LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Obra Poética de Gregório de Matos
Edição de Referência:
Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.
INDO O POETA PASSEAR PELA ILHA DA CAJAIBA, ENCONTROU LAVANDO ROUPA A MULATA ANNICA E LHE FEZ ESTE ROMANCE.
GALANTEIA O POETA SEGUNDA VEZ A ESTA MESMA ANNICA COM ESTE ROMANCE.
REPETE O POETA ESTA ROGATIVA OUVINDO-A EM HUA OCCASIÃO CONTAR COM A SUA SINGULAR GRAÇA QUE TINHA.
RECATAVA-SE ANICA DEYXANDO-SE VER POR INDULGÊNCIA.
DESEMPULHA-SE O POETA DEPOIS DE GOZAR ESTA DAMA DE HUNS ÇAPATOS QUE LHE PEDIO.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
Encontrou lavando roupa a mulata Anica.
Manuel Pereira Rabelo, licenciado
Achei Anica na fonte
e me quebrastes os olhos
INDO O POETA PASSEAR PELA ILHA DA CAJAIBA, ENCONTROU LAVANDO
ROUPA A MULATA ANNICA E LHE FEZ ESTE ROMANCE.
Achei Anica na fonte
lavando sobre uma pedra
mais corrente, que a mesma água,
mais limpa, que a fonte mesma.
Salvei-a, achei-a cortês,
falei-a, achei-a discreta
namorei-a, achei-a dura,
queixei-me, voltou-se em penha.
Fui dar à Ilha uma volta,
tornei à fonte, e achei-a:
riu-se, não sei se de mim,
e eu ri-me todo p'ra ela.
Dei-lhe segunda investida,
e achei-a com mais clemência,
desculpou-se com o amigo,
que estava entonces na terra.
Conchavamos, que eu voltasse
na segunda quarta-feira,
que fosse à costa da Ilha,
e não pusesse o pé em terra,
Que ela viria buscar-me
com segredo, e diligência,
para na primeira noite
lhe dar a sacudidela.
Depois de feito o conchavo
passei o dia com ela,
eu deitado a uma sombra,
ela batendo na pedra.
Tanto deu, tanto bateu
co'a barriga, e co'as cadeiras,
que me deu a anca fendida
mil tentações de fodê-la.
Quando lhe vi a culatra
tão tremente, e tão tremenda,
punha eu os olhos em alvo,
e dizia, Amor, paciência.
O sabão, que pelas coxas
corria escuma desfeita,
dizia-lhe eu, que seriam
gotas, que Anica já dera.
Porque segundo jogava
desde a popa à proa, a perna,
antes de eu lhe ter chegado,
entendi, que se viera.
De quando em quando esfregava.”
a roupa ao carão da pedra,
e eu disse "mate-me Deus
com puta, que assim se esfrega."
Anica a roupa torcia,
e torcendo-a ela mesma,
eu era, quem mais torcia,
que assim faz, quem não pespega.
Estendeu a roupa ao sol,
o qual, levado da inveja
por quitar-me aquela glória,
lha enxugou a toda a pressa.
Recolheu Anica a roupa,
dobrou-a, e pô-la na cesta,
foi para casa, e deixou-me
a la Luna de Valencia.
GALANTEIA O POETA SEGUNDA VEZ A ESTA
MESMA ANNICA COM ESTE ROMANCE.
Querem matar-me os teus olhos,
Anica, e sinto somente,
que se hão de ver-me, e matar-me,
que me matem com não ver-me.
Já que o não ver-te me mata,
deixa morrer-me de ver-te,
porque o morrer a teus olhos
dá gosto, ao que se padece.
Se a morte minha há de ser,
tu por que o achaque eleges?
de não ver-te qués, que eu morra,
de ver-te por que não queres?
Se virás como me morro,
morrera eu assim contente,
vendo-me morto por ti,
e a ti sem asco de ver-me.
Dos mais te guarda, e não vivam,
eu morra de ver-te sempre,
porque tão gloriosa morte
quero para mim somente.
Já que Deus te deu bom rosto,
Anica ingrata, aparece,
muda antes de parecer,
do que não de aparecer-me.
Pelos teus olhos te peço,
que este romance contemples,
que inda farás nisso menos,
do que eu fizera por eles.
ESTRIBILHO
Não Anica, te escondas,
aparece sempre,
que o ser bem parecida
disso depende.
REPETE O POETA ESTA ROGATIVA OUVINDO-A EM HUA OCCASIÃO
CONTAR COM A SUA SINGULAR GRAÇA QUE TINHA
Anica, o que me quereis,
que tanto me enfeitiçais,
uma vez quando cantais,
e outra quando apareceis:
se por matar-me o fazeis,
fazei esse crime atroz
de matar-me sós por sós,
para que eu tenha o socorro,
que vendo, que por vós morro,
viva de morrer por vós.
Matar-me eu o sofrerei,
mas sofrei também chegar-me,
que ter asco de matar-me
jamais o consentirei:
fugir, e matar não sei,
Ana, como o conseguis?
mas se a minha sorte o quis,
e vós Ana, o intentais,
não podeis matar-me mais,
do que quando me fugis.
Chegai, e matai-me já;
mas chegando estou já morto,
causa, que me tem absorto
matar-me, quem não me dá:
chegai, Ana, para cá
para dar-me essa ferida,
porque fugir de corrida,
e matar-me dessa sorte,
se o vejo na minha morte,
o não vi na minha vida.
Não sei, que pós foram estes,
que n'alma me derramastes,
não sei, com que me matastes,
não sei, o que me fizestes:
sei, que aqui aparecestes,
e vendo-vos com antolhos,
topei com tantos abrolhos
na vossa dura conquista,
que me tirastes a vista,
e me quebrastes os olhos.
Não te posso ver, Anica,
por mais que Amor me desperte,
que tu és muito tirana,
e serás ingrata sempre.
Se foras compadecida,
não cessara de querer-te,
pois a beleza humanada
adquire mil interesses.
Inda assim eu quero, Anica,
que tu me mates mil vezes
com os raios da tua ira
mais do que com te esconderes.
Porque és, Anica, tão bela
que a alma, que por ti se perde,
não pode deixar de ter
muitas glórias aparentes.
Permite por esta vez,
que o teu resplendor contemple,
para ofertar-lhe mil vidas
hoje em holocausto breve.
E se acaso é divindade
a beleza, quem se atreve,
sendo bela, a ser ingrata,
se os atributos desmente?
Havemos de acomodar-nos
na porfia de querer-te,
matem-me embora os teus raios,
porém aparece sempre.
Mate-me a tua isenção,
que eu não cesso de querer-te,
consumam-se os teus rigores
com condição de me veres.
DESEMPULHA-SE O POETA DEPOIS DE GOZAR ESTA DAMA
DE HUNS ÇAPATOS QUE LHE PEDIO.
Um cruzado pede o homem,
Anica, pelos sapatos,
mas eu ponho isso à viola
na postura do cruzado:
Diz, que são de sete pontos,
mas como eu tanjo rasgado,
nem nesses pontos me meto,
nem me tiro desses trastos.
Inda assim se eu não soubera
o como tens trastejado
na banza dos meus sentidos
pondo-me a viola em cacos:
Ó cruzado pagaria,
já que fui tão desgraçado,
que buli co'a escaravelha,
e toquei sobre o buraco.
Porém como já conheço,
que o teu instrumento é baixo,
e são tão falsas as cordas,
que quebram a cada passo:
Não te rasgo, nem ponteio,
não te ato, nem desato,
que pelo tom, que me tanges,
pelo mesmo tom te danço.
Busca a outros temperilhos,
que eu já estou destemperado,
estou para me rasgar
minhas cousas cachimbando.
Se tens o cruzado, Anica,
manda tirar os sapatos,
e se não, lembre-te o tempo,
que andaste de pé rapado.
E andarás mais bem segura,
que isto de pisar em saltos
é susto para quem pisa,
e ao que paga, é sobressalto.
Quem te curte o cordovão,
por que te não dá sapatos?
mas eu, que te rôo o osso,
é que hei de pagar o pato?
Que diria, quem te visse
no meu dinheiro pisando?
diria, que quem to deu.
ou era bosta, ou cavalo.
Pois porque não digam isso,
leve-me a mim São Fernando,
se os der, e se tu os calçares
leve-te logo o diabo.
Demais, que estou de caminho,
e seria mui grande asno,
estar para dar à sola,
e a ti deixar-te os sapatos.
Agora se eu cá tornar,
trarei peles de veado,
para dar-te umas chinelas
duráveis, que é mais barato.
Fica-te na paz de Deus,
saüdades até quando;
vem-te despedir de mim,
porque de hoje a oito parto.
Na flor da idade à morte te rendeste,
No melhor dos teus anos acabaste,
Porém se por caduca esta deixaste,
Eterna vida com razão quiseste.
Logra ditoso pois nessa celeste
Galharda habitação, que desejaste,
A glória, a que feliz te destinaste.
O bem, que justamente apeteceste.
Ventura nunca igual! Propícia Sorte!
Que na contenda dentre a morte, e a vida
Arbitro teu desejo foi mais forte.
Pois aspirando à glória mais crescida,
Render tão presto te quiseste à morte,
Deixando a morte com morrer vencida.
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