Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra Poética de Gregório de Matos


Edição de Referência:

Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,

Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.

PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE

DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.

DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O PATURI.

DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO COM HUNS AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.

SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM AMIGO JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES THEMUDO, E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO ANDAVA MOLESTO DE SARNAS.

DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA VILLA DE S. FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.

DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA VACCA FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO COM HUM IRMÃO DO VIGARIO.

DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM ALGUNS AMIGOS INDO AOS CAYJÚS.

DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA A ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.

DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA, QUE ALI FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.

DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS DA MESMA CONDIÇÃO.

DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS   NA CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA   DO AMPARO, COMO COSTUMAVÃO ANNUALMENTE.

DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE AS JUIZAS, E MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.

DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.

DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.

AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL VIRGENS COM ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM
O POETA OBSEQUÊA, REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO TAMBEM OBSEQUÊA A ANDRE CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.


 3 — PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE

Descreve o Poeta as festas ...

Manuel Pereira Rabelo, licenciado
 
 

Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi
 

 DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.
 

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.
 

Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.
 

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.

 DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O PATURI.

Ao som de uma guitarrilha,
que tocava um colomim
vi bailar na Água Brusca
as Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi!
 

Não usam de castanhetas,
porque cos dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
 

Atadas pelas virilhas
cuma cinta carmesim,
de ver tão grandes barrigas
lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
 

Assim as saias levantam
para os pés lhes descobrir,
porque sirvam de ponteiros
à discípula aprendiz,
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.

 DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO

COM HUNS AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.

1    Amanheceu finalmente
      o Domingo da jornada
      co'a mais feia madrugada,
      que viu nunca o Oriente:
      bufava o Sul de valente,
      de soberbo o mar roncava,
      ninguém a briga apartava,
      e eu perplexo, mudo, e quedo
      entre valor, e entre medo
      en salgo, y no salgo estava.

 
 

2    Resolvi-me, e levantei-me,
      posto que o quente da cama
      com Gonçalo, e com sua ama
      dizendo estava, comei-me:
      vesti-me, e aderecei-me:
      batem os pais de ganhar,
      mandei-lhes abrir, e entrar,
      estava a rede à parede,
      e em pondo o vulto na rede,
      comecei de caminhar.

 
 

3    Cheguei a São Pedro, e em vão
      busquei os mais companheiros,
      que devendo ir os primeiros,
      não tinham ido até então:
      entrei na imaginação
      de se acaso me enganassem,
      e acaso as bestas faltassem,
      que havia eu de fazer,
      e foi fácil resolver,
      que por bestas lá ficassem.

 
 

 4    Assim o cri, e era assim,
       pois o pouco espaço andado
       veio o Jardim esbofado
       mais rosado, que um jardim:
       não vem mais outro rocim?
       lhe perguntei com desdém:
       ele respondeu, não vem;
       estive aguando os canteiros,
       e não acho os companheiros,
       pois não me cheira isto bem.

 
 

5    Isto dito, assoma o Freitas,
      e eu disse entre duvidoso,
      o Gil é-me belicoso
      mas tem cara de maleitas:
      chegou, e as minhas suspeitas
      veio tanto a confirmar,
      que disse, que o seu tardar
      fora causado, e nascido
      de o rocim lhe haver fugido,
      indo ao Tororó parar.

 
 

 6    Quem deu tão ruim conselho
       (disse eu) a esse catrapó,
       pois quer ir ao Tororó,
       antes que ao Rio Vermelho?
       mas um cavalo tão velho,
       que já por cerrado perde,
       que muito, que se deserde
       do vermelho, e seus primores,
       se deixa todas as cores
       um cavalo pelo verde.

 
 

 7    Que é do Gil? não aparece.
       E o Guedes? fica sem besta.
       Eia pois, vamo-nos desta,
       que o sol trepa, e a calma cresce;
       quem não aparece, esquece;
       vamo-nos sem conclusão;
       com que eu na rede um cação,
       e os dous nas duas cavalas
       fazíarnos duas alas,
       e as alas meio esquadrão.
 

 8     Assim fomos caminhando
        sobre os dous cavalos áscuas
        alegres como uas páscoas,
        ora rindo, ora zombando:
        eu que estava perguntando
        pela viola, ou rabil,
        quando ouvimos bradar Gil,
        que recostado à guitarra
        garganteava a bandarra
        letrilhas de mil em mil.
 

 9    Olá, ô! chegou o Tudesco:
       e já ele entre nós vinha
       posto sobre uma tainha,
       feito Arião ao burlesco:
       riu-se bem, falou-se fresco,
       e eu da viola empossado
       cantava como um quebrado.
       tangia como um crioulo,
       conversava como um tolo,
       e ria como um danado.

 
 

  10    Apertamos logo o trote,
          e em breve fomos chegados,
          onde éramos esperados
          pelo ilustre Dom Mingote:
          ali o nosso sacerdote,
          vendo a nova arquitetura
          da casa da Virgem pura,
          se apeou por venerá-la,
          os mais puseram-se em ala,
          passei eu, e houve mesura.

 
 

11    Tornamos a cavalgar,
        e vendo tão pouco siso,
        tomou o dia tal riso,
        que se pôs a escangalhar:
        parou tudo em chuviscar,
        e os malditos cavaleiros
        picaram tanto os sendeiros
        que eu mesmo não entendia,
        que sendo cavalaria,
        fugissem como piqueiros.

 
 

12    Eu fiquei com minha mágoa
        solitário, e abrasado,
        dando-me pouco cuidado,
        que a rede nadasse em água:
        por seu ofício se enxágua
        toda a rede nágua clara,
        e se esta se não molhara,
        com abalo, ou sem abalo
        nem eu vira o São Gonçalo,
        nem também jantar pescara.

 
 

13    Orvalhado um tanto, ou quanto
        o santo me agasalhou,
        e logo a chuva passou,
        que foi milagre do santo:
        tratava-se no entretanto
        da missa, e estando esperando,
        ali vieram chegando
        duas belezas ranhosas,
        sempre à vista bexigosas,
        e feias de quando em quando.

 
 

14    Para a missa do Santinho
        mui pouco vinho se achou,
        e ele fez, que inda sobrou,
        porque é milagroso em vinho:
        tomamos dali o caminho
        para o porto das jangadas
        ver as casas afamadas
        do nosso Domingos Borges,
        que sem levarmos alforjes
        nos pôs as panças inchadas.

 
 

15    O Gil, que é tão folgazão
        se foi ao pasto folgar,
        e se outra cousa há de achar,
        achou um camaleão:
        lançou-lhe intrépido a mão,
        e com pulsos tão violentos
        cortou ao bruto os alentos,
        que depondo o bruto a ira
        disse, que depois o vira,
        pelo Gil bebia os ventos.

16    Deu-nos gosto, e prazer arto
        um caçador tão gentil,
        porque vimos, que era o Gil
        mais lagarto, que o lagarto:
        e assim como estava farto
        de vento o camaleão,
        Gil assim de presunção
        tão inchado estava, e duro,
        que foi força dar-lhe um furo
        para ter evacuação.

 
 

17    Sopas de leite almoçamos,
        e logo o Guedes chegou,
        que nem pão, nem leite achou,
        e achou, que o apregoamos:
        mas todos depois jantamos
        uma olha imperial,
        e houve repolho fatal
        ensopado, e não de azeite
        com pratos de arroz de leite,
        e vontade garrafal.

 
 

18    Já levantados da mesa
        se quis cantar, senão quando
        a pança me estava impando
        a goela entupida, e presa:
        eu tenho esta natureza,
        que depois de manducar
        não me é possível piar:
        será, porque certarnente
        pança farta, e pé dormente,
        como é adágio vulgar.

 
 

19    Sesteamos no areal
        onde o mar por mazumbaia
        refrescando estava a praia
        com borrifos de cristal:
        a onda piramidal,
        que nos ares se desata,
        descaindo em grãos de nata
        pedia por bom conselho,
        que em vez de Rio Vermelho
        lhe chamem Rio da Prata.

 
 

20    O Sol vinha já descendo
        por graus, ou degraus do Céu,
        e a todos nos pareceu
        o irmo-nos acolhendo:
        forarn-se os rocins prendendo,
        e selados, e enfreados,
        allons dissemos a brados
        já postos nos cavalinhos,
        e alvoroçando os caminhos
        chegando, fomos chegados.

 SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM

AMIGO JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES

THEMUDO, E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO

ANDAVA MOLESTO DE SARNAS.

1    Fez-se a segunda jornada
      da comédia, ou comedia,
      que inda nos deu melhor dia,
      do que a jornada passada:
      vimos a mesma selada,
      e de vinho a mesma cópia,
      de ovos maior cornucópia
      que a de Almatéia florida,
      e sendo a mesma comida,
      contudo não era a própria.

 
 

2    Já Pedro esperava adrede
      da culatra tão sarnento,
      que embalançando-se ao vento
      era um cação em rede:
      versos a matéria pede,
      me disse a sua lazéria,
      e se os faço com miséria,
      não se espante, quem os lê,
      de que tanta sarna dê
      (se é podre) tanta matéria.

 
 

3    Cantou-se galhardamente
      tais solos, que eu disse, ô
      que canta o pássaro só,
      e os mais gritam na semente:
      tocou-se um som excelente,
      que Arromba lhe vi chamar,
      saiu Temudo a bailar,
      e Pedro, que é folgazão
      bailou com pé, e com mão,
      e o cu sempre num lugar.

4    Pasmei eu da habilidade
      tão nova, e tão elegante,
      porque o cu sempre é dançante
      nos bailes desta cidade:
      mas em tal calamidade
      tinha Pedro o cu sarnudo,
      que dando de olho, ao Temudo
      disse pelo socarrão,
      assim tivera o cu são,
      como tenho o cu sisudo.

 
 

5    Pôs-se a mesa, e escabelos,
      foram seguindo-se os pratos,
      que eram tanto à vista gratos,
      como ao gasnate eram belos:
      Pedro se pôs a lambê-los,
      e dando-se a Berzabu
      de não beber com Jelu
      o licor, que o entorpeça,
      porque o que dá na cabeça,
      temeu, lhe desse no cu.

 
 

6    Não quis o cu inflamar,
      por isso bebeu só água,
      do que nós com grande mágoa
      nos pusemos a chorar:
      este fim teve um folgar
      de tanto gosto, e alinho,
      de que eu colho, e esquadrinho
      a exemplo da vida breve,
      que quem rindo o vinho bebe,
      chorando desbebe o vinho.

 DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA

VILIA DE S. FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.

1    Amanheceu quarta-feira
      com face serena, airosa
      o famoso André Barbosa
      honra da nossa fileira;
      por uma, e outra ladeira
      desde a marinha até a praça
      nos bateu com tanta graça,
      que com razões admirandas
      nos tirou dentre as holandas
      para levar-nos à caça.

 
 

2    O lindo Afonso Barbosa,
      que dos nobres Francas é,
      por Filho do dito André
      rama ilustre, e generosa:
      já da campanha frondosa
      os matos mais escondidos
      alvoroçava a latidos,
      quando nós de mal armados
      à vista dele assentados
      nos vimos todos corridos.

 
 

3    Rasgou um porco da serra,
      e foi tal a confusão,
      que em sua comparação
      menino de mama é a guerra:
      depois de correr a terra,
      e de ter os cães cansados
      com passos desalentados
      à nossa estância vieram,
      onde casos sucederam
      jamais vistos, nem contados.

 
 

4    Estava eu de uma grimpa
      vendo a caça por extenso,
      não a fez limpa Lourenço,
      e só a porca a fez limpa:
      porque como tudo alimpa
      de cães, e toda a mais gente,
      Lourenço intrepidamente
      se pôs, e ao primeiro emborco
      mão por mão aos pés do porco
      veio a cair sujamente.

 
 

5    Tanto que a fera investiu,
      tentado de valentão
      armou-se-lhe a tentação,
      e na tentação caiu:
      a espada também se viu
      cair na estrada, ou na rua,
      e foi sentença comua,
      que nesta tragédia rara
      a espada se envergonhara
      de ver-se entre os homens nua.
 

6    Lourenço ficou mamado,
      e inda não tem decidido
      se está pior por ferido
      da porca, se por beijado:
      má porca te beije — é fado
      muito mau de se passar,
      e quem tal lhe foi rogar,
      foi com traça tão sutil,
      que a porca entre Adônis mil
      só Lourenço quis beijar.

 
 

7    Lourenço, na terra jaz,
      e conhecendo o perigo
      deu à porca mão de amigo,
      com o que se punha em paz:
      a porca, que é contumaz,
      e estava enfadada dele,
      nenhuma paz quis com ele,
      mas botando-lhe uma ronca
      por milagre o não destronca,
      e inda assim chegou-lhe à pele.

 
 

8    Ia Inácio na quatrilha,
      e tão de Atônis blasona,
      que diz, que a porca fanchona
      o investiu pela barguilha:
      virou-lhe de sorte a quilha,
      que cuidei, que o naufragava:
      porém tantos gritos dava,
      que infeliz piloto em charco
      a vara botava o barco,
      quando o porco a lanceava.

9    Inácio nestes baldões
      teve tanto medo, e tal,
      que aos narizes deu sinal
      de mau cheiro dos calções:
      trouxe na meia uns pontões
      tão grandes, e em tal maneira,
      que à guerra hão de ir por bandeira,
      onde por armas lhe dão
      em escudo lamarão
      uma porca costureira.

 
 

10    Miguel de Oliveira ia
        com dianteira alentada,
        de porcos era a caçada,
        e o que fez, foi porcaria:
        quando o bruto o investia,
        ele com pé diligente
        se afastava incontinenti,
        com que o julgas desta vez
        por mui ligeiro de pés,
        e de mãos por mui prudente.

 
 

11    Pissarro sobre um penedo
        vendo a batalha bizarra
        era Pissarro em piçarra,
        que val medo sobre medo:
        nunca vi homem tão quedo
        em batalha tão campal;
        porém como é figadal
        amigo, hei de desculpá-lo,
        com que nunca fez abalo
        to seu posto um General.

 
 

12    Frei Manuel me espantou,
        que o demo o ia tentando,
        mas vi, que a espada tomando
        logo se desatentou:
        incontinenti a largou,
        porque soube ponderar,
        que ficava irregular
        matando o animal na tola,
        de que só o Mestre-Escola
        o podia dispensar.
 

13    O Vigário se houve aqui
        cuma tramóia aparente,
        pois fingiu ter dor de dente,
        temendo os do Javali:
        porém folga, zomba, e ri
        ouvindo o sucesso raro,
        e dando-lhe um quarto em claro
        os amigos confidentes,
        à fé, que teve ele dentes
        para comer do Javaro.
 

14    Cosme de Moura esta vez
        botou as chinelas fora,
        como se ver a Deus fora
        sobre a sarça de Moisés:
        tudo viu, e nada fez,
        tudo conta, e escarnece,
        com que mais o prazer cresce,
        quando o remedo interpreta
        Lourenço, a quem fez Poeta
        um amor, que o endoudece.

 
 

15    Silvestre neste dia
        ficou metido num nicho,
        porque como a porca é bicho,
        cuidou, que sapo seria:
        mas agora quando ouvia
        o desar dos derrubados,
        mostrava os bofes lavados
        de puras risadas morto,
        porque sempre vi, que um torto
        gosta de ver corcovados.

 
 

16    Bento, que tudo derriba,
        qual valentão sem receio,
        pondo agora o mar em meio,
        fugiu para a Cajaíba:
        não quis arriscar a giba
        nos afilados colmilhos
        de Javardos tão novilhos,
        e se o deixa de fazer,
        por ter filhos, e mulher,
        que mau é dar caça aos filhos?

 
 

17    Eu, e o Morais as corridas
        por outra via tomamos,
        e quando ao porco chegamos,
        foi ao atar das feridas:
        co as mentiras referidas
        de uma, e outra arma donzela
        se nos deu a taramela;
        nós calando, só dissemos,
        se em taverna não bebemos,
        ao menos folgamos nela.

 DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA

VACCA FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO

COM HUM IRMÃO DO VIGARIO.

1    Tem Lourenço boa a taca,
       fomos tourear ao pasto,
       e depois de tanto gasto
       o tourinho era uma vaca
       Lourenço na sombra opaca
       de um pé de limões grosseiro,
       eis a vaca pelo cheiro
       deu com ele, e ele então
       por não morrer na prisão
       arrombou o Limoeiro.

 
 

2    Tomou da praia o retorno,
      porque o morrer melhor é
      na reponta da maré
      do que na ponta de um corno:
      eu com notável sojorno
      numa capoeira estava,
      vendo, em que o caso parava,
      e a vaca com seu focinho
      me tratou como a ratinho;
      pois qual gato me miava.

 
 

3    Temi logo a malquerença
      da vaca tão marralheira,
      e o medo me deu em reira,
      que é melhor do que em corrença:
      rompi pela mata densa,
      e dei com meu envoltório
      de um vale no território,
      tomando por meu sossego,
      não las de Villa Diego,
      mas as de Vila Gregório.

 
 

4    Subi num monte comprido,
      que do vale é Polifemo,
      que quando uma vaca temo,
      subo mais do que um valido:
      vim à casa espavorido,
      achei Lourenço pasmado,
      mudo, e desassisado,
      e eu disse: se escapo, vaya,
      que quem fugiu pela praia,
      força é que esteja areado.

 
 

 5    Deu-se-nos grande matraca,
       e com ser dia de peixe,
       sem que a consciência se queixe,
       todos gostamos da vaca:
       o Padre aguçou a faca,
       e afeiçoou um bordão,
       e tais ralhos disse então,
       que me convidou enfim
       para diante de mim
       dar na vaca um bofetão.

 6    Mas eu não tornei ao mato,
       e ao Padre, que me chamava,
       respondi, que não gostava
       de vaca, senão no prato:
       e terei por insensato,
       a quem com pau, ou com faca,
       brigar com rês tão velhaca
       a quem razão não convence,
       nem terá prêmio, quem vence
       um touro, se o touro é vaca.

 
 

 7    Custódio, que é prudente,
       pacífico, e sossegado,
       topou na costa co gado,
       e entre ele a vaca nocente:
       e em se pondo frente a frente
       a vaquinha, que o aguarda,
       e em dar carreiras não tarda,
       disparou como uma seta,
       com que lhe deu a vaqueta
       mais susto, que uma espingarda.

 
 
 

8    Tomou o monte de um pulo,
      e deu consigo no vale,
      sem dar jeito, a que o iguale
      a ligeireza de um mulo:
      mas o meu Mestiço fulo
      o emparelhou no correr
      donde veio a suceder,
      que Custódio um pé retroce,
      sendo pé, que se não troce,
      quando o dono o há mister.

 
 

9    A vaca é terror da aldeia,
      pois faz armada de sanha
      praça de armas a montanha,
      e a praça veiga de areia:
      todo o mundo se receia
      de inimiga tão comua,
      porque armada a meia-lua
      parece pelo cruel
      talvez Fatimá de Argel,
      talvez de Salé Gazua.

 
 

10    Não vi vaca tão ousada
        de mais brio, e fantesia,
        pois traz toda a freguesia
        corrida, e envergonhada:
        murmura a gente pasmada,
        que uma vaca parideira
        nos pusesse em tal fraqueira,
        e eu tal medo lhe concebo,
        que, quando o leite lhe bebo,
        me dá logo em caganeira.

 
 

11    Senhor Estêvão, que é dono
        da rês, que o branco divisa,
        já que lhe deu a camisa,
        faça-a mansa como um sono:
        e se não em alto tono,
        quando a vaca se remangue,
        tirei morto ao pé de um mangue,
        que se trata de a manter
        para o leite lhe beber,
        isso é beber-nos o sangue.
 

12    O Senhor Domingos Borges,
        que é sujeito de feição,
        se resistir seu Irmão,
        responda-lhe logo: alforjes:
        e tu, vaca, não me forjes
        outra traição mais precisa,
        a passada passe em risa,
        mas se vens noutra ocasião
        a furar-me o casacão,
        hei de rasgar-te a camisa.

 DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM

ALGUNS AMIGOS INDO AOS CAYJÚS.

Valha o diabo os cajus,
que a todos tem degradado,
uns vão caminho das ilhas,
outros caminho dos campos.
Assim me coube por sorte
ir um dia degradado
para a de Jorge de Sá,
que é ilha dos mEus pecados.
Saímos com vento em popa,
mas no mais triste pangaio,
que nasceu de embarcações,
de que foi Eva a Nau Argos.
Desembarcamos em terra,
e querendo registar-nos
com nossas cartas de guia,
que nos deu o saibam quantos:
Achamos deserta a ilha
sem câmara, nem senado,
que os cajus são restringentes,
não houve câmara este ano.
Tornamo-nos a embarcar
no mesmo triste pangaio
em demanda de outra ilha,
em que o degredo compramos.
Não pudemos tomar terra
porque era o vento contrário,
assoprava pelo olho,
e era o tal olho o do rabo.
Porque vento tão maldito,
e tão despropositado
só por tal olho saíra,
para nos ir espeidando.
Tomamos porto na pátria
depois de tantos trabalhos,
fomes, que em terra curtimos,
sustos, que no mar tragamos.
Fomos mui bem recebidos,
porque o passado passado,
e sobre os cargos da culpa
nos deram logo outros cargos.
Todos saímos com vara,
como meirinhos do campo
sobre os pobres dos cajus
prendendo, e executando.
Indo a eles uma tarde,
prendemos quase um balaio,
outros deixamos pendentes,
que é o mesmo, que enforcados.
Os maduros se prenderam,
que era a ordem, que levamos,
mas os verdes se enforcaram,
por serem cajus velhacos.
O Meirinho-mor do Reino,
que é Custódio Nunes Daltro,
não larga a vara, e os cajus
andam como homiziados.
Tem uns alcaides pequenos,
que andam correndo esse campo,
e vão ligeiros de pé
por vir pesados de papo.
Este castigo merece
Cururupeba afamado,
porque os engenhos não moem,
e o rio é, quem paga o pato.
Em se acabando os cajus,
as varas vão co diabo,
salvo formos meirinhar
aos airus por esses campos.

  DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA

A ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.

Era a Dominga primeita
desta quaresma presente,
já eu estava na praia,
seriam seis para as sete.
Estava o dia formoso
por ser hora, em que se veste
a esfera de azul, e ouro
com seus renglaves de neve.
A aurora teve bom parto,
pois botou em tempo breve
um menino como um sol
para alegria das gentes.
Gritei eu: ah Sor Gregório,
ele desperto gritou,
aqui estou, e Sor Silvestre.
Só falta o Pissarro moço:
já foi chamá-lo o moleque,
e em se juntando conosco
estamos prestes, e lestes.
Toda a noite não dorrni
com pensamento no beque,
que há de levar-nos à ilha,
onde façamos um frete.
Não tem, que me despertar,
que eu escuso, me despertem,
porque para esta viagem
estive de acordo sempre.
Os três à praia chegaram,
e eu no bergantim co'a gente
mandei embarcar a todos
um por um, ele por ele.
Botamos a Nau no mar
um bergantim excelente
nos nossos mares nascido
obra do estrangeiro mestre.
O alforje lá me esquecia,
disse eu, e a vocês lhes esquece:
mandei logo um negro à casa,
que fosse num pé, e viesse:
Veio logo carregado
o negro com uma serpe
de bananas, e farinha,
e al não disse o tal negrete.
Fomos, e dobrando o mangue
encontrarnos um banquete,
em que vem Miguel Ferreira
cercado de muita gente.
Allons, allons, lhe dissemos,
e ele nos disse: salvete,
trespassamos o saveiro,
que ia então vendendo azeite.
Fomos à costa correndo,
e ajudados da corrente
de Chico o porto tomamos,
que estava manso, e alegre.
Tocou-se logo a trombeta,
que um búzio era potente,
um sinal de haver chegado
a capitânia do Ostende.
Deu-nos uns poucos de apupos,
e vendo, que Chico desce,
embarcou-se, e socorreu-nos
com China, e melado quente.
Fomos seguindo a viagem
tão folgazões, tão alegres,
que até as duas guitarras
iam folgando de ver-se.
Assim chegamos à Ilha,
e sobre areias de neve
dezoito chancas saltavarn,
com que a Ilha se estremece.
Perguntei por Esperança,
e soube, que estava ausente.
Chico, que entonces servia
de guia dos nossos fretes.
Quis-me eu então repelar,
tendo pouco, que repele,
disse mal da minha vida,
de mim mesmo maldizente.
Corremos a Ilha toda,
por sinal, que o bom Silvestre
fez um letreiro na areia,
cuja letra isto refere.
"O Senhor da Ilha é um Asno"
e foi disto tão contente,
como se no tal letreiro
uma asneira não fizesse.
Nós lhe estranhamos a asneira,
e ele arreganhando os dentes,
a celebrou como sua,
por não ter, quem a celebre.
Achamos uma Mulata,
que estava ali num casebre,
que eu não fretei, por ser Nau
já carregada por prenhe.
Tornamo-nos a embarcar
algum tanto descontentes,
porque em toda a Ilha achamos
dois maracujás somente.

 DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA,

QUE ALI FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.

1    Veio a Páscoa do Natal,
      primeira, e segunda oitava,
      quando Araújo assentava,
      uma festa garrafal:
      mas a Cajaíba é tal,
      este monte tão mesquinho,
      que para um festim de alinho
      veio Araújo famoso,
      Paulinho com João Cardoso,
      Carvalho, e Falcão Marinho.

 
 

  2    Só cinco em cinco rocins
        foi visto, que em meu sentido
        para o pasto andar corrido
        poucos bastam, se são ruins:
        mas não faltaram malsins,
        entre os quais foi mui notado
        este número apoucado:
        e eu tive os homens por loucos,
        pois bons são cavalos poucos
        para o pasto andar folgado.

 
 

3    O Araújo coitado,
      para que nada lhe sobre,
      andou sem freio, que ao pobre
      sempre lhe falta o bocado:
      mas por isso aventejado
      andou à outra parelha,
      mais que aos mais arnês brilhante,
      que Araújo é rocinante,
      que val muito pela ovelha.

 
 

4    João Cardoso à mourisca
      pela encolhida perneta,
      tanto mais lustra a gineta,
      quanto mais nela se arrisca:
      e bem que de todos trisca,
      porque com juízo, e brio
      nunca paga de vazio
      os altos, na refestela
      pagou de vazio a sela
      três vezes, ou quatro a fio.

 
 

5    Paulinho não há alcançá-lo:
      era da festa o enigma,
      e alguém a dizer se anima,
      que indo em mula, ia a cavalo:
      deu-lhe tão pequeno abalo
      o festim burlesco, e rude,
      que nunca obrigá-lo pude
      a fazer largas entradas,
      porque em verdes laranjadas
      era o Juiz da saúde.

 
 

6    O meu cavaleiro foi
      (por me dar maior regalo)
      Carvalho, que ia a cavalo,
      e dava passos de boi:
      mui prenhado "yo no voy,
      estos me lleban" dizia;
      tão pouco, e tão mal corria,
      que nem ele se correu,
      nem o pasto floresceu,
      mas sem florescer se ria.

 
 

7    O Marinho andou galhardo,
      tal, que teve desta vez
      o pasto por Aranguês,
      que quer sempre o dia pardo:
      como é Marinho bastardo,
      desprezou seu coração,
      gineta, e bastarda então:
      mas em osso o coitadinho
      nadava como um Marinho.
      voava como um Falcão.

 
 

 8     Nas laranjadas folgou-se
        muito bem no meu sentir,
        ia Araújo a cair,
        e por não cair, deitou-se:
        caiu, porém levantou-se
        bizarro, e mui animoso,
        para que o povo invejoso
        veja em seu mesmo rencor,
        que se caiu pecador
        se levantou virtuoso.

 
 

9     João Cardoso não quis
       crer, que fora a queda leve,
       e dando uma volta breve,
       a foi medir co nariz:
       achou, que, o que se lhe diz,
       era mentira esbrugada,
       porque de uma laranjada
       quem vai desde a sela ao chão,
       achou pela medição,
       que era a queda mui pesada.

 
 

10    Bem do Marinho se riu,
        quando fez co'a terra escambos,
        porém sendo a terra d'ambos,
        o Marinho não caiu:
        o rocinante, que viu
        com as costelas quebradas
        Araújo às laranjadas,
        rindo não se pôde ter,
        e assim em vez de correr
        se espojou em carcajadas.

 
 

11    Inácio não me lembrou,
        que branco do sobressalto
        antes que entrasse no assalto
        coitadamente arribou:
        no princípio começou
        num cavalo inteiriçado,
        e vendo-se mal parado,
        não quis mais parar ali,
        e dando um homem por si,
        partindo o deixou soldado.

 
 

12    Depois houve laranjadas
        com todos os circunstantes,
        e o que eram laranjas antes,
        vi em risco de punhadas:
        com várias calamocadas
        saiu mais de algum mirão,
        e foi tal a confusão,
        que sendo o Falcão previsto,
        e corredor mui bem visto,
        hoje está cego o Falcão!

 DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS

PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS

DA MESMA CONDIÇÃO.

1    As comédias se acabaram
      a meu pesar, e desgosto,
      pois para ter, e dar gosto
      tomara eu, que começaram:
      bem os mirões se admiraram,
      e por caminhos umbrosos
      iam dizendo saudosos,
      e cheios de admiração,
      bem haja esta geração
      de Pissarros, e Cardosos.
 

 2    Não me esquecera em meus dias
       a boa arte, e disciplina,
       com que a Madre Celestina
       fazia as feitiçarias:
       nas suas astrologias
       usava de tais cautelas,
       que diziam as Donzelas,
       o Gregório em todo o caso
       por evitar um fracasso
       domina sobre as estrelas.
 

3    Dizem, formosas, e feias
      mulheres de todo o estado,
      que o Carvalho no tablado
      chove-lhe a graça às mãos cheias:
      ele é velhaco de meias,
      ora santo, ora velhaco,
      e eu, que o vi vestido em saco,
      disse logo espavorido.
      basta, que foi Deus servido
      fazer um santo de um caco?

 
 

 4    Não me esqueça o Azevedo,
       porque posto no tablado
       rebertolou de atinado,
       porque ora é manso, ora azedo:
       a nenhum outro concedo
       ser homem tão peregrino,
       tão geral, e tão divino,
       pois a dizer me provoca,
       que traz por língua na boca
       as folhas do calepino.

 
 

 5     Ninguém o pode entender,
        e eu muito menos o entendo,
        e só ele compreendo,
        que o não posso comprender:
        o que tem, que agradecer,
        é o prazer, e o bom ar,
        com que se vem ofertar,
        porque em todas as jornadas
        quer, que lhe dêem as pancadas,
        porém não as quer levar.

 
 

6    Ele é um lindo rapaz,
      e o primeiro filho de Eva,
      que dá gosto, quando leva
      muito mais que quando traz:
      mas o Carvalho sagaz,
      que lhe sabe das manqueiras,
      lhe sacode as costaneiras,
      porque quando desentoa,
      dá-lhe uma má, e outra boa
      com talos de bananeiras.

 
 

7    Inácio é grande estudante,
      e nos mostrou tão bom fio,
      que do seu jeito confio,
      que há de ser grande farsante:
      para moço principiante
      nos deu bastante regalo,
      e nas comédias, que falo,
      como nas mais, que hão de haver,
      a muitos há de exceder
      sim por vida de Gonçalo.
 
 

 8    Veio a festa a se acabar,
       e eu, que lhe vim assistir,
       estou cansado de rir,
       mais do que de trabalhar:
       agora entendo passar
       à Catala, que é buçaco,
       porque em lugar tão opaco
       a todos dê, que entender,
       depois das comédias ver,
       ir vê-las por um buraco.

   DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS

  NA CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA

  DO AMPARO, COMO COSTUMAVÃO ANNUALMENTE.

1    Grande comédia fizeram
      os devotos do Amparo,
      em cujo lustre reparo,
      que as mais festas excederam:
      tão eficazes moveram
      ao povo, que os escutou,
      que eu sei, quem ali firmou.
      que se ainda agora vivera
      Viriato, não pudera
      imitar, quem o imitou.

 
 

 2    O Sousa a puro valor,
       e a puro esforço arrojado
       não pode ser imitado,
       de quem foi imitador:
       e bem que a arte maior
       não cnega, por ser ficção,
       a natural perfeição,
       tanto a arte aqui o fazia,
       que o natural não podia
       igualar a imitação.
 

 3    As Damas com galhardia
       altivas, e soberanas
       muito excedem as Romanas
       na pompa, e na bizarria:
       cada qual me parecia
       tão Dama, e tão gentil Dama,
       que quando Lucinda em chama
       de amor fingida se viu,
       eu sei, que se não fingiu,
       quem por ela então se inflama.

 
 

 4    Mais airosa do que linda
       Laura no toucado, e pêlo
       não foi pouco parecê-lo,
       sendo à vista de Lucinda:
       tanto me namora ainda
       a idéia do seu ornato,
       que em fé de tanto aparato
       meu requebro lhe dissera,
       e ciúmes lhe tivera
       de afeição de Viriato.

 
 

5    O Inácio a puro sal
      tanta graça em si acrisola,
      que podem pedir-lhe esmola
      marinhas de Portugal:
      nele a graça é natural,
      naturalíssima a cara,
      e eu de riso arrebentara,
      se me não fora mister
      toda a tarde ali viver
      porque dele me lograra.

6    O nosso Juiz passado,
      que Salema aqui se diz,
      como foi mui bom Juiz,
      também foi mui bem julgado:
      em passos, gasto, e cuidado
      se houve com tanto fervor,
      que merece em bom primor
      não ser só Juiz do Amparo,
      mas por único, e por raro
      ser do Amparo Julgador.

 DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU

O VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE

AS JUIZAS, E MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.

1    No grande dia do Amparo,
      estando as mulatas todas
      entre festas, e entre bodas,
      um caso sucedeu raro:
      e foi, que não sendo avaro
      o jantar de canjirões,
      antes fervendo em cachões,
      os brindes de mão em mão
      depois de tanta razão
      tiveram certas razões.

 
 

2    Macotinha a foliona
      bailou robolando o cu
      duas horas com Jelu
      mulata também bailona:
      senão quando outra putona
      tomou posse do terreiro,
      e porque ao seu pandeiro
      não quis Macota sair,
      outra saiu a renhir,
      cujo nome é Domingueiro.

 
 

 3    Por Macotinha tão rasa
       de putinha, e mais putinha,
       que a pobre Macotinha
       se tornou de puta em brasa:
       alborotando-se a casa
       as mais se foram erguendo,
       mas Jelu, ao que eu entendo,
       é valente pertinaz,
       lhe atirou logo um gilvaz
       de unhas abaixo tremendo.

 
 

 4    A mim com punhos violentos
       (gritou a Puta matrona)
       agora o vereis, Putona,
       zás, e pôs-lhe os mandamentos:
       e com tais atrevimentos
       a Jelu se enfureceu,
       que indo sobre ela lhe deu
       punhadas tão repetidas,
       que ficando ambas vencidas,
       cada qual delas venceu.

 
 

 5    Acudiu um Mulatete
       bastardo da tal Domingas,
       e respingas, não respingas
       deu a Mulata um bofete:
       ela, fervendo o muquete,
       deu c'o Mulato de patas,
       eis aqui vêm as Sapatas,
       porque uma é sua madrinha,
       e todas por certa linha
       da mesma casa mulatas.

 
 

  6    Chegou-se a tais menoscabos
        que segundo agora ouvi,
        havia de haver ali
        uma de todos os diabos:
        mas chegando quatro cabos
        de putaria anciana,
        a Puta mais veterana
        disse então, que não cuidava,
        que tais efeitos causava
        vinhaça tão soberana.

 
 

7    Sossegada a gritaria
      houve mulata repolho,
      que, o que bebeu por um olho,
      pelo outro o desbebia:
      mas se chorava, ou se ria,
      jamais ninguém comprendera,
      se não se vira, e soubera
      pelo vinho despendido,
      que se tinha desbebido,
      quanto vinho se bebera.

 
 

8    Tal cópia de jeribita
      houve naquele folguedo,
      que em nada se tem segredo,
      antes tudo se vomita:
      entre tantas Mariquita
      a Juíza era de ver,
      porque vendo ali verter
      o vinho, que ela comprara,
      de sorte se magoara,
      que esteve para o beber.

 
 

9    Bertola devia estar
      faminta, e desconjuntada,
      pois vendo a pendência armada,
      tratou de se caldear:
      bebeu naquele jantar
      sete pratos não pequenos
      de caldo, e sete não menos
      de carne, e é de reparar
      que a pudera um só matar,
      e escapar de dois setenos.

 
 

10    Maribonda, minha ingrata
        tão pesada ali se viu,
        que desmaiada caiu
        sobre Luzia Sapata:
        viu-se uma, e outra Mulata
        em forma de Sodomia,
        e como na casa havia
        tal grita, e tal contusão
        não se advertiu por então
        o ferrão, que lhe metia.

 
 

11    Teresa a da cutilada
        de sorte ali se portou,
        que da bulha se apartou,
        porque era puta sagrada:
        da pendência retirada
        esteve num canto posta,
        mas com cara de Lagosta
        trocava com muita graça
        o vinho taça por taça,
        a carne posta por posta.

 
 

12    Enfim, que as Pardas corridas
        saíram com seus amantes,
        sendo, que no dia d'antes
        andavam elas saídas:
        e sentindo-se afligidas
        do já passado tinelo,
        votaram com todo anelo
        emenda à Virgem do Amparo,
        que no seu dia preclaro
        nunca mais bodas al cielo.
 

DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS

MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.

1    Tornaram-se a emborrachar
      as Mulatas da contenda,
      elas não tomam emenda,
      pois eu não me hei de emendar:
      o uso de celebrar
      àquela Santa, e a esta,
      com uma, e com outra festa
      não é devoção inteira,
      é papança, é borracheira
      dar de cu, cair de testa.

 
 

 2    Bebeu Pelica, um almude,
       e não faltou, quem notasse,
       que mil saúdes tragasse;
       e ficasse sem saúde:
       caiu como em ataúde,
       sendo mortalha as anáguas,
       e eu entrei num mar de mágoas
       vendo a casaca, que era
       finíssima primavera,
       ficar chamalote d'águas.

 
 

3    Vomitou toda a casaca,
      e as Mulatas desconvinham
      que umas por vômito o tinham
      outras o tinham por caca:
      levou sobre isto matraca
      entre riso, e murmurinho,
      e a carinha com focinho
      lhe armou de grande altivez,
      mas resvelando-lhe os pés
      nadou em mares de vinho.

 
 

 4    Angelinha aquela posta
       manjuba de palafréns,
       jogando fortes vaivéns
       ao vomito estava posta:
       com máscara de lagosta
       ora arrotava, ora impava;
       tomando puxos estava
       até que a hora chegou,
       não pariu, mas vomitou,
       porque tudo então trocava.

 
 

 5    A Filha da Mangalaça
       de cuxambre tão maldito
       indo a parir; o Hermanito
       viu que o parto era vinhaça:
       chorou tão grande desgraça
       a triste da Macotinha,
       vendo, que a sua Madrinha
       ao botar o tal monstrinho
       parira como com vinho,
       porém não como convinha.

 
 

 6    Anastácia a dos corais,
       que fornicando a gandaia
       para botar uma saia
       mete sete oficiais:
       bebeu tanto mais que as mais
       borrachas desta folia
       que cada qual lhe dizia
       que os oficiais chamava
       quando uma saia botava,
       chamasse, quando bebia.

 
 

 7    Brazia, que a meu entender
       por bonita, e por galharda
       excedia a toda a Parda
       em cara, como em beber:
       depois de muito comer
       bebia com tanto afinco,
       que dando às demais um trinco,
       constou, que de seis frasqueiras
       mui cheias, e muito inteiras
       só ela bebera as cinco.

 
 

 8    Helena, o cu de borralho,
       asmática, porém gorda,
       se ensopou como uma torda
       na sorda de vinho, e alho:
       tiveram grande trabalho
       as mais em a levantar,
       sem poder-se averiguar,
       se era odre, ou se penedo,
       e estando neste segredo
       ela o veio a vomitar.

 
 

 9    A Agueda do Michelo,
       que tampouco se recata,
       nem merece ser Sapata,
       que entre todas é chinelo:
       assentada no tinelo
       dava aos sorvos tal carreira,
       que disse uma companheira,
       que a tirassem com presteza,
       por não haver em tal mesa
       azeitona sapateira.

10    Tomou a Garça no ar
        a Sapata incontinenti,
        e indo arreganhar-lhe o dente,
        não teve, que arreganhar:
        porém por se desquitar
        foi-se bailar o cãozinho,
        e como sobre o moinho
        levou tantas embigadas,
        deu em sair às tornadas
        a puro vômito o vinho.

 
 

11    Ninguém com Marta Soares
        quer trocar odre por odre,
        porque de podre, e mais podre
        não há distinção de azares:
        os copos de vinho a pares
        e aos nones a água bebia,
        que Deus para ela não cria
        água de rios, nem fontes,
        e havendo de andar por pontes,
        pelas de vinho andaria.

 
 

12    Vem Luzia sacrifício
        Juíza de refestela
        Agrela, que já não grela,
        por ser puta d'abinitio
        deu um jantar, que era vício
        rodava o Santos licor,
        e a negra serva do amor
        gritava com saia verde,
        aqui-d'El-Rei, que se perde
        a roupa de meu Senhor.
 

13    Assim pois se embebedaram
        a Mestiça, e a Mulata,
        todos tomaram a gata,
        só as Gatas não tomaram:
        bem fizeram, bem andararn
        em não irem à função:
        porque se me caem na mão,
        (como as outras que beberam)
        então viram, e souberam
        que sou para um gato, um cão.

14    A Gaguinha celebrada
        se afastou desta folia,
        dizendo que não queria
        com Marinículas nada:
        entendida, e engraçada
        respondeu, por vida minha,
        por saber que não convinha,
        que a vinhaça moscatel
        graduasse em Bacharel
        quem fora sempre Gaguinha.
 

15    Inácia, chamada Ilhoa
        para cada beiçarrão
        não bastava um canjirão
        com sopas de pão, e broa:
        bebeu vinho de Lisboa,
        bebeu do Porto, e Canárias,
        e vendo, que em copas várias
        outras o bebem do Beja,
        disse picada de inveja,
        ó Virgem das Candelárias!

 
 

16    A Surda, que gaga é,
        escutando estas plegárias
        da Virgem das Candelárias,
        chamou a de Nazaré:
        que licor é este, que
        converte esta mulatinha?
        bendita seja esta vinha,
        que deu tão santo licor,
        que para dar-lhe o louvor
        se esgotou a ladainha.

 
 

17    Acabado o tal banquete
        sem mais, nem mais dilação
        foi-se um, e outro putão,
        atrás do seu pontalete:
        deixararn saia, e traquete,
        dentro na casa fechada;
        e lá pela madrugada,
        veio a negra da Juíza
        e não achando a camisa
        gritou que estava roubada.

 
 

18    Voto solene fizeram
        ouvindo da negra os brados
        dizendo foram pecados,
        que na festa cometeram:
        porque a virgem a quem disseram,
        que aquela festa faziam,
        lhe ouviram, quando bebiam
        dizer a senhora então;
        que não se servia, não,
        do modo com que serviam.

 
 

19    Elas já em seu juízo
        (se de seu juízo têm)
        dizem, que o ano que vem
        haverá festa de siso:
        que hão de olhar seu perjuízo,
        sua honra, e opinião;
        de putaria, isso não,
        mas, eu por certas seqüelas
        não me ficarei mais nelas
        nem na sua devoção.
 

DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO

EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA

REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS

PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.

1    Clóris, nas festas passadas
      que às virgens são prometidas
      houve quadrilhas corridas
      parentas de envergonhadas:
      porém estas realçadas
      vi neste ano derradeiro:
      pois na esfera do Terreiro
      aparecia um Brandão,
      que correndo exalação,
      acabava cavaleiro.
 

 2    Com estas aparições
       de cometas tão luzidos,
       nos mirões espavoridos
       eram tudo admirações:
       em máximas conjunções
       de ouro, de prata, e de cores,
       notei que os Festejadores
       faziam com graças sumas
       no ar um jardim de plumas,
       e na terra um mar de flores.

 
 

 3    Sua Excelência assistia,
       o Conde, e toda a Nobreza,
       e os padres por natureza
       lhes faziam companhia:
       estava sereno o dia,
       a esfera toda anilada,
       a água do mar estanhada,
       brando o vento e lisonjeiro,
       e contudo no Terreiro
       houve muita carneirada.

 
 

4    Enfim a festa passada
      tão cheia de cavaleiros,
      se a fizeram dois Barbeiros,
      não seria mais sangrada:
      ali vi dar cutilada,
      que todo o vento dissipa,
      do bruto, que a participa,
      e eu disse, pasmado e absorto,
      que a catana era do Porto,
      por rilhar sempre na tripa.
 

5    Logo e da primeira entrada
      houve jogo de manilha,
      que para isso a quadrilha
      pêlo lindo era pintada:
      quem lhe dava uma encontrada,
      tudo então nos agradava,
      pois conforme ouvi julgar
      ali entre dar, e levar
      pouca vantagem se dava.

 
 

 6    Cada qual sem mais tardança,
       à dama a quem mais se aplica,
       levou na ponta da pica,
       o que ganhou pela lança:
       até o Padre Hortolança,
       digo, o Cônego Gonçalo,
       se logrou deste regalo:
       eu só na baralha ingrata,
       não vi manilha de prata,
       que na de ouros já não falo.

 
 

 7    Ao Marinho generoso
       o dia franco, e escasso
       concedeu-lhe o Galanaço
       recatando-lhe o ditoso:
       e visto que por airoso
       é o Adônis da quadrilha
       Zundu se lhe rende, e humilha,
       dando-lhe (porque o conforte)
       no cravo a primeira sorte,
       a segunda na manilha.

 
 

 8    Barreto alheio do susto,
       que não implica amostrado
       nem ao forte o asseado,
       nem ao galante o robusto:
       luzimento a pouco custo,
       bom ar sem afetação,
       foi julgado, em conclusão,
       que a destreza o não desvela,
       pois sem cuidado na sela,
       caía no capressão.

 9    Muito Eusébio se desvela
       em correr mais que ninguém,
       e por correr sempre bem
       nunca se assentou na sela:
       como há de sentar-se nela,
       se correr só pertendia
       tão propriamente o fazia,
       que se assentar, e correr
       não podem juntos caber,
       não se assentava, corria.
 

 10    O valeroso Muniz
         em gala, cavalo, e arreio,
         quanto ganhou pelo asseio,
         o perdeu pelo infeliz:
         o que eu vi, e a terra diz,
         é que de muito adestrado,
         andou tão aventejado,
         que a voz do povo levou,
         com que desde então deixou
         o Povo mudo, e pasmado.

 11    Outro Muniz valentão
         o fez tão perfeitamente,
         que sendo em sangue parente
         era na destreza Irmão:
         pelo forte em conclusão
         deixou de si tal memória,
         que por sua, e nossa glória,
         (deixando aos demais em calma)
         fez pouco em levar a palma,
         sendo filho da Vitór

 12     Do Bolantim a cavalo
          dizia o Povo gostoso,
          que era da festa o gracioso,
          e eu digo que era o badalo:
          quem chegou a ponderá-lo
          correndo sobre a Rucina,
          revirar a culatrina,
          perni-aberto para o ar,
          a que o pode comparar
          mais que a um sino que se empina?

13      Ao Araújo famoso
          no princípio da carreira,
          resvelou-lhe a dianteira
          o cavalo furioso:
          cego, arrojado e fogoso,
          entre uns baetas meteu-se:
          quem sentado estava, ergueu-se:
          porém o baixel violento
          como ia arrasado em vento,
          deu nuns bancos, e perdeu-se.

 14     Caído o moço infeliz,
          houve grita e alarido,
          sendo que cai o entendido
          em tudo, que se lhe diz:
          ergueu-se em menos de um triz,
          e pondo-se na vareda
          correu com cara tão leda,
          que causou admiração
          em todos; porque já então
          tinha ele com todos queda.

 15     Um sobrinho do Frisão
          ao cheiro acudiu dos patos,
          porque é em públicos atos
          mui ousado um patifão:
          presa a rédea a um arpão,
          nos estrivos dois arpéus
          pus eu os olhos nos céus,
          e disse que bem podiam
          louvar a Deus, os que viam
          a cavalo um Louva-Deus.

  16    Uma aguilhada por lança
           trabalhava a meio trote,
           qual o Moço de Dom Quixote,
           a que chamam Sancho Pança:
           na cara infame confiança,
           na sela infame perneta,
           e com tramóia discreta,
           ia sobre o seu jumento
           pelo arreio, e nascimento
           à bastarda e à gineta.

   17    Ele andou tão desestrado,
           que para dar-lhe sentido
           o cavalo era o corrido,
           e ele o desavergonhado:
           estava o Frisão pasmado
           de gosto babando o freio,
           por ser de razão alheio
           ver-se com tão pouco abalo
           não no centeio a cavalo,
           mas no cavalo o centeio.

   18    A este filho universal,
           com três Pais e três Padrastos
           todo vestido de emprastos,
           se emprastado o mesmo val:
           se seguia um cirragal,
           de quem tomavarn modelos
           para a corcova os camelos,
           cuja perna dobradiça
           sempre a memória me atiça
           da rua dos cotovelos.

   19     No Menino Ascânio falo,
            que o Pai Enéias a murro
            devendo de o pôr num burro
            o deixou pôr a cavalo:
            este menino ia ao galo
            e encontrou-se co'a galhofa,
            onde servira de mofa,
            os dias, que ali gastara,
            se um braço lhe não quebrara,
            e o mandaram numa alcofa.

    20     Lá vem o Chico às carreiras
             dando esporadas cruéis,
             numa sela de arambéis
             vestido de bananeiras:
             nas Laranjadas primeiras
             teve tão adversa estrela,
             que caiu na esparrela,
             não como Rola, em verdade,
             porque a queda foi de frade,
             pois logo agarrou da sela.

    21     Às festas não deu desmaio
             nenhum destes entremezes,
             que não há ouro sem fezes,
             nem comédia sem lacaio:
             qualquer correu como um raio
             e fez sua obrigação,
             exceto o boi do sertão,
             sendo, que alguém lhe cobiça
             o resistir à justiça,
             e dar co'a forca no chão.

     22    O lindo Eusébio da Costa
             escrivão das onze mil,
             por assombrar o Brasil
             fez tudo de sobre-aposta:
             cos passados deu à costa,
             e excedeu a toda a lei:
             e assim eu sempre direi
             hoje e em toda a ocasião,
             que o ser por Costa Reimão
             he vem por ter mão de Rei.
 
 

AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE

GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL

VIRGENS COM ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM O

POETA OBSEQUÊA, REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO

TAMBEM OBSEQUÊA A ANDRE CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.

 
 
 
 

1    Foi das Onze mil Donzelas
      Juiz o Juiz mais nobre
      de quantos no Brasil cobre
      o manto azul das estrelas:
      nesta festa sem cautelas
      gastou com liberal mão,
      e para mais devoção
      usar de Escrivão não quis,
      sendo o primeiro Juiz,
      que serviu sem escrivão.

 
 

2    Bem mostra, que de Bernardo
      tem herdado o natural,
      além de ser principal
      o seu ânimo galhardo:
      aplausos grandes aguardo,
      e de Camena melhor,
      que publiquem seu primor,
      que a minha Talia nova
      hoje admirações aprova
      por mais heróico louvor.

 3    Seis dias de cavaleiros
       houve com bastante graça,
       foram bons, e maus à praça
       em ginetes, e sendeiros:
       também houve aventureiros,
       prêmios, e mantenedor,
       touros, que foi o melhor,
       porém sem ferocidade,
       que os touros nesta cidade
       não são de muito furor.
 

 4    E pois coronista sou
       desta grã festividade,
       tenho de falar verdade,
       e dizer, o que passou:
       agaste-se, quem andou
       mal, que a mim se me não dá:
       sem saber, não foram lá,
       e se lhe der isto espanto,
       quando eu fizer outro tanto,
       também de mim falará.

 
 

 5    Bem sei, que é culpa fatal,
       e contra a razão soçobra
       dizer mal, de quem bem obra,
       e bem, de quem obra mal:
       mas nesta festa cabal
       com meu fraco entendimento
       aos cavaleiros intento
       julgar sem ódio nenhum,
       aplaudindo a cada um
       conforme o merecimento.

 6    Nestes dias festivais
       com suma gala, e grandeza
       assistiu toda a nobreza
       dos homens mais principais:
       Ministros, e Oficiais
       de guerra e Damas mui belas,
       que em palanques, e janelas
       mostravam com arrebol,
       que estando ali posto o sol,
       bem podiam ser estrelas.

 
 

 7    Posto o sol ali se via
       porém com notável gosto,
       quando vi, que era o sol posto,
       mais o Terreiro luzia:
       dois sóis postos na Bahia
       vi com diferença atroz,
       um Saturno, que se pôs
       outro posto na janela,
       Sol de luz mais clara, e bela,
       que hoje nasce para nós.

 
 

 8    Desterrando sombras mil
       de um sol, que causou desmaios,
       nasce com benignos raios
       este Sol para o Brasil:
       oh quem tivera a sutil
       de Apolo Lira discreta,
       da Fama aguda Trombeta,
       para que pudesse ousado
       sem temor, nem perturbado
       descrever este Planeta.
 

 9    Mas é fraco o meu engenho,
       para de um Sol sem desmaios
       querer ventilar os raios,
       quando olhos d'águia não tenho;
       e se a tão sublime empenho,
       (onde o mais sábio delira)
       meu pensamento subira,
       logo dessa esfera clara
       como Faetonte rodara,
       ou como Ícaro caíra.

 
 

10    Quando o Planeta maior
        à vista humana se expõe,
        é, que a seus raios se opõe,
        atrevido algum vapor:
        e se neste sol melhor
        nenhuns eclipses se vêem,
        não se atreverá ninguém
        (sem ter de néscio desmaios)
        querer contemplar os raios
        esclarecidos, que tem.

 
 

11    Quando da estéril Mulher
        nasceu o maior do mundo,
        admirações, e profundo
        pasmo veio a gente ter:
        e se com João nascer
        houve tanta admiração:
        à Bahia outro João
        sol de claro nascimento
        nasce com merecimento
        pare a mesma suspensão.

 
 

12    E como não pasmarei
        eu, e este Povo também
        de ter por General, quem
        cetro merece de Rei?
        pois a ventura, e a lei
        divina dispôs, Senhor,
        o seres Governador,
        contudo sabemos nós,
        que um foi dos vossos Avós
        de Pedro progenitor.

13    Daquele em tudo primeiro
        João, em nada segundo
        sois, e bem conhece o mundo,
        descendente verdadeiro:
        também da casa de Aveiro
        muita nobreza alcançais:
        Alencastre vos chamais
        de Duarte Inglês potente
        claríssimo descendente,
        Silva sois, e nada mais.

14    Com branca, e encarnada pluma
        galã vestido de verde,
        que inda a esperança não perde
        do neto da clara espuma:
        Capitão de graça suma
        André Cavalo saiu:
        logo o Povo se sentiu,
        porque de incidente novo
        os olhos levou do Povo,
        quando no Terreiro o viu.

 
 

15    Num branco bruto corria
        mais ligeiro do que o vento,
        tanto que co pensamento
        correr parelhas podia:
        veloz desaparecia
        das pernas ao leve abalo,
        e não podia julgá-lo
        o Povo, que ali se achava,
        se era vento, que levava
        pelos ares o Cavalo.

 
 

16    Pôs André com bizarria
        todas as lanças mui bem,
        e inda assim não faltou, quem
        murmurasse todavia:
        soube ele da zombaria,
        que se fez, e persentiu,
        quem fora, o que ali se riu,
        e no outro dia com brio
        um cartel de desafio
        pôs, mas ninguém lhe saiu.

17    No cartel, que pôs, mostrava,
        que a qualquer que julgassem
        três lanças, que se tirassem,
        mil cruzados ofertava:
        o delinqüente aceitava
        o desafio esta vez,
        porém que sem interês
        com gosto perder queria
        nesta contenda, e porfia
        não só mil cruzados, três

.
 

18    Pede licença, ao Senhor,
        que no nome a graça traz:
        mas ele como sagaz
        o aconselha com primor:
        diz-lhe, que fora melhor
        esta contenda escusar;
        porém o Mancebo alvar
        fiado em ser cavaleiro,
        e fiado em ter dinheiro
        não quis o pacto aceitar.

19    Porque se não vence não
        (dizia o Moço Magnata)
        nem por ouro, nem por prata
        o seu sangue de Aragão:
        e vendo o Senhor D. João,
        que se a licença negava,
        a André Cavalo ultrajava,
        pois podiam presumir,
        se ao campo o não vissem ir,
        que o dinheiro lhe faltava:

20    Lhe disse, que não só três
        (se corressem) mil cruzados,
        senão que depositados
        tinha André Cavalo dez:
        mas o moço Aragonês
        vendo esta resolução,
        por temer a perdição,
        a que punha o seu dinheiro,
        toma conselho primeiro
        co reverendo Frisão.

 
 

21    O Padre, que sem estudo
        as Leis entende civis,
        e com manhosos ardis
        obra mal, e sabe tudo:
        lhe diria mui sisudo
        com aspecto venerando,
        rindo-se de quando em quando,
        que assim seus enganos lavra,
        não se lhe dê da palavra,
        diga, que estava zombando.
 

22    Assim foi, que o desafio
        veio a parar em burrada,
        que a palavra não val nada,
        se na ocasião falta o brio:
        e para que com desvio
        não fossem mais inimigos,
        evitando alguns perigos
        em boa paz os chamou
        o General, e tratou,
        de que fossem muito amigos.

23    Depois das pazes enfim
        lhes pediu, que cavalgassem,
        e um par de lanças tirassem
        cada qual em seu rocim:
        ele lhe disse, que sim,
        e de improviso avisou
        ao Irmão, que não tardou
        em trazer-lhe bons arreios,
        cavalos, selas, e freios,
        e com eles se embarcou.

24    Num dia dos derradeiros
        ao Terreiro os dous chegaram,
        e ambos se separaram,
        logo dos mais cavaleiros:
        cuidam, que são os primeiros
        Fidalgos, que a terra tem,
        e néscios não antevêem,
        que diz o Povo, e não erra,
        se são Fidalgos da terra,
        na terra há outros também.

25    Empinou-se-lhes a ruça,
        e de quatro companheiros
        sem mais outros cavaleiros
        fizeram a escaramuça:
        o General se debruça
        para metê-los bem nela
        na janela com cautela,
        porém usou de revoltas,
        porque metendo-os nas voltas,
        mandou cerrar a janela.

26    A escaramuça acabada
        fizeram a cortesia,
        e todo o Povo se ria
        vendo a janela fechada:
        nas voltas não viram nada,
        que com notável trabalho
        no ay hombre cuerdo a cavalo,
        porém depois que acabaram,
        e o General não acharam,
        ficaram de vinha-d'alhos.

27    Cos rostos descoloridos,
        desesperados agora
        iam por dentro, e por fora
        da própria cor dos vestidos:
        os que são desvanecidos,
        e de néscia presunção
        presumem mais, do que são,
        emendem seus pensamentos,
        que para seus desalentos
        e vivo o Senhor D. João.

28    Não presumam, porque têm,
        que são mais que os pobres nobres,
        pois há muitos homens pobres,
        mui bem nascidos também:
        ao pequeno não convém
        por pequeno desprezar,
        que se este quiser falar,
        achar pode algum defeito
        que nenhum há tão perfeito,
        em quem se não pode achar.

29    Seguia-se um cavaleiro
        ao famoso André Cavalo,
        que levou sem intervalo
        de cada golpe um carneiro:
        também foi aventureiro
        de um prêmio: mas com defeito
        dava ao corpo um grande jeito,
        e ficou passado, e absorto,
        de que fosse ao prêmio torto,
        e o prêmio a outro direito.
 
 

30    Ao famoso Brás Rabelo
        razão é de mestre o apode,
        que dar dias santos pode
        nesta arte, ao que for mais belo:
        e se com louco desvelo,
        do que digo, algum se abrasa,
        escute a razão, que é rasa,
        e verá, se faz espantos,
        que dar possa os dias santos,
        quem tem Domingos de casa.

 
 

31    Nas lanças, que pôs mui bem,
        teve de prêmios ganança,
        e certo, que pela Lança
        não o há de vencer ninguém:
        dos cavaleiros, que tem
        modernos hoje a Bahia,
        leva Brás a primazia,
        porque não há nesta praça,
        quem se ponha com mais graça,
        fortaleza, e bizarria.

32    Também aquela fatal
        emulação de Mavorte,
        para os inimigos forte
        para os amigos Leal,
        aplauso merece igual,
        pois nesta cavalaria,
        se aos mestres não excedia,
        por mais antigos na arte,
        aos Modernos desta parte
        ele leva a primazia.

 
 

33    Também no Machado falo,
        que e razão por ele acuda,
        pois sempre ao cavalo ajuda,
        mas não o ajuda o cavalo:
        inda assim posso louvá-lo,
        dando-lhe vários apodos,
        porque conheço em seus modos,
        e mui bem posso afirmar,
        que nisto de cavalgar
        leva vantagens a todos.

 
 

34    Em mau cavalo corria,
        mas um prêmio mereceu;
        veja-se, quem o perdeu,
        que cavaleiro seria:
        aposto, que alguém diria,
        vendo, que as carreiras passa
        sem fortaleza, nem graça,
        que o Moço com seu sendeiro
        é nos fumos cavaleiro,
        porém não cá para a praça.

 
 

35    Outro cavaleiro airoso
        andou na festividade,
        e vi na velocidade,
        com que corre, ser Veloso:
        por cavaleiro famoso
        o Povo o aclamou de novo,
        eu só admirando o louvo,
        e acho discrição calar,
        que é escusado falar,
        quando por mim fala o Povo.

36    O Ripado valeroso
        andou bem, porém sem sorte,
        porque tem pouco de forte,
        se bem tem muito de airoso:
        perdeu pouco venturoso,
        mas sem nenhum sentimento,
        um prêmio, que Brás atento
        ganhou, porque não se atreva
        a aquilo, que também leva
        com as palavras o vento.

  

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