Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Obras poéticas de Inácio José de Alvarenga Peixoto


Edição de referência:

A Poesia dos Inconfidentes, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.

1

Nas asas do valor, em Ácio vinha

Por Antônio a vitória declarada;

Mas a sombra de Túlio, não vingada,

Postos os deuses contra Antônio tinha.

Fez que fugisse a bárbara rainha,

De falsas esperanças enganada;

E o criminoso herói, voltando a espada,

No coração zeloso a embainha.

O fatal estandarte a Guerra enrole,

Cesse entre esposas e entre mães o susto,

Descanse um pouco de Quirino a prole;

Que Jove eterno, piedoso e justo,

Antes que Roma e Roma se desole,

Nomeia vice-deus ao grande Augusto.

2

"Ó pai da pátria, imitador de Augusto,

Liberal Alexandre... " Ia adiente,

Quando ũa imagem se me pôs presente,

A cuja vista me gelei de susto.

Mostrava no semblante pio e justo

Raios brilhantes do Impíreo luzente;

Porém os olhos, como descontente,

Em mim cravava com bastante custo.

"Nem de Alexandre nem de Augusto quero

Os nomes; sou Dinis" ─ me disse apenas

Com gesto melancólico e severo.

Levou-me às praias do Mondego amenas

E, depondo o semblante grave e austero,

Riu-se e mostrou-me a portuguesa Atenas.

3

Tarde Juno zelosa

Vê Júpiter, o Deus onipotente,

em Almena formosa

Ter Hércules; e tanto esta dor sente,

que, em desafogo à pena,

Trabalhos mil de Jove ao filho ordena.

Manda-lhe, enfurecidas,

Duas serpentes logo ao berço terno,

criadas e nascidas

No infernal furor do Stígio Averno;

mas nada surte efeito,

Se um sangue onipotente anima o peito:

nas mãos o forte infante

Despedaça as serpentes venenosas

e fica triunfante

Das ciladas mortais e furiosas,

que Juno lh'ordenava,

Quando ele a viver mal começava.

Cresce, e a cruel madrasta,

Que, sempre nos seus danos diligente,

a vida lhe contrasta,

Ou que viva em descasos não consente,

faz com que, vagabundo,

Corra, sempre em trabalhos, todo o mundo.

Aqui lhe põe, irada,

De diversas cabeças a serpente,

que em briga porfiada

Trabalha por troncar inutilmente:

divide-as, mas que importa,

Se outras tantas lhe nascem quantas corta?

Enfim, por força e arte,

Este monstro cruel deixa vencido,

que já em outra parte

Trabalhos lhe tem Juno apercebido,

tais que eu não sei dizê-los,

Mas pode o peito de Hércules sofrê-los.

Triunfando e vencendo,

Fazendo-se no mundo mais famoso,

a Terra toda enchendo

De seu heróico nome glorioso,

no templo da Memória

Gravou o Non plus ultra, a sua glória.

4

Por mais que os alvos cornos curve a Lua,

Furtando as luzes ao autor do dia,

Por mais que Tétis, na morada fria,

Ostente a pompa da beleza sua;

Por mais que a linda Citeréia nua

Nos mostre o preço da gentil porfia;

Entra no campo tu, bela Maria,

Entra no campo, que a vitória é tua.

Verás a Cíntia protestar o engano,

Verás Tétis sumir-se, envergonhada,

Nas rumorosas grutas do oceano;

Vênus ceder-te o pomo, namorada;

E, sem Tróia sentir o último dano,

Verás de Juno a cólera vingada.

5

Entro pelo Uraguai: vejo a cultura

Das novas terras por engenho claro;

Mas chego ao templo majestoso, e paro,

Embebido nos rasgos da pintura.

Vejo erguer-se a República perjura

Sobre alicerces de um domínio avaro;

Vejo distintamente, se reparo,

De Caco usurpador a cova escura.

Famoso Alcides, ao teu braço forte

Toca vingar os cetros e os altares:

Arranca a espada, descarrega o corte.

E tu, Termindo, leva pelos ares

A grande ação, já que te coube em sorte

A gloriosa parte de a cantares.

6

Eu vi a linda Jônia e, namorado,

Fiz logo voto eterno de querê-la;

Mas vi depois a Nise, e é tão bela,

Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se, neste estado,

Eu não sei distinguir esta daquela?

Se Nise agora vir, morro por ela,

Se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

Mas ah! que esta me despreza, amante,

Pois sabe que estou preso em outros braços,

E aquela me não quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:

Ou faze destes dois um só semblante,

Ou divide o meu peito em dois pedaços!

7

Não cedas, coração, pois nesta empresa

O brio só domina; o cego mando

Do ingrato Amor seguir não deves, quando

Já não podes amar sem vil baixeza.

Rompa-se o forte laço, que é fraqueza

Ceder a amor, o brio deslustrando;

Vença-te o brio, pelo amor cortando,

Que é honra, que é valor, que é fortaleza.

Foge de ver Altea; mas, se a vires,

Por que não venhas outra vez a amá-la,

Apaga o fogo, assim que o pressentires;

E se inda assim o teu valor se abala,

Não lho mostres no rosto, ah, não suspires!

Calado geme, sofre, morre, estala!

8

Nem fizera a Discórdia o desatino

Que urdiu funesta briga à gente humana,

Nem, soberba, a República Romana

Poria ao mundo inteiro um jugo indino.

O Ásia, ó Grécia, ó Roma, o teu destino

Fora feliz só com viver Joana;

Respeitoso, no peito a ação profana

Sufocaria o bárbaro Tarquino.

Ela das deusas três as graças goza

E os dons sublimes ela só encerra

De rainha, de sábia e de formosa.

Ah! se Joana então honrasse a terra!

Ó esposa romana, ó grega esposa,

Não fora a Formosura a mãe da Guerra!

9

De açucenas e rosas misturadas

Não se adornam as vossas faces belas,

Nem as formosas tranças são daquelas

Que dos raios do sol foram forjadas.

As meninas dos olhos delicadas,

Verde, preto ou azul não brilha nelas;

Mas o autor soberano das estrelas

Nenhũas fez a elas comparadas.

Ah, Jônia, as açucenas e as rosas,

A cor dos olhos e as tranças d'oiro

Podem fazer mil Ninfas melindrosas;

Porém quanto é caduco esse tesoiro:

Vós, sobre a sorte toda das formosas,

Inda ostentais na sábia frente o loiro!

10

Chegai, Ninfas, chegai, chegai, pastores,

Qu'inda que esconde Jônia as graças belas,

Márcia corre a cortina das estrelas,

Quando espalha no monte os resplandores.

Debaixo dos seus pés brotam as flores,

Quais brancas, quais azuis, quais amarelas;

E pelas próprias mãos lh'orna capelas,

Bem que invejosa, a deusa dos Amores.

Despe a Serra os horrores da aspereza,

E as aves, que choravam até agora,

Acompanhando a Jônia na tristeza,

Já todas, ao raiar da nova aurora,

Cantam hinos em honra da beleza

De Márcia, gentilíssima pastora.

11

Passa-se u'a hora, e passa-se outra hora

Sem perceber-se, vendo os teus cabelos;

Passam-se os dias, vendo os olhos belos,

Partes do Céu, onde amanhece a Aurora.

A boca vendo, aonde a graça mora,

Mimosas faces, centro dos desvelos,

Vendo o colo gentil, de donde os zelos,

Por mais que os mandem, não se vão embora.

Que tempo há-de passar! Gasta-se a vida

E a vida é curta, pois ligeira corre,

E passa sem que seja pressentida.

Ah, Marília, Marília, quem discorre

Nas tuas perfeições, gostosa lida,

Que alegre vive que insensível morre!

12

Depois que dos seus cães e caçadores

Foi Anteão nos bosques perseguido,

E depois que a vingança de Cupido

Provou Cíntia por mão dum dos pastores,

Aqui as tenras aves d'entre as flores

Acompanham das fontes o ruído;

E os altares de Pafos e os de Gnido

Trocou por Sintra a deusa dos Amores.

Aqui, da pira ardente a chama acesa,

A amante, a ingrata, a tenra, a esquiva, a ufana

Vêm disputar os prêmios da beleza.

Venceu a impiíssima Silvana.

Castiga, fere, Amor, quem te despreza:

Tens triunfo maior que o de Diana.

13

Ao mundo esconde o Sol seus resplandores,

E a mão da Noite embrulha os horizontes;

Não cantam aves, não murmuram fontes,

Não fala Pã na boca dos pastores.

Atam as Ninfas, em lugar de flores,

Mortais ciprestes sobre as tristes frontes;

Erram chorando nos desertos montes,

Sem arcos, sem aljavas, os Amores.

Vênus, Palas e as filhas da Memória,

Deixando os grandes templos esquecidos,

Não se lembram de altares nem de glória.

Andam os elementos confundidos:

Ah, Jônia, Jônia, dia de vitória

Sempre o mais triste foi para os vencidos!

14

Não os heróis, que o gume ensangüentado

da cortadora espada,

Em alto pelo mundo levantado,

trazem por estandarte

dos furores de Marte;

Nem os que, sem temor do irado Jove,

arrancam, petulantes,

Da mão robusta, que as esferas

move, os raios crepitantes,

E, passando a insultar os elementos,

fazem cair dos ares

os cedros corpulentos,

Por ir rasgar o frio seio aos mares,

levando a toda a terra,

Tinta de sangue, envolta em fumo, a guerra.

Ensangüentados rios, quantas vezes

vistes os férteis vales

Semeados de lanças e de arneses?

Quantas, ó Ceres loura,

Crescendo uns males sobre os outros males,

Em vez do trigo, que as espigas doura,

viste espigas de ferro,

Frutos plantados pelas mãos do erro,

E, colhidos em montes sobre as eiras,

Rotos pedaços de servis bandeiras!

Inda leio na frente ao velho Egito

o horror, o estrago, o susto,

Por mãos de heróis tiranamente escrito;

César, Pompeu, Antônio, Crasso, Augusto,

Nomes que a Fama pôs dos deuses perto,

reduziram por glória

Cidades e províncias a deserto;

E apenas conhecemos pela História,

que o tem roubado às eras,

Qual fosse a habitação que hoje é das feras.

Bárbara Roma, só por nome augusta,

desata o pranto, vendo

A conquista do mundo o que te custa;

Cortam os fios dos arados tortos

Trezentos Fábios num só dia mortos;

Zelosa negas um honrado asilo

ao ilustre Camilo;

A Mânlio, ingrata, do escarpado cume

arrojas por ciúme,

E vês a sangue frio, ó povo vário,

Subir Marcelo as proscrições de Mário.  

Grande Marquês,  os Sátiros saltando

por entre verdes parras,

Defendidas por ti de estranhas garras;

os trigos ondeando

nas fecundas searas;

Os incensos fumando sobre as aras,

à nascente cidade

Mostram a verdadeira heroicidade.

Os altos cedros, os copados pinhos

não a conduzir raios,

Vão romper pelo mar novos caminhos;

E em vez de sustos, mortes e desmaios,

danos da natureza,

Vão produzir e transportar riqueza.

O curvo arado rasga os campos nossos

Sem turbar o descanso eterno aos ossos;

Frutos do teu suor, do teu trabalho,

são todas as empresas;

Unicamente à sombra de Carvalho

Descansam hoje as quinas portuguesas.

Que importam os exércitos armados,

No campo com respeito conservados,

Se lá do gabinete a guerra fazes

E a teu arbítrio dás o tom às pazes?

Que, sendo por mão destra manejada,

A política vence mais que a espada.

Que importam tribunais e magistrados,

asilos da inocência,

Se pudessem temer-se declarados

patronos da insolência?

De que servirão tantas

Tão saudáveis leis, sábias e santas,

se, em vez de executadas,

Forem por mãos sacrílegas frustradas?

Mas vives tu, que para o bem do mundo

sobre tudo vigias,

Cansando o teu espírito profundo,

as noites e os dias.

Ah! quantas vezes, sem descanso uma hora,

Vês recostar-se o sol, erguer-se a aurora,

Enquanto volves com cansado estudo

As leis e a guerra, e o negócio, e tudo?

Vale mais do que um reino um tal vassalo:

Graças ao grande rei que soube achá-lo.

15

América sujeita, Ásia vencida,

África escrava, Europa respeitosa;

Restaurada, mais rica e mais formosa,

A fundação de Ulisses destruída,

São a base em que vemos erigida

A colossal estátua majestosa,

Que d'el-rei à memória gloriosa

Consagrou Lusitânia agradecida.

Mas como a glória do monarca justo

é bem que àquele herói se comunique,

Que a fama canta, que eterniza o busto,

Pombal junto a José eterno fique,

Qual o famoso Agripa junto a Augusto,

Como Sully ao pé do grande Henrique.

16

Se, armada, a Macedônia ao Indo assoma

E Augusto a sorte entrega ao imenso lago;

Se o grande Pedro, errando, incerto e vago,

Bárbaros duros civiliza e doma;

Grécia de Babilônia exemplos toma,

Aprende Augusto no inimigo estrago,

Ensina a Pedro quem fundou Cartago,

E as leis de Atenas traz ao Lácio e Roma.

Tudo mostra o teatro, tudo encerra;

Nele a cega razão aviva os lumes

Nas artes, nas ciências e na guerra;

E a vós, alto senhor, que o rei e os numes

Deram por fundador à nossa terra,

Compete a nova escola dos costumes.

17

Do claro Tejo à escura foz do Nilo

E do bárbaro Araxe ao Tibre vago,

A fama, o susto e o marcial estrago,

Rompe a Fama os clarins em repeti-lo.

Mas não podem achar seguro asilo

Fora das margens do estígio lago

Os assombros de Roma e de Cartago:

Aníbal, Cipião, Fábio e Camilo.

Os grandes ossos cobre a terra dura,

E a morte desenrola o negro manto

Sobre o pio José na sepultura.

Injusta morte, sofre o nosso pranto,

Que, ainda que és lei a toda a criatura,

Parece não devias poder tanto.

18

Marília bela,

Vou retratar-te,

Se a tanto a arte

Puder chegar.

Trazei-me, Amores,

Quanto vos peço:

Tudo careço

Para a pintar.

Nos longos fios

De seus cabelos

Ternos desvelos

Vão se enredar.

Trazei-me, Amores,

Das minas d'ouro

Rico tesouro

Para os pintar.

No rosto, a idade

Da primavera

Na sua esfera

Se vê brilhar.

Trazei-me, Amores,

As mais viçosas

Flores vistosas

Para o pintar.

Quem há que a testa

Não ame e tema,

De um diadema

Digno lugar?

Trazei-me, Amores,

Da selva Idália

Jasmins de Itália

Para a pintar.

A frente adornam

Arcos perfeitos,

Que de mil peitos

Sabem triunfar.

Trazei-me, Amores,

Justos nivéis,

Sutis pincéis

Para a pintar.

A um doce aceno

Dos brandos olhos,

Setas a molhos

Se vêem voar.

Trazei-me, Amores,

Do sol os raios,

Fiéis ensaios,

Para os pintar.

Nas lisas faces

Se vê a aurora,

Quando colora

A terra e o mar.

Trazei-me, Amores,

As mais mimosas

Pudicas rosas

Para as pintar.

Os meigos risos

Com graças novas

Nas lindas covas

Vão-se ajuntar.

Trazei-me, Amores,

Aos pincéis leves

As sombras leves,

Para os pintar.

Vagos desejos

Da boca as brasas

As frágeis asas

Deixam queimar.

Trazei-me, Amores,

Corais subidos,

Rubins partidos,

Para a pintar.

Entre alvos dentes,

Postos em ala,

Suave fala

Perfuma o ar.

Trazei-me, Amores,

Nas conchas claras,

Pérolas raras,

Para os pintar.

O colo, Atlante

De tais assombros,

Airosos ombros

Corre a formar.

Trazei-me, Amores,

Jaspe às mãos cheias,

De finas veias,

Para o pintar.

Do peito as ondas

São tempestades,

Onde as vontades

Vão naufragar.

Trazei-me, Amores,

Globos gelados,

Limões nevados

Para o pintar.

Mãos cristalinas,

Roliços braços,

Que doces laços

Prometem dar!

Trazei-me, Amores,

As açucenas,

Das mais pequenas,

Para as pintar.

A delicada,

Gentil cintura

Toda se apura

Em se estreitar.

Trazei-me, Amores,

ânsias que fervem:

Só essas servem

Para a pintar.

Pés delicados

Ferindo a terra,

Às almas guerra

Vêm declarar.

Trazei-me, Amores,

As setas prontas

De curtas pontas

Para os pintar.

Porte de deusa,

Spírito nobre,

E o mais, que encobre

Pejo vestal.

Só vós, Amores,

Que as Graças nuas

Vêdes, as suas

Podeis pintar.

19

Honradas sombras dos maiores nossos,

Que estendestes a lusa monarquia

Do torrado Equador à zona fria,

Por incultos sertões, por mares grossos,

Saí a ver os sucessores vossos

Revestidos de gala e de alegria,

E nos prazeres do mais fausto dia

Dai vigor novo aos carcomidos ossos.

Lá vem o grande Afonso, a testa erguendo

A ver Carvalho, em cujos fortes braços

Crescem os netos que lhe vão nascendo;

E o suspirado Almeida rompe os laços

Da fria morte, o neto invicto vendo

Seguir tão perto de Carvalho os passos.

20

Expõe Teresa acerbas mágoas cruas;

E à briosa nação, de furor tinta

Faz arrancar da generosa cinta

O reflexo de mil espadas nuas.

Arrasta e pisa as otomanas luas

E, por mais que Netuno o não consinta,

A heroína do Norte faz que sinta

O peso o mar Egeu das quilhas suas.

Seus nomes no áureo templo a fama ajunta,

Mas pintar seus estragos não se atreve;

Ao seu Danúbio, ao mar Negro o pergunta.

Lusitânia aos céus muito mais deve:

Que a rege, como aos povos d'Amatunta,

Freio de rosas posto em mãos de neve.

21

Bárbara bela,

Do Norte estrela,

Que o meu destino

Sabes guiar,

De ti ausente,

Triste somente

As horas passo

A suspirar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

Por entre as penhas

De incultas brenhas

Cansa-me a vista

De te buscar;

Porém não vejo

Mais que o desejo,

Sem esperança

De te encontrar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

Eu bem queria

A noite e o dia

Sempre contigo

Poder passar;

Mas orgulhosa

Sorte invejosa

Desta fortuna

Me quer privar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

Tu, entre os braços,

Ternos abraços

Da filha amada

Podes gozar.

Priva-me a estrela

De ti e dela,

Busca dois modos

De me matar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

22

Peitos que o amor da pátria predomina,

Vêde o consórcio que a virtude traça.

Não é de Chipre na festosa praça

Que o nobre Andrada a Isabel se inclina.

Abençoa do alto a mão divina

O nó sagrado, que apertou a Graça;

E a mesma inocência que os enlaça

Feliz posteridade lhes destina.

Risonhos amorinhos de Citera,

Fugi deste lugar, aos céus aceito,

Que aqui nem Vênus nem Cupido impera.

Gênios celestiais, cercai-lhe o leito:

Do puro fogo da sublime esfera

Desçam as chamas a inflamar-lhe o peito.

23

Bárbaros filhos destas brenhas duras,

Nunca mais recordeis os males vossos;

Revolvam-se no horror das sepulturas

Dos primeiros avós os frios ossos:

Que os heróis das mais altas cataduras

Principiam a ser patrícios nossos;

E o vosso sangue, que esta terra ensopa,

Já produz frutos do melhor da Europa.

Bem que venha a semente à terra estranha,

Quando produz, com igual força gera;

Nem do forte leão, fora de Espanha,

A fereza nos filhos degenera;

O que o estio numas terras ganha,

Em outras vence a fresca primavera;

E a raça dos heróis da mesma sorte

Produz no sul o que produz no norte.

Rômulo porventura foi Romano?

E Roma a quem deveu tanta grandeza?

Não era o grande Henrique Lusitano:

Quem deu princípio à glória portuguesa?

Que importa que José Americano

Traga a honra, a virtude e a fortaleza

De altos e antigos troncos portugueses,

Se é patrício este ramo dos Meneses?

Quando algum dia permitir o Fado

Que ele o mando real moderar venha,

E que o bastão do pai, com glória herdado,

Do pulso invicto pendurado tenha,

Qual esperais que seja o seu agrado?

Vós exp'rimentareis como se empenha

Em louvar estas serras e estes ares

E venerar, gostoso, os pátrios lares.

Esses partidos morros e escalvados

Que enchem de horror a vista delicada

Em soberbos palácios levantados

Desde os primeiros anos empregada,

Negros e extensos bosques tão fechados,

Que até ao mesmo Sol negam a entrada,

E de agreste País habitadores

Bárbaros homens de diversas cores, [1]

Isto, que Europa barbaria chama,

Do seio das delícias, tão diverso,

Quão diferente é para quem ama

Os ternos laços de seu pátrio berço!

O pastor loiro, que o meu peito inflama,

Dará novos alentos ao meu verso,

Para mostrar do nosso herói na boca

Como em grandezas tanto horror se troca.

"Aquelas serras na aparência feias,

─ dirá José ─ oh quanto são formosas!

Elas conservam nas ocultas veias

A força das potências majestosas;

Têm as ricas entranhas todas cheias

De prata, oiro e pedras preciosas;

Aquelas brutas e escalvadas serras

Fazem as pazes, dão calor às guerras.

"Aqueles matos negros e fechados,

Que ocupam quase a região dos ares,

São os que, em edifícios respeitados,

Repartem raios pelos crespos mares.

Os coríntios palácios levantados,

Dóricos templos, jônicos altares,

São obras feitas desses lenhos duros,

Filhos desses sertões feios e escuros.

"A c'roa de oiro, que na testa brilha,

E o cetro, que empunha na mão justa

Do augusto José a heróica filha,

Nossa rainha soberana augusta;

E Lisboa, da Europa maravilha,

Cuja riqueza todo o mundo assusta,

Estas terras a fazem respeitada,

Bárbara terra, mas abençoada.

"Estes homens de vários acidentes,

Pardos e pretos, tintos e tostados,

São os escravos duros e valentes,

Aos penosos trabalhos costumados:

Eles mudam aos rios as correntes,

Rasgam as serras, tendo sempre armados

Da pesada alavanca e duro malho

Os fortes braços feitos ao trabalho.

"Porventura, senhores, pôde tanto

O grande herói, que a antiguidade aclama,

Porque aterrou a fera de Erimanto,

Venceu a Hidra com o ferro e chama?

Ou esse a quem da tuba grega o canto

Fez digno de imortal e eterna fama?

Ou inda o macedônico guerreiro,

Que soube subjugar o mundo inteiro?

"Eu só pondero que essa força armada,

Debaixo de acertados movimentos,

Foi sempre uma com outra disputada

Com fins correspondentes aos intentos.

Isto que tem co'a força disparada

Contra todo o poder dos elementos,

Que bate a forma da terrestre esfera,

Apesar duma vida a mais austera?

"Se o justo e útil pode tão somente

Ser o acertado fim das ações nossas,

Quais se empregam, dizei, mais dignamente

As forças destes ou as forças vossas?

Mandam a destruir a humana gente

Terríveis legiões, armadas grossas;

Procurar o metal, que acode a tudo,

é destes homens o cansado estudo.

"São dignos de atenção..." Ia dizendo

A tempo que chegava o velho honrado,

Que o povo reverente vem benzendo

Do grande Pedro co’o poder sagrado;

E já o nosso herói nos braços tendo,

O breve instante em que ficou calado,

De amor em ternas lágrimas desfeito,

Estas vozes tirou do amante peito:

"Filho, que assim te chamo, filho amado,

Bem que um tronco real teu berço enlaça,

Porque foste por mim regenerado

Nas puras fontes da primeira graça;

Deves o nascimento ao pai honrado,

Mas eu de Cristo te alistei na praça;

E estas mãos, por favor de um Deus eterno,

Te restauraram do poder do Inferno.

"Amado filho meu, torna a meus braços,

Permita o Céu que a governar prossigas,

Seguindo sempre de teu pai os passos,

Honrando as suas paternais fadigas.

Não receies que encontres embaraços

Aonde quer que o teu destino sigas,

Que ele pisou por todas estas terras

Matos, rios, sertões, morros e serras.

"Valeroso, incansável, diligente

No serviço real, promoveu tudo

Já nos países do Puri valente,

Já nos bosques do bruto Boticudo;

Sentiram todos sua mão prudente

Sempre debaixo de acertado estudo;

E quantos viram seu sereno rosto

Lhe obedeceram por amor, por gosto.

"Assim confio o teu destino seja,

Servindo a pátria e aumentando o Estado,

Zelando a honra da Romana Igreja,

Exemplo ilustre de teus pais herdado;

Permita o Céu que felizmente veja

Quanto espero de ti desempenhado.

Assim, contente, acabarei meus dias;

Tu honrarás as minhas cinzas frias."

Acabou de falar o honrado velho,

Com lágrimas as vozes misturando.

Ouviu o nosso herói o seu conselho,

Novos projetos sobre os seus formando:

Propagar as doutrinas do Evangelho,

Ir os patrícios seus civilizando;

Aumentar os tesouros da Reinante

São seus desvelos desde aquele instante.

Feliz governo, queira o Céu sagrado

Que eu chegue a ver esse ditoso dia,

Em que nos torne o século doirado

Dos tempos de Rodrigo e de Maria;

Século que será sempre lembrado

Nos instantes de gosto e de alegria,

Até os tempos, que o Destino encerra,

De governar José a pátria terra.

24

Amada filha, é já chegado o dia,

Em que a luz da razão, qual tocha acesa,

Vem conduzir a simples natureza,

é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,

Despreza ofertas de uma vã beleza,

E sacrifica as honras e a riqueza

às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,

Que amar a Deus, amar aos semelhantes,

São eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são idéias delirantes;

Procura ser feliz na eternidade,

Que o mundo são brevíssimos instantes.

25

De meio corpo, nu, sobre a bigorna,

Os ferros malhe o imortal Vulcano,

Que hão-de ir contar ao derradeiro ano

O nome de um herói que a pátria adorna.

Suntuoso passeio em parte a orna;

Vistoso cais enfreia o Oceano;

E na praça um colosso, altivo e ufano,

As frescas águas pelo povo entorna.

Estas, grande senhor, memórias vossas,

Que ficam na cidade eternizadas,

Também o ficam nas memórias nossas;

E as línguas, por Vulcano temperadas,

Hão-de entranhar em duras pedras grossas

De vosso nome as letras respeitadas.

26

Segue dos teus maiores,

Ilustre ramo, as sólidas pisadas;

espalha novas flores

Sobre as suas ações, grandes e honradas;

Abre da tua mão da glória o templo,

Mas move o braço pelo seu exemplo.

A herdada nobreza

Aumenta, mas não dá merecimento;

dos heróis a grandeza

Deve-se ao braço, deve-se ao talento;

E assim foi que, acalcando o seu destino,

Deu leis ao mundo o cidadão de Arpino.

Abre-te a nova terra

Para heróicas ações um plano vasto;

Ou na paz ou na guerra

Orna os triunfos teus de um novo fasto;

Faze servir aos Castros e aos Mendonças

Malhados tigres, marchetadas onças.

Não há bárbara fera

Que o valor e a prudência não domine.

Quando a razão impera,

Que leão pode haver que não se ensine?

E o forte jugo, por si mesmo grave,

A doce mão que o põe o faz suave.

Que fez a Natureza

Em pôr neste país o seu tesouro,

das pedras na riqueza,

Nas grossas minas abundantes de ouro,

Se o povo miserável?... Mas que digo:

Povo feliz, pois tem o vosso abrigo!

Já sobre os densos ares

Horrenda tempestade alevantada

abre o seio dos mares

Para tragar a nau despedaçada...

Porém destro piloto arreia o pano,

Salva o perigo e remedeia o dano.

Assim a grande augusta,

Que vê o mal com ânimo paterno,

em mão prudente e justa

Vem colocar as rédeas do governo:

Eu vejo a nau, já do perigo isenta,

Buscar o porto livre da tormenta.

A vós, florente ramo,

Meus versos mal limados dirigia.

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27

Que mal se mede dos heróis a vida

Pela série dos anos apressados!

Muito vive o que emprega os seus cuidados

Em ganhar nome e fama esclarecida.

Em vão, dobrando os passos, atrevida,

Chega a morte cruel, e os negros fados:

Quem viveu para a glória tem gravados

Seus dias sobre esfera mais luzida.

Jaz o ilustre Marquês! As tristes Dores

Espalham com o respeito mais profundo

Na fria urna estas piedosas flores:

"Breve a vida lhe foi; mas, sem segundo,

O seu nome imortal entre os maiores

Será sempre saudoso à pátria e ao mundo."

28

Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta

Feliz, ditosa, sossegada sesta!

Eu vi o Pão d'Açúcar levantar-se,

E no meio das ondas transformar-se

Na figura do índio mais gentil,

Representando só todo o Brasil.

Pendente a tiracol de branco arminho,

Côncavo dente de animal marinho

As preciosas armas lhe guardava:

Era tesouro e juntamente aljava.

De pontas de diamante eram as setas,

As hásteas de ouro, mas as penas pretas;

Que o índio valeroso, ativo e forte,

Não manda seta em que não mande a morte.

Zona de penas de vistosas cores,

Guarnecida de bárbaros lavores,

De folhetas e pérolas pendentes,

Finos cristais, topázios transparentes,

Em recamadas peles de saíras,

Rubins, e diamantes e safiras,

Em campo de esmeralda escurecia

A linda estrela que nos traz o dia.

No cocar... oh! que assombro, oh! que riqueza!

Vi tudo quanto pode a natureza:

No peito, em grandes letras de diamante,

O nome da Augustíssima Imperante.

De inteiriço coral novo instrumento

As mãos lhe ocupa, enquanto ao doce acento

Das saudosas palhetas, que afinava,

Píndaro Americano assim cantava:

“Sou vassalo, sou leal:

como tal,

fiel, constante,

Sirvo à glória da imperante,

Sirvo à grandeza real.

Aos Elísios descerei,

Fiel sempre a Portugal,

Ao famoso vice-rei,

Ao ilustre general,

às bandeiras que jurei.

Insultando o fado e a sorte

E a fortuna desigual,

A quem morrer sabe, a morte

Nem é morte nem é mal".

29

"Invisíveis vapores,

Da baixa terra contra o Céu erguidos,

Não ofuscam o sol os resplendores.

Os padrões erigidos

À fé real nos peitos lusitanos

São do primeiro Afonso conhecidos.

A nós, Americanos,

Toca levar pela razão mais justa

Do trono a fé aos derradeiros anos.

Fidelíssima Augusta,

Desentranhe um riquíssimo tesouro

Do cofre americano a mão robusta.

Se ao Tejo, ao Minho, ao Douro

Lhe mostra um rei em bronze eternizado,

Mostre-lhe a filha eternizada em ouro.

Do trono os resplendores

Façam a nossa glória, e vestiremos

Bárbaras penas de vistosas cores.

Para nós só queremos

Os pobres dons da simples natureza,

E seja vosso tudo quanto temos.

Sirva à real grandeza

A prata, o ouro, a fina pedraria,

Que esconde destas serras a riqueza.

Ah! chegue o feliz dia,

Em que do Mundo Novo a parte inteira

Aclame o nome augusto de Maria.

Real, Real, Primeira!

Só esta voz na América se escute,

Veja-se tremular tua bandeira!

Rompam instável sulco

Do Pacífico mar na face plana

Os galeões pesados de Acapulco.

Das serras da Araucana

Desçam nações confusas, diferentes,

A vir beijar as mãos da soberana.

Chegai, chegai, contentes,

Não temais dos Pissarros a fereza

Nem dos seus companheiros insolentes.

A Augusta portuguesa

Conquista corações, em todos ama

O soberano autor da natureza.

Por seus filhos vos chama,

Vem pôr termo à nossa desventura

E os seus favores sobre nós derrama.

Se o Rio de Janeiro

Só a glória de ver-vos merecesse,

Já era vosso o Mundo Novo inteiro;

Eu fico que estendesse

Do Cabo ao mar Pacífico as medidas

E por fora da Habana as recolhesse.

Ficavam incluídas

As terras que vos foram consagradas,

Apenas por Vespúcio conhecidas.

As cascas enroladas,

Os aromas e os índicos efeitos

Poderão mais que as serras prateadas;

Mas nós, de amor sujeitos,

Prontos vos ofertamos à conquista

Bárbaros braços e constantes peitos.

Pode a Tartária grega

A luz gozar da russiana aurora,

E a nós esta fortuna não nos chega?

Vinde, real Senhora,

Honrai os vossos mares por dous meses,

Vinde ver o Brasil, que vos adora.

Noronhas e Meneses,

Cunhas, Castros, Almeidas, Silvas, Melos,

Têm prendido o Leão por muitas vezes.

Fiai os reais selos

A mãos seguras, vinde descansada:

De que servem dous grandes Vasconcelos?

Vinde a ser coroada

Sobre a América toda, que protesta

Jurar nas vossas mãos a lei sagrada.

Vai, ardente desejo,

Entra humilhado na real Lisboa,

Sem ser sentido do invejoso Tejo.

Aos pés augustos voa,

Chora e faze que a mãe, compadecida,

Dos saudosos filhos se condoa.

Ficando enternecida,

Mais do Tejo não temas o rigor:

Tens triunfado, tens a ação vencida.

Da América o furor

Perdoai, grande Augusta; é lealdade,

São dignos de perdão crimes de amor.

Perdoe a Majestade,

Enquanto o Mundo Novo sacrifica

À tutelar, propícia Divindade.

O príncipe sagrado,

O Pão da Pedra, que domina a barra,

Em colossal estátua levantado,

Veja a triforme garra

Quebrar-lhe aos pés Netuno furioso,

Que o irritado sudoeste escarra;

E veja, glorioso,

Vastíssima extensão de imensos mares,

Que cercam seu império majestoso;

Honrando nos altares

Ũa mão, que o faz ver de tanta altura,

Ambos os mundos seus, ambos os mares

E a fé mais santa e pura

Espalhada nos bárbaros desertos,

Conservada por vós firme e segura.

Sombra ilustre e famosa

Do grande fundador do luso Império,

Eterna paz eternamente goza.

Num e noutro hemisfério

Tu vês os teus augustos descendentes

Dar as leis pela voz do Ministério;

E os povos diferentes,

Que é impossível quase o numerá-los,

Vêm a tributar-lhe honra, obedientes.

A glória de mandá-los

Pedem ao neto glorioso teu,

Que adoram, rei, que servirão, vassalos."

O Índio o pé bateu,

Tremeu a terra, ouvi trovões, vi raios,

E de repente desapareceu.

30

A mão que aterra do Nemeu a garra,

Atreu, Aquiles, Sofonisba e Fedra

São assuntos da lira, e nunca medra,

Invejosa dos cisnes, a cigarra.

Tu, onde o vento e o mar a fúria esbarra,

Sem chamas de rubim, facetas de edra,

Imortal ficarás por mim, ó pedra,

Que ao longe mostras de teu rio a barra.

Abrasado entre as chispas na bigorna,

Malha Vulcano e do trifauce perro

Brontes a Estígia caldeando entorna.

O grande Castro em bronze, em ouro, em ferro,

Por mão de um Deus a tua frente adorna:

Mais durarás do que o Cefás do Serro.

31

Não me aflige do potro a viva quina;

Da férrea maça o golpe não me ofende;

Sobre as chamas a mão se não estende;

Não sofro do agulhete a ponta fina.

Grilhão pesado os passos não domina;

Cruel arrocho a testa me não fende;

à força perna ou braço se não rende;

Longa cadeia o colo não me inclina.

Água e pomo faminto não procuro;

Grossa pedra não cansa a humanidade;

A pássaro voraz  eu não aturo.

Estes males não sinto, é bem verdade;

Porém sinto outro mal inda mais duro:

Da consorte e dos filhos a saudade!

32

Eu não lastimo o próximo perigo,

Uma escura prisão, estreita e forte;

Lastimo os caros filhos, a consorte,

A perda irreparável de um amigo.

A prisão não lastimo, outra vez digo,

Nem o ver iminente o duro corte;

Que é ventura também achar a morte,

Quando a vida só serve de castigo.

Ah, quem já bem depressa acabar vira

Este enredo, este sonho, esta quimera,

Que passa por verdade e é mentira!

Se filhos, se consorte não tivera,

E do amigo as virtudes possuíra,

Um momento de vida eu não quisera.

33

A paz, a doce mãe das alegrias,

O pranto, o luto, o dissabor desterra;

Faz que se esconda a criminosa guerra,

E traz ao mundo os venturosos dias.

Desce, cumprindo eternas profecias,

A nova geração dos céus à terra;

O claustro virginal se desencerra,

Nasce o filho de Deus, chega o Messias.

Busca um presépio, cai no pobre feno

A mão onipotente, a quem não custa

Criar mil mundos ao primeiro aceno.

Bendita sejas, lusitana augusta

Cobre o mar, cobre a terra um céu sereno,

Graças a ti, ó grande, ó sábia, ó justa!

34

Chia de dia pela rua o carro,

Tine de noute da corrente o ferro;

Aqui me estruge do soldado o berro,

Aqui ronca do oficial o escarro.

Uns trabalham na cal, outros no barro,

Fugiu a vadiação, pôs-se em desterro;

O soldado ali faz justiça ao erro,

E a cada canto com galés esbarro.

Não há milho, feijão, não há farinha,

O roceiro de medo a tropa arreia,

A nova lotaria se avizinha.

Vê-se a porta de mendigos cheia,

E perguntada a causa desta tinha,

Toda a gente me diz: “— Faz-se a cadeia”. [2]

 



[1]  Esta estrofe, não incluída na primeira publicação do poema, no Almanaque das Musas, constava da edição do Parnaso Brasileiro, do Cônego Januário da Cunha Barbosa.

[2] Este soneto foi localizado por Francisco Topa no Ms. 542, página 131, num documento intitulado Collecção de varias obras poeticas dedicadas ás Pessoas de bom gosto por Henrique de Brederode, do Fundo Manizola da Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora. Trazendo poemas da segunda metade do século XVIII, sem explicitação de data, esse manuscrito apresenta outros poemas reconhecidamente de Alvarenga Peixoto. O soneto em questão traz “Alvarenga” como indicação de autoria.