem brutal,
violento, tinha os olhos supplicantes, cheios de lagrimas, vencido pela força
da belleza, como dissera João Valentim nas suas trovas.
Estava D. Cula totalmente
besta do que via e ouvia.
_ Gêgéca aceita, disse
afinal intromettendo-se ainda que a vacillar e com uns laivos de rubra emoção
na eterna pallidez das faces; sem duvida ella aceita... Que póde mais quérer
n’este mundo? É desafiar a sorte.
_ Cale a boca, mamãe,
exclamou impaciente Gêgéca que parecia concentrar-se em rapida e necessaria
meditação.
Afinal, voltando-se para
José Bispo, respondeu-lhe com serenidade:
_ Pelo passo que o senhor
deu hoje, perdôo-lhe do fundo do meu coração tudo quanto me fez. Acabou-se o
odui, e odio bem justo, que eu lhe votava. Não posso, porém, attender ao seu
pedido, que tanto me honra e me levanta aos meus proprios olhos.
Não é que a diabinha da
rapariga falava bem? Ora, sejam justos, leitores da minha alma. De entre os
40.000 assignantes da Gazeta de Notícias não haverá meia duzia mais
condescendente?
_ Pelo meu genio, continuou
ella, e com os seus arrebatamentos, não podiamos ser senão dous infelizes, uma
vez amarrados pela lei do casamento. Falando-lhe assim, dou-lhe prova de que
não sou tão desajuizada como a muitos pareço. Por outro lado, e lado muito
grave, que faria o senhor da desgraçada Perpetua, com quem vive ha tantos
annos? Que seria dos seus quatro filhinhos, já tão abandonados?
_ Mas, ménina, buscou
inquieta interromper D. Cula, para que... se metter assim na vidá... dos
outros?...
Via, com effeito, José
Bispo, quasi a estalar de roxo, todo apoplectico, tolhido de vergonha,
embasbacado.
_ E o que é a pobre
Perpetua, perguntou com voz vibrante a Ciganinha á mãe, toda estarrecida, senão
a D. Cula lá da praça?... Não lhe faltam pancadas e tundas, além do peso dos
quatro pequenos... Só agora o abandono...
_ Gêgéca, exclamaram com tom
de anciosa rogativa os dous, basta... basta!
E emquanto a chorona mamãi
prorompia nos mais angustiosos soluços, retirava-se José Bispo tonto,
titubeante, empuxado por mil sentimentos, numa afflicção bem real de pungitiva
dôr, em que sobrelevava intenso vexame de si mesmo, pela taboca que acabara de
chupar.
IX
Por esse tempo chegou á
Santa Rita do Paranahyba, vindo de S. Paulo, pela cidade de Uberaba, o
D’Anselmo de Sá.
Entre nós, quanto tem
progredido a tal Uberaba, no antigo sertão da Farinha Podre! De bem poucos
annos, só havia a poeira vermelha que era um inferno , continuas trovoadas
roncando grosso, uns casarões sombrios de cumieira muito alta e aspecto
sinistro, o bom capuchinho frei Germano com as suas eternas observações
meteorologicas, o velho tenente-coronel da guarda nacional Sampaio, advogado
provisionado e membro do Instituto Historico, além do João Caetano, o homem
mais pacato do mundo, mas que, de cada vez que abre a bocca e, muito de
mansinho, começa á falar, provoca por toda a parte um barulho dos seiscentos,
protestos, gritos, violentos apartes, retaliações e até tiros de garrucha!
Mas hoje, sim senhor! A tal
Uberaba já faz figura de grande cidade... no interior. Possue bazares quasi de
luxo e mais isto, aquillo, aquill’outro, cousa de encher o olho. Dáqui a um
nadinha, terá linha de bonds, confeitarias e gaz de illuminação, se não
for luz electrica, á imitação e moda de Juiz de Fóra que, só por isto, quer por
força ser a primeira cidade de Minas Geraes e só fala das outras com desdem.
Asseverou-me, pelo menos, bem proximos todos aquelles valiosos melhoramentos o
Borges Sampaio, o tal membro do Instituto, quando por lá passei. Acho, comtudo,
que o homem, aliás com excellentes intenções, tem patriotismo demasiado
uberabense e inflammavel.
Voltemos, porém, á nossa
historia.
Atravessa o Dr
Anselmo de Sá já tarde o grande rio e com muita bagagem , pois viajava como um lord.
Viu-se, pois, levado a pousar
Era esse moço parente
chegados dos Confucios e Socrates da familia dos Craveiros, ligados por laços
de affinidade com os Moraes , Abreus, Fleurys, Rodrigues, Jardins e Bulhões,
gente toda de alto cothurno no meu Goyaz, descendentes até do celebre conde, depois
marquez de São João da Palma, antepenultimo capitão-general e governador da
Capitania (apresentar armas!) e que lá fez maravilhas nos seus 5 annos de mando
absoluto e violento.
Demais, todos na minha
terra, quasi sem excepção, pretendem provir d’aquelle grande papão; e isto tem
alguns inconvenientes.
Querem uma prova?
Em certo dia, um versejador
de occasião, candidato a não sei que logarzinho, foi procurar, aqui, no
Rio de Janeiro, um dos filhos do marquez – esse bem averiguado. Toca a
esperal-o e nada do protector dignar-se apparecer.
Esgotada a paciencia a
contemplar um retrato, tamanho natural, do venerabundo e temivel fidalgo, todo
coberto de dourados e fitões, prégou-lhe afinal o tal pretendente embaixo da
moldura com um alfinete uma quadrinha altamente crespa e pornographica,
relativamente á honra materna e ao esquecimento em que essa mãe era tida. Que
desaforo!
E safou-se, deixando o mote,
sem esperar pela glosa. Que desaforo!
O tal marquez (cumpre-me,
entretanto, dizel-o a bem da verdade historica) deixou em todas as capitanias
onde esteve e governou um mundo de filhos naturaes... O excellentissimo Sr.
Capitão-general era povoador por excellencia. Comprehendia – e tinha razão –
que o Brasil, antes de tudo, precisava e ainda precisa de gente. Ia, pois, no
desenvolvimento do seu programma administrativo, applicando com enthusiasmo o multiplicamini
de Jehovah, nem melhores serviços podia prestar á corôa de Portugal, deixando
ás forças da natureza fecundada o cumprimento do outro preceito, crescitce!
E das mais obrigações, pagar impostos, ser soldado d’El-Rey, etc... etc.
Estou porém, sahindo de mais
da nossa estrada.
Ah! se eu tivesse ensejo,
desfiava muita cousa interessante sobre Goyaz, lembrando tambem os muitos
homens notaveis que elle tem dado á patria, pois me peza, devéras, o menospreço
com que por ahi costumam falar do meu cantinho natal.
Conhecessem, por ventura, o
padre Manuel José Fogaça, que foi prior da igreja de Lourinhã, em Portugal, e
bispo resignatario da Malaca? Pois bem, era filho de Goyaz. Conheceram Alvaro
José Xavier, commendador de Christo e brigadeiro reformado, presidente da junta
do governo provisorio? E Luiz Antonio da Silva e Souza, eleito para as côrtes
de Lisboa, mas onde não esteve, professor publico de grammatica latina?
E o general Curado? Joaquim
Xavier Curado? Quem se recorda mais d’elle? Grã- cruz do Cruzeiro, commandou em
chefe exercitos e ganhou batalhas campaes. Veio á luz do dia
E tantos outros!
Uns conegos, padres, outros
professores seculares; emfim, renque de gente do mais subido valor e posição e
que deixou numerosa e estimavel prole.
O certo é, que, em Goyaz,
predomina muito o sentimento aristocratico e separação de castas.” Não sou
filho das hervas”, diz lá todo cheio de si um d’aquelles mortaes e, firme
n’isso, ninguem o faz arredar pé.
Pois o nosso D’Anselmo de Sá
era d’esses que não tinham sido achados debaixo de um pé de couve e de tudo
tirava não pouco orgulho, olhando aos mais bem do alto da sua importancia e com
ares de sincero pouco caso por meio mundo.
De que lhe serviu, porém?
Foi botar os luzios na
ciganinha, e záz! Ficou pelo beiço, logo, no dia da chegada, pela tardinha, tal
qual um lambarysinho do Paranahyba, fisgado na bocca por apontado e despiedoso
anzol.
Isso não no rio, mas na
novena que se estava rezando no igrejinha, por signal que o sacristão, o
Quincas Malhado, já de miolo molle, fazia vezes de padre e puxava as rezas e
ladainhas n’um latinorio levado da bréca e que o Padre Eterno, apezar do seu
polyglottismo, custaria bem a entender.
Lá estava a nossa Gêgéca a
encher a carunchosa matrizionha com as irradiações e o esplendor da sua
belleza.
Tambem foi o doutor
pregar-lhe o olho em cima e ficou tonto, abestalhado, bestificado, historica
palavra do Sr. Silveira Lobo – Aristides, o justo.
Nem me lembro bem como os
franceses chamam esse repentino estado d’alma, a tal fulminação – meu professor
de francez foi tão fraco! – Por isto não me arrisco; podia escrever alguma
asneira.
_ Mas quem é aquella moça?
Perguntava o Anselmo assarapantado, sofrego, a quantos o rodeavam.
Aquelles olhos, aquelles
ohos, santo Deus! Que relampagos desferiam! Por isto, quando pousaram bem em
cheio no doutoréco, sentiou-se este desfallecer, todo derretido de gosto,
julgando-se na obrigação de sorrir aparvalhadamente, mas a suar frio, quasi a
tiritar!
X
Não dormiu a noite toda o
nosso impressionavel Anselmo de Sá, a passear, agitado, pelo povoado
immerso em carregadas sombras, nervoso, irrequieto, acordando ao latir de um ou
outro cão e fumando cugarros; a esperar, pelo que?... Por enquanto, pela
madrugada, que não chegava.
De nada valiam os
esplendores do céo, de um azul ferrete, negro, avelludado, profundo, como
certas as hyras do oriente, céo marchetado de tantas estrellas, que o
Paranahyba d’ellas colhia fantasticas fulgurações, no immenso serpear da larga
corrente.
Afinal, sentiu-se o moço
prostrado, com as pernas tão bambas, que cahiu na cama feita sobre as canastras
de viagem, e passou por uma modorrasinha, mais que somno. A's 7 horas da manhã
já estava, porém, de pé. Lembrou-se então de ir banhar-se nas aguas puras do
rio, a vêr se acalmava o incendio que sentia lavrar violento, inapagavel,
dentro de si e o suffocava; a mente conturbada, o peito oppresso, com os
musculos repuxados.
Qual! Gregorio de Mattos,
sem procurarmos exemplos e approximações em litteraturas de outras terras, na
tal Europa e sobretudo na França, que tanto nos avassalam, o nosso Gregorio de
Mattos já disséra descrevendo identica e penosa disposição d’alma:
“Tomo banhos de neve por
dentro,
Mas o fogo não quer
abrandar!”
E eram banhos de
neve, cousa que não existe no Brasil, tomados internamente, por cima! Como,
porém, o poeta se os administrava, é o que não nos diz, nem ensina.
Fica, comtudo, a receita
para o apaixonados em tão melindrosas circumstancias.
Nem de proposito, fôra
Anselmo mergulhar o ardente corpo no banheiro habitual da ciganinha, á
sombra do salgueiro que tantos primores costumava entrever de soslaio...
Calculem só... De certo, a arvore foi discreta, mas quem sabe? é tão singular,
inexplicavel, mysteriosa a força catalytica, a acção de presença? Que
prodigios não operam no seio da natureza esses elementos mudos,
impassiveis e inalteraveis?... Qualquer que seja a causa, o pobre do rapaz
sahiu d’aquella immersão pior do que quando penetrára na agua tepida,
ennervante, voluptuosa em suas amornadas caricias. Tinha chammas nas veias.
Vestiu-se ás pressas e com o
cabello grudado ao casco da cabeça, portanto meio ridiculo para um pelintrote
de S. Paulo, resolveu ir bater é porta de D. Cula, orientado por um
meninosinho, a quem generosamente deu 200 réis em nickel.
Sem demora lhe appareceu a
visão celeste! Nem mais, nem menos, de repente, a Gêgéca, que lhe dardejou logo
dous olhares de revirarem de catrambias para o ar, não um simples bacharelete,
mettido em paletot sacco, de sarja verde fundo de garrafa, porém, sim, com todo
a sua armadura de ferro, Roldão em pessoa, o sobrinho querido do imperador,
Carlos Magno, ou algum dos Doze Pares de França.
_ Que deseja, Sr. Doutor?
Perguntava a rapariga sorrindo com encantadora ingenuidade, mas devéras
surpresa e lisonjeada d’aquella visita matinal.
_ Venho... venho, balbuciou
o Anselmo quasi estarrecido de tanta belleza matutina, venho... encommendar
á... senhora sua mãe... Não posso falar... com ella? Cousa... urgente...
_ Está ainda dormindo,
replicou a ciganinha muito despachada.
Mas, demonio, é filha
d’aquelle diabo que tanto surrára a desgraçada D. Cula, basta de atarantar mais
o Sr. Bacharel! Para que esse sorriso enigmatico, para que esse bater languido
de folhudas pestanas? Deixa, pelo menos, o moço dizer o que quer, que
encommenda ora essa, tanto mais que um raio ronico de sol ao nascedouro lhe
brincava nas barbas ainda incipientes, na ponta do nariz e no seu pince-nez
de myope!
Era comtudo, exacto, D.
Cula, com os habitos de inveterada preguiça goyana, ou antes sertaneja, ou
melhor brasileira (fiat justitia ne pereat mundus, diz o direito
estudado, ou não estudado, pelo Dr. Anselmo de Sá) D. Cula apezar do calor,
estava áquella hora encafuada na cama, o tal catre velho, de que fala o
capitulo I d’esta historia verdadeira.
_ Não... não a incommode,
implorou Anselmo com verdadeira angustia, como se da repulsa de sua supplica
pudessem provir grandes dannos. Quero... a senhora... per... perdôe... Quero
para a viagem... um taboleiro de doces.
E ficou assombrado da
repentina idéa que lhe ilumminara o cerebro; dominado, porém, pelo terror de
que o tal taboleiro de doces fosse cousa tão fóra de alcance como o vélo de
ouro, ou algum pomo do jardim das Hesperidias.
Tranquillisou-se de prompto.
_ Hontem mesmo á noite
fizemos um bem grande, replicou Gegéca. O senhor volte logo para ajustal-o com
mamãe.
Ia humildemente, todo
soffrego, perguntar a que horas; mas não teve tempo, Pan! A ciganinha
lhe batera a porta na cara.
Já se viu o capricho?
Atraz dessa porta trancada,
ficou ella comtudo pensativa, de sobrancelhas um tanto cerrada. Vamos e
venhamos, aquelle mancebo tão alvo, de bigodinho revirado, pince-nez de
ouro, mãos e pés delicados, maneiras finas, trage elegante, lhe agradava
devéras, não lá exaggeradamente, cousa extraordinaria; mas, emfim, esse não
era, de certo, como os outros, oh não!
_ Que há de novo, ménina?
Perguntou de um canto a vóz arrastada de D. Cula, entre dous bocejos.
_ Um moço bem parecido que
veio pedir um taboleiro cheio de doces... para não sei que viagem.
_ Louvado seja! Diga-lhe que
são tres mira réis pagos á vista.
_ Quase 3S! objectou
a filha. Peça-lhe a mamãe 5S , quando elle voltar.
_ E se não vortá?
_ Oh! Se volta!...
Com effeito voltou e, ao
preço exigido de 5S, impetrou licença para offerecer 10S; favor
feito a elle. Tomara informações seguras; uma viuva, vivendo honestamente do
penoso trabalho com a sua filha, já moça, ambas sem protecção de ninguem – nada
mais digno e commovente.
E, se não deitou
discurseira, foi por sentir a cabeça quenem um ninho de guaxupés assanhados,
debaixo das baterias oculares da ciganinha.
_ A moça sabe lêr?
Atreveu-se elle a perguntar á Gêgéca n’um momento em que estiveram a sós.
_ Mal e aml, respondeu ella
sempre a sorrir (diabo de sorriso) arranho... quando a lettra é grande...
D’alli a pouco, tambem
recebia um papel com garrancho bastante graúdos: “Preciso muito falar-lhe logo
á tarde, debaixo das laranjeiras. – Dr. Anselmo.”
N’aquelle esplendoroso
doutor depositava o nosso homem muita confiança, toda a confiança.
Entretanto, oh desilluão! A
Gêgéca, n’essa tarde deixou-se exactamente ficar bem socegadinha em casa; a
ajudar a mãi n’uma tachada de doce de fructa de lobo, que esta no dia
seguinte devia impingir como marmelada ao desnorteado viajante.
E não é que o bolas do cigano
fizera escola e para alguma cousa servira?!
Tudo nesse mundo tem sua
compensação.
XI
Deste dia em diante começou
a ciganinha a pôr em pratica os mais habeis manejos de faceira esquivança,
deixando o Anselmo cada vez mais transtornado de paixão e exaltados desejos.
Fazia tenção firme de logo e
logo partir, de fugir alta noite, sumir-se, azular; marcava o dia certo,
infallivel e, afinal, chegado o momento, decidia continuar a ficar por ali a
banzar.
Tudo lhe servia de pretexto,
necessidade de dar forte descanço aos animaes, receio de chuvas proximas,
razões todas de cabo de esquadra, que os camaradas iam acceitando com a
indifferença que essa gente pot tudo mostra, no fatalismo da existencia.
_ É memo, é memo!
Concordavam e lá iam folgar no rancho a tocar viola emquanto esperavam que o
Sr. Doutor quizesse um bello dia, quando menos contassem, levantar o pouso.
_ Mas Gêgéca, D. Gêgéca,
perguntava a medo Anselmo, em certa occasião, á ciganinha pilhando-a de geito,
porque é que você... a senhora... foge de mim?...
_ Por que o doutor deseja o
meu mal, a minha desgraça! Respondeu a moça resoluta.
_ Eu, Gêgéca, eu? protestou
elle com verdadeira e sincera indignação, eu que a amo tanto, que a quero como
nunca suppuz poder querer a ninguem... eu, que não durmo, não como, não tenho
mais um momento de socego a pensar na senhora... sempre em si?!
_ E depois?...
_ Depois o que?
_ Sim, depois? Para mim a
vergonha, as lagrimas, o abandono... tal e qual minha pobre mãe, e tantas
coitadas por este mundo de Deus!
Arregalou Anselmo uns olhos
muito grandes. Sériamente cahia das nuvens, via-se rolando aos trambolhões por
enormes despenhadeiros.
_ Eu te juro... fiel, fiel
até morrer!...
_ Sim, é o que vocês homens
sempre dizem; a arapuca em que todas cahem... um milhosinho pisado em troco da
prisão eterna... valha-me Santa Rita!...
E arremedando o arroubo do
rapaz repetiu com engraçado e fingido ardor e apertando o peito nas mãos:
_ Eu te juro...fiel, fiel
até morrer! E riu-se ás gargalhadas.
Em outro tom, sem transição:
_ Para nós, desgraçadas, as
consequencias... o luto, esse eterno riso... o peso desse gracejo... os
trabalhos, nós, sobreturo, do sertão, sem ninguem que nos ampare, nos mostre o
caminho direito... nenhum castigo para os homens, que têm por si a força, o
abuso...
Ó ciganinha damnada! Quem te
ensinou tudo isso? Em que livro foste aprender toda essa desfiada de valentes argumentos,
tu que só sabias kyrielas de nomes feios e se lias era mal e mal, tão sómente
lettra graúda? Muito, muito póde o bom instincto!
_ Então fujo d’aqui, vou me
embora, desappareço... Você nunca mais ouvirá fallar de mim... Hei de
esquecel-a, logo e logo que der as costas a Santa Rita...
_ Paciencia, replicou a
Gêgéca, levantando os hombros, a estrada é larga, está ás suas ordens. Ninguem
o agarra; olhe, eu não lhe estou dizendo de ficar...
E, com melancolia, mirando o
moço bem em cheio, os olhos carregados de brandura:
_ Quanto a esquecer-me,
disse, é bem facil, bem natural.Que valho eu? Uma pobre rapariga da
roça...filha de mulher sem marido. Mas eu lhe affianço, Sr. Doutor, hei de
sempre lembrar-me do Sr. Viva eu cem annos...
E quedou-se uns instantes a
encaral-o immovel.
Mal poude Anselmo reter um
frouxo de choro.
Parecia que todas as
desgraças lhe cahiam em cima.
De repente:
_ Então você gosta um
bocadinho de mim? Indagou com anciedade.
_ Não sei, não posso
dizer... nem sim, nem não... gratidão é amor?
_ Mas, Gêgéca, qual será o
seu destino, neste logar tão pobre, tão sem recursos?... Tanta formosura para
quem? Para que?
_ Meu destino? Que interesse
deve merecer-lhe? Ora,,, o de tantas outras... Casarei com algum tropeiro por
ahi... Estou vendo, estudando, esperando alguem que seja de todo máu..._ Você,
casada com um tropeiro, meu Deus, meu Deus!! Impossivel!
_ E porque não? Nem sequer
valho um arrieiro?
_ Oh! Gêgéca, muito mais,
muito! Não leve a mal as minhas palavras; estou fóra de mim, nem sei o que
digo...
_ Olhe, observou a Ciganinha,
uma cousa eu juro por Deos que me está vendo, o homem que me tiver não há de se
arrepender... Sinto que não nasci para mulher ordinaria... menos ainda para
moça de parta aberta...
E com impeto:
_ Não, isto não, antes a
morte... mil vezes a morte!
Agarrando então violenta a
mão de Anselmo e achegando-se a elle, perguntou irada, com os sobrolhos
fechados, as feições contrahidas:
_ O José Bispo da venda lhe
contou alguma mentira? Fallou mal de mim? Responda, responda!
O moço repetiu o que era
verdade.
_ Não, elle se calla, todo
embezerrado, quando outros cortam na pelle de você... E não são poucos
Gêgéca... ah, não!
_ Uma sucia de catimbáos
e mofinos! exclamou ella com altivez. Podem inventar o que fizeram, desafio-os
a todos; mas o mais pintado d’elles não teve isto de mim!... Ixe!
E fez estalar a unha de
encontro a outra.
Passou então por perto uma
velha que ia buscar agua ao rio com um pote á cabeça, e os dous pouco depois se
separaram.
Anselmo levava, comtudo, a promessa
formal do tão inspirado encontro a sós, n’um recanto ensombrado que ella lhe
indicou, a custo, incerta, descontente, apprehensiva.
XII
Já se ia a placida e calida
tarde fundindo em noute, quando no ponto aprazado, ocorreu o rendez-vouz
que devia ser decisivo, entre Gêgéca e Anselmo de Sá.
Fôra este muitas horas
antes, o sol ainda alto no horizonte, esperal-a ardendo em febre e impaciencia,
e suppondo-se a cada momento simplesmente ludibriado pela suspirada Ciganinha.
Afinal appareceu ella, como
que trazendo comsigo ondas da luz que já ia faltando na terra,
_ Enfim! Exclamou o moço,
atirando-se arrebatadamente ao seu encontro.
Repelliu-o Gêgéca com
brandura.
_ Não toque no meu corpo,
observou grave e resoluta, venho só para ouvil-o, já que se mostra tão ancioso
de conversar commigo. E será esta a ultima vez, desde já o aviso.
_ Sim, sim, concordou
Anselmo; nada mais quero.
Começou então uma d’essas
declarações de amor como tantas no fundo ouvira ella, d’esta feita, porém,
n’uma linguagem nova, sonora, arrebatada, que dolorosamente lhe acariciava os
ouvidos, a deixava enleada, com a cabeça um tanto vertiginosa.
Presa de sincera paixão, foi
Anselmo por vezes eloquente n’aquelles surtos de elevada e platonica poesia,
que é o perfido visgo das crueis e irremediaveis exigencias physicas.
_Gêgéca, dizia elle, vejo,
presinto que você deve amar-me um bocadinho, mil vezes menos do que eu, mas
sempre alguma cousa, e o amor não pensa, não calcula, o amor é todo misericordia,
é um sacrificio, dá vida, não mata, não extermina!
E como fogo lhe prendia as
mãos frias nas pontas.
_ Por certo, balbuciava
ella, você não é como os outros que me falaram e sempre me falam em paixão...
mas, afinal, e apezar das minhas imprudencias, sou uma rapariga honesta...
tenho sabido resguardar a minha honra... que será de mim?
_ Não lhe dê isto cuidado...
leval-a-ei commigo...
_ Sim, replicou a Ciganinha
ironica e mais senhora de si, como cousa vergonhosa, não é, ás escondidas? Não
chamam por ahi malas essas pobres creaturas que seguem com os viajantes?
Ia eu ser como ellas, simples mala! E minha pobre mãe, que não pode mais
viver sem mim?
_ Ah! verberou com real
desespero Anselmo, num explosão de ingenuo egoismo tão commum em quem ama
devéras, você não pensa senão
Dubio luar clareava então um
pouco os espaços, luar, porém, tão, pallido, tão desmaiado!... Se jámais D.
Cula pudesse fazer de lua, havia de passear assim, desmaiada, chloro-anemica,
pelo firmamento afóra.
De todos os lados tambem,
como que immenso desalento na gigantesca natureza, alquebradas e inertes as
forças de resistencia numa modorra lethal.
Só a Gêgéca a luctar valente
com os arroubos de Anselmo e comsigo mesma.
Quis o mancebo apressar o
desfecho e de subito a tomou nos braços.
Ahi, porém, surgira o
instincto da revolta no peito da Ciganinha e tal empurrão deu ella, que Anselmo
cahiu redondamente no chão a certa distancia.
Ah! não era o forçudo e
temido José Bispo, esse bacharel; certamente não!
Rompeu elle em nervoso
pranto, deixando-se ficar deitado na relva, com o rosto occulto entre as mãos.
E o corpo todo estremecia com a violencia dos soluços.
Invadiu então o coração da
moça sentimento tão intenso de compaixão e remorso, que, sem saber bem o que
fazia, foi sentar-se junto do misero apaixonado e fez-lhe pousar a cabeça sobre
um dos joelhos.
E ficaram os dous immoveis,
elle a chorar em silencio, ella a acariciar-lhe os cabellos com muita meiguice,
ambos num enlevo de indizivel doçura.
Ah! Ciganinha, Ciganinha,
que perigo!
Que te podia salvar em
momento tão extremo, quando tu mesma, a escorregar por mysterioso e
irresistivel declive, te entregavas ao entontecedor esmorecimento de toda a tua
energia, da tua vontade, tão imperiosa, instantes antes, quão vencida agora e
conculcada? Pois, senhores, não lhes conto nada; ouçam, porém, o que succedeu.
Já quatro ardente labios bem
proximos se iam abotoar, naquella suggestiva solidão, no mais sequioso beijo,
quando, com bastante estrepito, um animalsinho correu alli perto, algum
guaxinim ou jaguatirica, e foi quanto bastou para que Gêgéca voltasse a si e de
um pulo se puzesse de pé.
Quem sabe se não lhe valera
a velazinha de cêra, que, dias antes, fôr a levar e accender, na
igrejinha com toda a devoção, aos pés da sua protectora, a Senhora D. Rita de
Cassia, santa de muitos milagres e bondades?
Em todo o caso, estava
desfeito o terrivel feitiço. Aclararam-se as posições.
_ Adeus, disse a Ciganinha.
Siga o seu caminho, Anselmo, parta quanto antes, amanhã se fôr possivel . É de
fundo d’alma que lhe desejo todas as felicidades! Esqueça até que existo n’este
mundo.
Estava o moço positivamente
apavorado.
_ Não, não, dizia elle
agarrando-lhe nas mãos e de joelhos, mil vezes, não!
E, no auge do desespero,
exclamava.
_ Que fazer, santo Deus, que
fazer? Você quer a minha morte, quer com certeza!...
Calava-se Gêgéca, como que a
meditar.
Afinal:
_ Levante-se, ordenou, e
ouça-me com algum proposito e socego. Pergunta-me que fazer, não é? Pois lhe
respondo: cousa muito simples, muito natural: case-se commigo.
Em qualquer outra
circumstancia simples gargalhada teria acolhido semelhante alvitre; mas Anselmo
estava tão atarantado e abatido que se contentou com abrir uns olhos muito
espantados.
_ Eu... eu? balbuciou,
casar... com você?
_ Por que não?
E vendo mil duvidas nos
olhos desvairados do moço:
_ Há de, acrescentou com
altivez, achar-me digna de si... Não tenha susto...
_ Mas... meus paes, você nem
imagina, tão cheios de si... bons, de certo; pacificos, mas orgulhosos da sua
familia, do seu nome...
_ E eu, chaqueou ella
ironica mas já ahi jovial, valho pouco? Minha mãe, sim, é uma pobre coitada,
mas quem lhe diz que meu pae não era algum rei ou principe entre os ciganos?...
Aquella gente é toda de grandes segredos... Sinto Ter jogado no Paranahyba uns
papeis de familia...
_ Gêgéca, implorou Anselmo,
deixe de debicar-me... Responda, que dirão meus paes... vendo-me casar
consigo...
_ E levarei a mamãe, additou
logo a Ciganinha... Não me separo della por nada d’este mundo...
_ Então?
_ Ora, então? Hei de
enfeitiçar seu pae, sua mãe, toda a sua gente; fica por minha conta. Olhe,
Anselmo, nunca lhe metterei vergonha... Você me ensinará muita cousa que não
sei, e Santa Rita me ajudará.
_ Casar, casar, repetia
assombrado o outro. E os papeis?
_ Não lhe dê cuidado. Mando
um proprio chamar o meu padrinho vigario e tudo se arranja num momento. Bem,
concluiu! Se você me procurar mais, há de ser para levar-me á igreja. Do
contrario não lhe mais para mim. Adeus!
E, correndo para a casa,
passou Gêgéca a noite em claro0, sem um momento de socego, resolvida porém de
pedra e cal, como se diz, a não dar o braço a torcer.
XIII
Mil projectos fez Anselmo,
do seu lado. Chegou até a arrancar-se d’aquelle pouso fatal, mas, dous dias
depois, voltava á Santa Rita, aniquillado, desfeito, devorado de mortaes
saudades, em estado positivamente lastimavel – um joguete da mais infrene
paixão.
Pensou até em matar-se,
atirar-se ao Paranahyba, acabar de vez com aquella situação infernal, em que
não via sahida possivel, o menor postigo entreaberto, que lhe permitisse olhar
mais desassombrado para o futuro.
Que lucta ingente!
Afinal, numa bella manhã em
que a natureza seria inebriante, feliz, bondosa, a aconselhar a todos os seres
alegria, expansão e gozo, tomou a suprema resolução e, batendo á porta da
miseravel chóça das duas mulheres, pediu solemnemente á D. Cula a mão da sua
filha, a Ciganinha!
Como foi acolhido!
A recompensa foi tambem
deslumbramentos sem par, além de um beijo, no fim da visita, bem em cheio nos
labios, capaz de deixar tonto de orgulho o tzar de todas as Russias.
Para que contar mais o que
se seguiu? Como tentar descrever o pasmo de toda a povoação? E, no dia do
casamento, o resplendor de Gêgéca, no seu vestidinho branco de cassa fina, todo
enfeitado com muitas flôres naturaes de laranjeira? Sabem os leitores se tinha
ou não direito de carregal-as.
E o dia da partida? Ella a
cavallo, D. Cula em solemne banguê, toda lavada em lagrimas, e o Nhônhô
Fructuoso como capataz da tropa?
Ainda hoje se fala de tudo
isso
Quando desfilava o prestito,
não poude José Bispo, correspondendo enfarruscado ao cumprimento dos que
seguiam viagem, deixar de exclamar:
_ Lá se vão as alegrias de
Santa Rita!
E, para espairecer a
tristeza, deu, nesse dia, formidavel surra á pobre da Perpetua.
Entrou por uma porta e sahiu
pela outra, e acabou-se a historia.
Ficáram contentes? Não?
Pois então péção ao
Affonsinho, ao Celso, que lhes conte outra. Ninguem como elle para saber mil
cousas do sertão; e as narra com muita singeleza e graça, n’um estylo meigo,
attrahente, crystallino, assim á maneira de limpido regato a sussurar entre
margens floridas, magicas, encantadoras.
Cabeça e coração
(esboço
psychologico)
I
_ Repare, Bettina, na
pungente differença de idade que se interpõe entre nós e dolorosamente nos
separa um do outro. Nada de illusões de ambos os lados. Eu poderia ser, não já
seu pae, mas até seu avô. Veja como a mão do tempo me pesou sobre a pensadora cabeça,
o contraste dos meus cabellos brancos com a sua cabelleira negra, exuberante de
explendor e seiva, verdadeiro diadema da mocidade. Como querer unir as sofregas
impaciencias das primeiros anhelos da primavera á meditada calma dos ultimos
dias do outono? O presente não responde pelo futuro. Mil cousas imprevistas nos
esperão nos muitos meandros da existencia. Por mais que a razão prepondere, por
mais que busque guiar-nos e conduzir com segurança, cumpre contar sempre com as
surpresas do destino. A vida é rio mysterioso em que não há piloto, por mais
prudente e experimentado que seja, capaz de prever todos os perigos e fataes
correntezas, para lá de breve curva que o olhar alcança... E quer Você que eu
me constitua a causa da perda de muitas illusões suas, preciosas, repassadas de
encanto e sonhos, quando o viver se abre ante os seus passos tão cheio de
esperanças, promessas e alegrias? De orgulho se entumesce, de certo, o meu
peito por conhecer hoje, tão de perto, a intensidade do affecto que a sua generosidade
me dedica; mas urge que eu saiba resistir ao seu arrastamento... e ao meu,
tambem. Eu desposal-a? Um velho, para assim dizer, chegado quasi aos sessenta
annos! Prendel-a a mim, formosa, cobiçada por tantos, rica, seductora? Fôra
loucura de ambos... E que diria o mundo?
_ Que me importa o mundo?
Replicou arrebatada a bella e nevrotica donzella após curto silencio. Não lhe
incumbe, a elle, preparar-me a felicidade que a sorte complascente me indica e
que devo alcançar por mim mesma. Muito tenho pensado, muito perscrutado nos
recessos mais intimos da minha alma e no fim acho que, de todas as homenagens,
reaes ou fingidas, prestadas pelos homens, só me fica a lembrança, viva, suave,
profunda, da sua superioridade, Antenor, sobre todos. Conheci-o sempre tão
differente dos mais; Sinto, que a minha vida, sem a sua presença, o seu
contacto, o seu apoio terno e varonil, de infinda e vibrante meiguice, se me
tornará tornará tão vazia, tão ôca, esteril e pesada, que só essa possibilidade
me incute lethal tristeza, desalento enorme até ao fundo do coração. Que
sentimento senão o da verdade me leva a falar-lhe assim? Bem sabe, comsigo não
guardo segredos. Não poucos ambicionam a minha mão, desde aquelles que só tem
por si a banalidade da juventude, até aos que buscam deslumbrar-me com as
posições e honras conseguidas. Todos me tem falado de amor; só o Sr, conservou
a originalidade do silencio, embóra há muito reconhecesse eu que, no intimo,
não era, não podia ser-lhe indifferente...
_ Oh! Sim, interrompeu elle
com sincero arrôbo, quantas vezes me achei sem forças para reprimir impetos,
que, nem aos 25 annos, jamais me conturbaram?! Por compaixão, não me colloque
em posição dificil... ridicula, aos meus proprios olhos...
_ Até que invertidos os
papeis, continuou exaltada a moça, pude enfim arrancar-lhe o seu segredo.
Já sei, afianço-lhe o que é ser-se feliz! O que experimentei naquella tarde
decisiva, em que, após todos os seus acanhamentos e resistencias bem leaes e
valentes, o ouvi discorrer com mascula e irresistivel eloquencia sobre o amor,
applicando-o a nós dous, é indescriptivel... Não cerrei os olhos um só minuto;
e a madrugada me encontrou á janella triumphante, mas alquebrada, ardendo em
febre...
(1) Foi este conto resposta
á carta de um amigo já fallecido que, aos 60 anos, pediu a minha opinião sobre
um casamento desproporcionado, que afinal realisou. (Nota do Autor)
_ Bettina, Bettina,
implorava Antenor no tom de brando e dorido queixume, quanto me arrependo de
não ter sabido vencer-me... Perdôa o sonho... mais calma!
_ Que quer, meu bom amigo?
Actua em mim tambem a influencia do nome que me deram. Será Você... serás... o
meu Goethe!
_ Mas aquelle era um genio,
um ente privilegiado, a gloria de uma grande nação, o orgulho da intelligencia
humana: tudo merecia, a admiração dos homens, as homenagens do mundo inteiro, o
amor das mulheres, a adoração de todas as idades. Subira passo a passo como sol
offuscado em firmamento sem nuvens, tocára ao zenith, cada vez mais rutilante,
e ao accaso, a transmontar, illuminava com deslumbrante fulgôr o seculo em que
vivêra. Protestava-se a natureza intellectual ante aquella força creadora, tão
grande que parece impossivel excedel-a. Fez, com effeito, vibrar todas as
fibras do coração; desvendou-lhe, como o divinal Shakspeare, muitos dos seu
segredos; e abrangeu as mais arduas questões da sciencia; resolveu por méra
intuição abstrusos problemas; revestio todas as formas – Proteo estupendo e
sempre admiravel, ninguem o igualou na extensão e profundeza da inspiração e do
saber!...
_ Serás o meu Goethe,
insistia Bettina bebendo as palavras do seu apaixonado e fitos nelle os
quebrados e amorosos olhos; cada qual vive e se expande no circulo em que o
destino o fez nascer. Tivesses tido o palco que elle, o genio, pisou, e a tua
gloria houvera passado muito além dos limites que conseguiste.
Quem põe, assim mesmo, em
duvida a tribuna, o theatro, as lettras, a justiça dos concidadãos? Serás o meu
astro vivificador, o meu sol... Felizes das que te viram e te deram o tributo
do seu amor em teu zenith. Para mim fôra até demasiado forte o teu brilho de
então. Contento-me com os raios desse occaso, já que tanto me falas nelle...
Aliás, que sou eu senão simples prolongamento do teu espirito, da tua vida
moral? Quem me educou a alma, me infundio o gosto e o gozo da leitura, ávida,
insaciavel? Quem me guiou no labyrintho da literatura, me fez viver a vida dos
antigos, me incutio o enthusiasmo das obras primas, o amor do bello, da arte,
do honesto, do puro, do sublime? Que sou eu senão um filha da tua
intelligencia, do teu gosto, das tuas inclinações ideaes e sentimentos? E
com a felicidade ao alcance da mão hei de deixal-a escapar por preconceitos e
convenções que aborreço e a que não se dóbra a minha altivez innata? Que fazer
de mim, se antepuzeres os argumentos da fria razão a todos os impulsos da nossa
alma? Valerá tão pouco, aos teus proprios olhos, a creatura intellectual que
afirmaste e é obra exclusiva tua, que, em nome de um enlace bem equilibrado
segundo leis physicas, meramente materiaes, a atires, sem consciencia nem
remordimento, nos braços de qualquer peralvilho ridiculo, nullo, brutal ou
effeminado?
_ Já vivi demais, objectava
Antenor com sensivel anciedade patenteando a lucta que se lhe travára no
intimo, e o que sei da existencia me ensinou a desconfiar do que me resta
viver... Acostumam-se os passos do homem tanto a subir, quanto a descer, e
agora só me toca ir baixando, costas voltadas para o ponto culminante da
parabola vital... Tenhamos ambos justa comprehensão das cousas... saibamos
resistir a nós mesmos...
E com os olhos a brilharem
de emoção, difficilmente refreada:
_ Calcule os esforço que me
custa este apello. Imagina abandonada estatua em florido jardim a repellir, se
lhe fôra possivel, o pendão de rosas que busca engrinaldar-lhe a fria e
marmorea fronte...imagina viajante exhausto da cansativa jornada a fugir da
fonte fresca, pura, sussurrante, que lhe vai estancar a sêde e restaurar-lhe as
perdidas forças... Terei, porém, energia; afastar-me-ei d’aqui, destes lugares
que tanto estremeço, bem sabe a causa, deixal-a hei neste ambiente de perfumes
e magicos encantos, do que a minha alma levará sofrega algumas parcellas para
suavisação de immensas dores futuras... e depressa virá o esquecimento, o
olvido certo e merecido, dar-me razão. Rapidamente a ausencia me envolverá em
densas trevas... Experimentemos, Bettina...
_ Fôra rematada loucura,
indigna da sua reflexão, contrária a tudo quanto lhe ensina o conhecimento que
tem do coração humano... Pelo menos, assim se me afigura... Por mim quero
julgal-o. São susceptibilidades de exaggerado melindre, de exaltado e
meticuloso cavalheirismo, que mais o levantam aos meus olhos... Aliás, para que
e como discutir sentimentos?
_ Dolosa conselheira é a
imaginação... Não se deixe enlevar por fugitivas illusões.
_ De que vive o amor, qual o
seu perenne alimento, senão a fantasia? Deixe-se de hesitações que afinal
acabam por deslocar-me, longe de mais, do meu papel natural. A mim não competia
vencer resistencias dessas, sobretudo com o meu genio altivo e independente...
Quer Você argumento superior a tudo? É este o impeto que me impulsiona, o meu
desejo supremo... e basta!
Prosseguindo com voz
insinuante:
_ Descanse em mim, Antenor.
Acceito o simile de que há pouco usou: corôarei de rosas e lyrios os seus dias.
Entregue-os, sem receio nem vacillação aos meus cuidados. Tomo compromisso
solemne , no momento em que eu suspeitar de mim mesma, qualquer falha, o menor
desfallecimento na adoração que lhe consagro, abrir-lhe-ei o peito na mais depuradora
e completa confissão, achando novo alento nos seus conselhos, na sua direcção
espiritual, no seu apoio tão cheio de experiencia e meditação. Falte eu a esse
juramento, bem inutil e... deixarei de viver... Por elle respondam a minha
salvação eterna e as sagradas cinzas da minha pobre mãe, tão cedo perdida!...
Para que, porém, formularmos crueis hypotheses em plena alegria? Para que
pensar em catastrophes e nos horrores de subversões moraes, quando tudo sorri
em torno de nós?... Cogitar em medonhos terremotos, cercados dos esplendores da
natureza boa, suggestiva, amante, toda ella hymno de paixão exultante e
creadora, na plena segurança da estabilidade das cousas e da bondade divina,
não será tentar os céos?
E Bettina, encostando a
esculptural e imaginosa cabeça ao hombro do nobre e esbelto varão, o escolhido
da sua alma, alli ficou extatica, sentindo as pulsações de um coração em que
cégamente confiava e de cuja lealdade tinha, já de largos annos, todas as
provas possiveis.
Invadia-lhe o ser todo
intenso desvanecimento: inspirar amor profundo, irresistivel, a quem merecia da
mais culta sociedade acatamento e incontrastavel prestigio por innumeros dotes
da intelligencia e do caracter, e haver sabido resguardar-se para esse ente
excepcional, deixando que a razão e o sentimento apontassem á sua escolha de
entre os muitos que a requestavam e lhe faziam solicita, ardente e zeloza
côrte, já pela innegavel belleza, já pelos avultados bens que mais realce davam
á formosura ea raro cultivo de espirito!
Tempos depois, casavam-se
Antenor e Bettina.
Duas ou trez semanas, foi
assumpto de todas as conversas o disparatado enlace, cuja iniciativa, assim se
dizia e cochichava, pertencêra mais directamente á desposada; mas afinal,
acalmada a bisbilhotice, acabou a sociedade, por admirar, com sorpreza e
inveja, a serenidade que protegia com as suas brancas azas o ditoso lar,
naquella união intima do fulgor da juventude com a magestade, ainda que
decadente, de uma existencia credora, certo era, do respeito de todos.
II
Dous annos de profunda
calma, senão de real e bem accentuada felicidade.
Sentia Bettina tanta paz de
espirito, tamanho socego de corpo, como que mysterioso e inquebravel silencio
dentro e em torno de si, que aquillo lhe parecia mais torpor e adormecimento de
todo o seu ser, outr’ora tão irequieto e caprichoso, do que mesmo
tranquillidade. Estabelecêra-se natural prolongamento da depressão que á mulher
costuma trazer o casamento em sua iniciação physica, caracterisada, máo grado
todas as meiguices e cautelas, por um cunho feroz de lubricidade e violencia.
D’ahi, sosprezas immensas, dolorosos retrahimentos e cogitações deprimentes,
que só podem ser attenuados e vencidos pela impetuosidade e pelos ardores do
noivado.
Em lugar, pois, de
experimentar do objectivo alcançado intensas alegrias tão esperadas e
promettidas pela imaginação, via nelle, pelo contrario, motivos de desalento e
desengano, com que de certo não contára. E por essas falhas do sentimento
sincero e violento que a envolvêra toda á maneira inteiriça e inatacavel
couraça, se lhe ia insinuando, lenta, mas insistentemente, inexplicavel tédio
da vida, desgosto de si mesma e, mais que isto, a impressão de um castigo por
falta, ou erro, e erro irreparavel, inconscientemente comettido. Buscava
analysar o que lhe ia n’alma e afigurava-se-lhe que penetrava sem guia, nem
fio, em um labyrintho inexploravel, cujas voltas de todo desconhecia e que a
deixavam perdida em densas trévas, sem mais orientação possivel. “Que
tenho?”perguntava com certo terror a si mesma nos rapidos momentos em que
ficava a sós e livre da solicitude, aliás tão intelligente e estremecida do
esposo, todo carinho e suavidade. “Porque não me sinto completamente feliz? Que
me falta? Quero sel-o; quero, eis a minha vontade, e nada a ella resiste. “Punha,
portanto, esforçado empenho nisso, mas o desanimo caminhava a par das mais
valentes intenções; d’onde, alguma irritação já contra a serenidade que Antenor
dispuzéra ao derredor delles dous com tanta discrição, quanto zelo. Parecia-lhe
um desencontro. Teria talvez, quem sabe? achado mais adequada a inversa,
expandir-se em festas e no ruido do mundo. Aspirava elle a concentração cada
vez mais intima, na identificação de todos os gostos e preferencias, ao passo
que Bettina experimentava nesse circulo, que lhe parecia apertado demais,
desillusões vagas, pouco definidas e no intino appellava para mais alguma
agitação afóra, afim de dissipar o tão inesperado e inconcebivel mal-estar. E
com isso iam despertando, inquietos, attentos, malevolos, os singulares e
contradictorios impetos do nervosismo que desde menina tão imperiosamente a
haviam dominado.
Deixando-a apathica,
retrahira-se-lhe a imaginação como perfido ou descuidoso companheiro que,
depois de leval-a arriscado passo, de repente se sumira, trefego, desleal,
abandonando-a sósinha em perigoso lance. Buscava ver só razões de applauso no
enlace que formára, muitas vezes enumerava, ainda com orgulho, as qualidades
que, aos olhos de todos, tanta preeminencia davam a Antenor; e já lhe iam
nascendo impasciencias por encontral-o tão perfeito, segundo o que lhe podia
exigir a alma com esphera pura e elevada.
Toda essa evolução, porém,
em extremo lenta, morosa e a se arrastar, como insidioso reptil, de um dia para
outro, formando uma só cadêa de élos tenues, irrompivel.
Quis Bettina voltar-se para
o passado e nelle estudar a historia da paixão que a avassalára com tanto
imperio, fazendo-a victoriosa de não poucos tropeços, resistencia do tutor,
conselhos e rogos dos irmãos, das amigas e até daquelle que afinal se tornára
seu esposo, e ficou pasma de haver posto tão grande violencia a cousas que
agora lhe pareciam, senão de todo mortas, quasi indifferentes.
Embora aborrecendo os livros
naquella quadra fatal, ella que devorára quantos lhe haviam cahido debaixo da mão,
releu pausamente as obras do marido e releu-as com os olhos da critica
prevenida e disposta a severidades e não mais com os arrastamentos e sympathias
do coração. Achou-as correctas, em puro estylo; mas, como de facto eram, frias,
alambicadas, demasiado polidas, sem esse colorido, essa espontaneidade que
attrahe, agarra e dá á idéa vida original, brilhante e por vezes immortal.
Pareceram-lhe então as pesias de Antenor, na sua perfeição metrica e rythmica,
reflexo pallido, esbatido, de versos de outrem, já lidos, não sabia quando, há
muito tempo, cuidadosamente açacaladas, mas sem fibra, nem estro; assim essas
figuras aéreas, subtis, insubsistentes, destituidas de fórmas e contornos
claros, que espelhos combinados de longe e em certa inclinação chegam a reproduzir
no espaço e fazer fluctuar como fantasticas visões. Na exuberancia de
tropos, na diffusa abundancia de palavras, faltavam os musculos, nervos,
circulação de fluido intenso, cálido, vivificante, áquellas evocações.
Apparições como que de uma existencia anterior, já passada, já extincta, a
suscitarem só saudades na indecisa e anciada aspiração á realidade.
As interminaveis palestras,
repassadas de tamanho encanto em quetanto havia aprendido, a ouvir Antenor
discorrer horas inteiras sobre um sem numero de assumptos com suave eloquencia
e indiscutivel saber, agora lhe pesavam na sua feição de legitinas conferencias
sem razão de ser nem cabimento. E, na indeterminação do que mais podia
agradar-lhe naquella phase de inexprimivel displicencia, ora as cortava por
modo repentino, quasi aspero, desagradavel.
Preso não pouco tempo o seu
espirito á direcção e influencia exclusivas de Antenor, aspirava, quando menos
convinha, a reconquistar a liberdade, a readquirir independencia e autonomia no
modo de encarar as cousas e questões. Por isto tambem achava prazer especial e
acre em contrariar, a principio timidamente, mas depois bem de frente, opiniões
e sentimentos que, comtudo, no fundo e na essencia, reconhecia justos e
indiscutiveis.
Nessas occasiões ainda a pungia
o olhar sorpreso e magoado de Antenor, que buscava logo, prudente e
cavalheiroso, impedir qualquer causa de azedume e dissidencia emtre ambos, por
mais passageira quefosse.
Mas a cautelosa e meiga
condescendencia do marido se, nos começos, lhe levava ao intimo certo travo de
remorso, depois se lhe foi tornando motivo de mais irritação.
Quizera encontrar
impugnações varonis que lhe desbaratassem os caprichosos e premeditados
argumentos e dessem curso differente aos pensamentos. A increpação de injusta
que lhe irrogava a propria consciencia foi-se curiosamente transmudando em
proposito formal de Antenor para affirmar cada vez mais o assignalamento da sua
superioridade.
E tudo isto, que se
desenvolvia lenta e gradualmente nos recessos mais reconditos da alma, em vez
de desvendal-o com leal e nobre franqueza ao esposo, conforme tanto promettera,
incobria-o acautelada, possuida talvez do vexame de si mesma.
Por tal forma, porém, serena
a superfície do formoso lago, que ninguem poderia sequer desconfiar das correntes
encontradas que se moviam nas profundezas da massa liquida. No exterior, tão
somente toques de sensivel melancolia, sombras, embora leves, como que de
longinquas nuvens a perpassarem adelgaçadas sobre o disco do sol.
Nessas duvidas e agitações,
conheceu Bettina que já era mãe.
III
Terriveis os meses de
gravidez. Despertou vivaz, impetuosa, a imaginação de Bettina, sujeitando-a, em
longas semanas de impossivel descanso, a agudo e assustador soffrimento.
Não pensava senão em
desgraças e morte, quando não era na perda completa da belleza, na insanavel
deformação do corpo e dos encantos physicos, hypothese ainda mais intoleravel
ao conturbado espirito.
Desenvolvia Antenor, punha
em pratica todos os recursos da solicitude e da paciencia, da razão e do
sentimento, para combater e dissipar essas tetricas apprehensões, que revestiam
mil fórmas caprichosas e de feroz nereustemia; mas, não raro, já no intimo se
reconhecia cansado de tarefa tão ingente, em que não lograva senão mui parcialmente
os justos fins.
Começava, aliás, a
entrar-lhe a convicção de que naquelle enlace não se déra, nem mais podia
dar-se a sonhada e indispensavel identificação das duas naturezas, moral e
physica, e d’ahi razões de inquietação, embora cuidadosamente refreada e
comprimida nas mais vagas cogitações.
Zelava as menores
apparencias de um estremecimento, que, apezar de toda a sincera intensidade, no
fundo o fadigava, desviando-o, com imperiosa e constante exigencia, dos estudos
litterarios e das pesquizas philosophicas, que lhe eram tão caros e tanto lhe
haviam antes amenisado e embellecido a existencia. Verificava, então, com
sobressalto, que se enganára, elle tambem, havendo já de muito passado a idade,
transposto os limites, em que a mulher é absolutamente tudo, o idolo, o culto
exclusivo, a origem, o centro dos mais extraordinarios e absorventes
sacrificios e dedicações. Amava, de certo, profundamente a esposa, de cuja
posse experimentava tanta ufania, mas quizéra nella encontrar uma fonte de
alevantadas inspirações intelectuaes, e não uma causa de perenne perturbação, a
girarem ambos n’um circulo de apertadas idéas, sempre as mesmas e sempre a
renascerem, quando pareciam desvanecidas e até suffocadas.
No meio de todos os sustos e
terrores, um consolo tinha Bettina; a inabalavel certeza de que o filho (pois
obrigatoriamente, no seu entender, havia de ser um menino) traria dos mundos
desconhecidos genio e belleza irresistiveis, destinado, como devêra ser, a
futuro raro, bem raro, nos annaes dos fados humanos. E com a exaggeração que em
tudo punha, uma vez abertas as azas á imaginação, já o via no pinaculo da
gloria, cercado de resplendente aureola, illustrando de modo offuscador o nome
dos paes, guindado ás mais altas e cobiçadas posições sociaes. Que poeta havia
de ser, que orador e estadista! Ninguem o sobrelevaria em talentos, majestade e
formosura, além da innata distincção. Com a singular condescendencia de mãe,
aprazia-lhe ao pensamento a idéa de que mulher alguma poderia resistir á
seducção de ente tão superior.
Nasceu, com effeito, um
menino; porém, só em parte realisava as douradas esperanças; se tinha notavel
correcção e delicadeza na graciosa miudeza dos traços physionomicos, pela
debilidade geral e melindrosa compleixão mostrava que não viéra á luz
apercebido dos meios para as luctas da vida. Poude, graças a cuidados nunca
vistos, resistir ou antes definhar uns treze mezes; mas afinal partio para o
céo. Nem havia como prendel-o por mais tempo á terra.
Indescriptivel a dôr de
Bettina. Esteve entre a vida e a morte e quasi acompanhou o filhinho. Vencida,
por fim, a agudeza da crise, que não pouco durou, de todo o crudelissimo
periodo lhe ficou singular impressão, o direito de irrogar; lá de si para si,
formal accusação ao marido. A elle incumbia Ter incutido alento e força,
valentia organica e vitalidade ao ente que haviam creado, a ella belleza e
graça; e se um cumprira a sua missão, o outro ficára muito aquem. E ahi,
reflectia com pungente insistencia na differença de idade, que lhe haviam
todos, annos antes, apontado como irreparavel desacordo, emergindo dessa
dolorosa meditação medo immenso de ver renovados os desenganos e as provações
da maternidade.
Com a injustiça propria do
caracter humano, achou que a resistencia de Antenor não fôra, por egoismo,
bastante leal e vigorosa; talves mais um meio de fortalecer e accender pela
contrariedade o capricho e a teimosia, as violencias da imaginação, o amor de
cabeça, em summa, que a levára ao casamento. Fazia-se então de victima immolada
ao interesse de outrem. Fuzilavam-lhe até na mente feias e deprimentes
conjecturas que, indignada comsigo mesma, buscava a todo o transe abafar e
reprimir. Quem sabe se aquelle homem... aquelle velho, não havia
particularmente visado á sua fortuna, aos bens que lhe constituiam quantioso
dote?
E, apezar de todo o empenho
em desviar-se desse resvaladiço declive, via-o sempre aberto á meditação, a
attrahir-lhe os passos, tão facil é a insufflação de malevolo pensamento,
perigoso germen, prompto logo a crescer e deitar fundas raizes.
Por esse tempo, julgou
Antenor dever recorrer á agitação da sociedade para dar derivação e lenitivo á
acabrunhadora tristeza da mulher. Não foi, porém, sem custo quer conseguio
arrancal-a ao marasmo e leval-a a bailes, theatros, concerto e festas.
Como radiosa e incomparavel
revelação appareceu então Bettina aos olhos do mundo, realçada a peregrina
belleza pela sympathica melancolia, que lhe ensombrava o demasiado fulgôr.
Sorpreza e um tanto oirada do movimento que tamanho contraste fazia com o modo de
viver passado, docemente a acariciaram logo as homenagens de que se vio
gerarchia, já, e ainda mais, pela admiração dos homens.
Tambem, em pouco tempo, máo
grado as reluctancias do marido que via ultrapassado o objectivo collimado,
entregou-se ella de todo ás complicadas e interminaveis imposições da
convivencia social, sem mais se importar com as censuras tacitas de Antenor bem
accentuadas pelo cansaço physico, que a este não era mais dado occultar.
De volta de brilhante baile,
prolongado até a madrugada, nesse mesmo dia havia que tomar-se parte em pomposo
e longo banquete e, logo depois seguir para algum theatro ou concerto, em que
se tornava obrigatorio o comparecimento de todo o high-life – uma roda
viva, enfim!
Para longe, a tranquilidade
do lar, as horas placidas, iguaes, mas tão suaves, consagradas ao socego a ás
doces expansões da vida interna e de familia! Com avassalador despotismo e no
meio do ruido e de mil leviandades, era agora o mundo que regulava a
vertiginosa existencia daquelles dous entes, mal lhes dando tempo para
respirarem.
A Bettina, de certo, não
faltaram adoradores que sem rebuço, aspiravam á sua conquista, tributando-lhe
incessante e entontecedora côrte. Consevou-se, porém, superior a todas as
tentativas e a qualquer desfallecimento e, em certa occasião, chegou a entregar
ao marido cartas de um dos seus mais ardentes apaixonados, escriptas com a
sincera eloquencia de um sentimento vehemente, incoercivel.
Nessa dificil e delicada
emergencia, procedeu Antenor com tão immediata decisão, tanto tino e melindroso
apreço dos seu direitos e interesses, que grangeou os applausos geraes da
sociedade e mais se levantou na estima de todos. Ficou-lhe grata a esposa por
tel-a desembaraçado tão geitosa e energicamente daquella compromettedora assiduidade,
que do seu lado repellira com toda a altivez.
Nem por isto, porém, cedeu
menos ao arrastamento dos bailes e das soirées.
Numa dessas noutes, foi que,
pela primeira vez vio e conheceu Fernando de Aguiar, há pouco chegado da
Europa. Apresentado por uma amiga entre duas quadrilhas, com elle dansou umas
voltas de cerimoniosa valsa e trocou algumas palavras indifferentes.
Sem saber pelo que, porém,
sentiu-se toda perturbada, com repentino aperto, quasi dôr, de coração,
angustiada, como que presa de grave e indefinivel mal e deu-se pressa em
regressas á casa. Deitada, só poude conciliar agitados momentos de somno,
quando os raios da aurora acariciaram doce e pallidamente as janellas do seu
bello e senhoril palacete de residencia.
IV
Para Bettina começou então
uma existencia de continuo supplicio. Invadira-lhe o ser todo, de
repente, de momento, como cidade tomada de assalto, por indomavel horda, a mais
violenta paixão, um d’esses movimentos de irrefreavel impetuosidade, que não
consentem a menor resistencia, um só minuto de reflexão, a mais simples
contrariedade, a mais leve objecção intima. Era cousa fatal, infallivel, que se
impunha como ordem sobrenatural, a que não havia senão curvar-se e obedecer.
Imagine-se vasta represa de
agua, cujas falhas no muro de sustentação quasi lineares e invisiveis de subito
de abrissem como brechas enormes, deixando que toda a massa liquida irrompesse
louca, devastadora, em ondas, catadupas e medonhos torvelinhos.
Tanto buscára ella outr’ora
estudar o arrastamento que a pouco e pouco, passo a passo, a levára aos braços
de Antenor, tanto analysára em todas as faces a meiga influição d’aquelle doce
affecto, declive caro aos seus instinctos, quanto, agora, impossivel lhe era
ter mão no pensamento, guial-o, dirigil-o e calcular qualquer das consequencias
desse novo e tão diverso sentimento.
Amava porque amava, não
achava outra razão; vassalagem a uma lei de irresistivel imperio e lei
como que meramente physica, pois se affirmava pela dôr acerba, teimosa,
intoleravel, no organismo todo, - pontadas, sobretudo, finas, agudas,
terebrantes no coração, a penetrar-lhe as fibras mais secretas, suffocações que
quasi a faziam desmair, a sós, no fundo do seu quarto, ardendo em febre e
rolando convulsamente sobre o leito, que lhe não dava um instante de repouso.
Era todo o seu corpo presa
de verdadeiro abrazamento, arredada da conturbada e estupefacta mente qualquer
lembrança que não fosse elle, só elle! Não queria, ou antes, não podia
examinar, por pouco que fosse, a origem de tamanha absorção, esse aniquilamento
de toda a posse sobre si mesma, ficando-lhe vedado indagar se Fernando de
Aguiar valia tanto, tanto assim e porque accendêra tão violentas chammas.
De certo, não tinha o ideal
de tão ardentes sonhos nada que o salientasse particularmente do commum dos
homens, nem sequer o physico, mais para o insignificante e o vulgar do que para
a excepção. Ah! sim, possuia a mocidade, e d’ella emergia pujante, victorioso,
como um hymno de saude e força, esses prestigio immenso que Bettina, annos
atraz, capitulára de simples banalidade da juventude. De quanta possança,
porém, esse pretendida banalidade! Que de regalias e privilegios na encantada
primavera que floresce uma vez só e não mais se renova e volta! O brilho vivo,
scintillante, dos negros olhos de Fernando de Aguiar, bem rasgados e um tanto
audazes, o assetinado da cutis, a arrogancia do sedoso bigode arqueado sobre os
labios rubros e humidos, valiam antão mais, mil vezes, do que os mais bellos
versos e as palavras mais doces e convincentes de Antenor, veladas pela
melancolia dos annos já passados.
Ahi era o coração que
decidia, entorpecidos a razão e o raciocinio, naquella dolorosa e acabrunhadora
hypnose.
E cada vez mais se
accentuavam os soffrimentos physicos de Bettina, cuja saude começou a
resentir-se sériamente de tamanhos abalos. Emmagreceu, tornou-se mysteriosa,
concentrada, numa constante e tristonha passividade, quer em casa, quer no
turbilhão das festas. E se não fugia d’ellas, era unicamente para poder ver e
encontrar o objecto do tresloucado amor, empenho tão claro e insisitente que a
sociedade e o mesmo Antenor afinal não podérão deixar de nelle reparar.
Ruia por terra antes as
vistas, desilludidas para todo sempre, o edificio da felicidade que julgára
poder levantar, ainda que nos alicerces tivesse, com a observação das cousas
humanas, entrado, desde principio, certa descrença e algum desalento. Buscou
medir a extensão do mal, mas, á primeira tentativa, não ousou aprofundal-o.
Recolheu-se então, como ultima salvaguarda e recurso extremo, á protecção de
uma idéa fixa – a impossibilidade de vir a perigar a sua honra.
Tudo quanto se passava não
iria além de um capricho da exaltada imaginação de Bettina. Oh! bem conhecia do
quanto era capaz! Não tardaria, porém, muito e cahiria em si, abrigando-se á
segurança do lar, prompto para acolhel-a no arripiar carreira em senda de
leviandades, já um tanto compromettedoras.
Factos anteriores davam-lhe
bem segura garantia.
Não fôra tão expontanea a
entrega d’aquelle masso de cartas? E tratava-se então de um cavalheiro
distincto, habil, de intelligencia reconhecida, com grandes recursos de
espirito e de salão e não poucos habitos de seducção, ao passo que Fernando de
Aguiar... qual! que absurdo! Um ente tão futil, tão nullo! Não, aquelle
enthusiasmo não repousava em base alguma, tinha que desapparecer tão facilmente
como havia surgido, por méro erro de apreciação: abusões dissipados sem esforço
algum, á maneira de nevoas que ensombram formoza paizagem, sem poderem obscurecel-a.
Ah! quanto se enganava a
experiencia d’aquelle homem!
Em certa manhã, desappareceu
Bettina do seu rico e senhoril palacete de residencia. Havia, rompendo com
todos os deveres e principios, tomado passagem n’um vapor transatlantico e
fugido com o amante para a Europa.
A corajosa altivez com que
se portou então o infeliz marido, a energia com que tratou de vencer e recalcar
sua dôr e repellir de si o immerecido labéo, o prompto divorcio que conseguio,
destacando o intemerato nome do da culpada esposa, a quem, sem demora, mandou
entregar, com a mais escrupulosa exactidão e minudencia, os bens que havia
trazido comsigo, tudo isso, praticado sem a mais ligeira hesitação ou sombra de
sceptica jactancia, impedio que o ridiculo de leve salpicasse a alevantada
personalidade de Antenor. E para mais erguel-o no conceito publico, mezes
depois, publicava um livro da mais ampla esphera moral, que girava, mais ou
menos, em torno da melindrosa these que lhe fôra peculiar; e ahi o escalpello
imparcial e cuidadoso do analysta tudo dissecára, fazendo justiça inteira
a quem tinha ou não tinha por si a razão e o direito; obra de cunho
verdadeiramente original e escripto por penna vigorosa, mas d’onde por vezes
decorrêra muito pranto amargo.
Guardavam-lhe ainda o travo
não poucas paginas.
Quanto á Bettina, mezes após
o irreparavel acto de loucura, via-se a braços, com o mais cruciante
arrependimento.
Extincto o fogo da paixão,
como sempre acontece, tinha de supportar vencida e humilhada, as consequencias
da posição equivoca a que se atirára, mas que o mundo jamais perdôa, ao lado de
quem brutalisando-a logo, malbaratava a fortuna, que não lhe pertencia, no jogo
e com as mulheres de occasião.
Dentro em breve, reconhecia
que para Fernando de Aguiar tornará-se peso quasi inaturavel.
Quantos golpes, a todos os
momentos do dia, no seu orgulho, annos antes tão susceptivel e tyranico!
Diante da miseria se abria
longo, indefinido, interminavel, um futuro arido, medonho, sinistro em todo o
seu mysterio, como illimitado deserto, sem uma sombra, uma fonte, uma arvore, o
menor lenitivo ás agruras de martyrisante viagem, para no fim encontrar, como
terminação de indiziveis agonias, a morte, só, desamparada, motivo de chacóta e
de desprezo, repellida por todos!
Desgraçado destino! Dia e
noite chorava sobre si mesma todas as lagrimas da sua alma, tão mal guiada, já
pela cabeça, já pelo coração!...
Uma vingança
I
Num baile – já pouca gente;
muitas cadeiras vasias.
Ella, sentada, um tanto
abatida, identificada com o enfado e a fadiga de uma festa a acabar, a ouvir
como por favor e com ar de sensivel amúo e impaciente condescendencia um homem
no vigor dos annos a falar, ardente, arrebatado, numa grande agitação, sombrio,
desconfiado, mas sobrio nos gestos a conter-se calculadamente – ambos longe,
bem longe d’aquelle ambiente de alegrias e despreocupação, hostis um com o
outro.
_ Precisava, observava elle,
explicar-me com toda a liberdade. Desde que cheguei do Rio da Prata, não achei
uma única occasião. Verdade é que a senhora tem feito estudo especial para não
me consentir o menor ensejo. Isto não póde continuar assim; prefiro então
romper de uma boa vez. Declaremo-nos logo inimigos irreconcilliaveis.
_ Pois fale; diga o que tem,
o que de mim deseja.
_ Aqui? Agora?
_ Por que não? Onde quereria
que fosse?
Esboçou Sofia Dias um
movimento de displicencia e incredulidade.
Inclinando-se para ella,
lembrou então Mario Campos, com vos soturna e emocionada, scenas do passado e
passado bem proximo ainda – mezes quando muito – a sua posição de homem casado,
e bem casado uns bons pares de annos, ante as seducções e inexplicaveis
faceirices, quasi facilidades de moça formosa e solteira. Tanto fizera – oh!
escusado era querer protestar; a sociedade toda havia sido testemunha e sabia
ser justa – que afinal perdera elle a cabeça, e lhe consagrara paixão céga,
invencivel, de inaudita violencia. Méra victima ou não do artificio e dólo,
durante não pouco tempo se suppuzera devéras amado. Rico, feliz, esposo de uma
mulher bondosa, bonita e terna, de repente se sentira, sob o influxo d’aquelle
sentimento novo insuflado com raro talento suggestivo, o ente mais desgraçado
do mundo, avassalado irremediavelmente por influencia que zombara de todo o
seus planos e tentativas de resistencia. Que fazer então da vida, longa, tão
longa n’aquelle horrivel desencontro! Como readquirir a felicidade perdida para
todo sempre?
_ Oh! interrompeu ella
irritada e sardonica, há tantos modos de ser feliz...
Podia ser, sobretudo para
aquelles que não calculavam o enlace dos actos e palavras. E por falar em
palavras... certa noute, por exemplo, n’uma volta de bond do Jardim
Botanico, ao luar, dissera-lhe ella uma phrase, que lhe havia calado no
espirito para nunca mais de lá sahir. Fixara-se-lhe dentro d’alma com letras de
fogo, que a cada momento do dia e da noite lhe luziam ante os olhos
deslumbrados. Não se lembrava?
_ Não; respondeu Sofia com
sinceridade e algum assombro. Que poderia eu ter dito tão terrivel e sinistro?
Não me mette medo.
Quis sorrir; mas o sorriso
pairou-lhe indeciso, frouxo, á flor dos labios, d’esses sorrisos chamados
amarellos.
Tivesse ella ou não medido o
effeito, houvesse ou não sido mais uma simples leviandade, a sua bocca a
proferia, lembrasse-se bem do seu dito: “Ah! se você fosse livre!”
_ Ora, protestou Sofia,
empallidecendo seu tanto, uma hypothese...
E agora não estava elle
livre, bem livre? Que significava, nessa nova situação o seu inopinado
retrahimento? Por que se mostrava elle tão esquiva, tão indifferente dos tempos
de out’rora, decorridos apenas seis mezes empregados n’essa indispensavel –
e apoiava no vocabulo – viagem ao Rio da Prata? Quando suppunha encontral-a
vibrante de amor e saudades como elle, quando julgava alcançar a felicidade
almejada a que tinha feito jus – oh! sim, tudo, tudo empenhara para conseguil-a
– ahi a achava radicalmente mudada, outra, de todo outra! Por que? De que
servira então aquelle anno de ardente affecto, pelo menos assim acreditara, de
tamanhas promessas e juras? Não teria elle sido senão mero joguete de
passageiro capricho, pretexto para ensaiar simples armas de namoradeira?
Sofia Dias mostrava-se cada
vez mais impaciente. Fez até gesto de quem ia levantar-se.
Por que se déra toda aquella
comedia? A sua infeliz mulher alvo de tantos remoques, motivo de continuos
reparos e criticas, exposta a incessante ridiculo, até se lhe tornar
positivamente insupportavel. Não tinha gosto, não sabia vestir-se, escolher
chapéos; innumeras settas farpadas, envenenadas, na sua mal ferida vaidade de
marido. Meros gracejos? Brinquedos de um coração máo, ardiloso, cruel,
insensivel? Oh! tomasse tento, aquella hora era decisiva. Passada ella, titaria
vingança tremenda; era de raça dos que não perdoavam.
E, offegante, n’uma phrase
curta, dura, contava episodios até da infancia, em que se affirmara a
irresistivel disposição ao desforço, violento por qualquer offensa ou injuria
recebida. Sua mãe lhe dissera um dia:”Menino, voce com este genio há de acabar
mal!” Quem sabia se o horoscopo não se ia realizar. Uma cousa lhe jurava.
Alguem havia de pagar. Não se adiantara tanto, para ficar, perante todos, como
triste symbolo de irrisão e escarneo, menospreço e miseria.
E os seus olhos chammejavam,
dolorosa crispação dos labios lhe erguia o canto da bocca. De longe, parecia
estar sorrindo, todo entregue a animada, ainda que banal, conversa de baile.
Sofia o ouvia com expressão
de extremo cansaço. Afinal rompeu o silencio.
Confessava que a elle
assistia alguma razão. Andára mal, concordava; solteira e pretendida por não
poucos, não devera nunca ter alimentado um sentimento reprovavel, que não tinha
razão de ser. Sahira do seu papel natural e pagava as culpas da leviandade,
sempre amarga. N’aquelle tempo não media as consequencias de uns olhares mais
quebrados e imprudentes e os effeitos perigosos de qualquer namorosinho.
Aquillo lhe serviria de lição. Fôra, aliás, bem sincera na hora em que
pronunciara aquellas palavras, sem comtudo lhes dar maior significação.
Alludira, com real pezar, a cousa irreparavel e contra a qual não havia luctar.
E fôra essa convicção que, pouco a pouco, lhe abrira os olhos, desviando-a do
caminho errado que seguira. Não diz o proverbio que o que não tem remedio,
remediado está? Na ausencia d’elle, Mario, tanto lhe girara no pensamento essa
verdade, que afinal pudera dominar-se. Quem, aliás, havia de imaginar, que tão
cedo a pobre D. Beatriz sahiria d’este mundo, desligando com o seu
desaparecimento laços que deviam ser eternos? N’isso o Barroso pleitéara a sua
mão e elle não achara motivos para o repellir, bem parecido, intelligente, em
bella posição politica, ministro talvez breve; que dizer contra esse candidato?
_ E você o ama, Sofia?
Perguntou a custo, arquejante, o malaventurado Mario.
_ Amal-o, não, mas enfim
gósto d’elle, não há duvida. Creio que sou refractaria a paixões violentas,
arrebatadas. É outro o meu genero...
_ Sim observou Mario,
ludibriar áquelles a quem prende na rêde dos seus olhares fataes. Sofia deu um
muchôchosinho:
_ Bom, temos melodrama...
Amiudadas vezes passava o
moço o lenço pelo rosto, limpando gottas de frigido suor.
Insistia, porém.
Por que deixar de realisar o
que era tão natural, uma vez apartado o único obstaculo que se interpuzera
entre os dous? Por ventura, valia elle menos do que esse intruso, o tal
Barroso? Era, de certo, um pouco mais velho; mas tinha por si a precedencia.
Ninguem estranharia aquelle casamento com quem tanta corda lhe déra n’uma época
em que não deveriam Ter sido aceitas as suas assiduidades. Culpa tivera ella,
induzindo em erro tanta gente.
Sofia ensaiou um gracejo e
com tom de remoque:_ Para nós, solteiras, o senhor... você tem um grave
defeito: é viuvo.
Pelos olhos de Mario
relampejou um raio de odio e ferocidade tão visivel e intenso, que a moça
estremeceu. Com os dentes apertados sybillou a resposta:
_ Quem me fez viuvo, ouviu?
Não tem o direito de me attirar isto em rosto, comprehende?
E o seu olhar torvo,
dardejante, desvairado, buscava ir ao intimo de Sofia, explicando-lhe talvez
mysterios terriveis, possibilidades de apavorar, completando a confissão
confusamente bosquejada.
Por instinctiva defesa
fechou-se a moça, fazendo poderoso esforço para conservar-se calma, serena,
alheia e superior a qualquer connivencia, por longe que fosse.
Via-se subitamente envolvida
em tenebrosas complicações, ameaçada de perigos de que nunca pudera cogitar, e
cujo alcance não lhe era dado medir; tudo isso vago, indefinido na mente
conturbada.
Ao mesmo tempo surgia-lhe
medo immenso, incoercivel, d’aquelle homem, cruel alvoroço por toda ella,
penosas explicações, arrependimento indisivel da sua leviandade e
inconsideração, levada só e só pela ancia das homenagens, viessem de onde
viessem, o gosto de dominar e ser requestada.
Continuava Mario Campos
ameaçador.
Tudo caminhava para a tragedia;
assim presentia. Quando quizesse ter mão em si, havia de ser tarde. Avisava...
_ Então, interrompeu Sofia
fingindo indifferença, temos agora intimidação? Quer levar-me pelo terror?
Elle, de subito, muito manso
e cordato, sem transição, pedia perdão dos seus arrebatamentos. Promettia ser
brando como um cordeiro. Queria só o que lhe parecia justiça. Implorava se
preciso fosse, compaixão, misericordia. Tivesse Sofia pena da sua desgraça, de
que fôra a causa. Contára tanto com o seu amor, a sua lealdade, e agora... Que
é que o esperava n’este mundo, se se visse repellido, enxotado, quando
architectara toda a existencia numa base única, indispensavel, aquelle
casamento. Para o tornar possivel, não recuára diante de consideração alguma.
Tudo, tudo antepuzéra a isso-tudo, tudo, estivesse certa.
E recomeçavam as
reticencias, as allusões vagas, mal indicadas, que deixavam Sofia toda fria, -
não poderia dizer como, com verdadeiros calefrios pelo dorso, d’esses que, no
dizer do povo, annunciam o esvoaçar da morte por perto.
Então, prosseguia Mario, de
nada valiam provas do que existira entre elles?
_ Que provas? Protestou
altiva e surpreza a moça.
_ Ora, as murmurações e o
reparo da sociedade, durante mais de anno.
Sofia levantou os hombros
com desdem.
_ E as suas cartas,
ardentes, incendiarias. Ah! mostral-as-ei ao mundo inteiro, a todos, a esse
Barroso do inferno...
_ Fôra indigno da sua parte.
O cavalheirismo...
Cavalheirismo? Replicava
Mario Campos impetuoso, cheio de fél e ironia, quando tudo lhe tiravam, lhe
arrancavam, lhe roubavam?! Depois do que lhe succedia, não era, não podia ser
um homem como qualquer outro. Havia de tomar o seu desforço do modo que melhor
lhe aprouvesse, como um villão, um miseravel, uma féra. Dependia d’ella. Dos
seus labios estava suspensa a sua vida. Não lhe diria jamais tudo; mas a morte
pairava sobre ambos...
_ Sofia, Sofia! Implorava o
misero.
A moça, porém, abanava
implacavel a cabeça, pallida, os olhos sem fulgor, meio cerrados, imquietos,
mas energica, de tensão firme, inabalavel.
_ Não, não; não é mais
possivel...
N’isto um cavalheiro veiu
lembrar-lhe o compromisso de uma valsa.
_ Tenho certo escrupulo,
disse elle um tanto malicioso, de interrompel-os; conversavam tão animados...
_ O Sr. Mario Campos,
replicou Sofia com toda a naturalidade, estava me contando a sua viagem ao Rio
da Prata... bem interessante.
E lá se foi ella envolvida
nos languidos effluvios de cadenciada e vaporosa musica.
II
Que existencia a do
desprezado Mario Campos!
Pareceu-lhe aquillo, a
principio, um sonho, um pesadello, esse tremendo e inopinado capricho de
loureira a perturbar-lhe todos os planos e calculos e a exasperar-lhe a paixão
por modo inacreditavel.
Fez ainda algumas
tentativas, procurou encontros, entrevistas; mas achou todas as portas
fechadas, as vasas cortadas, esbarrando com uma resolução tão valente e
decidida como a sua. Empenhava-se Sofia em mostrar-se de posse do maior
sangue-frio; e a sociedade, curiosa e attenta, observava aquella especie de
duello travado repentinamente entre dous entes, que, pouco antes, tanto lhe
dera que fallar em sentido bem diverso.
Cahiu depois o moço em
profundo abatimento. Tudo se lhe afigurou perdido, a mesma natureza em vesperas
de definitiva destruição, apezar dos rutilantes esplendores dos mais formosos e
festivos dias. Encerrado em casa semanas e semanas, n’essa casa cheia de
conforto e luxo em que não soubera dar o devido apreço á suave affeição da
perdida esposa, reconcentrava-se num desespero medonho, tétrico; a sós com os
mais negros pensamentos. Não lograva um momento de socego, e, para conciliar
uma ou duas horas de acabrunhado torpor, tinha que recorrer, após noutes de
absoluta insomnia, a elevadas doses de morphina.
Ahi emergiu-lhe das mais
fundas entranhas odio immenso, áquella mulher, e com elle sêde ardente
incontentavel, de estripitosa vindicta. Ah! sim, queria, precisava por força
vingar-se, mas de modo único, nunca visto, inexcedivel, nem sequer imaginado. E
tornou-se-lhe prazer exclusivo procurar que desforço seria esse, capaz, só em
ideal-o, de lhe applacar um pouco tamanhas ancias, fogo tão devorador e
indomavel.
Matal-a-ia sem vacillar; oh,
sim! mas como fazel-a soffrer mil mortes, n’uma agonia intérmina, á maneira
d’essas aves de rapina, cruentissimos açôres, que, por instincto infernal,
dilaceram as victimas membro a membro, pedaço por pedaço, lenta e quasi
scientificamente, poupando com cautela os orgãos essenciaes á vida, afim de se
saciarem, dia a dia, de carne sempre sangrenta e palpitante?
Mataria, oh, sim! aquelle homem...
Tudo isso, porém, não fôra tão banal? Que valia esse rival de occasião?
Eliminado da scena, outro o substituiria sem demora. Por tão pouco não se abate
nem recúa a perfidia da mulher. Para que, aliás, essa suppressão de vida? Em
muitos casos não é um favor a morte? Não representa a cessação da dôr, do
soffrimento, da vergonha? Por ella não suspirava elle, como supremo bem? Sim,
tambem tinha que morrer. No perpassar de todas as odientas combinações,
intoleravel se lhe afigurava continuar a existir. Reservava essa tortura para
Sofia; mas como transmudar tamanha concessão em martyrio constante, em
angustias sem nome, em indizivel supplicio, calcando para sempre nos pés o seu
orgulho, conspurcando-a perante a sociedade toda, arrastando-a com eterno labéo,
imprimindo-lhe na fronte signal de inapagavel ferrete? Como?
Comparava os tempos
anteriores ao amaldiçoado amor com tudo quanto ocorrera, uma vez ateada a
criminosa e já tão flagiciada paixão. E a lembrança da esposa, tão boa em sua
disccreta feição, o enchia de pavor. Fugia de aprofundar comsigo mesmo o
incerto mysterio... aquella jenella aberta por noite frigidissima, em
Buenos-Ayres, ella a dormir fraca dos pulmões, presa então de perigosa
bronchite... depois a pneumonia dupla... as vascas de terrivel agonia num
estreito quarto de hotel... Que momentos agora tão claros á sua
memoria...Parecia os estar vendo; bastava fechar os olhos. A pobresinha,
resignada, quasi a sorrir, enquanto as lagrimas lhe rolavam silenciosas pelas
faces, apertando a mão assassina, implorando protecção contra a morte que
chegava... elle, com o pensamento fixo no Rio de Janeiro, ardendo de
impaciencia, brutalisando-a, doudo por vêr tudo acabado, concluso, findo,
espreitando, espiando o ultimo estertor, o derradeiro suspiro, a convulsão
suprema, que ia desatar as cadeias do abominado captiveiro... Que indigna
contraposição! De um lado tanta pureza e resignação; do outro tamanha maldade,
tão satanica e baixa ferocidade. E para que o monstruoso attentado? D’elle
agora emergiam obrigatoriamente outros crimes, novas infamias.
Sentia-se condemnado.
Justiça inteira havia de ser feita e pela propria mão. Era ponto decidido,
indiscutivel já no seu espirito. Ficaria, porém, impune a causa de tantos
males? Impossivel! Para beneficio de todos, cumpria esmagar ente tão
pernicioso, inutilisar de vez encantos tão perigosos e lethaes.
E parafusava, sem se lhe
deparar nada qu apaziguasse um tanto as iras exasperadas, em fremente
ebullição. Depois... serenou. Mostrou-se por toda a parte altivo, calmo e
indifferente. Tornou a frequentar theatros e logares, fallando no proximo
enlace de Sofia com desembaraço e naturalidade, appaludindo-o até. Declarou-se
curado de mal entendidas e pueris velleidades. Chegou a cumprimentar a moça e,
uma feita que se encontrou cara a cara com ella apertou-lhe a mão sem nenhum
constrangimento ou perturbação.
A varios amigos falou em
proxima partida para terras longinquas, e ás rodas habituaes levou um todo,
senão risonho, pelo manos de tranquila e digna compostura.
Publicaram-se então os
primeiros proclamas do casamento de Lucio Barroso com Sofia Dias, a qual se
suppunha afinal livre de qualquer complicação, toda radiante de alegria e
felicidade, cada vez mais formosa, faceira e seductora, nos labios sempre rósco
sorriso sobre nacarados dentes, bocca humida e appetitosa de tentar um santo.
Numa bella manhã,
sobresaltou-se a cidade
Sem declarar o motivo d’esse
acto, recommendava que dessem immediata publicidade e prompta execução ao
testamento por elle depositado, dias antes, no cartorio do tabellião Matheus.
N’esse documento, feito de
acordo com as mais restrictas formalidades, distribuia varios donativos a
institutos de caridade e legava alguns bens a parentes de sua mulher.
Terminava, porém, pelas seguintes e terriveis palavras, que causaram escandalo
enorme, ecoando por todos os cantos da capital:
“Eternamente grato a não
poucas provas de affeição e condescendencia, deixo os remanescentes, que
calculo em 200 contos de réis, á minha amante D. Sofia Dias, devendo esse
legado transmitir-se em qualquer tempo á successão ligitma ou illegitima,
verificada em regra a filiação. Caso não seja a quantia reclamada logo,
entregar-se-hão annualmente os juros á Misericordia.”
Dentro, duas cartas da
imprudente moça, que se prestavam a muitas interpretações.
No meio da indignação geral,
do profundo abalo de uns, revoltado pasmo de outros, da pungente ironia dos
maldizentes e da compungida piedade dos bondosos, rompeu Lucio Barroso com
estrondo o casamento; e a malaventurada Sofia, salteada de febre cerebral, por
largas semanas esteve entre a vida e a morte.
Rumorejou-se as
possibilidades de melindrosa justificação perante os tribunaes; mas, afinal, a
familia toda, mãe e duas filhas menores, depois de mezes e mezes de sumiço,
partiu para a Europa. Nunca mais se ouviu fallar, se não vagamente,
Ainda não foi até hoje
levantada a ominosa herança... Quem nos diz, que será sempre repellido o
maldito e infamante legado?
Assim seja!
Rapto original
I
Namoravam-se a valer, de uns
mezes atraz; a visinhança sabia de tudo, acompanhava curiosa, accesa, as
peripecias do derriço e tomava bons regabofes.
Ella, muito nevrotica, atirada
a romantismos, exaltada, amiga de leituras violentas, fin de siécle,
tocando piano de modo quasi notavel e gostando de despertar, alta noute, o
bairro com a valentia dos accordes que deferia, nem bonita, nem feia, com esse
viço da primeira mocidade que os italianos espirituosamente appelidam la
beltá dell’ásino, vivendo uma atmosphera de perfumes entontencedores,
exoticos, acre, a soffrer, quasi todos os dias, de enxaquecas, que a levavam a
abusar da antypirina e lhe davam desejos ardentes de se morphinisar, para cahir
em longos torpôres e fruir sonhos paradisiacos.
Filha única de antigo
negociante, retirado rico do commercio, o commendador Jacintho Candelaria fazia
as suas quatro mil vontades, creada, como fôra, sem mãe, e no meio de numerosas
mucamas, que beliscava forte, nos dias de máo humor e mais nervosismo. Num só
ponto, comtudo, e ponto capital, desenvolvia o pae todas as energias de
portuguez teimoso e embezerrado. Significára á filha, desde em menina, e
incessantemente lh’o repetia, que só elle é que havia de casal-a .Tivesse
paciencia e sobretudo confiança, pois lhe daria para noivo, não nenhum velho ou
qualquer figura estapafurdia, porém sim rapaz novo, sacudido, de boa presença,
latagão de peso e medida, mas que offerecesse, depois de cuidadosas provas,
garantias seguras para tornal-a feliz no correr da existencia.
Tambem soubéra o zelo
paterno arredar já não poucos pintalegretes – uma sucia de bilontras! Berrava
possesso o commendador, - alguns patricios até, que lhe rondavam a casa, ou melho,
palacete das Laranjeiras, atthraidos pelos dótes da rapariga, entre os quaes
sobresahia, mais que os seus olhos e apimentado donaire ou o talento do piano,
o dote ante-nupcial, de que diziam maravilhas.
_ De duzentos contos para
cima, era voz geral, e logo de pancada, antes de se agadanhar, por morte do
velho, cobre muito grosso.
Estava, pois, a moça,
entre dores de cabeça, nocturnos ao piano, bocejos e manifestações hystericas,
cada vez mais accentuadas, esperando o pretendente patent, garantido
pelo governo paternal, quando ferrou n’esse namoro muito cerrado e sério – pois
os pequenos á janella não contavam – com o Arnaldo Gracias.
Gracias ou Garcia? Não,
senhores, Gracias, no plural – d’isso fazia questão – elle, proprietario único
do nome. Zangava-se devéras, ou fingia zangar-se, ao lhe não transporem,
principalmente, o tal r caracteristico, que a todos causava tamanha
estranheza.
Bohemio aliás, até a medulla
dos ossos.
Dotado de muito chiste
natural, talentoso, com estupendo poder de assimilação, sabendo tudo, e no
fundo ignorante chapado, verboso, e mais que isso eloquente, com uma phrase
viva, faiscante, imaginosa, colorida, entresachada de tropos, verdadeiro fogo
de artificio, em que, se havia muita fumaceira, fuzilavam, por vezes, alguns
clarões.
Tinha a mania de inventar
palavras, locuções; e algumas entravam logo
_ Não me banalisem o
nome, costumava gritar nos cafés, batendo com a bengalinha de junco no marmore
das mesas, Gracias... Gracias; com mil milhões de diabos! Não sou
qualquer Garcia da venda ou da botica. Descendo de guerreiros hespanhóes que
costearam de rijo os mouros, os infieis. Attendam bem, tenho que zelar tradições,
cousas até de religião.
E nas rodas de estudantes,
que applaudiam e chasqueavam, lá vinham vibrantes narrações das batalhas com a
mourama, em que se haviam illustrado os primitivos Gracias.
E tanto era o fogo que a
tudo punha, como se assistira ás tremendas pelejas, pelo que, não raro, palmas
rompiam, sinceras, espontaneas.
A todo o instante, contava
historias do arco da velha, sua vida em Pariz, seus triumphos no Quartier
latin. Fôra até amigo de Theophile Gautier, a eterna creança, o poeta
genial, o estylista impeccavel, e, com effeito, parecia haver tomado ao mestre
e companheiro de troças algumas scentelhas do maravilhoso poder descriptivo.
Carioca da gemma, e votando
certa orgeriza á gente nortista – “são trefegos, invejosos, proclamava sem
apellação possivel – tinha como obrigatorio o odio ao burguez em geral.
_ Miseraveis! Exclamava com
indignação repassada de desprezo; corriqueiraram-me o sublime
Shakespeare! Babujaram-me de ignobil baba o immenso Dante! Canalhas!
Entrego-lhes o Inferno e o Purgatorio, já que não há ,aos defesa
possivel; mas, com mil bombardas e pelas cinzas dos meus avós, o Paraiso
é meu. Hei de zelar-lhe a alvinitente pureza, custe o que custar, até a morte.
Não consinto que n’elle toquem!...
E olhava para todos com ares
de quem acabara de receber a sagrada herança por testamento do immenso Dante,
com recommendações expressas acerca d’essa parte da Divina Comedia.
Lêra elle jámais esse Paraiso,
por que quebrava tantas lanças, o Purgatorio ou simplesmente o Inferno?
Nunca se soube.
Buscando abrigo, em refugios
extremos do gosto e da originalidade, ainda não conspurcados pelo torpe vulgo,
entranhara-se, como um perseguido pelas literaturas do Norte e citava com
pasmosa profusão os nomes mais arrevesados, apregoando, dos primeiros nos
circulos da rua do Ouvidor, Dostoiewsky, Pissensky, Arne Garborg, Ibsen,
Bjoenstierne, Bjoernson, Ostrowsky, Hastzembusch, Ocienxdloeger e outros de
igual calibre.
Alto, magro, muito claro,
com o olhar meio empanado sobre palpebras empapuçadas, cabellos em continuo
desalinho, barba espetada perpendicularmente ao queixo, distinguia-se, mais que
tudo, por pés e mãos enormes. Calçava Clark 43 e luvas, letra... não; luvas era
superfluidade de que nunca usara. Em compensação, movia essas mãos em gestos
continuos, ora largos, calmos e generosos, ora freneticos, raivosos,
ameaçadores, de quem ia derrear meio mundo, com pancada de moer ossos.
Vivia ao Deus dará, sempre
em vesperas de estrondosa collocação, já n’alguma das secretarias de Estado,
onde distribuiria o santo e a senha, introduzindo reformas estupendas de mais
apurado cunho literario na feitura das peças officiaes, já a frente de uma
publicação periodica que havia impreterivelmente de desbancar a
Revista dos Dous Mundos – nada menos.
_ Vocês verão, annunciava
exaltado, convicto, como ponho de pernas para o ar o tal Buloz e toda a sua
igrejinha carrança, pedantesca e jesuitica. Será o protesto do mundo pensante
contra aquella ridicula camarinha, que pretende avassalar o intelecto universal;.
Preparem-se para estourar de tanta gargalhada!
Por em quanto, porém, nem
emprego de secretaria, nem revista. Passava os dias a pedir emprestadas
a amigos e conhecidos umas miseraveis quantias, que considerava favor ir
embolsando; hospede dias, semanas ou mezes seguidos, aqui, acolá; excellente
rapaz no fundo, divertido, serviçal e meigo, em meio de todas as bravatas e
objurgações.
Sempre prompto para a
pandega. Lá isso, contassem com elle; era dos fieis, dos inabalaveis. Com a
bréca, até em patuscadas há deveres a cumprir. Demais, a vida foi feita para
desobrigar-se com honra e pontualidade dos compromissos tomados; curta e boa –
a sua divisa.
E desfiava umas
Á noite, theatros, onde
achava sempre meios de encaixar-se, sem jámais se entender com o bilheiteiro.
E, nos entreactos, eram interminaveis catilinarias á proposito da decadencia da
arte dramatica e dos costumes publicos, adubada a prelecção com olhares de
indignação manospreço ás petulantes francezas e raparigas que poralli se exibiam
espivitadas, provocadoras. Occasiões, porém, havia em que com ellas confabulava
graciosamente.
_ Boas creaturas em summa,
estas michélas e marafonas, dizia com um sorriso bonacho, o que nãp impedia de
declarar-se discipulo intransigente de Shopenhauer e de prégar inflexivel
cruzada contra o eterno feminino, a perdição do homem , o seu
instrumento de degradação e insanavel vaillania.
_ Tirem-me a mulher do
mundo, urrava já muito escaldado com os bocks de cerveja e copinhos de
cognac fine champagne, e faço de todos os homens deuses, estes
supernaturaes!
Davam-se épocas, entretanto,
em que, de viseira alçada, com muita nobreza, relembrando o cavalheirismo
castelhano, se batia em rpol do sexo fraco, victima e martyr da prepotencia do
forte, secularmente tyrannico e maldoso, brutal e egoista. Nessa quadra de
reinvidicação, exigia. Em nome da justiça ultrajada, que a natureza repartisse
com igualdade os gravames da reproducção da especie.
Bradava então imperioso:
_ Uma vez a esposa, outra o
marido. Os taes senhores que experimentem o que é bom. Quero ve-los gravidos!
E com toda a seriedade
chegava a affirmar e prometter, que elle, Arnaldo Gracias, á fé de gardingo e
descendente de fidalgos wisigodos, de uma só palavra, de antes quebrar que
torcer, havia afinal de pôr cobro a tamanha iniquidade.
Boas surriadas e
espirituosos dichotes ia promovendo com tudo isso.
Morava não se sabia bem
onde, alcandorado em qualquer pouso mais á mão, quasi sempre republicas
abarrotadas de estudantes, onde discutia sciencias, artes, literatura, e lá se
deixava ficar mais ou menos tempo, conforme o capricho, não se lhe dando
absolutamente com a amabilidade ou os máos modos d’aquelles a quem dispensava a
honra da sua convivencia.
É que estabelecia logo
incommodativo communismo, e a applicação d’esse systema devéras modificava o
prozaer de interminaveis e acaloradas palestras, em que gastava tanto fluido
vital. Com toda e sem cerimonia, tomava a roupa dos outros, vestindo camisas
alheias, quer já servidas , e enfiando-se sem o menor escrupulo nas calças e
nos paletots, que encontrásse mais de geito.
E por cima, se o apertavam
mais sériamente apuros de dinheiro, não punha duvida alguma em passar a mão nos
livros dos que o hospedavam, levando velhas grammaticas, compendios de mathematicas
elementares, selectas latinas, ou até obras de preço, que truncava sem o mais
leve emba5raço de consciencia, e ia vender a esses modestos belchiores,
chrismados com a alcunha bem feia de ... cagacebos.
Costumava, entretanto, que
incoherencia! Esbravejar com sincero furor contra essa timida classe, tão util
aos seus habitos, e propunha uma Saint Barthélemy implacavel, que extinguisse
de vez a abominada raça.
_ Há de chegar o dia, olé,
se há de! Annunciava ameaçador. Tenho de olho uns cinco ou seis... Já os
avisei... Esses ficam por minha conta... gallegos todos – uma bella bainha de
toucinho para a adága dos meus avós!
No fundo, incapaz de matar
um caçapo.
II
Tal era Arnaldo Gracias, por
emquanto todo entregue á sua paixão pela nevrotica Julia Candelaria.
Entabolara-se o caso,
estando elle de pousada na casa em commum de varios empregados de commercio,
seus amigos intimos dessa temporada, como era de meio mundo em certas quadras,
segundo a veneta, pois não raro tinha tambem acessos de misanthropia, e
desapparecia, sem que ninguem pudesse attinar onde ia encafuar-se.
Mettidos a aristocratas e
moços de boa roda, habitavam os taes empregados do commercio nas Larangeiras,
perto do palacete Candelaria.
Panno para mangas forneceu o
publico namoro de Gracias, estampando-lhe as gazetas quasi que diarios sonetos
coroscantes, embora monotonos e impregnados de sentimento todo facticio. O
auctor porém e alguns adeptos fervorosos os tinham em conta de indiscutiveis
obras primas.
_ É o Petrarca
sul-americano, decidia um dos discipulos na arte bohemia; assombroso, um
abysmo!
Não cabia pois Jilia em si
de contente, dava escandalo, servindo-se das mucamas e dos molecotes da casa
para, a cada momento, enviar cartas e fitinhas, pontas de cabello e flores
allegoricas, ou docesinhos e mais isto e mais aquillo, ao incansavel trovador.
Teria, por cento, preferido
mais elegancia e plastica no seu porte, barba menos hirsuta, cabellos mais
disciplinados e principalmente menos surrado um celebre sobretudo, de verão e
inverno; mas emfim, com um bocadinho de exaltação muito senão póde
transformar-se em qualidade esthetica.
_ Que alma! Exclamava com
enthusiastico fervor, e que talento, quanta imaginação!
Num bello dia, lembrou-se de
autorisar o nosso Gracias a ir pedir ao commendador a sua mão- uma tentativa.
“Perigosa cartada, a que
jogamos, dizia ella em carta, mas procurarei por todos os meios e com o maior
geito preparar o terreno. Terei coragem; conto com a sua resolução.
Apresente-se afoutamente.”
E por ahi ia, numas quatro
longas paginas.
Gracias, que não guardava
segredos com ninguem, e menos ainda com os amigos intimos de occasião, mostrou
logo a carta aos companheiros de estadia.
Foi um só brado.
_ Olhem o felizardo! Então
vai metter-se em cobreira grossa, tornar-se do pá para a mão capitalista
graúdo. Que protecção escancarada da sorte! Duzentos contos de pancada!
Quedou-se o nosso heróe não
pouco conturbado. Devéras a fortuna repentinamente lhe batia á porta, quando
menos pensava em dinheiro? Então iam Ter fim todas as miserias que curtira,
ainda que o não preocupassem lá muito, mesmo nada?! Duzentos contos? Que faria
de tanto dinheiro, de tantas notas de Thesouro Nacional?
Chegou a declarar muito
sériamente que, mal entrasse no dote da menina, mandaria construir vasto
hospicio para cavallos e animaes vagabundos, abandonados por doentes e
imprestaveis.
_ Palavra de honra, gritava,
fustigando os moveis com muita força. A humanidade lhes deve isto. Depois,
cuidarei de montar a minha grande revista. Preciso, desde logo, dignificxar o
dinheiro do gallego.
E falava já com o entono de
um millionario.
Em casa, porém, do
commendador, reinava muita agitação. A peito descoberto e com ares de
irrevogavel resolução, denunciára Julia a paixão que a dominava, batera o pé,
tivera uma série de fanicos, mas nada conseguia senão frequentes: “Ora bolas!
Contenha-se menina!” “Tenha paciencia, estou já com noivo quasi
arranjado!” “Que maluca!” “Não seja tola”, “vá bugiar” e outras phrases de
invencivel resistencia, além de muitas descomposturas ao tal pelintra, que
viera interpor-se entre pai e filha: “Um valdevinos; conheço-o muito: chupador
de cerveja da rua do Ouvidor, batedor de carteira”, e mil outros deprimentes
qualificativos, entre os quaes voltava a cada passo o de “poeta d’agua doce”.
De tudo foi logo informado
Gracias, mas lá vinha a recommendação: “Não se importe; apresente-se em casa e
peça a minha mão. Precisamos Ter do nosso lado a razão. Papae gosta muito de
mim mas lá a seu modo.
E tal a insistencia que,
numa tarde, ao escurecer, subiu o descendente dos guerreiros hespanhoés, um
tanto commovido, força é confessar, as escadas do commendador Candelaria,
enfiado n’uma casaca emprestada que, por signal, não lhe assentava nada. Logo
se denunciava roupa de emprestimo. Casaca só? Qual, camisa, d’este feita bem
limpa, collete, gravata branca, calças, claque e luvas que segurava da
mão despretensiosa elegancia – jámais as poderia calçar. Fizera vir da loja
botinas de verniz para essa entrevista decisiva.
_ É o meu Covadonga,
annunciára elle, vou entestar frente a frente com o sanguinario alarabe
Alkamah. Pelas barbas dos Gracias, que não me mette medo o bronco Almoravide.
Recebeu-se o Candelaria de
cara muito amarrada, todo vermelho, quasi apopletico. Como, porém, se prezava
de muito bem educado – uma das suas manias- fel-o sentar, empertigado,
casmurro, deixou-o fallar, expôr ao que vinha.
Após breve hesitação,
fallou, fallou o rapaz quasi a perder o folego, legitima conferencia, como se
estivesse de posse da tribuna da Gloria. Não poupou os excellentissimos.
Afinal o velho o
interrompeu, todo inchado de ira:
_ Tudo isto é muito bom,
declarou com solemnidade de pessoa de finissimo trato; mas o senhor,
consinta-me a franqueza, não tem nem eira e está perdendo o seu tempo. A minha
filha não é para os seus beiços.
_ Tenho diante de mim o
futuro, exclamou lyricamente Gracias.
_ Bom, bom, não admitto
conversas fiadas.
E levantou-se para não
arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas entumecidas veias.
Quis o pretendente replicar.
_ Basta, basta, meu rico
senhor. Isto aqui não é ponto de bilontras. Queira retirar-se, quanto antes.
Pão, pão, queijo, queijo! Por alli é o caminho da rua.
Portou-se Gracias com
incontestavel dignidade e calma.
_ Pois bem, exclamou um
tanto melodramatico, retiro-me, Sr. Commendador, mas lavro solemne protesto.
Hei de vingar-me, espera pela pancada.
E descida a escada, ao
chegar a soleira da porta, voltou-se, fez das mãos em concavo sonoro porta-voz
e atirou aos ares o mais formal desafio a todos os paes despoticos e da velha
escola.
_ Ó sujo! Ó pé de chumbo.
Em vibrante epistola, sem
mesmo despir a casaca, contou logo á Julia o resultado da desastrada
conferencia. “Fiquei, narrou elle, offendido nos meus brios mais sensiveis e
melindrosos. Tudo supportei por seu esse brutamente seu progenitor. Fôra outro
homem, e a esta hora estaria estrangulado, morto. Imagina quanto não soffri.
Houve momentos em que suppuz perder a razão com o esforço que fiz por me conter
e reprimir os marulhosos borbotões do meu sangue hespanhol. Ainda estou pasmo
de ter tido tamanha poder sobre tantos avós, que, do fundo das minhas
entranhas, bradavam ululantes: “Vinga-te, mancebo; lembra-te de nós, não deixes
que esse desalmado e vil portuguez zombe de Aragão e Castella!”
E, mais por leviandade, do
que de tenção feita, terminava propondo á amada immediata evasão d’aquella
sinistra Bastilha: “Fujamos, dizia arrebatado, é preciso pôres trermo a tão
intenso padecer. Tudo tem limites, a resignação, a paciencia, a cordura, é doce
palomba, estrella do meu amor, vida da minha vida, etc., etc.”
“Fujamos”, foi a resposta,
sem a menor vacillação.
E os dous trataram da
prompta realisação do temerario projecto.
III
Muniu-se, desde logo,
Arnaldo Gracias de desabado sombrero e vasto manto hespenhol, que
mysteriosamente arvorou, fizesse sol ou chuva, como symbolo de graves
complicações e perigosas incidencias, em sua vida, o que a não poucos
communicou, exigindo, porém, rigorosissimo sigillo – questão de muito
compromettimento.
Cuidou, em seguida, de
lançar um emprestimo na praça do Rio de Janeiro, cousa, aliás, bem modesta, uns
200$, que, entretanto, não lhe foi facil reunir, embora offerecesse aos
emprestadores de profissão juros positivamente fabulosos. Emfim, já como favor
pessoal, já como adiantamento para um livro a sahir dos prélos e destinado a
estrondosa acceitação – intitulado, ora Novos aspectos de critica – ora A
metempsychose é luz da sciencia, ou então O euréka nas lettras e
nas artes – aos 5, 10 e 20$ póde arranjar a somma precisa para ajustar e
aluguel de um carro de cocheira com cavallos pretos – velozes como o pampeiro,
recommendára elle – ter um quarto melhor no Hotel dos Quatro Cantos – e
outras despezas indispensaveis. Aos, creados, largas gorgetas prévias- era de
obrigação no melindroso trecho.
Em poucos dias, tudo ficou
minuciosamente combinado.
Com as liberdade de vida
que tinha Julia Candelaria, nenhuma empreza difficil, aliás, e menos
ainda de assombrar, o sahir de casa pelo portão do jardim, das 9 ½ ás 10 horas
da noute, metter-se n’um carro á espera alli perto e ... fouette cocher!
Nas vesperas do grande dia, ou antes da noute fatidica, sentiu-se Gracias
agitadissimo. Não é graça, de certo, proceder-se ao rapto de uma menor,
apatacada ou não. E esta idéa de dinheiro pungia até o nosso bohemio de modo
especial. Havia momentos em que preferiras saber a amada pauperrima, filha de
necessitados operarios, afim de tirar á ventura em que ia metter-se qualquer
caracter de vil interesse, como, infallivelmente, não deixaria a malevolencia
de assoalhar, perfida, viperina.
Além disto, por mais leviano
e despreocupado que se seja, por menos que se pense, representavam esse feito e
as immediatas consequencias tam modificação de habitos na sua existencia livre
e descuidosa, que, de vez em quando, lhe girava a cabeça como se fôra a perder
os sentidos.
Mal podia dormir e passava
as noites a fumar cigarrinhos de palha, uns após outros, e a beber chicaras de
café, concentrado, apezar das reclamações dos donos da casa.
_ Você põe-se doudo varrido
com esta historia de rapto, gritavam elles.
No dia então aprazado, não
teve um momento de descanço o alvoroçado Gracias. Duas, tres, dez, vinte vezes
foi ao tattersal, repetiu as instrucções, descreveu ao cocheiro aprazado
os logares, todas as particularidades do ponto de espera, fez d’elle seu
confidente, gratificando-o com toda a antecedencia. Do mesmo modo no Hotel
dos Quatro Cantos.
A rua do Ouvidor percorreu-a
febrilmente o dia todo. Aqui, alli, nas innumeras e vertiginosas passadas, a
consultar todos os relogios como se receiasse perder a hora solemne, foi
ingerindo calices e mais calices de cognac, kisch e rhum e xerez e mais isto e
mais aquillo, em numero de todo o ponto incalculavel, capaz de encher de alto a
baixo todo um obelisco egypcio, consagrado a dados estatisticos sobre consumo
de liquidos.
E, entretanto, não dava
signal de ibriedade; a superexcitação nervosa o aguentava com valentia.
Não pôde jantar. Mal
lambiscou umas guloseimas.
Tambem, á hora em que,
encafuado no carro, se quedou á espreita da presa, á maneira de ardilosa aranha
no centro da teia, não podia mais de cansaço, os membros todos alquebrados,
numa lassidão inexprimivel. Cochilava como um perdido e, embora quizesse
impedir a conversa do cocheiro com um caxeirinho da venda proxima á casa do
commendador, não se mexia, a cabecear, tolhido, inerte, estatelado, ouvindo,
comtudo, palavras que deviam tel-o sobresaltado: espéra, rapto, moça de
bairro...
Só despertou com a chegada
de Julia Candelaria, toda de preto e envolvida em mantilha negra, mas muito
senhora de si, alegre, satisfeitissima da sua proeza. Não encontrára estorvo
algum; não suscitára nenhuma desconfiança.
Soavam então 10 horas.
_ Cocheiro, bradou Gracias
sahindo do seu torpôr; toque para o ponto que já sabe... Um relampago!
E lá se foi em disparada o
vehiculo pelas ruas já silenciosas, com ares de mysterio muito chic, baixas as
cortinas, fustigados valentemente os cavallos negros, encarregados de
representar de pampeiro naquelle dramatico episodio.
Emfim... emfim... exclamou
Gracias buscando chamar a si todo o enthusiasmo das traições castelhanas,
chegou a nossa hora... chegou... chegou...
Qual! somno invencivel lhe
prendeu a lingua, fechou-lhe a bocca com mão de ferro. Grande tambem o espanto
de Julia, que a pouco e pouco se mostrou amuada, offendida, e afinal se
encolheu mal humorada a um canto do carro.
Ao rapido balancear da
tipoia sonhava o misero com uma cama larga, macia, perfumada, irresistivel, em
que afinal tomava desforra completa das passadas insomnias! Como era bom
dormir, dormir a farta, refazer as forças perdidas, estender e desentesar os
nervos e musculos, tantos e tantos dias contrahidos, repuxados,
hyperthenisados! Não, devéras, nada vale um bom conchego, quando a gente
tem somnos atrazados, nada se lhe compara!
De repente accordou.
Era o carro que parava,
alcançado o Hotel dos Quatro Cantos.
E o creado á porta,
gravibundo, ainda que revestido de certo ar de condescendencia, esperava os
dous pombinhos e os foi guiando com toda a discrição ao quarto preparado.
Fecheram-se.
Gracias, acabada a
momentanea sacudidéla da chegada, não comprehendia mais onde estava, o que
fazia. Tudo entrava no dominio do sonho, E não era que o via realisado? Como
que lhe estirava amorosos braços uma cama, a puxal-o com desapoderada attracção
na sua brancura, deslumbrante a olhos faceis, bem duvidosa, entretanto, máo
grado todas as recommendações mil vezes feitas. “Um ninho de cysnes!” pedira
instante ao hoteleiro, gostando, mais que tudo, da phrase.
Como, pois, não se deitar
logo e logo a fio comprido? Como recusar-se a tão convidativos e suaves
encantos? Impossivel, superior a forças humanas... n’aquella emergencia!
_ Ao thálamo nupcial,
balbuciou elle, Julia... minha celeste Julia!
E, dando o exemplo, tirou depressa
as celebres botinas de verniz e, vestido como estava, embrulhado no manto
hespanhol, deixou-se ir, sem resistencia, a um somno de chumbo, acabrunhador,
inteluctavel. D’alli a nada resonava como um bemaventurado.
Estava a imprudente Julia
positivamente attonita, terrificada. Que significava tudo aquillo?
Lembrou-se de gritar, de
pedir socorro, bater nas paredes, mas não poude, sentia-se paralysada ao menor
movimento, sem voz, sem acção.
Deixou-se cahir, envolvida
em sua mantilha negra, apathisada, longo tempo, talvez horas, sem saber o que
seria d’ella. Olhava sem ver para o singular raptor, cujo corpo, á luz da
mortiça stearina, se lhe afigurava simplesmente o de algum bicho monstruoso,
repugnante; e lagrimas compridas desfiavam-lhe amargas pela faces afogueadas.
Nem de proposito, numa sala
proxima, entre grandes berreiros, terminava-se uma ceia com proporções
orgiaticas, e os gritos descompassados de homens e mulheres, o espoucar
estrepitoso do champagne, as saudes, os hipps e hurrhas,
lhe imprimiam ao systema nervoso contrachoques electricos, que a punham quasi
louca.
A pouco e pouco, porém, se
iam acalmando e esbatendo todos os barulhos da rua, e multiplos ruidos do
hotel, quando a desventurada verificou, transida de horror, que a vela breve se
extinguiria. Como, ás escuras, em tão pavorosas circumstancias? Se aquelle
homem passasse do somno á morte?
E esta idéa tanto a aterrou,
que, fazendo heroico esforço sobre si mesma, procurou na maior anciedade e por
toda a parte meios de prolongar a claridade, prestes a sumir-se.
Foi-lhe de grata impressão
encontrar na gaveta do lavatorio um pacóte de falsificado Clichy.
_ Emfim! Não poude deixar de
exclamar.
Recuperando algum alento,
depois de reformar a vela, achegou-se a Gracias e chamou-o a principio com meiguice
e bem baixinho, depois com força, impaciencia e raiva.
_ Arnaldo... Arnaldo, estou
com medo..., accorda! Sr. Arnaldo... accorde!...
Mal se mexeu o desastrado.
Ergueu, n’um gesto inconsciente, as mãos immensas, que puzeram temerosas
sombras na parede, e murmurou:
_ Conversaremos amanhã...
temos... muito tempo.
Desanimou Julia de vez,
instinctivamente offendida.
Enfim, não ficaria ás
escuras, não era pouco; accendeu até duas velas mais, e, de volta á sua cadeira
de braços, com a maior intensidade de luz, contemplou espaçadamente aquelle
novo Endymion, presa de inquebravel dormir, o ideal do seu romance, o pomo de
discordia com o seu velho pai, tão bom, prompto sempre a lhe fazer todas as
vontades, o causador da sua vergonha e irremediavel desgraça.
Pois devéras era aquillo?!
Que nariz ridiculamente arrebitado, que barbas de piaçava, que cabellos e que
tez esverdeadas, baça! E a grotesca saliencia dos olhos por baixo das palpebras
inchadas? E as sobrancelhas em matagal, unidas como sombria e fatidica linha?
Santo Deus, que pés colossaes, mettidos em meias de branquidão negativa!
Que seria della, perdida
para todo sempre, depois de tamanho escandalo, travados a sua existencia
inteira, o seu futuro, com o desse seductor impossivel?!
E de novo chorou copiosamente
quando a madrugada já vinha colorindo de rosicler uns pontos do espaço,
annunciada pelo estridulo grito dos galhos matutinos.
Sorria-se todo feliz Gracias
na sua beatitude de largo repouso afinal comquistado; mas nem por isto se
mostrava menos feio e repulsivo, pelo contrario. Ah! quanto arrependimento, que
intenso vexame, no peito de Julia! Que acerbas reeflexões! Que horas ainda! Que
anhelo, para que aquella noite acabasse e ao mesmo tempo nunca pudesse ter fim,
nunca, durasse eternamente.
Afinal, vencida por mortal
fadiga e indizivel angustia, pegou tambem no somno, na tal cadeira de balanço.
IV
Foi a triste e mesquinha
heroina accordada em sobresalto por enorme barulho. De todos os lados inundava
o quarto sol alegre, triumphante; deviam ser 8 horas da manhã.
Batiam á porta com
desabalada violencia, iam arrombal-a .
Gracias nem se mexeu.
Julia Candelaria fez um
esforço e, arrastando-se deu volta á chave.
Atiraram-se sofregos para
dentro em bolo o commendador, o delegado de policia, soldados e curiosos.
Fructificara a palestra de vespera do indiscreto automedonte, pondo a
auctoridade na pista immediata e certa dos fugidinhos.
Dominando a immensa
conturbação, viu a moça afinal a salvação. Agarrou-se ao pae que, em vão,
buscou repelil-a .
_ Juro, exclamou ella bem
alto e com accento de irrecusavel verdade, que passei a noite toda naquella
cadeira de braços. Não me acabrunhe mais com a sua justa colera, meu pae... meu
bom pae... minha protecção única nesta terra de miserias. Tenha pena de mim, da
sua filha tão infeliz! Fui... muito, muito culpada... mas salvei-me...
E com tudo isso Gracias nem
se mexia.
Afinal sacudiu-o umas tres
ou quatro vezes o delegado com energia por um braço, e o homem... despertou.
_ Bom, disse elle com
relativa calma, esbogalhando quante poude os estremunhados olhos, temos agora
historias com o senhora policia... era infallivel!
E, sentando-se na cama,
pegou com as mãos os pés em attitude de quem estava disposto a encetar conversa
familiar e entrar em accordo amigavel.
Fossem razoaveis, era só o
que pedia.
Não mostrava maior abalo.
_ Aliás, continuou já um
tanto altivo, acatei esta donzella como se fôra minha irmã. Ella que o diga...
Sei portar-me como cavalheiro. Raptei-a, para que o commendador, aqui presente
e que me merece estima e consideração, consentisse na eterna união de dous
corações leaes, que se estremecem loucamente e anceiam um pelo outro!...
Julia soluçava como uma
perdida.
_ Que vergonha! Que
vergonha!... Como é que se não morre nestes casos?
Candelaria mostrava-se muito
abatido.
_ Devéras, minha... filha?
poude elle a custo perguntar.
Teve a moça uma arrancada de
desespero e indignação.
_ Casar-me com esse homem
bradou estancando de subito o angustioso chorar, antes a morte, mil vezes
antes, na forca, diante do mundo inteiro!
E, numa explosão de bem
sincera dôr, implorou humilde e meiga:
_ Tenha dó, meu pae, da sua
desgraçada filha... Leve-me d’aqui já e já... Soffro como jámais pude imaginar
sofrer!... Nada lhe occultarei!... Nunca mais lhe hei de desobedecer, mas vamo
nos embora... perdão, perdão.
Quinze dias depois, e muito
á capucha, effetuou-se o casamento de Julia Candelaria, com o desempenado
rapagão que o commendador tinha desde muito de olho, conforme avisára a filha.
Partiram os ditosos noivos
sem demora para a Europa, e, de certo, não acharam motivo algum de estranhza e
queixa um em relação ao outro. Fôra, ainda mais, o dote duplicado, acima de
toda a expectação...
Quanto a Arnaldo Gracias,
continuou na sua existencia desorientada e solta, cada vez mais bohemia e mais
satisfeito comsigo mesmo.
Toda uma epopéa aquelle
momento phsychico da turbulenta vida!
Pudéra, qual outro archanjo
S. Raphael conculcando aos pés o truculento Belzebuth, subjulgar victorioso a
animalidade feroz e bramante, amordaçar a turgidez da desencadeada luxuria,
agrilhoar pela inacreditavel possança do idealismo as tremendas e leoninas
investidas da materia, e arcar, braço a braço, peito contra peito, em esforço
titanico, com os impetos vorazes da volupia, tudo para quedar-se immovel de
joelhos, em extasi de mystica homenagem, puro, continenti, sem pécha, na mais
adoravel e santa vigilia de amor e de respeito, ante o symbolo da paixão
etherea, seraphica, lyrio virginal, a fl ôr sublime, que sahira de tão
extraordinaria prova immaculada, impolluta, intemerata, adamantina, realçado o
brilho offuscador da incomparavel confiança, candidez e castidade!
E com todos esses elementos
da mais inspiradora subjectividade, em menos de meia hora e entre dous calices
de cognac, compôz, sublimando a virtude propria e o seu heroismo, esplendido
soneto nuns sonóros alexandrinos, muito citados depois, e que, nos gremios
litterarios da mocidade, provocavam sempre applausos de fremente enthusiasmo e
enternecida admiração.
O Estorvo
Muito, mas muito, contente
sempre de si e comsigo mesmo o Amaro Esteves, sobretudo agora que ganhára, por
bamburrio, não pouco dinheiro no encilhamento. Por cima, o premio integral de
cem contos de reis na loteria da Bahia.
Sim senhor, graças aos
inesperados e meigos sorrisos da sorte, se tornára, nada mais, nada menos, um
capitalista importante.
E rapaz ainda, bonitasso, na
casa dos 35, atirado ás mulheres, gostando de roupagens claras, gravatas
vermelhas com alfinetes de grande brilhante, pilherico, mettido a contar
anecdotas engraçadas, picarescas.
A massada era a Nicóta, a
mulher, tão franzina, desengonçada, chôchinha, sem carnes, sempre retrahida,
muito acaipirada, cousa demais. Tambem fôra aquelle casamento uma bobagem,
estopada de marca maior.
Mocinho, numa festa de roça,
tolamente se embeiçára por ella, então rapariga sem graça nenhuma, e, quando
déra accordo de si, záz, traz, nó cégo, estava casado, amarrado
para todo o sempre pelo conjungo de um vigario de aldêa. Que espiga!
Não era, de certo, másinha a
Nicóta, muito accommodada, calada, no fundo nulla, absolutamente nulla. Della
não vinha nem bem, nem mal ao mundo. Incapaz de matar uma mosca. Servira nos
tempos de penuria e miseria, quando vegetára nuns empregos réles, de cacaracá;
mas agora que pretendia fazer figura na sociedade, frequentar theatros,
concertos e bailes, receber e dar jantares, como se avir com semelhante
pamonha?
Nada lhe assentava no corpo
mal ajorcado, sem ondulações nem quadris. Não havia chapéo que lhe quadrasse, e
por mais jóias que puzesse ficava até pior.
Mettia-lhe devéras vergonha,
ella ao seu braço pela rua do Ouvidor afóra.
Não sabia nem sequer
aproveitar o cabello que tinha comprido e abundante. Penteava-o á china,
puxando-o todo para traz e deixando a testa de bater roupa, com uma cara muito
feia, rechupada, faces encovadas, olhos empapuçados, beiços escados em ponta,
como bico de chocolateira.
Por mais que lhe dissesse:
“arranje-se melhor, Nicóta; veja fulana, veja sicrana”, não adiantava um passo,
nem cousa alguma conseguia.
Tinha por vezes vontade de
lhe empurrar a mão, dar-lhe pancada e até cabo da pelle, vel-a morta, mettida
no caixão e enterrada. Que allivio! Com mil bombas, aquillo não era mulher para
elle!
Ah! fosse casado com alguma
desempenada, que vida, que figurão! Alguem que o comprehendesse e estivesse na
altura da posição conquistada, elle que pretendia agora abrir os seus salões,
mandar até comprar um titulo em Portugal.
Vejão, porém, só a Nicóta
baroneza ou viscondessa; ninguem a tomaria a sério, ninguem; um varapáo de
saias, sem expressão, sem vida, nem peixe, nem carne. E a abrir a bocca, era
logo um xurrilho de asneiras “muié, havéra, promóde, teia, panhou, rancou”.
Mal sabia lêr e escrever.
Aquillo nunca se havia de
desemburrar, excusado!
Só prestava para pregar
botões ás camisas e ceroulas e coser na machina, assim mesmo tão vagarosa,
desconsolada sempre, á mercê do marido, numa pasmaceira enorme, desfibrada,
atonica, inerte, attenta só á limpeza da casa, que trazia como um brinco.
Que massada, que peso, a tal
Nicóta! Se ella pudesse esticar a cannela, morrer de uma boa vez!... Não faria
nada por isso, porque afinal não era nenhum criminoso, desalmado e assassino.
Só se a natureza se lembrasse de libertal-o daquella lesma. E devia merecer esse
favor, porque estava mil furos acima de semelhante creatura chlorotica,
esgrovinhada, incapaz de lhe seguir os passos, sobretudo na vida nova que a
fortuna le proporcionára.
Com a bréca, dispôr de
centenas de contos e estar de mãos e pés atados, preso a um ente daquelles!
Lá podia pensar em viajar a
Europa com Nicóta? Por toda a parte provocaria riso e chasco, bem merecidos, lá
isso era verdade.
Nunca tivéra filhos e
felizmente. Havião de ser uns apatetados da força da mãe.
E de alguns annos a esta
parte de continuo achacada; ora disto, ora daquillo outro, umas dôres vagas,
oppressões, faltas de respiração, que a tornavão ainda mais feia, obrigando-a a
esturdias caretas.
Falára, um medico em
molestia do coração adiantada até. Qual! Já havia disso um bom par de annos, e
nada della arrebentar. Mulher doente, mulher para sempre; o dictado tinha toda
a razão. Mil raios!
Depois então das historias
do encilhamento, parecera melhorar, e muito. Não se queixava, nem mesmo
o pouco ou quasi nada do costume.
Se, pelo menos, mostrasse
ufania e admiração pelo marido! Nada! Incapaz de qualquer movimento que não
tivesse repetido na vespera, antehontem, uma semana, um mez, dez ou quinze
annos atraz.
Tambem elle a soccava sem a
menor cerimonia em casa e, em todos os tempos, ia lá fóra pagodear á grande.
Agora não se fartava de ceiatas com francezas bem pandegas e de cabello pintado
de açafrão. E, no dia seguinte das grossas patuscadas, encontrava sempre a
mesma physionomia, fria, impassivel, sem a menor alteração.
Devéras atacava-lhes os
nervos.
Ah! se a tal molestia
de coração pudesse estar caminhando! Quem sabe? Qual! Ás vezes lhe perguntava
com ar de interesse: “Então, Nicóta, aquellas dôres?” “Estou bem mió,
respondia ella a arrastar a voz esganiçada e chorosa. Nunca mais tive nada!”
Elle viuvo, que vidão! Tudo
se havia de transformar, desligado daquella pesada poita. Montára casa rica,
cheia de trastes dourados e numerosas creadagem, alguns até francezes. E não é
que a Nicóta se levantava quasi de madrugada, como nos tempos de amanuense da
secretaria de policia, em que tinha de ir accender fogo e preparar café?
Que estupida, afinal!
E não ter animo de largal-a
de vez n’algum pasto de Minas ou Goyaz! Não se tinha em conta de nenhum
barbaro, sem piedade ou canalha refinado. E que dirão depois?
Só mesmo a morte. Nem podia
tardar; tinha ella vivido quanto bastava. Estavão casados, já uns 16 annos. Na
tal festa da roça (maldita festa, sua desgraça) contava 20 feitos. Ora, 20 com
16, são 36; a sua idade, delle, vejão só. Que loucura, que asneira aquelle
casamento! Nem um vintem de dóte, nem olhos, nem cintura, nada, nada, um páo
secco! E isso era a mulher de um capitalista!
Por esse tempo soffreu Amaro
Esteves um desgosto não pequeno; a noticia da morte, em Caxambú, do Pantaleão,
seu bom amigo de pagodeiras. O homem, sem saber, padecia do coração; foi ás
aguas, abusou dellas e bumba! botou-se de repente para o outro mundo! Ora, o
Pantaleão, tão bello, moço, alegre e divertido, morrer assim aos 32 annos,
quando tinha tanto que gozar nesta vida!
Mas que perigo as taes
aguas! Qualquer cousa nos pulmões ou coração e toca a fugir. Nada de facilitar.
Custa, ás vezes, tão pouco revirar de uma feita os olhos!
Por esse tempo, começára
tambem o nosso Amaro o namoro com a baroneza da Silva Velho, no lyrico; uma
viuva quasi quarentona, toda faceira, um peixão em todo o caso. Chegarão as
cousas a dar na vista de todos. “Ah, Snr. manganão, lhe dissera o Santos Alves,
o corretor, lembre-se de que é casado. “Diabo, Ter de lembrar-se logo disso!
Um pobre coitado, um pé
rapado poucos annos antes, mettido agora em derriço, escandaloso com uma
senhora do high-life, uma titular! Tivesse a sua liberdade e jogava-se a
seus pés, pedindo-lhe humildemente a mão de esposa.
Mas o inferno de Nicóta! Que
trambôlho...
Não, aquillo, não podia
continuar assim, indefinidamente, até o demo dar com o basta!
E a idéa de Caxambú não o
deixava um instante, não lhe sahia mais da cabeça, á toda a hora do dia e da
noute, principalmente á noute, lá pela madrugada, durante longas insomnias.
Foi afinal consultar o Dr.
Maria Meirelles, um medico formado de fresco, seu visinho, muito mocinho;
indagou se uma estação de Caxambú não conviria á mulher. Mostrava pouco
appetite, suppunha-a doente do estomago e figado. Caxambú? Optimo, excellente!
Não podia haver cousa melhor.
Ahi, meio conturbado, falou
em pontadas do coração, receios de estar esse orgão affectado.
Então convinha examinar,
auscultar. Mas não, coração que dóe é como cão que ladra. Ligavão-se os
incommodos uns aos outros, e Caxambú daria conta de tudo. Pagou generosamente e
sahio da consulta todo alegre, exultante quasi. Estava salva a sua
responsabilidade. Cobria-o a autoridade daquelle profissional, que tinha
obrigação de saber o seu officio. Quanto a elle, nada occultára; fôra até bem
claro, puzéra os pontos nos ii. Podia lavar as mãos pelo que désse e viesse.
Chegou a se ter em conta de
marido exemplar.Afinal, buscava solicito a saude da mulher, sua
companheira de tantos annos. Com certeza, Caxambú lhe faria um bem enorme.
E a pensar em tudo isso, na
mais singular amalgama, em que via combionada a vantagem de ambos, divisava
futuro todo côr de rosa.
Aliás, com a bréca, ainda
quando a opinião do Dr. Meirelles não o desculpasse bastante aos
proprios olhos, absolvião-no plenamente as theorias modernas. Tinha o direito,
como homem de resolução, de quebrar com coragem os obstaculos que lhe impedião
os passos.
Parafusou, parafusou e,
afinal, partiu com a mulher para Caxambú.
E não é que as aguas
começáram a fazer sensivel beneficio á Nicóta? Chegou até a engordar, facto que
nunca lhe succedêra. Bom, a elle, é que as cousa sahião ás avessas. Viéra para
um fim e o contrario é que se dava. Forte caipora!
E nos seus intimos frenesins
sentia impetos de esganar a mulher, ao vel-a dormir com os beiços cada vez mais
bico de chocolateira. Que cara, que pelle amarellada e por cima ainda cheia de
sardas! Mettia nôjo.
Não havia remedio; era
resignar-se. Tinha que carregar aquella cruz até ao ultimo dia da vida, seu
destino.
Certo dia, porém, á mesa do
jantar, Nicóta ergueu-se de repente, levou a mão ao peito, soltou um grito
abafado de angustia e tombou no chão, redondamente morta.
Causou o caso no hotel
immenso alarma, correrias, quedas, desmaios, um horror!
Desfez-se elle num pranto
sem fim, consolado pelos amigos de occasião. “Tivesse paciencia, a sorte de
todos, D. Nicóta fôra feliz até na mórte.” “Com effeito, mas era tão bôa,
companheira de tantos annos, assim de repente, aggravante á sua dôr.” E mais
isto e mais aquillo.
E, não cessou de chorar e
lamentar-se, ora mui leal e convencidamente, ora por simples comedia, até á
volta do cemiterio de Baependy, pois nesse tempo Caxambú não possuia ainda
terreno para enterrar os seus mortos, ou hospedes, ou moradores do lugar.
Essa volta de Baependy!... A
tarde estava tão linda e serena, o céo tão puro e risonho, a paizagem toda tão
grata, illuminada pelos ultimos raios do poente em fogo!
Amaro Esteves sentio-se
outro, o peito desafogado e dos labios entreabertos deixou escapar expressivo e
mysterioso Emfim!
E sorrio-se ao recordar-se
da baroneza da Silva Velho. Fal-a-ia viscondessa, não havia duvida.
Recolheu-se, ao chegar, a um
aposento qualquer, deitou-se cedo e dormio largo e tranquillo somno.
De madrugada acordou
assombrado, tiritando de horror.
Clamor immenso, sem nome,
indizivel, enchia aquelle quartinho de hotel; mil clarins de Jericó, trompas
infernaes, repercussões medonhas, écos terrificos, tudo dominado por uma vóz
pungente, um uivo de suprema agonia a bradar: Assassino! Assassino!
Assassino!
Gelido suor inundou-lhe o
corpo todo e os cabellos se lhe erriçárão no alto da cabeça...
FIM
Núcleo
de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística