Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra Poética de Gregório de Matos


Edição de Referência:

Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,

Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.

O ENGENHO ESTÁ PEJADO.

CHEGANDO O POETA A VILLA DE SAN FRANCISCO DESCREVE OS DIVERTIMENTOS, QUE ALI PASSAVA, E EM QUE SE ENTRETINHA.

QUANTA ADMIRAÇÃO QUE LHE CAUSARAM AS MUDANÇAS DO SITIO.

TORNA O POETA AO SITIO DE CAJAIBA, E SE ADMIRA DAS MUDANÇAS EM QUE O VE.

DESCREVE SEGUNDA VEZ AQUELLAS MUDANÇAS, SATYRISANDO DE CAMINHO AO AZEVEDO FEYTOR MÔR DO ENGENHO.

A HENRIQUE DA CUNHA DESENFADO DO POETA POR INSIGNE MENTIROSO, CHEGANDO DA ITAPEMA À CAJAÍBA.

AGRADA-SE DOS DONAIRES DE HUMA CABRINHA DO PADRE SIMÃO FERREYRA E LHE FAZ O SEGUINTE ROMANCE.

COMO A NÃO PODE DE NENHUMA SORTE ALCANÇAR À DESCOMPÕE EM DÉCIMAS.

OUTRA MULATA CLARA CHAMADA JOANNA GAFEYRA CAMARADA DE IZABEL SE DESVIAVA DO POETA TEMENDO A SUA LINGUA, E ELLE DEZEJOSO DE À CONVERSAR, E DESCONFIADO DE O PODER CONSEGUIR LHE FAZ ESTE ROMANCE.

SATYRISA O POETA O ENCONTRO, QUE TEVE JOANA GAFEYRA, DE QUEM FALLAREMOS LARGAMENTE NAS DAMAS DA VILLA DE S. FRANCISCO COM CERTO FRADE EM UM BANANAL.

COMO NÃO PÔDE O POETA LOGRAR, LHE DIZIA ESTAS, E OUTRAS INJURIAS, COMO O FOY O SER APANHADA NO BANANAL COM HUM FRADE COMO JA DISSEMOS: MAS ELLA ATRAVESSADA GRACIOSAMENTE COM O POETA, LHE FAZIA CARRANCAS TODAS AS VÊZES, QUE O VIA.

PINTA O POETA AS PORQUEYRAS DE HUM FRADE, E SEUS DEPRAVADOS MODOS EM MATERIAS AMOROSAS, SATYRISANDO DE CAMINHO A TREZ MOÇAS IRMÃAS DA VILLA DE SAM FRANCISCO, QUE À TANTO SE INCLINAVÃO.

FESTEJA UMA PIPA DE VINHO. QUE ENTROU NO CONVENTO DE S. FRANCISCO DAQUELLA VILLA.

DA CAJAIBA FOY CONVIDADO O POETA COM THOMAZ PINTO BRANDÃO E OUTRO CAMARADA MAIS PARA IREM A PERNAMERIM, ONDE FORAM RECEBIDOS, COMO SE VE DESTAS DÉCIMAS.

QUERIA O POETA DIVERTIR SEUS AMOROSOS INCENDIOS COM HUMA MOÇA ALI ASSISTENTE, E PEDINDO-LHE ESTA DINHEYRO ANTECIPADAMENTE, ELLE LHE RESPONDEO COM ESTAS DÉCIMAS.

RECEOSA SUZANA DAS CUTILLADAS DO POETA LHE PEDIO, DEPOIS DE SER DELLE GOZADA, QUE A NÃO SATYRYZASSE: MAS POR ISSO MESMO LHE DESANDA COM ESTAS DÉCIMAS.

REMETTE AGORA OS SEUS CUYDADOS À MULATA LUZIA, QUE TAMBÉM EMBARAÇADA E DUVIDOSA SE OFFENDERIA, OU NÃO À SEU AMANTE, SEMPRE SE DESCULPAVA.

TEVE NAQUELLA VILLA NOTICIA DE HUM PEDREYRO QUE DESESTIMAVA HUA POBRE MULHER, QUE POR DESGRAÇA LHE CAHIO NAS MÃOS, ELLA OFFENDIDA DO SEU MAO TERMO, SE RETIROU EM DESPIQUE PARA A PODER DE HUM HOMEM DE BEM, ONDE MELHOROU DE ESTIMAÇÃO, AO QUE FEZ O POETA AS SEGUINTES DÉCIMAS.

CORRESPONDEO A MOÇA COM HUM GRANDIOSO PRESENTE DE DOCES, QUE NA CAJAIBA DEVORÁRAM OS AMIGOS DO POETA.

A AVÓ DESTA MESMA MÔÇA, A QUEM MANDOU OS SONHOS, QUE ELA DEU AO POETA, COMO DICEMOS NA OBRA ANTECEDENTE, LOUVA AGORA PARTICULARMENTE O MESMO POETA.

DESCREVE O ENCONTRO, QUE TEVE COM A MULATA ESPERANÇA NO SITIO DA CATALLA.

A MESMA MULATA APPARECENDO EM OUTRA OCCASIÃO AO POETA MUY DESFIGURADA, AMARELLA, E CHEYA DE GALLICO.

A FRANCISCO FERREYRA, DE QUEM O POETA SE ACOMPANHAVA NAQUELLE RETIRO, FALTANDOLHE HUM DIA APRAZADO PARA CERTA VIAGEM.

AO MESMO E PELO MESMO CASO, QUE CHAMAVA AO POETA SEU MESTRE NA SOLFA, PORQUE COM ELLE CANTAVA AS VEZES.

A HUM VISINHO DÁ CONTA O POETA EM HUMA MANHÃA DE INVERNO, DO QUE PASSAVA COM O FRIO.

A HUM PARDO CHAMADO LOPO TEYXEYRA, POR QUEM MADOU O POETA COMPRAR HUAS MELAMCIAS A SAUBABARA E LHE TROUXE MUYTO MÁ COMPRA.

A CUSTODIA NUNES DALTRO, QUE EM CASA DO VIGARIO DA MADRE DE DEOS O HAVIA CURADO DE HUMA CIATICA QUE PADECIA EM HUM QUADRIL COM TREZ FACAS QUENTES.

ENGRANDECE O POETA A ILHA DE GONÇALLO DIAS ONDE VARIAS VEZES FOY REFUGIADO, E FAVORECIDO DO MESMO SENHORIO.

A HUMA MENINA FILHA DO MESMO GONÇALLO DIAS, A CUJA DISPOSIÇÃO FICÁRAM SEUS PAYS O BOM AGAZALHO DO POETA, QUE PAGOU CENTO POR HUM COM ESTE REGALLADO, E FREQUISSIMO ROMANCE.

DESCREVE A ILHA DE ITAPARICA COM SUA APRAZIVEL FERTILIDADE, E LOUVA DE CAMINHO AO CAPITÃO LUIZ CARNEYRO HOMEM HONRADO, E LIBERAL, EM CUJA CASA SE HOSPEDOU.

AUSENTE POR HUNS DIAS O POETA, E PÔSTO NA ILHA GRANDE POR CERTAS DIFFERENÇAS, QUE TEVE COM ANDRÉ BARBOZA, ESCREVE AOS AMIGOS SUAS SAUDADES.

ESCREVE DEPOIS AOS MESMOS MIUDAMENTE O SENTIMENTO NESTA GRACIOSA IMAGEM.

RESTITUIDO OUTRA VEZ A AQUELLA ILHA TRATA DE ENTENDER COM JOÃO DE AZEVEDO CAYXEYRO DAQUELLE ENGENHO E COM O FEYTOR MÓR.

CONTINUA COM O AZEVEDO POR TER O ENGENHO PEJADO.

AO MESMO AZEVEDO CAYXEYRO DO ENGENHO, QUE SENDO JÁ HOMEM VELHO, E FRACO MACHEAVA HUMA NEGRA, CHAMADA SUZANNA DE DESMEDIDA GRANDEZA.

A SUZANA AMAZIA DO AZEVEDO, MANDANDO AO AUTOR HUM PREZENTE, E NELLE VINHÃO HUMAS MOQUECAS.

ORDENAVA-SE EM MARAPÉ O BAPTIZAMENTO DE HUMA FILHA DE BALTHEZAR VANIQUE OLANDEZ E VIERAM À FUNÇÃO VARIOS ESTRANGEYROS COM HUMA PIPA DE VINHO, E MALOGROU-SE A FESTA PELA MUYTA CHUVA, QUE HOUVE.

CELEBRA A GRANDE ALGAZARRA QUE FIZERAM NA FESTA OS ESTRANGEYROS BRINDANDO A QUITOTA MENINA BAPTIZADA, SENDO NO TEMPO DA PESTE.

CELEBRA SACODINDO DE CAMINHO DEMAZIADO BEBER DESTE BALTHEZAR VANIQUE SENDO HOMEM ACHACADO DA GOTTA NOS PÉS.

AO FILHO DESTE BALTHEZAR VANIQUE CHAMADO JOÃO VANIQUE, E POR ALCUNHA ATIRACOUCES INTRODUZIDO NA CONVERSA DO POETA, O QUAL HAVIA APANHADO HUMA QUEDA ANDANDO CORRENDO NUMAS CAVALHADAS.

DESCONFIADO O VANIQUE DESTES CAVILLOSOS LOUVORES SE RETIROU DAQUELLA CONVERSAÇÃO, E O POETA O SATISFAZ COM OUTROS PEYORES.

ESTANDO O POETA REFUGIADO DE SUA MESMA POBREZA NA ILHA DE MADRE DE DEOS, TEVE NOTICIA DA MORTE DE UM DE SEU FILHO, E QUE FORA ENTERRADO MISERAVELMENTE, E PROVOCADO DA SUA PENA, FEZ ESTAS DÉCIMAS.

AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO.

CHORA O POETA A MORTE DE HUM SEO FILHO, CUJO PEZAR DEO MOTIVO A PRIMEYRA OBRA SACRA DESTE LIVRO.

OS SEUS DOCES EMPREGOS

O ENGENHO ESTÁ PEJADO

Que vai por lá, Senhores Cajaíbas?

Eu não tenho que olhar mais que horizontes

 

CHEGANDO O POETA A VILLA DE SAN FRANCISCO DESCREVE OS

DIVERTIMENTOS, QUE ALI PASSAVA, E EM QUE SE ENTRETINHA.

Há cousa como estar em São Francisco,

Onde vamos ao pasto a tomar fresco,

Passam as negras, fala-se burlesco,

Fretam-se todas, todas caem no visco.

O peixe roda aqui, ferve o marisco,

Come-se ao grave, bebe-se ao tudesco,

Vêm barcos da cidade com o refresco,

Há já tanto biscouto como cisco.

Chega o Faísca, fala, e dá um chasco,

Começa ao dia, acaba ao lusco e fusco,

Não cansa o paladar, rompe-me o casco.

Joga-se em casa em sendo o dia brusco,

Vem chegando-se a Páscoa, e se eu me empasco,

Os lombos de um Tatu é o pão, que busco.

QUANTA ADMIRAÇÃO QUE LHE CAUSARAM

AS MUDANÇAS DO SÍTIO.

Ou o sítio se acabou,

ou o mudaram, daqui,

ou eu às cegas o vi,

e a cegueira me cagou:

quando o sítio me logrou,

ou eu o sítio lograva,

o sítio me enfeitiçava,

pelo sítio me morria,

pelas fêmeas, que ali via,

pelas saídas, que achava.

Havia umas fermosuras

mui ledas, e mui louçãs

para qualquer sim mui chãs

para qualquer não mui duras:

hoje há quatro más figuras

mui presumidas, e inchadas,

querem-se muito adoradas,

porém com pretexto errado,

e é que ao fazer do pecado

são fidalgas estiradas.

Outras putinhas malsins

me têm cercado de sorte,

que por ver-me em mãos da morte

não me dão descarga aos rins:

mas como nestes confins

tenho tanta parentela,

dando uma vista a Castela

me deparou logo Amor

na terra uma linda flor,

no céu uma rica estrela.

Fretei-a a pouco trabalho,

e mui pouco me custou,

porque era do ferro, ou

porque era amiga do alho:

veio buscar-me sem falho,

inda durava o luar,

não veio para ficar,

mas eu contudo finquei-o:

com que se a ficar não veio,

contudo veio a fincar.

Como tenho já segura

a carne no garavato,

me rio, que o sítio ingrato

tenha, ou não tenha fartura:

porque em sendo conjuntura,

que é lá pela noite alta,

nunca a Mulatinha falta,

e dêem-me outra Parda forra

em que tudo isto concorra,

geme, gosta, atura, e salta.

TORNA O POETA AO SITIO DE CAJAIBA, E SE ADMIRA

DAS MUDANÇAS EM QUE O VE.

Está o sítio esgotado

das Putas, que lhe deixei,

pois apenas nele achei

o bagaço do pecado:

Polônia me dá enfado,

e sua ausência me embaça,

porque se a boca arregaça,

com tanta graça se ria,

que eu lhe disse, que podia

rir-se até da mesma Graça.

Faltam outras, que eu deixei,

como é Inácia Barrosa,

que inda que puta escabrosa,

presta, para o que eu bem sei:

falta a do aqui-d'EI-Rei

a Beleta gritadeira,

que se gruda de maneira

com xaropes, que cozinha,

que fica uma donzelinha

e não sabe a parideira.

Falta a Gafeira dos gatos,

que movida da consciência

fala ao Branco em penitência

de se dormir cos Mulatos:

deixou negregados tratos,

e quis a um Branco arrimar-se

não mais que para emendar-se

e assim ao branco amigão

tem por mortificação,

por ver se pode salvar-se.

Falta, pois nunca aparece,

Lourença, que chamam Cuia,

que com cara de aleluia

nem por isso me apetece:

e se ela desaparece

por guardar ao Mano fé,

não me meto eu no porquê

mas puta tão desluzida,

ande-se embora escondida,

que me faz muita mercê.

Falta Benedita cuja

vasquinha, ou saia vermelha,

suposto, que cristã velha

não deixava de ser suja:

falta, porque era coruja,

e toda a noite vagava,

e a quantos homens topava

(diziam-me alguns mirones)

que não sabe dizer nones,

e assim aos pares se dava.

Falta Luzia a Sapata,

que estava na Cajaíba,

arriba, putas, arriba,

não se torne a Ilha em mata:

falta uma, e outra Mulata,

e se acaso se acha aqui

a Conga, a Calabari,

e outras negras no folguedo,

como as dorme o Azevedo,

quem há de ir folgar-se ali?

Vou-me do sítio famoso

queixoso e desesperado,

das Mulatas esfaimado,

das Negras escrupuloso

não torno a tal rio undoso,

que tanto pisei, e enquanto

me recolho em um recanto,

onde à vida veja o cabo,

o sítio va co diabo,

e as Mulatas outro tanto.

Não falo nas nossas Quitas,

nas Maranas, nas Antônias,

que as mais são umas demônias,

e estas umas Angelitas:

as mais são umas malditas,

que fedem sempre ao peixum;

na praça comerei um

salmonete singular,

e aqui não quero trocar

a Cioba pelo Atum.

DESCREVE SEGUNDA VEZ AQUELLAS MUDANÇAS, SATYRISANDO

DE CAMINHO AO AZEVEDO FEYTOR MÔR DO ENGENHO.

Segunda vez tomo a pena

para tão longe voar,

que sal o sítlo a enforcar

por sentença, que o condena:

a culpa não é pequena

de estar o sítio a pé quedo

suportando o Azevedo,

que anda por este lugar

de contino a fornicar

as negras a puro dedo.

Haverá, Azevedo, alguém

que não raive até morrer

de ver, que queirais vós ter

o gosto, que os homens têm?

e eu raivo mais que ninguém,

pois sois um triste azamel,

que com pica de cordel,

como a não podeis fincar,

quereis o sundo levar

às dedadas como mel.

Eu vos desengano logo,

que isto é só para o varão,

que vê a caça, e ergue o cão,

e de improviso dá fogo:

não é para vós o jogo,

nem para os vossos lanções

pois nunca meteis os bois,

nem tendes bois, que meter,

e se homem sois, ou mulher

não se sabe inda, o que sois.

Se furtais tanto fragmento

de açúcar para as mulheres,

pode ser, se lho não deres,

que tenhais entendimento:

não faleis em casamento,

com que o demo vos atiça,

porque essa Moça castiça

cento, e cinqüenta réis lhe achais,

e vós triste não entrais

com cinqüenta réis de piça.

Pedis a Moça, que vistes

a fim só de a enganar,

porque o mais, que lhe heis de dar,

serão quatro beijos tristes:

se eu sei, que nunca cumpristes,

que disso Teodora brama,

porque o dedo não derrama,

como é possível querer,

que se contente a mulher,

do que escarnece uma Dama.

Verdade é, que na ocasião

destas comédias passadas

deixou muitas namoradas

vossa representação:

mas a vossa locução

deixou o Povo tão cego,

tão confuso, e sem sossego,

que ninguém sabe atinar

se Português Malavar

sois, se castelhano Grego.

Pois a Moça se tem míngoa

de casar por ser mulher,

como vos há de entender

se não sabe a vossa língua:

deixai, Azevedo, essa íngua

de casar, que é má doença,

e pois Amor vos dispensa,

que mil catingas cheireis,

com branca vos não deiteis,

que heis de morrer de corrença.

Ponde, Azevedo, o cuidado

em ser gente, e não sendeiro,

que o ser home está primeiro,

e depois o ser casado:

se vos não tem dispensado

vossa natureza atroz

para ser home entre nós,

como contra o natural

quereis mulher racional,

sendo vós um catrapós?

A HENRIQUE DA CUNHA DESENFADO DO POETA POR INSIGNE

MENTIROSO, CHEGANDO DA ITAPEMA À CAJAÍBA.

Senhor Henrique da Cunha,

vós, que sois na Itapema

conhecido pelo brio,

graça, garbo, e gentileza:

Vós, que donde quer que estais,

todo o mundo se vos chega

a escutar a muita graça,

que vos chove a boca cheia:

Vós, que partindo de casa

ou seja a remo, ou a vela,

bem que venhas sem velame,

vindes fiado na verga.

E apenas tendes chegado

a esta Cajaíba amena,

logo São Francisco o sabe,

logo Apolônia se enfeita.

Logo chovem os recados,

logo a canoa se apresta,

logo vai, e logo encalha,

logo toma, e logo chega.

Logo vós a conduzis

para a casa das galhetas,

onde o melado se adoça,

onde a garapa se azeda.

Entra ela, entrai vós também,

assenta-se, e vós com ela,

e assentada lhe brindais

à saúde da fodenga.

Vós, mas basta tanto vós,

se bem que a Musa burlesca

anda tão desentoada,

que já não canta, vozeia.

Às vossas palavras vamos,

vamos às vossas promessas,

que com serem infinitas,

não são mais que as minhas queixas.

Prometeste-me há dous anos

de fazer-me aquela entrega

da viúva de Nain,

que hoje é glória da Itapema.

Não me mandastes combói,

necessária diligência

para um triste, que não sabe

nem caminho, nem carreira.

Tão penoso desde entonces

fiquei com tamanha perda,

que ou a pena há de acabar-me,

ou há de acabar-me a pena.

Mas inda assim eu confio

na Senhora Dona Tecla,

que nas dez varas de Holanda

hei de amortalhar a pena.

Disse amortalhar? mal disse,

melhor ressurgir dissera,

que em capela tal ressurge

a mais defunta potência.

Vós me tirastes do ganho,

sois meu amigo, paciência:

por isso diz o rifão,

que o maior amigo aprega.

Se vós soubestes lográ-la,

que sois com suma destreza

grande jogador de porra

pela branca, e pela preta.

Jogais a negra, e a branca,

e tudo na escola mesma,

bem haja a escrava, a senhora,

que uma d'outra se não zela.

Esta é a queixa passada,

porém a presente queixa

é, que a todos os amigos

mandastes mimos da terra.

A um peças de piaçaba,

fizestes a outros peça,

eu já essa peça tomara

por ter de vós uma prenda.

Enviai-me alguma cousa,

mais que seja um pau de lenha,

terei um pau para os cães,

que é, o que há na nossa terra.

Lembre-vos vosso compadre,

que o tal Duarte de Almeida

co’a obra parou enquanto

a piaçaba não chega.

Mandai-me uma melancia,

que ainda que é fruta velha,

não importa o ser passada,

como de presente venha.

Mandai-me um par de tipóias,

das que se fazem na terra

a dous cruzados cada uma,

que eu mandarei a moeda.

Mandai-me sem zombaria,

que eu vo-lo peço deveras,

porque eu não peço de graça,

quanto a dinheiro se venda.

Mandai boas novas vossas,

em que vos sirva, e obedeça,

que como vosso cativo

irei por mar, e por terra.

Mandai-me novas da Mãe,

das Filhas muitas novelas,

pois em fazê-las excedem

Cervantes, e outros Poetas.

E perdoai disparates,

de quem tanto vos venera,

que por em tudo imitar-vos,

vos quer seguir na fodenga.

AGRADA-SE DOS DONAIRES DE HUMA CABRINHA DO PADRE SIMÃO FERREYRA

E LHE FAZ O SEGUINTE ROMANCE.

Córdula da minha vida,

Mulatinha da minha alma,

leda como as aleluias,

é garrida como as Páscoas.

Valha-te Deus por cabrinha,

valha-te Deus por Mulata,

e valha-me Deus a mim,

que me meto em guardar cabras.

Quando te apolego as tetas

como uns marmelos inchadas,

me dão tentações, porque

cuido, que são marmeladas.

Tu me matas de donzela

porque, Córdula, te gabas

de virgo, sendo que Virgo

nunca em Capricórnio anda.

Passei pela tua porta,

estavas junto da casa,

chamei-te, achei-te cortês

vieste, e foste tirana.

Porque apenas to pedi,

quando me viraste a cara,

e co cabaço, que finges

me deste mil cabeçadas.

Enfim me destes o sim,

com que creio, que me enganas,

porque se há xinxim de brancas,

tu és o xinxim das cabras.

Por esta cara te juro,

que em dando-te a virotada

me hás de rondar pela porta,

me hás de puxar pela capa.

COMO A NÃO PODE DE NENHUMA SORTE ALCANÇAR

À DESCOMPÕE EM DÉCIMAS.

A Cabra de Cajaíba

serva do Padre Simão

é grandíssimo putão,

e no virgo inda se estriba:

virgo abaixo, virgo à riba

já de escutá-la me encalmo,

pois enquanto reza um salmo

o Padre entre os arvoredos,

sai com virgo de três dedos,

e entra com virgo de palmo.

A Cabra é puta cambaia,

e em sentindo o membro a vela

por fingir, que inda é donzela,

quando fode, se desmaia:

faminta discorre a praia,

que chamamos o Apicu,

e topando um negro nu,

o visita como amigo

ela a ele a par do embigo,

ele a ela a par do cu.

Sobre toda esta fodenga

de membros como pivetes,

se lhe fala um Branco em fretes

co'a donzelice o derrenga:

e depois que a muita arenga

a tem convencido já,

lhe responde, que ela irá,

e indo, ela manda dizer,

que para o Padre beber

pisando está carimá.

Maldito seja tal caldo,

e tal mingau de Aratus,

que boto a Deus, e a Jesu,

que de ouvi-lo só me escaldo;

tanta pimenta rescaldo,

tanta manipuba impressa

no vão da tal boa peça,

na tal puta Jacutinga

faz, com que sobre a catinga

a manipuba me fessa.

Ela a manipuba fede,

ela fede a carimá

e me fede a Cabra já

sobretudo, porque pede:

pede, e diz, que o que lhe impede

fazer as suas sortidas,

são duas fraldas cosidas,

e um cabeção para a praia,

e sempre pede uma saia

para fazer as saídas.

Serve a negros de investir

com tamanho pé-de-banco,

e quer a Cabra, que um Branco

sirva o dar-lhe de vestir:

Para o puto que rustir

tal concerto, e tal partido,

que eu sem ter leso o sentido

não posso ser tão sendeiro

que despenda o meu dinheiro

por um fedor tão fodido.

 

OUTRA MULATA CLARA CHAMADA JOANNA GAFEYRA CAMARADA DE IZABEL

SE DESVIAVA DO POETA TEMENDO A SUA LINGUA, E ELLE DEZEJOSO DE À

CONVERSAR, E DESCONFIADO DE O PODER CONSEGUIR LHE FAZ ESTE

ROMANCE .

Aqui-d'EI-Rei, que me mata,

Gafeira, os vossos desdéns:

eu não vi Parda tão branca

com tão negro proceder.

Como consente, que diga,

que tão grande puta é,

que deixa por um Mulato

um homem de branca tez?

Uma Mulata tão linda,

que da cabeça até os pés

é uma estampa e Vênus

debuxadinha ao pincel?

De vos chamarem Gafeira

vimos todos a entender,

que andais gafa de Mulatos,

e expurgar-vos não podeis.

Morreis pelas palmatórias,

Putinha, porque sabeis,

que sois carreta medida

pelos canhões do seu trem.

E pois estais tão batida,

como muralha de Argel

de tantos canhões de alcance,

quantos Mulatos fodeis:

Daqui vos digo, Putinha,

que me arrependo, de que

meus recados vos chegassem,

pelo muito que fedeis.

Do vosso fedor se queixa

até Sergipe d'EI-Rei,

por ser o sovaco, e vaso

putiú, catinga, e pez.

Eu me sinto feder tanto

de haver-vos visto uma vez,

que hei de lavar neste rio

olhos, pensamento, e pés.

Os olhos, porque vos viram,

e o pensamento, porque

o tive de cavalgar-vos,

e os pés, porque nisso andei.

Andai, Puta de torresmos,

porque sois, e haveis de ser

puta de membros torrados

por sempre jamais amém.

SATYRIZA O POETA O ENCONTRO, QUE TEVE JOANA GAFEYRA, DE

QUEM FALLAREMOS LARGAMENTE NAS DAMAS DA VILLA DE

S. FRANCISCO COM CERTO FRADE EM UM BANANAL.

Um Frade no Bananal,

inda que diga Joana,

que foi despencar banana,

jurarei, que não foi tal:

não foi o Frade ao quintal

para roubar a seu dono,

mas dizem por seu abono,

que foi ao quintal prover-se,

deve crer-se, e entender-se,

que foi prover-se de cono.

Como havia de ir o Frade

prover-se ao bananal,

se eu sei, que foi ao quintal

com outra necessidade:

que Sua Paternidade

lá fosse, a mim me constou,

mas como a Joana achou

estirada, e tartamuda,

deitou-lhe o Frade uma ajuda,

com que Joana cagou.

Que cagasse não me espanto,

se a calda o quintal empoça

com seringa um tanto grossa,

e comprida um tanto quanto:

sentiu-se Joana tanto

que o Frade assim a sacuda,

que chamando, quem lhe acuda,

dizia, que na verdade

antes queria do Frade

o xarope, do que ajuda.

O xarope é cordial,

e ajuda é culatrina

xarope é cousa divina,

a ajuda é cousa infernal,

nunca eu fora ao bananal!

mas quem havia de crer,

que o Frade lá fosse ter,

para que ali me sacuda,

e não deixasse uma ajuda,

com que eu pudesse viver.

Ele me fez de maneira,

quando o canudo metia,

que eu cuidei, que me dormia

cum tronco de bananeira:

enquanto na derradeira

o licor senti correr

da calda, me pus a crer,

e cri, que em toda a verdade

o Frade como bom Frade

vinha ajudar-me a morrer.

Mas logo senti a míngua,

quando a dizer me esforçava

Jesus, ele me tapava

a boca com toda a língua:

nunca a piedade míngua,

se não num grosso saial,

e foi este Frade tal,

que me impediu, que falasse,

porque Deus mais não chamasse,

que o demo do bananal.

Que fosse ajuda não sei,

e só sei, que apuros topes

me deu o rei dos xaropes,

e não xarope de rei:

o Frade é Frade sem lei,

e de consciência torta,

pois na minha mesma horta,

quando a sua seringada

me houvera deixar curada,

então me deixou mais morta.

Morrera em todo o rigor

desta feita excomungada,

se a força da vardascada

não me absolve meu Senhor:

o Frade como traidor

com outro a fuga confere

e porque mais me exaspere,

cruzou o charco salgado,

porque sendo o excomungado

levasse eu o miserere.

COMO NÃO PÔDE O POETA LOGRAR, LHE DIZIA ESTAS, E OUTRAS INJURIAS,

COMO O FOY O SER APANHADA NO BANANAL COM HUM FRADE COMO JA

DISSEMOS: MAS ELLA ATRAVESSADA GRACIOSAMENTE COM O POETA,

LHE FAZIA CARRANCAS TODAS AS VÊZES, QUE O VIA.

Não posso cobrar-lhes medo,

Joana, aos vossos focinhos,

que como sois tão formosa,

cede à verdade o fingido.

Tanta olhadura através

tanto focinho torcido,

tanto pescoço empinado,

tanto esguelhado beicinho:

São modos tão estrangeiros,

alheios, e peregrinos

das perfeições naturais

do vosso rosto divino;

Que jamais podem fazer

no meu peito amante, e fino

retorceder as tenções,

nem arribar os desígnios.

Sempre caminhando avante,

nunca deixando o caminho

ando atrás de ver, se posso

chegar a vosso cativo.

Se me ferrais esta cara

cum favorzinho de riso,

me hei de rir de farto então

do mundo, e seus regozijos.

Hei de pôr-me a rir então

de sorte, que a riso fito

me hão de ter em todo o orbe

por Demócrito dos risos.

Olharei para Beleta,

e me rirei dos meninos,

que a andam sempre beliscando

qual Mona com seus bugios.

Olharei para Apolônia,

e de a ver entre os corrilhos

de tanta canastra honrada,

que é a nobreza do sítio.

Rirei de ver cada um

ir-se daqui despedido,

entonces mais carregado,

porque entonces mais vazio.

A eles pelas estradas

suspirando pelo sítio,

a ela pelos oiteiros

zombando de tais suspiros.

A eles tomando o tole

para o sertão fugitivos,

tanto fugindo dos anos,

como da conta fugindo.

A ela por capoeiras

estreando cos meninos

a baetinha dos pobres

a Serafina dos ricos.

Para a Úrsula olharei

e rirei de a ver no Sítio

parafusando caralhos

pela tarraxa do embigo.

Rirei de versos amantes,

rirei de ver os queridos,

que tendo-se por ditosos,

são em seus gostos mofinos.

E só feliz eu serei,

se logro os vossos carinhos,

e me plantais nesta cara

da vossa boca um beijinho.

Tende-me na vossa graça,

e a queixa se torne em riso,

a malquerença em amor,

e o desfavor em carinho.

PINTA O POETA AS PORQUEYRAS DE HUM FRADE, E SEUS DEPRAVADOS

MODOS EM MATERIAS AMOROSAS, SATYRIZANDO DE CAMINHO A TREZ

MOÇAS IRMÃAS DA VILA DE SAM FRANCISCO, QUE À TANTO SE INCLINAVÃO.

A vós digo, Putinhas franciscanas,

Convosco falo, manas,

Ouvi pacito, e respondei-me quedo,

Que quero me digais certo segredo;

Por que com Frades vos dormis aos pares,

E tendes ódio aos membros seculares?

Não sois vós outras lâminas de prata,

Que na oficina grata,

Em que o seu malho o senhor Pai batia,

Saístes animada argentaria?

Pois como em tais diáfanos argentos

Engastais tantos membros fedorentos?

Era qualquer de vós prata sem liga,

E hoje, não sei, se diga,

Liga fazeis co chumbo vil de um Frade,

Que dá com chumbo, e faz a caridade;

Ó infaustas moças na mofina raras,

Que fazem tais baratos de tais caras!

Que esperais, que vos dê, ou vos proveja

Um magano da Igreja,

O lixo eclesiástico do mundo,

Que é senão um Franciscano imundo,

De cujas bragas nos avisa o cheiro,

Que ali o cepo vem do Pasteleiro.

O Frade porqueirão esfamiado

Apenas tem entrado,

Quando sem mais razão, nem mais palavra

Pega, arregaça, emboca, e escalavra:

Não gasta a voz, não se detém, nem pode,

Arremete, cavalga, impinge, e fode.

O secular, que é todo almiscarado,

Já do amor obrigado

Faz à Dama um poema em um bilhete,

Cobarde o faz, tímido o remete;

Se lhe responde branda, alegre o gosta,

E se tirana, estima-lhe a resposta.

Vai no outro dia passear à Dama,

Por quem amor o inflama,

E sendo o intento ver a Dama bela,

Passa-lhe a rua, e não lhe vê à janela,

Que está primeiro em um galã composto,

O crédito da Dama, que o seu gosto.

Depois de muitos anos de suspiros,

De desdéns, de retiros,

Desprezos, desapegos, desenganos,

Constâncias de Jacob, serviço de anos

Fazem, com que da Dama idolatrada

Lhe vem recado, em que lhe dá entrada.

Com tal recado alvoroçado o Moço

Quer morrer de alvorogo,

E entregue todo ao súbito desvelo

Enfeita a cara bem, penteia o pêlo,

Galante em cheiros, e em vestir flamante

Parece um cravo de arrochela andante.

À rua sai, e junto ao aposento

Do adorado portento,

Onde cuidou gozar da Dama bela,

Se lhe manda fazer pé de janela;

Aceita-o ele, e livre do desmaio

De amorosos conceitos faz ensaio.

Querido Ídolo meu, Prenda adorada

(Lhe diz com voz turbada)

Se para um longo amor é curta a vida,

Meu amor vos escusa de homicida;

De que serve matar-me rigorosa,

Quem tantas setas tira de formosa?

Dai-me essa bela mão, Ninfa prestante,

E nesse rutilante

Ouro em madeixas de cabelo undoso

Prendei o vosso escravo, o vosso esposo;

Não peço muito não, e se o peço,

Amor, minha senhora, é todo excesso.

É modo Amor, que nunca teve modo,

Amor é excesso todo,

E nessa mão de neve transparente

Pouco pede, quem ama firmemente:

Dai-me por mais fineza, que os favores

São leite, e alimento dos amores.

Responde-lhe ela com um brando riso,

E no mesmo improviso

Ai (lhe diz) que acordou meu Pai agora,

Amanhã nos veremos, ide embora;

Fecha a janela, e o Moço mudo, e quedo

Fica sobre um penedo, outro penedo.

Fará isto um Fradinho Franciscano?

Fará isto um magano,

Que em casos tais quer ir com tudo ao cabo,

E fede ao budum como o diabo?

Um Frade porqueirão, e esfamiado

Não fia nos primores tão delgado.

Pois, Putas sujas, desaventuradas,

Que não vedes a grande diferença,

Que vai de uma fodença a outra fodença?

Ora em castigo igual a tais maldades

Praza o Amor, que vos fodam sempre Frades.

FESTEJA UMA PIPA DE VINHO, QUE ENTROU NO CONVENTO DE

S. FRANCISCO DAQUELLA VILLA.

Na nova Jerusalém,

na nossa Cidade Santa,

onde São Francisco planta

mais virtudes, que ninguém:

veio sobre um palafrém

um Rabi rubi empipado,

que por nos ser prometido,

foi com ramos aplaudido,

e entre palmas festejado.

O Pissarro Sacristão

ia com a cruz alçada,

que é cerimônia forçada

em tão alta procissão:

para os tocheiros então

dous leigarrões convocamos,

que por seus nomes chamamos

o Rabelo, e o Doutor,

que a Dominga do Tabor

transfigurou na de Ramos.

Criam os mais fariseus,

que o vinho das malvasias

era em verdade o Messias

esperado pelos seus:

por esta causa os sandeus,

como o vinho entrava já,

cuidando, que era o Maná,

qualquer com galhofa interna

com seu ramo de taverna

lhe ia cantando hosaná.

Como a procissão chegasse

ao refectório, e ali

esperasse o tal Rabi

por um burro, que o levasse,

não faltou naquela classe

um burro de boa idéia,

que trazendo a taça cheia,

soube mudar o Senhor

dentre as glórias do Tabor

às bodas de Galiléia.

O nosso Miguel Ferreira

por ser do corpo pigmeu

fez figura de Zaqueu

trepado sobre a figueira:

vendo a sua borracheira,

e haver já bebido um tacho,

lhe disse o Rabi, Borracho,

descendo, que desta vez

tendo entrado português

hás de sair um gavacho.

DA CAJAIBA FOY CONVIDADO O POETA COM THOMAZ PINTO BRANDÃO

 E OUTRO CAMARADA MAIS PARA IREM A PERNAMERIM, ONDE FORAM

  RECEBIDOS, COMO SE VE DESTAS DÉCIMAS.

Fomos a Pernamerim

os três de la vida airada

dous Irmãos, e um Camarada

na Canoa do Rolim:

chegamos ao porto enfim,

e fomos com tal grandeza

banqucteados na empresa,

que eu cri, quando isto passava,

que o homem nos esperava

ao Canto, porém da mesa.

Tal ano, e tal abastança,

tanto dispêndio em tal era,

bem mostra, que estava à espera

todo armado de papança:

investidos com pujança,

e com valor assaltados

de uns pratos bem reforçados,

que havíamos de fazer?

foi-nos forçoso morrer

a puros saca-bocados.

Eu não pudera comigo

nem o ventre desbastara,

se um emplastro não botara

todas as noites no embigo:

vira-me em grande perigo,

e na última fadiga,

se uma, e outra rapariga

a Catona, e a Felipa

co emplastro da sua tripa

me não digere a barriga.

Dava-me pouco cuidado,

que aos dous Moucelos galantes

as Moças quisessem antes,

do que a mim cepo cansado:

talvez me punha amuado,

desconfiado, e zeloso,

mas como eles se fartavam,

muitas vezes me largavam

os sobejos do seu gozo.

A terra é um paraíso,

as Moças uns serafins,

nós aliviamos os rins,

porém perdemos o siso:

a Lua em todo o seu riso,

quando luz na ardente Zona,

não é mais galharda, e ampona,

que uma aurora, que ali via,

que sempre me amanhecia

entre os dentes de Catona.

Entrei no Pernamerim

muito são, muito escorreito,

e estou hoje tão sujeito,

que me lastimo de mim:

se hei de ir pior, do que vim,

leve o diabo a Canoa,

que me trouxe sempre à proa

arrimado a um pirajá

por ver uma Tona má,

deixando uma Quita boa.

Eu me vou daqui benzendo,

maldizendo, e praguejando,

quantas me trazem berrando,

e por quantas vou morrendo:

hei de dizer, o que entendo,

e não me hei de arrepender,

pois não vi aqui mulher,

que não fosse em seu fretar

sempre inimiga do dar,

e amiga de receber.

Vou deixando esta ma terra

por outro melhor lugar,

e se a vinda foi por mar,

será a volta por serra:

quem da terra me desterra,

é aquilo, que vim buscar,

putas me hão de desterrar

do mundo, até descobrir

uma, que em vez de pedir

me rogue por lho aceitar.

Fingiu-se triste Catona,

porém não chorou migalha,

que os estilos da canalha

não usa uma sabichona:

mui severa, e mui ampona

tragou esta despedida,

e nisto não foi fingida,

que como eu a enfadava,

em meter ausente, estava

pendente sua alma, e vida.

É verdade, que ao depois

serenou o tempo, e o dia,

e como abrandou Luzia

lhe meti na vinha os bois:

sois uma puta, não sois,

houve questão, houve rinha

entre as negras da cozinha,

estando todas cuidando

que assim me iam praguejando,

coçaram-me a borbulhinha.

Chegou a segunda-feira

dia da minha partida,

e então vi a minha vida

na fadiga verdadeira:

porque chorou de maneira

Luzia, que a ser aurora

tão negra, e tão pecadora,

dissera, que a aurora via,

que quando nos céus se ria,

entonces no Campo chora.

Tanto os cavalos andaram,

que estamos nesta ladeira,

onde foi Quita a primeira,

com quem meus olhos toparam:

té os cavalos rincharam

ledos por lisonjear-me:

aqui vim aliviar-me,

e aqui cantar me ouvireis,

já agora descansareis,

cuidados, de atormentar-me.

QUERIA O POETA DIVERTIR SEUS AMOROSOS INCENDIOS COM HUMA MOÇA

ALI ASSISTENTE, E PEDINDO-LHE ESTA DINHEYRO ANTECIPADAMENTE,

ELLE LHE RESPONDEO COM ESTAS DÉCIMAS.

Eu perco, Nise, o sossego,

e não posso isto entender,

pois vos queixais de não ver,

e eu sou triste, o que ando cego:

que heis de ver? se do pespego,

fugis com ligeiro passo?

não corrais, um breve espaço:

parai: não vos ausenteis

deitai-vos, que vós vereis,

mais vereis, o que eu vos faço.

Eu sou vosso companheiro

nestas cegueiras impias,

pois há mais de trinta dias,

que não posso ver dinheiro:

eu não sou home embusteiro,

hei de vos satisfazer,

e se quereis corriger

a vista sem mais antolhos,

esfregai mui bem os olhos,

e esfregada haveis de ver.

Não me trazeis vós tão farto

que vos deva eu um vintém,

e em Parnamerim ninguém

paga à puta antes do parto:

vós não me entrais no meu quarto,

nem eu os quartos vos bato,

e não sou tão insensato,

que inda que faminto ando,

vos vá o pato pagando,

se sei que outro coma o pato.

Desta sorte, Nise ingrata

de querer de antemão ver,

temo, que sempre heis de ter

na vista essa catarata:

não vereis ouro, nem prata,

e pois vos desassossega,

o jimbo, que se vos nega,

nunca, Nise, o heis de ver,

porque do muito querer

de faminta estais tão cega.

RECEOSA SUZANA DAS CUTILLADAS DO POETA LHE PEDIO, DEPOIS DE SER

DELE GOZADA, QUE A NÃO SATYRIZASSE: MAS POR ISSO MESMO LHE

DESANDA COM ESTAS DÉCIMAS.

Não me posso ter, Susana,

por mais que mo encomendastes,

quando comigo cascastes,

que vos não cante a pavana:

fostes tão grande magana

naquele Xesmeninês,

que rebolando através

entendi, que em tal venida,

segundo estáveis ardida,

queria vir-vos o mês.

Vós mesma me confessais,

que sois tão quente mulher,

que antes do mês vos correr

mais do que nunca arreitais:

e depois quando enxugais

o canal, por onde corre,

tal desejo vos ocorre,

que se à borda já afligida

Perico lhe não dá vida,

ela por Perico morre.

Puta, que tanto se esvai,

antes que o menstro lhe aponte,

é que o caldo que entrou ontem,

lhe dá gosto, quando sai:

bem encaminhada vai,

quem por tal vasilha bebe,

pois a suportar se atreve,

que o gosto se lhe repita,

uma vez quando o vomita,

outra vez, quando o recebe.

E assim é de coligir,

quando na praia me destes,

que estava, pois tanto ardestes,

o menstro para vos vir:

tomara eu sempre advertir,

e saber, quando vos vem,

e quando se vai também,

porque então me fora à praia

a tempo que a mazumbaia

a não negais a ninguém.

REMETTE AGORA OS SEUS CUYDADOS À MULATA LUZIA, QUE TAMBÉM

EMBARAÇADA E DUVIDOSA SE OFFENDERIA, OU NÃO À SEU AMANTE,

SEMPRE SE DESCULPAVA.

Parti o bolo, Luzia,

que assim mesmo me acomoda,

não deis a fatia toda,

dai-me parte da fatia:

quem pede, como eu pedia,

pede tudo, o que lhe importa,

e aceita, o que se lhe corta,

e quem dá com manha, ou arte,

seus dados sempre reparte,

se tem mais pobres à porta.

Não é bem, que tudo eu cobre,

e é bem, que um pouco me deis,

dai-me um pouco, alegrar-me-eis,

com pouco se alegra o pobre:

não deis cousa, que me sobre,

dai-me sequer um bocado;

mas o que vos persuado,

que deis com manha, e com arte

dando-vos, e de tal parte,

sempre será grande o dado.

Se a todos cinco sentidos

não tendes cousa, que dar,

dai ao de ver, e apalpar,

os dous sejam preferidos:

não deis que ouvir aos ouvidos,

mas dai aos olhos, que ver,

ao tato, em que se entreter,

deitemos a bom partir

os dous sentidos a rir,

e os demais a padecer.

As mãos folgam de apalpar,

os olhos folgam de ver,

os dous logrem seu prazer,

os três sintam seu pesar:

que depois que isto lograr

virá o mais por seu pé,

que inda que ninguém mo dê,

nem eu o tome a ninguém

morrerá vosso desdém

à força da minha fé.

Dizeis, que quereis tomar

para dar vosso conselho,

quereis conselho de velho?

nunca o tomeis para o dar:

os olhos se hão de fechar

para o dar, e abrir da mão

com razão, ou sem razão,

que os negócios, que se tratam

com conselhos, que dilatam

nunca se conseguirão.

Se conselhos não tomais,

quando alvedrios rendeis,

como conselhos quereis,

quando alvedrios pagais?

Sem conselho me matais,

e dais-me a vida em conselho?

este estilo é já tão velho

na escola da tirania,

que da mais tirana harpia

podereis vós ser espelho.

 

TEVE NAQUELLA VILLA NOTICIA DE HUM PEDREYRO QUE DESESTIMAVA

HUA POBRE MULHER, QUE FOR DESGRAÇA LHE CAHIO NAS MÃOS, ELLA

OFFENDIDA DO SEU MAO TERMO, SE RETIROU EM DESPIQUE PARA

A PODER DE HUM HOMEM DE BEM, ONDE MELHOROU

DE ESTIMAÇÃO, AO QUE FEZ O POETA AS SEGUINTES DÉCIMAS.

Senhor Mestre de jornal,

quem vir o seu coração,

dirá, logo, que é torrão,

não obra de pedra, e cal:

e se acaso por mou mal

não foi constante comigo,

sendo pedra, e cal consigo,

caia, e quebre a bom conselho

que assim faz um muro velho,

e assim o casebre antigo.

Se lá trata cães surrados,

e cuida, que me dá pique,

ou tomo por meu despique

tratar com homens honrados:

os seus jornais acabados,

acabou-se-lhe a comenda:

eu tenho segura a renda,

porque um homem principal

sem suar com pedra, e cal

dá muchíssima fazenda.

A Dama do jornaleiro

muito sua, e pouco medra,

cuida, que pega na pedra,

se a mão toma a um pedreiro:

eu dei num mau paradeiro,

mas soube-me retirar,

que se me deixo beijar

do pedreiro, que me toca,

fora meter-me na boca

pedra, e cal para amassar.

Lá faça a sua bambolha,

onde há tão pouca mulher,

que pela sua colher

vá comendo sobre a trolha:

eu cá como a limpa olha

mui limpa, cheirosa, e grata,

e ao menos colher de prata,

e sou tão firme em pegá-lo,

que regalo por regalo

cuido, que não fico ingrata.

Graças a Deus, que me soa

a limpeza o meu amor,

e me não fede o suor

do pedreiro, que me enjoa:

já agora me sinto boa,

já agora o gosto me pede,

que seja formosa adrede,

pois feia talvez se pára

a mulher, que troce a cara,

tendo amante, que lhe fede.

Adeus pois, meu Pedreirinho,

adeus, meu colher, e trolha

adeus caldo de má olha,

adeus triste raposinho:

que eu posta no meu cantinho

entre os meus mariscadores

como os mariscos melhores

o bom peixe, e não o mau,

nem o duro bacalhau

de pedreiros malhadores.

CORRESPONDEO A MOÇA COM HUM GRANDIOSO PRESENTE DE DOCES,

QUE NA CAJAIBA DEVORÁRAM OS AMIGOS DO POETA.

Para mim, que os versos fiz

de graça, um só doce basta,

mas já sei, que sois de casta

de fazer doces gentis:

e pois a fortuna quis

dar-me em prêmio esta fartura,

pintando uma formosura,

agora por nova empresa

digo da vossa grandeza,

que sois ávida doçura.

Veio a frota da Guaíba,

entrou, e tomando terra,

achou duas naus de guerra

de combói té a Cajaíba:

estava eu vendo de riba

o Serigipe famoso,

quando vi com vento airoso

vir entrando pela barra

por cabo Inácio Pissarra,

e por fiscal João Cardoso.

Toda a Ilha se alvoroça

adivinhando a fartura,

porque esta vida doçura

já fora esperança nossa:

toda a artilharia grossa,

com que esta terra guardamos,

entre vivas disparamos,

e toda a gente de pé

cos olhos em Marapé

vi gritar "a ti bradamos."

Partiu-se o doce excelente,

em que os presentes têm parte,

que entre ausentes não se parte,

o que veio de presente:

cada um se foi contente

velhos, mancebos, meninos,

e estão em rogos continos

pedindo co'a boca toda,

que o doce façais de boda,

para que sejamos dignos.

A AVÓ DESTA MESMA MÔÇA, A QUEM MANDOU OS SONHOS, QUE ELA DEU

AO POETA, COMO DICEMOS NA OBRA ANTECEDENTE, LOUVA AGORA

PARTICULARMENTE O MESMO POETA

Senhora Velha: se é dado,

a quem é vosso valido,

aplicares-lhe o sentido,

ouvi vosso apaixonado:

dá-me notável cuidado

saber, como ides urdindo

um, e outro sonho lindo,

porque me atrevo a dizer,

que para tais sonhos ter,

sempre estivera dormindo.

Diz um português rifão

nascido em tempos dos monhos,

que ninguém creia em seus sonhos,

porque sonhos sonhos são:

eu sigo outra opinião,

dês que os vossos sonhos vi,

e tão firmemente os cri;

que se os tenho por verdade,

é porque na realidade

os masquei, e os engoli.

Eu dormira todo o dia,

e a vida desperdiçando

sempre estivera sonhando,

só por sonhar, que os comia:

o sonhar é fantesia

d'alma, que quando descansa

não larga a sua lavrança,

o seu trabalho, e tarefa,

e como a minha alma é trefa,

no que lida, é na papança.

Não são sonhos enfadonhos

sonhos tão adocicados,

que em vez de sonhos sonhados

são sempre engolidos sonhos:

outros sonhos há medonhos,

que um homem deixam turbado

depois do sono acordado:

os vossos tal não farão;

e ao menos me deixaram

mel pelos beiços untados.

DESCREVE O ENCONTRO, QUE TEVE COM A MULATA ESPERANÇA

NO SITIO DA CATALLA.

Na Catala me encontrei

onte onte com Esperança

e porque à Catala fui,

dizem, que fui a catá-la.

Mentem por vida d'EI-Rei,

que mal podia ir buscá-la,

quem em sua negra vida

não tinha visto tal Parda.

Dei em buscá-la ao depois

porque a boa da Mulata

fez de andar por mim perdida

os meios de ser buscada.

Dei com ela, e perguntando,

onde vivia, e morava,

de quem era, a quem servia,

e se andava amancebada;

Ela respondeu em forma,

e disse as formais palavras

"eu, meu Senhor dos meus olhos,

e meu Doutor da minha alma,

sou cativa de você

e de Luiz Correia escrava,

onde vivo, é lá na Ponta,

onde mato, é na Catala.

Amancebada não sou,

porque a sorte me guardava

este encontro de você

para enlaçar-nos as almas.

Aqui estou a seu serviço,

veja agora, o que me manda,

que se me manda assentar,

me verá logo deitada.

Não sou mulher de invenções,

que cerimônias não gasta

com os homens de respeito,

quem corre do mundo a mafra.

Agradeci-lhe os favores

com meu par de pataratas,

fui-me chegando para ela,

fui-lhe erguendo logo as fraldas.

Fui pelas fraldas ao monte,

e quando lhe pus a palma,

foi pouca para o cobrir,

porque o monte era montanha.

Foi isto na capoeira,

e ela me cacarejava

tanto, que como à galinha,

eu galo deitei-lhe a gala.

Outra gala me pediu,

que eu prometi com mão larga,

e a hei de galar mais vezes

por lhe cumprir a palavra.

A MESMA MULATA APPARECENDO EM OUTRA OCCASIÃO AO POETA

MUY DESFIGURADA, AMARELLA, E CHEYA DE GALLICO.

Queixam-se, minha Esperança,

os que convosco têm cópia,

que sendo em sangue Etiópia,

sois nos maus humores França:

eu, que o não tomei por chança,

logo desisti da empresa

de lograr essa beleza,

porque é o mesmo, e pior

ter do mal francês humor,

que os narizes à francesa.

Se estais tão afrancesada,

que lascívia vos provoca

a dares beijos na boca,

devendo-os dar na queixada?

mas vós tendes tão trocada

a paz do nosso País

no álamo de Paris,

que como o bom português

traduzis em mau francês,

até os beijos traduzis.

Deixai mudas de uma vez,

sendo (pois vos acomoda)

ou do bom português toda,

ou toda do mal francês:

curai, inda que vos pes,

com cuidado, e sem detença

essa gálica doença,

ou borracheira gavacha,

que entre gavacha, e borracha,

há mui pouca diferença.

Se andastes qual peregrina

toda a Franca em uma alparca,

e passando à Dinamarca

voltastes de marca digna:

e que a puro pau da China

nos hemos de desmarcar,

todos podemos clamar,

de que com tantos abalos

vos fostes deitar cos Galos

a fim de nos galicar.

Dizem, que em cada tutano

do vosso corpo podrido

anda impresso, e esculpido

um reportório do ano:

matemático tirano

são os vossos olhos fritos,

e se estando mais aflitos

tudo adivinhando estão,

é triste adivinhação

pronosticar tudo a gritos.

Não quisera eu, meus amores,

aprender noite, nem dia

essa vossa astrologia

à custa de minhas dores:

saber do tempo os rigores,

do ar a serenidade

será ciência em verdade

dessa vossa pestilência,

mas tomai vós a ciência,

e dai-me a simplicidade.

A FRANCISCO FERREYRA, DE QUEM O POETA SE ACOMPANHAVA NAQUELLE

RETIRO, FALTANDOLHE HUM DIA APRAZADO PARA CERTA VIAGEM.

Não vêem, como mentiu Chico Ferreira!

Ou ele mente mais que uma cigana,

Ou não conhece os dias da semana,

E lhe passou por alto a quarta-feira.

Disse-me, que ia ver lá da ladeira

O arrozal, que plantou na terra lhana,

Porém como olhos tem de porçolana,

Em três dias não viu a sementeira.

Amanheceu o dia prometido

Formoso, alegre, claro, e prazenteiro:

Bom dia, disse eu cá, para a viagem.

Saí ao meu passeio mal vestido,

E tomando exercício de gajeiro,

Não vi vela, e fiquei como um salvagem.

AO MESMO E PELO MESMO CASO, QUE CHAMAVA AO POETA SEU

MESTRE NA SOLFA, PORQUE COM ELLE CANTAVA AS VEZES.

Quem deixa o seu amigo por arroz,

Não é homem, nem é de o ser capaz,

É Rola, Codorniz, Pomba torquaz

Não falo em Papagaios, e Socós.

Quem diz, que vai ficar dois dias sós,

E seis dias me tem neste solaz,

Tão pouco caso do seu mestre faz,

Como faz do seu burro catrapós.

Andar: ele virá cantar os rés,

E então lhe hei de entoar tão falsos mis,

Que saiba, como pica o meu revés.

Dai vós ao demo o decho de aprendiz,

Que a seu mestre deixou tão triste rês

Por quatro grãos de arroz, quatro ceitis.

A HUM VISINHO DÁ CONTA O POETA EM HUMA MANHÃA

DE INVERNO, DO QUE PASSAVA COM O FRIO.

Que vai por lá, Senhor, que vai por lá:

Como vos vai com este vento Sul,

Que eu já tenho de frio a cara azul,

E mais roxo o nariz, que um mangará?

Vós na tipóia feito um Cobepá

Estais mais regalado que um Gazul,

E eu sobre o espinhaço de um baul

Quebrei duas costelas, e uma pá.

Traz Zabel o cachimbo a fazer sono,

E se o sono pesar como o cachimbo,

Dormirei mais pesado do que um mono.

Vêm as brasas depois, que valem jimbo:

E eu de frio não durmo, nem ressono,

E sem pena, nem glória estou no limbo.

A HUM PARDO CHAMADO LOPO TEYXEYRA, POR QUEM MANDOU

O POETA COMPRAR HUAS MELAMCIAS A SAUBABARA E LHE

TROUXE MUYTO MÁ COMPRA.

Amigo Lopo Teixeira,

com a vossa cota honrada

não diz bem a verdugada

desta compra estafadeira:

fosse malícia, ou asneira

o negócio, ou mercancia,

eu por qualquer desta via

creio, que é vosso cuidado

nas demais fruitas honrado,

porém não na melancia.

Tínheis-me da vossa parte,

porque um homem sabichão

na arte da fornicação

cri, que fosse em qualquer arte:

mas vós sois um Durandarte

nisto de uma compra cara;

quem tal nunca imaginara,

ou quem me dissera a mim,

que honras de Pernamerim

se perderam na Saubara.

Quero convosco apostar,

que em sabendo desta asneira

a Marcelina Pereira,

convosco se há de agastar!

Não só vos há de negar

o débito em cima d'arca,

porém pesada da alparca

tão frouxa se há de estender,

que vos haveis de dizer:

não vi mais ronceira barca.

Marcelina não direis,

que é boa fêmea jamais,

com que os Moços alterais,

e até os velhos acendeis:

vós, amigo, amargareis

a doçura da rapina,

e direis com voz mofina

não trocarei em meus dias

por doces de melancias

o doce de Marcelina.

Vosso Filho não será

por nenhum meio ordinário

clérigo, porque o Vigário

esta tacha lhe porá:

nos banhos escreverá,

que lhe saiu na estação,

que era filho de um ladrão,

e ladrão de melancias;

tenham tudo as clerezias

amigos da fruita não.

Se sabe o Governador

desta vossa ladroíce,

acabou-se a fidalguice,

a estimação, e o amor:

heis de viver de favor

tão falto, e de tal maneira,

que a filha não será freira,

ou quem a flor lhe tirou,

se donzela a enjeitou,

a enjeitará parideira.

A vós vos há de enjeitar

até a vossa Apolônia,

porque a negra é uma demônia

em cascar, e escarnicar:

ontem lhe ouvi eu chamar

a vós, Lopo, de asneirão,

porque eu profetize, ou não,

já desde onte adivinhara,

que havia vir da Saubara

um gato, quem fora um cão.

De perjuízo tão raro,

que passará a desacato,

ninguém dirá, que barato

comprastes, senão bem caro:

este monte é tão avaro,

e vive de tais ajudas,

que por quatro tanajudas,

que querem morrer, se há visto,

mas quem compra para um Cristo,

que há de sair senão Judas.

A CUSTODIA NUNES DALTRO, QUE EM CASA DO VIGARIO DA MADRE

DE DEOS O HAVIA CURADO DE HUMA CIATICA QUE PADECIA EM

HUM QUADRIL COM TREZ FACAS QUENTES.

Creio, Senhor Surgião,

que esta dor, que padecia,

era uma grande heresia,

e vós sua inquisição:

dor de tão má condição,

que sendo-lhe o fogo dado

me deixou tão descansado,

creio, pois fogo a curou,

que o meu cu hereticou,

se com razão foi queimado.

Se a dor era no quadril,

que me tinha tão cansado,

deixa-me agora o cuidado

do que dirão no Brasil:

entre bocas mais de mil

mais de mil falsos computo,

mas já nisto não disputo,

que diga a gente parleira,

vendo queimar-me a traseira,

que ma queimaram por puto.

Mas saiba este povo louco,

porque atrás me não carcoma,

que eu não peco de Sodoma,

nem de Gomorra tampouco:

o Céu, por Juiz invoco,

que este achaque tão iníquo

ganhei desde tamanico,

e agora maior de idade

passou à ventosidade

repassada em mal galico.

Achaque fora: esta vez

quem de mim se lastimou,

um bom Português queimou,

por livrar um mal francês:

queimou-me com facas três,

por me tirar a mazela,

e usando a maior cautela

sebo na parte me untou,

e como a quilha ensebou,

me mandou pôr logo a vela.

ENGRANDECE O POETA A ILHA DE GONÇALLO DIAS ONDE VARIAS

VEZES FOY REFUGIADO, E FAVORECIDO DO MESMO SENHORIO.

Ó Ilha rica, inveja de cambaia

Fértil de peixe, frutas, e marisco,

Mais Galegos na praia, do que cisco,

Mais cisco nos Galegos, que na praia

Tu a todo o Brasil podes dar vaia,

Pois tantos lucros dás a pouco risco:

Tu abundas aos Filhos de Francisco

Picote de cação, burel de arraia.

Tu só em cocos dás à frota o lastro,

Fruta em tonéis, a china às toneladas

Tu tens a sua carga a teu cuidado.

Se sabe o preclaríssimo Lancastro,

Que tais serviços fazes às armadas,

Creio, que há de fazer de ti um condado

A HUMA MENINA FILHA DO MESMO GONÇALLO DIAS, A CUJA DISPOSIÇÃO

FICÁRAM SEUS PAYS O BOM AGAZALHO DO POETA, QUE PAGOU CENTO

POR HUM COM ESTE REGALLADO, E FREQUISSIMO ROMANCE.

Passei pela Ilha Grande,

Onde vi Senhora Cota

tão formosa, que ensinava

as flores a ser formosas.

Tão galharda, e tão luzida,

que ensinava em sua escola

as luzes a ser estrelas,

os astros a ser auroras.

A ser sol o mesmo sol

ensina a boa da Moça,

e quer por bem assombrada,

que o sol luza a sua sombra.

Quis Deus, que fui de passagem,

que fui (digo) ida por volta,

saltei para voltar logo,

que aliás raios vão fora.

Raios vão fora, que saem

os raios de Maricota

a ser vida das discretas,

a ser alma das formosas.

Ela me hospedou então,

corri pela sua conta,

que o Pai não disse palavra,

e a Mãe não pôs mãos em cousa.

Deu-me a rapariga uns sonhos

tão ricos como ela própria,

sonhava em me regalar:

não foi mentira, o que sonha.

Visitou-me sua Avó,

que é mui honrada pessoa,

fez-me mil honras por certo,

só quem tem honra, dá honra.

Assim o façam meus Filhos,

como então o fez Macota,

governo como cem velhas,

presteza como mil moças.

Queira Deus, minha Menina,

queira Deus, Senhora Cota,

que eu dure por tantos anos,

que inda assista a vossas bodas.

Hei de alegrar-me de sorte,

e fazer tanta galhofa,

que os que à vossa boda assistam,

me tenham por sal da boda.

Vós mereceis, que vos casem

com um Príncipe de Europa,

porque tendes tão bom dote

na cara, como na roupa.

Tende-me na vossa graça,

e tereis em minhas coplas,

se não um grande serviço,

esta pequena lisonja.

DESCREVE A ILHA DE ITAPARICA COM SUA APRAZIVEL FERTILIDADE,

E LOUVA DE CAMINHO AO CAPITÃO LUIZ CARNEYRO HOMEM

HONRADO, E LIBERAL, EM CUJA CASA SE HOSPEDOU.

Ilha de Itaparica, alvas areias,

Alegres praias, frescas, deleitosas,

Ricos polvos, lagostas deliciosas,

Farta de Putas, rica de baleias.

As Putas tais, ou quais não são más preias,

Pícaras, ledas, brandas, carinhosas,

Para o jantar as carnes saborosas,

O pescado excelente para as ceias.

O melão de ouro, a fresca melancia,

Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa

O sol inquisidor de tanto oiteiro.

A costa, que o imita na ardentia,

E sobretudo a rica, e nobre casa

Do nosso capitão Luís Carneiro.

AUSENTE POR HUNS DIAS O POETA, E PÔSTO NA ILHA GRANDE POR

CERTAS DIFFERENÇAS, QUE TEVE COM ANDRÉ BARBOZA,

ESCREVE AOS AMIGOS SUAS SAUDADES.

Que vai por lá, Senhores Cajaíbas,

Vocês se levam vida regalada,

com arraia chata, a curimá ovada,

Que lhes forma em dous lados quatro gibas.

Eu nesta Ilha inveja das Maldibas

Estou passando a vida descansada,

Como o bom peixe, a fruita sazonada

À vista de um amor sangue de cibas.

Vocês têm sempre à vista São Francisco

Povo ilustre, metrópole dos montes,

A cuja vista tudo o mais é cisco.

Eu não tenho, que olhar mais que horizontes,

Mas se há de olhar-me lá um basalisco,

Melhor é ver daqui a Ilha das fontes.

ESCREVE DEPOIS AOS MESMOS MIUDAMENTE O SENTIMENTO NESTA GRACIOSA

IMAGEM.

Tenho amargas saüdades

da Senhora Cajaíba,

que é, moças de grandes prendas

por Nerência, e pela Chica.

A propósito do que

sinto não ter, quem me diga,

se brotou com estas águas,

e está no tronco florida.

Se tornou já para casa,

ou se anda ainda fugida,

pois é música tão destra

nas fugas de putaria.

Sinto amargas saüdades,

como ao princípio dizia,

dos amigos um por um,

e dez por dez das amigas.

O largo, e fresco passeio

me lembra da varandinha,

onde se representavam

as comédias do Faísca.

Onde vinha o Azevedo

ter cuidado da faquinha,

que emprestava aos gaioleiros

chorando lágrimas vivas.

Onde vinha em seus tamancos

os domingos, ou domingas

a contar por Evangelho

tão conhecidas mentiras.

Onde Silvestre o virava

tanto de pernas acima

que passado, e amarelo

ou se calava, ou se ia.

Onde assistia Gregório,

e com manha, ou com malícia

todo o murmúrio encontrava,

porque crescesse a porfia.

Onde Marana também

vinha fartar-se de risa,

mas em chegando Silvestre

com Dona Marta a moía.

Eu nunca vi Dona Marta,

nem Deus tal cousa permita,

mas ela é feia mulher

pela boca das vizinhas.

Sabê-lo-á bem Silvestre,

que quando andava à vigia

pelas noites ao quintal,

via aquela alma perdida?

Quantas vezes a viu ele,

quando posta de gatinhas

espremendo, o que cegava,

punha uma cara maldita.

Mas deixemos Dona Marta,

que agora estará com Quita

em grandes razões de estado

sobre Marana, e Antonica.

Não se sabem conservar,

(dirá Quita mui torcida)

nem tomar em mim exemplo,

que sou mestra em putaria.

Já tenho dito a Marana,

que na casa aonde habita,

se dê muito a respeitar

com as negras da cozinha.

Se lhe entra por um ouvido,

sai pelo outro: é menina,

o que faz, é andar folgando

co Cabra Vicente, e Chica.

Com que lhe não tem respeito,

e se ela toma farinha

para mandar a esta casa,

qualquer negrinho lhe grita.

Tenho-lhe dito, Marana,

do peixe da pescaria

o melhor à vossa Mãe,

que assim faz a boa Filha.

Em vindo as mariscadeiras

do mangue carregadinhas,

ninguém meta a mão nos Cestos,

que os melhores são de Quita.

Remetei-os logo ao Sítio,

e fique embora vazia

a casa de vosso amigo,

porque primeiro está a minha.

Se lá tendes nessa casa

dez hóspedes cada dia,

cá tendes vossas Irmãs,

vossa Mãe, vossas Sobrinhas.

Já vedes, que estou tão magra

por passar tantas vigílias,

eu digo, que estou doente,

e sabem, que ando faminta.

Ninguém olha para mim,

e é porque a língua maldita

do Doutor tem publicado

que ando de testa caída.

Entendido está o remoque,

vós não sois mal entendida,

porque enfim saís à casta,

já sois discreta por linha.

Quando estas cousas me lembram,

que me lembram cada dia,

romperei soltas, e peias

por chegar à Cajaíba.

Mas logo o temor me toma,

e fujo, a que me persiga

a inveja do grande amigo

e do inimigo a malícia.

Eu não me quero emendar,

pois faço versos em rimas,

e às unhadas os sujeito,

de quem os corta, e belisca.

Mas por saber de vocês,

a todo o transe se arrisca

a Musa, que está a seus pés

prostrada, exposta, e rendida.

RESTITUIDO OUTRA VEZ A AQUELLA ILHA TRATA DE ENTENDER COM

JOÃO DE AZEVEDO CAYXEYRO DAQUELLE ENGENHO E COM O FEYTOR MÓR.

Viva o insigne ladrão

que todo o melado estanca

segundo Jorge da Franca

em contas, e expedição:

viva o mais fíno vilão,

que o Porto à Bahia deu,

e viva o Feitor sandeu,

que não apaga este fogo,

porque ali se joga o jogo

cal-te tu, calar-me-ei eu.

CONTINUA COM O AZEVEDO POR TER O ENGENHO PEJADO.

Um Curioso deseja

saber a razão, na qual

obrando o feitor tão mal

o engenho é, que se peja:

mas porque a razão se veja,

na que agora tenho dado,

é, porque o Feitor malvado

anda o engenho fodendo,

e destas fodas entendo,

é, que o engenho está pejado.

Para uma fúria de empenho

mel não houve, que eu levara,

e disto é, que eu tomara,

que se pejara o engenho:

sou eu logo, o que não tenho

pejo de nisto falar:

mas o que posso afirmar,

é, que estou de tão ruim fel,

que se o Feitor não dá mel,

eu mesmo o hei de melar.

AO MESMO AZEVEDO CAYXEYRO DO ENGENHO, QUE SENDO JÁ

HOMEM VELHO, E FRACO MACHEAVA HUMA NEGRA, CHAMADA

SUZANNA DE DESMEDIDA GRANDEZA.

Olha, Barqueiro atrevido,

que em teu perigo te elevas,

que essa mulher, que aí levas,

é casada, e tem marido:

olha, traidor fementido,

que te há de enforcar El-Rei,

porque és de pequena grei,

e dormes c'uma cachorra,

que a seres tu todo porra,

não eras porra de lei.

Com Susana te mangonas,

sem ver tua zarvatana,

que a cona de tal Susana

não é como as outras conas:

e se por mais que te entonas,

não lhe hás de burrar a tromba,

amaina, que o mar não zomba,

arriba, que brama o mar,

e se te queres salvar,

faze água, não dês a bomba.

Ferra, que te vais a pique,

pois sem governo a Nau geme,

e a não governa o teu leme,

por ser curto, e de alfenique:

a um tal galeão se aplique

por timão um mastaréu,

que eu sei, a qualquer boléu

que te dê esse galeão,

te há de saltar o timão

por ser de casta pigmeu.

A quilha dessa Nau zorra

em quinze braças de enxárgua,

e o que uma Nau pede d'água,

pede uma puta de porra:

se heis de pedir, vos socorra

um Barqueiro menos peco

por falta de chocameco,

a que vós não abrangeis,

ante vos não embarqueis,

do que dar co barco seco.

Essa Nau, que é capitaina

fabricada em Cajaíba,

nenhuma tormenta a arriba,

nenhum poder a amaina:

vós sois caravela zaina,

e intentáveis de a render?

boa a íeis vos fazer,

porque quando em fogo arda,

cravando-vos a bombarda

vos há de a pique meter.

Se sois caravela coxa,

saltai, mestre em terra logo,

que para a Nau caga-fogo,

não sois vós o Barbarroxa;

a vossa palavra frouxa,

dispara balas tão frias,

que dessas artilharias

se está zombando a fragata,

e atrás de maior pirata

mija em vossas alcanzias.

Neste mar de amor sereno

sois vós, quando Amor vos mande,

para capitão tão grande

o bota-fogo pequeno

não é o mar tão ameno,

nem tão falto de ondas tortas,

que a força do vento exortas

que não ponha em tais soçobras,

que pois tendes mortas obras,

não vos leve as obras mortas.

Pois vos não pondes conforme

co que vos prego no cabo,

ireis dormir co Diabo

que o Diabo é, que vos dorme,

eu sim, que estou uniforme

com tanto Julho, e Agosto,

e como velho deposto

livre da venérea empresa,

tenho os meus gostos na mesa,

na cama não tenho gosto.

A SUZANA AMAZIA DO AZEVEDO, MANDANDO AO AUTOR

  HUM PREZENTE, E NELLE VINHÃO HUMAS MOQUECAS.

Susana: o que me quereis,

que me trazeis tão mimoso,

não sou homem tão baboso,

que com pouco me enganeis:

que o vosso peixe me deis,

convém que dar-mo vos deixe,

mas é razão que me queixe,

de dar-mo, por que eu vos dê,

que não sou eu homem, que

a carne vos dê por peixe.

A mim me tremia o cu

co'as moquecas, não em vão,

pois sendo da vossa mão

qualquer peixe é Baiacu:

Jesu nome de Jesu!

ide pescar às restingas,

e mandais-me petitingas?

ardo eu em tão vivas chamas

que por um molho de escamas

hei de dar as minhas pingas?

Vós bom negócio intentais,

e à fé, que bem vos convinha

ver, se por posta na espinha

com as pinhas me comprais:

crede, que o negócio errais

pois pela mesma razão,

eu fujo dessa ocasião;

porque sou um homem tal,

que metido em um rosal

colho a rosa, e a espinha não.

Se sois a Susana mesmo

de juízo acreditado,

como imitais o pecado,

com manjares de quaresma:

ao nosso Abade Ledesma

pregando na freguesia,

ouvi dizer em um dia

(e é rifão dos Mazombos)

que a carne é, que cria os lombos

e não peixe de água fria.

Mandai-me de carne um pouco

as galinhas, e as posturas,

que eu com minhas galaduras

vos porei franga de choco:

o mais é um intento louco,

em que a tontice vos dá,

pois que sois velhinha já,

e eu tenho grande jactância

de dar a minha sustância

a quem sustância me dá.

Sou amigo do Azevedo,

prezo-me de homem fiel

não lhe hei de ser infiel

por vos dar esse folguedo:

se não vos atocha o dedo,

com que vos dorme o caixeiro,

eu não tenho palmo inteiro,

e é melhor, do que eu no vício

ele ofício, por ofício,

e dinheiro por dinheiro.

ORDENAVA-SE EM MARAPÉ O BAPTIZAMENTO DE HUMA FILHA DE BALTHEZAR

VANIQUE OLANDEZ E VIERAM À FUNÇÃO VARIOS ESTRANGEYROS COM HUMA

PIPA DE VINHO, E MALOGROU-SE A FESTA PELA MUYTA

CHUVA, QUE HOUVE.

Vieram os Flamengos, e o Padrinho

A batizar a Filha do Brichote,

E houve em Marapé grande risote

De vê-los vir com botas num barquinho.

Porque não sendo as botas de caminho,

Corriam pela praia a todo o trote;

Foi ali hospedado o Dom Bribote

Como convinha não, como com vinho.

Choveu tanto ao domingo em tal maneira,

Que cada qual Monsiur indo uma brasa,

Ficou aguado o gosto, e o vinho aguado.

Porque não quer a Virgem da Oliveira,

Que lhe entrasse pagão na sua Casa

Vinho, que nunca fora batizado.

CELEBRA A GRANDE ALGAZARRA QUE FIZERAM NA FESTA OS ESTRANGEYROS

BRINDANDO A QUITOTA MENINA BAPTIZADA, SENDO NO TEMPO DA PESTE.

Se a morte anda de ronda, a vida trota,

Aproveite-se o tempo, e ferva o Baco,

Haja galhofa, e tome-se tabaco,

Venha rodando a pipa, e ande a bota.

Brinde-se a cada triques à Quitota,

Té que a puro brindar se ateste o saco,

E faça-lhe a razão pelo seu caco

Dom Fragaton do Rhin compatriota.

Ande o licor por mão, funda-se a serra,

Esgote-se o tonel, molem-se os rengos.

Toca tará-tará, que o vento berra.

Isto diz, que passou entre Flamengos,

Quando veio tanta água sobre a terra,

Como vinho inundou sobre os Podengos.

CELEBRA SACODINDO DE CAMINHO O DEMAZIADO BEBER DESTE BALTHEZAR

VANIQUE SENDO HOMEM ACHACADO DA GOTTA NOS PÉS.

Senhor confrade da bota,

muito a Deus dos Céus deveis,

quando mil gotas bebeis,

e vos doeis de uma gota!

se a vossa alma tão devota

de beber, e emborrachar

houvesse Deus de igualar

o castigo co pecado,

gotas vos houvera dado,

como areias tem o mar.

Sois tão grande borrachão,

e em beber tão desmedido,

que trocais, o que heis comido

pelo vinho, que vos dão:

vomitais o vinho, e o pão

com repugnância mui pouca,

e a razão, que vos provoca,

é, que uma vez o bebeis,

e vomitando o quereis,

que outra vez vos torne à boca.

Quem por vinho vomitado

tanto faz, e tanto gosta,

também gostará da bosta,

também do vinho mijado:

se não fora o vinho aguado

de tão grande hidropisia,

creio, que se guardaria,

e um Flamengo Arcopagita,

o que num dia vomita,

o bebera noutro dia.

Sois tão grande bebadinho,

e tão manhoso em vertê-lo,

que bebê-lo, e desbebê-lo

é só por dobrar o vinho:

quando o levais de caminho

vai claro como do torno,

e quando do ventre morno

pela boca o vomitais,

então mui sujo o tragais

como purga de retorno.

O vinho há de ser pagão,

e não serve o vinho aguado,

porque é vinho batizado,

que enfada por ser cristão:

dai ao demo o beberrão,

que com dores, e trabalhos

não busca ao beber atalhos,

pois sem temor de acabar

crê, que muito há de durar,

porque está de vinha-d'alhos.

Sempre tive grande mágoa

em cuidar, que um mosquitinho

quer antes morrer no vinho,

do que estar vivendo n'água:

se o bofe se vos enxágua

com beber, e mais beber,

virei com isso a entender,

que em Belga, donde viestes,

de algum mosquito nascestes,

e mosquito heis de morrer.

AO FILHO DESTE BALTHEZAR VANIQUE CHAMADO JOÃO VANIQUE, E POR

ALCUNHA ATIRACOUCES INTRODUZIDO NA CONVERSA DO POETA, O QUAL

HAVIA APANHADO HUMA QUEDA ANDANDO CORRENDO NUMAS

CAVALHADAS.

Quem vos chama atirador,

não vos faz, amigo, afronta,

mas antes levai-o em conta,

porque atirador é Amor!

é verdade, que o favor,

que em tal nome se vos faz,

sua má suspeita traz,

que Amor tira arpões e fouces,

vós, dizem, que atirais coices

por diante, e por detrás.

Mas vós de tudo zombai,

que o povo é galhofeador,

tratai de ser outro Amor,

e o que quer que for tirai:

se é bom atirar, olhai

para o tiro desestrado,

que ontem vos pôs estirado,

porque vejais em rigor,

em todo o caso é melhor

atirar, que ser tirado.

Vós tendes muitos amigos,

e o mereceis em verdade,

e eu quero a vossa amizade

até no tempo dos figos:

os mais não, são todos trigos,

são falsários, desleais;

vós tanto vos esmerais

cos amigos que seguis,

que com amor os servis,

e de amores os fartais.

Sois moço bem-parecido,

galanaço, e asseado,

gentil-homem sem cuidado,

sem artifício entendido,

não afetais ser Cupido,

como há outros no lugar,

que afetação é desar,

e o artifício torpeza,

e só vós por natureza

tendes na terra bom ar.

DESCONFIADO O VANIQUE DESTES CAVILLOSOS

LOUVORES SE RETIROU DAQUELLA CONVERSAÇÃO,

E O POETA O SATISFAZ COM OUTROS PEYORES.

Vós sois, João, tão ingrato,

que outro vos meteu a febre

para papar-vos a Lebre,

e a mim encaixar-me o gato:

temo deste falso trato,

que o vosso negócio quebre,

pois porque o mundo celebre

vossa tramóia sem par,

ao mundo me hei de queixar,

que vendeis gato por lebre.

Diz-me certo Badulaque,

que as Musas fugis de ouvir,

e eu sei, que por me fugir

vos valestes desse achaque:

tendo tão bom estoraque

hoje a caçoula da Musa,

que me condena, e acusa,

quem tal cousa me condena,

se Apolo me deu a pena,

e me ditou Aretusa?

 Vós queixais-vos sem razão,

e sem causa vos sentis,

porque os versos, que ontem fiz,

são partos de uma afeição:

fugistes sem ocasião

inda por menos de um figo

só por ser meu inimigo,

e assim me destes um jeito

de dizer, que em vosso peito

não há amigo para amigo.

Toda a manhã esperei,

sem vos quereres chegar,

com que ou vós me heis de matar,

ou por vós me enforcarei:

espero, que vos verei

hoje à tarde às Laranjadas,

e inda que estão assustadas

as pedras, que aqui pisastes

da queda, que ontem levastes,

eu tomarei as pedradas.

ESTANDO O POETA REFUGIADO DE SUA MESMA POBREZA NA ILHA DE MADRE

DE DEOS, TEVE NOTICIA DA MORTE DE UM SEU FILHO, E QUE FORA

ENTERRADO MISERAVELMENTE, E PROVOCADO DA SUA PENA, FEZ ESTAS

DÉCIMAS

Ah Senhor! quanto me pesa

de vos ofender, de sorte

que sendo o crime de morte,

me castigais com pobreza:

se a nossa antiga fraqueza

e primeiro trato dobre

pena mortal, que a soçobre,

destes por lei, que eu suporto,

como me livrais de morto,

e me condenais a pobre?

Dirá vossa indignação,

que me dais pobreza, e vida,

porque viva mais sentida

minha pena, e aflição:

que os mortos não sentem não;

e assim para que eu mais sinta

a dor, que ao morrer requinta,

pois vivendo é mais amarga,

me dais a vida tão larga,

porque a morte é tão sucinta.

Seja, Senhor, o que digo,

ou outra seja a verdade,

faça-se a vossa vontade,

tenha eu vida por castigo:

e quando o tempo inimigo

a carícias me condene,

tanto eu viva, e tanto pene,

tanto padeça, e de sorte,

que se há de aliviar-me a morte,

nunca a morte me despene.

Por castigo mui pesado,

e por pena mui crescida

tenho, meu Deus, esta vida,

mas maior é meu pecado:

vós tendes contrapesado

tanto as culpas, que me dais,

que sendo a morte nos mais

um castigo tão condino,

eu nem da morte sou digno,

e por isso ma negais.

Notável detestação

fazeis, Senhor, do meu cargo,

pois não basta por descargo

a geral satisfação:

morrer foi pena de Adão

da humana prole caudilho,

e assim eu me maravilho,

pois não pude merecer,

morrendo satisfazer,

que de tal Pai seja Filho.

Se filho de Adão não sou,

e me despe a humanidade

vossa justa impiedade,

isso me desconfiou:

pois não só me despojou

do bom sangue sucessivo,

que me fez vosso cativo,

senão que se de Pai tal

não sou filho natural,

mal serei vosso adotivo.

Meu Deus, meu Pai, meu Senhor,

lembra-me, quando dizíeis,

que uma ovelha, que perdíeis,

vos dava a pena maior:

eu sou a ovelha pior,

de quantas vós pastorais,

e se os suspiros, e ais

de uma ovelha tão sentida

são sinais de estar perdida,

que fazeis, que a não cobrais?

As noventa e nove unidas,

que andam no vosso rebanho

adrede as desacompanho,

porque estimais as perdidas:

sendo eu das mais desunidas,

que tinha o vosso redil,

como a cura pastoril

vos falta de me buscar,

se eu sei, que por me afastar

valho mais que quatro mil?

Se acaso me desprezais,

porque estou pobre de lã,

se hoje sou pobre, amanhã

terei lã como as demais:

vós mesmo me despojais,

bem que por meios humanos,

pois sirvam-me os vossos danos

e farei, que não se entenda,

que o bom para minha emenda

é mau para os vossos panos.

Os vossos altos decretos,

e juízos escondidos

não alcançam meus sentidos

rasteiros, quanto discretos:

mas se bastam meus afetos,

se basta a triste memória,

com que refiro esta história

de estar pobre por desgraça,

dai-me os bens da vossa graça,

para adquirir os da Glória.

AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO.

Estou, Senhor, da vossa mão tocado,

E este toque em flagelo desmentido

Era à vossa justiça tão devido

Quão merecido foi do meu pecado.

Menos sentido estou, do que admirado,

Mais admirado o digo, que sentido,

Pois vós contra um nonada enfurecido

Tendes tão forte braço levantado.

Quando o Hebreu clemência vos pedia,

De metal vos mostrava uma serpente,

Demonstração de que outra o afligia:

Eu pois, que vos quisera ver clemente,

Não vos mostro em metal minha agonia,

Mostro a minha pobreza realmente.

CHORA O POETA A MORTE DE HUM SEO FILHO, CUJO PEZAR

DEO MOTIVO A PRIMEYRA OBRA SACRA DESTE LIVRO.

Querido Filho meu, ditoso esprito,

Que do corpo as prisões tens desatado,

E por viver no Céu tão descansado,

Me deixaste na terra tão aflito.

Tu mais do que teu Pai és erudito,

Muito mais douto, e mais exprimentado,

Pois por ser Anjo em Deus predestinado

Deixaste de homem ser talvez precito.

Se de achaque de um Sol, do mal de um dia

Entre um doce suspiro, e brando ronco

De toda a flor acaba a louçania:

Que muito, ó Filho, flor de um pau tão bronco

Que acabe a flor na dócil infancia.

E que acabando a flor, dure inda o tronco.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

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