Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obra Poética de Gregório de Matos


Edição de Referência:

Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,

Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.

MARIA

À SUA MULHER ANTES DE CASAR.

LISONJEIA OUTRA VEZ IMPACIENTE A RETENÇÃO DE SUA MESMA DESGRAÇA, ACONSELHANDO A ESPOSA NESTE REGALADO SONETO.

TERCEIRA VEZ IMPACIENTE MUDA O POETA O SEU SONETO NA FORMA SEGUINTE.

RECATAVA-SE PRUDENTEMENTE ESTA BELEZA DAS DEMASIAS DE SEU FUTURO ESPOSO, MAS ELE AVALIANDO ESTE DESDÉM POR TIRANIA RECORRE SEGUNDA VEZ AOS MONTES, COMO ESCARMENTADO DE AMOR NO PRIMEIRO OBJETO.

DESCREVE COM GALHARDA PROPRIEDADE O LABIRINTO CONFUSO DE SUAS DESCONFIANÇAS.

OUTRA IMAGEM NÃO MENOS ELEGANTE DA MATÉRIA ANTECEDENTE.

INCREPA JOCOSAMENTE AO RAPAZ CUPIDO POR TANTAS DILAÇÕES.

ROMPE O POETA DESCONFIADO ARDENDO EM LABAREDAS DE AMOR COM ESTA VENERANDA ANATOMIA D'ALMA.

QUIS O POETA EMBARCAR-SE PARA A CIDADE E ANTECIPANDO A NOTÍCIA À SUA SENHORA, LHE VIU UMAS DERRETIDAS MOSTRAS DE SENTIMENTO EM VERDADEIRAS LÁGRIMAS DE AMOR.

ETERNIZA O POETA AQUELAS LÁGRIMAS COM OS PRIMORES EXCELENTES DO SEU MILAGROSO ENGENHO.

AO MESMO ASSUNTO E NA MESMA OCASIÃO.

REMETE À SUA ESPOSA A SEGUINTE OBRA, CHOVENDO PRÊMIOS À AQUELA DEMONSTRAÇÃO DE AMOR.

DESPEDIDO O POETA DE SUA SENHORA, E POSTO COM EFEITO NA CIDADE, LHE ENCARECE DESDE ELA OS RIGOROSOS TORMENTOS DE AMOR, QUE PADECE CAUSADOS DE SAUDADE PELA AUSÊNCIA DA SUA VISTA, NESTAS TÃO CHOROSAS, QUÃO SAUDOSAS DÉCIMAS.

ACOMPANHOU ESTAS TÃO SAUDOSAS QUATRO DÉCIMAS ESTE SONETO.

CASADO JÁ O POETA, ENTRA AGORA POR RAZÃO DE HONESTIDADE A MUDAR-LHE O NOME NAS OBRAS SEGUINTES. LISONJEIA-LHE O REPOUSO EM UM DOS PRIMEIROS DIAS DO NOIVADO NO SÍTIO DE MARAPÉ.

SEGUNDA LISONJA EM QUE EXCEDE SUA ESPOSA A TODA A NATUREZA.

PRIMEIRO ARRUFO DE SUA ESPOSA POR CAUSAS, QUE O POETA LHE DAVA EM SEUS DESCUIDOS.

A UMA DOR DE DENTES, DE QUE SUA ESPOSA SE QUEIXAVA TODAVIA DESDENHOSA.

GALANTEIA O POETA AQUELE DESDÉM COM UM RAMILHETE DE FLORES REMATADO COM UMA FIGUINHA DE AZEVICHE.

REJEITA SUA ESPOSA O RAMILHETE DE FLORES E O POETA PROSSEGUE NO MESMO GALANTEIO TORNANDO-O A MANDAR COM ESTE.

SEGUNDO ARRUFO, EM QUE A ESPOSA TEVE NOTÍCIA DE CERTO DESTRAIMENTO DO POETA E ELE SE DESCULPA COM DIZER, QUE HOMEM POBRE: NÃO TEM VÍCIOS.

ENFERMOU ZELOSA A SUA ESPOSA DE UMA DOR DE GARGANTA E SANGRADA, LHE GALANTEIA O POETA A ENFERMIDADE.

CONTINUA O POETA EM LISONJEAR AS SANGRIAS DE SUA ESPOSA.

ROGA O POETA À SUA ESPOSA, QUE SUSPENDA O REMÉDIO DAS SANGRIAS. IMPACIENTE O POETA DE TÃO DEMASIADO RIGOR LANÇA O RESTO DE SUAS FINEZAS PARA ABRANDAR SUA ESPOSA.

LISONJEIA FINALMENTE A CONVALESCENÇA DE SUA ESPOSA.

MARIA

Divertia o Doutor Gregório de Mattos aquelas tristes memórias de seu desprezo em casa de Vicente da Costa Cordeiro Senhor de engenho em Marapê, onde casualmente viu, para perder-se outra engraçada Formosura. Chamou-se Maria de Povos, sobrinha do tal Vicente da Costa, homem poderoso, e amigo do Poeta. Era viúva muito honesta, e formosa; e assim se resolveu a pedi-la a seu Tio por esposa, o qual como homem de bem, atalhando as venturas da sobrinha pobre, persuadia à seu amigo, que não se despenhasse em maior abatimento de pobreza; e nestas lidas se dilatavam os desposórios: a propósito do que, fez a seguinte obra.

Manuel Pereira Rabelo, licenciado.

Mas eu não me queixo delas

que de nenhuma mulher

má, ou boa há de queixar-se

homem, que juízo tem

À SUA MULHER ANTES DE CASAR.

1 Os dias se vão,

os tempos se esgotam,

para todos trotam,

só para mim não:

tanta dilação

quem há de curtir?

O tempo a não vir,

e eu por meu pesar

sempre a esperar,

o que tanto foge;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

2 O tempo sagrado

vem com tal vagar,

que deve de andar

manco, ou aleijado:

eu com meu cuidado

morto por vos ver,

e o tempo a deter

a dita, que espero,

da qual eu não quero,

que ele me despoje;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

3 Por uma hora mera,

que Píramo andara,

e à Fonte chegara,

onde Tisbe o espera,

nunca acontecera

colar-se de emboque

no seu mesmo estoque,

deixando uma ponta,

onde a Moça tonta

a morrer se arroje;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

4 Por uma hora avara,

por um breve instante,

que Leandro amante

no mar se arrojara,

nunca se afogara,

e Eros de tão alto

não dera tal salto;

porque quis o fado,

que ela, e o afogado

a praia os aloje:

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

5 Hoje poderei

convosco casar,

e hoje consumar,

amanhã não sei:

porque perderei

a minha saúde,

e em um ataúde

me podem levar

o corpo a enterrar,

porque vos enoje:

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

LISONJEIA OUTRA VEZ IMPACIENTE A RETENÇÃO DE SUA MESMA DESGRAÇA, ACONSELHANDO A ESPOSA NESTE REGALADO SONETO.

Discreta e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora

Em tuas faces a rosada Aurora,

Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia

O ar, que fresco Adônis te namora,

Te espalha a rica trança voadora,

Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,

Que o tempo trota a toda ligeireza,

E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade

Te converta em flor, essa beleza

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

TERCEIRA VEZ IMPACIENTE MUDA O POETA O SEU SONETO NA FORMA SEGUINTE.

Discreta, e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo claramente

Na vossa ardente vista o sol ardente,

E na rosada face a Aurora fria:

Enquanto pois produz, enquanto cria

Essa esfera gentil, mina excelente

No cabelo o metal mais reluzente,

E na boca a mais fina pedraria:

Gozai, gozai da flor da formosura,

Antes que o frio da madura idade

Tronco deixe despido, o que é verdura.

Que passado o zenite da mocidade,

Sem a noite encontrar da sepultura,

É cada dia ocaso da beldade.

RECATAVA-SE PRUDENTEMENTE ESTA BELEZA DAS DEMASIAS DE SEU FUTURO ESPOSO, MAS ELE AVALIANDO ESTE DESDÉM POR TIRANIA RECORRE SEGUNDA VEZ AOS MONTES, COMO ESCARMENTADO DE AMOR NO PRIMEIRO OBJETO.

Montes, eu venho outra vez

aliviar-me convosco,

perdoai, se com meus ais,

vosso silêncio interrompo.

Já sabeis, montes amigos,

que amo, estimo, quero, adoro;

mas de que serve cansar-vos,

já sabeis, montes, que morro.

À conta do que me lembram

aqueles olhos irosos,

que no meu sentir são raios,

e nunca a meu ver são olhos.

Lembra-me o rico cabelo,

que na oficina dos ombros

me reforma estas meninas

de seus anéis preciosos.

Lembra-me o rosto gentil,

e ver eu no gentil rosto

escondido um não sei quê,

que me matou, não sei como.

Lembra-me logo a muita alma,

com que move o airoso corpo,

e nem debalde em o vendo

de ver tanta alma me assombro.

Oh quem pudera dizer-vos

outras mil partes, que escondo

de recatado, podendo

dizê-las de vanglorioso.

Lembra-me Marfida enfim:

mas que digo eu? que vos conto?

porque se dela jamais

me esqueço, como me acordo!

Isto pois venho a dizer-vos,

e a contar, montes, de novo,

que de mil ânsias, que planto,

um só favor não recolho.

Limitar certos favores

com fingidos pressupostos,

se não vai de estorvo alheio,

vai de desapego próprio.

Retorceder as vontades,

e esbulhar da posse os logros

toca em arrependimento,

se acaso não peca em ódio.

Desigualar as ações,

e alterar cad'hora os modos,

se é por acinte, não gabo,

se é por exame, não louvo.

Desdenhar-se a meus carinhos,

quem é afável com todos,

isso é dizer-me na cara,

que é aborrecido seu dono.

Faltar nos prometimentos,

ser pontual nos degostos,

curta nas satisfações,

larguíssima nos opróbrios:

Executar tiranias,

endurecer-se com rogos,

prezar-se de isenções,

enfim matar-me por gosto:

Que há de ser montes amigos,

senão haver feito eu próprio

ingratíssima a Marfida

a puro afeto amoroso.

Que há de ser, se o ser constante

em um fino é desabono,

e assim eu mais me malquisto,

quanto mais fino me mostro?

Que há de ser, se quando as setas

de Amor em Marfida aponto,

ela as solta contra mim,

e em meu próprio amor me corto?

Faz-me mal, o que lhe quero,

dá-me em saber, que a adoro,

e é tarde para escondê-lo

a seu juízo, e seus olhos.

Quisera ingrata chamar-lhe,

porém nem devo, nem ouso,

que em dizer mal do que quero,

desacredito meu gosto.

Tende-me, montes, segredo,

não saibam nestes contornos,

quem é a ingrata Marfida,

e o triste Pastor Ausônio.

DESCREVE COM GALHARDA PROPRIEDADE O LABIRINTO CONFUSO DE SUAS DESCONFIANÇAS.

Ó caos confuso, labirinto horrendo,

Onde não topo luz, nem fio amando,

Lugar de glória, aonde estou penando,

Casa da morte, aonde estou vivendo!

Ó voz sem distinção, Babel tremendo,

Pesada fantasia, sono brando,

Onde o mesmo, que toco, estou sonhando,

Onde o próprio, que escuto, não entendo!

Sempre és certeza, nunca desengano,

E a ambas propensões, com igualdade

No bem te não penetro, nem no dano.

És ciúme martírio da vontade,

Verdadeiro tormento para engano,

E cega presunção para verdade.

OUTRA IMAGEM NÃO MENOS ELEGANTE DA MATÉRIA ANTECEDENTE.

Horas contando, numerando instantes,

Os sentidos à dor, e à glória atentos,

Cuidados cobro, acuso pensamentos,

Ligeiros à esperança, ao mal constantes.

Quem partes concordou tão dissonantes?

Quem sustentou tão vários sentimentos?

Pois para glória excedem de tormentos,

Para martírio ao bem são semelhantes.

O prazer com a pena se embaraça;

Porém quando um com outro mais porfia,

O gosto corre, a dor apenas passa.

Vai ao tempo alterando à fantasia,

Mas sempre com ventagem na desgraça,

Horas de inferno, instantes de alegria.

INCREPA JOCOSAMENTE AO RAPAZ CUPIDO POR TANTAS DILAÇÕES.

Amor, cego, rapaz, travesso, e zorro,

Formigueiro, ladrão, mal doutrinado,

Em que lei achai vós, que um home honrado

Há de andar trás de vós como um cachorro?

Muitos dias, Mancebinho, há, que morro

Por colher-vos um tanto descuidado,

Que à fé que bem de mim tendes zombado,

Pois me fazeis cativo, sendo forro.

Não vos há de valer erguer o dedo

Se desatando a voz da língua muda

Me não dais minha carta de alforria.

Mas em tal parte estais, que tenho medo,

Que alguém poderá haver, que vos acuda,

Sem que pagueis tamanha rapazia.

ROMPE O POETA DESCONFIADO ARDENDO EM LABAREDAS DE AMOR COM ESTA VENERANDA ANATOMIA D'ALMA.

Morro de desconfianças,

e inda assim, Marfida, morro,

se duvidoso constante,

e se incrédulo devoto.

Indiscretamente acabo,

porque nesciamente troco

a vida, que tu me dás,

pela morte, que eu me tomo.

Morrendo de meus temores

sinto não morrer, meus olhos,

contente da tua mão,

se não triste de mim próprio.

Se foras minha homicida,

morrera eu, meu bem, gostoso,

mas que alegre hei de morrer

sendo o matador, e o morto?

Tu não me matas, Marfida,

que isso é só para ditosos,

dúvidas da fé me matam,

que eu mesmo levanto, e movo.

Mata-me o meu pensamento,

que a meu pesar se tem ódio

os sentidos, e as potências

dentro em meu peito composto.

Se me vejo, me acobardo,

e se te escuto, me cobro,

esforçam-me os meus sentidos,

quando me afrouxam meus olhos.

Quando te escuto, me firmo

em teu cuidado amoroso:

Vejo-me, e tanto descaio,

que de te crer me envergonho.

Ser confiado me alenta,

mata-me o estar duvidoso,

podendo viver, não quero,

querendo viver, não posso.

Se quero viver, te creio,

Se te quero crer, não ouso,

e do meu bem me desvio,

quando a meu mal me acomodo.

Que dissabores padeço,

e que desgostos suporto

por uma idéia, que finjo

num pensamento, que formo!

Morro de cousa nenhuma

mas que monta, se enfim morro?

e se enfim me mata mais

ver, que morro de tão pouco.

Quem me pusera tão longe

a mim mesmo de mim próprio,

que apartado, do que cuido,

só vivera, do que adoro.

Porém inda que me mato,

e em meu discurso me afogo,

de ti, Marfida cruel,

deveras estou queixoso.

Homicídio é dar a morte,

mas eu a ter me acomodo

por mais cruel homicídio

negar à vida um socorro.

E tu, se bem me não tiras

a vida, quando me morro,

podendo a morte estouvar-me,

jamais queres ser estorvo.

Vês-me com a morte lutando,

e em teu duro peito noto,

que à míngua de um teu carinho

fico da morte despojo.

Se tu me deixas morrer

das idéias, que componho,

de mim sem razão me queixo,

e a ti, com razão, me torno.

Quem não receia, não ama,

ser confiado, é ser frouxo,

sempre são loucos os zelos,

mas discretíssimos loucos.

E se os meus zelos te enfadam,

dá-me licença, meus olhos,

para me ter por mofino,

pois perco por amoroso.

Se das potências desta alma

te dei o domínio todo,

porque em minha alma consentes

estas idéias, que formo?

Responderás, que te indignam,

porque servem um falso antojo

ou a teu amor de injúria,

ou a tua fé de opróbrio.

Mas se és Senhora absoluta

de mim mesmo, e de mim todo,

em consentir no meu erro

dás a entender, que é teu gosto.

Marfida, eu morro, eu acabo:

e em tal hora me acomodo,

só por ser, Marfida, teu,

co'a glória de ser teu morto.

QUIS O POETA EMBARCAR-SE PARA A CIDADE E ANTECIPANDO A NOTÍCIA À SUA SENHORA, LHE VIU UMAS DERRETIDAS MOSTRAS DE SENTIMENTO EM VERDADEIRAS LÁGRIMAS DE AMOR.

Ardor em coração firme nascido!

Pranto por belos olhos derramado!

Incêndio em mares de água disfarçado!

Rio de neve em fogo convertido!

Tu, que um peito abrasas escondido,

Tu, que em um rosto corres desatado,

Quando fogo em cristais aprisionado,

Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente?

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai! que andou Amor em ti prudente.

Pois para temperar a tirania,

Como quis, que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu, parecesse a chama fria.

ETERNIZA O POETA AQUELAS LÁGRIMAS COM OS PRIMORES EXCELENTES DO SEU MILAGROSO ENGENHO.

1 Lágrimas afetuosas

brandamente derretidas,

o que tendes de afligidas,

tendes de mais poderosas:

sendo vós tão carinhosas,

quão tristes me pareceis,

que muito, que me abrandeis,

quando ausentar-me sentis,

se por me cobrar saís,

e em busca de mim correis?

2 Se correis tão descontentes,

onde ides tão apressadas?

e se andais tão recatadas,

como assim sois tão correntes?

Sendo essas vossas enchentes

formosíssimo embaraço,

que muito, que ao descompasso

de um ciúme enfurecido

nessa corrente detido

logo então perdesse o passo?

3 De ver, que vos afligistes,

que ufano fiquei então,

que alegre o meu coração,

meus olhos, de ver-vos tristes:

com razão vos persuadistes

de formar-me um novo encanto

no vosso chorar, porquanto

a fé, com que vos adoro,

se alegre no vosso choro,

se banha no vosso pranto.

4 Vendo, que eram desafogo

lágrimas da vossa mágoa,

o que era nos olhos água,

no peito vi, que era fogo:

logo vi, e entendi logo,

que como a um tronco acontece,

que ali arde, e cá umedece,

assim vós num choro brando

saís aos olhos, já quando

incêndios a alma padece.

5 Lágrimas, grande seria

uma dor, que vos condena,

que à custa da vossa pena

comprais a minha alegria:

e pois da melancolia,

que tive em tão tristes horas

haveis sido as redentoras,

do gosto, que me heis comprado

tanto à custa do chorado,

com razão sereis senhoras.

6 Sereis, pelo que agradastes,

lágrimas aljofaradas,

eternamente lembradas

destes olhos, que alegrastes:

se por mim vos derramastes,

e à custa de vossos brios

por entre tantos desvios

me buscais, fora desar,

não ser meus olhos um mar,

para recolher dois rios.

7 Lágrimas, que em vossas dores

dizíeis emudecidas

finezas jamais ouvidas

de nunca vistos amores:

pois que de vossos primores

tão subido é o arrebol,

basta, que do seu crisol

saia esta fineza enfim,

que eu vi triste um serafim,

e choroso o mesmo sol.

8 Eternamente aplaudidas,

sereis, lágrimas formosas,

pois deixais de ser ditosas

só por ser por mim vertidas:

se o valor de agradecidas

bastar a vossos matizes,

contra a nota de infelizes

podeis rir-vos de choradas,

porque de gratificadas

sois no mundo as mais felizes.

AO MESMO ASSUNTO E NA MESMA OCASIÃO.

Corrente, que do peito desatada

Sois por dois belos olhos despedida,

E por carmim correndo desmedida

Deixais o ser, levais a cor mudada.

Não sei, quando caís precipitada

As flores, que regais, tão parecida,

Se sois neves por rosa derretida,

Ou se a rosa por neve desfolhada.

Essa enchente gentil de prata fina,

Que de rubi por conchas se dilata,

Faz troca tão diversa, e peregrina,

Que no objeto, que mostra, e que retrata,

Mesclando a cor purpúrea, e cristalina,

Não sei, quando é rubi, ou quando é prata.

REMETE À SUA ESPOSA A SEGUINTE OBRA, CHOVENDO PRÊMIOS À AQUELA DEMONSTRAÇÃO DE AMOR.

Não sei, em qual se vê mais rigorosa

A força desta nossa despedida,

Se em mim, que sinto já perder a vida,

Se em vós, a quem contemplo tão chorosa.

Vós com incêndios d'alma piedosa

Mostrais a dor em água convertida,

Eu com ver-me tão longe da partida,

Nem água me deixou dor tão forçosa.

Vós, pelo que entendeis do meu sentido,

Obrais, a causa tendo inda presente;

Pagando-me antemão, quanto mereço.

Eu logo, que me vir de vós partido,

N’alma satisfarei estando ausente

Esse amor, que nos olhos vos conheço.

DESPEDIDO O POETA DE SUA SENHORA, E POSTO COM EFEITO NA CIDADE, LHE ENCARECE DESDE ELA OS RIGOROSOS TORMENTOS DE AMOR, QUE PADECE CAUSADOS DE SAUDADE PELA AUSÊNCIA DA SUA VISTA, NESTAS TÃO CHOROSAS, QUÃO SAUDOSAS DÉCIMAS.

1 Saudades, que me quereis,

que tanto me atormentais?

nunca a morte executais,

sempre a morte prometeis?

sem dúvida pretendeis

minha pena ir dilatando,

porque enquanto vou penando

tendes, onde estar vivendo,

e se acaso eu for morrendo,

por força ireis acabando.

2 Mas nem por isso a meu ver

matais menos sem matar,

que um contino suspirar

é um perpétuo morrer:

o bem na lembrança ter,

considerá-lo distante,

um receio a cada instante,

um susto a cada acidente

não são provas do vivente,

senão abonos do amante.

3 Vós sois, tirana saudade,

sendo a memória instrumento

verdugo do entendimento,

e flagelo da vontade:

acabo na realidade,

respiro nas aparências,

pois com tantas evidências

vosso rigor me desalma,

não despojado de uma alma,

afligido em três potências.

4 Oh quanto menor tormento

me deva o perder a vida,

que para dor tão crescida

já não há mais sofrimento:

a pena com tanto alento,

sem alento o coração

parecerá sem razão,

que uma mesma causa ordene,

que viva, para que pene,

e para ter vida não.

ACOMPANHOU ESTAS TÃO SAUDOSAS QUATRO DÉCIMAS ESTE SONETO.

Nos últimos instantes da partida,

Em que o rigor o golpe executava,

Vi, quando alentos no sentir achava

A morte dilatada, ou repetida.

Obrou a execução na despedida,

Que ali de vossos olhos me ausentava,

E como a vida neles me ficava,

Não pude então viver deixando a vida.

Foi de ausentar-me a morte conseqüência,

Pois estando sem vós, sem vida estive;

Mas direis, que o morrer de alentos priva.

Porém como nas mãos de uma violência,

Quem ausente padece, morre, e vive,

Foi a vida defunta, a morte viva.

CASADO JÁ O POETA, ENTRA AGORA POR RAZÃO DE HONESTIDADE A MUDAR-LHE O NOME NAS OBRAS SEGUINTES. LISONJEIA-LHE O REPOUSO EM UM DOS PRIMEIROS DIAS DO NOIVADO NO SÍTIO DE MARAPÉ.

À margem de uma fonte, que corria

Lira doce dos pássaros cantores

A bela ocasião das minhas dores

Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia

O Céu seus horizontes de mil cores;

Dominava o silêncio sobre as flores,

Calava o mar, e rio não se ouvia.

Não dão o parabém à bela Aurora

Flores canoras, pássaros fragrantes,

Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,

Tudo à Sílvia festeja, e tudo a adora

Aves cheirosas, flores ressonantes.

SEGUNDA LISONJA EM QUE EXCEDE SUA ESPOSA A TODA A NATUREZA.

Vês, Gila, aquel farol de cuja fuente

Mana la luz, que al orbe se diriva?

Vês, Gila, aquela antorcha fugitiva,

Que es de la negra noche presidente?

Vês del prado la pompa floreciente?

Miras daquel jasmin la pompa altiva?

Vês la rosa; que en purpuras se aviva?

Vês el clavel, que en granas se desmiente?

Buelve acá, Gila, mira la nevada

Voraz campaña desse mar, que aora

Cristalinos aljofares destila.

Vês essa espuma en nieve transformada?

Vês essas perlas, que lloró la Aurora?

Pues todo es nada con tu rosto, Gila.

PRIMEIRO ARRUFO DE SUA ESPOSA POR CAUSAS, QUE O POETA LHE DAVA EM SEUS DESCUIDOS.

Que presto el tiempo, Lise, me ha mostrado

En una quexa sola mil tormentos:

Pues me vuelve en pesares los contentos,

Que siempre duplicó lo venerado.

Dizir, Lise, que falta mi cuydado,

Bien puede industria ser de tus intentos,

Que en mi solo acreditan sentimientos,

Y en ti lo verifica el retirado.

Pero sin essa duda al tiempo dexas

De mis verdades solo las rasones,

De tus retiros tantas experiencias:

Calle mi quexa la rason de quexas,

Y mi obligacion repita obligaciones,

Que amor publicara las evidencias.

A UMA DOR DE DENTES, DE QUE SUA ESPOSA SE QUEIXAVA TODAVIA DESDENHOSA.

1 Ai, Lise, quanto me pesa,

que da dor, que padeceis,

a ter não vos isenteis

mais piedade, que fereza:

se deste achaque a braveza

entre ambos reparte amor,

tenho por grande favor,

que nesta amante convença

eu sinta a dor da doença,

vós a doença da dor.

2 Por razões mui aparentes

devo este mal estimar,

porque sei me há de livrar

de trazerdes-me entre dentes:

mas por causas mais urgentes

quero, que o remedieis,

e se quando o mal venceis,

a morder-me vos provoca,

perdôo o morder de boca

à boca, com que mordeis.

GALANTEIA O POETA AQUELE DESDÉM COM UM RAMILHETE DE FLORES REMATADO COM UMA FIGUINHA DE AZEVICHE.

Essas flores, que uma figa

levam consigo, meu bem,

grande mistério contêm

contra a fortuna inimiga:

pois deste amor na fadiga

indo as flores sem abrolhos

com tal figa nos refolhos,

bem se vê, que em mil amores

para vós vos mando as flores,

e figas para meus olhos.

REJEITA SUA ESPOSA O RAMILHETE DE FLORES E O POETA PROSSEGUE NO MESMO GALANTEIO TORNANDO-O A MANDAR COM ESTE.

MOTE

Perdoai-me, meus amores,

do ramilhete a figuinha,

que onde estais vós, vida minha,

uma figa para as flores.

1 Como assim, Clóri divina,

ramilhete rejeitais?

mas é porque imaginais

ser dele a melhor bonina:

Vede bem, que Amor ensina,

a que vos mande essas flores;

não me negueis os favores,

quando desejo acertar;

e se eu erro em vos amar,

Perdoai-me, meus amores.

2 Eu, Clóri, tanto que vi,

que o não estimáveis muito,

de que não fizera fruito

pela flor o conheci:

logo me compadeci

da figa por vida minha,

porquanto já certo tinha,

que nesse sol a estalar

era força o acabar

Do ramilhete a figuinha.

3 Dai-me licença, que diga,

que, a quem dá flores a molhos,

meteis a figa nos olhos

em não aceitar a figa:

porém antes que prossiga,

no que a afeição me encaminha,

digo, se dito não tinha,

sem que seja fora d'arte,

que flor não vi em melhor parte,

Que onde estais vós, vida minha.

4 Minha Clóri, e meu amor,

esse ramilhete enfim

peço aceiteis, porque assim

lhe ficais levando a flor:

e então vendo-se, Senhor

à vista de tais favores

em mãos tão superiores,

é certo, vendo-lhe a figa,

que não faltará, quem diga,

Uma figa para as flores.

SEGUNDO ARRUFO, EM QUE A ESPOSA TEVE NOTÍCIA DE CERTO DESTRAIMENTO DO POETA E ELE SE DESCULPA COM DIZER, QUE HOMEM POBRE: NÃO TEM VÍCIOS.

MOTE

Amar sin temer, que dar

o espreciar-se de muy loco,

o tener hecha la cara

al desayre de andar corto.

1 Clori, en el prado ante ayer

Vi a Fili, y tam flor estava,

que ni aun el prado dudava,

si era flor, siendo muger:

rendio-me su rocicler,

y al querer le yo en su altar

mi coraçon consagrar,

como era suyo en rigor,

tuvo por desayre Amor

Amar, sin tener, que dar.

2 Fuerça fué el arrepentir,

que es fineza desmentida

tener el alma rendida,

y bolversela a rendir:

fuerça fué entonces huir

a los desayres, que toco,

que quien con acuerdo poco

quiere al Ammor sugetar-se,

o es de loco preciar-se,

O espreciar-se de muy loco.

3 El que de loco se precia,

busca desestimacion,

pues con loca affectacion,

quiere amar, quien le desprecia:

fuera confiança nescia,

si algo de premio esperara,

y fuera, si se repara,

al desprecio, y al baldon

tener hecho el coraçon,

O tener hecha la cara.

4 No es tanto no de admirar,

que consagre a Amor dos aras,

si no que puedan dos caras

una belleza engañar:

nada me puede alterar,

ni dexar-me, Clori, absorto,

que si a galan me reporto,

por mi amor, y tu respeto,

havria de estar sugeto

Al desayre de andar corto.

ENFERMOU ZELOSA A SUA ESPOSA DE UMA DOR DE GARGANTA E SANGRADA, LHE GALANTEIA O POETA A ENFERMIDADE.

Enfermou Clóri, Pastores,

picadinha de um desdém,

que até pagam as Deidades

tributos ao bem querer.

Mandou chamar o Barbeiro,

para picar-se outra vez,

que uma picada com outra

se vem a satisfazer.

Não quer Clóri, que lhe aplique

no braço, senão no pé,

que quem é tão soberana,

não dá seu braço a torcer.

Tomou-lhe o pé o Barbeiro,

para n'água lho meter,

e sendo a água tão pouca

lhe custou a tomar pé.

Água fria pediu logo,

parecendo-lhe talvez,

que com a quente pudesse

tanta neve derreter.

Desmaiou Clóri sentida

por o golpe lhe doer,

e à fé que custa o seu golpe

gotas de sangue verter.

Com sal na boca diverte

o desmaio desta vez:

mas boca de tanta graça

nenhum sal há de mister.

Que foi remédio supérfluo,

se deixa bem conhecer,

porque, quem é luz do mundo,

sal da terra deve ser.

Logrou aqui o Barbeiro

semelhanças de Moisés,

não da pedra tirar água

da neve em sangue escorrer.

Vingou Clóri no seu sangue

o agravo, que lhe fez,

que assim faz, que tão bom sangue,

se é de ilustre proceder.

CONTINUA O POETA EM LISONJEAR AS SANGRIAS DE SUA ESPOSA.

1 Dizei, queridos amores,

dizei-me, sangrada estais?

Jesus! porque derramais

rubis de tantos valores?

Valha-me Deus! ai que dores

sinto no meu coração;

vós sangradinha, e eu são!

Se tenho a vida ferida,

não sei, como tenho vida,

tendo vós tanta aflição.

2 Dizei-me, quem vos sangrou,

Mana do meu coração?

qual foi a atrevida mão,

que assim vos martirizou?

não sei, se vos magoou.

Porém romper um cristal

ninguém pode fazer tal.

Sem penoso detrimento,

que inda que vá muito atento,

sempre lhe há de fazer mal.

ROGA O POETA À SUA ESPOSA, QUE SUSPENDA O REMÉDIO DAS SANGRIAS.

De uma dor de garganta adoecestes,

E foram, Tisbe, quando vos sangrastes,

Piques aquela dor, de que enfermastes,

Rosas aquele sangue, que vertestes.

Oh que discretamente discorrestes

No remédio, que à dor logo aplicastes.

Pois por força nas rosas, que lançastes,

Haviam de ir os piques, que tivestes.

Mas ai! que por meu mal desejo agora

Um novo mal em vós, ó Tisbe minha;

E se o pode alcançar, quem vos adora,

Peço, que suspendais essa meizinha,

Que se ainda mais rosas lançais fora,

Receio, que fiqueis posta na espinha.

IMPACIENTE O POETA DE TÃO DEMASIADO RIGOR LANÇA O RESTO DE SUAS FINEZAS PARA ABRANDAR SUA ESPOSA.

Vão-se as horas, cresce o dia,

meu tormento não se acaba;

a noite chega a meus olhos,

mas o alívio sempre tarda.

Meu coração já de aflito

não sofre tanta tardança:

a cada instante suspiro,

porque o teu rigor me mata.

Meus sentidos elevados

já não dão ascenso a nada,

tu me negas tua vista,

eu sem ti não sei, que faça.

Em um pranto todo o dia

não sossega, nem descansa

este triste, minha vida,

este pobre, minha mana.

As meninas dos meus olhos

já não vivem de esperança,

porquanto o teu coração

não se move, nem se abranda.

Olha tu, que crueldade

por ti padece minha alma,

maltratar, a quem te quer,

não querer, a quem te ama.

Baste já, que mais não posso,

não sejas, meu bem, ingrata,

que por ti vivo morrendo,

tu por mim não fazes nada.

Ai meu bem, quem tal dissera!

mas não quero dizer nada,

tu, que me quiseste muito,

me perdoa por tua alma.

LISONJEIA FINALMENTE A CONVALESCENÇA DE SUA ESPOSA.

Puedes, Rosa, dexar la vanidad;

No presumas, clavel, de enacarado:

Branca Açucena ya, y Jasmin nevado,

Dexe de blazonar vuestra beldad.

Grana purpurea aprissa retirad

Brillante rocicler gala del prado,

Si de la pompa el tiempo está acabado,

Vuestra pompa en retiros minorad.

Porque salió Maricas de un desmayo

Flor en las gallardias más vistosas,

Que brotó Primavera, Abril, y Mayo.

Pero a su vista os quedareis hermosas,

Supplicandole humildes un ensayo

Açucena, Clavel, Jasmin, y Rosas.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

Apoio

CNPq / CAPES

UFSC / PRPG