LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Obra Poética de Gregório de Matos
Edição de Referência:
Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.
PERTENDE O POETA INTRODUZIR-SE, COM A PRIMEYRA, OU SEGUNDA.
DEYXARAM ESTAS DAMAS DE IR A FESTA DA CRUZ POR FALTA DE REDE E O POETA SE MOSTRA SENTIDO DE O NÃO SABER.
INSISTE O POETA A QUERER SER AMADO DE IGNACIA.
COMO A NÃO PÔDE O POETA RENDER ENTRA A PICA-LA COM LOUVAR A APOLLONIA, E LHE DE ADVERTIR, QUE ESTAS TRATAVÃO COM HUNS MUSICOS FULANOS JARDINS, QUE MORAVAM NAS HORTAS.
IGNACIA IRRITADA DESTA SATYRA DESCOMPOZ DE PALAVRAS AO POETA E ELLE SE DESPICA COM ESTAS DÉCIMAS.
DESCONFIADO O POETA DOS DESPREZOS QUE LHE FAZIA IGNACIA ENTRA A DESCOMPO-LA POR HUM ARRISCADO PARTO QUE TEVE.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
Dá-me Amor a escolher
de duas uma demônia
ou Inácia, ou Apolônia
Branca em mulata retinta
PERTENDE O POETA INTRODUZIR-SE,
Dá-me Amor a escolher
de duas uma demônia,
ou Inácia, ou Apolônia,
e eu me não sei resolver:
a ambas hei de querer,
porque depois de as lograr
mais fácil será acertar,
que nos riscos da eleição
o seguro é lançar mão
de tudo por não errar.
Assim será: mas que monta
isto que fazer pertendo,
se dirão, que estou fazendo
sem a hóspeda esta conta:
qual delas será tão tonta,
que se acomode aos desares
de partir com seus pesares
amor, assistência, e tratos,
se as Damas não são sapatos,
que se hajam de ter aos pares.
Mas se debaixo da Luz
não val mais esta, que estoutra
eu não deixo, uma por outra,
nem escolho outra por uma,
não há dúvida nenhuma,
que ambas são moças de porte,
e se não mo estorva a morte,
ambas me hão de vir à mão,
Inácia por eleição,
e Apolônia pela sorte.
Isto que remédio tem,
sejam entre si tão manas,
que repartindo as semanas,
vá uma, quando outra vem;
que eu repartirei também
jimbo, carinho, e favor,
porque advirta algum Doutor,
que sendo à lógica oposto,
na aritmética do gosto
pode repartir-se o amor.
DEYXARAM ESTAS DAMAS DE IR A FESTA DA CRUZ POR FALTA
DE REDE E O POETA SE MOSTRA SENTIDO DE O NÃO SABER.
Quis ir à festa da Cruz
Inácia, e faltou-lhe a rede,
com que foi força ficar
Paredes sobre paredes.
Outros dizem, que uma amiga
lhe pedira o manto adrede
pela ter emparedada
todo o dia, em que lhe pese.
Não sei a verdade disto,
sei, que eu paguei a patente,
tendo um dia de trabalho,
porque de festa lho desse.
A saber, que estava em casa,
visitara-a como sempre,
e fizera, o que costumam
casados in facie eclesiae.
Fora-me pôr à janela,
porque o calor me refresque,
falara cos Guapas sujas,
que são limpas guapamente.
Mariana se agastara,
que tudo escuta, e atende,
por isso diz o adágio
"manso, que ouvem as paredes."
Sabendo deste ciúme
foram os Guapas contentes
que inda que mulheres feias,
são feias, porém mulheres.
Inácia se sossegava,
que é moça mansa, e alegre,
e com dous dedos se põem
sendo Inácia, uma clemente.
Da sua amiga me queixo,
que cão d‘horta me parece,
pois em todo o dia não
comeu, nem deixou comer-me.
Com Inácia já não quero
lançar mais barro à parede,
que de mui seca receio,
que ali meu barro não pegue.
Uma Mãe com duas Filhas
na verdade é pouca gente,
para que eu possa cantar
preso entre quatro paredes.
Três só não fazem prisão,
porque um triângulo breve,
que um signo salmão figura,
mais enfeitiça, que prende.
Mas a parede de Inácia
com ser uma tão-somente
como é tão forte, e tão rija,
bastou só para prender-me.
Perdi o ganho esta tarde,
e cuido, que para sempre;
quem ma pegou uma vez,
não quero, que outra me pegue.
Da Santa Cruz era a festa,
e a maldita da Paredes
com cruz, e sem cruz receio
me faça calvários sempre.
Eu perdi Moça, que agrada,
ela velho, que aconselhe,
ambos ficamos perdidos,
quem o vê o remedeie.
INSISTE O POETA A QUERER SER AMADO DE IGNACIA.
Inácia, vós que me vedes
em tal desesperação
remediai-o senão
dareis por essas paredes:
na malha das vossas redes
quis eu minha alma enredar
por vos servir, e adorar:
mas vós, sem que Amor me valha,
mesmo me rompeis a malha,
a fim de me não pescar.
Não vos rende o meu carinho,
porque em vossa estimação
sou já peixe sabichão,
e vós me quereis peixinho:
se com todo o meu alinho
vos não mereço o favor,
que importa o vosso rigor,
se se sabe, e vós o vedes,
que quero nessas Paredes
fundar um templo de Amor.
Quando as paredes juntemos
a vossa, que é frontal,
co'a minha de pedra e cal,
uma grande obra faremos:
a Amor a dedicaremos,
porque guarde as vossas redes,
que eu creio, e vós bem o vedes,
que tudo irá em rigor
ver as paredes de Amor,
só por amor das Paredes.
COMO A NÃO PÔDE O POETA RENDER ENTRA A PICA-LA COM LOUVAR
A APOLLONIA, E HE DE ADVERTIR, QUE ESTAS TRATAVÃO COM HUNS
MUSICOS FULANOS JARDINS, QUE MORAVAM NAS HORTAS.
A ser bela a formosura,
a beleza a ser formosa
mudamente as ensinava
a boquinha de Polônia.
Ensinava de cadeira
na academia, ou escola,
onde era lente de prima,
sendo a terceira das Moças.
A Açucena repreendia
com duas faces formosas,
por que unisse ao carmim,
para alento pouca boca.
E como o cravo é jurado
Príncipe em cortes de Flora,
se fez conselho de estado
sobre casar-se co'a rosa.
Respondeu ela, que sim,
e incendida de vergonha
ficou-lhe a boca mais cravo,
do que era o cravo na boca.
Assistir ao desposório
correu a nobreza toda,
com galas de várias cores,
porque de campo era a boda.
A nobreza dos Jardins,
que tem seu solar nas Hortas,
cortando galas de novo
veio com elas em folha.
Desposou-se Rosa, e Cravo,
mas eu creio, que da boda,
onde folgou toda a casa,
vi as Paredes queixosas.
IGNACIA IRRITADA DESTA SATYRA DESCOMPOZ DE PALAVRAS
AO POETA E ELLE SE DESPICA COM ESTAS DÉCIMAS.
Branca em mulata retinta,
quem vos meteu no caqueiro,
que uma pinga do tinteiro
não suja a mais branca tinta!
mas se sois branca distinta,
se sois sem mistura branca,
que importa, se a porta franca
tendes a todo o pismão,
aos Brancos pelo tostão,
aos Mulatos pela franca.
Vós sois mulata tão mula,
que amais fanada mulata
é negra engastada em prata,
e vós sois mulata fula:
se quem lá vai, vos adula,
e de sangue vos melhora,
porque lho deis cada hora,
dai-lo cada vez, que vá,
que na catinga verá
que sois branca como amora.
As putas do toque-emboque
são putas esfarrapadas,
são paredes arruinadas
com seu branco por reboque:
eu não meto o meu estoque
em burquéis esfuracados
porque vasos tão usados
de estoques, ou membros vivos
não são vasos, são uns crivos,
de que os membros saem relados.
Viveis no jogo da bola,
só por teres sempre à vista
o Monge, que vos conquista,
o Frade, que vos consola;
e quando vos falta a esmola
aos soldados vos tornais,
e como ali não achais
a cura, que pertendeis,
cos Frades vos corrompeis,
e assim nunca vos soldais.
DESCONFIADO O POETA DOS DESPREZOS QUE LHE FAZIA IGNACIA
ENTRA A DESCOMPO-LA POR HUM ARRISCADO PARTO QUE TEVE.
Pariu numa madrugada
Inácia, como já vedes,
e caindo-lhe as paredes
ficou desemparedada:
temo, que não valha nada,
pois tendo o vaso partido,
qual pardieiro caído,
recolherá todo o gado,
ou das chuvas acossado,
ou das calmas retraído.
E vendo, que ali se apóia
o gado no pardieiro,
dirá todo o passageiro
tristemente "aqui foi Tróia":
por aquela clarabóia
despedaçada em caqueiros
entrar eu vi cavaleiros,
que quando Tróia reinava,
apenas um a um entrava,
mas agora entram carreiros.
Não me espanto dos adornos
de uma Dama singular,
que em cornos venham parar,
porque ela parirá cornos:
mas que tantos caldos mornos
de estíticas qualidades
em tantas calamidades
não valham, são desenganos
da resolução dos anos,
da carreira das idades.
Deixai pois o artifício,
Inácia, porque bem vedes,
que ao baque de umas paredes
espirra todo o artifício:
deixai a vida do vício,
as que o seu vício eternizam,
e se a vós vos finalizam,
alerta, que as pedras falam,
que as paredes vos estalam,
que os estalos vos avisam.
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