Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra Poética de Gregório de Matos


Edição de Referência:

Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,

Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.

 

SANTOS UNHATES

PONDO OS OLHOS PRIMEIRAMENTE NA SUA CIDADE CONHECE, QUE OS MERCADORES SÃO O PRIMEIRO MÓVEL DA RUÍNA, EM QUE ARDE PELAS MERCADORIAS INÚTEIS E ENGANOSAS.

DESCREVE COM MAIS INDIVIDUAÇÃO A FIDÚCIA, COM QUE OS ESTRANHOS SOBEM A ARRUINAR SUA REPÚBLICA.

JULGA PRUDENTE E DISCRETAMENTE AOS MESMOS POR CULPADOS EM UMA GERAL FOME QUE HOUVE NESTA CIDADE PELO DESGOVERNO DA REPÚBLICA, COMO ESTRANHOS NELA.

NO ANO DE 1686 DIMINUÍRAM AQUELE VALOR, QUE SE HAVIA ERGUIDO À MOEDA, QUANDO O POETA ESTAVA NA CORTE, ONDE ENTÃO COM SEU ALTO JUÍZO SENTIU MAL DO ARBITRISTA,QUE ASSIM ACONSELHARA A EL REI, QUE FOI O PROVEDOR DA MOEDA CHAMADO NICOLAU DE TAL, À QUEM FEZ AQUELA CÉLEBRE OBRA INTITULADA "MARINÍCULAS" O QUE CLARAMENTE SE DEIXA VER NESTES VERSOS:

AGORA COM A EXPERIÊNCIA DOS MALES, QUE PADECE A REPÚBLICA NESTAS ALTERAÇÕES, SE JACTA DE O HAVER ESTRANHADO ENTÃO: JULGANDO POR CAUSA TOTAL OS AMBICIOSOSESTRANGEIROS INIMIGOS DOS BENS ALHEIOS.

 

 

SANTOS UNHATES

para levar tudo ao punho,

que só por força tem cunho,

ou cruzes o seu dinheiro.

Todos, os que não furtam, muito pobres.

 

PONDO OS OLHOS PRIMEIRAMENTE NA SUA CIDADE CONHECE,

QUE OS MERCADORES SÃO O PRIMEIRO MÓVEL DA RUÍNA,

EM QUE ARDE PELAS MERCADORIAS INÚTEIS E ENGANOSAS.

Triste Bahia! Oh quão dessemelhante

Estás, e estou do nosso antigo estado!

Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,

Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando, e tem trocado

Tanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

 

DESCREVE COM MAIS INDIVIDUAÇÃO A FIDÚCIA, COM QUE OS

ESTRANHOS SOBEM A ARRUINAR SUA REPÚBLICA.

Senhora Dona Bahia,

nobre, e opulenta cidade,

madrasta dos Naturais,

e dos Estrangeiros madre.

Dizei-me por vida vossa,

em que fundais o ditame

de exaltar, os que aí vêm,

e abater, os que ali nascem?

Se o fazeis pelo interesse,

de que os estranhos vos gabem,

isso os Paisanos fariam

com duplicadas vantagens.

E suposto que os louvores

em boca própria não cabem,

se tem força terá a verdade.

O certo é, Pátria minha,

que fostes terra de alarves,

e inda os ressábios vos duram

desse tempo, e dessa idade.

Haverá duzentos anos,

(nem tantos podem contar-se)

que éreis uma aldeia pobre,

e hoje sois rica cidade.

Então vos pisavam Índios,

e vos habitavam cafres,

hoje chispais fidalguias,

arrojando personagens.

A essas personagens vamos,

sobre elas será o debate,

e queira Deus, que o vencer-vos

para envergonhar-vos baste.

Sai um pobrete de Cristo

de Portugal, ou do Algarve

cheio de drogas alheias

para daí tirar gages:

O tal foi sota-tendeiro

de um cristão-novo em tal parte,

que por aqueles serviços

o despachou a embarcar-se.

Fez-lhe uma carregação

entre amigos, e compadres:

e ei-lo comissário feito

de linhas, lonas, beirames.

Entra pela barra dentro,

dá fundo, e logo a entonar-se

começa a bordo da Nau

cum vestidinho flamante.

Salta em terra, toma casas,

arma a botica dos trastes,

em casa come Baleia,

na rua entoja manjares.

Vendendo gato por lebre,

antes que quatro anos passem,

já tem tantos mil cruzados,

segundo afirmam Pasguates.

Começam a olhar para ele

os Pais, que já querem dar-lhe

Filha, e dote, porque querem

homem, que coma, e não gaste.

Que esse mal há nos mazombos,

têm tão pouca habilidade,

que o seu dinheiro despendem

para haver de sustentar-se.

Casa-se o meu matachim,

põe duas Negras, e um Pajem,

uma rede com dous Minas,

chapéu-de-sol, casas-grandes.

Entra logo nos pilouros,

e sai do primeiro lance

Vereador da Bahia,

que é notável dignidade.

Já temos o Canastreiro,

que inda fede a seus beirames,

metamorfoses da terra

transformado em homem grande:

e eis aqui a personagem.

Vem outro do mesmo lote

tão pobre, e tão miserável

vende os retalhos, e tira

comissão com couro, e carne.

Co principal se levanta,

e tudo emprega no Iguape,

que um engenho, e três fazendas

o têm feito homem grande;

e eis aqui a personagem.

Dentre a chusma e a canalha

da marítima bagagem

fica às vezes um cristão,

que apenas benzer-se sabe:

Fica em terra resoluto

a entrar na ordem mercante,

troca por côvado, e vara

timão, balestilha, e mares.

Arma-lhe a tenda um ricaço,

que a terra chama Magnate

com pacto de parceria,

que em direito é sociedade:

Com isto a Marinheiraz

do primeiro jacto, ou lance

bota fora o cu breado,

as mãos dissimula em guantes.

Vende o cabedal alheio,

e dá com ele em Levante,

vai, e vem, e ao dar das contas

diminui, e não reparte.

Prende aqui, prende acolá,

nunca falta um bom Compadre,

que entretenha o acredor,

ou faça esperar o Alcaide.

Passa um ano, e outro ano,

esperando, que ele pague,

que uns lhe dão, para que junte,

e outros mais, para que engane.

Nunca paga, e sempre come,

e quer o triste Mascate,

que em fazer a sua estrela

o tenham por homem grande.

O que ele fez, foi furtar,

que isso faz qualquer bribante,

tudo o mais lhe fez a terra

sempre propícia aos infames

e eis aqui a personagem.

Vem um Clérigo idiota,

desmaiado com um jalde,

os vícios com seu bioco,

com seu rebuço as maldades:

Mais Santo do que Mafoma

na crença dos seus Árabes,

Letrado como um Matulo,

e velhaco como um Frade:

Ontem simples Sacerdote,

hoje uma grã dignidade,

ontem selvagem notório,

hoje encoberto ignorante.

Ao tal Beato fingido

é força, que o povo aclame,

e os do governo se obriguem,

pois edifica a cidade.

Chovem uns, e chovem outros

com ofícios, e lugares,

e o Beato tudo apanha

por sua muita humildade.

Cresce em dinheiro, e respeito,

vai remetendo as fundagens,

compra toda a sua terra,

com que fica homem grande,

e eis aqui a personagem.

Vêm outros zotes de Réquiem,

que indo tomar o caráter

todo o Reino inteiro cruzam

sobre a chanca viandante.

De uma província para outra

como Dromedários partem,

caminham como camelos,

e comem como salvagens:

Mariolas de missal,

lacaios missa-cantante

sacerdotes ao burlesco,

ao sério ganhões de altares.

Chega um destes, toma amo,

que as capelas dos Magnates

são rendas, que Deus criou

para estes Orate frates.

Fazem-lhe certo ordenado,

que é dinheiro na verdade,

que o Papa reserva sempre

das ceias, e dos jantares.

Não se gasta, antes se embolsa,

porque o Reverendo Padre

é do Santo Nicomedes

meritíssimo confrade;

e eis aqui a personagem.

Vêem isto os Filhos da terra,

e entre tanta iniqüidade

são tais, que nem inda tomam

licença para queixar-se.

Sempre vêem, e sempre falam,

até que Deus lhes depare,

quem lhes faça de justiça

esta sátira à cidade,

Tão queimada, e destruída

te vejas, torpe cidade,

como Sodoma, e Gomorra

duas cidades infames.

Que eu zombo dos teus vizinhos,

sejam pequenos, ou grandes

gozos, que por natureza

nunca mordem, sempre latem.

Que eu espero entre Paulistas

na divina Majestade,

Que a ti São Marçal te queime,

E São Pedro assim me guarde.

 

JULGA PRUDENTE E DISCRETAMENTE AOS MESMOS POR CULPADOS EM

UMA GERAL FOME QUE HOUVE NESTA CIDADE PELO DESGOVERNO

DA REPÚBLICA, COMO ESTRANHOS NELA.

Toda a cidade derrota

esta fome universal,

uns dão a culpa total

à Câmara, outros à frota:

a frota tudo abarrota

dentro nos escotilhões

a carne, o peixe, os feijões,

e se a Câmara olha, e ri,

porque anda farta até aqui,

é cousa, que me não toca;

Ponto em boca.260

Se dizem, que o Marinheiro

nos precede a toda a Lei,

porque é serviço d'EI-Rei,

concedo, que está primeiro:

mas tenho por mais inteiro

o conselho, que reparte

com igual mão, igual arte

por todos, jantar, e ceia:

mas frota com tripa cheia,

e povo com pança oca!

Ponto em boca.

A fome me tem já mudo,

que é muda a boca esfaimada;

mas se a frota não traz nada,

por que razão leva tudo?

que o Povo por ser sisudo

largue o ouro, e largue a prata

a uma frota patarata,

que entrando co’a vela cheia,

o lastro que traz de areia,

por lastro de açúcar troca!

Ponto em boca.

Se quando vem para cá,

nenhum frete vem ganhar,

quando para lá tornar,

o mesmo não ganhará:

quem o açúcar lhe dá,

perde a caixa, e paga o frete,

porque o ano não promete

mais negócio, que perder

o frete, por se dever,

a caixa, porque se choca:

Ponto em boca.

Eles tanto em seu abrigo,

e o povo todo faminto,

ele chora, e eu não minto,

se chorando vo-lo digo:

tem-me cortado o embigo

este nosso General,

por isso de tanto mal

lhe não ponho alguma culpa;

mas se merece desculpa

o respeito, a que provoca,

Ponto em boca.

Com justiça pois me torno

à Câmara Nó Senhora,

que pois me trespassa agora,

agora leve o retorno:

praza a Deus, que o caldo morno,

que a mim me fazem cear

da má vaca do jantar

por falta do bom pescado

lhe seja em cristéis lançado;

mas se a saúde lhes toca:

Ponto em boca.

 

NO ANO DE 1686 DIMINUÍRAM AQUELE VALOR, QUE SE HAVIA

ERGUIDO À MOEDA, QUANDO O POETA ESTAVA NA CORTE,

ONDE ENTÃO COM SEU ALTO JUÍZO SENTIU MAL DO ARBITRISTA,

QUE ASSIM ACONSELHARA A EL REI, QUE FOI O PROVEDOR DA

MOEDA CHAMADO NICOLAU DE TAL, À QUEM FEZ AQUELA CÉLEBRE OBRA

INTITULADA "MARINÍCULAS" O QUE CLARAMENTE SE DEIXA VER NESTES VERSOS:

"Sendo pois o alterar da moeda

o asopro, o arbítrio, o ponto, o ardil,

de justiça a meu ver se lhe devem

as honras, que teve Ferraz, e Soliz"

 

AGORA COM A EXPERIÊNCIA DOS MALES, QUE PADECE A REPÚBLICA

NESTAS ALTERAÇÕES, SE JACTA DE O HAVER ESTRANHADO

ENTÃO: JULGANDO POR CAUSA TOTAL OS AMBICIOSOS

ESTRANGEIROS INIMIGOS DOS BENS ALHEIOS.

Tratam de diminuir

o dinheiro a meu pesar,

que para a cousa baixar

o melhor meio é subir:

quem via tão alto ir,

como eu vi ir a moeda,

lhe prognosticou a queda,

como eu lha prognostiquei:

dizem, que o mandou El-Rei,

quer creiais, quer não creiais.

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.

Manda-o a força do fado,

por ser justo, que o dinheiro

baixe a seu valor primeiro

depois de tão levantado:

o que se vir sublimado

por ter mais quatro mangavas,

hão de pesá-lo as oitavas,

e por leve hão de enjeitá-lo:

e se com todo este abalo

por descontentes vos dais,

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.

As pessoas, que quem rezo,

hão de ser como o ferrolho,

val pouco tomado a olho,

val menos tomado a peso:

os que prezo, e que desprezo

todos serão de uma casta,

e só moços de canastra

entre veras, e entre chanças

com pesos, e com balanças

vão a justiçar os mais:

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.

Porque como em Maranhão

mandam novelos à praça,

assim vós por esta traça

mandareis o algodão:

haverá permutação,

como ao princípio das gentes,

e todos os contraentes

trocarão droga por droga,

pão por sal, lenha por soga,

vinhas por canaviais:

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.

Virá a frota para o ano,

e que leve vós agouro

senão tudo a peso de ouro,

a peso tudo de engano:

não é o valor desumano,

que a cada oitava se dá

da prata, que corre cá,

pelo meu fraco conceito,

mas ao cobrar fiel direito,

e oblíquo, quando pagais;

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.

Bem merece esta cidade

esta aflição, que a assalta,

pois os dinheiros exalta

sem real autoridade:

eu se hei de falar verdade,

o agressor do delito

devia ser só o aflito:

mas estão tão descansados,

talvez que sejam chamados

nesta frota, que esperais;

Não vos espanteis, que inda lá vem mais.