LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Assembleia das aves, de Marcelino Antônio Dutra
Obra de referência:
Assembleia das aves, de Marcelino Antônio Dutra. Ed. fac-similar da de 1847.
Florianópolis: Livraria Central, 1921.
ASSEMBLÉA DAS AVES
POEMETO EM QUATRO CANTOS
DEDICADO
AOS VERDADEIROS AMIGOS DO
EXMº. SR. CONSELHEIRO JERONIMO
FRANCISCO COELHO.
POR
M A D
FEITO NA CIDADE DO DESTERRO DA PROVÍNCIA DE
SANTA CATARINA AOS 2 DE JUNHO DE 1847
RIO DE JANEIRO
TIPOGRAPHIA DO MERCANTIL, RUA DA QUINTANDA N. 13
___
SANTA CATARINA - CAMPANHA ELEITORAL.
OS CRISTÃOS E OS JUDEUS.
Aí tendes, leitores, um poemeto eleitoral, denominado — Assembleia das Aves. — Quem esperaria ver das urnas saírem inspirações poéticas? E o caso é que no dito poemeto, e sobre tão prosaico assunto, verão os leitores como arpeja uma lira sonorosa, e como se exprime a musa cândida e pura de um vate catarinense. Nesta produção singela, (pondo de lado o objeto, e fim), cumpre-nos acolher benignos os primeiros voos da imaginação de um vate nascente, que oferta ao seu país estas primícias do seu engenho, e que se for animado, poderá para o futuro dar algum contingente e literatura e poesia nacional.
Passam-se os fatos na província de Santa Catarina no correr do presente ano de 1847. É ano de eleições gerais, isto quer dizer, que em todo o império é ano de lutas desabridas, de intrigas, de embustes, de vexações, de calúnias, de trapaças, de transações, adulações, combinações, coalizões, etc., etc.; é ano enfim de que foi dito, que — ficam suspensas as garantias da honra, e da probidade — .
Enquanto uma ou outra província do Norte se prepara para as vias de fato, um afiando o ferro, outro alvejando o trabuco e a escopeta, este dispondo-se para a cacetada, aquele pondo à mão a flamelga; na província de Santa Catarina, onde constantemente tem havido as mais pacíficas eleições, as cousas felizmente correm por diverso modo; a luta desta vez não terá decerto o caráter turbulento e feroz de outros lugares, mas será renhida, forte e decisiva, e ao mesmo tempo regular e legítima, salvo ligeiros desvios.
Um só é o lugar de deputado à assembleia geral legislativa; e dous são os candidatos; um que é o candidato, e o herói do poeta, o conselheiro, e atual deputado Jerônimo Francisco Coelho; outro, o novo candidato, o rival que se apresenta, o bacharel Joaquim Augusto do Livramento. Ambos são Catarinenses.
O povo da província se declara em dous partidos bem pronunciados, e profundamente divididos. Por malignidade estratégica, e pela referida suspensão das garantias, os Livramentistas se apelidam a si de Cristãos, e alcunham os Jeromistas de Judeus, querendo eles assim fanatizar os símplices, e supersticiosamente incendiá-los contra os seus adversários. Este maligno invento falhou completamente. Os Judeus aceitaram a alcunha, e com ele se gloriam; e os Cristãos conservam o seu apelido, que tanto tem de nobre, e significativo pelo lado religioso, quanto de estéril e ridículo pelo lado político.
Bem se vê, pela linguagem que falamos, que nós, o editor desta obra, e autor deste prólogo, somos Judeu de 24 quilates. Não obstante, procuraremos ser em toda esta exposição, justo, imparcial, e verdadeiro. Continuemos.
O partido Cristão ou Livramentista, compõe-se de diferentes grupos ou frações, heterogêneas entre si, cada qual movido por causas e sentimentos inteiramente distintos; a saber: uns por espírito de família, e tais são parte dos parentes do candidato; outros por antigas ou modernas desavenças individuais; outros, que tendo recebido muitos benefícios do candidato Judeu, não poderão ver cheia toda a medida de seus vorazes desejos; outros por mesquinhos ciúmes de influências ou preferências, e ridículas questões de bairrismo; outros, levianos, e pouco refletidos pelo sentimento (entre nós tão natural e tão fatal) que nos leva a apetecer toda a mudança, e novidade; outros enfim, que, acumulados de beneficios, levantados do pó, e sem terem recebido ofensa, acabrunhados, e vexados com o peso de tão grande dívida, para livrar-se dela, tomarão o cômodo e fácil expediente de pagá-la com a moeda da ingratidão!
Vê-se portanto, que não há convicções no partido, e nem é a fé no candidato Cristão, o que anima os partidários; estes o escolheram considerando que na atualidade só ele poderia dar alguma probabilidade de vencer. Assim diferentes causas de movimento, atuando sobre estes grupos ou frações, os impelem e reúnem em um centro; eis o partido. Bazófios, bulhentos, e vociferadores, assim procuram inculcar a força moral, e numérica, que lhes falta.
Se fosse admissível a hipótese de saírem vencedores os Cristãos, no dia imediato infalivelmente teriam de questionar pela parte de presa, e logo se desligariam. O único pensamento que "os anima em comum é — «deitar abaixo quem está em cima». Hão de ser unidos enquanto vencidos.
O partido Judeu ou Jeromista, mais numeroso, mais cordato, e refletido, muito mais ilustrado, com firmes e extensas raízes em todos os pontos da província, cheio de profundas convicções, tendo verdadeira fé, e a mais acrisolada simpatia ao seu candidato, forma uma maça inteiriça, e respeitável.
Um só pensamento anima a todos os Judeus. — «Escolher um bom representante, reconhecer os serviços, e premiar o mérito — » Os Judeus não se desligam, nem recuam. Vencedores, ou vencidos, hão de sempre estar unidos.
Passemos adiante.
Contava-se que a eleição fosse feita no ano passado (1846); a lei a espaçou para o ano corrente; e a luta, em vez de arrefecer com o tempo, tem continuado de mais em mais ativa e crescente.
Os partidos foram gladiar-se na imprensa da corte; aí têm gemido os prelos por vezes repetidas, e a polêmica tornou-se viva, animada, e forte, e ultimamente interessante e faceta.
Na província formam-se de parte a parte publicamente associações eleitorais, que se ramificam por todos os pontos. A toda a parte se vai pregar a santa doutrina uns do Novo, outros do Velho Testamento político-eleitoral. Quando uns gritam — Viva o Cristo! — os outros respondem — Viva o Rei dos Judeus!
Formam-se também reuniões populares a céu aberto, verdadeiros meetings à inglesa.
Os Cristãos tomaram por divisa as palavras do Evangelho — Potentes de sede deposuit, et humiles exaltavit. — A divisa dos Judeus é — Deus, honra, e lei — junto à legenda histórica — In hoc signo vinces — .
A animosidade fervorosa dos 2 partidos tem tocado o ponto de fanatismo. Exceto as principais autoridades, como o presidente da província, o arcipreste, o chefe de polícia, e alguns outros, que se têm conservado estáticos, indiferentes, e regelados, deixando a arena completamente livre aos contendores, toda a mais população em massa, quer da cidade, quer do campo, inclusive os mais remotos habitadores dos sertões, tudo está ou judeizado ou cristianizado. Até uns santos varões, padres jesuítas, que vieram pregar a fé e a palavra do Divino Mestre, são (lá no íntimo d’alma, e no segredo de seus peitos) muito bons e venerandos Judeus.
Hinos, cânticos, poesia, e música, bailes, saraus, passeios, romarias, e cavalgatas, tudo exclusivo para cada lado, ainda mais servem para exaltar o entusiasmo dos partidos. As Judias, assim como são as mais formosas, tambem são as mais corajosas.
Moços, e velhos, grandes e pequenos, homens, e mulheres, meninos e meninas, casados, ou solteiros, bonitos, e feios, altos e baixos, gordos e magros, tortos e aleijados, surdos, ou cegos, sem distinção de sexo, idade e cor, estado, condição, religião, profissão ou senão, (salvas as já ditas exceções), todos se afervoram, todos discutem, todos se empenham, todos trabalham, todos, cada qual pelo seu partido, tomam a parte mais ativa e decidida, todos enfim, votantes e não votantes, estão firmes no seu posto esperando a hora do combate.
Neste estado de exaltamento chega à província o candidato Judeu a 2 de março do corrente ano. Toma assento como deputado da assembléa províncial; aí se acha frente a frente com o seu rival, o candidato Cristão. É na sua vida a primeira vez que eles se encontram.
Trava-se imediatamente a mais vigorosa luta parlamentar; luta sustentada por quase 2 meses, até voltar à corte o nosso candidato. Quiséramos dar a descrição desta interessante luta, mas já nos declaramos Judeu, e como tal suspeito; e de mais esta descrição compete ao vate; todavia apelamos para o juízo dos Cristãos moderados (se os há); e eles que digam se o candidato Judeu comportou-se ou não como parlamentar, e cavalheiro.
Volta o nosso candidato à corte nos fins de abril do mesmo ano, para tomar assento na assembleia geral. Enquanto esteve ele na província, andavam os Cristãos, enfiados, inquietos, e constrangidos; ao depois intolerantes no último ponto, tornaram à sua habitual arrogância e fanfarrice, no que muito se têm distinguido. Os Judeus, algumas vezes não menos intolerantes, porém sempre mais amenos e civis, têm continuado na sua inextinguível e infatigavel perseverança.
Agora se aproxima a época da eleição, e o povo, que viu com seus olhos a luta corpo a corpo dos dous campeões, decidirá a quem compete o prêmio da justa. Este litígio eleitoral, que se tornará memorável nos anais da província, pleiteado perante o tribunal da opinião pública, vai em breve ser sentenciado pelo juiz competente, e (conforme o belo pensamento de um poeta contemporâneo), o processo será o combate, a sentença será a Vitória.
Os dous partidos ambos julgam-se fortes, ambos contam vencer. Os Cristãos têm chefes audazes, dispostos a tudo, sem escolha de meios; muitas vezes como que desanimam, e então tornam-se furiosos. Os Judeus contam chefes prestigiosos, ativos e vigilantes; confiam em si, no mérito do candidato, e no senso público; mostram-se mais tolerantes, e nunca desesperarão.
Não se receia, que hajam sérios conflitos no dia crítico; assim o afiança a moralidade do povo, o seu bom senso, e espírito de ordem; e quando os imprudentes de qualquer dos partidos tentem sair das raias legais, e transpor as vias da moderação, esses se acharão sós, e serão os unicos responsáveis.
Os nomes dos 2 candidatos vão entrar na urna; o do candidato Judeu entra com uma longa série de serviços feitos, com um nome conhecido no Brasil inteiro, e com um longo tirocínio parlamentar, e prática governativa; o do candidato Cristão entra com um comprido rol de serviços por fazer, com um nome ignoto, e com a novatice e inexperiência da juventude. Um entra com grandes fatos, o outro com grandes promessas. A confiança anima os Judeus, a esperança seduz os Cristãos. Quem será o preferido? Aquele de quem mais gostar o povo, pois há gostos para tudo.
O dia, que vai raiar a 7 de Novembro de 1847, alumiará o campo de batalha; o combate será decisivo; entretanto nos dous arraiais tudo é bulício e impaciência.
Para quem penderá a balança dos sufrágios populares? A quem protegerá o Deus das batalhas? Quem cantará a vitória? Mas porventura o Deus da Cristandade não será o mesmo Deus de Israel? É um problema, que brevemente a urna resolverá.
Esperemos.
Por esta sucinta e verídica narração, conheceram os leitores debaixo de que impressão escreve, e compõe o autor do poemeto da — Assembléa das Aves.
Discorre o poeta como discorreria qualquer Judeu do mesmo quilate que o Editor. Numa engenhosa alegoria, que assenta sobre um fundo histórico verdadeiro, faz ele aparecer convenientemente falando diferentes aves, e as emprega para cantar o candidato Judeu, e descantar o candidato Cristão. Na escolha alegórica, que faz o poeta, e competente distribuição dos interlocutores, só faremos notar a feliz escolha do Cisne, para representar o seu herói, e a do Quero-quero, para representar o rival; ambos aves aquaticas, o que bem quadra aos dous candidatos, filhos de uma província eminentemente marítima e fluvial, com a diferença porém que o Cisne é o majestoso rei dos grandes lagos, e o Quero-quero o mariscador dos pequenos charcos.
Terminaremos com um tributo de homenagem judaica ao nosso Cisne, oferecendo a descrição, que dele faz um analista pelo modo seguinte:
«O Cisne é uma das maiores aves aquáticas; mas nenhuma tem, como ele, tanta graça e beleza; nenhuma se distingue por tanta elegância nas formas, e tanta nobreza no porte e nas atitudes».
Adicionaremos por fim a descrição ética, que do Cisne faz o eloquente Buffon:
«A seu nobre talhe, à facilidade, e à liberdade de seus movimentos n’água, se deve nele reconhecer não só o primeiro dos navegantes alados, mas também o mais belo modelo, que a natureza nos oferece para a arte da navegação; seu colo elevado, seu peito saliente, e arredondado, parecem com efeito figurar a proa de um navio fendendo as ondas; seu largo estômago representa a quilha; seu corpo, lançado à frente para navegar, arma-se para trás, e se levanta em popa; a cauda é um verdadeiro leme; os pés são largos remos; suas grandes asas semi-abertas ao vento, docemente cheias, são velas, que impelem esta embarcação viva, navio e piloto no mesmo tempo.»
Por pouco interessante, calaremos o que do Quero-quero dizem os mesmos naturais.
Findaremos, recomendando aos leitores em geral, a poesia e o poeta, e aos Catarinenses em particular os merecimentos, e os serviços do herói do poema, do candidato Judeu, do Cisne Catarinense. — Disse.
O EDITOR.
CANTO 1.
ARGUMENTO
Em singela alegoria
De um Cisne pinto a candura;
Das aves canto a ventura
A paz, sossego, harmonia.
Vitupero a rebeldia
De certo grupo traidor:
Louvo um gentil beija-flor,
Mimoso, nobre, e sincero;
Pinto enfim um Quero-quero
Turbulento, e piador.
1ª
Aos graus vinte sete e trinta [1]
Para o Sul do Equador,
No mundo, de que Colombo
Foi feliz descobridor.
2ª
Novecentas e setenta [2]
Léguas para o ocidente
Do Bretão meridiano,
(Se nauta regra não mente)
3ª
Sítio jaz, que o mar se ufana
De assíduo em torno beijar;
Pleiteiam zéfiros brandos
O prazer de o bafejar.
4ª
Quando a todos os viventes
Fala os deuses concediam,
Plumosos, bípedes bandos
Aí felizes vivião.
5ª
Ao volátil, dócil povo
Presidiam mansidão,
Concórdia, paz, doces frutos
Que produz a solidão.
6ª
O plúmeo bando feliz
Da paz os gozos fruía,
Até que veio a cobiça
Plantar a desarmonia.
7ª
Alguns se alegram com isso!
Tal é a facilidade,
Com que no mundo se aplaude
Tudo quanto é novidade!
8ª
Eis o caso: pelas aves
Sábio Cisne fora eleito
Para sustentar na corte
Do plúmeo povo o direito.
9ª
Que bem o cargo servira
Não sofre contestação;
Porque das aves tivera
Constante reeleição.
10ª
Também cabe apresentar
Por documento em favor,
Tê-lo chamado a conselho
Das aves a Superior.
11ª
Sem ambição, sem riquezas,
Sem brasões de fidalguia,
Honra tal só o talento
Conferido ter podia.
12ª
Rancores, ódios, vinganças,
Nem contra o próprio inimigo
Em seu peito generoso
Jamais tiveram abrigo.
13ª
Entretanto volta à terra,
De que saíra a estudar,
Um Quero-quero dizendo
Que vinha os seus libertar. [3]
14ª
À maior parte das aves
Causou isto expectação;
Porque dar a liberdade
Presupõe a escravidão.
15ª
A uma linda saíra
Perguntou um beija-flor,
«Se é certo sermos cativos,
«Quem será nosso senhor? »
16ª
«Não sei (responde a mimosa),
«Mas tenho ouvido dizer,
«Que o jugo do cativeiro
Faz suspirar, faz gemer.
17ª
«Até hoje (aos Céos louvores!)
«Não suspirei, nem gemi,
«Portanto julgo-me ainda
«Ser livre como nasci.»
18ª
Ai! tristes! já lá no peito
Dos inocentes plumosos,
A discórdia acerba e dura
Os faz menos venturosos.
19ª
Assim foi, que certo bando,
Levado de fanatismo,
Toma do Libertador
A inveja por heroísmo.
20ª
De incenso pobre aturdido
Se infatua o novo herói,
Concórdia, paz, e sossego,
Em breve o tempo destrói.
21ª
Adeus ternas amizades,
Boa fé, leda harmonia,
Quietação doce, e mais doce
Inocência de algum dia.
22ª
Pairam nuvens de discórdia
Sobre o sítio encantador,
Ninguém mais de ser escapa
Delatado ou delator.
23ª
Tal quando em Mavórcia lide
Soa a voz de combater,
Entre o ataque e defesa
Por força se há de escolher.
24ª
Por iludir os incautos,
Que do seu partido são,
Ardilosos planejaram
Noturna reunião. [4]
25ª
Os ódios, que em muitos peitos
Existiam sufocados,
Nela acharam sítio, ensejo
Os mais bem apropriados.
26ª
Ali sandices vomita
O fofo Libertador,
Em camisas de onze varas
Foi meter-se o falador.
27ª
Seu alvo (diz a Gazeta)
Foi deprimir o rival,
Ha Queros-queros, que imitam
As gralhas em falar mal.
28ª
E não deu baldado exemplo,
Pois logo surgiu dali
Um Tiê, que vira tudo,
Como qualquer Bem-te-vi.
29ª
Sobre as aves inocentes
Esvoaça o detrator,
Fere a todos sem piedade,
Sem respeito, e sem pudor.
30ª
Não houve aí Tico-tico,
Papa-arroz, ou Tangará,
Pobresinho, que escapasse
À língua ferina, e má.
31ª
«Não prossigas, maldizente!
«Não difames a ninguém!
«De dizer-se mal dos outros
«Qual o lucro, que provêm?
32ª
«Sobre esta terra de dores
«Infelizes companheiras,
«Leis de amor unir-nos devem,
«Leis do Céu, leis verdadeiras.
33ª
«Somos corruptível massa,
«Que Deus serviu-se animar.»
Assim mimosa avezinha
Findou seu triste cantar.
CANTO II.
ARGUMENTO
Para ao Cisne disputar
Populares afeições,
Chamam às reuniões
Negras aves d’ultramar.
Vão ali fezes vazar
Aves de bico daninho;
Aos Céus invoca um Arminho
Que à terra o Cisne trouxesse;
Uma corveta aparece;
Traz o Cisne ao pátrio ninho.
1ª
Já da Capricórnia meta
Se afasta o grande luseiro;
Eis o Outono, em frutos fértil
Sobre o solo braslieiro;
2ª
Lá vai Febo auriluzente
Curar com tepida mão
Os danos, que em sua ausência
Sofrera o Setentrião.
3ª
Multidão de esparsas folhas
Junca a terra em parda cor;
A saudade de seus ramos
Lhes murcha o lindo verdor.
4ª
Desmuciados, grossos troncos
Distendem tortas raízes.
Tardo auxílio!... Nada sentem,
São mortas as infelizes!
5ª
Mas vai já tudo animar-se
Da febeia proteção,
As selvas amortecidas
Que lindas florescerão!
6ª
Pelas aves, entretanto
Prossegue o pleito odioso;
Nelas abre a vil intriga
Cavo sulco abominoso.
7ª
Negras aves africanas, [5]
Que de — Anus — o nome têm,
Aos Sericuás, e Tucanos
Se reuniram também.
8ª
Desta liga monstruosa
Fez-se um clube eleitoral;
Temeu logo as consequências
O poder policial.
6ª
Eis ordena que de dia
Só se possam reunir,
Pois da noite o negro manto
Sói os crimes encobrir.
10ª
Tinha a Fama por cem bocas
Falsamente apregoado
Todo o caso; até se afirma
Que mentira seu bocado.
11ª
Se uma boca só que mente,
Muito mal faz produzir,
Que de males não resultam
De cem bocas a mentir?
12ª
Soube o eleito na corte
Do trama na terra urdido
Por muitos, que só favores
Dele haviam recebido.
13ª
Sobranceiro a tanta infâmia,
No seu forte coração,
De algumas aves mesquinhas
Desprezando a ingratidão;
14ª
Veio ver essas que firmes,
Com fé, amor, lealdade,
Sacros deveres cumpriram
Da justiça e da amizade.
15ª
«Vem, sábio legislador,
«Que honras teu país natal,
«Vem trocar com teus amigos
«Um abraço fraternal.
16ª
«Vem saber que as mais sensatas
«Das aves tuas patrícias,
«Por ti afrontam perigos,
«Por ti rejeitam delícias.
17ª
«Que a parte sã da província,
«Por teu mérito, e primor,
«Te vota mais que amizade,
«Muito mais, te vota amor.
18ª
«Vem, saber, que tu não deves
«Recear calúnias vis.
«Refalsada e baixa intriga,
«Baixos manejos sutis.
19ª
«Despresa esses, que vivem
«Só de embuste e falsidade,
«Que parecem proibidos
«De dizer uma verdade.
20ª
«Tens um trono em nossos peitos,
«Baseado em puro amor.
«Anda, vem testemunhar
«Nossa fé, nosso valor.
21ª
Em quanto gentil Arminho
Pousado numa figueira,
Isto diz; lá se levanta
Avermelhada bandeira. [6]
22ª
Após esta outra subia
De várias listadas cores;
Era a Corveta fendendo
Pelos mares interiores. [7]
23ª
Nela vem Ave escolhida
Dentre muitas aves mil,
Daquelas, que mais ilustram
As florestas do Brasil.
24ª
Com geral contentamento
Em veloz celeridade
Percorre a fausta notícia
Os subúrbios da cidade.
25ª
Bem como os sons da trombeta
Fazem saber aos guerreiros,
Que no perigo iminente
Às armas corram ligeiros:
26ª
Tal este deixa apressado
Aberto o livro em que lia;
Aquele, de tinta cheia
A pena com que escrevia.
27ª
Um que escuta o terno canto,
Da mais delicada amante,
Deixa; parte, e leva a nova
Ao companheiro distante.
28ª
Outro, que no altar de amor
Ia dar um juramento,
No caminho a nova sabe,
Volta, e falha o emprasamento.
29ª
Alguns partem duvidosos;
Todos à praia caminham
Alegres aves aos centos
No desembarque se apinham.
30ª
Ao longe avança um batel,
Que lhes occupa os sentidos;
Ele chega; e veem seus olhos
O que ouviram seus ouvidos.
31ª
Aquilo que se deseja
Com sincero, e puro ardor,
No momento em que se alcança
Tem mais que humano valor.
32ª
A chegada de um amigo
Por longos tempos ausente,
Transforma mágoas passadas
Em puro gozo presente.
33ª
Esses, que no peito abrigam
Corações cheios de fel,
Não podem sentir as cousas,
Que escrevo neste papel.
CANTO III.
ARGUMENTO
Saudoso, fagueiro, e terno
Chega o Cisne aos pátrios lares;
Vêm as aves a milhares
Com prazer o mais interno,
Em dar o abraço fraterno,
É quem primeiro será;
Pelo povo que ali está,
Em sinal de saudação,
A mais bela alocução
Faz ao Cisne um Sabiá.
1ª
Musa amiga, que por vezes
Nas minhas vicissitudes,
Mil endechas me inspiraste
Saudosas, se bem que rudes;
2ª
Que às ingratidões de Márcia,
Que aos encantos de Delmira,
Sons maviosos tiravas
De uma só corda da Lira;
3ª
Outorga-me neste empenho
Os teus encantos divinos,
Com que outrora da Estige [8]
Venceste acerbos destinos.
4ª
Se me não for permitido
Encantar jovens leitores,
Que na flor da mocidade,
Só se encantam por amores;
5ª
Se agrados não excitar
À sabujenta velhice,
Que só crê nas priscas eras
Tendo horror à modernice;
6ª
Se o belo sexo enfim
Não me der nenhum apreço,
Porque as belas só se enlevam
Nas aras do Deus travesso;
7ª
Nem por isso me denegues
Teu auxílio altipotente,
O que não agrada a uma,
Satisfaz a outra gente.
8ª
Alguns sobre o pobre vate
Talvez louvores espargem,
A esses voto meu canto,
A esses rendo homenagem.
9ª
Mal que o pátrio solo amigo
Nosso herói ledo pisou,
À multidão, que o saúda,
Enternecido abraçou.
10ª
No prazer, em que transborda,
Arrebatado assim diz :
«Ó minha pátria adorada,
«Torno a ver-te; sou feliz.»
11ª
Notou certa ansiedade,
Nas aves, e a razão,
Não sabia, sendo ela
De bem facil solução.
12ª
Quando tisnar se procura
O crédito, a quem o tem,
A sustentá-lo se prestam
Todas as aves de bem.
13ª
Mas já nos montes embaçam
Os raios do etéreo lume;
Faz na areia inquieta vaga,
Brando som, quase queixume.
14ª
Nas folhagens ciciando
Tênue aura suestina;
No céu fulge do Oriente
A rósea luz matutina.
15ª
Já trinam lindos Canários,
Gaipavas, e Gaturamos;
Sanhaços, Cambaciquinas,
Saltando por entre os ramos.
16ª
De sonoros Sabiás,
Alegre bando chegou,
E deles o mais sabido
Desta maneira cantou :
17ª
«Presta ouvidos aos meus acentos,
«Modesto Legislador,
«Atende aos votos humildes
«De um selvático cantor.
18ª
«Viste a luz em nossa terra,
«À côrte foste estudar
«Ciências com que vieste
«Teus patrícios ilustrar.
19ª
«Diva luz da liberdade
«Para nós veio raiar.
«Abusos velhos cumpria
«De sobre o povo tirar.
20ª
«Inda El-rei Nosso Senhor
«De Deus se não distinguia;
«E dizer-se — Liberdade —
«Era dizer — Rebeldia — .
21ª
«Teus discursos, teus escritos
«De animada erudição,
«Nossos direitos defendem,
«Velam no bem da Nação.
22ª
«Quando do povo aterrado
«Tristes clamores ouvias,
«Em tal crise combateste
«Suspensão de garantias. [9]
23ª
«Muitas leis, que feitas foram
«Por bem nosso, e do país,
«Nasceram, e sazonaram
«Na tua mente feliz.
24ª
«Associada união,
«Política e fraternal, [10]
«Tudo criaste; e também
«Uma imprensa liberal. [11]
25ª
«Conseguiste, enfim, que breve
«Priscas preocupações,
«Não tivessem mais guarida
«Nem mesmo em nossos sertões.
26ª
«Pelo público serviço
«Desvelado, e diligente,
«Mil bens de ti receberam
«Nossa terra e nossa gente.
27ª
«Eleger-te deputado,
«Fora em nós quase um dever,
«Porque juntas aos serviços
«Patriotismo e saber.
28ª
«Foste assim por nós eleito
«Em missão legislativa;
«Não erramos, preencheste
«A geral espectativa.
29ª
«No Parlamento composto
«Dos mais sábios da Nação,
«Teus discursos, teu bom senso,
«Mereceram atenção,
30ª
«E na corte o teu prestígio
«Honra faz à nossa aldeia;
«Se lá te elege o Monarca,
«O povo aqui te nomeia.
31ª
«Como ministro da Coroa
«Gerindo a pasta da guerra,
«Findaste a luta de irmãos,
«Deste paz à nossa terra. [12]
32ª
«Com este ato sublime
«Tua missão acabaste;
«Se ao entrar pobre subiste,
«Ao sair pobre ficaste.
33ª
«E os louros querem tirar-te
«Tão nobres, tão merecidos?...
«Os feitos de Coriolano [13]
«Tambem foram esquecidos!!!...
CANTO IV.
ARGUMENTO
Ao Congresso, que se instala
Marcha o Cisne sem demora;
Um certo grupo descora
Quando o vê entrar na sala.
Com graça discute e fala;
Desbarata a oposição:
Volta à corte; e foi então
Que nobre, grave, e severo
O Guará no Quero-quero
Deu formal repreensão.
1ª
Calou-se o plúmeo cantor,
E as aves, que o escutavam,
Folego tomam, que há muito
De atentas nem respiravam.
2ª
Só então parte das aves
Com mágoa ficou ciente,
Que haviam tantos ingratos
Com cara de boa gente.
3ª
Que tal grupo de invejosos
Na pátria terra existia;
Houve quem se indignasse,
Mas o nosso herói sorria.
4ª
A coral e a jararaca
Mansas pombinhas serão,
Se com elas se compara
A inveja e a ingratidão.
5ª
Porém de humanas paixões
O Cisne conhecedor,
Nada disto lhe causava
Nem vislumbre de rancor.
6ª
Ingratos zoilos mesquinhos,
Vosso afã, e pouco siso,
Com desdém, são condenados
Ante o público juízo.
7ª
Aves vinte anualmente
Em congresso se juntavam; [14]
Sobre os públicos negócios
Do seu país legislavam.
8ª
Um vinte-avos do congresso
Era o Cisne de direito;
E no dia imediato
Nele achou-se com efeito.
9ª
Musa, tu, que me inspiraste
Este humilde canto meu,
No mais difícil do canto,
Me privas de auxílio teu?
10ª
Agora, que eu pretendia
Do meu herói descrever,
O estilo, o garbo, e modo,
E graça no discorrer;
11ª
É então que me abandonas,
Porque vás saborear,
Seus discursos maviosos,
Tão difíceis de imitar?
12ª
Sua voz serena, e firme
Acaso te encantaria?
Tens razão; do Cisne o canto
Tem sonora melodia.
13ª
Vou tambem ouvir atento
As frases da pátria amigas;
Contigo juro cantá-las
Por quem és, não me desdigas.
14ª
Ei-lo; em torno a vista lança,
Tranquilo pede a palavra;
Certo terror macilento
Nos rostos imigos lavra.
15ª
Oferecera o Quero-quero
Uma felicitação; [15]
Peça mesquinha, e pejada
De servil adulação.
16ª
O eloquente orador
Com discreto analisar,
Castigando a ruim doutrina,
Fez a peça reprovar.
17ª
Era notável a graça,
A finura e cortesia
Com que a jeito lhes lançava
Delicada zombaria.
18ª
Entoou loquaz Gansete,
Acusação muito antiga;
Sediça, e falsa provou-se,
Voltou ao bucho a cantiga.
19ª
Dos contrários a conduta,
Manda a prudência calar;
Seus atos causam desdouro;
Nem se devem divulgar.
20ª
Certas gralhas, que na ausência
Tanta grasnada fazism,
Caladinhas, acanhadas
Nem palavra proferiam.
21ª
Exclamou o Cisne vendo
Tão mofinos contendores:
— «Honro-me pouco vencendo
«Tão fracos opositores.» —
22ª
E dos seus se despedindo
Fez à corte o seu regresso,
Novos deveres o chamam
A mais luzido congresso. [16]
23ª
Adeus, ó ave adorada,
Mimosa, e cândida flor;
O nosso pranto saudoso
É teu cântico de amor.
24ª
Então vistoso Guará
Ao Quero-quero exprobando,
Da província amotinada
O estado miserando.
25ª
Assim diz: — «Tu que tens feito
«Ao Cisne tão crua guerra,
«Não dirás que benefícios
«Já fizeste à nossa terra?
26ª
«Dize mais: — que bens lhe podes
«Para o futuro trazer?
«Pelas provas que tens dado,
«Só males podes fazer.
27ª
«Por ora, o que nos tens feito
«E’ profunda divisão, [17]
«Entre amigos, e parentes
«Da mais íntima união.
28ª
«’Té ao seio das famílias
«Tens a discórdia levado;
«Em mil pleitos, mil demandas,
«Tens o povo emaranhado. [18]
29ª
«De Pandora a caixa iníqua
«Destampaste em nosso dano,
«Que maior mal nos faria
«A subida de um tirano?
30ª
«Quanto a ti, Cisne famoso,
«Sinceros votos aceita,
«A outrem, que tu não sejas,
«Nossa gratidão rejeita.
31ª
«E quando austeros destinos
«Contigo sejam fatais
«Honra mais descer contigo,
«Que subir com teus rivais.
32ª
«Findarás, Cisne querido,
«Pois não hás de ser eterno,
«Mas teu canto de agonia
«Há de ser saudoso e terno.» [19]
33ª
Disse: e logo abrindo as asas,
Fendendo os ares, voou;
Disse pouco; mas que puras
Verdades articulou!!!
FIM
[1] Latitude Sul da Ilha de Santa Catarina 27° 80’.
[2] Longitude Oeste de Greenwich 48° 40’, ou 970 léguas marítimas de 20 ao grau.
[3] Alusão ao novo candidato, quando voltou do Curso Jurídico.
[4] Reuniões em club promovidas pelo candidato.
[5] Refere-se ao grupo de pretos libertos, e muitos deles africanos que foram associados ao clube Cristão.
[6] A bandeira encarnada é sinal de aparecer navio.
[7] A corveta de guerra Bertioga, que trazia o atual Deputado a 2 de março de 1847.
[8] Orfeu, por exemplo, tirando do inferno a bela Eurídice.
[9] Foi na sessão de 30 de março de 1839, em que, como relator de uma comissão especial, lavrou esse famoso parecer contra a suspensão de garantias pedida pelo presidente da próvincia, como medida de terror.
[10] Alude à Sociedade Patriótica, e à loja maçônica — Cordialidade — .
[11] Alude à 1ª imprensa por ele estabelecida na província.
[12] Alude à pacificação da guerra civil do Rio Grande do Sul que se realizou em fins de fevereiro de 1845, depois de 9 anos de encarniçada luta.
[13] O famoso e ilustre general Romano, que, depois de gloriosos serviços à sua patria, desterrado e banido pela ingratidão do povo, foi mendigar um asilo na cidade dos Volscos, seus inimigos!
[14] Refere-se à assembleia provincial, que é de 20 membros.
[15] Projeto de felicitação ao presidente, por ter declarado na fala da abertura, que não intervinha nas eleições.
[16] À assembléa geral legislativa.
[17] Plantando a odiosa distinção de Cristãos, e de Judeus, e especulando perfidamente com este ardil supersticioso, e com a simplicidade dos povos.
[18] Suscitando, como advogado, e para seu proveito, uma multidão de demandas, enredando os povos em tal labirinto de chicanas, que em breve será uma espécie de guerra civil.
[19] Alusão feliz à historia fabulosa do Cisne, que na hora da agonia, e nos seus últimos momentos, solta um canto mavioso, e depois morre.