LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Obra Poética de Gregório de Matos
Edição de Referência:
Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.
ENTRE OS SERVENTES, QUE NAQUELLA CASA ASSISTIRAM, SE NAMOROU O POETA DE CATONA COM TODAS AS VERAS, AGORA, QUE A VIO DEDILHANDO RENDAS.
SACODE ZELOSO O POETA A FERNÃO ROIZ VASSALO, QUE SE CONTRATAVA COM ESTA CELEBRADA CATONA, SENDO O VIOLISTA DAS PUTAS DAQUELLE DESTRITO: PORQUE VINDO DANÇAR COM ALGUMAS EM PRESENÇA DO MESMO POETA LHE SAHIO O MEMBRO POR ENTRE OS TRAPOS DA BARGUILHA.
FAZIA O POETA TAIS EXCESSOS POR ESTA CATONA, QUE THOMAZ PINTO, E OUTROS LHOS ESTRANHARAM, E ELLE OS INCREPA NESTAS DECIMAS DE NESCIOS NO AMOR.
COROAVA CATONA TODOS ESTES DOTES DE HUMA CONSTANCIA RARAS VEZES ACHADA EM SIMILHANTE GENTE, POIS GUARDANDO FÉ A SEU AMANTE, PUNHA O POETA EM TOTAL DESESPERAÇÃO DE QUE NASCEO A OBRA SEGUINTE.
TORNA O POETA A INVESTIR À CATONA LANÇANDO O RESTO DE SEUS EMPENHOS, E ELLA PARA SE DESCULPAR LHE RESPONDEO, QUE ESTAVA MENSTRUADA.
TORNA O POETA OUTRA VEZ A TENTAR A CATONA POR ESTILO DESHONESTO, DE QUE AS VEZES MELHOR SE PAGA SIMILHANTE GENTE.
EXAGERA O POETA SEUS AMORES À CATONA EM OCCASIÃO, QUE ELA SE QUEYXAVA DE HUMA DOR DE DENTES.
PERTENDIA O POETA RETIRAR-SE PARA A VILLA DE S. FRANCISCO E VENDO AS DUREZAS DE CATONA, LHE FAZ ESTE MEMORIAL DE FINEZAS.
DEYXA RECOMENDADO A THOMAS PINTO AS DELIGENCIAS DE ABRANDAR A CATONA, E SE DESPEDE DE PERNAMERIM EM HUM CAVALLO CHAMADO O TAINHA.
SAUDOSO DE PERNAMERIM, E SENDO ACASO TOPADO NAQUELLA VILLA HUM MOLEQUE CHAMADO O MOÇORONGO DE THOMAZ PINTO BRANDÃO SEM CARTA, NEM RECADO DO SENHOR PARA O POETA, ELLE SE MOSTRA SENTIDO NESTE ROMANCE.
POR ESTE MOLEQUE, QUE DEO AO POETA MUYTAS LEMBRANÇAS DA PARTE DE CATONA, LHE REMETTEO ELLE O SEGUINTE ROMANCE.
POR ESTE MESMO ESCRAVO ESCREVE TAMBEM O POETA A OUTRO AMIGO EM PERNAMERIM CHAMADO IGNACIO, QUEYXANDO-SE DE LHE NÃO ESCREVER, NEM LHE MANDAR NOVAS DAS FEMEAS.
MANDALHE THOMAZ PINTO DESDE PERNAMERIM ESTE ROMANCE, RECORDANDO, O QUE O POETA LÀ PASSÀRA.
RESPONDE O POETA TODO SAUDOSO A THOMAZ PINTO.
RESPONDEO THOMAZ PINTO A RECOMENDAÇÃO DO POETA, QUE A DUREZA DE CATONA NENHUM REMEDIO TINHA, POIS CADA VEZ ESTAVA MAIS FIRME AO QUE ELLE FEZ ESTE SONETO.
A PERSUAÇÕES DE THOMAZ PINTO ESCREVE CATONA AO POETA HUMA CARTA TODA CHEYA DE AMORES, E FINEZAS, E ELLE LHE RESPONDE COM ESTE ROMANCE.
TEVE CATONA HUMA GRANDE ENFERMIDADE LOGO A ESTE TEMPO, E CHEGANDO AS NOVAS AO POETA LHE MANDOU ESTE.
DESTA ENFERMIDADE PASSOU CATONA A CURAR-SE NA VILA DE SAM FRANCISCO, ONDE O POETA ESTAVA, E A SUA VINDA LHE CANTOU ESTE ROMANCE.
COMO ESTA NENHUM CASO FEZ O POETA DIVERTIDA COM OUTROS DE SUA QUALIDADE, LHE DESANDA COM ESTES EPÍLOGOS.
Entre os serventes, que naquella casa assistiram,
namorou-se o Poeta de Catona com todas as veras.
Manuel Pereira Rabelo, licenciado
É parda de tal talento
que a mais branca, e a mais bela
deseja trocar com ela
a cor pelo entendimento
É um prodígio, um portento
ENTRE OS SERVENTES, QUE NAQUELLA CASA ASSISTIRAM, SE NAMOROU O
POETA DE CATONA COM TODAS AS VERAS, AGORA, QUE A VIO DEDILHANDO
Pela alma dessa almofada,
que quando a cara vos vi,
Catona, me arrependi
de fazer esta jornada:
porque estais amancebada,
conforme ouço aqui dizer,
e que mais hei de eu fazer,
que querer idolatrar!
mas vós me haveis de mandar
por isso mesmo beber.
Tendes-me tão prisioneiro,
Catona, em tal embaraço
que por um vosso pedaço
me darei em todo inteiro:
neste vosso cativeiro,
que por docíssimo entendo,
de vosso Senhor pertendo,
(a quem obrigado vivo)
que me tome por cativo,
por vos estar sempre vendo.
A vossa cara me agrada,
o vosso rir me enfeitiça,
essa vossa anca me enguiça,
e uma só coisa me enfada:
e é, que estais tão arrimada
ao gosto do Fernandinho,
que apenas vos dá de olhinho,
quando já vos levantais,
e renda, e bilro deixais,
e o triste do meu bilrinho.
Se eu vos amo, e vos não minto,
e tudo por vós descarto,
deixai, quem já tendes farto,
por mim, que inda estou faminto:
num período sucinto
vos direi tudo de um lanço:
quero para meu descanso,
Catona, a vossa barriga;
quereis, que mais claro o diga?
façamos, Tona, um crianço.
SACODE ZELOSO O POETA A FERNÃO ROIZ VASSALO, QUE SE CONTRATAVA
COM ESTA CELEBRADA CATONA, SENDO O VIOLISTA DAS PUTAS DAQUELLE
Vêem vocês este Fernando,
guar-te dele, que te espreita,
que é moço, que logo arreita
ou bailando, ou não bailando:
e quem lhe disse, que quando
para bailar o convido,
posto que saia luzido,
e posto que airoso andasse,
queria eu, que bailasse
com seu fariseu saído?
Não vêem o grande despejo,
com que o demo do priapo
saiu pelo roto trapo,
qual faminto percevejo?
eu tenho grande desejo
de ver bailar o Gandu
mais duro, que um Berzabu,
e se o seu lhe soluçou,
pois que me não respeitou,
por que não o mete no cu?
Não sabia, que a Vermelha
corria por conta, e risco
dos Guapos de São Francisco,
a quem tudo se ajoelha?
não sabe a história velha
por toda esta Cachoeira?
pois se a sabe, foi asneira,
que a quem andava a bailar,
a saísse a vigiar
com pica vigiadeira.
Ou cosa a barguilha em pena
deste agravo, que me fez,
ou corte o xesmeninês,
ou não baile com Elena:
que em tudo isto o condena
o Sancho, que desconfia
de ver tal aleivosia,
pois com trincos bailadores
quer levantar-se as maiores
co'a mulher, que se lhe fia.
FAZIA O POETA TAIS EXCESSOS POR ESTA CATONA, QUE THOMAZ PINTO, E OUTROS LHOS ESTRANHARAM, E ELLE OS INCREPA NESTAS DECIMAS DE NESCIOS NO AMOR.
Que pouco sabe de amor,
quem viu, formosa Catona,
que há nessa celeste Zona
astro, ou luminar maior:
também a violeta é flor,
e mais é negra a violeta,
e se bem pode um Poeta
uma flor negra estimar,
também eu posso adorar
nos céus um pardo planeta.
Catona é moça luzida,
que a pouco custo se asseia,
entende-se como feia,
mas é formosa entendida:
escusa-se comedida,
e ajusta-se envergonhada,
não é tão desapegada,
que negue a uma alma esperança,
porque enquanto a não alcança,
não morra desesperada.
Pisa airoso, e compassado,
sabe-se airosa mover,
calça, que é folgar de ver,
e mais anda a pé folgado:
conversa bem sem cuidado,
ri sisuda na ocasião,
escuta com atenção,
responde com seu desdém,
e inda assim responde bem,
é benquista a sem-razão.
É parda de tal talento,
que a mais branca, e a mais bela
deseja trocar com ela
a cor pelo entendimento:
é um prodígio, um portento,
e se vos espanta ver,
que adrede me ando a perder,
dá-me por desculpa Amor,
que é Anjo trajado em cor,
e Sol mentido em mulher.
COROAVA CATONA TODOS ESTES DOTES DE HUMA CONSTANCIA RARAS VEZES ACHADA EM SIMILHANTE GENTE, POIS GUARDANDO FÉ A SEU AMANTE,
PUNHA O POETA EM TOTAL DESESPERAÇÃO DE QUE NASCEO A
Valha o diabo o concerto,
Catona, que assim me tem
desanimado, e confuso
sem esperança, e sem fé.
Vós um concerto fizestes
de nunca o Mano ofender,
com que o negócio está feito,
porém que hei de fazer eu.
Hei de botar-me no mar,
morrer, e perder a Deus,
enforcar-me como Judas
morrendo como infiel.
Hei de ir direito ao inferno,
que me há de condenar Deus
pelo pecado de amar
a uma ingrata cruel.
Querer bem não é pecado,
a vós grande culpa é,
porque se adoro a um bronze,
idólatra venho a ser.
Morra eu, e perca a vida,
vida, e alma perderei,
e folgarei, que se perca
uma alma, que vos quer bem.
Tenho um inferno na vida,
outro na morte terei,
na morte são meus pecados,
na vida vossos desdéns.
Já não tenho medo à morte,
dá-me pouco de morrer,
porque desde que vos vi,
morro, passa já de um mês.
Ou neste, ou no outro inferno,
Catona, tudo é morrer,
lá pelos pecados feitos,
cá pelos que homem não fez.
O mal é, que nem os fiz,
nem espero de os fazer,
nisto está o meu inferno,
que arda, quem culpa não tem.
Já morro, e não é possível
meu testamento fazer,
porque me tirais a fala
cada vez, que vós quereis.
Mas declaro por acenos,
que não vos deixo os meus bens,
porque se vos deixo a vós,
arto deixada estareis.
TORNA O POETA A INVESTIR À CATONA LANÇANDO O
RESTO DE SEUS EMPENHOS, E ELLA PARA SE DESCULPAR
LHE RESPONDEO, QUE ESTAVA MENSTRUADA.
Estou triste, e solitário
esperando pelo baque
que há de dar, Tona, esse achaque,
que em vós é mal ordinário:
sangue, que tem oitavário,
festa solene parece;
com que saber se me ofrece,
porque razão me convenha,
que a vós o sangue vos venha,
e seja eu, quem o padece.
A vós, Tona, vem o mal,
e em vez de mal vos faz bem,
e a mim, que nunca me vem,
me é tão prejudicial:
só se eu sou tão animal,
tão cavalo, e tão rocim,
que quando vos chega enfim
o mês pelo calendário,
em vós corre de ordinário,
porém corre contra mim.
Se vos vejo desta vez
tal, que é força, vos maltrate,
vaya: mas que a mim me mate
que tenho eu com vosso mês?
Se mereço por cortês,
ou pela força da estrela,
que me deis uma titela,
dai-ma com sangue, ou sem sangue
que eu irei ao pé de um mangue
e lá me haverei com ela.
Eu lá a irei cozinhando
de sorte, que o vosso dado
com ser de sangue queimado,
não me ande o sangue queimando
a mim que me dá, que quando
fizermos o catatau,
saia o fariseu tão mau,
que seja cousa precisa
alimpá-lo na camisa,
ou na esquina de um calhau?
TORNA O POETA OUTRA VEZ A TENTAR A CATONA POR
ESTILO DESHONESTO, DE QUE AS VEZES MELHOR SE
MOTE
Castelo do põe-te neste,
todo o meu meti em ti,
por amor do calco-te este, Menina, venho eu aqui.
Trinta anos, ricos e belos
cursei em outras idades
várias universidades,
pisei fortes, vi castelos:
ao depois os meus desvelos
me trouxeram a esta peste
do pátrio solar, a este
Brasil, onde quis a Sorte,
Castelo do põe-te neste.
Vi logo a forte muralha,
Catona, eu teu duro peito,
que por força, nem por jeito
venci em trégua, ou batalha:
com soldadesca canalha,
quanto tinha, despendi;
obrei lá, dispus aqui
o cuidado, a manha, a arte,
e sem fiar de ganhar-te
Todo o meu meti em ti
São pensões, de quem guerreia,
tudo causa a lei da guerra,
o sossego se desterra,
perde-se jantar, e ceia:
e quando a guerra se ateia,
segue-se a fome, e a peste,
tudo se sofre por este,
pundonor de te alcançar,
e tudo hei de suportar
Por amor do calco-te este.
Fui mau general té agora,
porque fiz, Catona, a guerra
em país alheio, em terra,
onde vós sois tão Senhora:
hei de sair daqui fora
armado a Pernameri,
e sendo fronteiro ali
a trombeta hei de cantar
que para de vós triunfar,
Menina, venho eu aqui.
EXAGERA O POETA SEUS AMORES À CATONA EM OCCASIÃO,
QUE ELA SE QUEYXAVA DE HUMA DOR DE DENTES.
Partiu entre nós Amor
por não haver desavença
a mim a dor da doença,
a vós da doença a dor:
mas que mal seja o pior
destes males repartidos
não o sabem meus Sentidos,
só sabe o meu coração,
que vos dáveis a ocasião,
eu vos mandava os gemidos.
Vós tínheis a dor de dente
no dente, que vos doía,
e eu na alma tinha agonia,
pois vos amo ardentemente
qual de nós maior dor sente
minha alma vo-lo dirá,
e entendido ficará,
que era a minha dor maior,
por ser nalma, porque amor,
nalma nasce, e nalma mora.
PERTENDIA O POETA RETIRAR-SE PARA A VILLA DE S. FRANCISCO E VENDO AS DUREZAS DE CATONA, LHE FAZ ESTE MEMORIAL DE FINEZAS.
Não vos pude merecer,
porque não pude agradar,
mas eu hei de me vingar,
Catona, em mais vos querer;
vós sempre a me aborrecer
com ódio mortal, e atroz,
e eu a seguir-vos veloz:
se sois veremos enfim
mais firme em fugir-me a mim,
que eu em seguir-vos a vós.
Quisera-vos persuadir,
como vós haveis de haver,
que sou mais firme em querer,
que vós ligeira em fugir:
eu não hei de desistir
desta minha pertensão,
quer vós a aproveis, quer não,
porque ver-me importaria,
se talvez faz a porfia,
o que não faz a razão.
Mil vezes o tempo faz,
o que à razão não conveio,
meterei o tempo em meio,
porque ele nos meta em paz:
vós estais muito tenaz
em dar-me um, e outro não,
e eu levado da afeição
espero tempo melhor,
onde, o que não obra amor,
vença o tempo, obre a razão.
Catona, minha esperança
me dá por consolação,
que espere: porque o rifão
diz, que, quem espera, alcança:
tudo tem certa mudança:
o bem males ameaça,
o mal para bem se passa,
que como a fortuna joga,
o braço, que hoje me afoga,
talvez que amanhã me abraça.
DEYXA RECOMENDADO A THOMAS PINTO AS DELIGENCIAS DE ABRANDAR A CATONA, E SE DESPEDE DE PERNAMERIM EM HUM CAVALLO CHAMADO O TAINHA.
Adeus, meu Pernamerim,
que me vou sobre o Tainha
engasgado em crueldades,
espinhando em tiranias.
Adeus vizinhas do pasto,
que na varanda de cima
nos mataram a marrã,
e a comemos de rebimba.
Adeus rica cachoeira,
onde a Vermelha coabita
co peregrino, que passa,
co mercador, que a visita.
Adeus casa principal
aos olhos nunca escondida,
por ser sobre o monte posta,
como se canta na missa.
Adeus, Catona bizarra,
adeus gente da cozinha,
adeus putíssima Samba,
e honestíssima Luzia.
Adeus Grácia faladeira,
bem que com graça infinita,
adeus a outra Mãe Monda,
que se chama Clara Dias.
Adeus Moçorongo alegre,
e Fofó da estribaria,
adeus Barroso de baixo,
adeus Catuge de cima.
Adeus, ó fresca varanda,
onde joga a rapazia
castanhas com mil trapaças,
e trapaças com mil brigas.
Adeus Maria Pereira,
que sempre à mesa assistias
diligentemente alegre
co'a comida, e co'a bebida.
Adeus Brites gavachona,
que inda que sois concubina
do Gabriel, que vos sangra,
nunca vos deixa ferida.
Adeus terras agradáveis
cheias de canas tão ricas,
que estão dizendo, comei-me,
a quem passa, a quem caminha.
Adeus Inês amuada,
que por uma negra pinga
três dias me não falaste,
e me xingaste três dias.
Morto de vossas saudades
me vou por essas campinas
a risco de chegar morto,
se não fora no Tainha.
SAUDOSO DE PERNAMERIM, E SENDO ACASO TOPADO NAQUELLA VILLA HUM
MOLEQUE CHAMADO O MOÇORONGO DE THOMAZ PINTO BRANDÃO SEM
CARTA, NEM RECADO DO SENHOR PARA O POETA, ELLE SE MOSTRA SENTIDO
Veio aqui o Moçorongo
tão oculto, e escondido,
que não sei se o tenha a ele,
se a vós por meu inimigo.
Chegou terça-feira à tarde,
meteu-se em casa de Chico,
passou a tarde, e a noite,
e o pior é, que dormindo.
Porque havia de dormir
o Moçorongo maldito,
sabendo, que eu estava
desvelado, e afligido.
Amanheceu quarta-feira,
chegou o nosso Arcebispo,
gastou-se toda a manhã
com visitas, e visitos:
Deu meio-dia, e fui eu
para casa dos amigos
esfaimado como um cão,
e como um lobo faminto:
Quando o cam do Moçorongo
saiu do seu esconderijo,
e sem cuidar no encontro
deu de focinho comigo.
Alegrei-me, e enfadei-me,
que há casos, em que é preciso,
que se mostre ao mesmo tempo
alegre um peito, e mofino.
Amofinou-me a traição,
com que ele esteve escondido,
e alegrei-me de encontrar
com gente desse distrito.
Perguntei logo por vós,
por Inácio, e Antonico,
por Luzia, e por Catona,
e mais gente desse Sítio.
Todos estão de saúde,
me disse o Crioulo esquivo
um tanto triste da cara,
pouco alegre do focinho.
Mas eu fiz-lhe muita festa,
assim por ser seu amigo,
como por ser cousa vossa,
e nesse pasto nascido.
Perguntei, se me escreveras:
zombou disso, e deu-me um trinco;
zombou com cara risonha,
trincou com dedo tangido.
Disto formo a minha queixa,
disto fico mui sentido,
pois sei, que tendes papel,
tinteiro, pena, e juízo.
Mas andar lá nos veremos,
e vereis, que de sentido
vos hei de estrugir a vozes,
e me hei de espojar a gritos.
POR ESTE MOLEQUE, QUE DEO AO POETA MUYTAS LEMBRANÇAS DA PARTE DE CATONA, LHE REMETTEO ELLE O SEGUINTE ROMANCE.
Mandais-me vossas lembranças,
eu as não hei de mister,
porque de vós sempre as tenho,
quer mas deis, quer não mas deis.
Se o fazer mal não se perde,
como é adágio português,
quem me faz tão grandes males,
como me pode esquecer?
Sinto, que vossas lembranças
me viessem esta vez
na desconfiança envoltas
lembrarei, não lembrarei.
Como não há de lembrar-me
um coração tão cruel,
se as feridas n'alma dadas
nem curadas saram bem?
A cada passo me lembram
os rigores, e os desdéns,
com que, ingrata, castigastes
a culpa de vos querer.
O certo é, que este temor
nasce de vossa má fé,
que quem se sangra em saúde
culpada deve de ser.
De vós mesma desconfiai,
que de mim não pode ser:
de vós sim, que me matastes,
de mim não, que vos amei.
Porque se aquela pessoa
na minha memória fez
entrada por mão de amor,
quem lhe havia de empecer?
Se haveis medo de querer-me,
porque isso me mereceis,
e o que mereceis, não faço,
faço por vos merecer.
Mereceis-me já esquecido
do tempo, que vos quis bem,
e nem me lembra esquecer-me
a fim de inda vos querer.
Pelo que sois não vos amo,
que não se adora o cruel,
o belo sim, e eu vos amo,
pelo que me pareceis.
Pois por mais que fôsseis dura,
isenta, ingrata, e cruel,
que vos não quita o ser linda,
não vos quitara o querer.
Agravos não mos fizestes,
males, e injúrias também:
se de alguém hei de queixar-me,
de um ninguém me queixarei.
Vós não tivestes a culpa:
toda a culpa teve, quem
vos quis tratar com lisonjas,
suceda, o que suceder.
Que vos não diz a distância,
que o negro do branco tem,
esse teve a culpa toda,
é amigo, pode-o fazer.
Mas deixando estes queixumes,
que será força ofender
com queixas, quem nunca pôde
com finezas dar prazer:
Digo, que as vossas lembranças
tanto n'alma as estimei,
como vós sois testemunha,
que lá as vistes receber.
Queira Amor restituir-me
dos agravos, que me fez;
e vos faça já a destroca
do branco pelo guiné.
POR ESTE MESMO ESCRAVO ESCREVE TAMBEM O POETA A OUTRO AMIGO EM PERNAMERIM CHAMADO IGNACIO, QUEYXANDO-SE DE LHE NÃO ESCREVER, NEM LHE MANDAR NOVAS DAS FEMEAS.
Senhor Inácio, é possível,
que quisestes desdizer
daquela boa opinião,
que eu tinha na vossa fé?
É possível, que um amigo,
de quem tanto confiei,
nem por escrito me fala,
nem em pessoa me vê?
É possível, que uma ausência
tanta potestade tem,
que ao vivo morto reputa,
no que toca ao bem-querer?
Se isto em vós a ausência faz,
como em meu peito o não fez,
não sois vós o meu ausente,
que em minha idéia viveis?
O certo é, meu amigo;
disse amigo: mas errei,
que não sois amigo já,
fostes meu sócio talvez.
Fostes sócio nos caminhos
daquela terra infiel,
onde Luzia traidora,
e Catona descortês
Me privaram dos sentidos,
e me deixaram cruéis
o corpo uma chaga viva
a golpes de seu desdém.
Mas eu me não queixo delas,
que de nenhuma mulher
má, ou boa há de queixar-se
homem, que juízo tem.
Queixo-me de vosso Tio,
que se foi por me empecer
esta terceira jornada
para acabar o entremez.
Praza a Deus, que ache Simoa,
a quem amante foi ver,
como há de achar Antonica
farta do Xesmeninês.
Daquela Antonica falo,
que pôs no negro poder
das Quitas, para que a guardem,
e a guardaram ao revés.
Que a Silvestre a entregaram,
o qual, como vós sabeis,
apesar dos dias santos
lhe deu tanto que fazer.
Mas pois em Pernamerim,
e em suas cousas toquei,
neste mesmo assunto quero,
me façais uma mercê.
Dizei — e, se está o Antônio
recolhido a seu vergel,
onde era geral Adão
das Evas, que Deus lhe deu.
E se acaso tiver vindo,
vos peço, que lhe mandeis
este romance fechado
em um molhado papel.
Porque no molhado veja
o choro, com que lancei
estes versinhos tão tristes
por amar, e querer bem.
A ele, que me fugiu
desta casa, há mais de um mês,
e à Catona, que o imita
no esquivo, e no infiel.
E com isto, e outro tanto,
que me fica por dizer,
adeus, até que tenhais,
quem vos traga a meu vergel.
MANDALHE THOMAZ PINTO DESDE PERNAMERIM ESTE ROMANCE,
RECORDANDO, O QUE O POETA LÀ PASSÀRA.
Ao pasto de Santo Antônio
vieram quatro quadrillhas,
todas quiseram luzir,
e só Luzia luzia.
Vinham por guias da dança
a Catona, e a Betica
cantando irmãmente alegres
pelo mar ia Maria.
Vinham logo Inês, e Samba
duas putonas malditas,
que qualquer pelas sanzalas
negregada pingapinga.
E por remate de todas
vinha a galharda Luzia
tão outra, que então se viu,
que, se Amor a vira, vira
Toda a casa se alegrou,
todos molhamos as picas,
houve um consolo geral
nas putas, que a pica pica.
Não vou de Pernamerim,
sem ver por essas cozinhas
penduradas as marrãs,
e às cabritas as cabritas.
Tão alegre sexta-feira
não vi em todos meus dias,
porque tivemos na ceia
sobre tainha tainha.
Fomos buscar a vermelha,
que esperava na cozinha
um negro, para que, quando
lhe coçar a impinja, impinja.
A puta não quis sair
sendo, que estava saída
pelo negro, que aguardava,
a quem com vida convida.
Cos olhos na refestela
todo o mundo me esquecia,
porque de Luzia o emprego
memórias de Quita quita.
Viemo-nos muito embora,
um que salta, outro que brinca,
porque o jimbo, que pediu,
muito mais que urtiga urtiga.
Mas embaixo já chegados
de moto próprio Luzia
mostrou, que estava sem causa
por tão fementida tida.
O Doutor a consolou,
fazendo marital vida,
e então confessaram todas,
que só Luzia luzia.
RESPONDE O POETA TODO SAUDOSO A THOMAZ PINTO.
Gostou da vossa Lira a minha Musa,
gostou sim pela vida de uma Tona,
que à custa do seu sangue se me escusa.
Vos devíeis lavar-vos na Helicona,
ou beber nas torrentes do Pegaso,
segundo a vossa Musa é folgazona:
Mas senti, que caísseis no fracasso
de me não dares novas de Luzia
a tintin por tintin, caso por caso.
Se imaginastes, que o não sentiria,
porque um ausente morto se reputa,
enganou-vos a vossa fantesia:
Que eu sou fino berrante sem disputa
de tudo, o que são fêmeas, e mulheres,
seja a puta qualquer, se é minha puta.
Quem goza, como vós, tantos prazeres
de tanta fêmea em baixo tão servido,
dormindo sobre tantos bem-me-queres
Bem se zomba do pobre foragido,
que rendido ao bom ar de uma Catona
nem por toque se viu favorecido.
Ora vede os poderes de uma cona,
que me vejo cercado de peixeiras,
e estou mais tristalhão, do que uma mona.
As putinhas daqui são mulambeiras,
e fedem ao peixum com os diabos,
e importa pouco serem gritadeiras.
Em chegando ao repuxo dos quiabos
fica-lhe a fralda um lago de ensopada,
e vão-se umedecidas pelos rabos.
Amor me leve a cachoeira honrada,
onde a Vermelha enxuta de pentelho
toda a conana traz polvorizada.
Leve-me Amor a ver no lindo espelho
de Luzia, que cheira em se deitando,
qual se nunca metera de Vermelho.
Moças desse país me estão lembrando,
de Catona a fidalga gravidade,
e não saber mentir de quando em quando.
Que de gabos lhe dera na verdade,
se o Catuge esperara uma só hora,
e não fora com tal celeridade.
Mas vós fazei presente à tal Senhora,
que aqui me estou morrendo por beijá-la
naqueles dentes pérolas da Aurora:
Naquela boca aljôfar de Bengala,
e que espero, que Amor me há de dar hora,
em que ela meta a mão na consciência;
Porque, quem me pariu, me diga agora,
que sou servo de Vossa Reverência.
RESPONDEO THOMAZ PINTO A RECOMENDAÇÃO DO POETA, QUE A DUREZA
DE CATONA NENHUM REMEDIO TINHA, POIS CADA VEZ ESTAVA MAIS FIRME AO QUE ELLE FEZ ESTE SONETO.
Oh que esvaída trago a esperança
Depois das tristes novas de Catona,
Nas quais a vossa Musa desabona,
E me despede toda a confiança.
Eu a amava com força, e com pujança
Por bizarra, graciosa, altiva, ampona;
Nunca a Mulher finezas galardona,
Nunca outro prêmio de um rapaz se alcança.
Que amor com outro amor há de pagar-se
É já comum rifão, soe dizer-se,
Mas é erro, que agora há de emendar-se.
Amor do próprio amor deve entender-se,
Que amor consigo mesmo há de premiar-se,
E ser prêmio da pena o padecer-se.
A PERSUAÇÕES DE THOMAZ PINTO ESCREVE CATONA AO POETA
HUMA CARTA TODA CHEYA DE AMORES, E FINEZAS, E ELLE
LHE RESPONDE COM ESTE ROMANCE.
Recebi as tuas regras,
meu amor, minha Antonica,
as quais, te juro, me deram
para mais penas mais vida.
Ressuscitei, quando as li
do letargo, em que me via,
mas quem vive para as penas,
morre, quando ressuscita.
Teu objeto em cada letra
contemplei por vida minha,
mostrando-me em cada termo
tua essência uma alegria.
Recebi os teus abraços,
gozei-me em tuas carícias
e por te ver, meus amores,
todo me enchi de alegrias.
Eu zeloso te falava,
tu mil zelos me pedias,
eu queixoso, e tu queixosa,
eu morto, e tu insofrida.
Nesta amante confusão,
no logro destas delícias
me vi, Tona dos meus olhos,
quando tuas regras lia.
Mas porém foram de amor
tudo aparências fingidas,
tudo sombras fabulosas,
e tudo doces mentiras.
Porque logo o desengano,
que as verdades acredita,
me fez ponderar-te ausente
na distância, onde me ficas.
Vendo então, que era sonhada
a fortuna sobredita,
comecei com meus excessos
a fazer, o que convinha.
Enternecido, e saudoso,
meus olhos lágrimas vivas
lançam, vendo-me já morto
em correntes repetidas.
Um suspiro as acompanha
pronóstico de agonias,
que publicando saudades
os mesmos astros lastima.
E como a causa tu sejas,
minha ausente, minha rica,
hão de ser dela os efeitos
por desiguais sem medida.
Os efeitos, que me causam
saudades tão repetidas,
meu afeto tos relata,
meu grande amor tos publica.
Considero-te, meu bem,
distante da minha vista,
e como vivo de ver-te,
sem ver-te não tenho vida.
Sempre está meu coração
em sobressalto, e fadigas,
porque sabe bem sentir
qualquer achaque, que sintas.
Entra logo a combater-me
dos zelos a bateria,
e como Tróia o meu peito
abrasam em chamas vivas.
Considero-te lograda,
de quem és mal merecida,
falsa, no que me prometes,
ingrata a tantas carícias.
Logo torno a desculpar-te,
julgando cousas impias,
as que de ti considero,
por saber, que és compassiva.
Esta consolação traz
por saudosa companhia
uma esperanca, que tenho
para ver cedo cumprida.
E como por festa chega,
e na festa se limita,
quanto esta festa me tarda,
tanto o prazer se aniquila.
Estes dias para mim
são anos, e não são dias,
as horas parecem meses,
dos quartos não sei, que diga.
Considera tu agora
como estará, minha vida,
quem tantos contrários tem
para tantas agonias.
Quem combatido se vê
com rigor, e tirania
de esperanças dilatadas,
suspiros, ânsias, fadigas.
No mais aqui te não falo,
tudo deixo para a vista;
entretanto Deus te guarde,
Deste, que muito te estima.
TEVE CATONA HUMA GRANDE ENFERMIDADE LOGO A ESTE TEMPO,
E CHEGANDO AS NOVAS AO POETA LHE MANDOU ESTE
MOTE
Ontem soube o vosso mal
e de então, meu doce emprego,
não pude enxugar meus olhos,
nem calar meu sentimento.
Dizem os exprimentados
nos bens, e males da vida,
que os males vêm de corrida,
e os bens chegam retardados:
eu tomo em termos trocados
esta sentença fatal,
pois estando vós mortal
doente de tantos dias,
tão mal, com tantas sangrias,
Ontem soube o vosso mal.
Como a nova chegou tarde,
perdeu tempo o meu pesar,
que para mim foi desar,
pois de amar-vos faço alarde:
que, quem no vosso amor arde
tão louco, arrojado, e cego,
no vosso desassossego
quisera meu coração
padecer antes de então,
E de então, meu doce emprego.
Quando a triste nova ouvia,
fiquei tão amortecido,
que de puro estar sentido
não senti, o que sentia:
quem tão confuso se via,
vendo como por antolhos,
que estava pisando abrolhos
entre a vossa, e minha mágoa,
como chorei mares d'água,
Não pude enxugar meus olhos.
Alma me pus a partir,
e em pedaços a chorei
toda junta a não botei
só por viver, e sentir:
assim vim a conseguir
dar à minha dor aumento,
e como era o meu intento
fazê-la extensiva um tanto,
não pude parar meu pranto,
Nem calar meu sentimento.
DESTA ENFERMIDADE PASSOU CATONA A CURAR-SE NA
VILA DE SAM FRANCISCO, ONDE O POETA ESTAVA, E A SUA
VINDA LHE CANTOU ESTE ROMANCE.
É chegada a Catona,
e vem muito doente,
que se há gostos, que matem,
havê-los-á, que enfermem.
Se enferma de seus gostos,
gosta, do que padece,
e assim ninguém a cure,
que, quem a cura, a ofende.
Da gente desta casa
ninguém há, que penetre,
se ele apertou com ela,
se ela apertou com ele.
O que se sabe ao certo,
é, que se ela adoece
daquilo de que vive,
livre está de morrer-se.
É ditosa Catona,
que quanto mais padece,
mais assegura a vida,
pois vive, do que geme.
Para se não enferma,
contra mim adoece,
se morre por deixar-me,
hei medo, que me deixe.
Na sua enfermidade
logra dous interesses,
o gosto de enfermar-se,
e o prazer de morrer-me
Se a curo então a ofendo,
pois lhe tiro os prazeres:
se a não curo, me mato,
valha-me Deus, mil vezes.
Que nesta confusão,
em que o fado me mete,
ou se cure, ou não cure,
hei medo, que me enterre.
COMO ESTA NENHUM CASO FEZ DO POETA DIVERTIDA COM OUTROS DE SUA QUALIDADE, LHE DESANDA COM ESTES EPÍLOGOS.
Quem deu à Pomba eitiços? Mestiços
E quais são os seus objetos? Pretos
Quais deles lhe são mais gratos? Mulato
É logo de cães e gatos
a Pemba por seu desdouro,
pois lhe vão somente ao couro
Mestiços, Pretos, Mulatos.
Que são da testa as carcomas? Gomas
Ela diz, que são vertiges Impiges
E lá dentro das alcobas? Bobas,
Bem merece um par de sobas,
pois com quantos se pespega,
cada qual deles lhe pega
Gomas, Impiges, e Bobas.
Ela é bandarra, e airosa Gulosa
Mas é linda sem disputa Puta
Nenhuma parte a abona? Mijona.
Dai vós ao demo a putona,
a quem o mesmo diabo
lhe chama por menoscabo
Gulosa, Puta, Mijona.
Quem a leva ao Quicauabo? O diabo
Lá tem o amigo Vinagre Bagre
E quem lhe leva o balaio? O Cambaio.
Por isso vai como um raio
uma légua caminhando,
porque a vão acompanhando
Diabo, Bagre, Cambaio.
Quem lhe despeja o alforje? o Jorge
Outro há, com quem mais me aturdo o Surdo
E outro mais de quando em quando o Quibando
Não vi putão mais nefando,
pois todos seus sarambeques
vai fazer com três moleques
o Jorge, o Surdo, o Quibando.
Que lhe dão tão fracas linhas? Sardinhas
Nenhuma coisa mais quis? Siris
Por tão pouco tantas bulhas? Agulhas.
Eu creio, que isto são pulhas,
que negra de entendimento
não toma por pagamento
Sardinhas, Siris, e Agulhas.
Ela tem Jorge escolhido Por marido
E demais o quer com figo Por amigo
Ele diz, que há de ser forro Por cachorro.
Eu de ouvir isto me morro,
pois ela o negrinho quer
para o mesmo tempo ser
Marido, Amigo, e Cachorro.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG