Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra Poética de Gregório de Matos


Edição de Referência:

Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,

Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.

PESSOAS BENEMÉRITAS

A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA.

A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.

A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS.

NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.

CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.

SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.

GLOSA

AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.

CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.

AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.

ESTRIBILHO

A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER MULUM ABNER."

EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV.

AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES

AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR
 
 

PESSOAS BENEMÉRITAS

 

...pessoas beneméritas...

Manuel Pereira Rabelo, licenciado

Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei

A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,

QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO

AO RENASCIDO MONARCA.

Este, Senhor, que fiz leve instrumento

Para pesar o sol a qualquer hora,

Dedico a aquele Sol, a cuja aurora

Já destinam dous mundos rendimento.

Desta minha humildade, e desalento,

Que a sua quarta esfera não ignora,

subindo a oitavo céu, pertende agora

A estrela achar no vosso firmamento.

Eu, que outro sol no seu zenith pondero

Aos do Nascido Soberanos Raios,

Pesando-me eu a mim me desespero.

Mas vós, Águia Real, esses ensaios

Entre os vossos levai, pois considero,

Que nunca em tanta sombra houve desmaios.

A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA,

IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.

Hoje pó, ontem Deidade soberana,

Ontem sol, hoje sombra, ó Senadores,

Lises imperiais enfim são flores,

Quem outra cousa crê, muito se engana.

Nas cinzas, que essa urna guarda ufana,

Vejo, que os aromáticos licores

são de seu mortal ser descobridores,

Porque, o que a arte esconde, o juízo alhana.

A Real Capitânia submergida!

Olhos à gávea, ó tu Naveta ousada,

Que ao mar te engolfas de ambição vencida:

Pois em terra a Real está encalhada,

Alerta, altos Baixéis, porque anda a vida

Da mortal tempestade ameaçada.

A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA,

JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS.

Nasces, Infanta bela, e com ventura

Tão desigual a toda a gentileza,

Que vencendo o poder da natureza,

Venturosa fizeste à formosura.

Com tal estrela sobe a tal altura

A formosura posta em tanta alteza,

Que por nasceres pasmo da beleza,

Da pensão de formosa estás segura.

Nasceste Filha enfim da bela Aurora

Com graça singular, ventura clara,

Com estrela nasceste, ó feliz hora!

Nascer bela, e feliz é cousa rara:

Mas em ti Portugal venera agora

Uma estrela na dita, um sol na cara.

NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS,

QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.

Bem disse eu logo, que éreis venturosa

Quando nascestes, com nascer tão bela,

E me lembra dizer já com cautela,

Cousa rara é ser bela, e ser ditosa.

O nascer com estrela, e ser formosa

Raro prodígio é, que mais se anela;

Mas ser na terra flor, nos céus estrela,

Só em vós foi ventura prodigiosa.

Fostes, e sois estrela enfim do Norte,

Do céu girando o Norte mui segura,

Girando sempre a tão felice corte.

Hoje lograis mais bela formosura,

Possuindo na glória dita, e sorte,

Que em ser do Céu consiste o ter ventura.

CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS

POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.

Nascestes bela, e fostes entendida

Uniu-se em vós saber, e formosura:

Não se pode lograr tanta ventura,

Em quem com tal estrela foi nascida.

Quem viu co'a formosura a sorte unida,

Que julgasse essa vida por segura?

Muito esperou por vós a sepultura,

Que, em quem é tão feliz, não dura a vida.

Quem dissera no vosso nascimento,

Que em tal estrela haviam tais enganos,

Para ser maior hoje o sentimento!

Porém nestes prodígios soberanos,

Tendo dos Magos vós o entendimento,

Não podiam ser muitos vossos anos.

SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA

SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.

Se a dar-te vida a minha dor bastara,

Filha Isabel, de minha dor morrera,

E porque minha dor tudo excedera,

Gêneros novos de sentir buscara.

Se uma vida se dera, ou se emprestara,

A metade da minha te ofrecera,

Ou toda, porque inveja não tivera

Outra a metade, que órfã me ficara.

E se a minha alma enfim tua agonia

Substituir pudera com a sua,

Tua vida animando a cinza fria:

Inda que a arrojo o mundo o atribua,

Não só a vida, a alma te daria

Por melhorá-la com fazê-la tua.

GLOSA

Filha minha Isabel, alma ditosa,

Que do corpo as prisões desemparaste,

E qual cândida flor, ou fresca rosa

De teus anos a flor em flor cortaste:

De minha dor a mágoa saudosa,

Que por herança d’alma me deixaste,

Deves crer, que até agora não durara,

Se a dar-te vida a minha dor bastara.

Não durara até agora a minha mágoa,

Se fora ela bastante a dar-te vida,

Porque, vivendo tu, dos olhos a água

Se enxugara em dous rostos reprimida:

E sendo o peito humano a própria frágua,

Onde a dor em licores derretida

Corre a desafogar: se não correra,

Filha Isabel, de minha dor morrera.

Morrera, Filha minha, e acabara

De um doce mal, formosa enfermidade:

Todo o poder do mundo me invejara,

Pois falta a seu poder esta verdade:

Com minha morte a vida se trocara,

Da maior, e mais alta majestade

Enjeitara tudo, porque nada era,

E porque a minha dor tudo excedera.

Ficara tão ufano de seguir-te,

Vivo por te chorar, morto por ver-te,

Que se pudera crer, que por senir-te

A ocasião estimara de perder-te:

E se nesta estranheza de sentir-te

Não chegara um aplauso a merecer-te,

De uma a outra estranheza me passara,

Gêneros novos de sentir buscara.

Sangue ondeara a margem deste rio,

A rosa adoecera em suas cores,

Da Aurora carmesirn fora o rocio,

Não recendera o ambar entre as flores:

Fora da natureza um desvario

A ordem natural de seus primores:

Mas nada a minha dor necessitara,

Se uma vida se dera, ou se emprestara.

Se pudera emprestar-te a minha vida,

Se escusara então meu sentimento:

Mas ai! que nem o dá-la por perdida

Remédio pode ser do meu tormento:

E já, que não é cousa permitida

Celebrar um contrato tão violento,

E dar a vida enfim se não tolera,

A metade da minha te ofrecera.

E pois a natureza é tão escassa,

Que na esfera da sua potestade

Não cabe por indulto, nem por graça

Uma vida partir pela metade:

E inda que o vença amor, indústria, ou traça,

Me resta outra maior dificuldade,

De que se hão de invejar, metade dera,

Ou toda, porque inveja não tivera.

Se a metade da vida, que te ofreço,

Inveja há de causar, à com que fico,

E sobre dar-lhe inveja à que despeço,

Que saudades lhe dê me certifico:

Para livrar-me de um, e outro tropeço,

Com que nesta partida me complico,

Sobre a tua metade te largara

A outra metade, que órfã me ficara.

Dera-te enfim a minha vida toda,

Que o mais fora desdouro da firmeza,

Que sempre, quem bem ama, se acomoda

Fazer a vida altar de uma fineza:

Dar tudo nunca a amor desacomoda,

Dera-te a vida, e alma nesta empresa,

Se a minha vida a morte te alivia,

E se a minha alma enfim tua agonia.

Ásia filha maior do mar profundo,

A África do mar soberania,

Europa exemplar luz de todo o mundo

E a América do ouro monarquia,

veriam, com quão ledo, e quão jucundo

Rosto por ti minha alma despedia,

Se o calor da minha alma à vida tua

Substituir pudera com a sua.

O Rouxinol, que canta docemente

À vista da consorte, que o namora,

A Rola triste, que ao esposo ausente

De dia busca, se de noite o chora:

No ar sutil, na fonte transparente,

Vendo o fino de uma alma, que te adora,

Pasmariam de ver, como supria

Tua vida, animando a cinza fria.

A inveja, que do ódio se alimenta,

A detração, que como espada corta,

A calúnia, que a todos ensangüenta,

E a aversão, que os áspides aborta:

Todos a iníquia mão, língua cruenta

Mostrariam pasmada, obtusa, absorta;

Eu só perdera a vida pela tua,

Inda que a arrojo o mundo o atribua.

Pasme de assombro, ou da fineza a terra,

Trema do caso, ou da estranheza o monte,

De invejosas as aves se dêem guerra

De corrido se mude o Horizonte:

Co'as nuvens indignadas choque a serra,

Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte,

Que eu firme nesta minha fantesia

Não só a vida, a alma te daria.

Dá-la-ia não só por imitar-te,

Se cabe em minha dor tão alta sorte,

Senão por despojar-me, e despojar-te

A mim do sentimento, a ti da morte:

Não só daria a alma por mostrar-te,

Que não tenho outro alívio em mal tão forte:

Senão (pois perde tanto em ser tão sua)

Por melhorá-la com fazê-la tua.

AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES

AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.

Um soneto começo em vosso gabo;

Contemos esta regra por primeira,

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:

A sexta vá também desta maneira,

na sétima entro já com grã canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?

Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,

Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,

Se desta agora escapo, nunca mais;

Louvado seja Deus, que o acabei.

CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA

MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU

MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.

Tanta virtude excelente

de animoso, e de alentado,

de valeroso soldado,

e de cortesão valente,

viu o mundo, e soube a gente,

que inda que em santo podia

transformar-se a Senhoria,

o Conde o não conseguiu,

porque de noite caiu,

e o Santo cai no seu dia.

Se o Conde caiu de noite,

como o teremos por Santo,

quando a queda um tanto, ou quanto,

teve do divino açoite:

quis Deus, que o Conde se afoite,

porque visse o bom Soldado,

que o Conde de puro honrado

quis, que o visse a própria terra,

quanto arrojado na guerra,

na paz tão precipitado.

Ícaro da nossa guerra

ares corta o Conde só,

Ícaro caiu no Pó,

e o Conde caiu na terra:

se, porque o rio o enterra,

o nome lhe ficou dado

de Ícaro ter sepultado:

assim porque a terra dura

deu ao Conde sepultura,

ficou a terra um condado.

De cera, e pluma se val

Ícaro para viver,

e o Conde para morrer

valeu-se do natural:

quanto a força artificial

da natureza é sobrada

fica a do Conde adiantada,

porque Ícaro quando bóia

faz tragédia de tramóia,

e o Conde de capa, e espada.

Tinha o Conde de morrer;

todo o mortal nisto pára,

e se ele se não matara,

quem lho havia de fazer?

fez bem o Conde a meu ver,

quando ao jardim se arrojou,

e entre as flores expirou:

vento é a vida em rigor,

e como o Conde era flor,

entre as flores acabou.

Se ignorou alguns sentidos,

porque tanto mal se urdiu,

era valido, e caiu,

que o cair é dos validos:

tão certos são, e sabidos

no monte, no lar, na praça

estes reveses da graça,

que é já dos Palácios lei,

que quem da graça d’EI-Rei

cai, cai da sua desgraça.

AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.

Nesse precipício, Conde,

fostes Ícaro segundo,

bem que a Dédalo no mundo

vossa fama corresponde:

em parte caístes, onde

como Ícaro morrestes,

mas a Dédalo excedestes

nesses labirintos tristes,

em fazer no que caístes,

e em cair, no que fizestes.

Caiu o Conde, e se diz,

que foi por um caso atroz,

porém já corre outra voz,

que a esta se contradiz:

que foram uns frenesis

do juízo descortês:

mas eu digo desta vez

ouvindo do baque o truz,

que o juízo ao Conde induz

ter caído, no que fez.

ESTRIBILHO

Aqui jaz, em que lhe pes,

quem tudo fez com má sorte,

e só na hora da morte

caiu naquilo, que fez.

A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL

DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA

"PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT

DAVID SUPER TUMULUM ABNER."

Quando a morte de Abner David sentia,

Mandou a seus vassalos, que chorassem,

E que em lágrimas todos publicassem

Quanto o Reino lhe deve, e o Rei devia.

Cada qual seu tormento repetia,

Sem querer, que os dos outros o igualassem

E todos procuravam, que mostrassem

As lágrimas dilúvio, a dor porfia.

Pois se a morte de Abner se sente tanto,

Só por ser General valente, e forte,

Que move o Reino, e Rei a tanto pranto:

Lamente Portugal, e sinta a Corte

A morte de Marialva, porque espanto

Foi do mundo, e o pudera ser da Morte.

EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO

AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV.

Aqui jaz o coração

do mais valente Anibal,

que restaurou Portugal

com a espada de co’a razão:

aos pés do Rei quarto João

lhe mandaram dar jazigo,

para que a todo o perigo

os dous unidos por lei

achasse o vassalo ao Rei,

e tivesse o Rei o amigo.

AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES

Aqui jaz o coração

do vassalo mais leal,

a quem deve Portugal

o quarto Rei Dom João:

e assim com justa razão

lhe dão a seus pés jazigo,

porque a todo o perigo

unidos os dous por lei

achasse a lealdade o Rei,

tivesse o vassalo amigo.

AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES.

O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE

DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR.

Em três partes enterrado

está o corpo do Marquês

de Marialva: porque em dez

mil seu nome é venerado:

e foi destino acertado,

que em tanta parte estivesse,

para que o mundo soubesse,

que este valeroso Marte

morto assiste em qualquer parte,

como se ainda vivesse.

  

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