Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA PORTUGUESA
Textos literários em meio eletrônico

Livro das obras de Garcia de Resende


Edição de Referência:

Livro das obras de Garcia de Resende.

Lisboa: Calouste Gulbekian, 1994, 899 p.

LIVRO DAS OBRAS

DE GARCIA DE RESENDE

ÍNDICE

LYVRO DAS OBRAS DE GARCIA DE RESENDE

ALVARA

PROLOGO DE GARCIA DE RESENDE a el rey nosso senhor

AS FEIÇÕES E VIRTUDES  D’ EL-REY DOM JOÃO

VIDA E FEITOS D’ EL-REY DOM JOÃO SEGUNDO

Cap. I                      Nacimento d’el-rey Dom João

Cap. II                     De como foy baptizado

Cap. III                   De sua criaçam

Cap. IV                    Do seu casamento

Cap. V                     De como foy na tomada  d’ Arzilla

Cap. VI                    Do que lhe aqueceo de noite

Cap. VII                  De como tomou sua molher

Cap. VIII                 Do nacimento do yffante seu filho

Cap. IX                    De como ficou em Portugal

Cap. X                     De como tomou Ouguella

Cap. XI                    De como partio pera Çamora

Cap. XII                  De como foy a Castela a socorrer a el-rey seu pay

Cap. XIII                 De como venceo ha batalha de Touro

Cap. XIV                 De como tornou a Portugal

Cap. XV                   Doutras cousas que no reino se seguiram andando el-rey seu pay em França

Cap. XVI                 De como tomou Alegrete

Cap. XVII                De como foy alçado rey

Cap. XVIII              Do que fez quando seu pay veo de França

Cap. XIX                 Do que passou com ho cardeal

Cap. XX                   Da morte de Lopo Vaz de Torram

Cap. XXI                 Do que fez nas terçarias

Cap. XXII                De como foy alçado por rey outra vez

Cap. XXIII              Do saymento d’ el-rey Dom Afonso

Cap. XXIV               Do que fez sobre hum alvara de Nuno Pereira

Cap. XXV                De como fez a cidade da Mina

Cap. XXVI               Das cortes que fez em Evora

Cap. XXVII             Do principio do caso do duque de Bragança

Cap. XXVIII            De como se deram as menajens

Cap. XXIX               Do que nas cortes el-rey ordenou

Cap. XXX                Ida d’ el-rey a Montemor e do que aqueceo ao marquês da dita villa

Cap. XXXI               Do que o marquês fez contra el-rey

Cap. XXXII             De como el-rey quisera mandar carregedores aas terras dos senhores

Cap. XXXIII            Das graças e separadas

Cap. XXXIV            Embaixada que foy a Inglaterra

Cap. XXXV              Doutra embayxada que foy a Castella

Cap. XXXVI            De como a raynha moveo

Cap. XXXVII           Da falla que el-rey fez ao duque

Cap. XXXVIII         Reposta do duque

Cap. XXXIX            Do que depois desta fala se passou

Cap. XL                   Descubrimento de Gaspar Jusarte  e Pero Jusarte a el-rey do caso do duque

Cap. XLI                  Embaixada dos reys de Castela

Cap. XLII                Desfazimento das terçarias

Cap. XLIII               Entrada do principe em Evora

Cap. XLIV               Da prisam do duque de Bragança

Cap. XLV                 Do que se cometeo a el-rey sobre o duque

Cap. XLVI               Do perdam do duque de Viseu e da morte do duque de Bragança

Cap. XLVII              Da vinda do senhor Dom Manoel

Cap. XLVIII            Partida d’ el-rey pera Abrantes

Cap. XLIX               Da justiça na estatua do marquês

Cap. L                      Partida pera Sam Domingos

Cap. LI                    Do que aqueceo a el-rey em Santarem

Cap. LII                   Do começo do caso do duque de Viseu

Cap. LIII                 De como foy a morte do duque

Cap. LIV                  Da merce que el-rey fez ao senhor Dom Manoel

Cap. LV                   De como se notificou aa iffante a morte do filho

Cap. LVI                  Embaixada que veo de Castela

Cap. LVII                Mudança que se fez no escudo real

Cap. LVIII               Da embaixada que el-rey mandou a Roma

Cap. LIX                  Tomada das galees de Veneza

Cap. LX                   De como Azamor tomou el-rey por senhor

Cap LXI                   De como mandava descobrir a India

Cap. LXII                Da polvora que mandou a el-rey de Castella

Cap. LXIII               Da prisam de Dom Alvoro de Souto Mayor

Cap. LXIV               De como el-rey defendeo as sedas

Cap. LXV                 De como se descobrio Beni

Cap. LXVI               Do que mandou sobre as letras de Roma

Cap. LXVII              Ida de Dom Diogo d’ Almeyda aos aduares

Cap. LXVIII            Da prisam de Barraxe mouro

Cap. LXIX               Da enquisição sobre os confessos

Cap. LXX                 De como mandou repayrar as fortalezas

Cap. LXXI               Da prisão do alcayde d’ Alcacer Quebir

Cap. LXXII              Da prisão d’ el-rey dos romãos

Cap. LXXIII            Do conselho sobre o casamento do principe

Cap. LXXIV             Prisão do conde de Penamocor

Cap. LXXV              Como captivaram Dom Antonio

Cap. LXXVI             Ida do capitão a Africa

Cap. LXXVII           Do que el-rey fez com hum touro

Cap. LXXVIII          De como Bemohi veo a Portugal

Cap. LXXIX             De como foy feito ho marquês

Cap. LXXX              Do que el-rey disse por Dom João

Cap. LXXXI             Do principio da Graciosa

Cap. LXXXII           De como el-rey quis yr em pessoa

Cap. LXXXIII          Do que el-rey passou com Pero Pantoja

Cap. LXXXIV          Do que el-rey fez a dous fidalgos que se vieram d’ Arzila

Cap. LXXXV            Do que el-rey disse a Ruy d’ Abreu

Cap. LXXXVI          Do que el-rey disse a Fernão Serram

Cap. LXXXVII         Do que el-rey fez a Diogo d’ Azambuja e a Pero de Mello

Cap. LXXXVIII       Do que fez ao capitão da Ylha

Cap. LXXXIX          Do que fez a Joam Alvarez o Gato

Cap. XC                   Da merce que fez a João Goo

Cap. XCI                 Da honrra que fez a mestre Antonio

Cap. XCII                Do que disse por dous ladrões

Cap. XCIII              Do que el-rey escreveo ao conde de Borba

Cap. XCIV               Do que fez a Gomez de Figueredo

Cap. XCV                Da merce que el-rey fez a hum desembargador por dar hũa sentença contra elle  

Cap. XCVI               Da merce que fez a Alvoro Mazcarenhas

Cap. XCVII             Do que passou el-rey sobre hum feito seu

Cap. XCVIII            De hum homem a que el-rey deu a vida

Cap. XCIX               De hum moço a que deu a vida

Cap. C                     Do feyto do carcereiro

Cap. CI                    Doutro homem a que deu a vida

Cap. CII                  Doutro homem a que deu a vida

Cap. CIII                 Dum homem que disse mal doutro

Cap. CIV                 Do que disse ao corregedor da corte

Cap. CV                   Da maneira que deu hum oficio  

Cap. CVI                 Do que el-rey fez a hum homem por esperar hum touro

Cap. CVII                Do que fez el-rey por nam passar hum alvara

Cap. CVIII              Do que el-rey disse por Manoel de Melo

Cap. CIX                 Das cortes d’ Evora

Cap. CX                   De hũa justiça nova

Cap. CXI                 Tomada de Targa

Cap. CXII                Mudança do Moesteiro de Sanctos

Cap. CXIII              Vinda do senhor Dom Jorge filho d’ el-rey aa corte a primeira vez

 Cap. CXIV              Do principio do casamento do principe Dom Afonso

Cap. CXV                Da nova do principe ser casado

Cap. CXVI               Da morte da iffante yrmaã d’ el-rey

Cap. CXVII             De como el-rey e a raynha de Castella notificaram a el-rey o casamento do principe

Cap. CXVIII            Da salla da madeira que se fez

Cap. CXIX               De como se despejou ha cidade

Cap. CXX                Da vinda da princesa

Cap. CXXI               De como a princesa foy entregue em Portugal

Cap. CXXII             De como el-rey e o principe foram aa princesa a Estremoz

Cap. CXXIII            Entrada da princesa em Evora

Cap. CXXIV            Do banquete da sala da madeira

Cap. CXXV              Doutro banquete na sala da madeira

Cap. CXXVI            Como se ordenaram as justas reaes

Cap. CXXVII           Dos ricos momos da sala da madeira

Cap. CXXVIII         De como el-rey deu amostra nas justas

Cap. CXXIX            Sayda d’ el-rey da cidade

Cap. CXXX              Como el-rey tornou aa cidade

Cap. CXXXI            De como ho principe entrou em Santarem  

Cap. CXXXII           Da triste morte do principe

Cap. CXXXIII         Da mudança do senhor Dom Jorge

Cap. CXXXIV          Do saymento do principe

Cap. CXXXV           Hida da princesa pera Castella

Cap. CXXXVI          Hida d’ el-rey e a raynha a Lisboa

Cap. CXXXVII        Provisam dos mestrados ao senhor Dom Jorge

Cap. CXXXVIII       Hũa reposta d’ el-rey

Cap. CXXXIX          Da merce que el-rey fez aos filhos de Dom Pedro d’ Eça per sua morte

Cap. CXL                 Do principio do Esprital de Lixboa

Cap. CXLI               De hũa reposta aa raynha de Castella

Cap. CXLII              Do que el-rey disse quando fez mordomo-mor a Dom Joam de Menezes

Cap. CXLIII            De quando defendeo as mulas

Cap. CXLIV             Do que el-rey fez a Dom Francisco d’ Almeida

Cap. CXLV              Do que respondeo a Ruy Gil

Cap. CXLVI             Do que el-rey fez sobre hũa caravella da Mina que lhe tomaram hos franceses

Cap. CXLVII           Do que el-rey fez quando partio a sua nao  

Cap. CXLVIII          Do que el-rey disse ao barão

Cap. CXLIX             Do que el-rey disse a João Fogaça

Cap. CL                   Do que el-rey fez a Pero d’ Alanquer

Cap. CLI                  Do que el-rey fez sobre huns capitolos que lhe mandaram dum homem

Cap. CLII                Do que disse ao bispo de Tangere

Cap. CLIII               Do que el-rey disse a hum homem

Cap. CLIV               Do que el-rey Dom Fernando e a raynha e el-rey de França disseram por el-rey

Cap. CLV                 De como se descubrio o reyno de Congo

Cap. CLVI               Chegada dos negros a sua terra

Cap. CLVII              De como os christãos foram a el-rey

Cap. CLVIII            Da entrada dos christãos na corte

Cap. CLIX               De como se fez a ygreja

Cap. CLX                 Como el-rey foy feyto christão

Cap. CLXI               Como a raynha foy feita christaã

Cap. CLXII              Principio da doença d’ el-rey

Cap. CLXIII            Entrada dos judeus de Castella

Cap. CLXIV             Embaixada que foy a Roma

Cap. CLXV              Descubrimento das Antilhas

Cap. CLXVI             Embaixada que veo de Castella

Cap. CLXVII           Embaixada que foy a Castella

Cap. CLXVIII          Dos avisos aos embaixadores

Cap. CLXIX             Vinda de Monseor de Lião

Cap. CLXX              Embaixada d’ el-rey de Napoles

Cap. CLXXI             Da romaria que el-rey fez

Cap. CLXXII           Do que fez a Dom João

Cap. CLXXIII          Do que fez a Ruy de Sousa

Cap. CLXXIV          Da merce que fez a Vasco Fernandez

Cap. CLXXV            Da merce que fez a Nuno Fernandez

Cap. CLXXVI          Da merce que fez a Diogo Fernandez Correa

Cap. CLXXVII         Do que disse a Lopo Soarez

Cap. CLXXVIII       Do que fazia a Dom Joam d’ Atayde

Cap. CLXXIX          De como el-rey mandou aa Ylha de Sam Tomee os moços que foram judeus          

Cap. CLXXX            Da doença da raynha

Cap. CLXXXI          Dos tiros grossos en caravelas

Cap. CLXXXII         Partida d’ el-rey pera Evora

Cap. CLXXXIII       Dos oficiaes pera despachos

Cap. CLXXXIV        Do que disse a Ruy de Sande     

Cap. CLXXXV         D que disse a Joam Fogaça

Cap. CLXXXVI        Do que fez ao bispo d’ Evora

Cap. CLXXXVII      Do que disse a Dom Martinho

Cap. CLXXXVIII     Do piloto e marinheiros que mandou matar em Castella

Cap. CLXXXIX        Do que fez aa entrada dhũa porta

Cap. CXC                Do que disse a Dom Martinho

Cap. CXCI               Do que ordenou em sua capella

Cap. CXCII             De como fez meirinho do paço

Cap. CXCIII            Do que fez sobre dous moços

Cap. CXCIV            Do que disse ao comendador-mor    

Cap. CXCV              Do que disse ao mordomo-mor

Cap. CXCVI            Do que disse ao conde de Borba

Cap. CXCVII           Do que disse sobre has espadas

Cap. CXCVIII         Do que fez a Antam de Figueredo

Cap. CXCIX            Do que fez a Eytor Borralho     

Cap. CC                   Do que disse a Anrrique Correa

Cap. CCI                 Dalgũas cousas que el-rey disse a Garcia de Resende

Cap. CCII                Do que el-rey fez em Evora sobre a venda do pão

Cap. CCIII              Partida d’ el-rey pera as Alcaçovas

Cap. CCIV               De como se determinou que el-rey entrasse em banhos

Cap. CCV                Da embaixada d’ el-rey de Castella que veo às Alcaçovas

Cap. CCVI               Da armada que el-rey tinha prestes pera ho descubrimento da India

Cap. CCVII             De como determinou yr aas caldas

Cap. CCVIII            De como el-rey fez seu testamento

Cap. CCIX               De como el-rey partio pera o Algarve

Cap. CCX                De como foy pera Alvor

Cap. CCXI               De como el-rey conheceo sua morte e do que sobre ysso fez

Cap. CCXII             De como foy a morte d’ el-rey

Cap. CCXIII            Dos que eram com el rey

Cap. CCXIV            Do que se fez depoys da morte d’ el-rey

Cap. CCXV              Do que se achou em hũa boeta d’ el-rey de que elle tinha a chave

Cap. CCXVI            De como o senhor Dom Jorge filho d’ el-rey veo a el-rey Dom Manoel

Cap. CCXVII           De Garcia de Resende em que conta de como a morte d’ el-rey muy sentida e do que nisso se fez,

                                 e como Nosso Senhor sempre daa seus galardões conformes aos serviços que lhe fezeram

        DA TRASLADAÇAM DO CORPO D’ EL-REY

        A ENTRADA D’ EL-REY DOM MANOEL EM CASTELLA

        A YDA DA YFFANTE DONA BEATRIZ FILHA D’ EL-REY DOM MANOEL A SABOYA

        AS QUATRO PAIXÕES EM HŨA por hos quatro evangelistas autorizadas e acotadas por has margens, tiradas ao pee

                                                   da letra como as eles escreveram

        O SERMÃO SOBRE A VINDA DOS TRES REYS MAGOS

        MISCELLANEA

   A    louvor    de    Deos    e    da    glorio-

sa Virgem Nossa Senhora se acabou o Livro da vida e fey
tos d' el-rey Dom João ho segundo de Portugal, e a
Trasladaçam do seu corpo, e a Yda d' el-rey Dom Ma-
noel a Castella, e a Yda da yffante Dona Breatiz
a Saboya, e as Quatro payxões em hũa, e
o Sermão da vinda dos tres reis magos.
Feito por Garcia de Resende, e visto
e examinado poios deputados
da Sancta Inquisição. Foy im-
presso em casa de Luys
Rodriguez livreiro d' el-
-rey nossso senhor
aos XII dias do
mes de Ju
nho de mil
e quinhen
tos e
quarenta e cinco annos.

TEXTO

Lyvro das obras de Garcia de Resende

que trata da vida e grandissimas virtudes, e bondades, magnanimo esforço, excelentes costumes e manhas e muy craros feitos do christianissimo, muito alto e muyto pode­roso principe el-rey Dom João o segundo deste nome, e dos reys de Portugal o trezeno de gloriosa memoria. Começado de seu nacimento e toda sua vida até a ora de sua morte. Com outras obras que adiante se seguem.

Com privilegio real.

ALVARA

Eu el-rey faço saber a quantos este meu alvara virem que Garcia de Resende fidalgo de minha casa e escrivão de minha Fazenda, me disse que elle tinha feitas algũas obras, assi em prosa como em metro em linguajem portugues; as quaes obras por serem boas e proveytosas elle as queria mandar ymprimir com meu prazer e contentamento, pedindo-me por merce que mandasse que pessoa  algũa nam podesse imprimir nem mandar imprimir suas obras, senam a quem as elle mandasse imprimir ou pera ysso desse sua licença, e ysto assi nas obras que ora tem novas, como nos cancioneiros geraes que elle ordenou e mandou imprimir, em quanto os elle tevesse pera vender ou mandasse imprimir outros o que ey por bem. E per este meu alvara mando que pessoa algũa de qualquer calidade que seja nam possa imprimir nem mandar imprimir os ditos cancioneiros geraes, nem obra algũa que o dito Garcia de Resende tenha feita em prosa ou metro, salvo a pessoa a quem o elle mandar imprimir ou deer pera ysso licença, sob pena de perder todolos volumes que fizer pera o dito Garcia de Resende, e mais pagar cem cruzados ametade pera o meu Esprital de Todolos Sanctos de Lixboa, e a outra ametade pera quem o acusar; e assi me apraz que  imprimindo-se o dito cancioneiro geral ou algũas de suas obras fora destes reynos, se nam possão trazer a vender neles sob as ditas penas, e ysto em quanto elle tiver os ditos livros ou os mandar imprimir. Notefico-o assi a todos meus corregedores, juyzes, justiças, oficiaes, e pessoas a que este meu alvara for mostrado e o conhecimento dello pertencer, e lhes mando que em tudo o cumprão, guardem, e fação inteiramente cumprir e guardar como se em ele contém sem lhe nisso ser posto duvida nem embargo algum, porque assi o ey por bem e meu serviço; e quero que este valha e tenha força e vigor como se fosse carta per mi assinada e asselada do meu selo pendente, e passada per minha chancelaria sem  embargo da ordenação do segundo livro titolo XX que diz que as cousas cujo efeito ouver de durar mais de hum anno passem per cartas e valerá outrosi, posto que este nam seja passado polla chancellaria sem embargo da ordenação do dito livro segundo que o contrairo dispoẽ.

Manoel da Costa o fez em Evora a XXVI dias do mes de Janeiro de mil e 30 quinhentos e trinta e seys annos.

PROLOGO DE GARCIA DE RESENDE

DIRIGIDO A EL-REY NOSSO SENHOR

Muyto alto, muyto excelente e muito poderoso rey e senhor:

Ainda que de Deos mais merce não recebera que achegar-me a tempo que sem letras nem sciencia, soo com meu cuidado e diligencia alcançasse, que a gloria, excelentes virtudes, e craros feitos, perfeiçam de bondade, grandissimo esforço, e singular nobreza, honrra, e fama, de hum tam catolico, e prudente, tam sancto e acabado rey, em algũa maneira per mi fossem alembradas onde estavam esquecidas, eu me contentara muyto se Nosso Senhor assi como me deu vontade pera o fazer, me dera saber pera bem o acabar e poder servi-lo nisto tam inteiramente, quanto em sua vida sempre ho desejey. Esperança tenho em Deos que pois este atrevimento que tomey foy com a tençam que sabe, elle mostre seu poder no fim de cousa tam justa, e que pellos merecimentos de tal rey criaraa de novo em mi o que nam tenho, pera que possa fazer isto que sobre tudo tanto desejo.

Muyto bem aventurado e glorioso rey, pouco tendes que agradecer a quantos neste mundo de vós tem recebido dignidades, senhorios, beneficios, e honrras, merces, acrecentamentos, pois antre tantos se nam achou quem de vossa tam esclarecida memoria se lembrasse. Que se esta ingratidão nam vira, claro estaa que nam ousara meu fraco entender e baixo juyzo em cousa tam alta e que tanto saber requere, emprender. Mas poys outrem o nam faz menos mal seraa fazer-se per mi, que deixar de se fazer pois he rezão que se faça, e eu quero antes sofrer a vergonha da reprehensão que alguns me podem dar, que a door que tenho do esquecimento que vejo; porque as muytas e estremadas virtudes, vitorias, e muyto grandes façanhas que os reys fazem com a lança, esqueceriam se nam ouvesse quem com a pena as escrevesse e louvasse. Hũa cousa soo entendo que pera falar de tal rey e de tantas perfeições e grandissimas virtudes, quem delle ouvesse d'escrever devia de ter tam alto estillo, tam subida eloquencia, tam singular engenho, tanta abastança e doçura de palavras, tam perfeito em tudo ysto, quanto o elle foy em todalas cousas que a hum alto e excelente principe convem. E tambem sey que Nosso Senhor Jesu Christo aos seus escolhidos apostolos e sanctos que muito amou nam deu gloria neste mundo, antes muitas perseguições, muitos trabalhos, pobreza, grandes desprezos e martirios, pera que quanto mais padecessem nesta vida, mais merecessem pera a outra que he pera sempre. E assi a este tam sancto rey por lhe dar a gloria que por fee temos que tem poys que tem feytos milagres pera poder merecê-la, cumprio que passasse pollos nojos e fortunas que em sua vida passou, e que os catorze annos de seu reynado fossem breves e cheos de grandes cuydados; e ainda pera mais merecimentos fosse dos escriptores tam esquecido neste mundo depois de sua morte, que eu sem nenhum saber viesse a escrever sua vida do tempo de seu nacimento tee ser alçado por rey por nam yr em sua coronica, tambem outras cousas muytas atee seu falecimento; a qual vida nam louvarey mais que quanto suas obras a louvarem; mas eu sey que ellas sam taes e de tam alto louvor, que o grande primor dellas encobriraa meu defeyto; e o que na eloquencia mingoar suprirey com a verdade; se algũa cousa ficar sera por mais nam saber e nam por minha vontade; pois o seu fim foy em Deos e o meu começo nelle, e agora pode mais do que no mundo podia, a elle quero ynvocar que peça a Nossa Senhora que empetre de seu filho, que neste novo cuydado pera mi e tam estranho, pellos seus merecimentos e sua morte e paixam me queira encaminhar pera poder sayr delle da maneyra que desejo e tal principe merece, e que nisto vaa fora do estillo dalguns ystoriadores; antes que de principio comece quero fazer hum breve sumario de sua vida, feições, manhas, custumes e virtudes, que foram taes e tanto pera todos desejarem de ouvir, que lendo por ellas folguem mays d' acabar de saber tudo que atentar nas pallavras com que ho digo.

E porque, senhor, vossa alteza sempre de sua mocidade atee agora foy muy incrinado e teve muito amor às cousas d' el-rey Dom João vosso tio, porque em sua coronica ficaram muitas por escrever por descuydo ou esquecimento, trabalhey em minha memoria quanto a mi foy possivel por me lembrarem algũas, e por saber quanto vossa alteza com ysso avia de folgar pois lhe parece tam bem, tomey esta acupaçam e lhe fiz este serviço em escrever sua vida, que me deve d' agardecer ao menos pollo perigo em que me pus a ser julgado de muytos e diversos pareceres a que per ventura posso parecer mal; e se o estilo lhe nam parecer bem, com sua muita prudencia, grandeza, bondade, e singular condiçam o queira, senhor, encobrir. E muytas pessoas tem em seus reynos de muytas letras, sciencia, e autoridade que o podem enmendar; e prazeraa a Nosso Senhor que vendo vossa alteza seus feytos, lhe fara tanta aventagem quanta elle a fez aos principes de seu tempo e a muytos dantes delle, que esta he a menos cousa que de vossa alteza se espera; e a mi faraa merce por lhos trazer aa memoria e tambem por espertar quem for vosso coronista que nam lhe esqueção taes cousas como na vida deste glorioso rey ficaram por escrever, as quaes eu alumiey de quam escuras estavam pera sempre esquecidas; e Deos sabe que desejo viver cem annos pera que outro tanto serviço podesse fazer a vossa alteza no que ficasse por dizer na sua, que onde há tanto que escrever nam poode tudo lembrar, senam com força de amor e desejo de servir, e gram zelo de verdade, co respeyto soo em Deos e d' aproveytar a muytos e a si nenhua cousa; que estas foram as causas por que ysto escrevi e Deos dou por testemunha, porque elle soo me ajudou que a elle soo tomey nesta obra por valledor; e tenho, senhor, por fee que sem elle a nam podera começar nem acabar porque em mi nam avia pera ysso habilidade; e pois disso lhe aprouve e com ella foy servido, vossa alteza ho deve ser.

 

FEYÇÕES, VIRTUDES, CUSTUMES E MANHAS

D' EL-REY DOM JOAM O SEGUNDO

FEYÇÕES, VIRTUDES, CUSTUMES E MANHAS

D' EL-REY DOM JOAM O SEGUNDO QUE SANCTA GLORIA AJA

El-rey Dom Joam era homem de muyto bom parecer e bom corpo, de meaã estatura, porém mais grande que pequeno, muyto bem feyto e em tudo muy proporcionado, ayroso e de tanta gravidade e autoridade que antre todos era logo conhecido por rey. Ho rosto tinha algum tanto comprido, e assi o nariz em boa maneira, e a boca muyto bem feyta, os dentes alvos e bem postos; os olhos eram pretos, graciosos e de muyto boa vista, e aas vezes tinha nas alvas hũas veas de sangue que o faziam com menencoria ser muy temido; e nas cousas de prazer era alegre e muyto bem assombrado, de muyta graça. Em tudo era muy alvo e no rosto corado em boa maneira, a barba tinha preta e bem posta, e o cabello castanho e corredio, e em ydade de trinta e sete annos tinha ja na barba e na cabeça muytas cãas de que mostrava contentamento e nam consentia que lhe mondassem algũa. As mãos tinha compridas, alvas e fermosas, e as pernas grandes e muy bem feytas. E atee ydade de trinta annos foy muito bem desposto e dahi por diante engordou algũa cousa.

Era prudente, de muy vivo saber e muito pronto e esperto e de muito sotil engenho e mistico em todalas cousas e prezava-se bem disso; e teve muito grande memoria e craro juyzo e falava muito bem, e nas cousas de sustancia suas palavras tinham sempre mais verdade e autoridade que despejo nem sabor, porque algum tanto eram vagarosas e entoadas pollos narizes; porém em cousas de folgar era gracioso e tocava muito bem qualquer cousa. E foy homem de grandissimo esforço e de alto e muy ardido coraçam, de muy altos pensamentos, e muy desejoso de cousas grandes em que sua grandeza podesse mostrar e executar, e tudo por serviço de Deos e honrra, acrecentamento de seus reynos, e nisto eram seus sentidos muy acupados. Era muito justo e amigo de justiça e nas execuções della temperado sem fazer deferenças de pessoas altas nem baixas; nunca por seus desejos nem vontade a deixou inteiramente de comprir, e todallas leis que fazia compria tam perfeitamente como se fora sojeyto a ellas: defendeo as sedas e nunca mais as vestio, defendeo as mulas e sendo muito doente nunca mais em mula cavalgou, defendeo os jogos e nunca jogou defeso jogo; nunca na justiça usou de poder obsoluto nem de crueza, e muitas vezes usava de piadade porém nam que tirasse justiça aas partes nem em grandes crimes; e secretamente tinha dito na Relaçam que como nam fosse caso feo ou ladram ou tevesse partes, que dessem vida aos homens que muitas ylhas avia ahi pera povoar, porque hum homem custa muito a criar; outro tanto tinha dito aos meyrinhos acerca das prisões com as pessoas honrradas. E por amor da justiça se começou a desaventura das trayções que por querer mandar corregedores aas terras dos senhores se escandalizaram delle; e todallas sestas-feyras hia sempre aa Relaçam pollas menhãs, e aas tardes estava com desembargadores do paço, e aos sabados aa tarde hia aa Fazenda e estava na mesa della com os veadores e escrivães vendo as cousas que relevavam; em despachos e petições era vagaroso e de maa vontade entendia em papeis, e porém a principal causa de nam despachar muito foy os casos grandes que em sua vida lhe sobrevieram e sua muy grande e muito comprida doença que quatro annos lhe durou e nunca teve descanso.

Foy rey muito estimado e nomeado em todallas partes do mundo, e em seus reynos tam reverenceado, acatado, e temido que soo com olhos que punha em qualquer pessoa que fallava ou estava como nam devia enmendava tudo; e tam grandemente ensinava os homens que diante delle nam avia mao ensino nem fora se o elle soubesse que ficasse sem reprehensam ou castigo. E por onde quer que hia ninguem se chegava a elle se nam era pera lhe falar com muito acatamento, e nos lugares onde compria muito mayor lugar fazia com olhar, do que todolos oficiaes e porteyros com muito trabalho podiam fazer. Era tam verdadeiro e prezava-se tanto de o ser que nunca o viram mentir nem passar hum alvara em contrairo doutro nem ho ousava ninguem requerer; e porque hum dia por falsa enformaçam passou hum alvara em que deu de perda a hum homem dozentos mil reais, quando se lhe veo agravar por nam passar outro em contrairo lhe mandou dar os dozentos mil reais logo em ouro e lhe disse que ho calasse. Era magnanimo e tam gramdioso que as cousas que com guosto fazia eram mays perfeytas que todas, como foram has festas do casamento do principe seu filho que ja pera sempre ficaram por singulares e nomeadas por mayores que nunca foram, e assi a sua grande entrada de Lixboa e outras cousas que fez. Tinha tanta autoridade que como mostrava boa vontade a hũa pessoa, era logo estimado tanto quanto se nam pode crer; e tendo muy aceytos servidores e privados, pessoas muy principaes a que fazia grandes merces e dava parte de seus segredos e conselhos, foy sempre tam ysento que nunca nenhum cuydou que o poderia governar nem fazer que fizesse ho que nam devia; e desta ysenção que elle sempre quis ter o tinham por seco de condiçam os grandes e principaes que cuidavam que muyto valiam, que dos outros e da gente meaã e dos povos foy grandemente amado e querido. E depoys de sua morte foy de todos em geeral muy chorado e mays desejado que nunca rey foy.

Era tam certo e tam constante que quando prometia algũa cousa por muy grande que fosse, soo com sua pallavra hiam hos homens tam contentes e satisfeytos como se levassem jaa os despachos feytos na mão e nunca dava alvaraes de lembrança.

Estimou sempre muyto os bons homens virtuosos, e os bons cavaleyros, os verdadeiros, hos letrados e homens de bom saber e de bons costumes, e manhas, e os seus naturaes, e com qualquer homem que em especial tinha alguũa cousa boa folguava muyto. Honrrava muyto has honrradas donas, e quando lhe queriam falar as hia ouvir em algum moesteyro ou ygreja afastado que o nam ouvissem, e porém perante todos; e assi fazia muyta honrra aas virtuosas religiosas e aos bõos religiosos. E ysto fazia aver sempre em seu tempo muytos ypochritas em todollos estados, que depoys de sua morte se enfadaram de ho ser, e foram conhecidos por quem eram, porque os homens que boas calidades nam tinham valiam pouco ante elle. Favoreceo muyto hos bons officiaes de todollos officios, e elle sabia muyto em todos. Estranhava muyto a moços trazerem espadas e defendia-lhas atee serem grandes, e dezia que nam serviam de mays que de se fazerem fracos, que se acertavam de se tomar com homens e hos escoziam que ficavam pera sempre com receo e covardos. E em muy grande maneyra criava e douctrinava hos moços e a todos; e honrrava tanto seus criados, que qualquer que por seu prazer casava e lho pedia por merce, o hia receber a sua casa que fosse pobre escudeyro; e eu lhe vi em Evora antes das festas hir receber a casa de seu sogro hum Ruy da Costa porteiro da camara do principe seu filho. Favoreceo muyto os cavaleyros e fazia-lhe muyta honrra e muytas merces, e dezia que eram como a sardinha, que era muyta e sabia muyto bem, e custava muyto pouco, e que sempre na batalha de Touro os achara junto de si. Foy muyto nobre e gram liberal em fazer merces e dadivas a quem devia, e como devia, e da maneira que devia por sua propia vontade e nam por importunaçoões de ninguem; dava poucas tenças a homens solteyros, e merces de dinheiro dava mais e mayores que os outros reys de seu tempo; e muytas vezes sem lhas pedirem quando os homens mais descuidados estavam disso, sem alvaraes nem despachos lhe mandava dar o dinheiro na mão com pallavras de amor, de que ficavam tam contentes e satisfeytos como se tevessem muytas rendas; e geralmente a todos seus moradores fazia em cada hum anno merce, e como traziam certidam da Fazenda de como avia hum anno que a nam ouveram, sem falarem a el-rey somente aos veadores ou escrivães da Fazenda lha despachavam; e se faziam cadernos de muitas pessoas, em que os

veadores da Fazenda punham por fora na margem a cantidade que lhe parecia que cada hum devia d' aver que se chamavam as contias, os quaes cadernos el-rey via e a muitos acrecentava em mais merce e a nenhum nam demenuya. E dezia por quem estas merces nam pedia que era pequice perder reçam de paço que por ysso nam avia de deyxar de lhe fazer outras muytas; e nam somente fazia merces a seus criados e naturaes mas nos reynos estrangeiros de Castella, Araguam, França, Roma, e outras muytas partes muytas e grandes pessoas recebiam delle em cada hum anno muytas e grandes merces secretamente, dos quaes elle recebia muytos e grandes avisos muy necesarios a seu serviço e estado; e as esmollas eram tantas que chegavam a Jerusalem, e tudo por serviço de Deos e por sua honrra e bem de seus reynos. E pollos grandes desejos que tinha de os acrecentar dava muyto poucas cousas da coroa, e sendo tam liberal e guastador, era tambem muy grande estucioso e aqueredor.

Antre outras muytas vertudes tinha esta singular: tanto cuydado de quem no bem servia que sem lhe pedir merce lha fazia e trazia secretamente hum livro escripto por sua mão que algum nunca ho soube senam depois de sua morte, no qual tinha feyto todolos homens a que mays obriguado era cada hum em sua cantidade em capitollos que dezião: "Foam me tem feitos taes serviços, lembrar-me-ha quando cousa vaguar que nelle cayba de o prover". E quando as cousas vagavam e lhas vinham pedir dizia: "Jaa a tenho dada"; e então secretamente via no livro as pessoas da calidade da tal cousa e aquella a que mais obrigaçam tinha a dava; e aas vezes estando as tais pessoas fora do reyno em seu serviço lhe mandava cá fazer seus despachos, de que muytos se espantavam, e foy singular vertude em que todollos boõs tinham muyta esperança de seus serviços; e este livro tenho eu em meu poder. E assi tinha outro livro em segredo em que tinha escripto todollos homens autos pera delles se servir nas cousas pera que eram, cada huns em seus titulos, huns pera capitães de cousas grandes e outros doutras somenos, outros para embayxadores, e assi pera enviadeiros, e tambem pera todollos carregos e cousas necessarias. De maneira que como avia necessidade de hũa cousa logo achava muytos homẽes nomeados pera ella, e sem falar a alguem escolhia ho que milhor lhe parecia e assi era sempre muyto bem  servido e muyto prestes. Tinha muyto grande cuydado de prover as cousas de seus reynos antes d' aver necessidade dellas, e tanto que na mayor força das festas do casamento do principe seu filho se faziam com mais deligencia as torres e cava de Olivença e outras fortalezas do estremo. E agravando-se-lhe el-rey de Castella disso por em tempo de tanta paz fazer cousas que pertenciam a guerra, com honesta e boa reposta nam deyxou de o fazer. E elle foy o primeyro que enventou e achou estando em Setuvel em caravellas e navios pequenos trazer bombardas muy grossas.

Foy desenvolto e muy manhoso em todallas boas manhas que hum principe deve ter, era singular dançador em todallas danças, e muyto bom cavalgador da gineta e da brida, muy destro, muyto braceiro e forçoso; tanto que cortava com hũa espada tres e quatro tochas juntas de hum golpe que nunca achou quem ho fizesse; folgava de montear e de caçar com galgos e com açores, e muyto mais com caça d' altanaria, e tinha sempre muyto boõs monteyros e caçadores, e singulares aves e cães e a seus tempos folgava nisso, e tambem com muito bons librees e alãos que sempre mandava lançar a touros; e assi trazia os milhores lutadores que se podiam achar, e muytas vezes via lutar; e avia fidalgos que ho faziam muito bem que elle nisso favorecia; e tambem os fazia acupar a correr e saltar, e lançar lança e barra, todallas cousas de desenvoltura assi a pee como a cavallo, e a serem boõs ginetarios, que todas estas cousas elle fazia muito bem em sua primeyra ydade quando pera isso avia tempo; e gabava tanto os homens que as fazião bem que todos trabalhavam por terem boas manhas; em seu tempo ouve homens muy manhosos e que valião muito por ysso e eram delle estimados.

Folgava com concerto e limpeza, e suas cousas desejava que fossem milhores que todas, e qualquer homem que fazia algũa d'aventagem dos outros, recolhia logo pera si e lhe fazia favor e merce. Vestia-se ricamente, e nunca se vestia de festa que o nam dissesse primeyro a pessoas pera se vistirem com elle, a que sempre pera ysso fazia merces; e quando assi se vestia avia sempre muytos homens muyto bem vestidos aos quaes com os olhos e palavras dava muyto contentamento, e sempre nos tais dias se vestia tambem a rainha e as damas, e avia ahi seram de salla de danças e baylos, que ficava em festa. E nestes dias e assi nos domingos e dias santos cavalgava polla cidade, e muytas vezes com trombetas, e atabales, charamellas e sacabuxas, e com muyto estado andava as ruas principaes, de que ho povo e todos recebiam muyto contentamento, e lhe alimpavam com grande deligencia as ruas, e lançavam panos aas janellas e as molheres postas nellas; e se via hum homem honrrado aa sua porta detinha-se com elle e perguntava-lhe algũa cousa, de que os homens ficavam com grande contentamento, e ganhava com ysso os corações de seus povos. E sempre hia aa carreyra e fazia correr todos os que ho bem faziam, e elle corria as mais das vezes e o fazia com muyta graça e desenvoltura; e era muyto pera folgar de ver os singulares ginetarios e ginetes que entam avia.

Comia muyto e muyto bem com muyto vagar e cerimonia, porém no mais de duas vezes por dia, e sempre aa sua mesa avia boas praticas, e muytas vezes desputas de grandes leterados e teologuos, e nos dias santos danças, estormentos, menistres, e bailos de mouros, e mouras vestidos de muytas sedas que pera ysso tinham; e ho faziam tam bem que era pera folgar de ver. E o serviço da mesa era tudo muy perfeyto e abastado e os oficiaes escolhidos pera ysso limpos e muito bem despostos. E atee hidade de trinta e seis annos em que adoeceo nunca bebeo vinho, e dahi por diante com necessidade e requerimento de todolos fisicos o bebeo muyto temperadamente. E era muyto cerimonial, e as cousas de seu estado sempre quis que lhe fizessem em todolos tempos com grande veneraçam. E sendo em suas camaras e retreites muy familiar, muy despejado, e muito alegre, em pubrico era tam grave que os mais chegados a ele lhe  tinham mayor acatamento; e era em suas palavras muy honesto, e porém tam craro que se tinha maa vontade a alguem nam lho avia d' encobrir e logo lho dava a entender; e nas cousas de castigo nam dissimulava nem deixava por sua vontade passar tempo; e avia por cousa baixa ter odio, e se com payxão fazia ou dizia algũa cousa, era logo tam arrependido com sastifaçam, que dezia o bispo de Viseu Dom Diogo Ortiz que foy seu confessor, que era pecador e singular penitente. E sendo em principe muyto amigo de molheres, depois que foy rey foy nisso tam temperado e casto, que se afirma nunca mais conhecer outra molher senam a sua.

Foy muyto catolico e em grande maneyra amigo de Deos e temente a elle, e muyto  devoto da payxam de Nosso Senhor Jesu Christo, e da sagrada Virgem Maria Nossa Senhora; e confessado por elle à ora de sua morte, nunca em sua vida lhe pediram cousa aa honrra das cinco chagas que nam fizesse; e todollos dias ouvia muy devotamente missa, e em quaesquer casas que estevesse tinha oratorio fechado em que todallas noytes depois de despejado e despido se recolhia com muyta devaçam a rezar hos sete psalmos e se encomendar a Deos, e afirmava-se que com hos joelhos nus postos em terra; e muytas vezes tardava tanto que era muyto trabalho aos que ho aguardavam, e ysto todallas noytes per ordenança; e polas menhãs na cama e aa mesa rezava sempre as oras de Nossa Senhora e outras muytas oraçoẽs. E em hũa boeta de que elle tinha a chave se achou depois de sua morte hum confissionayro, e hũas deceprinas, e hum aspero celicio que muytas vezes trazia sobre a carne debayxo da camisa e vestiduras reaes. E pera se hos oficios divinos fazerem em grande perfeyçam e com muyto acatamento, trazia sempre em sua capella riquissimos ornamentos, e muytos e boõs capellães e hos milhores cantores que se podiam aver; e as suas missas em pontifical, eram ditas com mais devação, acatamento, e cerimonias que em outra nenhũa parte. E nas Endoenças sempre dormia onde o sacramento estava, e com doo e grande loba e capello. O qual doo dava sempre d' esmola a algum cavaleiro prove; e era boa esmola que sempre tiraria vinte covados de contray. E o lavar dos pees aos pobres e *todallas outras cerimonias fazia com tanto acatamento e lagrimas que aos bons religiosos dava singular enxempro, quanto mais aos seus familiares. E as festas eram delle com grande veneraçam celebradas, e sempre nellas se vestia ricamente; e com grande estado real guardava os antiguos costumes dos reys seus antecessores, s.: no Natal consoada, na Pascoa ressurreyçam, dia de Corpus Christi, preciçam e touros, bespora de Sam Joam grandes fogueyras, e no dia canas reaes, e assi dia de Sam Jorge fazia sempre festa por caso da Gorrotea que tinha que elle muyto prezava; e todas as outras festas do ãno eram grandemente guardadas e cerimoniadas, e nellas muitos pontificaes que depois se tiraram; e elle foy o primeiro rey que em sua capella fez ordenadamente rezar as oras canonicas como em ygreja catredal; e pera se melhor poder fazer e com mayor perfeiçam deu-lhe rendas de que ouvessem destrebuiçoẽs, e a pôs na ordem em que ora estaa que he a melhor que rey christão tem.

Fez christão el-rey de Manicongo e a raynha e principe com outra muita nobre gente; edeficou a cidade de São Jorge na Mina, e foy o primeyro que ordenou o descobrimento da Yndia; venceo a batalha de Touro, e em seus reynos outros mayores perigos como esforçado e valentissimo rey; ordenou e começou o grande esprital de Lixboa da maneira em que estaa que he o milhor que se sabe; e assi fez e ordenou outras muytas e boas cousas de muito proveito e boa governaçam de seus reynos e naturaes em que mostrava o grande amor que a seus povos tinha, e bem conforme ao pelicano que por devisa trazia.

Acabou muito santamente sua vida, e tanto que de muitos he avido por sancto com  esperança de milagres. E falleceo de doença muy comprida em ydade de corenta annos e seis meses, dos quaes os vinte e cinco foy casado com a raynha Dona Lianor sua molher; e reynou catorze annos e dous meses com tantas doenças, nojos, trabalhos, cuydados, com tam pouco descanso que nelles por suas singulares obras e muyto grandes vertudes, mereceo alcançar a gloria que he pera todo sempre.

Deo gracias

VIDA E FEITOS D' EL-REY DOM JOÃO SEGUNDO

Livro da vida e grandissimas virtudes e bondades, magnanimo esforço, excelentes costumes e manhas, e muy craros feitos do christianissimo, muyto alto, e muito poderoso principe el-rey Dom João ho segundo deste nome, e dos reys de Portugal o trezeno de gloriosa memoria. Começado de seu nacimento e toda sua vida atee a ora de sua morte. Ordenado e escripto no anno de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e quinhentos e trinta e tres per Garcia de Resende fidalgo da casa d' el-rey nosso senhor. Que muytas das cousas vio e foy presente a ellas, por ser de menino criado do dito senhor em sua camara e aceito a elle, e o servio em cousas de muyta fieldade atee a ora de sua morte a que era presente e dormia em sua camara. E o que per si nam vio vay com grande fieldade e muyto verdadeiramente escripto, de que sam boas testemunhas muytos nobres e pessoas de muyta autoridade e credito que ao presente sam vivas. Dirigido ao muyto alto, muyto excelente, e muyto poderoso principe el-rey Dom João o terceiro nosso senhor.

VIDA E FEITOS D' EL-REY DOM JOÃO SEGUNDO

Em nome de Nosso Senhor e redemptor Jesu Christo se começa a vida do excelentissimo principe el-rey Dom João ho segundo de gloriosa memoria.

De seu pay e sua mãy e seu nacimento

Capitulo primeiro

Ho muyto alto e muyto poderoso principe el-rey Dom Affonso ho quinto de gloriosa memoria, foy casado com ha serenissima e muyto excelente princesa ha raynha Dona Isabel sua molher, e sua prima com yrmaã filha do muyto excelente infante Dom Pedro seu tio. E estando el-rey em Almeirim vindo hum dia da caça, foy assi de caminho aa casa da raynha e teve com ella ajuntamento. Ha raynha tinha em hum anel hũa esmeralda de muito preço que muito estimava, a qual per esquecimento nam tirou do dedo e se lhe quebrou em pedaços. E quando assi a vio pesando-lhe muyto disse a el-rey: "Senhor, a minha esmeralda com que tanto folgava he quebrada", e elle lhe respondeo: "Senhora, tomay-o em muyto boa estrea, que prazeraa a Nosso Senhor que agora concebereis dhum filho que estimareys mais que todallas esmeraldas do mundo"; e dito por el-rey naquella hora emprenhou do principe Dom Joam seu filho que sobre todallas cousas muyto estimaram, o qual pario na muyto nobre e sempre leal cidade de Lixboa nos paços d' alcaceva. Naceo aos tres dias do mes de Mayo do ãno de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e quatrocentos e cincoenta e cinco annos, de que el-rey e a raynha receberão grandissimo contentamento, e foy grande prazer em todo o reyno e fezeram-se muytas festas e alegrias.

De como o principe foy baptizado,

e das grandes festas que se fezeram no dia do bautismo

Capitolo II

E aos onze dias do dito mes de Mayo, em hum domingo foy o principe bautizado na See de Lisboa com grande solẽnidade.  E dos paços atee a See era tudo ricamente armado, e toldado per cima de ricos panos, e per baixo muito limpo e espadanado, e a See muyto hornamentada; e todollos senhores, e fidalgos, senhoras, donas, e damas hiam a pee, e levaram muytas tochas apagadas que aa vinda vieram acesas. E ho muyto excelente infante Dom Fernando yrmão d' el-rey, levava ho principe nos braços debaixo de hum paleo de rico brocado. E hia com elle ho muy catholico e virtuosissimo infante Dom Anrrique tio d' el-rey, e ha muyto excelente infanta Dona Catherina yrmaã d' el-rey, e a muito illustre senhora Dona Felipa yrmã da raynha, e a marquesa de Villa Viçosa, e outros muitos senhores e senhoras, e muita e muy nobre fidalguia. E diante do principe muytas trombetas, atambores, charamelas, e sacabuxas, e outros muitos estormentos, e muitos porteiros da maça, reys d' armas, porteiros-mores, mestre-salas, veador, e o mordomo-mor com todallas cerimonias reaes. Sayram da Sé a recebê-lo com muito solẽne precissam, o arcebispo de Braga, e tres bispos com muyta e muy honrrada clerezia, e ho arcebispo ho bautizou. Ho paleo levavam estes senhores diante, o conde de Villa Real, Dom Pedro de Meneses, e o prior do Crato, Dom Vasco de Tayde. E detras ho marquês de Villa Viçosa, e Dom Fernando conde d' Arrayolos seu filho mayor. Ho saleyro levava Dom Fernando de Meneses, e ho gomil e bacio da offerta Lionel de Lima. Foram padrinhos ho infante, e o prior do Crato. E madrinhas a infanta, e ha marquesa, e Dona Breatiz de Vilhena. E neste dia ouve sessenta senhores e fidalgos vestidos de opas roçagantes de ricos brocados, e sessenta senhoras, donas e damas vestidas aa francesa de ricos brocados, e ouve muytos vestidos de ricas sedas, e fizeram-se muitas festas.

Da criaçam do principe

Capitulo III

Foy grandemente criado com muyto grande cuydado, e tanto que teve entender lhe ordenou logo el-rey seu pay pessoas virtuosas, prudentes, e muy examinadas que delle tevessem cuydado, e que fossem taes de que podesse tomar boa doutrina, e lhe deu bons mestres que o ensinassem a ler, rezar, e latim, e escrever, e assi moços bem ensinados pera se criarem com elle e ho servirem: tudo feito como tal pay ordenava e tal filho merecia. De maneira que asi como crecia no corpo e na ydade, creciam nelle virtudes, bons custumes, bom ensino, e boas manhas em tanto crecimento, que sendo muyto moço veo logo a ganhar tanta auctoridade com hos povos, com hos nobres, e com el-rey seu pay, que nam fazia conselho nem cousa grande em que o nam metesse e tomasse seu parecer.

Do casamento do principe

Capitulo IV

Polla muyto grande fama que por muytas partes corria das virtudes, saber, manhas, e perfeições do principe, el-rey Dom Anrrique de Castela mandou muytas vezes cometer a el-rey Dom Afonso que casasse ho principe com a princesa Dona Joana sua filha. E el-rey Dom Afonso por querer muyto grande bem ao infante Dom Fernando seu yrmão, e por lhe fazer merce por aver muyto que lhe pedia, nam quis concertar nem fazer ho casamento com ha princesa herdeyra de Castella. E sendo o principe de ydade de quinze annos ho casou com a senhora Dona Lianor d' Alemcrasto, filha mayor do infante, e prima com yrmaã do principe que foy da propria maneira que el-rey seu pay casou. A qual princesa era tam singular pessoa, e de tam grandes virtudes e bondades, de tanta fermosura, manhas, e gentileza, tam acabada e perfeita, que parece que como ambos naceram tam excelentes, logo Nosso Senhor ordenou que ele nam podesse achar outra tal molher nem ella tam magnanimo marido. E ho dito casamento se fez e concertou no anno de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e quatrocentos e setenta annos. E antes de vir aa despensaçam o infante se finou em Setuvel a XVIII dias de Setembro de mil e quatrocentos e setenta e depois de sua morte veo a despensaçam, e o principe recebeo ha princesa na dita villa de Setuvel a XXII dias de Janeiro de mil e quatrocentos e setenta e hum sem festa algũa por causa da morte do infante.

De como o principe foy com el-rey seu pay na tomada d' Arzila

onde foy feito cavaleyro

Capitulo V

E logo no ãno seguinte de mill e quatrocentos e setenta e hum, el-rey Dom Afonso determinou de yr tomar a villa d' Arzilla em Africa. E ho principe pedio tam apertadamente a el-rey seu pay que ho levasse consigo, que lho nam pôde negar, e contra conselho de todos lho concedeo nam tendo outro filho. E porém el-rey lhe aprouve disso porque estimava tanto ho principe seu filho e sua vista e conversaçam, que em todos seus prazeres e perigos o quis sempre tomar por companheiro pollo que delle conhecia. E quando lhe assi concedeo a hida, ho principe lhe beyjou por ysso a mão e lho teve tanto em merce como se algũa grande lhe fizera.

E concertado tudo ho que pera tal yda cumpria (como em seu lugar he decrarado) el-rey e o principe partiram da cidade de Lisboa dia de Nossa Senhora d' Assunçam a quinze dias do mes d' Agosto; e aos vinte dias do dito mes chegaram aa villa d' Arzilla onde el-rey e o principe foram dos primeiros que tomaram terra sendo tam perigosa a entrada, que se perdeo nella hũa galee e muitos navios e batees, em que morreram dozentos homens, em que entraram oyto  fidalgos e muitos cavaleiros e escudeyros. E logo a dita villa por el-rey e o principe com esses que eram fora, foy cercada e combatida até aos vinte e quatro dias do dito mes d' Agosto dia de Sam Bertolameu polla menhaã que se tomou. Na qual entrada e combates ho principe o fez tam valentemente e como tam esforçado e ardido cavalleyro, que de todos foy grandemente louvado, e d' el-rey seu pay muyto mais que de ninguem. Porque na força dos perigos em que el-rey se meteo e peleijou, achou sempre ho principe junto consigo, ferindo tam bravamente nos mouros, que dos grandes golpes que dava, ha espada andava toda torcida, e dos que feria e matava toda muy chea de sangue, em que ganhou muyto grande louvor sendo em hidade de dezasseis annos. E na primeira cousa em que se vio, tam bem pelejada e de tanto perigo, mostrou logo a grandeza e esforço de seu coraçam.

E no mesmo dia depois de feyto acabado com tanta honrra sua, el-rey seu pay com muyto contentamento o fez cavalleyro dentro na mezquita, e junto do corpo do conde de Marialva que ahi jazia morto e morrera como esforçado cavaleiro. E el-rey pollo na morte honrrar disse ao principe: "Filho, Deos vos faça tam bom cavaleiro como este            aqui jaz". E no combate mataram os mouros o conde de Monsancto, e o conde de Marialva, e outras muytas pessoas. E dos mouros forom mortos dous mil, e cativos cinco mil almas, e tomado muyto rico despojo foy avaliado em oitocentas mil dobras; e foy tudo de quem o tomou que el-rey fez escala franca.

Do que ao principe aqueceo andando de noyte soo

Capitulo VI

O principe como homem mancebo que era, ainda que o esforço, saber, e os cuidados eram de muito mayor hidade que a sua, todavia não podia negar o que a natureza daa e aquilo a que geralmente os mancebos sam mais incrinados. E algũas horas hia de noite fora secreto com hũa ou duas pessoas a folgar em cousas d' amores. Aqueceo por duas vezes, hũa yndo com elle Dom Diogo d' Almeida prior de Crato, e a outra Dom Fernando Mazcarenhas seu capitão dos ginetes e da guarda pessoas de que elle sempre muyto confiou e estimou, nam sendo conhecido, saltarem com elle muitos homens armados em Lisboa junto com Sancta Justa cuidando que saltavam com outrem; e por se nam dar a conhecer jugaram aas cutiladas com todos, e o fez tam valentemente que foy muyto falado nisso, sem saberem quem era e ferio muitos até lhe fogirem. E o principe avendo muitas e grandes feridas nas armas, nam ouve nenhũa em seu corpo por hir muito bem armado. E porque alguns dos homens o fizeram muito bem como esforçados e elle vio que hiam feridos, ao outro dia teve logo maneira secretamente, e per todolos solorgiães soube os homens que naquella noite, e aaquellas oras e lugar forão feridos; e sabido lhe mandou logo fazer merces de dinheiro e curá-los muyto bem, e como foram sãos os tomou por seus criados.

De como o principe tomou sua molher e casa

Capitulo VII

E no anno seguinte de mil e quatrocentos e setenta e dous annos tomou o principe ha princesa sua molher e sua casa e lhe foy dada em Beja onde estava a senhora ifante Dona Breatiz sua sogra que tudo lhe deu em muyta perfeiçam. E dahi a poucos dias com sua casa hordenada elle e a princesa se foram aa cidade de Evora.

Do nacimento do ifante Dom Afonso filho do principe,

e do que el-rey Dom Afonso fez

Capitolo VIII

Estando o principe em Arronches com el-rey seu pay que dhi entrou logo em Castela, lhe veo recado como a princesa parira o ifante Dom Afonso seu filho na cidade de Lixboa nos paços d' alcaçova, aos dezoito dias do mes de Mayo de mil e quatrocentos e setenta e cinco annos, de que el-rey e o principe e toda a corte e o reyno receberam grande prazer e se fezeram festas e muytas allegrias. E porque el-rey hia a casar a Castella, determinou logo ahi e o deixou assi assentado, que sendo caso que ele ouvesse filhos da raynha e o principe fallecesse primeiro que elle, que a socessam do reyno ficasse ao ifante Dom Afonso seu neto; e logo ahi o decrarou por seu erdeiro, e deixou ordenado que o jurassem, como logo dahi a pouco com muyta solennidade todos juraram por erdeiro dos reynos de Portugal e dos Algarves.

De como o principe ficou em Portugal com a governaçam do reyno

Capitolo IX

E da dita villa d' Arronches entrou el-rey em Castela com cinco mil e seiscentos homens de cavalo, e catorze mil de pee, todos bem armados afora a carruagem que era muyta. E o principe foy com elle falando na maneira que avia de ter no regimento do reyno e em outras muytas cousas até o lugar de Pedra Boa. E depoys de todo concruido o principe com devido acatamento se despedio d' el-rey seu pay e se veo a Portugal, onde logo teve muytos e grandes cuidados nas cousas da justiça, e muito mayores nas da guerra em que muyto teve que fazer. Que por el-rey seu pay ser em Castella e levar a principal gente de Portugal, assi elle recebia nos estremos do reino muitos rebates da gente dos contrairos, a que acudia com tanto esforço, saber, cuidado, e diligencia, quanto hum singular e ardido capitão de muitos ãnos acustumado na guerra o podia fazer, sendo elle muy mancebo; e nam se contentava de com quam pouca gente como tinha defender os reynos, mas ainda com ella fazia muita guerra aos imigos que em grande maneira o temiam. E assi teve tambem muito trabalho com os do reyno, porque avia muitas cousas a que acudir; o que tudo fazia com tanto saber e bondade, esforço, e valentia, que mais não podia ser.

De como o principe tomou Ouguela

Capitolo X

E neste mesmo anno estando o principe em Estremoz lhe veo nova como hum capitam castelhano que se chamava Galindo tomara a villa d' Ouguella. E tanto que o soube a foy cercar com hos que pôde ajuntar; e antes de a combater lha deram os castelhanos por concerto. E neste cerco João da Silva que era camareiro-mor do principe e entam capitam de sua gente, se topou de noite com ho Galindo capitam dos castelhanos; e vindo ambos diante de toda a gente sem se conhecerem, se encontraram tam fortemente que daquelle soo encontro morreram ambos, sem outra algũa pessoa dambas as batalhas morrer senam soo elles capitães. De que ho principe foy muy anojado, porque tinha muito amor a Joam da Silva, e alem de ser seu camareyro-moor, e pessoa muy principal, era muy vallente cavalleyro, e muyto bom capitam, que em tal tempo era pera sentir sua morte ainda que morresse em seu officio; e assi ho Galindo era muy esforçado cavaleiro e muyto bom capitão. E logo ahi deu o principe o officio de camareyro-moor a Ayres da Silva filho do dito Joam da Silva; e sendo Ayres da Silva bem moço começou logo de servir ho dito officio inteiramente, e o metia nos conselhos polo fazer mais cedo homem e ter mais autoridade.

De como o principe partio pera Çamora chamado d' el-rey seu pay

e do caminho se tornou

Capitolo XI

Estando el-rey em Çamora por has cousas que trazia antre as mãos serem de muyto grande peso e comprirem muyto aa sua honrra e seu estado, desejou muyto ver o principe seu filho pera com elle se aconselhar e consultar tudo, e escreveo-lhe com muito amor que receberia muyto grande prazer e contentamento em o logo querer yr ver. E o principe tanto que lhe a carta deram com muyta obediencia e desejo de ver el-rey seu pay logo cumprio. E deixando tudo ho que no reyno cumpria pera ha guerra e pera a paz muito bem ordenado partio; e sendo ja em Miranda do Doiro aforrado pera ahi vir gente d' el-rey por elle lhe chegou recado de seu pay que se tornasse por caso da trayçam da ponte de Çamora. O qual recado lhe trouxe ho Chichorro capitam dos ginetes d' el-rey que passou de noyte o Doyro a nado armado a cavallo como valente cavaleiro que era; e da nova foy ho principe muyto triste por nam ver o pay que muyto desejava, e polla trayçam da ponte que el-rey muyto sentio; e foy muyto grande perda e ouve rijos combates, nos quaes mataram Dom Tristam Coutinho, e derribaram da torre abaixo com hũa viga a  Dom Joam de Sousa querendo-a entrar esforçadamente por hũa escada, e foy levado como morto, e assi mataram e feriram outras muytas pessoas sendo ahy el-rey em pessoa.

De como o principe determinou d' hir em pessoa socorrer a el-rey

seu pay, e do que sobre ysso fez

 

Capitolo XII

Vendo o principe a trayção da ponte que assi foy feita a el-rey seu pay, temendo outras que podiam sobrevir, e lembrando-se da necessidade que o pay jaa tinha de gente e de dinheiro, como verdadeiro e virtuoso filho e muyto prudente principe  e valente cavaleiro, determinou de logo socorrer a el-rey em pessoa com a mays gente e mais dinheyro que podesse ajuntar, e yr com seu pay tomar parte de seus trabalhos per cima de quantos elle cá no reino tinha, o que logo com muita deligencia e grande cuidado poos por obra. E mandou aperceber e apurar toda a gente que pôde e todo o dinheiro que das rendas do reyno se devia, e outro que andou ajuntando e pedindo emprestado a pessoas que o tinhão. E porque lhe pareceo que nam era tanto quanto cumpria, com muito recado e muita certeza de paga tomou a prata das ygrejas e moesteiros, aquella que nam era sagrada que na sagrada se nam bolio nem pôs mão, a qual depoys de ser rey com muito cuydado pagou; e de todas estas cousas se fez boa soma de dinheiro. E por consentimento d' el-rey seu pay deixou o regimento e governança do reino aa princesa Dona Lianor sua molher, e com ella deyxou pessoas de muyta autoridade e letras e bom conselho com que nas cousas do reino se aconselhasse. E assi proveo as frontarias de capitães, e as fortalezas de alcaydes-mores, gente e armas e todo o mais que cumpria. E feyto assi tudo tendo jaa a gente prestes, partio da cidade da Guarda no mes de Janeiro de mil e quatrocentos e setenta e seis ãnos; entrou em Castella polla villa de Sam Felizes, a qual logo tomou per força por estar contra el-rey seu pay e a deixou por sua, e no combate ouve alguns mortos e feridos. E dahi foy ter junto com Ledesma, que sendo contraira deu ao arrayal por dinheiro mantimentos e provisões. E dahi por suas jornadas foy com sua gente tam concertada e em tanta ordem e regimento, que nunca ninguem ousou de o cometer.

Chegou aa cidade de Touro onde el-rey seu pay e ha raynha e toda sua gente estava; e foy recebido d' el-rey com grandissimo amor e muytas lagrimas de prazer de hũa parte e da outra, e assi da raynha e de todolos portugueses com tanto contentamento, que mais não podia ser; porque toda a esperança d' el-rey Dom Afonso e de todos os seus era soo na vinda do principe.

De como o principe venceo ha batalha de Touro,

e ficou no campo sem lho ninguem contradizer

Capitolo XIII

Tanto que ho principe foy em Touro por o grande favor que el-rey seu pay e todos com sua vinda receberam, porque el-rey Dom Fernando tinha cercado o castello de Çamora, determinaram logo de yrem cercar ha cidade da outra parte da ponte, o que logo fizeram; e deixou el-rey com a raynha em Touro o duque de Bragança, e o conde de Villa Real com a gente que compria. Nos quaes em hũa ylha que faz o Rio Doiro, se ajuntaram pera concerto de paz, da parte d' el-rey Dom Fernando o duque d' Alva e ho almirante, e da parte d' el-rey Dom Afonso, ho senhor Dom Alvaro e Ruy de Sousa, e teverão muytas praticas, mas nam fezeram concerto algum; e el-rey e o principe por lhe falecerem os mantimentos e lhe nam poderem viir, e aquelle sitio ser doentio e a gente receber muito mao trato, determinaram alevantar o arrayal e tornarem-se aa cidade de Touro. O que supitamente fezeram em hũa sesta-feira dous dias do mes de Março do ãno de mil e quatrocentos e setenta e seis, em querendo amanhecer, com toda deligencia e recado que se podia ter; porque tinham por certo que el-rey Dom Fernando por estar mays poderoso de gente e muyto milhor tratada, como quer que o soubesse, yria logo apos eles, como foy com todo seu poder.

E hindo el-rey e ho principe ja duas legoas da cidade de Çamora, vindo ha gente d' el-rey Don Fernando jaa muito acerca da d' el-rey, sendo a de Castella muyto mais que a de Portugal por ser jaa muyta chegada a Touro, e assi ficar muita com a raynha, o principe como tão esforçado e valente cavaleiro como era, determinou esperar el-rey Dom Fernando e dar-lhe batalha. E mandou logo recado a el-rey seu pay que era diante por o caminho a ter e fazer tornar a gente que com receo apressadamente se acolhia aa cidade. O qual muyto ledo e contente disso, como muy valente e esforçado rey tornou logo atras, e com o principe ordenou de darem batalha, e se poseram logo em hordem de a dar no campo junto com Touro, sendo ja el-rey Dom Fernando tam acerca que nam podiam ordenar sua gente que era bem pouca em respeito da dos castelhanos; e com tudo com muyta pressa a ordenaram em duas batalhas. A primeira e mayor ha d' el-rey com sua bandeira real, da parte donde estava a mayor batalha d' el-rey Dom Fernando com sua bandeira sem elle estar nella; e a segunda batalha de menos gente foy a do principe, porém era gente cortesaã e muy escolheita, e com sua bandeira se pôs aa outra parte defronte donde estavam duas muyto grandes batalhas de gente d' el-rey Dom Fernando. E vendo ho principe como as batalhas contrayras eram duas, ordenou sua gente tambem em duas batalhas, e apartou de si com os de sua guarda o capitão Fernam Martinz de Mazcarenhas; e por nam ter tanta gente como cumpria, encomendou a Gonçalo Vaz de Castelbranco e a Ruy de Sousa que com sua gente que era muyta e muyto boa se juntassem, como logo juntaram com Fernam Martinz; e por antre elles nam aver deferença sobre ha capitania, mandou laa Dom Pedro de Meneses que depois foy conde de Cantanhede, e todos juntos fizeram hũa boa batalha.

E estando assi has batalhas ordenadas de hũa parte e da outra pera encontrar sendo jaa quasi sol-posto, el-rey mandou dizer ao principe que lhe mandava a bençam de Deos e a sua, e que com ella desse logo rijamente nos contrairos; o qual por lhe obedecer e cumprir o que tanto desejava, depois de feito sinal polas trombetas, elle com todos os seus com grandissimo esforço e animo como singular capitão bradando todos pollo nome de Sam Jorge, com grande força e impeto deu tam bravamente nas batalhas contrairas, que sendo muyto mais gente nam poderam sofrer nem resistir hos grandes e asperos encontros, e sem muyta detença foram logo ambas desbaratadas e postas em fogida, com muyto dano feyto nellas. E era alferez do principe que levava a bandeira Lourenço de Faria, homem fidalgo e esforçado que neste dia e em outros ho fez como muyto bom cavalleiro  e o principe por tal o teve sempre. E assi como o principe desbaratou estas duas grandes batalhas, assi a batalha grande d' el-rey Dom Fernando desbaratou a d' el-rey Dom Afonso, porque vinha nella muyta e muy grossa gente d' armas, e muytos acubertados, e grande soma de espingardeiros que fezeram grande dano aos cavallos. E sendo assi a batalha desbaratada e el-rey Dom Afonso vendo-se assi desbaratado, parecendo-lhe que assi o seria a batalha do principe pois tinha muyto menos gente que a sua, da qual nam tinha vista nem recado achando-se da outra parte com muyto poucos, por salvar sua vida se recolheo com muyto perigo a Crasto Nunho, jaa muyto noite e bem soo onde o alcayde Pero de Mendanha como bom e leal cavalleiro o recolheo e fez nisso grandes finezas e lealdades, assi elle como sua molher, e o serviram muyto bem e deram muytos confortos. E el-rey se foy laa porque a gente dos contrairos era tanta antre a cidade de Touro e elle que nam podia jaa laa hir. E toda aquella noyte esteve com grande tristeza por nam saber novas do principe parecendo-lhe que podia ser morto ou ferido. E el-rei Dom Fernando que sem pelejar estava atras em hũa pequena batalha posto num alto, vendo o desbarato que o principe fez nas primeiras duas batalhas sendo de muyto mais gente que a sua, e vendo a sua batalha grande toda revolta sem ver bem ho que nella hia, parecendo-lhe tambem que era tudo desbaratado desemparou tudo e com esses com que estava se acolheo logo a Çamora. E o principe como prudente capitam vendo a grande vitoria que Deos lhe dera e a boa ventura daquella ora, quis mais segurar a honrra de tamanho vencimento que seguir mais o alcanço. E com muyto grande animo e recado recolheo a si sua bandeira e a bandeira real d' el-rey seu pay; a qual lhe trouxe hum escudeiro que se chamava Gonçalo Pirez criado de Gonçalo Vaz Pinto, que per força como homem esforçado a tomou a hum Souto Mayor castelhano que a levava e o prendeo; a qual bandeira nunca poderam tomar das mãos de Duarte d' Almeida alferez sem lhas primeiro deceparem e darem outras muytas feridas no rosto e no corpo até o deixarem por morto e viveo e fez alli como valente e muy esforçado cavalleiro. E assi recolheo muyta gente que pollo campo era espalhada e fez corpo, e com muyta segurança e sossego e grandissimo esforço e recado esteve no campo a mayor parte da noite sem nunca mover atras, estando junto delle muyta mais gente d' el-rey Dom Fernando que a sua, a qual pollo tam valentemente verem peleijar, e vendo a segurança e sossego com que estava, nunca ousou de o cometer, estando tam acerca huns dos outros que se ouviam o que falavam. E como a noite escureceo se foram todos, e o principe ficou soo no campo triunfando de tamanho vencimento; e fazendo recolher os feridos e mortos, como piadoso capitam esteve assi quedo. E com quanta rezam tinha d' estar muy alegre por tamanha honrra como tinha ganhada, estava em estremo triste sem o dar a entender, por nam saber novas d' el-rey seu pay que sobre tudo desejava de saber. E algũas pessoas principaes de sua batalha e outras muytas com o grande alvoroço do vencimento seguiram tanto o alcanço dos contrarios que deram na força da gente onde foram alguns mortos e captivos. E a gente da batalha d' el-rey Dom Afonso que polo campo andava perdida, ouvindo as trombetas e tambores do principe e vendo as fogueiras que no campo mandou fazer se recolheo toda a elle, com que fez hũa muyto grossa batalha, com que aquella noite ficou pacifico senhor do campo, no qual nam ficou algum dos reys cuja a causa era.

E alli Dom Vasco Coutinho que depoys foy conde de Borba  prendeo Dom Anrrique conde de Alva de Lista, pessoa principal que vinha a conhecer a batalha do principe. E trazendo-o assi preso, o principe andava correndo e cerrando sua gente e foy dar com eles, e deu com o conto da lança ao conde passo e disse a Dom Vasco: "Tende-o bem nam se vaa como o conde de Venavente". E em passando lembrou-lhe que era tio d' el-rey Dom Fernando, e tornou rijo e pedio-lhe que lhe perdoasse por lhe tocar com a lança; e o conde lhe respondeo: "Aa, senhor, nam vos dê disso que jaa me nam podeis tirar sessenta annos, e ser em tres batalhas campaes; nem se pode tirar a vossa alteza fazê-lo oje melhor do que há muytos annos que principe christão o fez". E o conde foy trazido preso a Portugal onde lhe foy feyta muyta honrra por ser pessoa de gram valia, e depois foy solto e livre tornado a Castella.

E depois do principe estar assi muyta parte da noyte no campo, e ver como os contrairos todos eram fogidos e delles nam aver nem parecer pessoa algũa, e jaa nam ficar cousa que fazer determinou estar no campo tres dias sem se partir dele, e foy aconselhado polo arcebispo de Toledo e outros senhores, que pois a gente dos contrayros era jaa toda fogida abastava e compria com estar tres oras; e para isso como sabedor na guerra e nas letras deu ao principe taes rezões que tomou seu conselho. E por o muyto mao trato que a gente tinha recebido, e por hos muytos feridos que avia, e tambem por lho pedirem o arcebispo de Toledo e outros senhores que ahi com elle eram se foy com grande trihunfo e vagar, com suas bandeiras tendidas, e trombetas e atabales aa cidade de Touro onde entrou e esteve com muyta tristeza atee outro dia que soube nova d' el-rey seu pay, de que ficou muyto ledo, e logo lhe mandou muyta gente com que veo a Touro onde a raynha e o principe estavam.

Nesta batalha e assi na tomada d' Arzilla e em outras partes nam falo em muytas pessoas nem nos esforçados feytos que fezeram per pertencer à cronica d' el-rey Dom Afonso, que atee qui nam digo senam o que toca ao principe, que se a mi pertencera, homens e feytos avia de que falar muyto dignos de memoria que eu bem folgara de escrever.

De como o principe por mandado d' el-rey seu pay se veo

a  Portugual, e das palavras que hum dia disse aa mesa

Capitulo XIV

Depois disto assi passado, loguo por el-rey foy determinado que o principe se viesse a Portugal; e depois de nisso se tomar concrusam, ho principe fez muitas honrras e muitas mercees aos que na batalha o serviram como bons cavaleiros, e mandou dar mercees de dinheiro aos feridos, e proveo alguns que da batalha d' el-rey seu pay foram cativos. E despedido d' el-rey com muyto grande saudade, e assi da raynha partio da cidade de Touro na somana mayor, e veo ter ha Pascoa a Miranda do Doyro, onde a princesa sua molher estava. E dahi a poucos dias disse alto e pubricamente estando comendo aa mesa estas palavras: "Muy necessaria cousa me foy vestir as armas pera conhecer hos homens a que devo de fazer merce". Palavras certo dignas de memoria.

E doutras cousas que no reyno se seguiram andando el-rey seu pay

en  França

Capitolo XV

Depoys d' el-rey Dom Afonso ser vindo de Castella, e partido de Lixboa pera França, o principe se veo logo aa cidade d' Evora, e dahi andava polla comarca d' Antre Tejo e Odiana donde fazia a guerra a Castella em que fez muitas entradas com muyto dano aos contrayros. E porque quando elle estava em Touro com el-rey seu pay, Dom Alonso de Monroy que entam era mestre d' Alcantara, e da parte d' el-rey Dom Fernando tomou per manha ha villa d' Allegrete, e estava nella forte e muy bem bastecido, ho principe com seu muyto grande esforço, no mes de Fevereyro de mil e quatrocentos e setenta e sete a foy cercar, e mandou tam rijamente combater, que por partido lha deram, e lhe foy entregue com muyta sua honrra e louvor, e porém com mortes e danos dambas as partes.

De como o principe tomou Alegrete, e como fez tornar ho mestre

de Santiago que com duas mil lanças vinha correr a Evora

Capitulo XVI

Acabado assi ysto estando o principe em Elvas com sua gente veo a Evora aforrado e no mesmo dia que chegou lhe deram nova como o mestre de Santiago de Castella com duas mil lanças era entrado e estava pousado na Ribeyra do Digebe com tençam de ao outro dia pola menhã cedo vir correr aas portas d' Evora sem saber que elle ahi estava. O principe quando lhe o recado derão ficou muyto triste e agastado por nam aver em Evora mais de trezentas lanças que ahi estavam com o bispo Dom Garcia, e nam era gente pera poder resistir a o mestre viir aa cidade, o que elle muito sentia por se acertar ahi soo e parecia-lhe que recebia nisso muita offensa. E como muyto prudente capitam com manha o quis remediar, pois com força nam podia. E logo aa noite mandou  Diogo da Silva de Meneses que depois foy conde de Portalegre, e Dom Joam de Sousa muy valentes cavalleyros e pessoas de que muyto confiava, e com elles trinta de cavallo onde ho mestre estava pousado com todo seu arrayal na dita ribeira; e de hum outeyro que sobre a ribeira estava, bradaram alto atee que da tenda do mestre acudiram, e Dom Joam disse: "Dizey ao senhor mestre que estam aqui Diogo da Silva e Dom Joam de Sousa com hum recado do principe pera sua senhoria". Sayo o mestre aa porta da tenda e perguntou o que queriam, e Dom Joam lhe disse: "Senhor, o principe nosso senhor manda dizer a vossa senhoria por nós que elle chegou oje aa cidade d' Evora, e soube como vossa senhoria aqui estava com tençam de polla menhaã hir dar hũa vista aa cidade, e que elle por amor de vós e desejar de vos ver, vos quer tirar desse trabalho, que vos agradeceraa muyto quererde-lo esperar aqui, que elle pola menhaã sera com vossa senhoria". Ho mestre lhe respondeo: "Dizey, senhores, a sua alteza que eu lhe beijo as mãos, e que nam sabia como elle ahi estava, e que agora que o sey me parece mais rezam hir eu lá pera o servir que sua alteza vir cá, e que polla menhaã prazendo a Deos serey com elle".

E com muyta cortesia dambas as partes se despediram Dom Joam e Diogo da Silva, e vieram ao principe ja depois da mea-noyte, ho qual nam acharam dormindo, mas armado a cavallo e com tochas andando polla cidade a buscar os homens por suas casas, que sabendo o poder do mestre de má vontade queriam sayr. E com o recado folgou muyto, e mandou logo o bispo Dom Garcia com trezentos de cavallo caminho donde o mestre estava e lá em lugar pera ysso aparelhado, andarão toda a parte da noyte trilhando todos a terra tanto que parecia trilha de mais de tres mil de cavallo e em querendo amanhecer se poseram em lugar onde nam podessem aver vista delles.

E o mestre ante manhaã levantou-se, e posta sua gente em hordem, mandou tornar sua carriajem por onde viera, e elle com dous mil de cavallo começou de andar caminho da cidade: e vindo assi com tençam de chegar atee as portas, foram dar na trilha da gente de que ficaram muy espantados. E quando ha virão tamanha foy em todos tamanho receo, que logo tornaram atras, e com muyta pressa e temor partiram caminho de Castella fogindo sem verem de que fogiam. E passando pollo porto de Mouram, sayo a ve-los Dom Diogo de Castro que ahi estava com cento e cincuenta lanças; e em o mestre passando por hum porto muy apressado, disse Ruy Casco a Dom Diogo: "Senhor, demos naquella gente porque vay desbaratada, que ouço yr traquejando hũas lanças com as outras como homens cortados de medo". O que Dom Diogo logo fez, e deu rijamente na traseira do mestre que ja era passado adiante, e desbaratou-os e captivou mais de cento de cavallo sem aver homem que voltasse atras pollo grande medo que levavão. Ho principe quando soube que o mestre assy se tornara, foy muyto allegre e muyto contente pollo assi fazer yr, e por se ver fora de tamanha vergonha como pera ele fora vir correr aas portas d' Evora. E quando lhe deram ho recado do desbarato que Dom Diogo na gente do mestre fizera folgou muito e a Ruy Casco polo conselho que deu a Dom Diogo que desse nelles fez merce de cincuenta mil reaes de tença.

E neste mesmo tempo e anno ouve o principe de Pero Pantoja que lhas deu as fortalezas de Zaguala e Pedra Boa do mestrado d' Alcantara, em que logo pôs seus alcaydes e capitães, e por ellas lhe deu em Portugal a villa de Santiago de Caçem. As quaes fortalezas de Zaguala e Pedra Boa com outras rendas nestes reynos deu o principe ao dito mestre Dom Afonso de Monroy por que servisse el-rey Dom Afonso seu pay, como na guerra bem e fielmente como esforçado cavalleiro sempre servio até se fazerem has pazes.

E assi ouve o principe de Martim de Sepulveda fidalgo castelhano a fortaleza de Noudal em que estava e era tomada dos castelhanos. E lhe fez por ysso em Portugal merce de que elle foy muyto contente e satisfeito.

E neste mesmo tempo fez o principe cortes na villa de Montemor-o-Novo, onde pollos povos pera estas necessidades da guerra lhe foy feito serviço de dinheyro.

De como el-rey Dom Afonso sendo em França se apartou

dos seus com tençam de se hir a Jerusalem, e do que

nisso se pasou, e como o principe foi alçado por rey

Capitulo XVII

El-rey Dom Afonso vendo como a fortuna em todos estes tempos lhe era muyto contrayra e lhe corria de rostro, e nam contente de seus trabalhos e fadigas, ainda por mayor desaventura por sua causa fora morto o duque de Borgonha seu primo, que elle muyto em estremo sentio por ser tam excellente principe e morrer com todos os seus tam cruamente; e vendo que tudo o que hum esforçado e vallente rey podia fazer elle o tinha feito em Portugal e Castella, Africa, França, e outras partes, e tudo se lhe hia a través; parecendo-lhe que ysto vinha por Deos ou seus pecados ou por sua má costelaçam, determinou de deyxar o mundo e se hir a Jerusalem meter em religiam; e com toda ha dissimulaçam que pôde ho pôs por obra.

E ahos vinte e quatro dias do mes de Setembro do anno de mil e quatrocentos e setenta e sete, hum dia ante manhaã com hum capellão, e dous moços da capella, e dous moços da camara e dous moços d' estribeira se partio muy secretamente. E do caminho mandou hum dos moços d' esporas avisado que nam dissesse por honde hia, com hũa chave de hũa sua boeta, e mandando que se abrisse como logo abriram. E acharam nella certas cartas e hũa estruçam do que mandava que fizessem, tudo escripto por sua mão. Hũa das cartas era pera el-rey de França, em que lhe encomendava muito o emparo, favor, e ajuda dos seus se lhe fosse necessario e dando-lhe conta de sua determinaçam. E outra pera o principe seu filho, em que com palavras de muita tristeza e sentimento lhe dava hũa muito triste conta de sua viajem e desconfortada tençam e das tristes causas que o a ysso moveram, encomendando-lhe muito e mandando-lhe por sua bençam que tanto que lhe a carta dessem logo se levantasse por rey; e outra carta pera todolos do reino em que lhe mandava que como a propio e verdadeiro rey lhe obedecessem. Has quaes cartas o conde de Farão a que elle na estruçam mandou que todos obedecessem e comprissem seus mandados até tornarem a Portugal, deu a Antam de Faria camareiro e guarda-roupa do principe que ao tal tempo lá era a visitar el-rey. Com as quaes Antam de Faria logo partio, e com pressa veo ao principe", que como singular, virtuoso e verdadeiro filho, com muitas lagrimas e grandes solluços as leo, e assi com muyta tristeza de todos os que presentes eram e de todo o reino.

E em comprimento de mandado d' el-rey seu pay, o principe foy alçado por rei com sua solenidade em Santarem nos alpendres de Sam Francisco, aos dez dias do mes de Novembro de mil e quatrocentos e setenta e sete ãnos, e nam com poucas lagrimas suas e dos que com elle eram. Sendo presentes o duque de Bragança e ho marquês de Montemor seu yrmão, ho arcebispo de Lisboa, ho bispo d' Evora Dom Garcia, ho bispo de Coimbra, e o bispo de Viseu, ho conde de Villa Real, o conde de Penella, ho conde de Momsanto, e outros senhores e pessoas mui principaes.

De como el-rey Dom Afonso foy achado e tornado a seus reynos, e da grande obbediencia e muy singular virtude que o principe fez

Capitulo XVIII

Tanto que foy sabido que el-rey Dom Afonso era partido, se poos tanta deligencia pellos franceses pera se buscar, que nam ficaram caminhos, estradas, nem atalhos por honde muyta gente nam fosse em sua busca. E assi todos hos portugueses com tanta tristeza, tanto door, tanto desemparo quanto bons e verdadeiros criados e vassalos, por tam excelente, tam virtuoso rey de que tantas merces e honrras tinham recebidas podiam ter, todos espalhados por todas partes com tanto desejo de o acharem pera com ele yrem e o servirem até morte, quanta era a desconsolaçam de suas almas. E tanta gente foy apos ele por todollos caminhos, que ouveram nova por onde hia, e dahi a dous dias foy achado por hum fidalgo frances que com muyto acatamento ho servio e deteve atee que hos senhores e fidalgos portugueses chegaram a elle. E com muyto trabalho o poderam tirar de seu proposito, e porém como virtuoso e piadoso rey lhe aprouve de fazer o que com tantas lagrimas e muy piadosas pallavras lhe pediam, que era tornar-se a seus reynos e nam nos deixar tam perdidos, tam tristes e desemparados em reynos e terras estranhas. E logo com todos se tornou, e por nam vir a Nafrol donde partira, foy a embarcar a hũa angra do mar que chamam a Oga, em hũa grande carraca, e a outra gente em naos que pera ysso tinham prestes e assi partio logo pera seus reynos. E vindo no mar foy aconselhado dalgũas pessoas principaes que fosse desembarcar a algũa das cidades que tinha em Africa e nam em Portugual, porque seu filho por ja ser rey nam lhe avia de obedecer nem consentir que mandasse nada, e el-rey lhe respondeo: "Prouvesse a Deos que tanta mercee me fizesse que fosse eu governado e mandado por meu filho".

Veo el-rey ter a Cascaes onde soube que o principe seu filho era levantado por rey, e ao outro dia foy desembarcar a Oeyras. E no mesmo dia veo ho principe ter com elle; que assi como lhe deram a nova, sem mays esperar ora nem ponto partio, e veo com muito grande pressa atee achegar ao pay, e em no vendo com grandissimo prazer, alegria, e lagrimas, com muyto grande acatamento, e os joelhos em terra lhe beijou a mão. E com palavras de principe tam prudente e virtuoso e filho tam obediente como era, renunciou logo de si, nas mãos d' el-rey seu pay ho titolo de rey que per seu mandado tinha tomado. De que el-rey e todos os que com elle vinham ficaram muy contentes e muy alegres, porque antre eles ouve alguns que duvidavam do principe fazer tamanha bondade; e el-rei com muito contentamento e muytas pallavras d' amor, e rezões muy evidentes que pera ysso ao filho alegou, quisera e apertadamente lhe cometeo e rogou que pois por seu mandado era alçado por rey, nam deixasse de o ser, e ficase rey de Portugual, que elle se contentara com ficar rey dos Algarves, e nos lugares dalem yr acabar sua vida fazendo guerra aos infieis por serviço de Deos. E o principe pollo grande amor e acatamento que lhe tinha, e por suas muyto grandes virtudes nunca o quis aceitar, dizendo que nunca Deos quisesse que em sua vida ouvesse outro rey senam elle. E apertando el-rey todavia muito nisso e per muitas vezes, o principe lhe pedio muyto por merce que tal lhe nam mandasse porque em nenhũa maneyra o avia de fazer, ainda que nisso lhe fosse desobediente, e que soubesse certo que muito mais estimava ser seu filho, que ser rey de muitos reinos. De maneira que logo el-rey Dom Afonso ficou como dantes era, e ho principe no mesmo dia se tornou a chamar principe; de que foy de todos em estremo muy louvado e foy grandissima virtude. Aos senhores e fidalgos que com el-rey seu pay vinham fez muita honrra e gasalhado; e assi recebeo todos hos mais com muyto amor. E dahi se foram el-rey e elle aa cidade de Lisboa, onde com muitos prazeres e mui grandes alegrias forão recebidos; e assi foy muy grande prazer em todo o reino.

Do que o principe passou em Almeirim com ho cardeal

Capitolo XIX

Ho principe nunca foy contente das cousas do cardeal de Portugal Dom Jorge da Costa, nem lhe parecia bem a muita honrra que el-rey seu pay lhe fazia mays do que era rezam, com que o cardeal se mostrava rijo, e fazia algũas cousas mais solto do que devia, de que ho principe tinha desprazer por el-rey lhas consentir. E estando el-rey em Almeirim andando passeando no campo, ho principe se apartou com o cardeal a cavallo, e foram passeando caminho de Santarem; e aa ponte d' Alpiarçoyla, o principe mandou ficar todos, e soo com o cardeal e hos moços d' estribeyra adiante afastados passou a ponte d' Alpiarça. E foy reprehendendo muyto ho cardeal com palavras asperas e feas estranhando-lhe has cousas que fazia; e ho cardeal dando-lhe muytas desculpas, o principe lhas nam recebia e lhe dise: "Pera que he nada senam a hum cardeal tam mal ensinado, desagradecido e de maa condiçam, mandá-lo tomar por quatro moços d' esporas e afogá-lo em hum rio e dizer que cahio e se afogou por desastre?". E isto hindo-se chegando ao Tejo, de que ho cardeal ouve tamanho medo que verdadeyramente cuydou que ho principe ho levava pera o mandar  matar. E dahi por diante se emmendou e ho temeo tanto, que logo determinou sua hida pera Roma e se foy; e laa contou a muytas pessoas que nunca tam grande medo ouvera, e que aquella hora se dera por morto.

De como Lopo Vaaz o Torrão se levantou com a vila de Moura

e do que o principe sobre ysso fez

Capitolo XX

Depois d' el-rey Dom Affonso ser vindo de França no ãno de setenta e oito durando ainda as guerras de Castella, Lopo Vaz de Castelbranco a que chamavam o Torram, sendo alcaide-mor da vila de Moura sem causa algũa se alevantou com a dita villa e fortaleza por el-rey de Castela, contra el-rey Dom Afonso que o criara, e chamou-se conde de Moura. E depois por ser muito estranhado de seus parentes homens principaes e leaes que no reyno avia, e aconselhado e requerido delles se tornou alevantar por Portugal, e desistio do titolo de conde que emdevidamente tomara, porém com promessas d' el-rey Dom Afonso, de que o principe ouve muyto desprazer, e nunca nisso consentio, antes disse a el-rey seu pay que pois queria fazer merce aos que contra elle se alevantavam, que faria aos que ho muito bem servissem.

E porque o principe sentio muyto ho dito Lopo Vaz se alevantar assi sem causa e nam fiar ja delle, por escusar de o poder fazer outra vez determinou de o mandar matar. E teve maneira que estando o dito Lopo Vaz em Moura bem receoso e guardado delle, por certos cavaleiros que manhosamente lá mandou dizendo que hiam fugidos o mandou matar, e o mataram no campo indo com eles aa caça. E tanto que o principe o soube acudio logo em pessoa e toda a corte apos elle, e segurou a villa e fortaleza e a entregou aa infanta Dona Breatiz sua sogra e mãy do duque Dom Dioguo cuja a villa e fortaleza era. O que o principe assi fez por se outros individamente e sem causa não levantarem. E hos cavalleyros que o assi mataram eram Joam  Palha, Mem Palha, Pero Palha, Bras Palha yrmãos, e Rui Gil e Diogo Gil Magro yrmãos e todos primos, aos quaes ho principe fez boas mercees.

Do que ho principe fez sobre has terçarias

Capitollo XXI

Depoys das pazes feitas por el-rey Dom Affonso e el-rey de Castela no fim do ãno de mil e quatrocentos e oitenta por assi estar assentado nas cupilações delas, o principe estando em Beja com a princesa e sua casa, mandou entregar o infante Dom Afonso seu filho aa infanta Dona Breatiz sua sogra que ja estava em Moura pera o ahi ter em terçaria. O qual infante foy grandemente acompanhado dos principaes senhores do reyno; e despedido do principe seu pay e da princesa sua mãy com muytas lagrimas e grandissima saudade foy levado e entregue aa senhora infanta sua avoo. E logo de Castella veo a infanta Dona Isabel filha mayor d' el-rey Dom Fernando e da raynha Dona Isabel, e com ella o mestre de Santiago, e outros muitos senhores e muy nobre companhia.

E antes de entregarem a senhora infanta vieram embayxadores à infanta Dona Breatiz alem dos que ja com ella estavam. Os quaes embaixadores apontaram de novo tantas e grandes duvidas e condições pera dilatarem a entrega da infanta Dona Isabel que foy necesairo yrem muitas vezes recados ao principe que estava em Beja, do que queria e mandava que se fizesse porque todo o caso dependia sobre elle. E o principe agastado de suas importunações e delongas, parecendo-lhe que nam queriam comprir o que era determinado e assentado nas capitulações das pazes, presumindo que ysto poderia vir doutrem, mandou aos embaixadores dous escriptos com duas soos palavras escriptas de sua mão, e em hum dezia paaz, e no outro guerra. E mandou que no conselho onde os de hum reino e do outro cada dia se juntavam, fossem os ditos escritos perante todos dados aos ditos embaixadores, e que logo em nome dos reis seus senhores escolhessem hum delles qual quisessem. E que se tomassem ho da guerra que della seria mays contente por ser hũa guerra, que de paz que tantas guerras lhe dava; que se quisessem o da paz que della tambem lhe prazeria, sem mais emnovações das que jaa eram concrodydas, e que pera isso logo trouxessem e entregassem a infante. Os quaes dous escriptos do principe com sua tam crara determinaçam, teveram no conselho tanto poder e auctoridade, que os embayxadores todos sem mays duvidas nem delongas, se conformaram todos, e acordaram a entrega da senhora infanta que logo entregaram.

E foy entregue aa infanta Dona Breatiz aos onze dias do mes de Janeiro de mil e quatrocentos e oytenta e hum ãnos. E a infanta Dona Isabel foy solenemente recebida, e ficaram ella e o infante Dom Afonso nas ditas treçarias, e hos senhores e embayxadores foram logo despedidos. E a infanta Dona Breatiz como foy entregue da infanta Dona Isabel, entregou ho senhor Dom Manoel seu filho, pera lá andar em quanto nam fosse ho duque Dom Diogo como era ordenado, porque ao tal tempo estava doente. E hos senhores o receberam e levaram com muyta honrra. E hia com muy honrrada casa e concerto, e muitos fidalgos honrrados tudo ordenado pollo principe.

Da morte d' el-rey Dom Afonso, e de como o principe foy alçado

por rey

Capitulo XXII

E depois do infante Dom Affonso assi estar em terçarias na villa de Moura em poder da infanta Dona Breatiz sua avoo como dito he, ho principe e ha princesa pollo grandissimo bem que ao infante queriam por ser tam excelente criatura, e nam terem outro filho nem filha, e polo grande receo que tinham à sua saude por a villa de Moura ser muyto doentia nos verãos, ficaram em Beja pera dahi cada dia saberem novas do filho que em estremo muito amavam.

E no mesmo ãno de mil e quatrocentos e oitenta e hum no mes d' Agosto, veo recado ao principe que el-rey seu pay estava na villa de Sintra muito doente de febres; e tanto que lhe deram a nova partio logo a grande pressa e o foy ver. E avendo muyto poucos dias que el-rey era doente, foram as febres tam rijas, que quando o principe chegou a elle o achou ja de maneira, que todos os fisicos desconfiavam de sua saude. Beyjou a mão a el-rey seu pay com muito acatamento. E el-rey foy muy ledo com a vinda e vista do principe porque em todas suas fortunas elle soo foy sempre ho principal conforto e remedio dellas, e ho que el-rey em todollos tempos sobre todos mays estimou. E naquelle tempo que era de tamanha necessidade, tanta tristeza, e desconsolaçam, ficou muy consolado com elle. E o principe como prudente e muy virtuoso filho, tanto que dos fisicos soube que a vida d' el-rey seu pay nam tinha remedio algum, lho quis buscar pera salvaçam de sua alma; e lhe lembrou logo com palavras de muyto amor e esforço, com grande prudencia e segurança as cousas que lhe pareceram necessarias pera descarrego de sua conciencia e bem de sua alma. Has quaes el-rey tomou delle com grande amor e muita paciencia, dando muytas graças a Deos por o livrar de tantos perigos como tinha livre, e ho deixar morrer em seus reinos e em sua casa e sua cama com conhecimento de sua morte; e conformando-se com sua vontade, e o de que mais fosse servido, fez logo tudo o que cumpria; com seu testamento feyto e muyto bem ordenado, confessado, comungado e ungido com muita devaçam e arrependimento de seus pecados, como catolico e virtuoso rey, perante o principe seu filho deu a alma a Deos, e se finou na dita vila de Sintra na mesma casa e lugar donde naceo, aos vinte e oito dias d' Agosto do dito ãno de mil e quatrocentos e oitenta e hum, em hidade de quarenta e nove annos dos quaes reynou  os quarenta e tres. Foy o principe por sua morte muy anojado e assi todos os que presentes eram e todo o reino, porque el-rey era muyto bem quisto e muy amado de todos. Foy logo ho corpo d' el-rey com muita solenidade e muito grande tristeza levado ao Moesteiro da Batalha, e sepultado na casa do capitollo onde ainda agora jaz.

Ho principe vestido todo de burel como entam era costume, se encerrou tres dias com tantas lagrimas e tanta tristeza, quanto hum tam singular filho por hum tam virtuoso pay podia ter. E no derradeyro dia do dito mes d' Agosto vestido de vestiduras reaes com o cetro na mão, e todas as cerimonias acustumadas foy pollos senhores e nobres do reyno que se ahi entam acertaram, alevantado por rey na mesma villa de Sintra no Joguo da Pella em ydade de vinte e seys annos e quatro meses. E loguo com grande solenidade foy em todos seus reinos levantado e obedecido por rey. E pollo grande sentimento que todos souberão que el-rey tinha polla morte d' el-rey seu pay, e tambem polo nojo em todos ser muy geral, por quam amado e bem quisto era, foram em todo o reino feytos muito grandes prantos com grandes cerimonias de tristeza, e toda ha gente vestida de burel, almafega, luto e vaso. E per mandado d' el-rey foram feitos em todolos moesteyros e ygrejas grandes, e devotas exequias, em que muy devotamente encomendavam sua alma a Deos. E d' el-rey Dom Affonso que sancta gloria aja nam ficarão mais filhos que el-rey Dom Joam, e a infanta Dona Joana mais velha que el-rey, que solteira sem casar com vida e obras de muy virtuosa e catolica princesa se finou no Moesteiro de Jesu d' Aveiro dahi a muitos dias em hidade de trinta e seis ãnos, no anno de mil e coatrocentos e noventa como ao diante se dira .

Do saimento d' el-rey Dom Afonso,

e doutras cousas que el-rey logo fez necessarias em tal tempo

Capitulo XXIII

Escreveo el-rey logo a todolos grandes e perlados e fidalgos principaes de todos seus reinos, e os mandou aperceber pera o saymento d' el-rey seu pay. Que logo muito honrradamente com muito grandes comprimentos e muitas despesas e grande perfeiçam, lhe mandou fazer no mesmo Moesteyro da Batalha no fim do mes de Setembro, a que el-rey foy em pessoa acompanhado de todolos grandes e nobres de seus reinos e de outra muyta gente honrrada; ho qual saymento fez muito perfeitamente e com grande sentimento no dito moesteiro.

E tanto que el-rey veo do saymento, mandou recado a todollas cidades e villas notaveis, e assi aos alcaides-mores que no mes de Novembro seguinte fossem todos na cidade d' Evora pera cortes que ahi avia de fazer, e assi pera darem obediencias e menajens.

E recolheo loguo pera si com muyto amor e guasalhado todolos officiaes da casa d' el-rey seu pay, e assi os moradores e muytos dos officiaes tomou pera si com os mesmos officios, e a outros deu satisfações de que foram bem contentes. E fez outras muyto grandes merces com muitas palavras de conforto e de muyta esperança, com que todos ficaram muy confortados e satisfeytos delle; que pera perda de tam bom senhor foy grandissimo remedio, tam virtuoso e verdadeyro emparo como todos em el-rey acharam. E nas cousas do testamento e descarrego da alma d' el-rey seu pay, o fez tam virtuosamente com tanta bondade, com tanto cuidado e deligencia, em tanta perfeiçam o cumprio sem ficar cousa algũa por fazer, que mais nam fizera por sua propria vida e salvaçam de sua alma; e por ysto foy de todos em estremo muy louvado.

Do que el-rey fez sobre hum alvara que tinha passado

a  Nuno Pereira

Capitulo XXIV

El-rey em sendo principe no tempo de sua mocidade folgou muito com Nuno Pereira fidalgo de sua casa, homem galante, cortesam e muito bom trovador; e sendo assi privado pedio ao principe que lhe fizesse merce dhum alvara em que lhe prometesse de o fazer conde tanto que fosse rey. E por o principe ser moço e lhe querer grande bem, lhe deu o alvara feito à vontade de Nuno Pireira sem o ninguem saber, o qual teve muitos ãnos em segredo sem disso dar parte a pessoa algũa, nem lembrar mais ao principe. E depoys que foy alçado por rey, Nuno Pereira com ho alvara na mão lhe veo requerer que lho comprisse. E el-rey quando vio e leo o alvara que nunca mais lhe lembrara ficou enleado, e tomou-o e disse-lhe que elle lhe responderia. E teve logo sobr' isso conselho, se era caso de castigo pois em moço lhe fizera fazer o que nam devia folgando muyto com elle. E emfim rompeo o alvara e disse a Nuno Pereira, que mayor mercee lhe fazia em o nam castigar, do que lhe fezera se lhe comprira o alvara e porém depois sempre lhe fez honra e merce.

De como el-rey mandou fazer o castello da cidade de Sam Jorge

na  Mina

Capitulo XXV

Em vida d' el-rey Dom Afonso sendo ainda el-rey principe, tinha ja a governança dos lugares dalem em Africa, e assi as rendas e tratos da Mina e todo Guinee que entam rendiam pouco; e os trazia a esse tempo arrendados Fernam Gomez da Mina cidadão de Lixboa que nelles ganhou muito dinheiro. E tanto que el-rey reynou como muito prudente e muy astucioso, cuidando muytas vezes o grande proveito que a elle e a seus reinos e naturaes recrecia se naquella parte da Mina podesse fazer e ter hũa fortaleza onde assentasse trato com muitas e boas mercadarias pera com ellas se aver muito ouro como tinha por verdadeira enformaçam que ali se vinha resgatar, e que assentando-se o trato e vindo a estes reinos ouro seria muito serviço e acrecentamento de sua honrra e estado, e principalmente por ha fee de Nosso Senhor Jesu Christo ser naquellas partes sabida como foy, determinou com hos do seu conselho de fazer como fez aa cidade de Sam Jorge na Mina de que tanto proveito a estes reinos recreceo. E avendo muitos que o torvavão por o averem por cousa impossivel pollas grandes doenças da terra, e a longura do caminho, e incerteza, e pouca verdade, e confiança dos negros, e outros muytos inconvenientes que pera ysso lhe lembravam, todavia determinou de o fazer. E o primeiro homem que pera yr lá se ofereceo, foy Fernam Lourenço seu escrivam da Fazenda, que despois foy feytor das Casas da India e da Mina homem muy honrrado a quem o el-rey muito agradeceo e lhe fez sempre muita honrra e muitas merces. Escolheo pera ysso Diogo d' Azambuja cavaleiro de sua casa, que depois foy do conselho, e tomou a cidade de Çafim aos mouros e foy della capitão, homem de muyto bom saber e esforçado coraçam, de confiança, e bondade, e outras boas calidades; e com todalas cousas necessarias em muyto grande abastança, o mandou com seyscentos homens a fazer a dita fortaleza, os cento delles pedreiros e carpinteiros, e os quinhentos homens d' armas, em que entravam muitas pessoas honrradas criados d' el-rey, levando logo de cá toda ha pedraria e madeira lavrada. E porque em todo o Mar Ouceano nam há navios latinos senam as caravelas de Portugal e do Algarve, el-rey por ninguem ousar d' ir aaquellas partes, fez crer a todos que da Mina nam podiam tornar navios redondos por caso das correntes. E pera isso toda a pedra, cal, telha, madeira, pregadura, ferramentas e mantimentos, mandou tudo em hurcas velhas pera lá se desfazerem, e dizerem que por caso das grandes correntes nam poderam tornar, e assi se fez com muito segredo e grandes juramentos, e o ouveram todos por tam certo, que em vida d' el-rey sempre pareceo que navios redondos nam podiam vir de lá; e com ysto teve sempre a Mina muy guardada. E com estas hurcas que diante foram e com muitas e muy boas caravelas partio Diogo d' Azambuja com sua armada da cidade de Lixboa bespora de Sancta Luzia doze dias do mes de Dezembro do dito ãno de mil e quatrocentos e oytenta e hum. E aos dezanove dias de Janeiro do anno de mill e quatrocentos e oitenta e dous, foy ho primeiro dia em que sayo em terra; e dahi a dous dias começou a fortaleza no lugar onde ora estaa, com muito saber e resguardo, e muitas dadivas aos da terra, tudo como homem prudente e muito bom cavaleiro. E depois de tudo feito como cumpria tomou a gente necessaria pera a guarda da fortaleza e pera o trato, e a outra mandou logo pera ho reino com recado do que ficava feito, de que el-rey recebeo muito contentamento; e elle ficou lá por capitam onde esteve dous annos e sete meses donde veo rico e muy honrrado; e sem o ele requerer, el-rey lhe fez em chegando muyta merce e acrecentamento e tanta honrra, quanto por tam bom serviço lhe merecia.

Das cortes que el-rey fez na cidade d' Evora, onde lhe deram

obediencias e menajeẽs

Capitollo XXVI

Depois de ser acabado o saimento d' el-rey Dom Afonso como ja fica dito, el-rey com a raynha e o principe se veo aa cidade d' Evora. E no mes de Novembro deste anno de mil e quatrocentos e oitenta e hum, foram juntos na cidade todolos grandes senhores e pessoas principaes e alcaides-mores, e assi todolos precuradores das cidades e villas notaveys pera cortes que se ahi aviam de fazer. As quaes se fezeram em hũa sala grande dos paços, con muyto grande solenidade, ordem e regimento com muyto ricos concertos, tudo em muito grande perfeiçam; el-rey em alto estrado e sua cadeira real com dorsel de brocado; e elle vestido de opa roçagante de tella d' ouro forrada de ricas martas com o ceptro na mão; e os senhores e officiaes-mores e os do conselho e assi todos hos precuradores do reino assentados em seus assentos ordenados segundo suas precedencias. E depois de tudo posto em ordem e a casa em grande silencio, o doutor Vasco Fernandez de Lucena chanceler da Casa do Civel fez em alta voz hũa arengua muy bem feita e bem conforme ao caso. E acabada Dom Fernando duque de Bragança e de Guimarães se levantou e se foy a el-rey, e posto em joelhos diante delle por si e pello duque Dom Diogo yrmão da raynha que ao tal tempo andava em Castella polo contrato das terçarias, deu a el-rey sua obediencia; e pollos seus castelos e os do duque, nas mãos d' el-rey lhe fez por todos menajem. E o senhor Dom Alvaro yrmão do duque como procurador do marquês de Montemor e do conde de Faram seus yrmãos, e em nome de todolos senhores do reino, e por si deu tambem nas mãos d' el-rey obediencia e menajem, e apos elle a deu hum precurador da cidade de Lisboa por todallas cidades, e outro de Santarem por todallas villas; o que assi se fez por abreviar, porque se todos ouveram d' ir per si fora cousa de fastio e grande vagar. E acabado assi tudo el-rey com grande estado real, e todos seus officiaes diante delle, e muytos reys d' armas e porteiros de maça, e os senhores e nobres que o acompanhavam se recolheo a suas camaras.

De como se começou e ouve principio o caso do duque de Bragança

Capitulo XXVII

E ante de se fazerem estas menajens, el-rey com o duque de Bragança e seus yrmãos e outros senhores e pessoas do conselho, praticou muitas vezes nas palavras que nas menajens aviam de dizer, em que ouve muitas perfias, desgostos, descontentamentos, por lhe parecer aspera forma a em que el-rey queria que se fizessem, sendo aquella propia em que ora se fazem, porque atee entam nam achavam regimento algum por onde se fizessem (cousa de muito grande descuido dos reis passados). E por que dahi em diante ouvesse forma e regimento por onde se todas fezessem, el-rey mandou fazer hum livro muyto bem ordenado que sempre andou em sua guarda-roupa, em que todalas menajens que todolos alcaydes-mores dahi em diante fezessem fossem nelle escriptas, nomeando o lugar, dia e mes e anno, e com os alcaides e testemunhas nelle assinados, e ordenou que se dessem nesta maneira: el-rey assentado e o alcayde em joelhos diante delle com as mãos ambas juntas metidas antre as mãos d' el-rey, estevesse assi até se acabarem has palavras da amenajem has quaes sam estas.

A maneyra em que se as menajens dam

Capitulo XXVIII

Aos tantos dias de tal mes e tal anno na cidade ou villa tal, nas casas taes onde el-rey nosso senhor pousa, Foam lhe fez preito e menajem pollo castello e fortalleza tal na forma que se segue (as quaes palavras ha-de leer alto o escrivam da poridade ou ho secretario): Muyto alto, muyto excelente e muito poderoso, meu verdadeiro e natural rey e senhor. Eu Foam vos faço preyto e menajem pollo vosso castello e fortaleza tal, de que me ora novamente encarregais e dais carrego; que a tenha e guarde por vós, e vos acolherey no alto e no baixo della, de noite e de dia, a quaesquer horas e tempos que seja, hirado e pagado com poucos e com muitos vindo em vosso livre poder; e delle farey guerra e manterey tregoa e paz segundo me per vós, senhor, for mandado; e ho nam entregarey a algũa pessoa de qualquer estado, grao, dinidade, ou preminencia que seja, senam a vós, meu senhor, ou a vosso certo recado, logo sem delonga, arte, nem cautella, a todo tempo que qualquer pessoa me der vossa carta assinada por vós, e asselada com vosso sello, ou sinete de vossas armas, por que me tiraes este dito preyto e menajem. E se acontecer que eu no castello aja de deyxar algũa pessoa por alcayde e guarda delle, eu lhe tomarey este dito preito e menajem na dita forma e maneyra e com has crausulas e condições e obrigações nelle conteudas. E eu por ysso nam ficarey desobrigado deste dito preito e menajem, e das obrigações e cousas que se nelle contem, mas antes me obrigo que o dito alcaide ou pessoa que assi leixar, tenha, e mantenha, cumpra, e guarde todas estas cousas e cada hũa delas inteiramente. E eu sobredito Foam faço preito e menajem em as mãos de vossa alteza que de mi ha recebe hũa, duas e tres vezes segundo vosso custume destes vossos reynos. E vos prometo e me obrigo que tenha, e mantenha, guarde e cumpra inteiramente este dito preyto e menajem e todalas crausulas, condições, e obrigações, e todas as cousas e cada hũa dellas em ella conteudas, sem arte, cautella, fraude, engano, nem mingoamento; e por firmeza delo assiney aqui. Testemunhas: Foão, e Foão. E eu Foão escrivam da poridade que esta menajem por mandado do dito senhor fez escrever, e estive ao tomar della e tambem assiney.

Ho duque e seus yrmãos e assi outros senhores ouveram então ha forma desta menajem por aspera e perjudicial a suas honrras. E ho duque fez logo per os requerimentos e protesto e pedio disso estormentos, que em caso que entam assi ha fizesse era quasi forçado, mas que protestava depoys de buscar has suas doações, escripturas, e previlegios, e el-rey o ouvir sobre ysso com sua justiça e lha guardar, e o nam obrigar a mais do que os reis passados seus antecessores obrigaram a elle e a seu pay e avoos.

E ho duque por ver se poderia remediar ysto que muito sentia, mandou logo o bacharel Joam Afonso veador de sua Fazenda a Villa Viçosa e deu-lhe a chave de hum cofre em que tinha suas doações e escripturas e todos os papees de seu segredo, e mandou-lhe que ho abrisse e antre todos buscasse todas as que lhe parecesem que pera este caso lhe compriam. E ho bacharel por descuido ou negligencia ou outras ocupações, ou por misterio de Deos, mandou buscar os ditos papeis por hum seu filho moço de que elle muito fiava. O qual filho buscando o dito cofre, chegou por acerto a elle Lopo de Figueredo escrivam da Fazenda do duque, homem de muita confiança; ho qual a requerimento do moço o ajudou a buscar todas as escripturas e papees que no cofre estavam, mais com tençam do serviço do duque que do que ao diante se seguio. E andando assi em busca dos ditos papees, topou com algũas cartas e estruções de Castella e pera os reis de Castella, dellas proprias e outras ementas corregidas e enmendadas da letra do mesmo duque. E como as assi vio escondidamente do moço has tomou todas e meteo na manga, e se foy a casa e secretamente vio todas. E vendo que eram contra ho estado, honrra e serviço d' el-rey, determinou de logo lhe yr tudo mostrar; e sem detença algũa partio de Villa Viçosa escondidamente e veo a Evora, e secretamente falou com el-rey com muito resguardo e com palavras de muito bom homem e leal vassallo mostrou tudo a el-rey, affirmando-Ihe e jurando que ho nam fazia por odio do duque, porque tinha rezam de o amar e servir, nem menos por esperar de sua alteza por iso merces, mas que era seu vassalo e temia a Deos e receava ho que dalli se podia seguir, e ha conta que a Deos daria podendo atalhar a tanto mal e nam no fazer.

El-rey depois de tudo muyto bem ver e lhe dar disso hos agradecimentos que devia, ficou triste e muy cuidoso. E mandou logo a Antam de Faria seu camareyro de que muito confiava e a quem descubria seus segredos, que com a mayor pressa que podesse treladasse todos aquelles papees ho que logo fez. E el-rey tornou os propios ao dito Lopo de Figueredo, pera os tornar ao cofre donde os tirara, porque ainda o moço tinha muyto que buscar; e se per ventura mays achasse que o traria a sua alteza, e nam mingoando nem se achando cousa menos no cofre nam averia que sospeytar. As quaes cousas dando a el-rey muyto cuydado e payxam as dissimulou de maneira, que nunca pessoa algũa  entendeo nada nelle e tudo guardou em si. E porém dalli por diante como prudente começou a entender e olhar por muytas cousas, e andar sobre aviso do duque e ter dele muitas sospeytas e má vontade sem lha nunca dar a entender.

Dalgũas cousas que el-rey nas cortes ordenou e quis fazer

Capitolo XXIX

E nestas cortes a requerimento dos povos e per vontade d' el-rey, que com muito cuydado tudo se fazia, ordenaram muitas e boas cousas, antre as quaes el-rey ordenou os contadores e oficiaes das terças e relidos, capellas, e espritaes, e orfãos, e os repartio nas comarcas como ainda agora estam. E tirou os adiantados que em cada comarca do reino eram postos por el-rey seu pay, pessoas principaes e de titolos que punham por si ouvidores que ouviam como corregedores. Isto a requerimento dos povos, e por lhe assi parecer serviço de Deos e seu. E assi determinou que as confirmações que avia de confirmar nam fossem geraes como hos reis seus antecessores costumavam, mas que todalas pessoas de qualquer estado e condiçam que fossem, assi ecclesiasticos como seculares, e todollos moesteiros e ygrejas de seus reynos, e todalas cidades, vilas, e lugares, dahi a certo tempo viessem ofrecer aos oficiaes deputados pera suas confirmações todallas doações, graças, privilegios que tevessem pera lhe confirmar as que rezam e justiça lhe parecesse; e não no comprindo que dahi em diante perdessem a graça de todo. E a principal causa por que el-rey isto assi mandou, foy por ver as doações e todas as mais cousas dos grandes e senhores, fidalgos e cavaleiros de seus reinos, por lhe ser dito que em suas terras e senhorios usavam de mayores jurdições e poderes do que suas doações, graças e previlegios se estendiam; e assi pera se nam confirmarem geralmente muytas cousas que hos reys passados deram principalmente el-rey Dom Afonso seu pay, que quasi constrangido em tempos de muita necessidade, guerras e afrontas outorgou muytas que de dereito e rezam antes se deviam revogar, que consentir nem confirmar. E assi pera mandar renovar em nova letra, previlegios e liberdades tam antiguos que se nam podiam bem ler.

Hida d' el-rey a Montemor-o-Novo, e do que aqueceo ao marquês

da dita villa no recebimento d' el-rey, e das palavras que ouve

com ho arcebispo de Braga

Capitolo XXX

       

E porque na cidade d' Evora começaram a morrer de peste, el-rey com sua corte no Janeiro seguinte de quatrocentos e oitenta e dous se foy a Montemor-ho-Novo pera ahi acabar de despachar as cousas particulares das cortes, e assi ordenar outras que pera bem de seus reinos e estado cumpriam.

E antes d' entrar na dita villa hindo com grande doo e todos vestidos de burel e almafega, ho marquês de Montemoor ho veo receber ao caminho com hum argao e pelote d' almafega, e debayxo hum gibão de brocado que parecia, e vinha em hum ginete arrayado com huns cordões e topeteira cramesins, querendo dar a entender a el-rey que tinha muito prazer e contentamento delle reinar e muy alegre lhe beijou a mão. El-rey ficou muy espantado de tamanha desonestidade, e ouve disso muito desprazer; e porque as cousas mal feitas nam deyxava passar sem reprensam ou castigo, mandou logo dizer ao marquês que se lhe lembrava a elle, que ho rey por quem trazia tal doo, ho fezera marquês e lhe dera Montemoor, e lhe fizera sempre muita honrra e muytas merces. Do qual recado ho marquês ficou envergonhado e escandalizado d' el-rey.

E logo na vlla por darem a Dom João Galvam arcebispo de Braga  d' apousentadaria hũas casas de hum criado do marquês que elle quisera escusar e nam pôde, disse ao arcebispo pubricamente palavras feas e injuriosas de que ho arcebispo muito sentido e ynjuriado foy loguo fazer queyxume a el-rey, que mostrou receber por isso muito descontentamento; e por ser no começo de seu reynado e em sua corte e antre pessoas tam principaes, sendo verdadeiramente enformado do caso esteve logo sobre isso com pessoas do conselho e leterados todos sem sospeita; e sem mais dilaçam mandou ao marquês que logo naquelle dia se saysse da dita villa de  Montemor, e dentro em cinco dias se passasse alem do Tejo onde estaria atee sua merce. E tanto que o recado foy dado ao marquês que ja no castelo onde pousava estava como preso, se sahio logo e em tudo comprio o mandado d' el-rey mostrando-se disso muyto agravado, descontente, e injuriado. E dentro nos cinco dias se foy a Castello Branco onde alguns dias esteve.

Dalgũas cousas que o marquês logo fez contra serviço d' el-rey

Capitolo XXXI

Ho marquês estando em Castelo Branco, logo com o odio e má vontade que a el-rey sem causa tinha, fez capitolos muy falsos e desonestos da vida d' el-rey que tocava muyto aa sua honrra e estado real, e os mandou logo por hum Afonso Vaz seu secretario a el-rey e aa raynha de Castella, que entam estavam em Medina del Campo. Os quaes capitolos por sua desonestidade el-rey e ha raynha nam receberam como ho marquês desejava, nem deram credito ao messageiro. E ho marquês tornou a fazer outros capitolos, que depoys enviou a el-rey e aa raynha de Castella por Pero Jusarte homem de que o marquês muyto confiava. E antes de Pero Jusarte partir, ho marquês por Lopo da Gama cavaleyro de sua casa mandou mostrar tudo ao duque de Bragança seu yrmão que estava em Villa Viçosa. E segundo se ouve por certo ao duque pesou muyto de hos ver, e lho mandou reprender e estranhar muito como cousa d' omem apaixonado e de pouco siso. E com tudo pollo degredo do marquês ser assi supito e apressado, e a seu parecer reguroso, o duque recebeo tanta paixam que lhe acrecentou a maa vontade que a el-rey tinha parecendo-lhe que o fazia por abatimento seu e do marquês seu yrmão.

De como el-rey a requerimento dos povos ordenou nestas cortes

de mandar corregedores aas terras dos senhores

e o que sobre yso passou com o duque

Capitolo XXXII

E porque polas guerras passadas e necessidades em que el-rey Dom Afonso se vio, e tambem por ser de sua condiçam as cousas da justiça andavam mais largas do que era rezam, el-rey nestas cortes requerido per seus povos quis logo a isso acudir como devia e primeiramente quis por algum tempo mandar seus corregedores aas terras dos senhores; e primeiro que nada fizesse o disse em Evora ao duque, rogando-lhe muito e encomendando-lho que o consentisse e ouvesse por bem, e que sem payxam algũa o quisesse fazer, poys sabia quanto a seu serviço e estado compria entender logo nas cousas de justiça em principio de seu reynado. E mais sendo tam apertadamente por isso dos povos requerido. E que elle duque devia de folgar de se saber a justiça que em suas terras se fazia e como eram governadas; porque sendo como elle esperava que fosse, levaria nisso muito contentamento. E avendo algũas cousas que emendar ou castigar, elle faria tudo com o resguardo e temperança que elle por sua honrra, seu sangue e dinidade merecia. E que fazendo-lhe este prazer seria enxempro para os senhores todos do reyno sem payxam o consentir. E o duque com todas estas boas palavras se escusou disso e nam lho quis conceder, antes elle e seus yrmãos porque suas terras eram disso ysentas mostraram receber grandes descontentamentos.

De como começaram as graças e separadas

Capitulo XXXIII

El-rey Dom Afonso e os reis ante dele pagavam a seus moradores os casamentos juntamente em hũa soo paga; e no tempo das guerras de Castella por el-rey Dom Afonso ter muita necessidade de dinheiro nam pôde pagar muytos casamentos a muytas pessoas que hos tinham tirados avia dias, e assentou de nam pagar nenhum e disse aos homens a que os devia que lhe prazia que em quanto lhe nam pagasse os ditos casamentos lhe fazer em cada hum anno graça de dez mil reais por cada mil coroas. E diz "graça" porque atee entam os reis deziam "Fazemos graça" e nam "Fazemos merce" como agora se diz. Os quaes dez mil reays aviam d' aver em quanto lhe nam pagassem has coroas do tal casamento. E porque has ditas graças eram merces pagavam e pagam oje em dia chancelaria.

E depois da morte d' el-rey Dom Afonso nestas cortes aqui em Montemor foy el-rey muy requerido pollos povos que nam desse mais has taes graças porque hiam de maneira pera pagar  muito dinheiro em cada hum ãno; e assi que todas as que el-rey seu pay tinha dadas tirasse e desempenhasse, porque estava metido em muyta despesa. E el-rey prometeo ahi aos povos de não dar mais as ditas graças dahi em diante, e de ter maneira de como os homens podessem aver pagamento de seus casamentos. E entam ordenou que os casamentos grandes fossem paguos em tres terços e tres annos, hum terço em cada hum anno, e os casamentos de mil coroas atee quinhentas fossem pagos em duas metades e dous ãnos, e os de quinhentas coroas e dahi pera baixo fossem pagos juntamente em hum anno como se ora faz; e disse que quanto aas graças que el-rey seu pay tinha dadas que ficassem, por quanto elle ao presente nam tinha com que has desempenhar. E hos povos apertando nisso mandaram dizer a el-rey por leterados que aquellas graças eram mal levadas e com conciencia se nam podiam levar nem dar porque craramente era husura, e nam podiam levar a el-rey ganho do que lhe devia. E el-rey praticado nisso por lhe dizerem que era assi, por descarreguo de conciencia sopricou ao Papa que ouvesse por bem de dar has taes graças em quanto nam podesse pagar os ditos casamentos. E ao  Padre Sancto aprouve disso com tal condiçam que quando se separasse o casamento por morte do marido ou molher, tanto que fosse separado lhe fosse tirado e descontado da dita graça a quinta parte della, s.: de vinte mil reays quatro mil e ficasse em dezasseis e de vinte e cinco, cinco mil e ficasse em vinte, e assi a este respeyto. A qual quinta parte avia de ficar a el-rey, e ainda que a graça fosse do marido e morresse a molher, ou polo contrairo, como se apartasse o matrimonio logo ficassem separadas. E porque no breve do Sancto Padre vinha esta palavra de "separada" tomaram o nome de "separadas", e dahi lhe ficou atee agora. E as do infante Dom Fernando nam sam desta calidade, que andam em nome de "tenças" porque as dava logo em tenças, e por ysso nam paguam chancelaria, e has outras si porque eram merces. E estas graças e separadas andavam em livro apartado per si, e el-rey has mandou ajuntar ao livro da Fazenda no anno de mil e quatrocentos e oytenta e oyto.

Embaixada que el-rey mandou a el-rey d' Inglaterra

Capitulo XXXIV

E daqui de Montemor mandou el-rey por embaixadores a el-rey Dom Duarte d' Ingraterra Ruy de Sousa pessoa principal e de muyto bom saber e credito de que el-rey muyto confiava, e o doutor Joam d' Elvas e Fernam de Pina por secretario. E foram por mar muy honradamente com muy boa companhia; hos quaes foram em nome d' el-rey confirmar as ligas antiguas com Ingraterra, que pola condiçam dellas o novo rey de hum reyno e do outro era obrigado a mandar confirmar. E tambem pera mostrarem o titolo que el-rey tinha no senhorio de Guinee, pera que depois de visto el-rey d' Inglaterra defendesse em todos seus reynos que ninguem armasse nem podesse mandar a Guine, e assi mandasse desfazer hũa armada que pera laa faziam per mandado do duque de Medina Cidonia hum João Tintam e hum Guilherme Fabiam ingreses. Com a qual embaixada el-rey d' Ingraterra mostrou receber grande contentamento, e foy delle com muita honrra recebida, e em tudo fez inteiramente o que pellos embaixadores lhe foy requerido; de que elles trouxeram autenticas escrituras das deligencias que com pubricos pregões se lá fizeram, e assi as provisões das aprovações que eram necessarias; e com tudo muito bem acabado e à vontade d' el-rey se vieram.

De outra embaixada que entam el-rey mandou a Castella

Capitolo XXXV

E assi neste ãno enviou el-rey de Montemor por embaixador a el-rey e raynha de Castella, Dom Joam da Silveira baram d' Alvito, homem muy prudente e de muito bom conselho, autoridade, e confiança, e com elle por secretario Ruy de Pina; e hia requerer algũas restituyções que pelos reys se aviam de fazer, e assi perdões que aviam de dar a alguns cavaleiros castelhanos que no tempo das guerras serviram el-rei Dom Afonso como em seu favor no trato das pazes fora capitulado, o que a muitos delles se nam compria, com achaques e cautellas que punham e outros entendimentos que aos capitolos davam desviados pera os nam comprirem. E ha principal causa a que ho embaixador foy, era sobre a mudança das terçarias de Moura pera a corte ou outra parte do reyno em lugar saadio, forte, e seguro onde tudo se comprisse, ou se desfizessem as ditas terçarias pello perigo em que o principe e a infanta Dona Isabel estavam pola vila de Moura ser muito doentia nos verãos.

Chegou o baram a Medina del Campo onde el-rey e a raynha estavam na Coresma. E nam foy alli acabado d' ouvir porque estando pera o despacharem, veo a el-rey recado como a villa d' Alfama no reyno de Granada era tomada pollo marquez de Cadiz que lhe mandou pedir socorro com muyto grande pressa e muita necessidade. E el-rey tanto que lhe a nova deram partio aforrado a grande pressa a lhe fazer hir o socorro que pedia. E tanto que a dita villa foy socorrida e provida como cumpria, el-rey se veo a Cordova e ahi esperou polia raynha, que andando prenhe se foy de Medina a Toledo e ahi  pario a infanta Dona Maria no ãno de mil e quatrocentos e oitenta e dous acerca da Pascoa da Ressurreiçam; e de Toledo se foy a raynha a Cordova onde a infanta foy bautizada na Ygreja Mayor pello bispo da cidade com grandes cerimonias. E esta infanta Dona Maria foy depoys raynha de Portugal casada com el-rey Dom Manoel, e mãy d' el-rey Dom João o terceiro nosso senhor, e o baram foy padrinho da dita infanta, e ahi acabou de dar sua embaixada, e começou de requerer despacho das cousas ao que hia.

E porque os reys de Castella tinham d' el-rey muitas sospeitas como nam deviam, e por isso cuidavam que o fundamento de seus requerimentos era cauteloso e com respeito de novidades e nam pera bom fim como o embaixador lhe dezia, em quantas cousas requereo nam tomou concrusam algũa que fosse pera aceitar. E por que nam parecesse mal os reis nam consentirem en cousas tam honestas e a ambas as partes tam proveytosas, pera as averem por boas cometiam a el-rey por condições, cousas tam feas e desonestas, que pareciam mais escusas que desejo de concordia; e as mais eram sobre a Excelente Senhora estar fora do poder d' el-rey e de toda sua ordenança e lhe dar vida muy apertada. Pollas quaes cousas o baram descontente dos despachos se despedio dos reys, e deles nam quis tomar grandes merces que lhe mandavam oferecer, e se veo a estes reinos dar de tudo conta a el-rey. Que cuidando quam proveytosa, honesta, e justificada sua embaixada era, e na sem razam dos despachos dela, teve muita sospeita que procederia de conselhos e avisos do duque de Bragança, a que do desfazimento das terçarias muito pesava, crendo que o penhor delas o segurava dalguns receos que tinha ou mostrava ter d' el-rey, porque com ellas por respeyto do principe seu filho  estava atado, confiando que em quanto durassem sempre o sosteria em sua honrra a infanta Dona Breatiz sua sogra, que parecia ter-lhe amor como era razam e dar muito credito a seu conselho. E nam foy sem causa  tomar el-rey do duque esta sospeyta, porque vistas as repostas que o baram trouxe de Castella, com os avisos que nas estruções do duque que el-rey tinha em segredo hiam pera os reis de Castella, achava-se claro sairem hũas cousas das outras, e tambem porque ante do baram partir destes reynos, ja el-rey e a raynha de Castella sabiam todas as cousas a que elle hia, o que tudo el-rey calou e dessimulou grandemente sem pessoa viva lho entender.

E no Setembro deste ãno tornou el-rey a mandar o dito Ruy de Pina aos reis de Castella que estavam no Moesteiro de Nossa Senhora de Guadalupe, com repostas e repricas da embaixada a que o barão fora, apertando com rezões muy evidentes, e com fundamento de mais amizades e amor antre elles, e que as terçarias todavia se mudassem ou desfizessem; e tambem que acerca da Excelente Senhora nam requeressem mais novidades nem estreytezas das que acerca della eram jaa concruydas, assi por nam parecer que as pazes e cousas passadas antre elles nam foram feytas com aquella firmeza que deviam. E tambem porque da maneyra em que ellas estavam seria bem e sossego e assi seguro da hũa parte e da outra. E se no casamento do principe com a ifanta Dona Isabel pola deferença das ydades tomassem muyto contentamento se fazer com a ifanta Dona Joana sua filha que na ydade tinha mais conformidade com elle, que por verem quanto estimava sua liança e amizade elle seria disso contente, com apontamento que se neste casamento quisessem antes entender, no dote se apontasse e requeressem as Ilhas das Canareas, que el-rey sempre desejou para mayor segurança de Guinee.

E os reys responderam logo a Ruy de Pina, que bem criam que tal principe como era el-rey seu primo nam diria nem afirmaria taes cousas se nam fossem verdadeiras e muito de sua vontade; porém que elles tinham comprendida hũa cousa em que el-rey de seu coraçam e desejo lhe daria muy craro testemunho, dizendo-lhe logo com palavras e mostranças de muy grande sentimento, que no Moesteiro de Nossa Senhora de Guadalupe tinham preso hum Pedro Montesinho castelhano com cartas e estruções de Dom Fernam Gonçalvez de Miranda bispo de Lamego, prior de Sam Marcos que fora de Castela, e Alonso de Ferrara castelhano, e d' Alvaro Lopez secretario d' el-rey, sobre casamento d' el-rey Febos de Navarra com a senhora Dona Joana. E por ser caso que tanto tocava a sua paz e amizade, que no castigo que a estes desse pois eram seus vassalos e andavam em sua corte se veria bem sua verdadeira vontade; e que pera ysso antes  que tomassem concrusam nas cousas que requeria era necessayro que elle Ruy de Pina tornasse a el-rey com esta duvida; e que segundo a obra que na execuçam della fezesse, assi entenderiam depoys nas cousas de seus requerimentos. E pera prova disto mostraram a Ruy de Pina has ditas cartas e estruções que o dito Pero Montesinho confessou e decrarou logo per tormento que lhe foy dado sobre ysso.

E por o perigo deste negocio que hos reys de Castella aviam por certo nam se tratar sem consentimento d' el-rey, e pollas deferenças que sabiam aver jaa em Portugal antre elle e ho duque de Bragança e seus yrmãos, desejavam muyto ver a infanta Dona Isabel sua filha fora das terçarias, porque lhe queriam muito grande bem e a estimavam muyto, e em tempos de mudanças e em reyno estranho vindo has cousas a se danarem como parecia que podia ser, estava em muito risco sua vida e liberdade. E doutra parte receavam abrir mão da paz, que era o principe e a infanta em terçarias, temendo-se que el-rey polas enformações que tinham se tevesse o filho livre, poderia vir com algũas cousas de que antre elles se podessem seguir odios e guerras que como prudentes principes desejavam escusar.

Com ho qual recado Ruy de Pina tornou a el-rey, e logo sobre este negocio de Pero Montesinho teve conselhos. E porque aos que nisso tratavam e andavam em sua corte nam deu castigo algum, se o faziam contra seu consentimento e vontade, nam se achavam neste caso desculpas por el-rey que satisfizessem aos reys de Castella.

E porque el-rey no desejo de ver ho principe fora de terçaria era com elles conforme, que em estremo desejavam ver ha infanta sua filha fora dellas, depois de tudo muito bem visto e cuidado, logo no Janeyro seguinte de mil e quatrocentos e oitenta e tres, tornou a mandar aos ditos reys frey Antonio seu confessor frade observante da ordem de Sam Francisco homem de grande credito e autoridade e o dito Ruy de Pina, os quaes foram aos ditos reys que estavam em Madrid; aos quaes o dito frey Antonio disse em reposta das cousas passadas em nome d' el-rey taes cousas e deu taes desculpas, com que lhe aprouve consentir no desfazimento das terçarias; porque toda a desculpa d' el-rey pera se ellas desfazerem como tanto desejavam lhe parecia boa e de receber. E concertou-se tambem o casamento do principe, que com a infanta Dona Isabel ficava desatado, de se fazer com ha infanta Dona Joana e que se lhe daria mayor dote por hum grao, que mais era alongada na soceçam de Castella que a infanta Dona Isabel. E destas cousas fizeram hos reys hum escripto que frey Antonio e Ruy de Pina secretamente trouxeram a el-rey, com certidam que passada a Pascoa, hos reys lhe mandariam seus embaixadores pera concruyrem ho dito casamento, e assi pera levarem ha infanta Dona Isabel das terçarias. E com este recado vieram a el-rey que estava em Almeirim, com ho qual foy muito alegre e contente, porque nelle teve esperança de ver cedo seu filho em seu poder, a que muyto contrariavam as cousas que no reyno lhe eram reveladas e jaa contra si sentia.

De como a raynha moveo e esteve muyto mal, e da vinda dos duques por esta causa aa corte

Capitolo XXXVI

Estando el-rey en Almeirim neste ãno de mil e quatrocentos e oytenta e tres na Coresma andando a raynha Dona Lianor prenhe moveo hũa  criança de que esteve muyto mal e sua vida muy duvidosa, e el-rey por ysso muito triste e muy anojado. E vieram logo ver a raynha ho duque de Viseu seu yrmão que jaa era vindo de Castella, e ho duque de Bragança e outros muytos senhores e senhoras do reyno; e com ha vinda dos duques el-rey recebeo muito prazer e lhe fez muyta honrra e deu de si muyta parte. E desejando sossegar ha vontade aho duque de Bragança, e fazê-la conforme aas cousas de seu serviço, o apartou hum dia na capella dos paços dentro na cortina, perante Dom Fernam Gonçalvez de Miranda bispo de Lamego e seu capelão-moor e lhe fez hũa fala nesta maneira.

De hũa fala que el-rey fez ao duque de Bragança

Capitollo XXXVII

“Muito honrrado duque, porque as cousas que vos agora quero dizer ham-de ser ditas nesta casa sancta em que estamos, aveis de crer que sam tam verdadeiras,  como se diante de Deos vo-las disesse. Eu sam enformado que vós contra o que a mi deveis e a meu estado e serviço, e sem aquelle resguardo que a vossa honrra e lealdade pertence, tendes em Castella algũas negoceações, modos, e maneiras, que nam sey como lhe dee fee poys tantas rezões pera mi e pera vós sam a isso muy contrairas. Porém se nisso com algũa maginaçam errada algũa cousa entendestes, sabey que minha vontade e verdadeiro desejo he esquecer-me de tudo, e assi vo-lo perdoar como se as culpas disso fossem serviços e merecimentos. Pollo qual com toda efficacia que posso,  e mais do que devo vos rogo muyto, que posposto tudo queiraes ser conforme comiguo, poys me Deos fez e deixou por erdeiro desta coroa de Portugal; que em tantas cousas por merecimentos vossos, e dos que decendeis vos foy e he tam liberal, que soes por ysso apos mi nestes reynos outro principal esteo que ho deveis soster. Porque alem do muito patrimonio real que comvosco partio, sabeis que da nobre geraçam das duas yrmaãs que do ynfante Dom Fernando, e da infanta Dona Breatiz naceram, deu a mi hũa e a vós juntamente nam negou a outra. E com tudo eu nam me escuso da culpa geeral que dam aos juyzes e officiaes novos, e assi sera ao rey novo, de quem em seus principios nam se escusam alguns agravos. Mas estes quando agravassem, vós sobre todos por singular enxempro de obediencia e lealdade os avieis de comportar e sofrê-los sem paixam, quanto mais que hos meus pera vós, que sam ho degredo do marquês vosso yrmão, e a entrada dos corregedores em vossas terras, nam sam tam crimens, que na rezam e honestidade nam tenham muita parte; e que ha nam tevessem soffrendo-os sem escandalos, tanto mays me obrigarieis, porque sendo assi, bem sey que por vossa grandeza e merecimentos, vosso saber e lealdade, enfim sempre ey-de folgar de fazer ho que vós quiserdes. E por tanto a mi a quem esta casa de Portugual per graça de Deos coube em soçessam aveis sempre em tudo ajudar e soster, nam somente com o saber e bom conselho que tendes, mas com has armas e forças quando me comprir; e assi vo-lo rogo e outra vez encomendo que o façaes”.

Reposta do duque a el-rey

Capitolo XXXVIII

E o duque depois de tudo ouvir, como muyto prudente, esforçado e leal vassallo lhe respondeo dizendo: “Senhor, eu beijo as reaes mãos a vossa alteza por esta merce, que pera mi por muytas causas ey por muy grande e muy singular. E por que em breve lhe responda, saiba que de todo o que me aqui disse pera lhe muyto dever e o servir eu sam em muyto verdadeiro conhecimento e certamente assi he; e por ysso vos peço muyto por merce que de mi nam creaes senam que sempre ey-de viver e morrer por vosso serviço. E a ysto nam contradiz ser eu por ventura agravado de vós em cousas de que vossa alteza me desagravaraa com merce, honrra, acrecentamento como espero. Porque os achaques nam se escusam antre os senhores e servidores, pois hos há antre hos paes e os filhos. Mas os meus nam sam de graveza nem de calidade, pera deyxar de ter a vossa alteza o grande amor e muita lealdade com que vos sempre ey-de obedecer e servir em todo o que a vossa honrra, estado, e serviço, e bem de vossos reynos

cumprir”.

Do que depoys desta fala e reposta se passou

Capitollo XXXIX

E sobre esta tam boa e leal tenção do duque com que pareceo que então se despedio d' el-rey, se afirmou que logo em se recolhendo a sua pousada mostrou grande contentamento do que com el-rey passara, atrebuindo suas palavras tão reaes, verdadeiras, e esforçadas a medo e pouco esforço. E logo ho duque de Viseu e o duque de Bragança e seus yrmãos, depoys de partidos d' Almeirim, se ajuntaram no Vimieiro onde todos teveram pratica sobre ysso, louvando muito os modos que tinham pois el-rey delles presumia que pera seu favor e ajuda quando lhes comprisse tinham os reys de Castella, pollo qual el-rey os estimaria e trataria como elles mereciam. E segundo ditos dalguns que a ysto foram presentes, alli tomaram todos por concrusam e determinaçam de nam consentirem a entrada dos corregedores em suas terras e que com todo o risco lhe resestissem. E sobre isto ho marquês de Montemor, o conde de Farão, e o senhor Dom Alvoro se viram e ajuntarão algũas vezes no Moesteiro de Santa Maria do Espinheyro em Evora. Em que com temor do odio d' el-rey que contra si maginavam consultavam a maneira que teveram pera contra elle se valerem. Em que claramente se soube que o voto e tençam do marquês cada vez era mais aceso com desamor e deslealdade contra el-rey, e que per todalas maneiras precurava desobediencia e rompimento. A que o conde de Faram e o  senhor Dom Alvoro com palavras de fee e muyta lealdade a el-rey sempre o contrariaram dizendo-lhe, que quando pera desobediencia ouvesse a rezam que nam avia, entregassem a el-rey todo o que delle tevessem, e se desnaturassem delle e de seus reynos como ja outros fizeram e que entam o desservissem. Porque desta maneyra nam cayriam no caso em que sem ysso fariam que nam era pera crer; e porém que a decraraçam sua com el-rey lhe parecia boa e necessaria, mas o modo e com que palavras se faria ficasse somente a juyzo e desposiçam do senhor Dom Alvoro, e que em outra maneira nam consenteriam nem se faria. E de tudo o que passavam avisavam logo o duque de Bragança que estava em Vila Viçosa.

El-rey como soube destas vistas e ajuntamentos lembrando-se da maneira em que tinha o principe seu filho, que nam consentia semelhantes cousas determinou como prudente, com brandura, dissimulaçam e siso apagar sua furia e encendimento. E pera isso deixou de mandar hos corregedores a suas terras (o que com pallavras doces e com respeitos do que a elles por sua honrra e contentamento se devia, ho noteficou logo ao senhor Dom Alvoro) que com mostrança de muito prazer e alegria por ver fora a principal causa de seu escandallo ho fez logo saber a todos. E por el-rey acrecentar mays nesta temperança, satisfez ho marquês e ho conde de Faram a suas vontades, em certos requerimentos que jaa de dias com elle traziam, o que deu entam causa a se esfriarem de seu aceso preposito e cessarem de seus negocios e recados.

E neste tempo veo ao duque de Bragança hum messageyro da raynha de Castella que se chamava Tristam de Villa Real homem aceyto a ella. E segundo testemunho dos que o viram, elle secretamente e de noyte tratava e negoceava com ho duque, depoys de dar boas noites sem ser visto dalgũa pessoa, salvo de Jerônimo Fernandez meirinho do duque que encubertamente em sua casa ho gasalhava; e de Villa Viçosa ho duque se passou aa Vidigueira e com ele encuberto o mesmo Tristam de Villa Real.

E sobre ha concordia e assento que tomaram fezeram hũa capitolaçam, que foy mostrado ao marquês que pola ver veo alli  de noite das Alcaçovas onde entam estava, e com elle Afonso Vaz seu secretario, que disse a dita capitolaçam ser em desserviço d' el-rey sobre duas cousas: ha primeira acordaram que os reys de Castella requeressem a el-rey, que por quanto a Excelente Senhora em nome, trajos, e serviço nam cumpria em sua religião ho que por bem do capitollado e seu habito era obriguada, que hos reis apertassem muito que se entregasse em poder do duque ou de cada hum de seus yrmãos, pera lhe fazerem cumprir o que fosse honesto e rezam poys que eram seus vassalos e aviam d' estar em seus reinos; e ha segunda que por quanto na capitolaçam das pazes fora defeso que os castelhanos sob graves penas nam fossem tratar aas partes de Guinee ho que hos reys de Castella nam podiam fazer por ser contra ho bem comum de seus reynos, nos quaes nam era negado seus tratos e proveytos aos portugueses pagando seus dereitos ordenados, antes com ysso hiam e vinham e tratavam livremente; que assi com imposiçam dalgum justo dereyto e tributo, dessem lugar aos seus naturaes que ho trato de Guinee lhe nam fosse defeso por el-rey. E o desleal fundamento disto era que com quanto estas cousas pareciam justas e honestas e que era rezam se fazerem, que polla calidade dellas el-rey as nam avia de conceder nem outorgar em nenhũa maneira, e que entam os reis de Castella terião com ysso rezam de romper com elle guerra, e que o duque e seus yrmãos com esta causa parecer justa se escusariam d' el-rey a o nam servirem, nem sosterem guerra pois nam queria seguir rezam, e aos reis de Castella serviriam e dariam entrada a suas gentes por suas terras. A qual capitolaçam foy metida em cera e dada ao dito Geronimo Fernandez que com ella na mão encima de hum muyto bom cavallo partio de noyte com o dito Tristam de Vila Real, sendo avisado pollo duque que se algũa gente o salteasse fizese todo o possivel por esconder e salvar a dita estruçam, e como chegase em salvo a Castella a entregasse como entregou ao dito Tristam de Villa Real.

De como Gaspar Jusarte e Pero Jusarte

descobriram a el-rey

o que do caso do duque de Bragança sabiam

Capitolo XL

Estando el-rey em Santarem na Coresma do anno de quatrocentos e oytenta e tres, Gaspar Jusarte homem fidalgo e muito bom cavaleyro sabendo que seu yrmão Pero Jusarte que vivia com ho duque de Bragança hia a Castella per seu mandado e do marquês seu yrmão contra a pessoa e estado d' el-rey, elle como bom e leal vassalo determinou de lho descobrir; e pera ysso per escriptos que em grande segredo se mandaram, e por consentimento d' el-rey se vio em hum casal com Antam de Faria seu camareiro, a quem logo descubrio a sustancia de hũa estruçam que sobre ysso vira. A qual o dito Pero Jusarte per conselho de seu yrmão depois mostrou e deu a el-rey estando em Avis em grande segredo, que foy posta no feyto que se processou contra ho duque como ao diante se diraa. E por este grande serviço que Gaspar Jusarte e Pero Jusarte fizeram a el-rey, lhe fez muita merce e acrecentamento, principalmente a Pero Jusarte que ho fez senhor da villa d' Arrayolos com todas suas rendas em sua vida e de hum seu filho; e em sua vida sempre os favoreceo, honrrou e acrecentou .

Da embaixada que os reis de Castella mandaram a el-rey

sobre o desfazimento das terçarias

Capitolo XLI

Daqui de Santarem na entrada deste ãno de oytenta e tres, foy el-rey ver a infanta Dona Joana sua irmã que estava no Moesteiro de Jesu d' Aveiro, e tornou logo a Santarem a ter a Pascoa com a rainha sua molher; e passada a festa veo recado a el-rey que o prior do Prado confessor dos reys de Castela que depois foy arcebispo de Granada pessoa de muito grande confiança e a elles mui aceita, vinha por embaixador sobre o desfazimento das terçarias e que era ja em Avis; de que el-rey foy muy alegre e com a raynha e toda a corte se partio logo pera a dita villa d' Avis, onde ouvio o dito embaixador. E logo aos quinze dias do mes de Mayo do dito ãno de oitenta e tres, tomou concrusam e assento jurando e afirmando no desfazimento das ditas terçarias per que o principe e a infanta ficaram delas livres, e assi desatados e soltos todos os seguradores e desnaturamentos, e assi todalas obrigações que por eles eram feytas. E o casamento ficou entam concertado de futuro com a infanta Dona Joana filha segunda dos ditos reis com as mesmas condições e obrigações que com a dita infanta Dona Isabel e o principe Dom Afonso era concertado, dando porém mais em dote aa dita infanta Dona Joana dez contos de reaes; e no dito contrato ficou logo decrarado e especeficado hum ponto sustancial sem entam aver esperança de se comprir: o qual era que se ao tempo que o principe comprisse ydade de quatorze annos a dita infanta Dona Isabel estevesse por casar, que neste caso ho casamento se cumprisse antre eles per palavras de presente como primeiro fora concertado.

E pera receberem o principe em Moura e o trazerem a sua corte fez el-rey seus precuradores, Dom Pedro de Noronha seu mordomo-mor e o doutor Joam Teixeyra chanceler-mor, e frey Antonio seu confessor. Os quaes todos e assi o dito prior do Prado embaixador partiram logo caminho de Moura; e el-rey e a raynha se foram logo caminho da cidade d' Evora, pera ahi receberem o principe, e pousaram nas casas do conde de Olivença que sam pegadas com o Moesteiro de Sam Joam, por serem de bons aares pera ho verão que ahi esperavam ter.

E antes d' el-rey partir d' Avis lhe trouxe Pero Jusarte em pessoa escondidamente a estruçam com que fora a Castella como atras se disse, e acerca do caso lhe descubrio muitas particularidades. Pollo qual el-rey logo determinou de prender o duque, e quando o nam podesse prender, de o cercar em qualquer lugar que estivesse. E pera isso ouve logo secretamente muyto dinheiro junto que trazia em sua guarda-roupa; e assi fez loguo has menutas das cartas e provisões que em tal caso avia de mandar pollo reyno, e aas villas e castelos do duque a seus alcaydes-mores, ho que tudo lhe aproveytou na noyte que prendeo o duque como adiante se dira.

Ho duque de Bragança ao tempo que o dito embaixador de Castella entrou em Portugal estava em Villa Viçosa; e porque se disse logo que el-rey pera despacho da embaixada se vinha a Estremoz, que era tam acerca donde elle estava, cre-se por honestidade por escusar sospeitas e outros inconvenientes de sua honra se partio soo pera Portel, onde hos precuradores d' el-rey que hiam a Moura o acharam dia de Penthecoste yndo ja pera Moura, hos quaes por modo de conselho praticou sobre o que acerca da vinda do principe devia de fazer pois vinha por suas terras: porque de hũa parte por obediencia e por sua dinidade, e por outras muytas causas lhe parecia bem yr-se pera ho principe e ho acompanhar e servir atee a corte, e em suas terras lhe fazer aquelle recebimento e serviço que era rezam e elle por ser seu senhor merecia; e da outra receava de o fazer por nam saber quanto el-rey disso seria servido e contente pois lhe nam escrevia. E depois de muitas praticas que sobre este caso passaram, os ditos precuradores saãmente e sem cautella o aconselharam que pera elle soldar quebras e achaques que no povo se dezião aver antre el-rey e ele, e tambem porque assi era rezam elle se devia yr pera ho principe e servi-lo e festejá-lo em suas terras e yr com elle atee a corte; e que na ora que el-rey visse o principe seria tam allegre e contente, que lhe esqueceriam quaesquer sospeitas ou maas vontades que antre elles ouvesse. Do que ho duque mostrou ser satisfeito e muy alegre, e na deligencia que logo pôs pera se aperceber, e no desejo que amostrou pera em tudo servir el-rey e ho principe, mays parecia entam aver nele amor e lealdade que o contrairo. E depois dos procuradores serem do duque despedidos yndo pollo caminho, ouve antre elles duvida se fora bem ou mal conhecendo a condiçam e descriçam d' el-rey aconselharem o duque daquella maneyra. E pera com tempo se atalhar quando el-rey o nam ouvesse por seu serviço, loguo do mesmo caminho lho fizeram saber polas paradas de cavallo que d' Evora a Moura eram postas. E el-rey lhe respondeo logo mostrando que folgava muyto e louvando com doces e fingidas palavras ha determinaçam e conselho do duque, e dando algũas escusas que pareciam honestas, porque pera ysso o nam convidara nem lho escrevera, por ser certificado que o duque ao tal tempo nam estava tam bem desposto de sua saude que ho podesse nisso servir. A qual reposta d' el-rey foy logo mostrada ao duque en Moura onde jaa estava, porque aforrado foy logo noteficar aa infanta Dona Breatiz sua yda com o principe aa corte, que lhe pareceo muy bem, vendo ha carta d' el-rey com tam segura dissimulaçam com que ha infanta e ho duque mostraram ser muy alegres; e do alvoroço e despejo do duque que entam mostrava, parecia aver nelle muyto amor e lealdade pera el-rey. Esta carta que o duque vio, que parecia à boa fee e nam dobrada como vinha ho descarregou e segurou tanto, que nam quis despois crer hos muitos avisos que no caminho lhe foram dados pera que nam entrasse em Evora.

De como se desfizeram as terçarias e a entregua do principe

e da infanta

Capitulo XLII

Os procuradores d' el-rey e o embaixador de Castela chegaram aa villa de Moura aos vinte quatro dias de Mayo de quatrocentos e oytenta e tres. E dentro no castello perante o principe Dom Afonso, e as senhoras infantas Dona Isabel e Dona Breatiz, o dito embaixador fez hũa fala com muita autoridade, dizendo que aquelle desfazimento das terçarias se fazia porque hos penhores da paz que foram aquelles senhores principe e infanta, nam eram jaa necessarios antre os reis de Castella e de Portugal, polla grande certidam e verdadeira segurança que de sua paz e amizade tinham, com muytas rezões e comparações de grande prudencia e muito ao proposito. E acabadas a senhora ynfanta Dona Breatiz entregou logo o principe aos ditos precuradores d' el-rey, e ha senhora infanta Dona Isabel ao embayxador d' el-rey e da raynha seus padres; e ysto com muitas lagrimas d' amor pola grande saudade que da infanta Dona Isabel avia.

Com os quaes loguo sayram da fortaleza, e ha senhora infanta Dona Breatiz com quanto tinha ja feito entrega do principe, veo com elle atee Evora e ho entreguou outra vez a el-rey seu pay. E ho duque de Viseu que tambem era hi, foy com a infanta Dona Isabel atee ho estremo onde a entreguou aos senhores de Castella que ahi esperavam por ella; e despedido da senhora infanta, tornou logo com muyta pressa pera ho principe que alcançou no caminho e entrou com elle em Evora.

Da entrada do principe na cidade d' Evora

Capitulo XLIII

O principe veo de Moura dormir ao luguar da Vera Cruz, onde chegou a ele muita e muy nobre gente da corte; e ho outro dia nam passou de Portel por o recebimento, festas e banquetes que lhe o duque de Bragança ahi fez em muita perfeiçam, que o duque era muy largo e abastado em suas cousas e trazia muy honrrada casa. E ao outro dia foy ho principe dormir aa Torre dos Coelheiros, e aa terça-feira bespora da bespora do dia do Corpo de Deos foy dormir a Evora e com elle ambos os duques e muitos senhores com muita nobre gente; sayo el-rey a receber o principe com muita e honrrada gente, e os vassallos da cidade e comarca vinham ao recebimento todos armados, porque el-rey hia em duvida se prenderia logo o duque tanto que o visse ou se o deixaria pera depois, e polo grande repouso e muita segurança que nele vio o nam quis então fazer. Recebeo o principe com muito grande prazer e alegria e tanto contentamento que mais nam podia ser; e aa infanta e os duques fez tanta honrra, tanto gasalhado, como ao principe seu filho, abraçando os duques com tanto amor e mostranças de folgar com elles, que parecia que em seu coraçam nam jazia o contrairo; e com quanto hia prestes pera prender ho duque se lhe bem parecesse, quis que nam fosse então e ficasse pera depoys por ser com menos alvoroços como se fez. E ao outro dia bespora de Corpo de Deos, e assi no dia pola acostumada solenidade da festa, como pola vinda do principe cousa tam desejada d' el-rey e da raynha, ouve na cidade muytas festas e touros, e nos paços grandes serãos de danças e bailos, a que ho duque era presente sem nunca poder conhecer d' el-rey o contrairo do que lhe mostrava. O que foy causa de nam crer muitos avisos que nestes dias lhe vieram em especial do marquês seu yrmão que lhe aconselhava que se saysse e salvasse. Mas o duque confiando na segurança que via em el-rey o nam quis fazer, e tambem porque sabia que has cousas em que o podiam culpar, eram papees que elle a muy bom recado e segredo tinha em seu cofre sem presumir que podiam ser vistas como eram; parecia-lhe que todo ho mais seriam presunções de que ele muy levemente se poderia absolver e por yso nam deu credito algum ao marquês pera fazer mudança de si e porém determinava de se hir ao outro dia.

De como foy ha prisam do duque de Bragança

Capitolo XLIV

E logo aho outro dia sesta-feira vinte e nove dias do mes de Mayo do dito ãno de mil e quatrocentos e oitenta e tres, o duque por sua vontade sem ser chamado d' el-rey, se foy aa tarde ao paço com tenção de se despedir delle e se hir embora pera suas terras, e achou el-rey em despacho de petições com os desembargadores do paço. E em o duque chegando com a honrra acostumada lhe mandou dar hũa cadeira e fez assentar junto consigo, e perante elle esteve despachando algũas cousas; e acabado fez de todo despejar a casa em que estava que era hum sotão e ficou soo com o duque, que logo falou a el-rey algũas cousas que trazia pera lhe dizer, antre as quaes lhe tocou nas sospeitas que delle contra seu serviço lhe faziam ter, pedindo-lhe muito por merce que as nam cresse e ouvesse por certo o que ja em Almeirim sobre tal caso lhe dissera, que era morrer por sua honrra e estado e serviço quando comprisse; e que pois ysto assi era que às pessoas que tamanhos erros contra elle assacavam falsamente devia dar o castigo que por tal caso mereciam; e que por nam parecer a sua alteza que elle por receo dalgũas suas culpas se acautelava, lhe pedia por merce que se quisesse bem enformar da verdade, e do que achasse fizesse o que fosse rezam e justiça.

El-rey lhe respondeo logo ao que primeiro lhe falou, a cada cousa per si, e antes de responder a esta lhe disse que por quanto era tarde e a casa estava ja escura, que se sobisem acima a hũa sua guarda-roupa. E depois de sobidos estando el-rey em pee lhe disse que quanto aas cousas que apontara que lhe delle deziam, e pedia que se enformasse da verdade, que seu requerimento era tal e tão justo que se devia de conceder, e que elle assi determinava de o fazer, e que pera ysso por se escusarem alguns ynconvinientes, e se fazer com mayor seguridade, era necessario que elle duque estevesse alli retraydo, e que fosse certo e seguro, que sua honrra com sua defesa e justiça lhe seria ynteiramente guardada. E como el-rey ysto disse deixou o duque na guarda-roupa em poder d' Aires da Silva camareiro-moor e d' Antam de Faria camareiro, os quaes com muito acatamento guardando-lhe muy inteiramente sua honrra o guardaram como entam cumpria. E vendo Ayres da Silva o duque muito triste e agastado o quis confortar dizendo-lhe, que nam tomasse sua senhoria paixam nem se agastasse que prazeria a Nosso Senhor que seria por mays sua honrra e acrecentamento de seu estado; e o duque lhe respondeo: “Senhor Ayres da Silva, o homem tal como eu nam se prende pera soltar”.

El-rey se sobio a outra camara onde logo mandou vir alguns fidalgos e cavaleiros a que encomendou a guarda e serviço do duque; e assi mandou chamar os senhores e pessoas principais d' autoridade que na cidade estavam pera conselho que logo sobre o caso teve; os quaes vieram logo com tam grande pressa e espanto como ha novidade do caso o requeria.

E como a nova foy polla cidade sabida, porque tocava en deslealdade contra el-rey, foy tam estranha e contrayra nos ouvidos e corações de todos, que toda a gente da cidade acudio na mesma ora a el-rey, nam soomente os que pera seu serviço eram necessarios, mas ainda os velhos e moços; e eram tantos que nam cabiam nos terreiros e ruas, todos pollo grande amor que lhe tinham com grande yra bradando por crua vingança sem nenhũa piadade lhe lembrar, somente o estado e vida d' el-rey como a propria de cada hum; e faziam tamanha oniam, ruydo, e estrondo, que era cousa de grande terror e espanto e mais por ser de noite.

E estando ja muitos do conselho e assi alguns letrados com el-rey, elle com muita temperança como muy justo e virtuoso rey, mostrou a todos por causa e fundamento da prisam do duque as cartas e estruções de que atras faz mençam, e com todos tomou o assento de todo o que pera tal caso e necessidade cumpria. Primeiramente que se segurasse bem a pessoa do duque e que seus castellos, villas, e fortalezas se cobrassem logo; e assi se notificasse logo ho caso aos reys de Castella e nam como a sabedores da causa delle, e assi ao prior do Prado embaixador, por se atalharem e empedirem requerimentos e alvoroços daquelles reynos pera estes.

E mandou logo el-rey a todalas fortalezas que o duque tinha em todo ho reyno que eram muytas e muy boas, fidalgos principaes e cavalleyros de sua casa, delles que na corte estavam e outros que eram ausentes, pera com suas cartas e provisões, e com outras do duque que tambem  levavam as averem ou combaterem logo nam se querendo entregar, repartindo logo apontadamente as comarcas, villas, e fortallezas a que cada hum com melhor desposiçam avia de hir. Os quaes todos como bons e leaes servidores oulhando ho tempo e ymportancia do caso, com grande amor e deligencia compriram em tudo hos mandados d' el-rey. Porque como chegarão logo sem alvoroço, perigo, nem contradiçam, as ouveram todas aa mão, em que poseram  alcaydes e pessoas que sobre suas menajens as tevessem sempre fielmente a serviço d' el-rey. Cousa certo de muyto louvor e espanto, entregarem-se assi levemente e tam sem duvida vinte e cinco villas e fortalezas do duque só por mandado d' el-rey sem vista de sua pessoa nem resistencia algũa dos alcaydes, que he muito de louvar sua muyta obediencia e grande lealdade a el-rey, e que parece cousa de misterio de Deos.

Ho marquês de Montemor estava nas Alcaçovas, e ho conde de Faram n' Odemira, e pollo aviso que loguo ouveram da prisam do duque sem mays esperar na mesma hora e ponto que ho souberam fogiram e se poseram em salvo e acolheram a Castella. E ho marquês veo por Portel e se quisera lançar  na fortalleza de que era alcayde do duque Nuno Pereyra, que por ser jaa do caso avisado o não quis ahi recolher; e ho marquês se foy logo a Terra de Campos em Castella, e depois recolheo a marquesa sua molher em Sevilha.

E o conde de Faram se passou a Andaluzia onde dahi a pouco tempo com mayor tristeza e sentimento do que nestes casos tinha de culpa, se finou e acabou sua vida. Do que a el-rey nam aprouve antes lhe pesou muyto, porque se o conde se tornara pera ho reyno como loguo lho mandou dizer, teve tençam de se aver com elle nobre e virtuosamente porque el-rey tinha sabido o conde não ser culpado.

E com o senhor Dom Alvoro yrmão do duque assentou el-rey que por entam se fosse fora de Portugal e nam ficasse em Castella nem estevesse em Roma ysto atee sua merce, e que em todolos outros reynos e terras podesse estar, e aver lá todalas rendas que neste reyno tinha atee el-rey aver por bem de o mandar vir; e elle se foy com tençam de o comprir e preposito de yr a Jerusalem o que nam cumprio, porque chegando à corte de Castela foy d' el-rey e da raynha tam favorecido que nam passou adiante e ficou em seus reynos e corte a que recolheo ha senhora Dona Felipa sua molher e filhos. E lhe foy dado por el-rey e a raynha a governança da justiça em sua corte, e com elles teve grande credito e autoridade por ser pessoa de grande siso, saber e conselho. E lá em Castela faleceo depois de ser a estes reynos de Portugal tornado e restituydo a todo o seu per el-rey Dom Manoel que sancta gloria aja. E porém quando se assi foy do reyno ficou cá en Portugal hũa sua filha a que el-rey fazia muyto honrrada criaçam em casa da raynha sua molher e a trazia com muita honrra e abastança, ha qual ora he duquesa de Coimbra e molher do mestre de Santiago e d' Avis filho natural d' el-rey. E ficaram do senhor Dom Alvoro dous filhos e quatro filhas, s.: ho mayor que he marquês de Ferreira e conde de Tentuguel erdeyro de sua casa e de muyta renda, pessoa muy principal e de muita estima e gram valia; e Dom Jorge de Portugal que vive em Castella com muyta renda e conde e alcayde-mor do alcacer de Sevilha; e ha dita duquesa de Coymbra; e outra casada em Castella com ho conde de Benalcacer; e duas outras casadas nestes reinos hũa com o conde do Vimioso e outra com o conde de Portalegre. Todas pessoas muy principaes e de muito grandes virtudes.

E assi os filhos do conde de Faram tambem foram tornados a estes reynos por el-rey Dom Manoel e dado ao mayor suas rendas com o titolo de conde d' Odemira; e en Castella ficou hum que ora he arcebispo de Çaragoça e viso-rey em Aragam homem de grande valia; e assi  casaram lá duas filhas  suas, hũa com o infante Fortuna neto d' el-rey d' Aragam, e a outra com ho duque de Medina Celi; e outro filho mais moço que ora he mordomo-mor da raynha nossa senhora.

A senhora duquesa Dona Isabel molher do duque de Bragança ao tempo da prisam do duque estava en Villa Viçosa, e tanto que do caso foy avisada, mandou logo tres filhos seus a Castella e com elles fidalgos de sua casa, s.: Dom Felipe o mayor que sendo moço lá faleceo; e Dom Gemes o segundo que ora he duque de Bragança e de Guimarães e o moor senhor d' Espanha de sangue, terras, e vassallos e pessoa singular, que tomou a cidade d' Azamor aos mouros depois de tornado a estes reynos por el-rey Dom Manoel seu tio que sancta gloria aja; e Dom Denis o terceiro que em Castella casou com hũa filha do conde de Lemos herdeira da casa. E com ha senhora duquesa ficou hũa filha menina que avia nome Dona Margarida que nestes reynos dahi a poucos annos faleceo. E ha raynha de Castella como muy nobre e virtuosa princesa recolheo hos filhos do duque  que eram seus sobrinhos a sua casa e os tratou e honrrou sempre como era rezam que fosse e fizesse a sobrinhos tam chegados a ella que eram filhos de sua prima com yrmaã e netos do infante Dom Fernando e da infanta Dona Breatiz que era yrmaã da raynha de Castella sua mãy. E do marquês de Montemor nam ficou filho algum.

Ho duque não sahio mais da guarda-roupa em que ho el-rey deyxou, onde estava sem ferros nem outra algũa prisam em seu corpo, porém era de bons fidalgos e cavalleiros bem guardado, e em tudo muy acatado e servido como a seu estado cumpria sendo em sua liberdade. Assi no serviço da mesa com suas salvas devidas e costumadas, como nos officios divinos e pratica e visitações de seu confessor, e tambem nos avisos de seus precuradores, que nunca lhe foram defesos quando ho elle desejava e algũa necessidade ho requeria. E sendo el-rey aconselhado dalgũas pessoas, que per dereyto podia mandar fazer justiça do duque pois do crime era certificado, elle o nam quis fazer. Antes no primeiro conselho que sobre este caso teve, ho viram chorar muytas lagrimas e dizer pallavras de compayxam e sentimento, mostrando que desejara muyto achar ao duque boa desculpa como homem mais cheo de piedade que de yra nem rigor, acusando a Deos seus pecados propios, reportando estas cousas a elles como virtuoso e catholico principe que era; e tomou por concrusam que o caso se visse e determinasse por justiça.

Do que alguns senhores cometerão a el-rey sobre ho caso do duque

Capitolo XLV

Alguns grandes e senhores do reyno que na corte eram presentes, praticando antre si sobre este caso, doendo-se da destruyção e queda do duque e por escusarem sua morte, todos juntos pediram por merce a el-rey que lhe quisesse dar a vida, e que por segurança do que a seu serviço cumpria, e ho duque dahi em diante sempre bem e lealmente ho servisse, ouvesse sua alteza a seu poder todas suas fortalezas, e mais as suas delles mesmos, as quaes em vida do duque fossem sempre em seu poder e el-rey has desse de sua mão. E porque ao tempo que ysto lhe cometeram nam tinha ainda recado algum da entrega das fortalezas do duque que  eram na comarca d' Antre Doiro e Minho e de Tra-los-Montes, em que tinha muyta duvida e receo, mostrou que lhe parecia bem o partido e que avia prazer de lho cometerem e de entender nelle; ysto com fundamento que se algũas das ditas fortalezas revelassem a sua obediencia ou sobesse que em Castela se fazia sobre este caso algũa revolta, aceitar ho dito partido e com elle feyto mandar soltar o duque mostrando que aquella fora sempre sua vontade. Mas como foy certo da entrega de todalas fortalezas e assi de em Castella se nam fazer cousa algũa e estar tudo assossegado, escusou-se do dito partido e requerimento, e como seguro e descansado dos receos que tinha, mandou logo que o caso do duque se visse e determinasse per justiça.

De como el-rey perdoou ao duque de Viseu a culpa que neste caso

tinha, e da morte do duque de Bragança

Capitulo XLVI

E logo ao outro dia depois da prisão do duque, el-rey mandou chamar o duque de Viseu aa casa da raynha sua yrmaã e perante ella lhe fez hũa fala na qual o reprendeo muyto dizendo-lhe que elle fora sabedor de todas as cousas passadas que o duque de Bragança e o marquês seu yrmão contra elle quiseram cometer; e que se com rigor e justiça o quisera castigar, cousas tinha sabidas delle por onde com direito o podera fazer. Porém por ser filho do yfante Dom Fernando seu tio e por sua pouca ydade e polo amor que sempre lhe tevera e tinha e principalmente por ha raynha sua yrmaã que ele sobre todas tanto estimava e amava, lhe perdoava tudo livremente, e dava por esquecidos quaesquer erros ou culpas que neste caso tivesse, dando-lhe sobre tudo tam vertuosos e verdadeyros conselhos e ensinos, que ho infante seu pay se fora vivo lhos nam podera dar milhores; e o duque por nam ter escusas nem repricas sem falar palavra algũa lhe beijou a mão por tamanha merce. E a raynha que ysto muyto estimou com palavras de grande amor e muita prudencia o teve muito em merce a el-rey.

E pera o caso do duque de Bragança mandou el-rey vir a Evora todollos leterados da Casa da Supricaçam que entam estava em Torres Novas, e foy logo dado por juyz o licençeado Ruy da Grã muito bom homem, e de muyto  boa conciencia e bom letrado, e por procurador d' el-rey o doutor Joam d' Elvas, e por precurador do duque ho douctor Dioguo Pinheiro que depois foy bispo do Funchal homem fidalgo e de muito boas letras e bom saber, e da criaçam do duque, e com elle Afonso de Bairros que era avido por hum dos milhores procuradores do reyno. Aos quaes el-rey mandou e encomendou que com muito cuidado e estudo precurassem e defendessem a causa do duque, e que por ysso lhes faria muyta merce.

Foy feyto e dado libello contra ho duque que logo procedeo com vinte e dous artigos fundados naquellas cousas em que parecia elle ser culpado; hos quaes polo juiz lhe foram logo levados onde estava e todos lidos, de que o duque mostrou logo algũa torvaçam, porque na substancia delles conheceo claramente que muitas cousas suas eram descubertas que elle avia por muito secretas e escondidas. E depoys de estar hum pouco cuidoso ante de nada responder, encomendou a Ruy de Pina que era presente que fosse dizer al rey seu senhor, que aquelas cousas e en tal tempo nam tinham reprica mais propia de servo pera senhor nem que mais conviesse a sua grandeza, vertudes e piadade que a que o profeta Davi disse a Deos no psalmo: “Et non  intres in juditium cum servo tuo Domine, quia non justificabitur in conspecto tuo omnis vivens”. E que quando ysto que a elle por todos respeitos mais convinha nam quisesse fazer, que entam por sua dinidade e por ser assi dereito lhe quisesse dar juyzes conformes a elle e que seu feito mandasse determinar a principes e duques pois o ele era; e el-rey ouve tudo isto por escusado e mandou que todavia respondesse e se livrasse por dereyto. E alem das cartas, estruções, e escripturas que logo pera prova do libelo foram no feito oferecidas, se preguntaram pellos artigos delle, estas pessoas por testemunhas, convem a saber: Lopo da Gama, Afonso Vaz secretario do marquês, Pero Jusarte, Lopo de Figueiredo, Diogo Lourenço de Montemor, Jeronimo Fernandez, Fernam de Lemos, e Joam Velho de Viana de Caminha, todos da criaçam do duque e de seus yrmãos, cujos testimunhos pareceo que fazia prova ao libello, nem avia a elles contraditas nem lhas receberam.

Foy ho processo contra ho duque acabado em vinte e dous dias, e nenhũa deligencia que pera ele cumprisse foy necessaira fazer-se fora da corte. E pera final determinaçam delle foram per mandado d' el-rey juntos pera juyzes alguns fidalgos e cavaleiros do reino homens sen sospeita que com os letrados foram por todos vinte e hum juyzes. E tanto que o feyto foy concruso, os juyzes foram todos juntos em hũa sala dentro do apousentamento d' el-rey armada de panos da ystoria, equidade e justiça do emperador Trajano. Onde se pôs hũa grande mesa aparelhada como cumpria pera o auto,  em que da hũa parte e da outra os juyzes estavam todos assentados, e no tope della el-rey, e junto com elle ho duque assentado em hũa cadeyra, a quem el-rey em chegando a elle e em se despedindo guardou inteiramente sua cortesia e cerimonia. Ho qual veo ali duas vezes, em que vio ler o feito e pellos precuradores da hũa parte e da outra desputar em grande perfeiçam os merecimentos do processo. E a  terceyra em que pubricamente se aviam de repreguntar as testemunhas em pessoa do duque, el-rey o mandou pera ysso chamar, e elle se escusou e nam quis vir, dizendo a Ruy de Pina que o foy chamar estas palavras: “Dizey a el-rey meu senhor que eu me confessey e comunguey oje, e que agora estou com o padre Paulo meu confessor falando em cousas de minha alma e do outro mundo, e que estas pera que me.chama sam do corpo e deste mundo e de seu reyno de que elle he juyz; que as julgue e  determine como quiser, porque a yda de minha pessoa nam he necessaria”, e nam foy. E com esta reposta mandou el-rey logo despejar a sala pera sobre a final sentença tomar hos votos dos juyzes. Aos quaes ante de votarem fez el-rey hũa fala em que lhe encomendou ho que devia como virtuoso e justo rey, e isto com muitas lagrimas que todos aquella noite lhe viram correr; porque cada voto que cada juyz concrudia na morte do duque el-rey chorava com grandes soluços e muita tristeza. E no votar se deteveram dous dias menhã e tarde, com a noute derradeira muyto tarde em que finalmente acordaram todos com el-rey que na sentença pôs ho seu passe, que vistos hos merecimentos do processo, conformando-se no caso com as leys do reyno e imperiaes, e com a pura e muy antigua lealdade que aos reys destes reynos de Portugal se devia sobre todos, acordaram que ho duque morresse morte natural, e fosse na praça d' Evora pubricamente degolado, e perdesse todos seus bens, assi hos patrimoniaes como hos da coroa pera o fisco e real coroa d' el-rey. E acabada d' assentar e assinar a sentença, tomou el-rey logo com todos assento sobre o que na execuçam della se avia de fazer.

E aos vinte dias do mes de Junho do anno de mil e quatrocentos e oytenta e tres de noyte ante manhaã tiraram ho duque dos paços encima de hũa mula, e Ruy Tellez nas ancas apegado nelle e muyta e honrrada gente a pee que o acompanhava com grande seguridade. E ho duque em sayndo cuidou que ho levavam a algũa fortaleza; e quando vio todos a pee, ficou muyto enleado e muy triste. Foy assi levado a hũas casas da praça, que parece cousa de notar, porque o dono della se chamava Gonçalo Vaz dos Baraços, e em Evora nam se vendiam senam em sua casa. Onde ho duque conheceo ha verdade que logo claramente lhe foy descuberta por o padre Paulo seu confessor que o ja estava esperando, e lhe deu com muitos confortos e esforços a muy triste e desconsolada nova, a qual o duque recebeo com palavras de muyta paciencia e muy em si como homem muy esforçado.

E logo ahi fez hũa cedula de testamento que elle notava e hum Christovam de Bayrros escrivam escrevia, na qual assinou com ho padre Paulo seu confessor. Em que por descarreguo de sua alma declarou algũas cousas, principalmente pedio aa duquesa sua molher por merce, e assi a seus yrmãos, e encomendando a seus filhos por sua benção e encomendou a seus criados que todos por o caso de sua morte nam tevessem odio nem escandalo contra algũa pessoa que lha causasse, nem muyto menos contra el-rey seu senhor porque em tudo o que fazia era verdadeiro menistro de Deos e muy inteiro executor de sua justiça, porém nam decrarando se era ou leixava de ser culpado no caso por que morria, falando muytas cousas e fazendo em tal tempo algũas perguntas como de homem muy acordado e de grande esforço, e sobre tudo catolico e bom christam. E mandou pedir perdam a el-rey com pallavras de muyta umildade e de acusaçam de si mesmo, e pedio que antes de padecer lhe trouxessem o recado como lhe fora em seu nome pedido e assi se fez.

E tanto que o duque entrou nas ditas casas, foram logo juntos muytos carpinteiros e oficiais, e com muyta brevidade fezeram hum grande e alto cadafalso casi no meo da praça, e hum corredor que de hũa janella das casas hia a elle, e no meo do cadafalso outro pequeno pouco mor que hũa mesa, mais alto com degraos tudo de madeira cuberto de alto a baixo de panos negros de doo, e feito como avia poucos dias que a el-rey perante o duque disseram que se fizera em Paris outro tal com tal cerimonia  a hum duque que el-rey Luys de França mandou degolar. E no fazer do cadafalso e corredor que era grande e no que mais era necessario se deteveram tanto que eram ja mais de dez oras do dia, no qual tempo o duque cansado e desvelado da noyte polla grande agonia em que estava pedio de beber, e sobre figos lampãos bebeo hũa vez de vinho. E em hũa cadeira d' espaldas em que estava assentado se afirma que se encostou e dormio hum pouco. E acordado tornou a estar com seu confessor, e disse que fizessem o que quisessem que ele nam tinha mais que fazer. Vestiram-lhe hũa grande loba, capello e carapuça de doo. E ataran-lhe diante ao cinto com hũa fita preta os dedos polegares das mãos. E em lhos atando lhe disseram que ouvesse paciencia e nam se escandalizasse porque assi era mandado por el-rey. E elle respondeo: “Sofre-lo-ey e mais hum baraço no pescoço se sua alteza o mandar”. Sahio assi ao corredor por onde avia d' ir ao cadafalso, e diante delle confessores e religiosos com hũa cruz diante encomendando com devotas orações sua alma a Deos. E quando vio o cadafalso e da maneira que tudo estava ordenado, lembrou-lhe o que vira contar a el-rey sobre o duque que em Paris degolaram e disse: “Aa como em França”.

E nesta morte do duque o fez o conde de Marialva muyto honrradamente, que sendo meirinho-mor e mandando-lhe el-rey que fosse estar com ho duque, lhe pedio muyto por merce que tal lhe nam mandasse; porque antes perderia quanto tinha que o fazer porque era grande amiguo do duque; e el-rey lhe conheceo de sua rezam e o escusou e mandou servir de meirinho-mor a Francisco da Silveira que ora he cõdel-mor. O qual com muyta gente d' armas, e elle ricamente armado foy lá com vara de justiça na mão e o duque quando o vio assi pesando-lhe disse: “Bem galante está Francisco da Silveira”. Foy com muyta segurança atee o cadafalso que era defronte da capella de Nossa Senhora, e em chegando se pôs em joelhos e com os olhos na imagem se encomendou com muita devaçam a ella, e os religiosos dizendo-lhe palavras pera tal ora de muito esforço e grande confiança em Deos. Mas ele foy sempre tam esforçado, tam inteiro na fee, e tanto em seu inteiro acordo, que pareceo que pera sua salvaçam has nam avia mester. E porque a gente principal do reino acudio toda a el-rey era a praça tam chea de gente d' armas, que nam cabia nem pollas ruas, e a cidade toda em grande revolta, ho confortaram muyto que de vista e rumor tam espantoso não tomasse torvação nem escandalo; e elle respondeo: “Eu nam me torvo nem escandalizo do que me dizeis, porque se ho posso ou devo dizer Jesu Christo Nosso Senhor nam morreo morte tam honrrada”. E falando com o confessor perguntando-lhe se se lançaria, se sobio ao outro cadafalso mais alto donde todos o viam, e assentado nelle com os olhos em Nossa Senhora encomendando-lhe sua alma, chegou a elle por detras hum homem grande todo cuberto de doo que lhe nam viram o rosto, ho qual se affirma nam ser algoz e ser homem honrrado que estava pera o justiçarem, e por fazer esta justiça em tal pessoa foy perdoado; e com hũa toalha d' olanda que trazia na mão lhe cubrio hos olhos, e com muita honestidade o lançou de costas pedindo-lhe primeiro perdam; e acabado hum espantoso pregam que hum rey d' armas dezia e dous pregoeyros em alta voz davam, ho homem com hum grande e agudo cutello que tirou debayxo da loba perante todos lhe cortou a cabeça. E acabado de ho assi degolar se tornou aa casa donde o duque sayra por o mesmo corredor sem ninguem saber quem era. E o pregam dezia assi: “Justiça que manda fazer nosso senhor el-rey, manda degolar Dom Fernando duque que foy de Bragança por cometer e trautar trayçam e perdiçam de seus reinos e sua pessoa real”. E el-rey  tinha mandado que tanto que o duque fosse morto tocassem ho sino de Sancto Antam; e estando el-rey com poucos ouvio tocar ho sino, e em no ouvindo levantou-se da cadeira e pos-se em joelhos e disse: “Rezemos polla alma do duque que agora acabou de padecer”, e ysto com hos olhos cheos de lagrimas; e assi em joelhos esteve hum espaço rezando por elle e chorando.

E certo ho duque recebeo a morte com tanta paciencia, tanto arrependimento e contriçam de seus peccados, tanto esforço, e em tudo tam achegado a Deos que muytos se maravilharam de tam sanctamente morrer, porque em sua vida nam era avido por tam devoto como na morte mostrou, antes por homem muito metido nas pompas e cousas deste mundo mais que nas do outro. Esteve assi o corpo do duque pubricamente no cadafalso aa vista de todos por espaço de hũa ora, e dali sem dobrarem sinos nem aver choro, ho cabido da See com a clerezia da cidade com suas cruzes e muitas tochas acesas o levaram honrradamente ao Moesteiro de Sam Domingos, onde foy soterrado na capella mayor. E na corte nam tomou pessoa algũa doo por elle, salvo el-rey que esteve tres dias encerrado vestido de panos pretos com capuzes cerrados e barrete redondo.

De como o senhor Dom Manoel yrmão da raynha que era em Castella

pollo das terçarias se tornou aa corte

Capitolo XLVII

E porque na capitolaçam das terçarias foy concertado que em quanto durassem, o senhor Dom Manoel yrmão da raynha, que aynda era moço andasse em Castella, el-rey para comprimento disso, ho ãno passado lhe ordenou e deu casa honrrada com todos seus oficiaes dos seus propios moradores. E lhe deu por ayo Diogo da Silva de Meneses que depois foy conde de Portalegre, homem de nobre sangue, de muito bom siso, e saber, e bom conselho. E entam lhe deu el-rey por devisa a espera; cousa certo de misterio e profecia por que lhe deu a esperança de sua real socessam como ao diante se seguio, avendo entam muytas pesoas vivas que ante dele eram herdeyros; hos quaes todos depois faleceram para ele vir herdar. E sendo ja ho senhor Dom Manuel em Freyxinal vila do estremo de Castella, porque has terçarias se desfezeram, sua hida nam foy mais necessaria e se tornou aa corte. E el-rey com toda ha casa que lhe tinha dada ho recolheo e criou depois em sua cama, e mesa, e nos conselhos, e boas doutrinas com mostranças e obras de verdadeyro amor de filho. E para ter com que sostevesse seu estado em sua mocidade tinha ja el-rey ordenado de lhe dar o mestrado d' Avis com grande e honrrado assentamento de sua Fazenda; mas logo se seguiram cousas por onde ha provisam disso cessou como ao diante se dira.

Partida d' el-rey d' Evora para Abrantes,

e do recado do Santo Padre que lhe ahy veo

Capitolo XLVIII

No mes de Julho deste ãno de oytenta e tres, el-rey com a raynha e ho principe e sua corte se foy aa villa d' Abrantes, onde veo a ele hum nuncio com hum breve do Papa Sisto quarto, por que por cousas e causas nelle apontadas, em que parecia el-rey meter mão indevidamente nas cousas da Ygreja, o emprazou que por si ou seu procurador parecesse em corte de Roma pera dar dellas rezam. De que el-rey  mostrou receber payxam e sentimento, porque ainda lhe pareciam pendenças da desaventura passada pera no temporal e esperitual lhe darem fadiga.

E porque el-rey era muito livre da culpa de todas aquellas cousas, porque as mais dellas passaram em tempo que elle ainda nam reinava, determinou desculpar-se logo do Papa e do sagrado collegio dos cardeaes, e assi lhe respondeo pollo mesmo nuncio que se chamava Joanes de Merle, e ordenou logo de mandar sua embayxada honrrada, e por embaixadores Fernam da Silveira condel-moor e o doutor Joam d' Elvas. Os quaes sendo ja despachados pera partirem, foy disso avisado o cardeal Dom Jorge arcebispo de Lisboa que era em Roma; e por ser certificado que muyta da embaixada hia fundada em reprensões e ingratidões suas, de quem presumiam que as ditas enformações contra el-rey naceriam, elle mesmo cardeal por se em Roma nam abater seu credito e autoridade que era grande, ouve do Sancto Padre que el-rey fosse escuso do emprazamento. Por onde a embayxada nam foy, o que o cardeal fez mais pollo que a elle compria que nam pello d' el-rey, a que sempre teve maa vontade ja em vida d' el-rey Dom Afonso seu pay como atras fica dito.

Da justiça que em Abrantes el-rey mandou fazer

na estatua do marquês de Montemor

Capitulo XLIX

Estando el-rey em Abrantes por ser certificado que o marquês de Montemor, estando en Castela nam deyxava de seguir sua maa vontade contra elle, com os do seu conselho e leterados, ordenou e quis em sua ausencia mandar fazer justiça e justiçar sua estatua nesta maneira. Na praça da dita villa se fez hum cadafalso de madeira, grande e alto e todo cuberto de panos de doo, e nelle assentos para corregedores, desembargadores, e juyzes, e ahi em pee meirinhos, alcaydes, e officiaes da Justiça. E pubricamente foy alli trazida hũa estatua do marquês natural como viva que se parecia com ele, e vinha armado de todas armas, e emcima dellas sua cota d' armas, e na mão dereyta hũa espada alta, e na esquerda hũa bandeyra quoadrada de suas armas; e alli pollos juizes lhe foram lidas em alta voz suas culpas, e logo per todolos juizes e desembargadores sentenceado que morresse per justiça morte natural e  pubricamente fosse degolado. E acabada de ler a sentença veo hum rey d' armas e em voz alta dizia: “Por quanto vós, condestabre, por vosso tam grande oficio ereis obrigado a ter muyta lealdade a vosso rey, e a servi-lo e ajudar a defender seus reynos, e vós nam no fizestes, antes trabalhastes e precurastes por lhe ofender e lhe fostes desleal, nam mereceis ter tal espada”, e logo lhe foy tirada da mão; e tornou logo a dizer: “Por quanto vós, marquês, por vossa grande dinidade vos foy dada bandeyra quoadrada como a principe, e por esta honrra e dinidade de que recebestes ereis obrigado guardar a honrra e estado d' el-rey vosso senhor, e servi-lo e acatá-lo como a natural e verdadeiro rey e senhor, e vós tudo ysto fizestes ao contrayro, tal bandeira nam deveis ter porque a nam mereceis”, e lha tomaram logo da mão; e pola mesma maneira e cerimonia lhe tirarão a cota d' armas e armadura da cabeça e todas as outras peças das armas, atee ficar desarmado em calças e em gibam. E entam veo hum pregoeyro e hum algoz e com pregam de justiça, em que decrarava suas culpas, lhe cortaram a cabeça de que sayo sangue arteficial que parecia que era d' omem vivo. E acabada esta grande cerimonia de justiça que durou muito, se deceram todos do cadafalso, e logo foy posto fogo nele, e a estatua e o cadafalso todo assi como estava foy queimado, cousa que pareceo espantosa. E o marquês sendo disto sabedor foy muy anojado e triste; e dahi a pouco tempo se finou em Castella onde estava.

De como d' Abrantes el-rey partio pera São Domingos da Queimada

e a outras partes

Capitolo L

E na fim de Setembro deste ãno el-rey com a rainha e o principe e o senhor Dom Manoel se partio d' Abrantes, e o duque de Viseu por ser mal sentido ficou em Tomar. E foram em romaria a Sam Domingos da Queimada que he junto da cidade de Lamego, com grande devaçam pedir-lhe que por seus merecimentos Deos lhe desse filhos dantre ambos que el-rey muyto desejava e lhe levaram ricas ofertas que lhe ofereceram. E de Lamego se tornou a raynha a Viseu e dahi se foi à cidade do Porto. E el-rey foy a Vila Real e a Bragança e alguns outros lugares de Tra-los-Montes, e Antre  Douro e Minho em que ainda nam fora, correndo montes reaes, e provendo alguns repayros de fortalezas, e assi cousas de justiça que compriam. E tornou-se ao Porto onde o a raynha com o principe estava esperando; e por virem grandes invernos esteveram ahi até Janeyro do ãno seguinte de oytenta e quatro, e do Porto se vieram a Aveyro onde estava a infanta Dona Joana yrmã d' el-rey, a quem ele e a raynha falaram em casamento com o duque de Viseu yrmão da raynha. E por sua má ventura se nam concertou porque se entam se acabara, ficara muyto contente e tevera mayor amor a el-rey e nam ousaram de lhe danar a vontade como fezeram donde se seguio sua morte como logo se diraa. E d' Aveyro se veo el-rey com a raynha e o principe a Santarem onde logo veo o duque de Viseu que ficara em Tomar. E passada a Pascoa se fezeram de dia e de noite muitas festas de touros, canas e danças tudo em muyta perfeyçam e com grandes festas.

Do que aqui em Santarem aqueceo a el-rey de noyte

Capitolo LI

Estando el-rey nos paços de Santarem na cama com a rainha depois de todos repousados  acerca da mea-noite dormindo ja el-rey, lhe bateram aa porta da camara onde jazia. Acordou e perguntou quem era, e nam lhe responderam; ficou enleado cuydando o que podia ser; dahi a pouco tornaram a bater e elle levantou-se muyto manso e vestio hum roupam, e tomou hũa espada e hũa adarga e hũa tocha acesa na mão e foy muito passo só abrir a porta; e em na abrindo sentio yr diante si homem que abrio outra porta, e elle depos elle lhe foy o homem fogindo, abrindo todas as portas atee os  desvãos dos paços, que he cousa tam carregada, que de dia se carrega qualquer pessoa d' andar soo por elles, quanto mais de noite e a taes oras; e mais avendo ahi sospeita que alli sentiam cousa maa. A raynha bradou alto, e aos brados lhe acudiram molheres que a grande pressa chamaram os fidalgos da guarda e monteiros que logo acodiram todos com armas e tochas acesas, e foram achar el-rey só nos desvãos buscando todolos cantos delles tam seguro e sem receo que mais nam podera ser se fora no meo do dia. E entam perante si fez buscar tudo sem ficar nada, e nam se achou cousa algũa, por onde elle e todos affirmaram ser cousa passada desta vida. Tornou-se el-rey entam com todos, fazendo fechar has portas, tam despejado e ho  rosto tam seguro e alegre que todos vinham espantados. Deu boas noites e tornou-se a lançar na cama com ha raynha como dantes jazia, e nam deyxou por ysso de repousar e dormir.

De como se começou o caso em que o duque de Viseu

foy contra el-rey

Capitulo LII

Aqui em Santarem se começou a praticar e tratar a segunda deslealdade contra el-rey, donde se seguio a triste e rebatada morte do mal logrado duque de Viseu. A qual naceo mais de crer perversos e errados conselheiros, que de sua condiçam porque d' el-rey nunca recebeo escandallo nem agravos pera que com rezam lhe devesse de querer mal; mas a maa incrinaçam e o odio dos que o nisso metiam, mais por seus proprios odios a el-rey, que por desejarem de ele reinar como lhe faziam crer, com hũa vaã esperança e desordenado desejo o cegaram de maneira, que lhe fizeram esquecer que el-rey era seu natural rey e senhor, e que o criara como filho e honrara como irmão e que era seu primo com yrmão e yrmão da rainha sua molher e filho  do infante Dom Fernando seu tio. Pollas quaes cousas elle mays que outra nenhũa pesoa tinha rezam de com verdadeira lealdade, amor e obediencia servir e acatar el-rey em tudo o que a sua vida, sua honrra e seu estado real e bem de seus reynos comprisse. E nam lhe lembravam que o fizeram meter na conjuraçam dos primeiros que a desobediencia e destruyçam d' el-rey tratavam e que sendo elle nella comprendido e posto em seu poder, el-rey por suas muyto grandes virtudes, movido mais de piadade e misericordia que de yra nem rigor, e avendo tambem respeito a sua pouca ydade e pollo da raynha, nam quis olhar suas culpas por saber que entam nam naciam delle, e quis mais perdoar-lhe como pay que castigá-lo como rey; que se entam quisera seguir inteiramente a ordem de justiça, por ventura o podera bem fazer. E nam somente levou entam contentamento de lhe tudo perdoar como atras fica dito, mas por sua grandeza d' animo e muy real condiçam levava el-rey gosto em o aconselhar com amor e honrrar muito e favorescer; mas tanto bem nam aproveitou ao mal que se seguio. Porque o mal afortunado do duque por sua má costellaçam ou algum secreto juyzo nam pôde aqui em Santarem fugir a outros danados e piores conselheiros, que fazendo elle crer que andava preso e fora de sua liberdade com hũa esperança de sem rezam e sem causa o fazerem rey, o fizeram inclinar e consentir a contra Deos e toda rezam quererem matar el-rey seu verdadeiro senhor; e nam lhe lembravam nem elle se queria lembrar que devia a el-rey a vida que Deos lhe dera, o que em sua memoria devera d' andar pera sempre com verdadeiro amor e lealdade, e nam devera estimar tam pouco aquelle tam real, tam grande e piadoso perdão que com puro amor e sem necessidade algũa lhe tinha feito em Evora; mas os grandes peccados de seus diabolicos conselheiros o traziam enleado com tanta indignaçam, que este tamanho bem lhe faziam crer que era mal. E nam lhes lembrando Deos nem a obediencia, amor, e lealdade que a el-rey deviam ter, pois era seu rey natural e filho d' el-rey Dom Afonso que a muitos deles tinha feito grandes senhores e grandes merces e assi as grandes virtudes e perfeições d' el-rey e as muitas e grandes merces que a muitos delles tinha feytas; e esquecidos de si mesmos, de suas honrras e vidas e da nobreza de seus sangues, e assi do grande perigo em que se metiam, tratavam em matar el-rey a ferro ou com peçonha, e seus reinos tirá-los ao principe seu filho a quem de dereito vinham pera os ter quem contra justiça e toda rezam os queria  tomar. Mas Nosso Senhor Deos por sua grande misericordia, e polla ynocencia e grande devaçam d' el-rey tornou tudo isto ao contrario do que elles tinham ordenado, e guardou sempre a vida d' el-rey por quam bem elle guardava a justiça e verdade e seus mandamentos e por quam verdadeira fee tinha; que verdadeiramente ver quam soo el-rey era, e eles tantos e tam principaes pessoas, e tam chegados a elle, e tantas vezes o cometerem fora e em casa e elle sempre escapar, nam he de crer senam que foy per mysterio de Deos, a quem el-rey sempre primeiro que tudo sua vida e suas cousas encomendava. E o triste, desastrado e mal afortunado caso foy nesta maneira que se segue.

O duque de Viseu pousava fora da cerca de Santarem nas casas do arcebispo de Lisboa que sam junto com o Moesteiro de Sam Domingos das Donas. E o bispo d' Evora Dom Garcia de Meneses, dino de muito grande culpa, pois tanta cavallaria, tantas letras, fidalguia, e rendas, e outras muytas e boas partes tam mal soube aproveytar, pousava nas casas de hum Afonso Caldeira junto com o postigo de Santo Estevam, donde secretamente sahio a falar com o duque e com elle Dom Fernando de Meneses seu yrmão. E assi foram Fernão da Silveira escrivam da poridade d' el-rey e filho do baram d' Alvito e  Dom Goterre Coutinho filho do marichal a quem el-rey tinha dado, avia bem pouco a comenda de Cezimbra, e Dom Alvoro d' Ataide yrmão do conde d' Atouguia e do prior do Crato, e seu filho Dom Pedro d' Atayde e o conde de Penamocor Dom Lopo d' Albuquerque, e Pero d' Albuquerque seu yrmão alcaide-moor do Sabugal. Os quaes todos foram os sabedores e consentidores desta amor deslealdade e trayçam. Ainda que muito claro se provou que Dom Fernando de Meneses somente quando polo duque com quem vivia, e pollo bispo seu yrmão lhe foy descuberto, lhe pesou muito de o saber; e com palavras de lealdade e muyta prudencia, sempre como bom portugues e fiel vassallo d' el-rey, o estranhou muito e contradisse gravemente, porém nam no descubrio por ser criado do duque. E depois da Pascoa pasados alguns dias, el-rey com a raynha e o principe com sua corte, se partio pera Setuvel e foy polas leziras a montes e caças com muitos banquetes, prazeres, e festas, e todos estes com elle e outra nobre gente.

De como foy a morte do duque de Viseu

Capitulo LIII

E foy primeiramente el-rey avisado deste caso per Diogo Tinoco homem fidalgo a quem  o bispo d' Evora por ter por manceba hũa Margarida Tinoca sua irmaã a que queria muito grande bem e por confiar muito nelle lhe deu disso parte. E Diogo Tinoco o mandou logo descubrir a el-rey per Antam de Faria, e depois o disse per si meudamente a el-rey no Moesteiro de Sam Francisco de Setuvel vestido em habito de frade por mayor dissimulaçam. A quem el-rey com palavras e obras muito o agradeceo e satisfez como tam leal e proveitoso aviso merecia. E lhe deu logo juntamente cinco mil cruzados em ouro e seiscentos mil reaes de renda em beneficios loguo nomeados, polos quaes logo mandou despedir as letras; mas nam ouveram efeito porque antes de despedidas o dito Diogo Tinoco faleceo.

E depoys foy el-rey de tudo avisado por Dom Vasco Coutinho filho do marichal e yrmão do dito Dom Goterre, o qual Dom Vasco por descontentamentos que tinha d' el-rey estava a este tempo despedido delle pera se yr fora do reyno. E Dom Goterre pesando-lhe da hida do yrmão, e avendo por cousa certa a morte d' el-rey com que sua yda seria escusada, lhe mandou muyto pedir que antes de se partir se visse com ele em Cezimbra, onde se viram e Dom Goterre por lhe nam descubrir a causa principal de seu fundamento lhe disse, que o mandara chamar sentindo muyto seu despedimento e partida, e lhe pedio muito que estivesse alli alguns dias, nos quaes trabalharia remedear com el-rey seus agravos com que sua yda se escusasse. E porque Dom Vasco o nam quis fazer parecendo-lhe que eram delongas, Dom Goterre pollo segurar lhe descubrio inteiramente todo o caso e Dom Vasco lhe disse entam que ficaria e seria com elle nisso. E tanto que o soube, lembrando-lhe sua lealdade e fidalguia, e a longa criaçam que d' el-rey recebera, e nam os agravos e pouca mercee que dezia que delle tinha recebida por onde era delle despedido, determinou logo como bom, verdadeyro e leal vassalo descubrir tudo a el-rey. E muy secretamente per meo d' Antam de Faria se vio com el-rey a quem meudamente tudo descubrio; e que o que tinham determinado era matarem-no a ferro, e recolherem o principe per mar a Cezimbra, e que per logo com elle sossegarem o reino o levantariam por rey, e que o seria enquanto o duque quisesse o que ficaria en sua mão e vontade.

E sabendo el-rey tudo ysto tam meudamente por taes duas pessoas, o dissimulou de maneira que nunca foy sentido por esperar mais inteira prova; e porém andava mui a recado armado mui secretamente e sempre com espada e punhal e a cavallo e nunca em mula; porém tudo feito com tanta prudencia e dissimulaçam, que nunca sentiram  o que elle sentia. E quando Dom Goterre disse ao duque e aos que com ele eram como Dom Vasco seu yrmão se nam hia e era metido no caso e que tinha jurado de ele ser o primeiro que lhe posesse o ferro, disse o bispo Dom Garcia: “Muito me doe o cabello de Dom Vasco”. E andavam buscando tempo desposto em que o melhor podessem fazer; e dizem que hũa vez ho quiseram matar andando no Trouno passeando a cavallo, e que el-rey o sentio e se pôs com as costas na Ygreja de Nossa Senhora d' Anunciada confiando que por diante ninguem ousaria de o cometer, e assi esteve atee que o capitam chegou com os da guarda; e que outra vez o quiseram fazer e cometer decendo por hũa escada de noyte pera casa da raynha e nam se acabaram de determinar. E dahi a pouco foy el-rey a Alcacer do Sal, e sabendo o duque e os da conjuraçam que avia de tornar per maar em hũa barca com poucos, determinaram esperá-lo na praya, e ao sahir dos batees o matarem. Do qual concerto e perigo ordenado, el-rey foy logo avisado per Dom Vasco que com elles era nisso. Pollo qual el-rey mudou a vinda por mar e se veo por terra polla Landeira muy bem acompanhado da boa gente da sua guarda que pera isso sem algum alvoroço fingindo outra cousa mandou aperceber. Porque depois da morte do duque de Bragança, sempre el-rey trouxe guarda da camara e dos  ginetes, de que era capitam Fernam Martinz Mazcarenhas, que nestes feytos em que a vida d' el-rey e bem dos reynos pendiam, sempre servio continuadamente muito bem e lealmente, e pessoa de que el-rey muito confiava.

Chegou el-rey a Setuvel sesta-feira vinte dous dias do mes d' Agosto de mil e quatrocentos e oitenta e quatro. E o duque sabendo que el-rey vinha por terra nam no esperou em Setuvel e foy-se a Palmella onde estava apousentado elle e a senhora infanta sua mãy. E ao outro dia sabado mandou el-rey chamar o duque a Palmella, o qual dizem que veyo com muito pejo; e em se cerrando a noyte el-rey o chamou a sua guarda-roupa, que era nas casas que foram de Nuno da Cunha em que entam el-rey pousava, onde o duque entrou soo sem algũa pessoa entrar com elle; e sem se passarem muitas palavras el-rey per si o matou aas punhaladas, sendo a tudo presentes e pera isso escolheitos Dom Pedro d' Eça alcayde-mor de Moura, e Diogo d' Azambuja e Lopo Mendes do Rio. E esteve assi morto secretamente sem se ouvir rumor nem cousa algũa até que el-rey mandou cerrar as portas da villa e poer nellas grandes guardas e mandar muita gente por fora da villa guardar os caminhos e mandar em Setuvel preguoar grandes e temerosos preguões e fazer muytas e grandes deligencias pera se averem os outros todos  da conjuraçam; que foy hũa noyte de muito grande terror e espanto e sobre tudo muyto grande tristeza, porque casi a todo Portugal tocava a desaventura daquelles que nisso eram culpados, por serem pessoas tam principaes. Foy o corpo do duque assi vestido como estava levado ante menham aa igreja principal da villa; em hum cadafalso cuberto de panos de doo jouve no meo da igreja descuberto aa vista de todo o povo até a tarde que o soterraram.

E de sua morte foy logo feito hum auto por o doutor Nuno Gonçalvez como juiz, e por Gil Fernandez escrivam da camara d' el-rey, em que el-rey verbalmente disse as cousas e  rezões que tevera pera matar o duque, que logo foram escritas e per ellas logo perguntadas por testemunhas o dito Dom Vasco e Diogo Tinoco que com seus ditos approvaram e justificaram a morte do duque.

Da merce que el-rey fez ao senhor Dom Manoel

yrmão do duque do mestrado de Christus e ducado de Beja

Capitolo LIV

E logo sem delonguas nem esperar que algum lhe falasse, el-rey mandou chamar o senhor  Dom Manoel que entam jazia doente e com elle Diogo da Silva seu  ayo, vindo elle muy temorizado por o dia ser de tanto temor e espanto. E el-rey lhe disse que elle matara o duque seu yrmão porque elle duque com outros o quiseram matar; e porque todallas cousas que elle em sua vida tinha per sua morte ficavam livremente a sua  coroa, elle de todas dali em diante lhe fazia merce e pura doaçam pera sempre porque Deos sabia que elle o amava como a propio filho, e lhe dizia que se o propio seu filho falecesse sem outro filho legitimo que o socedesse, que daquella ora pera entam o avia por seu filho erdeyro de todos seus reynos e senhorios; e isto de hũa parte e da outra foy dito e ouvido com muita tristeza e lagrimas porque el-rey muita parte destas desaventuras atribuya a seus pecados posto que fossem por culpas alheas; e o senhor Dom Manoel com muito acatamento pôs os joelhos em terra e lhe beijou por tudo a mão e assi Diogo da Silva seu ayo; e el-rey mudou-lhe o titolo de duque de Viseu por se nam entitular como seu yrmão e ouve por milhor que se intitulase duque de Beja e senhor de Viseu como di endiante se chamou. E logo nesta mesma fala el-rey tocou ao duque em querer pera si as villas de Serpa e Moura e que por ellas lhe daria dentro  no reino muy inteira satisfação, e assi apontou nas saboarias do reyno que tinha, em que per ventura averia mudança porque as avia por opressam dos povos e por carrego de sua consciencia. E tambem lhe disse que a Ylha da Madeira no que pertencia a sua coroa elle duque a teria em sua vida inteiramente mas que per seu falecimento quando Deos ho ordenasse era rezam que por ser cousa tamanha se tornasse aa coroa e aos reys destes reinos que os socedessem. As quaes palavras que el-rey entam disse ao duque foram todas profecias do que ao diante se vio, pois tudo foy como elle entam o disse.

O bispo d' Evora ao tempo da morte do duque estava com a raynha, e ahi o foy chamar da parte d' el-rey o capitão Fernam Martinz; e em saindo fora foy loguo preso e levado com muita gente e muito recado ao castello de Palmella e metido em hũa cisterna sem agoa que está dentro na torre da menajem, onde dahi a poucos dias falleceo e dizem que com peçonha.

E na mesma noite foram presos per mandado d' el-rey Dom Fernando de Meneses e Dom Goterre; e foram trazidos diante d' el-rey na Relaçam onde Dom Fernando fez hũa fala a el-rey muy elegante como homem muy prudente e esforçado cavaleiro e muy isento, na qual disse algũas palavras a el-rey de que ouve desprazer, e por isso se nam ouve com elle piadosamente como tinha em vontade, e mandou que per justiça se determinasse seu  feito e foy julgado aa morte e degolado na praça de Setuvel.

E Dom Goterre tambem quis fazer fala e falou tam mal com palavras piadosas que el-rey o nam quis ouvir e o mandou tirar de diante si. E porque Dom Vasco seu yrmão tinha ja pedido a el-rey que nam morresse por justiça, el-rey mandou levar o dito Dom Goterre preso aa torre d' Avis, onde tambem logo morreo, e segundo fama não morte natural senam arteficial.

E Dom Pedro d' Atayde sendo fogido de Setuvel e yndo caminho de Santarem, foy no caminho preso e trazido a Setuvel, onde contra elle foy acerca de suas culpas processado, pollas quaes per justiça foy pubricamente degolado e feito em quartos.

E Fernam da Silveyra foy escondido em hũa casa dentro em hũa cova por segredo e fiança de hum cavalleyro que fora criado de seu pay, que se chamava Joam Pegas que nunca se corrompeo, nem por temor das mortaes penas d' el-rey a quem o escondesse, nem por suas promessas e grandes merces a quem o descubrisse. E na pousada de Fernam da Silveira foy achada hũa sua barjoleta com muytos cruzados, que por mandado do duque recebera de que ja despendera muitos mais por aquelles da conjuraçam, cujos nomes e somas por suas ementas se acharam; e dahi a muitos dias o dito Fernam da Silveira se salvou per meo e ajuda de hum mercador que se chamava Bartalo homem estrangeiro que pollo seu se aventurou a muito, e por mar demudado em baixos trajos foy ter a Castella; e depoys sendo della desterrado a requerimento d' el-rey, foy em França morto a ferro na cidade d' Avinhão a oyto dias de Dezembro de mil e quatrocentos e oytenta e nove ãnos per o conde de Palhaes catalão que em França tambem andava desterrado, a quem el-rey pollo fazer por seu mandado fez merce de muita soma d' ouro em que se primeiro concertou. E porém o conde per mandado d' el-rey de França foy por ysso logo preso em perpetua prisam, a quem os favores e requerimentos que el-rey por elle mandou fazer, nam aproveitaram pera mais, que pera logo pello mesmo caso nam morrer por justiça de que com muita dificuldade escapou.

E Dom Alvoro d' Atayde era em Santarem onde pollos da conjuraçam foy acordado que estevesse com muyta gente que com dissimulações recolhia, pera tanto que da morte d' el-rey ou dalgum alevantamento contra elle fosse certificado logo recolhesse ao castello a Excelente Senhora Dona Joana, que entam estava no Moesteyro de Sancta Clara da dita villa, por que pera hũa cousa e pera a outra se o caso sobreviera, tinha ja as cousas aviadas e postas em hordem astuciosamente. Porque sobre o recolhimento desta senhora tinham esperança d' ajuda e favor dos reis de Castella a quem segundo fama tudo ysto era revelado. E por Dom Alvoro ser homem muy sabedor, de muito credito e autoridade estava em Santarem com esta empresa; mas como da morte do duque foy avisado como sesudo que era se pôs logo em salvo e se foy pera Castella onde sempre andou em vida d' el-rey; e depoys por el-rey Dom Manoel que sancta gloria aja foy a estes reynos tornado com sua honrra e restituydo ao seu. Porque na verdade muyto menos culpa e caso era estar Dom Alvoro em Santarem, posto que estivesse por parte do duque e em ajuda sua, que a dos outros que com suas proprias mãos queriam matar seu rey e senhor de que muitas e grandes merces tinham recebidas; que Dom Alvoro ainda que consentisse em o fazerem, nam no quis elle fazer nem ver fazer, e por isso estando el-rey em Setuvel estava elle em Santarem. E depois de assi ser nestes reynos casou com Dona Violante de Tavora molher de muy nobre geraçam, e ouve della hum filho que se chama Dom Antonio d' Atayde que ora he conde da Castanheira senhor de Povos e Chileiros, alcaide-moor d' Alegrete e de Colares, e veador da Fazenda d' el-rey nosso senhor, homem de muito grande estima e muyto aceyto a el-rey, de muita valia e tam bom saber, que sendo muito mancebo alcançou todas estas cousas e muita renda per si. E segundo seu contino serviço e o grande amor que lhe el-rey tem, e a muita confiança que tem nelle, se espera alcançar outros mayores.

E Pero d' Albuquerque fugindo foy logo preso em Lisboa, e trazido aa Casa da Sopricaçam onde foy contra ele processado e ouvido perante el-rey, a que fez hũa grande falla muy eloquentemente que falava muito bem, na qual alegou muitos serviços e grandes feitos em armas que era valente cavaleiro. E nada lhe aproveitou porque em fim por o caso foy julgado à morte e pubricamente degolado em Montemoor-o-Novo.

E o conde de Penamocor se acolheo e lançou logo na dita sua villa. E quando el-rey hia ao Sabugal como ao diante se dira, tornando-se el-rey de Castello Branco pera Santarem, o dito conde com seguro real lhe veo falar no lugar das Cortiçadas que se ora chama  Proença-a-Nova; e porque se nam quis poer a dereyto como el-rey queria se despedio delle e de seus reynos e com sua molher e filhos se foy pera Castella; e depois em Roma e fora d' Espanha andou em muitos reynos cometendo contra el-rey muitas cousas até que tornou outra vez a Castella onde acabou como ao diante se dira.

De como el-rey mandou noteficar aa  infanta

a morte do duque seu filho

Capitulo LV

Ao tempo da morte do duque de Viseu a senhora infanta Dona Breatiz sua mãy estava em Palmella, a quem el-rey polo doutor Nuno Gonçalvez do Desembargo pessoa de muitas letras e autoridade e per Gil Fernandez seu escrivam da camara pessoas de que confiava lhe mandou logo noteficar a morte do filho e mostrar as causas e culpas do caso pera ver as rezões que tevera de o matar; e assi lhe mandou levar e amostrar a grande e liberal doaçam que a seu filho o senhor Dom Manoel tinha feita, pedindo-lhe e encomendando-lhe muyto com palavras de muita prudencia, cortesia, e honestidade que se confortasse e ouvesse paciencia. E ela vio e ouvio tudo com muita dor e tristeza e com muitas lagrimas lhe respondeo com palavras que ainda que fossem de princesa desconsolada, foram com muito sofrimento e honestidade e de molher muito inteira como ela era.

E logo na noite da morte do duque el-rey mandou fazer as deligencias que cumpriam pera se averem suas fortalezas como ouveram todas sem algũa duvida nem resistencia, e assi as dos que com elle eram salvo a fortaleza do Sabugal muito forte, e no estremo em que estava Dona Caterina molher de Pero d' Albuquerque, que sabendo da prisam de seu marido a nam quis entregar; e pera el-rey atalhar e remediar ysto, mandou logo diante Dom Pedro de Noronha seu mordomo-mor homem de muyta autoridade que cercasse como loguo cercou o Sabugal; e el-rey se aparelhou pera yr logo apos elle e foy em pessoa e chegou até Castello Branco onde com elle se ajuntou logo muita e muy boa gente do reino muy aparelhada d' armas e bons cavallos. E dali nam passou mays adiante porque Dona Caterina como soube de sua yda entregou logo o castello, e el-rey lhe fez merce da fazenda do marido que por sua deslealdade tinha perdida.

Embayxada que aqui em Castello Branco veo a el-rey

d' el-rey e da raynha de Castella

Capitolo LVI

Aqui em Castelo Branco vieram a el-rey por embaixadores d' el-rey e da raynha de Castella, o bispo de Cordova pessoa de grande autoridade, e Gaspar Fabra valenciano homem muy honrrado. E ao que principalmente vinham, era requererem restituyçam dos filhos do duque de Bragança que andavam em Castella em casa da raynha, e porque ao tempo da partida dos ditos embayxadores, os reys nam sabiam da morte do duque de Viseu. El-rey temporizou com elles acerca de seus requerimentos e deyxou sua determinada reposta com a outra sua embayxada que sobre ysso e sobre outras cousas enviou despois por Fernam da Silveira, e com elle Estevam Vaz. Com escusas boas e de receber pera os requerimentos passados e pera sobre ysso nam deverem mays fallar lhes lembrava que a socessam destes reynos se esperava viir a seus filhos dambos antre quem o casamento era ja concertado a que  semelhante restituyçam muyto perjudicaria.

        E em Castelo Branco adoeceo el-rey, e pollo perigo supito em que esteve, teve maginaçam que fora de peçonha; e de Castelo Branco ainda doente se veo aas Cortiçadas e dahi pollo Tejo a fundo atee Almeirim, onde depois de são se foy a Montemoor-o-Novo com toda sua corte em que esteve atee o Janeiro do anno de oytenta e cinco.

E em Montemoor-o-Novo fez el-rey novamente conde de Borba Dom Vasco Coutinho pollo leal e assinado serviço que lhe fez em lhe descubrir o caso do duque de Viseu, estando dele despedido como atras fica dito. E deu-lhe a dita villa e condado de juro e d' erdade pera quantos delle decendessem; e mais lhe deu o castello e reguengos d' Estremoz com outras rendas e seu honrrado assentamento, e sempre lhe fez muita honrra, favor e merce, como ele o merecia que foy homem muy honrrado, muito nobre e muito bom cavaleyro e outras muito boas partes.

E de Montemoor por começarem de morrer nelle de peste que neste tempo era no reyno geral, el-rey se foy a Viana d' Alvito e dahi a Beja.

E neste tempo em que el-rey tinha tanto escandalo e odio aas cousas do duque de Bragança e do duque de Viseu, nam avendo no reino outro parente chegado senam Dom Afonso filho do marquês de Valença, e primo com yrmão da infanta Dona Breatiz e do duque de Bragança, sendo Dom Afonso bem mancebo lhe deu o bispado d' Evora livremente sem pensam nem deixar cousa algũa que tevesse; ho qual bispo foy pessoa singular de muitas letras e autoridade e gram senhor. E delle ficarão dous filhos e hũa filha: o primeyro he Dom Francisco de Portugal conde do Vimioso e senhor d' Aguiar, veador da Fazenda d' el-rey e camareiro-moor do principe, homem de muito preço e grande estima, de muito credito e autoridade, muy sesudo, e prudente, e de muito bom conselho, casado com hũa filha do senhor Dom Alvoro muy virtuosa e honrrada senhora; e o segundo Dom Martinho de Portugal que ora he arcebispo do Funchal e primas das Indias muy magnifica pessoa; e a filha se chama Dona Breatiz de Portugal a quem o pay deu cincuenta mil cruzados pera seu casamento e sendo molher moça nam quis casar e fez tudo em hum morgado e o deixou e trespassou em Dom Afonso de Portugal seu sobrinho filho do dito conde seu yrmão. E este bispo Dom Afonso começou em Evora hum grande e honrrado collegio com muita  renda e obra muy vertuosa e em no começando se finou. E na See fez muitas e reaes obras e deu muy riquissimos ornamentos.

E sentindo-se el-rey tanto de Fernam da Silveyra, que dentro em França o mandou depois matar com grandes dadivas a quem o matou, porque Fernam da Silveyra era homem de muito preço e valia e de muito boas calidades, disse hum dia perante muytos aa mesa que Fernam da Silveyra era tal, que nam yria a parte algũa onde lhe nam fezessem muita honrra.

E do bispo Dom Garcia disse el-rey muitas vezes bem dizendo que era muito bom cavaleyro e grande leterado e tinha outras boas partes e eu lho ouvi per vezes; e assi disse tambem a algũas pessoas que quisera antes perder muito que ter mandado matar Dom Fernando de Meneses posto que per justiça fosse julgado. E por Dom Alvoro d' Atayde disse quando foy a sua grande entrada de Lisboa, yndo debayxo do paleo: “Nam se pode negar que sem Dom Alvoro Lisboa nam presta pera nada”, porque isto dizia, Dom Alvoro por ser muy principal sempre nos taes dias levava os reys pollas redeas, e era tam sabedor, cortesão, e gracioso que elle per si fazia festa. E era el-rey tam vertuoso, tam justo, tam verdadeyro, que aynda que quisesse mal a alguem nam lhe tirava sua honrra se a tinha nem deyxava de dizer algũas boas partes se as nelle avia; e ysto por sua grandeza d' animo e muy real condiçam.

Da mudança que el-rey fez no escudo real de suas armas

e das novas moedas que mandou fazer.

Capitulo LVII

Em Beja teve el-rey conselho sobre as moedas novas que avia de fazer, e ainda nam tinha feytas, pera as quaes anovou e ordenou algũas cousas no real escudo de suas armas. E a primeira mudança, foy que tirou do dito escudo a cruz verde da hordem d' Avis, que nelle por grande erro como parte d' armas substanciaes andava jaa encorporada, porque el-rey Dom Joam o primeyro seu visavoo ante que devidamente e por authoridade apostolica se yntitulasse rey dos reynos de Portugal, e do Algarve era mestre d' Avis. E depois de ser rey tomou por devaçam da hordem assentar o escudo das armas de Portugal sobre a cruz verde com as pontas dela fora do escudo na bordadura, como ainda em suas obras  e muy excelente sepultura no Moesteyro da Batalha oje em dia se vee. E depois por descuydo ou pouco aviso dos reys d' armas andou assi muyto tempo em vida d' el-rey Dom Duarte, e d' el-rey Dom Afonso; e por tirar isto que parecia mal, el-rey a mandou entam tirar de todo fora. E assi mandou mudar os cinco escudos de dentro, porque os dous das ilhargas andavam atravessados com as pontas debayxo pera o do meyo que parecia cousa de quebra, e os pôs todos dereytos com as pontas pera baixo da maneira em que agora andam.

E neste anno e tempo se intitulou el-rey primeiramente em seu titulo senhor de Guinee como agora anda.

E assi fez neste ãno de oytenta e cinco no mes de Junho as primeiras suas moedas, s.: moeda d' ouro, a que chamou justo e era de ley de vinte e dous quilates e de peso de seiscentos reys, e tinha de hũa parte o escudo real dereyto com letra derredor do nome e titulo d' el-rey, e da outra parte el-rey armado de todas armas assentado em cadeira real e o ceptro na mão, e a letra dezia: “Justus sicut palma florebit”. E assi mandou fazer outra moeda d' ouro que se chamava espadim, que era da ley dos justos e da metade do preço e peso delles que era trezentos reaes e tinha de hũa parte o escudo real com o nome e titulo d' el-rey, e da outra hũa mão com hũa espada nua com a ponta pera cima e por letra derredor: “Dominus protector vitae meae a quo trepidabo?”; e estes espadins mandou fazer deste nome por devaçam e lembrança da conquista d' Africa que sempre com a espada na mão se fez e prossegue por honrra e exalçamento da fee de Jesu Christo. Fez tambem vintens e meos vintens de prata e  cincos de ley de onze dinheyros, e de preço de vinte reaes, e de dez, e de cinco, e fez outros espadins de cobre da feyçam e grandura dos de ouro e eram prateados de preço de quatro reaes. E assi deu novo crecimento aa valia da prata que mandou geralmente que valesse o marco dahi em diante a dous mil e duzentos e oytenta reaes e a este preço se fezeram os ditos vintens. E assi se lavravam em seu tempo mais que outra nenhũa moeda os cruzados da propia ley e peso que ora sam, porém valiam a trezentos e noventa reaes cada hum; que os dez reaes de mais com que ora tem valia de quatrocentos, el-rey Dom Manuel que sancta gloria aja lhos acrecentou na valia no anno de quinhentos e dezassete. E em tempo d' el-rey valendo a trezentos e noventa eram tantos em todo o reyno que davam por cambar hum cruzado cinco reaes e ficavam em valia de trezentos e oitenta e cinco, e avia no reyno em todalas cidades e villas principaes cambadores que ganhavam muito nisso, os quaes agora nam há porque dam pollos cruzados quem os há mester a quatrocentos e dez reaes.

Da embaixada que el-rey mandou com a obediencia

ao Papa Inocencio oitavo

Capitulo LVIII

Neste anno estando el-rey em Setuvel, lhe veo recado como era falecido o Papa Sisto quarto, e assi da nova criaçam do Sancto Padre Inocencio oitavo por seu breve. A que logo ordenou mandar sua acostumada obediencia, e lhe mandou com ella por embaixadores Dom Pedro de Noronha seu mordomo-mor e comendador-moor da ordem de Santiago, e o doutor Vasco Fernandez de Lucena do seu conselho, grande letrado e muito bom orador, e Ruy de Pina por secretairo, e muytos fidalgos e cavaleyros e muy honrrada companhia, e foram por terra atee Roma. Onde foram muyto honrradamente recebidos de toda a corte de Roma. E a obediencia foy dada em consistorio muy solenemente por o doutor Vasco Fernandez que fez hũa muito elegante oraçam com grandes e verdadeiros louvores do Papa e dos reys de Portugal. E as cousas que em nome d' el-rey se requereram o Papa por meo do cardeal de Portugal que era seu proteitor, fez todas com muito amor e boa vontade e antre has muitas graças e cousas que se concederam foram estas as principaes.

Primeiramente a cruzada pera a guerra d' Africa, com grandes indulgencias e remissões de peccados, aos que pera ella dessem certa soma logo taxada, segundo as calidades das pessoas e valia das fazendas de cada hum; e assi licença pera nos castellos do estremo destes reynos se poderem dizer missas em lugares honestos sem perjuyzo das ygrejas e parrochias. E outra tal licença pera nas casas da Justiça que sam da Sopricaçam e do Civel, tambem se poderem dizer pera sempre missas. E licença a el-rey pera poder tornar em hum soo esprital todolos espritaes de Lixboa que eram muitos, e assi os de Santarem e Evora. E tambem grandes yndultos de beneficios pera capelães d' el-rey, da raynha e do principe e outras muytas graças particulares.

E neste ãno querendo el-rey que em seus reynos ouvessem muitas armas, e prover todos seus vasalos dellas de que avia necessidade, mandou fazer e trazer de fora aa sua custa hũa grande soma de lanças compridas, e hum grande numero de couraças de muytas sortes e as mandou lançar pollo reyno segundo cada hum devia de ter, e pola paga deu a todos em geral hũa honesta espera em que pagassem.

Das galees de Veneza que tomaram os franceses,

e do que el-rey fez aos venezeanos

Capitulo LIX

E neste ãno foram ao Cabo de Sam Vicente tomadas e roubadas de franceses quatro galees de Veneza que hiam muito ricas pera Frandes. E o capitam-mor e capitães delas muito feridos, roubados, e maltratados, foram lançados em Cascaes, onde entam estava Dona Maria de Meneses condessa de Monsancto, e el-rey era em Alcobaça, e a raynha em Sintra; aos quaes capitães a condessa fez muyta honra e mandou muyto bem agasalhar e os proveo de bestas e dinheyro como muy vertuosa e nobre pessoa, e por saber que el-rey o avia assi d' aver por bem; os quaes se foram esperar el-rey a Sintra onde a rainha os mandou agasalhar e prover com  grande honrra e muita abastança como a sua grandeza convinha. E como el-rey chegou e soube como o dito capitão-mor e capitães vinham de todo desbaratados nam nos quis ver nem ouvir, atee primeyro lhe mandar aas pousadas vestidos inteyros, e dobrados de sedas, e ricos panos, com todallas outras cousas que pera elles e pera os seus eram necessarias, e assi cavallos e mullas em que andassem. E lhe mandou dizer que pera homens tam honrrados e tanto seus amigos falarem a tal rey, nam era rezam que ante elle viessem com menos atavios, porque sendo doutra maneira pareceria que seus reynos lhe eram estranhos, o que muyto senteria. Porque pola antiguoa amizade que elle e os reys seus antecessores tinham com Veneza, todos os de sua naçam deviam d' aver e estimar seus reynos e senhorios por propia sua terra. E assi foram ante el-rey que com muyta honrra os recebeo e elles em suas palavras e obras mostraram bem serem em tudo gente nobre e bem agradecida; e com palavras d' omens prudentes deram conta a el-rey de sua perda e  estrema necessidade. E el-rey se lhe ofereceo a todo o que fosse rezão; e porque os franceses tinham aynda em Cascaes as ditas galees lhe disse que se as quisessem comprar e resgatar que lhe emprestaria pera isso quarenta mil cruzados em ouro, e mais se mais quisessem. E porque os franceses com hos venezeanos se nam concertaram, os franceses recolherão as mercadarias a seus navios, e venderam as galees que el-rey comprou, e mandou levar a Ribatejo até ver o que a senhoria de Veneza ordenava dellas. E assi defendeo que nenhũas cousas que das ditas galees foram tomadas em seus reynos nam fossem compradas o que assi se comprio. E ao despedir do dito capitão e capitães, el-rey lhe fez a todos pera ajuda do caminho merce em muita abastança.

E neste tempo era vindo de Roma o mordomo-mor de dar a obediencia como atraz se disse, e veo por Veneza pola ver. E a senhoria sabendo que era embayxador d' el-rey lhe fez muy honrrado recebimento e muytas festas, e mandou a todos muy largamente apousentar; e lhe mandou ricas dadivas tudo muy perfeytamente e com muitas palavras de grande amor e muito conhecimento das grandes merces que os seus capitaẽs em Portugal receberam d' el-rey dizendo o duque e todos os regedores que o estimavam tanto que nunca em suas vontades o acabariam de servir. E logo sobre ysso mandaram a el-rey por terra hũa muy honrrada embayxada com muito ricos presentes e serviços, a reconhecer e ter em merce as muitas honrras e merces que a seus capitães fez, em que veo por embayxador hum Jeronimo Donato grande leterado e singular orador. Que foy muito honrradamente recebido, e el-rey lhe fez muyta honrra, e ao despedir muita merce de muita e muyto rica prata lavrada de bastiaẽs, e ginetes e mullas com ricos jaezes e guarniçoẽs, muitos negros muito bem despostos e bem vestidos, e assi outras cousas que em Veneza nam avia. E o embaixador se partio elle e todos os seus com grande contentamento d' el-rey e assi de toda sua corte.

E neste ãno de oitenta e cinco pollos muytos serviços e merescimentos de Gonçalo Vaz de Castelbranco veador da Fazenda, e el-rey polo acrecentar fez a elle e a seus filhos e aos que delle decendessem de dom; e dahi em diante se chamou Dom Gonçalo, e mais lhe deu assentamento de conde e bandeira quadrada. E por a confiança que tinha de sua bondade e bom saber lhe deu a governança da Casa do Civel de Lisboa, e elle foy o primeyro que teve titulo de governador; e ho officio de veador da Fazenda deu a seu filho Dom Martinho de Castelbranco, que depoys foy conde de Villa Nova. E por falecimento do dito Dom Gonçallo seu pay, lhe fez el-rey merce da governança de Lisboa, e ho officio de veador da Fazenda deu a Dom Alvoro de Crasto. E por fallecimento d' el-rey, el-rey Dom Manoel que sancta gloria aja fez com Dom Martinho que deyxasse a governança de Lisboa a Dom Alvoro e tornasse a ser veador da Fazenda, ysto com grandes promessas, e Dom Martinho ho fez assi, e teve com el-rey muyto grande credito e authoridade, e confiou muyto delle e ho fez conde de Villa Nova, e ho mandou com ha infanta sua filha a Saboya por capitam-mor e governador de toda a frota e ha infanta entregue a elle, e elle a entregou ao duque, e lhe fez deixar ho officio de veador da Fazenda, e ho fez camareyro-moor do principe seu filho el-rey Dom Joam o terceyro nosso senhor; e ho oficio de veador da Fazenda deu ao conde do Vimioso e emfim deyxou el-rey por seu testamenteyro ho dito conde de Villa Nova pollo amor que lhe tinha e ho que delle conhecia.

De como a cidade d' Azamor em Africa tomou el-rey por senhor

Capitolo LX  

No anno de mil e quatrocentos e oitenta e seis os governadores e moradores da cidade d' Azamor em Affrica, temendo mandar el-rey ou yr sobre ella, e receando sua destruyçam com acordo e precuraçam de todos, mandaram a el-rey sua obediencia e o reconheceram por seu senhor com tributo em cada hum anno de dez mil savẽs. O qual recado veo a el-rey estando em Santarem, que foy disso contente, e lhe deu sua bandeira real; e em tudo se fizeram firmes contratos que muyto ynteyramente sempre cumpriram em quanto el-rey viveo.

De como el-rey secretamente mandava descubrir a India por terra

Capitolo LXI

Pollo muyto grande desejo que el-rey tinha do descubrimento da India, que com muito grande cuydado pollo  mar mandava descubrir o longo da costa e tinha ja descuberto atee alem do Cabo de Boa Esperança, o quis tambem fazer por terra, e neste anno de oytenta e seys, mandou hum Afonso de Payva natural de Castello Branco, e outro Joam de Covilham homens autos pera ysso e de que confiava, aos quaes deu largas despesas per letras pera muitas partes, e suas estruções pera por via de Jerusalem ou pollo Cayro passarem a terra do Preste Joam; os quaes lhe levavam suas cartas em que lhe dava conta de tudo ho que polla costa de Guine tinha descuberto, pera saber se algũas daquelas terras eram perto de seus reynos e senhorios pera por ellas se poderem comunicar e prestar e fazer com que a fee de Jesu Christo fosse exalçada, mandando-lhe noteficar o grande desejo que tinha de se poderem conhecer e terem verdadeyra amizade. Os quaes partiram e depoys delles foram outros com muytas despesas que el-rey nisso fez; e enfim nunca se soube nada porque nunca mais nenhum delles tornou atee agora, que certas pessoas que da India foram ao Preste acharam lá vivo o João de Covilham que pelos perigos que passou nam ousou tornar.

Da polvora que el-rey mandou ao cerco de Malega

Capitolo LXII

Neste anno de mill e quatrocentos e oitenta e seis estando el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel de Castella em cerco sobre a cidade de Malega do reyno de Granada, que muy apressadamente e com muyta força combatiam com armas e tiros de fogo, estando jaa hos mouros em muyta  estreyteza e necessidade, e nam podendo jaa sofrer hos continos e rijos combates, faleceo o arrayal a polvora de que el-rey e a raynha ficaram muyto tristes, porque tendo a cidade jaa quasi tomada seria necessario levantarem o arrayal poys sem artelharia se nam podia tomar. Pollo qual hos reys com palavras de muyto amor e confiança, e com muyta necessidade mandaram pedir a el-rey ajuda e socorro de polvora ou salitre emprestada. O qual recado chegou a el-rey estando em Santarem e tanto que lho deram, com muita pressa e deligencia e verdadeira vontade mandou logo armar hũa grande caravela, na qual lhe mandou por Estevam Vaaz hũa grande soma de polvora e salitre tudo de graça, com grandes oferecimentos de sua pessoa e seus reinos e cousas delles pera tudo ho que comprisse pera hũa tam sancta empresa. Com o qual recado e socorro el-rey e a raynha e todo ho arrayal receberam muyto grande prazer e contentamento, e o estimaram tanto como se tomaram a mesma cidade, que dahi a poucos dias por caso do dito socorro logo tomaram. E assi o mandaram dizer a el-rey polo mesmo Estevam Vaz, a que fizeram muyta honrra e muyta merce.

De como foy preso Dom Alvoro de Souto Mayor

com sospeyta de trayçam

Capitolo LXIII

Dom Alvoro de Souto Mayor filho de Dom Pedro Alvarez de Souto Mayor que foy conde de Caminha e era galego, neste ãno de quatrocentos e oytenta e seys foy preso em Lisboa per mandado d' el-rey com sospeyta de trayçam. Porque hum Joam da Gualda que fora criado do conde seu pay disse  a el-rey que ho dito Dom Alvoro era vindo de Castella onde andava pera o matar. Pollo qual foy metido a aspero tormento, pera delle se saber a verdade, e nunca confessou cousa algũa; e porque o testemunho do dito Joam da Galda foy achado falso foy logo preso. E por testemunhar falsamente e em tal caso, foy per justiça degolado e esquartajado na praça de Santarem. E ao dito Dom Alvoro fez el-rey muita merce como por sua inocencia merecia e ele fora de moço criado d' el-rey.

De como el-rey defendeo has sedas e brocados

Capitolo LXIV

E neste mesmo anno pollos muytos e demasiados gastos que na corte e em todo o reyno se faziam em sedas e brocados, chaparias, borlados, e canotilhos, el-rey polla grande perda que ho reyno e seus naturaes nisso recebiam, e por escusar tamanhas despesas, defendeo e fez ordenaçam, que em todos seus reynos e senhorios  nenhũa pessoa assi homem como molher de qualquer estado e condiçam que fossem, dahi em diante nam vestissem mais cousa algũa das sobreditas; somente os homens poderiam trazer gibões, carapuças, e pantufos de seda, e as molheres saynhos, e cintas, e bordaduras de seus vestidos. E por se melhor comprir el-rey e a raynha, o principe, e o duque nunca mais vestiram sedas senam nas cousas sobreditas. No que a todos deram singular enxempro, e fizeram grande virtude, de que o reyno recebeo muito grande proveito, e muito mais os cortesãos a que a ley muyto aproveitou pollos tirar de tamanhos gastos. E porém nas festas do casamento do principe Dom Afonso com a princesa Dona Isabel se despensou em todo a dita ley, e acabadas se tornou loguo muy inteiramente a comprir.

De como se descubrio o reyno de Beni

Capitulo LXV

O reyno e terra de Beni foy primeyramente descuberta neste ãno per hum Joam Afonso d' Aveiro que lá faleceo; e dahi veo a Portugal a primeira pimenta que se  vio de Guine. Da qual foy logo mandado a Frandes e a outras partes as amostras dela, e foy logo avida em grande preço e estima; e el-rey de Beni mandou logo a el-rey por embayxador hum seu capitam de hum lugar porto de mar que se chamava Hugato, homem de bom saber e bom siso, e foram-lhe feytas muitas festas. O qual vinha saber novas desta terra por averem por muyto estranha cousa a gente dela; e com grandes oferecimentos foram-lhe mostradas muitas cousas das boas destes reynos, e el-rey o mandou tornar a sua terra honrradamente em hũa boa caravella, e aa partida lhe fez merce de vestidos ricos pera elle e sua molher e doutras cousas. E a el-rey de Beni mandou per elle presente rico, e de muitas cousas que elle em sua terra avia muito d' estimar. E assi lhe mandou muytos e sanctos conselhos pera o tornar aa fee de Nosso Senhor Jesu Christo mandando-lhe muyto estranhar suas ydolatrias e feytiçarias que em suas terras os negros tinham e usavam. E assi mandou logo com elle feytores e oficiaes pera laa estarem e resgatarem a dita pimenta e outras cousas que na terra avia. E depois por ser muito doentia e o trato nam ser de muyto proveyto como se esperava, ha feytoria se desfez, e hos officiaes se vierão.

De como el-rey mandou que has letras apostolicas se pubricassem

sem serem vistas na Chancelaria

Capitulo LXVI

Custumava-se antiguamente nestes reynos, que todollos breves e rescritos, letras e bullas que de Roma viessem, nam se fizesse por ellas obra algũa sem primeiro serem vistas e examinadas polo chanceler-moor; e as que achava serem verdadeyras e dereytamente espedidas, dava licença que se pubricassem e se darem a execuçam; e ysto era como são e bom respeito por se escusarem falsidades, com que as partes nam recebessem enganosamente perda e dano. E principalmente porque em tempo de cismas avendo mais de hum Papa como muytas vezes se vio, nam se avia de obedecer nestes reinos senam ao Padre Sancto de Roma. E ao Papa Inocencio oitavo com o collegio dos cardeaes por lhe parecer ysto cousa grave e algum tanto desobediencia e quebra de sua autoridade, no anno de oitenta e sete mandaram requerer a el-rey que nam usasse mais do tal costume. E el-rey por lhe obedecer como catolico principe e comprazer em tudo, o fez assi como lho mandaram pedir. De que o Papa e cardeaes ouveram muito prazer e muito contentamento, e com muitos louvores d' el-rey lho mandaram muito agradecer; e depois pera cá sempre se fez assi.

E neste ãno de oitenta e sete estando el-rey em Setuvel, desfez os estaos da villa que eram como em Lisboa e soltou apousentadoria por toda a villa; e porque dos estaos, apousentadoria e emposiçam avia hi dinheiro junto, el-rey por mays nobrecimento de Setuvel, e por proveito comum com o dito dinheiro, e com outro muito que elle deu de sua Fazenda por fazer merce aa dita villa, mandou fazer os canos d' agoa que aguora vem da serra aa dita villa, e assi a praça do çapal e a do paço do trigo, e outras benfeitorias em que gastou bem de sua Fazenda e nobreceo muito a dita villa.

De como Dom Diogo d' Almeida foy aos aduares em Africa

Capitolo LXVII

E neste mesmo anno de mil e quatrocentos e oytenta e sete no mes d' Agosto  mandou el-rey fazer hũa armada junto de Povos e Villa Franca porque morriam em Lisboa entam de peste. A qual era de trinta navios em que entravam muitas taforeas e hiam nella cento e cincuenta de cavallo todos da casa d' el-rey, em que entravam muitos fidalgos e cavaleiros, e com elles mil homens de pee os mays besteiros e espingardeiros; e foy por capitam-mor Dom Diogo d' Almeyda que depoys foy prior do Crato, muy esforçado cavaleiro, e de outras muito boas calidades e a el-rey muyto aceito; e com ele hia Dom Joam d' Atayde filho do conde d' Atouguia que el-rey mandou por segundo capitam quando Dom Diogo o nam podesse ser. E porque ho ardil a que hiam nam ouve effeyto e se torvou, por nam yrem em vão arribaram junto da cidade de Anafee onde ho capitam por conselho dos principaes que com elle eram, mandou certos cavaleiros e besteiros de cavalo com guias espiar a terra, hos quaes com grande risco foram espiar outros aduares de mouros da Enxouvia, nos quaes avia alguns de muyta gente, e estavam duas legoas da costa do mar. E ho capitam com ha mais gente que pôde, porque nam poderam tam prestes desembarcar, foy dar sobre elles com os quaes pelejou, e sendo os mouros muito mays  hos desbaratou todos, e mataram novecentos mouros e foram muytos feridos, e captivaram quatrocentas almas homẽes e molheres que trouxeram a estes reynos, com muitos cavallos e outro muito despojo, e ysto sem nenhum perigo dos christãos. E por o feito ser tam honrrado foram ahi feytos muytos cavaleyros com muita honrra sua. Da qual nova el-rey foy muy alegre e recebeo muito prazer e contentamento por o feito ser tal e por ser sem perigo dos christãos. E deste feito toda a Enxouvia tomou grande temor e espanto, porque el-rey mostrou que lhe mandara fazer este dano por desobedecerem a Muley Beljabe seu rey com que el-rey entam tinha paz, porque se dava por seu amigo e servidor. E o dito rey se favoreceo muyto com ysto e segurou seu estado, e logo sobre o caso mandou a el-rey sua embaixada com grandes presentes estimando muyto a grande merce que nisso recebera, e oferecendo-se-lhe pera sempre estar a seu serviço, o qual recado veo a el-rey estando em Almeirim.

De como Barraixe mouro foy desbaratado e preso

per Dom João de Meneses

Capitolo LXVIII

E assi neste anno de oitenta e sete a onze dias d' Outubro Ale Barraxe antre os mouros avido por xarife e muyto bom cavalleiro, muyto sabedor na guerra, que continuamente fazia aos christãos, homem de grande valia e senhor de muita terra, veo com quatrocentos de cavallo e muita gente de pee correr aa cidade de Tangere, estando nela por capitão e governador Dom Joam de Meneses, que depoys foy conde de Tarouca e prior do Crato e mordomo-mor d' el-rey. E levando os mouros cativos alguns christãos e todo o gado que acharam, o capitão sahio a elle com sua gente e pelejou com o dito Barraxe tam valentemente, que o desbaratou e mataram quarenta mouros principaes, antre os quaes foy hum Cideomar tio de Barraxe e mouro de muyta estima e muyto bom cavalleiro; e ho dito Barraxe com grandes cinco feridas foy caativo, e trazido aa dita cidade com grande prazer dos christãos, e diante delle vinha ha cabeça de seu tio; e por a vitoria ser melhor dos christãos nam receberão perda algũa que fosse de sentimento. A qual nova chegou a el-rey em Santarem, de que recebeo muito contentamento e ouve muito prazer e deu a Deos muiĩtos louvores, e a Dom Joam mandou muytos agradecimentos como por tam honrrado feyto merecia e assi aos que com elle nelle foram, e ao messageiro que a nova trouxe fez boa merce por alvissaras della. E mandou logo fisicos e sororgiães pera curarem o dito Barraxe, que em quanto esteve captivo foy sempre tratado muyto honrradamente e sem ferros. E depoys mandou Estevam Vaz seu escrivam da camara, que depoys foy feytor das Casas da India e da Mina, homem de que el-rey confiava, que com o dito Dom Joam entendesse no resgate do dito Barraxe. O qual se concertou com eles de se resgatar por quinze mil dobras de banda, e dez captivos christãos e vinte cavallos bons, pera que loguo deu filhos seus e outras pessoas principaes por seus arrefens. E foy solto fazendo a el-rey concerto e capitolaçam de sempre ser a seu serviço, porque ao tal tempo ele estava mal e era ĩmigo de Moley Xeque rey de Fez e tinha com elle guerra, e sabia que el-rey continuadamente lha mandaria fazer como fazia. E este resgate nam ouve effeyto, porque dahi a poucos dias foram livremente soltos hos filhos e arrefens de Barraxe e dados por Dom Antonio filho do conde de Vila Real que sendo capitam em Ceyta por seu pay, foy dos mouros  em hũa peleja muy ferido e cativo como ao diante se dira.

De como el-rey por authoridade apostollica mandou enquerer

sobre os confessos que de Castella eram nestes reinos

Capitulo LXIX

El-rey deixou estar nestes reynos muitos confesos e marranos que a elles se acolheram de Castela com medo da inquisiçam que se contra elles tyrava, e ysto com tal decraraçam que eles vivessem bem como bons e verdadeiros christãos. E porque a el-rey foy dito que antr' elles avia muitos herejes e maos christãos, neste anno de quatrocentos e oitenta e sete, per autoridade e licença do Papa começou de entender neles, e ordenou certos comissairos doutores em canones e outros mestres em theologia que pollas comarcas do reyno entenderam em suas vidas, tirando sobre ysso verdadeiras enquerições em que acharam muytos culpados e se fez nelles muitas justiças, que delles forão queimados, outros em carceres perpetuos, e  a outros pendenças segundo suas culpas o merecião. E porque alguns delles se lançaram por mar em terra de mouros, e lá pubricamente se tornaram logo judeus, el-rey defendeo que em seus reinos e senhorios so pena de morte e perdimento de fazendas pessoa algũa nam passasse algum delles per mar. E depoys deu lugar que se sayssem os que quisessem, e os capitães das naos ou navios que os levavam, davam seguras fianças de os nam levarem a terra de mouros, salvo a Levante e os poerem em terra de christãos, e trazerem disso autenticas certidões.

De como el-rey mandou prover e repairar

as fortalezas dos estremos

Capitulo LXX

Estando el-rey en muita paz e amizade com hos reis de Castella como muito prudente principe fazia sempre e ordenava suas cousas antes d' aver necessidade dellas. E no começo do ãno de mil e quatrocentos e oitenta e oito, com muyto cuydado e deligencia mandou prover, fortalecer, e repairar todalas cidades, vilas e castelos dos  estremos de seus reinos assi no repairo e defensam dos baluartes, cavas, muros e torres, como em artelharias, polvora, salitre, armas, almazẽes e todallas outras cousas necessarias. E em todalas fortalezas mandou de novo fazer apousentamentos e casas pera ysso ordenadas. E porque tudo isto nam quis fiar na deligencia e pouco cuidado que os alcaides podiam ter, ordenou novos oficiaes-moores pessoas de credito e autoridade e bom saber, repartidos pollas comarcas pera que com muyto cuidado provessem ameude todas as ditas cousas. E pera que estevessem muyto bem guardadas,  fez em algũas comarcas novas taraçenas em que estavam muito bem concertadas e governadas. E neste mesmo ãno mandou começar a cava e gram torre de Olivença, do que aos reys de Castela pesou, e com muytos rogos lhe mandaram dizer e pedir que em tempo de tanta paz, tanta amizade como antre elles avia, nam se deviam de hũa parte nem da outra fazer cousas de que se podesse presumir nem sospeitar que antre elles podesse aver desconcerto nem guerra; e el-rey lhe respondeo com palavras de grande amizade e muyta segurança e porém nam deyxou de fazer tudo assi e na maneira que o tinha mandado começar.

De como foy desbaratado e preso o alcaide d' Alcacer Quebir

por ho conde de Borba e de seu resgate

Capitulo LXXI

Neste ãno de quatrocentos e oytenta e oyto estando o conde de Borba Dom Vasco Coutinho degradado em Arzilla, fez hũa entrada em terra de mouros sobre hum ardil que hum mouro lhe tinha dado falsamente em que o conde hia vendido, e levava comsigo setenta de cavallo em que entravam fidalgos e bons cavaleiros; e depois de serem entrados e sentidos, tornando pera a vila sem fazerem cousa algũa e vindo muyto cansados e descontentes acharam antre si e a vila o alcaide d' Alcacer Quebir homem de grande poder e muyta estima antre os mouros, e muyto bom cavaleyro e contino guerreyro. E trazia consigo quinhentas e cincoenta lanças muy escolheitas com tençam de nam escapar o conde nem algum dos seus. E o conde tanto que ouve vista delle a primeira cousa que fez, foy esconder a bandeira, por os mouros cuydarem que detras vinha mays  gente com ella. E acolheo-se a hum pequeno cabeço, e alli cerrados todos lhe fez hũa fala com muito esforço como muy valente cavaleyro que era, dizendo-lhe que outro remedio nam tinham em suas vidas senam em pelejarem esforçadamente, porque se o assi nam fezessem hum e hum os tomariam às mãos, e que fazendo elles como cavaleyros, Nosso Senhor daria sua ajuda, o que todos determinaram de fazer até morrer. E os mouros em chegando a elles o conde com todos deu tam rijamente nelles, que daquelle primeyro encontro mataram cincoenta mazaganis, homens principaes em que entravam dous sobrinhos do alcaide, e o alcaide foy muyto ferido e preso. E os mouros vendo quam esforçadamente pellejaram, e vendo os mortos cuydando que o alcaide era tambem morto, e parecendo-lhe por nam verem bandeira que ficava detras mais gente esteveram quedos sem ousarem de mais pellejar. E o conde vendo a grande merce que Deos he fezera a quis segurar, e tomando o despojo dos mortos levando o alcaide escondido, começou com sua batalha muy cerrada de andar pera a villa com muyto tento, e os mouros hiam apos elle sem ousarem de o cometer nem se determinarem por nam terem capitam. E o conde tanto que lhe pareceo que era em salvo tendo passado o Rio Doce mandou alçar sua bandeira. E quando os mouros viram que nam era mais gente que aquella, ficaram de  todo mortos por tamanha mingoa passar por elles, e tam poucos christãos os desbaratarem e levarem preso seu capitam. E ho alcayde quando vio a bandeyra perguntou ao conde por sua gente e elle lhe disse: "Sabe, alcaide, que nam trouxe mais que estes poucos, e com estes te desbaratey e captivey"; e ho alcayde ficando muyto triste e maravilhado disse-lhe: "Conde, Deos foy oje christão, outro dia sera mouro". E na pelleja nam morreo christão algum, e assi com muyta honrra, muito prazer e contentamento entrou ho conde com o alcayde em Arzilla, onde todos cuydavam que nam escapasse christão algum de preso ou captivo.

Escreveo logo o conde a el-rey esta nova, ha qual chegou em Avis, de que el-rey teve muyto contentamento; e por este tam honrrado feyto fez logo merce ao dito conde da capitania d' Arzilla, que ora tem seu filho o conde Dom Joam Cautinho. E sobre o resgate do alcaide, mandou el-rey a Arzila Joam Garces escrivam de sua Fazenda com poderes; e com o conde resgataram o alcaide em quinze mil dobras de banda e dez cativos christãos e vinte cavalos bons; e o alcaide deixou logo por si dezoito mouros pesoas principaes sobre os quaes  foy solto, e elles ficaram cativos até se acabar de pagar o dito resgate. E ao conde alem da merce mandou el-rey muytos agradecimentos com muitas palavras de contentamento; e assi aos que com ele foram como tal feyto merecia e ao que trouxe a nova fez muita merce.

De como foy preso el-rey dos romãos em Brujes, e de sua soltura,

e do que el-rey sobre ysso fez

Capitulo LXXII

Estando el-rey em Avis na Coresma deste ãno de oytenta e oyto lhe vieram cartas de Diogo Fernandez Correa seu feytor em Frandes, e com ellas hũa carta de crença ao dito Diogo Fernandez de Maxemeliano rey dos romãos que era primo com yrmão d' el-rey, em que lhe dava conta da grande guerra que avia antre elle e el-rey de França, e da esperança que avia de ser muyto mayor pedindo-lhe pola muyta rezam que antre elles avia, e por outras vertuosas causas que lhe alegou, quisesse antre elles ser medeaneyro, e os contratasse à paz. El-rey polla natural  obrigaçam que a ysso tinha e por sua muita bondade e ser serviço de Deos que era a principal causa ante elle, folgou muyto de o aceitar e ho pôs logo por obra. E determinou logo mandar por embaixador a el-rey de França, ho doutor Joam Teyxeira chanceler-moor, e com elle por secretairo Fernam de Pina com honrrada companhia. Estando ja despedido pera partir veyo a el-rey outra nova certa do mesmo Diogo Fernandez, que lhe foy dada em Almeirim bespora de Pascoa, em que lhe certificava o dito rey dos romãos ser preso em Brujes pellos governadores da cidade e posto em seu poder com sua vida e estado em muito grande perigo assacando-lhe que queria meter na dita cidade muita gente d' armas pera a meterem a saco e os matar e roubar. Sobre o qual caso forom logo sem causa e endevidamente degolados e justiçados muytos dos seus, e antre elles entraram fidalgos honrrados e cavaleyros da casa do dito rey dos romãos. Com a qual nova el-rey mostrou muito nojo, muita tristeza, e sentimento e assi toda sua corte. E el-rey por isso se vestio de panos pretos, e seus paços e da raynha e do principe, foram logo desarmados dos ricos panos de que estavam armados pera a festa, em que nam ouve tangeres nem danças, nem cousa algũa de prazer; e assi  se fez sempre até vir nova de como era solto. E tanto que el-rey soube de sua prisam mandou logo que a embaixada que estava pera partir nam partisse. E depois de sobre o dito caso ter conselho mandou logo por embayxador Duarte Galvam do seu conselho con cartas ao emperador e a el-rey de França, e pera outras cousas que compriam, e com poder de desafiar e romper guerra com os imigos do dito rey dos romãos e com quaesquer que pera sua soltura lhe parecesse necessario. E assi levou grandes creditos, provisões, e letras e precurações abastantes pera receber e poder despender atee cem mil ducados d' ouro em tudo o que podesse aproveitar pera logo ser solto. E assi offerecimentos e determinaçam de logo destes reynos mandar grande frota e muita gente em sua ajuda se necessario fosse.

E sendo ja o dito Duarte Galvam partido, estando el-rey em Almada pera dali poder tudo prover, no mes de Junho logo seguinte vierão a el-rey per mar cartas de Frandes per que foy certeficado que ho dito rey seu primo era jaa solto, e em sua liberdade em poder do emperador seu pay, o qual com grande poder vinha sobre a dita cidade, e com medo seu o soltaram; as quaes cartas trouxe hum Joam de Bayrros, com que el-rey foy muy alegre  e recebeo muito prazer e grande contentamento, e assi toda a corte e o reino todo. E em Lixboa e na corte se fezeram solenes procissões, e muitas festas e alegrias assi no mar como na terra que duraram muitos dias; e ao dito Joam de Bairros fez muita merce e assi aos do seu navio por alvissaras de tam boa nova. E Duarte Galvam depois de ser chegado a Frandes aproveitou muito ao rey dos romãos posto que fosse solto, assi en virtude de dinheiro que per virtude de seus poderes lhe deu, como em vir por medianeiro e requeredor de sua paz e segurança com muitos  senhores em terras que o dito rey requereo de que tinha muita necessidade; o que tudo acabou a muito contentamento seu.

Do conselho que el-rey teve sobre o casamento do principe

Capitolo LXXIII

E estando el-rey em Almada no mes d' Agosto deste anno de mil e quatrocentos e oytenta e oito teve conselho com todos os do seu conselho que presentes eram sobre o casamento do principe seu filho. Porque como atras se disse ao tempo que as terçarias se desfizeram em Moura, foy desatado o casamento do principe com a infanta Dona Isabel, e ficou concertado com a infanta Dona Joana mais moça, ficando logo declarado que se ao tempo que o principe ouvese ydade perfeita pera contratar matrimonio per palavras de presente, a infanta Dona Isabel que era mayor estevesse por casar, que o principe casasse todavia com ella, assi como de primeiro fora concordado. E porque o principe então entrava em ydade de quatorze ãnos, e a dita infanta Dona Isabel nam era casada, quis el-rey saber o que neste caso faria. Sobre o qual acordou de ho fazer assi saber a el-rey e aa raynha de Castella per Ruy de Sande, que entam era moço da camara e a el-rey muyto aceito, que depois foy Dom Rodrigo de Sande do conselho e homem de muita valia e de muita renda. E com cartas d' el-rey foy aos ditos reys, que per elle logo responderam sua final determinaçam ser darem ao principe a infanta Dona Isabel por molher. E nam na quiseram dar ao filho mayor do rey dos romãos que no mesmo tempo lha mandava requerer, e de Valhadolid despediram os seus embayxadores sem lha quererem dar, e assi a el-rey de França e de Napoles que sobre o casamento da dita infanta Dona Isabel ouve grandes requerimentos e muitas pendenças. E com este recado que Ruy de Sande trouxe ouve el-rey muyto grande prazer e contentamento; e logo foy certificado que no anno que vinha se avia de fazer o dito casamento. Pera ho qual el-rey logo começou de dar ordem e aviamento pera as grandes festas que ordenou de fazer, e pera todallas outras cousas necessarias. E d' Almada no Setembro logo seguinte com toda sua corte se partio pera Setuvel.

De como em Ingraterra foy preso o conde de Penamocor

Capitolo LXXIV

Neste anno foy el-rey certificado que o conde de Penamocor nam cansando de prosseguir com suas forças e pouco poder a deslealdade que contra elle e seu estado e serviço ja começara, era passado a Frandes, e a Ingraterra. Só com seu nome mudado em Pero Nunez, comprava mercadarias e cousas pera os tratos e resgates de Guine, e andava requerendo e convidando pesoas, e armadores daquellas terras pera ysso, que ja em algũa maneira se aparelhavam. E el-rey por atalhar cousas de tanto seu serviço, ordenou de mandar a Yngraterra em hũa caravella muito bem armada a Alvoro de Caminha cavaleyro de sua casa que depois foy capitão da Ylha de Sam Tomee,  pera com algum engano ou dissimulaçam prender o dito conde e o trazer a estes reinos, ou matá-lo quando mais nam podesse. E nenhũa cousa destas o dito Alvoro de Caminha pôde fazer, nem teve lugar pera ysso e se veo. E el-rey sobre o caso tornou a mandar laa Joam Alverez Rangel cavaleyro de sua casa com estruções e cartas pera el-rey d' Ingraterra, em que lhe dava conta da deslealdade do dito conde pedindo-lhe que por enxempro de reys e mais delle que per bem de suas leanças e amizades era a isso muy obrigado, o quisesse mandar prender e entregar-lho pera nestes reinos segundo suas culpas se fazer justiça delle, ou ao menos fosse laa preso e pera sempre metido em carcer perpetua. E el-rey d' Ingraterra por em algũa maneira satisfazer a seus requerimentos mandou prender o dito conde no castello de Londres. Do que el-rey foy loguo avisado e com muito prazer despachou logo com muyta brevidade por embayxador a el-rey d' Ingraterra o lecenceado Ayres d' Almada corregedor em sua corte dos feytos cives, que muy em breve  por maar foy laa, onde aynda o dito conde era preso; e com muitos fundamentos de dereyto e de suas ligas, requereo que do dito conde se fezesse entrega ou justiça qual mais parecesse rezam. E finalmente el-rey d' Ingraterra depois de sobre o caso aver conselho, se escusou e nam consentio em nenhum daquelles dous requerimentos. E ouve por bem que por o sossego e segurança do que a el-rey compria ho dito conde estevesse em prisam, na qual esteve algum tempo, e depois com mudanças que o tempo traz foy solto da dita prisam e se veo a Barcelona, onde el-rey e a raynha de Castella estavam ao tempo da entrega de Perpinhão, e dahi se foy a Sevilha onde tinha sua molher e filhos, e dahi a poucos dias faleceo.

Como cativarão Dom Antonio filho do conde de Villa Real

que era capitam em Ceita

Capitulo LXXV

E neste anno de oytenta e oyto estando el-rey em Benavente lhe veo recado como Dom Antonio filho segundo  de Dom Pedro de Meneses conde de Villa Real, que depois foy marquês o primeyro de Villa Real, estando por capitão na cidade de Ceita fezera hũa entrada em terra de mouros, e trazendo hũa boa cavalgada acodio sobre elle tanta gente dos mouros, que lhe pareceo que se nam poderam salvar senam pelejando com elles, o que fez como muyto ardido e esforçado cavaleyro e pelejou com elles valentemente, e por os mouros serem muitos, Dom Antonio foy muyto ferido e cativo, e foram mortos muytos christãos, em que morreram algũas pesoas principaes nos quaes entrou Christovam de Mello alcaide-moor d' Evora muyto valente cavalleyro e pessoa de preço, e Symão de Sousa filho do comendador-moor de Christus e Marfim Vaz da Cunha senhor de  Tavoa, e Fernam Coutinho e outros; os quaes todos morreram como esforçados cavaleyros matando primeyro muitos dos mouros. A qual nova el-rey muito sentio porque tinha muito boa vontade ao dito Dom Antonio e o tinha em muito boa conta, e assi a Christovam de Mello e a outros, e com muita deligencia mandou logo à dita cidade socorro e outro capitam. E Barraxe como sabedor teve maneira como ouve Dom Antonio a suas mãos, e o deu e resgatou pollos arrefens que por elle e  seu resgate estavam em Tangere, em poder de Dom Joam de Meneses que o cativou. E assi foy o dito Dom Antonio livre e tirado de cativeiro per troca de Barraxe.

De hũa armada que el-rey mandou fazer para Africa,

de que foy por capitam Fernam Martinz Mazcarenhas e o que fez

Capitulo LXXVI

El-rey como seus desejos eram fazer sempre guerra aos infieis, e porque se fazia prestes pera em pessoa passar em Africa, neste anno de oitenta e oito determinou de mandar hũa armada sobre hum ardid que lhe tinham dado, e nella por capitães Fernam Martinz Mazcarenhas seu capitam dos ginetes, e Aires da Silva seu camareiro-mor e com elles quinhentos de cavallo, gente escolhida dos livros d' el-rey, e mil homens de pe besteiros e espingardeiros. E estando jaa prestes pera embarcarem e partirem, veyo a el-rey recado dos capitães dalem estando em Almada como a terra d' Africa era avisada da dita armada, e com medo seu se goardavam muito e vellavam e punham suas pessoas e fazendas em salvo. Pollo qual a mais da dita armada se desarmou e mandou el-rey entam o dito Fernam Martinz Mazcarenhas, com trinta caravellas e taforeas e com elle cento e cincoenta de cavalo homeẽs fidalgos e cavaleyros de sua guarda. Os quaes tanto que desembarcaram em Arzila se ajuntaram per concerto que dantes tinham assentado com Dom Joam de Meneses capitão de Tangere, e com o conde de Borba que estava em Arzilla, os quaes todos fizeram quinhentas lanças e quatrocentos homeẽs de pee. E assi juntos foram correr ao campo d' Alcacer Quebir alen da ponte onde os mouros estavam, sem receo dos christãos, onde atee entam gente de guerra dos christãos nam chegara. E entraram em hũa aldea grande donde trouxeram cativas dozentas e cincoenta almas, e mataram muytos mouros, e tomaram muyta prata e ouro e muitos despojos, e do campo trouxeram muito gado e grande cavalgada de bestas e sem dano algum dos christãos sayram a elles mil e setecentos mouros de cavallo e muita gente de pee, e nam ousaram de pelejar com elles. E os christãos muyto a seu salvo trouxeram tudo a Arzila onde per seu costume tudo foy repartido. E estando el-rey aynda em Almada lhe escreveram os  capitães este feyto com que el-rey folgou muyto.

Do que el-rey fez yndo com a raynha

a ver correr touros em Alcouchete

Capitulo LXXVII

Estando el-rey em Alcouchete yndo hum dia de casa a pee com a raynha e damas e senhores e muitos fidalgos a ver correr touros no terreyro junto da ygreja, acertou que metendo hum touro na cancella fogio do corro, e veo por a rua principal por onde el-rey hia e diante do touro vinha muyta gente fogindo com grande grita. Foy o receo tamanho nos que hiam diante d' el-rey que todos fogiram e se meteram por casas e travessas. E el-rey soo tomou a raynha pola mão e pos-se diante della com a capa no braço e a espada apunhada com muito grande segurança; esperou assi o touro que quis Deos que passou sem entender nelle. De que muytos fidalgos e outros homeẽs ficaram muy envergonhados e elle com muita honrra; e foy sorte que se a el-rey vira fazer a outrem lhe fezera por ysso muita merce segundo estimava as cousas bem feytas. E porque Dom Jorge de Meneses seu page da lança que lhe trazia a espada nam vinha pegado com elle e fi- cava hum pouco atras com as damas, quando pedio a espada e o nam vio posto que lha deu muito prestes o arrepelou primeiro que a tomase.

De como Bemohi veo a estes reynos e foy feyto christão

e de sua morte

Capitulo LXXVIII

No ãno passado de mil e quatrocentos e oytenta e sete estando Gonçalo Coelho cavalleyro da casa d' el-rey, na boca do Rio de Cenaga no reino de Jolofo em Guinee resgatando, Bemohi principe negro que entam com muita prosperidade e grande poder governava o dito reino de Jolofo, sendo per suas lingoas enformado das muitas virtudes, perfeições, e grandezas d' el-rey desejou de o servir e pera começo, lhe mandou per o dito Gonçallo Coelho hum rico presente d' ouro, e cem escravos todos mancebos e bem despostos e assi algũas outras cousas de sua terra. E mandou com ele a el-rey hum seu sobrinho por embaixador com hũa grossa manilha d' ouro por carta de crença que he o costume de sua terra, por antr' eles nam aver letras, e lhe mandou por elle pedir armas e navios. E el-rey com rezam e justa causa se escusou, dizendo-lhe a defesa e escomunhões que o Papa tinha postas a quem desse armas a infiees e por elle nam ser christam lho nam podia mandar. E neste anno de quatrocentos e oytenta e oito, porque o dito Bemohi por trayção dos seus foy lançado fora do reino, determinou meter-se em hũa caravella das do trato que corrião a costa, e em pessoa vir pedir a el-rey socorro, ajuda, e justiça. E estando el-rey em Setuvel, o dito Bemohi chegou a Lixboa e com elle alguns negros seus parentes filhos de pessoas antre elles de muita valia e grande estima. E como el-rey soube de sua vinda mandou que se viesse apousentar em Palmella, onde logo mandou prover os seus muito abastadamente, e a elle servir com officiaes e muyta prata, e todolos outros comprimentos d' estado, e a todos mandou logo dar de vestir de ricos panos segundo suas calidades; e como foy em desposiçam pera poder vir aa corte el-rey lhe mandou a todos cavalos e mulas muito bem concertados. E o dia de sua entrada o mandou receber polo conde de Marialva Dom Francisco Coutinho, e com elle todolos fidalgos e nobre gente da corte; e mandou el-rey que fossem vestidos e concertados o melhor que podessem; e as casas d' el-rey e da raynha foram todas armadas de ricos panos de seda e de ras com estrados reaes e dorseis de brocado; e com el-rei estava o duque Dom Manoel irmam da rainha  e muitos perlados e senhores de titolo e muitos fidalgos todos muy ricamente ataviados e muy galantes. E com a raynha estava o principe seu filho com outros senhores e damas vestidas em grande perfeiçam, porque acabado de Bemohi estar com el-rey avia logo d' hir aa raynha e ao principe.

E Bemohi parecia de ydade de quarenta ãnos, era grande de corpo, muito bem feito e muy proporcionado e muito negro, e a barba comprida e muito bem posta e homem de muito bom parecer e graciosa presença e de muita autoridade. E os que com elle vinham todos muito bem despostos e gentis homens que logo pareciam honrradas pessoas, e os mais desenvoltos homens aa gineta que nunca foram vistos; que corriam a carreira em pee, e em pee correndo o cavallo se viravam e abaixavam e tornavam a levantar. E correndo ho cavallo com as mãos no arçam saltavam da sella no chão e tornavam a saltar encima; e correndo a cavallo lhe punham ovos e pedras pequenas na carreyra e de cima dos cavallos hiam tomando, cousas espantosas, e atee entam nunca vistas e assi outras muito grandes desenvolturas a cavallo e a pee que lhe el-rei muitas vezes fez fazer perante si.

Veo Bemohi muyto bem vestido e entrou na sala em que el-rey o estava esperando e o veo receber dous ou tres passos fora do estrado com o barrete hum pouco fora. E assi o levou ao estrado em que estava hũa cadeira real em que se el-rey nam assentou, e em pe encostado a ella o ouvio. E Bemohi com todos os seus se lançaram ante seus pees pera lhos beijarem, e fizeram mostrança de tomar a terra debayxo delles, e em sinal de sojeiçam e senhorio e muito grande acatamento faziam que a lançavam per cima de suas cabeças; e el-rey com muita honrra e cortesia o alevantou, e per negros lingoas que ahi estavam lhe mandou que falasse. O qual com grande repouso, descrição e muita gravidade, fez hũa fala pubrica que durou muito grande espaço, em que pera seu caso meteo palavras e sentenças tam notaveis que pareciam de muito prudente principe. Nas quaes contou a el-rey com muitos sospiros e lagrimas sua desaventura causada per trayçam que em seu reino contra ele se fizera. Em que declarou que soo el-rey lhe lembrara pera lhe dar socorro, ajuda, e vingança, e sobre tudo justiça. E que esta esperança tinha nelle, porque no mundo elle soo o podia fazer por ser rey tam poderoso, tam nobre, tam justo, e tam piadoso, e tambem por ser senhor de Guine cujo vassallo ele era, pedindo-lhe por tudo socorro, ajuda, piadade e justiça, dizendo que ainda que seu escudo era real por sua gloria e louvor fosse de vitorias de reis ricamente bordado, nam seria agora menos acompanhado com memorias de reys que fezesse. Que as primeiras per ventura seriam beneficios de fortuna, e esta seria a propria bondade e grandeza de seu coraçam. Dizendo mais: "O muyto poderoso Deos sabe que ouvindo eu as tuas virtudes e grandezas reaes, quam acesos foram sempre meus espritos e meus olhos pera te verem, e nam sey porque nam foy. Porque tanto mais me prouvera que fora em toda minha livre prosperidade, quanto este meu destroço e desterro por sua triste condiçam, menos autoriza minha fee e palavras. Mas se assi era de cima ordenado que per outros meos a mim mais favoraveis, eu nam podesse vir e alcançar tanto bem como para mim he ver-te, louvo muyto Deos com minha destruyçam, e ja este contentamento assi me satisfaz, que desta jornada nam yrey descontente". Dizendo mais que se a justiça e socorro que lhe pedia, per ventura contradezia nam ser elle christam, como outras vezes por escusa doutro semelhante requerimento lhe mandara dizer, que ysso nam fizesse duvida nem agora o contradissesse, porque elle e todollos seus que presentes eram, a que nam faleciam nobres e reaes nacimentos, aconselhados em outros tempos de suas santas amoestações, vinham pera em seus reynos e de suas mãos o serem logo. E que soomente a pena e mayor torvaçam que por ysso recebiam, era porque pareceria que forças de sua necessidade mais que de fee lho faziam fazer. E com estas e outras muytas boas rezões sobre sua tençam acabou sua falla.

El-rey lhe respondeo em poucas palavras a tudo com muito grande prudencia,  allegrando-se muyto com sua vinda e muyto mais com seu proposito de querer ser christão, polo qual lhe dava neste mundo e em seu caso esperança de socorro e restetuyçam de seu reino, e no outro salvação de sua alma, e com ysto o despedio.

Foy Bemohi logo falar aa raynha e ao principe ante quem fez hũa fala breve com grande tento e muita descriçam, pedindo-lhe muyto por merce que com el-rey o favorecessem por suas grandes virtudes e nam pollo elle merecer; e a raynha e o principe o receberam com muita honrra e gasalhado, e assi o despediram. E foy levado muy honrradamente assi acompanhado como veo a suas pousadas que tinha muy concertadas, e com tudo o que compria pera elle e pera os seus em muita avondança e elle muy bem servido com oficiaes e cerimonias e muita prata; e logo ao outro dia Bemohi veo falar a el-rey, e soos apartados com a lingoa falaram ambos grande espaço, onde com grande aviso tornou a dizer a el-rey suas cousas. E assi respondeo às que lhe  perguntava muy apontadamente como homem muy sabido, de que el-rey ficou muy contente. E por amor delle ordenou festas de touros, e canas, e momos; e pera as ver teve cadeira no topo da sala defronte d' el-rey, em que estava assentado. E porque elle requeria a el-rey que o fizesse logo christão, ouve por bem que antes que o fosse por ser da seita de Mafamede fosse primeiramente enformado nas cousas da fe e porque tinha conhecimento dalgũas cousas da bribia. Falaram com elle teologos e letrados que ho enformaram e aconselharam na verdade. E ordenaram que vise e ouvisse primeiro missa; e ouvio hũa d' el-rey em pontifical com grandes cerimonias e acatamento, a qual se disse em grande perfeyçam na Ygreja de Sancta Maria de Todollos Sanctos. E Bemohi com todolos seus e com letrados christãos estava assentado no coro, e em levantando a Deos quando vio todos de joelhos e os barretes fora e com as mãos levantadas e batendo nos peitos o adorar, tirou ha touca que tinha na cabeça, e assi como todos com os joelhos no chão e a cabeça descuberta o adorou, dizendo logo com sinaes muy verdadeiros, que ho que naquela ora sentira em seu coraçam tomava por clara prova, que aquelle soo era o Deos verdadeiro pera o salvar. E assi foy dous dias ver comer el-rey, que pera ysso se vestio ricamente; e a salla armada de rica tapeçaria, e com dorsel de brocado e muyta e muy rica prata, e seus oficiaes-mores com reys d' armas e porteyros de maça, e muitos ministrees e danças, trombetas, e atabales, tudo feyto em grande perfeiçam; porque el-rey nas cousas que tocavam a seu estado, era sobre todos muy cerimonial e perfeyto.

E aos tres dias do mes de Novembro Bemohi foy feito christão e com elle seis dos principaes que com elle vieram, aas duas oras da noyte em casa da raynha que pera ysso estava concertada em muita perfeiçam; e foram seus padrinhos el-rey e a raynha, o principe e o duque, e hum comissairo do Papa que na corte andava, e o bispo de Tangere. E o oficio fez ho bispo de Ceyta que o bautizou; e Bemohi ouve nome Dom Joam por amor d' el-rey.

E aos sete dias de Novembro el-rey ho fez cavaleiro, e deu-lhe por armas hũa cruz dourada em campo vermelho, e as quinas de Portugual na bordadura. E no mesmo dia em auto solemne e com palavras de muy grande senhor deu ha obediencia e fez menajem a el-rey. E assi enviou outra ao Papa escrita em latim, em que contou todo seu caso e sua conversaçam aa fee, com palavras de muita devaçam e grandes  louvores d' el-rey; e dos outros seus foram feytos christãos vinte quatro na Casa dos Contos da dita villa muyto honrradamente. E el-rey deu ao dita Bemohi de socorro e ajuda vinte caravellas armadas, e por capitam-mor dellas Pero Vaz da Cunha, que levava por regimento de fazer hũa fortaleza na entrada do Rio de Çanaga a qual avia d' estar sempre por el-rey. Pera a qual fortaleza foram logo muytos officiaes e muyta pedra e madeyra lavrada e todalas outras cousas necessarias. E assi pera hũa ygreja com muytos cleriguos e todo ho que compria em muyta avondança pera laa fazerem christãos muytos da terra; e hia por pessoa principal mestre Alvoro pregador d' el-rey da hordem de Sam Domingos. A qual fortaleza el-rey folguou tambem de mandar fazer, porque tinha por certo que o dito rio bem metido pollo sertam vinha polla cidade de Tambucutum, e per Mombaree, em que sam os mais ricos tratos e feyras d' ouro que dizem que há no mundo, de que toda a Berberia de Levante e Ponente atee Jerusalem se provee e bastece; parecendo a el-rey que ha dita fortaleza pera escapolla e segurança do trato seria neste rio em tal lugar grande segurança pera hos seus e pera todallas mercadarias. E este rio e pouco mays adiante foy descuberto em tempo, e per mandado do ynfante Dom Anrrique primeiro inventor e descubridor desta empresa e conquista de Guinee.

Partio ha dita armada com muyta e boa gente e muyta artelharia, e o dito Bemohi e todos os seus em grande maneyra contente d' el-rey, porque allem do socorro que lhe deu e muitas honrras que lhe fez, tambem lhe fez aa partida muytas merces e dadivas a elle e aos seus. E em fim todas estas obras e despesas e fundamentos de Bemohi acabaram mal. Porque depoys que o dito Pero Vaz com toda sua armada e com ho dito Bemohi, chegou e entrou no dito rio, onde ha dita fortaleza se avia de fazer, tomou sospeytas de trayçam contra ho dito Bemohi, has quaes muytos deziam que nam foram verdadeyras, por a muyta bondade e muyto saber de Bemohi, e assi por yr com tanta rezam muyto contente d' el-rey, e com esperança de ser cedo com sua ajuda restituydo a seu reynado; antes deziam que com o muyto desejo que o dito Pero Vaz tinha de se tornar pera o reyno e receo de morrer laa polla terra ser doentia, sem causa algũa matou ho dito Bemohi aas punhaladas dentro em seu navio. E tanto que ho matou com toda armada, sem fazer detença nem fortaleza se veo logo a estes reynos. E chegou a Tavilla onde el-rey estava, que com a morte de Bemohi foy muy anojado e lhe pesou muyto, e sofreo esta culpa a Pero Vaz, porque avendo de o castigar como era rezam, chegava o castigo a muytos que nisso foram culpados que mereciam grande pena. E el-rey estranhou muito a Pero Vaz matá-lo assi, porque quando elle no dito Bemohi achara algũa culpa ou erros, o devera de trazer a Portugal assi como o levou, pois o tinha em seu livre poder sem perigo algum. E porém a singular condiçam e muita piadade d' el-rey fez sofrer ysto; porque avendo de dar castigo, compria que matasse muitos que nisso foram culpados, o que por sua virtude dissimulou.

Da cerimonia com que el-rey fez o marquês de Villa Real

Capitulo LXXIX

E no anno de quatrocentos e oytenta e nove estando el-rey em Beja no primeyro dia de Março com muita honrra e grande solenidade, fez marquês de Villa Real e conde d' Ourem a Dom Pedro de Meneses que era conde de Villa Real, nesta maneira. El-rey estava ricamente vestido em hũa salla armada de rica tapeçaria e dorsel de brocado e sua cadeira real em alto  estrado muyto bem alcatifado, e el-rey em pee com a mão posta na cadeyra encostado ao dorsel, e com elle o princepe e o duque e muitos senhores e nobre gente todos vestidos de festa. E o marquês veo de suas pousadas a pee acompanhado de muytos honrrados e nobres fidalgos e com trombetas, e atambores, charamellas, e sacabuxas, e muita gente. E diante delle homens do conselho d' el-rey fidalgos de muyta autoridade. E hum trazia nas mãos o estandarte de suas armas com pontas, e outro hũa sua espada muy rica metida na baynha com ha ponta pera cima alta na mão dereyta, e outro hũa carapuça de seda forrada d' arminhos posta em hum bacio de prata grande lavrado de bastiães. E nesta ordem entrou na salla e foy assi tee chegar ao estrado onde estava el-rey; e depois de feytas suas mesuras os oficiaes fezeram calar a casa. E calada o chançarel-mor Joam Teyxeira fez hũa arenga em linguagem dos louvores d' el-rey, e dos grandes merecimentos do marquês e seus muyto assinados e leaes serviços, e assi dos de que decendia, e declarou que el-rey o fazia novamente marquês de Vila Real  e conde d' Ourem. E acabada ha oraçam que foy muyto bem dita el-rey fez chegar o marquez ante si, e tomou ha carapuça do bacio e pos-lha na cabeça; e tomou ha espada e cingio-lha per cima dos vestidos, e da cinta lha tirou nua e com ella lhe cortou as pontas do estandarte e ficou em bandeira quadrada como de principe; e tomou hum anel de hum rico diamante e per sua mão lho meteo em hum dedo da mão esquerda. E acabado ysto o marquês com os joelhos em terra beijou a mão a el-rey e ao principe. E o principe e o duque beijaram a mão a el-rey e  assi todolos outros senhores e pessoas principaes que ahi eram. E o marquês foy aquelle dia convidado d' el-rey, e comeo com elle aa mesa que assi era ordenado em a sala ricamente armada com dorsel de brocado e grande bayxella, com todollos oficiaes e ministros e muitas yguoarias tudo em muita perfeiçam. El-rey estava assentado no meo do dorsel, e o principe à mão dereita, e alem do principe o marquês e da outra parte d' el-rey à mão esquerda estava o duque; e assi comeram todos com grande festa. E acabado de comer e el-rey recolhido, o marquês com muita honrra e muito acompanhado de senhores e nobre gente, muitas trombetas, e atambores, charamelas, e sacabuxas se recolheo a suas pousadas. E depoys ouve  em casa do marquês muitos dias festas de danças e muy abastados banquetes. E como nobre e grande senhor deu algũas dadivas honrradas aos oficiaes que fizeram seus despachos.

Do que el-rey disse por Dom Joam de Sousa

Capitulo LXXX

Dom Joam de Sousa antre muitas boas callidades que teve foy valente cavaleiro e muito bom capitam e singular cavalgador da gineta. E em Castella correndo touros em Arevolo perante el-rey e a raynha cortou com hũa espada a cavallo a hum grande e bravo touro dhum soo golpe o pescoço que logo cahio morto no chão. E aqui em Beja andando aos touros a cavalo perante el-rey e ha raynha e o principe e todas as damas, per duas vezes matou dous bravos touros de hũa lançada só cada hum, que em lha dando cayram mortos sem mays bolir. E estando el-rey hum dia aa mesa falando nisso e gabando muyto estas sortes, disse ho conde de Borba que eram acertos; e el-rey lhe respondeo: "Verdade he, conde, que sam acertos, mas nunca hos  acerta senam Dom Joam"; e todallas cousas boas favorecia e gabava desta maneyra.

De como foy ho principio e fim

da Graciosa

Capitolo LXXXI

Neste anno de mil e quatrocentos e oytenta e nove polo muyto desejo que el-rey tinha da conquista d' Africa, e assi polla cruzada que pera ysso lhe fora concedida de que ja tinha recebido muyto dinheiro, cuidando muitas vezes como melhor o poderia fazer, e mais a serviço de Deos e acrecentamento de sua honrra e estado, ordenou de fazer hũa vila com sua fortaleza em Africa polo rio acima de Larache, com fundamento que dali com seus fronteyros e gente d' armas que sempre nella teria, e com ajudas das outras cidades e vilas que lá tinha e aos mouros foram tomadas, se faria muyta guerra a Feez, e Miquinez, Alcacer Quebir e toda aquela terra de que muita parte se poderia per força conquistar, ou ao menos constranger a pagarem grandes e ricos tributos. E depoys de ter mandado muytas  vezes ver o dito rio e sitio da terra determinou fazer a dita villa; e mandou logo pera ysso fazer prestes sua armada, com muita gente, muytos oficiaes, muita artelharia, muita pedra, e madeyra lavrada, muyto tijolo, e cal, e ferramentas, e todallas cousas necessarias em grande avondança. E no começo do mes de Julho mandou logo partir a dita armada, e por capitam-mor dela Gaspar Jusarte, a fazer e fundar a dita villa a que mandou poer nome a Graciosa. E nam levava muytos navios nem gente sobeja por lhe parecer que por entam nam seria mais necessaria, crendo que em quaesquer afrontas que dos mouros sobreviessem se poderia pollo rio socorrer e prover, cuydando que o dito rio se navegaria em todo tempo com caravelas e navios. E pera milhor aviamento e socorro de tudo, e mais em breve se poder fazer, el-rey com a raynha e o principe e toda sua corte se foy a Tavilla onde cada dia de tudo o que se passava recebia muytos avisos. E pera se a dita fortaleza logo fazer mandou el-rey muyta e honrrada gente de sua corte e começou-se com muyta deligencia e pressa a lugares de pedra e cal, e a lugares de madeira e paliçadas fortes pera que com mays brevidade fosse cercada.

E sendo disso avisado Moley Xeque rey de Fez junto de cujas  terras ha dita fortaleza se fazia, porque do tempo da tomada d' Arzila nas pazes que o dito Moley Xeque fez, a dita terra com outras ficou com Portugal segundo nas ditas pazes se contém, consirando o dito Moley Xeque que se logo no principio o nam empedisse que seria causa de sua perdiçam, fez logo sobre isso ajuntamento geral com os alcaides e principaes de seu reino, e com os alarves e enxouvios e colotos seus comarcãos. E todos sem algũa deferença acordaram de virem cercar como logo cercaram a dita villa em que el-rey de Fez veo em pessoa e com ele Moley Hea seu filho mayor, e com quarenta mil de cavallo e outra muyta gente de pee sem conto poseram de todalas partes cerco aa dita villa; e tambem não leyxaram livre o dito rio de hũa parte nem da outra contra a foz, por que da terra empedissem aos christãos qualquer socorro que por elle lhe fosse. E por muita gente dos mouros começar a vir sobre a dita fortaleza, e assi por o dito Gaspar Jusarte adoecer, e a causa ser de mais peso do que se cuidou, mandou el-rey a Dom Joam de Sousa do seu conselho pessoa muyto principal e muyto valente cavalleiro, com muyta mays gente pera na dita fortaleza ficar por capitam. E com a gente que levou e a que na dita fortaleza estava, forom por todos mil e quinhentos fidalgos e cavaleiros todos da casa e livros d' el-rey e a frol de toda a corte. E depoys crecendo mais o poder dos mouros, e sendo jaa el-rey enformado no certo do segredo do rio e do perigoso sitio da dita fortaleza, por lhe certificarem que em nenhũa maneyra se podia soster, ordenou mandar Fernam Martinz Mazcarenhas capitam dos ginetes e da guarda, e Dom Diogo d' Almeyda que depois foy prior do Crato, e Dom Martinho de Castelbranco veador de sua Fazenda que depois foy conde de Villa Nova, todos tres homens de muita autoridade e valentes cavalleiros e muy aceitos a el-rey, pera com sua tornada depois de tudo muito bem verem, se enformar delles e determinar o que ouvesse de fazer se soste-la ou deixá-la. E sendo elles na dita villa da Graciosa, veo sobr' elles Moley Xeque rey de Fez com todo seu poder; e elles parecendo-lhe que pollo que cumpria a suas honrras e a serviço d' el-rey nam deviam de deixar o dito cerco, ficaram lá e responderam a el-rey por escripto. No qual tempo Dom Joam de Sousa capitam da dita villa adoeceu aa morte, de maneira que nam podia acudir a cousa algũa que comprisse, e por nam morrer por mingoa de fisicos e cousas necessarias a sua saude, ordenaram todos que se viesse logo curar a Portugal. E porque Dom Joam estava de maneyra que nam podiam al fazer, vendo que compria ficar capitam na dita villa, e como muito prudente vendo que os ditos Dom Diogo, Dom Martinho, e o capitam Fernam Martinz eram taes pessoas e de tanto merecimento que deixando o carrego a hum os dous ficariam agravados, lhe fez sobre isso hũa fala e disse que antre todos deytassem sortes quem ficaria por capitão, o que assi fezeram e a sorte cahio em Dom Diogo d' Almeyda, a que logo Dom Joam entregou a villa e se veo curar ao reino, e todos os outros sem algũa deferença o ouveram por capitam. E os mouros vendo a pouca gente dos christãos em comparaçam da sua, e vendo o pequeno repairo da vila tinham por certo que nos primeiros combates que muy rijamente lhe dessem logo per força os tomariam com mortes e cativeiros de todos. E com esta esperança combateram a villa muyto fortemente per muitas partes; e vendo o grande dano e estrago que os christãos nelles fizeram com suas armas e furiosos tiros de fogo, e o forte repairo que na fortaleza tinham feito pera sua defensam, e conhecendo a bondade e grande valentia de seus corações que tinham nam somente pera se defender, mas ainda pera lhes offender, jaa desesperados deste primeiro fundamento, determinaram pera os poder vencer poer-lhe o dito cerco mais afastado como logo poseram, e em hũa parte  do rio que abaixo da fortaleza dava vao, o atravessaram com hũa muyto forte estacada dobrada e chea toda de cestos de pedra antre hũa e a outra pera que ho rio per navios grandes nem per barcas pera cima contra ha villa se nam podesse navegar, com que os christãos de todo fossem de socorro por agoa desesperados. E por defensam desta estacada por que a nam desfizessem poseram junto com ela de hũa parte e da outra do rio muitas bombardas grossas e outros tiros de fogo, os quaes eram sempre guardados de gente sem numero, fazendo com isto suas contas que os christãos de cansados e vencidos de doenças e fome, e nam tendo esperança de socorro se dariam e deixariam captivar. E como os da villa disto foram certificados, ouve antre elles algũa confusam, e foy aynda mais quando souberam que Ayres da Silva camareyro-moor d' el-rey, que era capitam-mor da frota que estava na foz do rio, com todas suas forças e deligencias que nisso pôs, nam podera desfazer nem chegar aa dita estacada polla grande resistencia dos mouros. E porém porque os mais eram fidalgos e de esforçados corações nam cayram em desmayo nem fraquezas, mas cobraram vivo esforço com que se fortaleceram e proverão em seus mantimentos e provisões pera se defenderem e manterem o mais tempo que  fosse possivel, sendo muito confiados na bondade e grandeza d' el-rey que quando comprisse em pessoa os socorreria.

        E de todo este caso foy el-rey logo avisado em Tavila com que foy posto en grande pensamento; porém como rey que nas cousas da fortuna fora muitas vezes vitorioso e nunca vencido, deu logo grande aviamento a mandar mais navios e mays gente, com mais armas e artelharia pera com Ayres da Silva cometerem de desfazer per força a estacada e repayros do rio, pera hũa vez as pessoas dos cercados ao menos se salvarem, que era o que sobre tudo mais desejava. Porque polla enformaçam que ja a este tempo tinha do lugar e a terra ser naturalmente doentia e o rio se nam poder em todos tempos navegar atee a dita fortaleza, ja tinha assentado que em caso que o dito lugar fora feyto e nam cercado de o mandar despovoar e derribar.

De como el-rey determinou d' hir em pessoa e do que disse

a Dom Joam d' Abranches

Capitolo LXXXII

E tanto que os navios de socorro partiram, teve el-rey conselho geeral com todos os que presentes eram da maneira que socorreria aos cercados, porque com todo seu poder determinava os livrar. E todos quantos eram sem ficar algum lhe aconselharam que em nenhũa maneira passasse em pessoa por ser ja na entrada do Inverno e a costa ser muy brava e perigosa e muyto maa desembarcaçam e outros muytos perigos, do que el-rey ficou triste, e sem dar reposta algũa do que queria fazer.

E em se levantando do conselho lhe disserão que aa porta estava Dom Joam d' Abranches, que entam chegava de Lixboa pera o servir no dito socorro. E porque era muyto valente cavaleyro e sabia muito na guerra ho mandou logo entrar e fez tornar assentar todos e pôs Dom Joam junto de si. E deu-lhe conta da nova que lhe viera, e como tinha determinado de com todo seu poder socorrer aos cercados, e como todos os que presentes estavam por muitas rezões lhe aconselhavão que em nenhũa maneira passasse em pessoa; e que primeiro que a isso desse sua reposta, queria tomar seu parecer como d' omem que tam bem sabia a guerra e era muyto bom cavaleyro; e Dom Joam lhe respondeo: "Senhor, beijo as mãos a vossa alteza por esta honrra que me faz e as palavras que me diz; e eu, senhor, sam em contrayro do que a todos parece; e meu parecer he, que tanta e tam nobre gente  como vossa alteza quer mandar, nam fieis, senhor, de ninguem senam de vossa pessoa, porque soo com vos verem todos morreram diante vós, e sem vossa vista nam sey o que cada hum fara, e mais a tamanha necessidade de tanta e tam nobre fidalguia, he rezam que vossa alteza por seu singular esforço e grandissimas vertudes lhe socorraes como de tal rey se espera"; e el-rey folgou muito de o ouvir e muito ledo lhe disse: "Dom Joam, eu tinha ja ysso determinado e porque todos eram contra mim nam tinha dado minha reposta; e agora que vos tenho por minha parte digo que em toda maneyra ey-de passar em pessoa. E todos me perdoay por nam tomar vossos pareceres, que antes que Dom Joam viesse o tinha assi asentado; e se perigos passar em muito mayor perigo estam muitos fidalgos e cavaleyros por me servirem, os quaes eu muito estimo; e tambem Nosso Senhor dara sua ajuda pois que he por seu serviço e contra os ĩmigos de sua sancta fee catolica"; e com ysto se levantou.

E como principe muy esforçado, vertuoso, e piadoso por salvar os seus, determinou logo o mais em breve que podesse lhe socorrer em pessoa. E per dadivas que mandou dar a mouros lhe levaram recado aos cercados como elle hia logo em pessoa socorrê-los, os quaes na soo confiança  de sua palavra que  aviam ja por obra muy verdadeira cobraram hum novo esforço e muita esperança de cedo serem remedeados. El-rey mandou logo com muita trigança fazer per todo o reyno apercebimentos jeraes, e pera tempo muito breve e com palavras de muita obrigaçam em especial, afirmando que hia em pessoa que nam foy necessario fazerem-se costrangidas apuraçoeẽs, porque os muy velhos e os muito moços que por suas ydades eram disso escusos, se convidavão e esquecidos de suas forças e fazendas se faziam prestes, pera hyr com elle e nam ficarem em Portugal, todos com muy verdadeira vontade de o servirem até a morte. E desta determinaçam que el-rey tomou de em toda maneyra socorrer em pessoa e descercar seus fidalgos, criados e cavaleyros, foy logo el-rey de Feez avisado. E por lhe jaa começar de fogir a gente de seu arrayal escarmentados muytas vezes de cruas mortes e feridas, e principalmente temendo muito a passagem d' el-rey, parecendo-lhe que vendo-se com elle em batalha seria destruydo, em vez de fazer guerra cometeo paz ao capitão-mor da frota Ayres da Silva que em nome d' el-rey estava, de que lhe enviou hum assento, per que lhe prazia dar lugar aos christãos cercados na Graciosa a leixassem, e que com todallas armas, artelharias, cavallos, e tudo quanto tevessem sayssem e se fossem livres e seguros, e que el-rey de Portugal lhe confirmasse a paz que el-rey Dom Afonso ao tempo da tomada d' Arzila com elle firmara.

O qual assento Ayres da Silva logo aceitou, e sobre elle manteve aos mouros tregoas atee o noteficar a el-rey, que logo com muita brevidade lho fez saber, e foy delle muy allegre e contente, porque pollo dito assento da paz nam se tolhia poder cercar e tomar quaesquer villas e lugares do dito reyno de Fez que se pera ysso oferecessem; e per elle sem perigos nem outras despesas, cobrava sua gente cercada que sobre tudo desejava. E pera comfirmaçam e aprovar o dito assento, enviou logo Ruy de Sousa e Dom Alonso de Monroy mestre d' Alcantara, e Diogo da Silva de Meneses ayo do duque, que depois foy conde de Portalegre todos do seu conselho e homens de muyta autoridade, muy esforçados, de muito bom saber, e de que muyto confiava. Os quaes com Ayres da Silva juntamente o confirmaram e seguraram per escritura e contrato feyto em Xames, a vinte sete dias d' Agosto do ãno de mil e quatrocentos e oytenta e nove. E dadas de hũa parte e da outra seguras arrefeẽs, os mouros que no dito cerco estavam se partiram, e os christãos cercados se recolheram aa frota com salvamento de suas pessoas e fazendas e artelharias, cavallos, e armas, e quanto na fortaleza tinham; e com toda a frota se vieram a Tavila, onde el-rey e toda sua corte os receberam com muito amor e prazer e muita honrra. E el-rey mandou logo desperceber a gente do reyno, e lhe agradeceo muito sua lealdade e grande brevidade e muito amor e vontade com que se apercebiam pera o servir que certo foy muyto pera estimar.

E de Tavilla foy el-rey com a raynha e o principe e o duque andar pollos lugares do reyno do Algarve provendo, e remedeando algũas cousas que pera bem e assossego daquelle reyno e moradores delle compriam em que muyto aproveitou. E acabado veo-se aa cidade d' Evora, onde entrou a sete dias de Novembro deste ãno de oytenta e nove. E na cidade ouve rebates de peste que el-rey sofreo e remedeou por soster e conservar a saude da cidade em que tinha ordenado ser o recebimento e festas do casamento do principe seu filho.

Do que el-rey passou com Pero Pantoja  em Tavila

Capitollo LXXXIII

No tempo do socorro da Graciosa por se el-rey achar em Tavilla sem dinheiro, por lhe tardar de Lixboa da Casa da Mina onde por ele tinha mandado, e comprir fazer-se logo prestes hum navio pera hir com hum recado, mandou dizer a Pero Pantoja que lhe gradeceria mandar-lhe emprestar por sete ou oyto dias mil justos, que eram seiscentos mil reis; os quaes lhe Pero Pantoja logo mandou e lhe ofereceo muito mais que tinha, pedindo-lhe muito por merce que o nam tomasse doutrem senam delle pois quanto tinha sua alteza lho dera, o que lhe el-rey muito gradeceo. E dahi a cinco dias veo o dinhero que el-rey esperava, e mandou logo dar a Pero Pantoja setecentos mil reis. E elle os nam quis tomar e se veo logo agravar a el-rey dizendo que pois que servia sua alteza com tam verdadeyra vontade, e tinha pera o servir muito de que lhe elle fezera merce, que como lhe dava ganho do seu dinheyro em cinco dias que o tevera, que nam se faria mais a hum mercador cobiçoso. E el-rey lhe respondeo: "Ora pois que vos agravais, tomay oitocentos mil reais, e se mais falais palavra tomareis novecentos mil"; e mandou-lhe dar oytocentos mil reis, emprestando-lhe seyscentos  mil; que desta maneira agradecia os serviços que lhe faziam, e tambem por ysso quando lhe compria dinheyro sem interesses lho emprestavam.

Do que el-rey fez a dous fidalgos que vieram d' Arzilla

Capitolo LXXXIV

Estando em Arzilla por capitão Dom Joam de Meneses que depois foy conde de Tarouca e prior do Crato, fazia muita honrra aos homens, e Dona Joana de Vilhana sua molher fazia tanto gasalhado e tanta honrra a todos que era disso lá e cá muyto louvada, de que el-rey lhe mandava muitos agradecimentos. Vieran-se dous fidalgos honrrados d' Arzila onde estavam por fronteyros descontentes do capitam sem causa, e quando beyjaram a mão a el-rey os favoreceo e fez gasalhado, perguntando-lhe como vinham e pelas cousas de laa, e pedio-lhe ha carta do capitão como todos custumavam trazer; e elles lhe disseram que a não traziam, e el-rey lhe disse; "Segundo isso parece que quando vos partistes nam falastes aa  estalajadeyra que tam bem agasalha todos, ora vos tornay logo e nam venhais de lá sem carta de Dom Joam". O que assi fezeram sem detença algũa, ysto porque sem causa se vieram sem lhe falar, e queria soster a honrra de seus capitães.

Do que el-rey disse a Ruy d' Abreu, e a Duarte do Casal

Capitolo LXXXV

Ruy d' Abreu alcaide-moor d' Elvas era homem que el-rey estimava e fazia muita honrra por ser muito bom cavaleyro e homem de que el-rey confiava; e falando-lhe hum dia Ruy d' Abreu em hum seu requerimento se agravou delle, e el-rey lhe disse: "Ruy d' Abreu, tomay hũa cousa de mim como d' amigo, quando pedirdes merce nam lembreis nenhuns agravos"; que nam se contentava fazer merce aos homens, mas ainda lhe ensinava como a aviam de pedir. E Duarte do Casal era valente homem de sua pessoa, e mandou requerer hũa cousa a el-rey e nam lhe falava nisso; e vindo el-rey hum dia pera comer em Evora na sala o vio e perante muitos o chamou e lhe disse alto: "Duarte do Casal, se vós tendes mãos porque nam tendes lingoa pera me falar pois eu folgo de ouvir quem as tem? Ora pois que tendes mãos tende lingoa"; e estas honrradas palavras lhe disse perante muytos porque era bom cavaleyro.

Do que el-rey disse a Fernam Serrão

Capitulo LXXXVI

Quando el-rey entrou na cidade de Lixboa a primeyra vez, foy hũa muyto grande entrada e solene recebimento de muito grandes festas e muytos e grandes gastos e despesas, cousa que foy nomeada por grande, e ouve ahi homens que gastaram muito; e hum Fernam Serram cavaleyro cidadam de Lixboa homem honrrado, vendeo duas quintas e gastou tudo em atavios e vestidos, antre os quaes fez hum gibam borlado de perlas e pedraria que valia muyto. E el-rey porque fora demasia pesou-lhe e teve-lho a mao recado e por nam parecer a alguem que elle favorecia e folgava dos homens lançarem o seu a longe, hum dia aa mesa lhe disse alto perante todos: "Fernam Serram, quantas quintas faziam hum gibam?"; que  nam deixava passar cousa mal feita sem reprensam ou castigo.

Do que el-rey fez a Diogo d' Azambuja quando casou a sua filha

e a Pero de Melo

Capitolo LXXXVII

Diogo d' Azambuja era homem que el-rey tinha em muito boa conta e estima e a que tinha muyto boa vontade e fazia muita honrra e merce; e quando casou sua filha Dona Cezilia com Francisco de Miranda, foram recebidos com muita honrra perante el-rey e a raynha em hũa sala com muyta gente e grande seram, de danças e muitos galantes; e em nos recebendo no estrado, Diogo d' Azambuja era muyto manco de hũa perna que casi lhe fora cortada nas guerras, e estava junto com os degraos, e com a muyta gente que chegava, era muito mal tratado e tanto que se nam podia ter; e el-rey o vio e veo aa borda do estrado e tomou-ho polla mão e sobio-ho em cima, e disse-lhe alto que o ouviram muitos: "Salvay-vos quaa e chamem-vos como quiserem"; e assi esteve com muita honrra perante  todos em cima no  estrado que he lugar de reis e principes.

E Pero de Mello fidalgo de sua casa, era muito bom cavaleyro e muito desmanhoso; e hum dia levando de beber a el-rey aa mesa, hia-lhe tremendo a mão, e em querendo tomar a salva cahio-lhe o pucaro com a aguoa no chão de que ficou muy corrido, e algũas pessoas principaes começaram de ryr, e el-rey disse alto: "De que vos rides? Nunca lhe cahio a lança da mão ainda que lhe cahisse o pucaro"; de que Pero de Mello ficou muito contente e tornou-lhe a dar de beber.

Do que el-rey fez ao capitão da Ylha da Madeyra

Capitolo LXXXVIII

Simão Gonçalvez da Camara capitam que foy da Ylha da Madeyra em vida de seu pay Joam Gonçalvez da Camara sendo elle erdeyro da casa que de seu pay herdava, chamava-se Symam de Noronha que era o apelido de sua mãy. E el-rey tanto que o soube mandou-lhe logo dizer que naquella ora se chamasse do apelido de seu pay pois delle avia de herdar tam honrrada casa, senam que passaria a soceçam della em Pero Gonçalvez da Camara seu segundo yrmão. Polo qual Simão de Noronha se chamou logo Simão Gonçalvez da Camara dahi atee que faleceo, e foy logo beijar ha mão a el-rey pollo bom ensino que lhe dera e el-rey folgou muyto com ysso e lhe fez honrra e favor.

Do que el-rey fez a Joam Alverez o Gato

Capitulo LXXXIX

Hum João Alverez o Gato cavalleyro da casa d' el-rey era filho de hum pobre almocreve, e por ser grande pensador e concertador de cavalos e mulas veo a ter e valer muito e ser honrrado e estimado de todos e d' el-rey favorecido. E hindo el-rey hum dia de Evora pera Estremoz hia Joam Alvares em hum muyto fermoso ginete muy ataviado, e elle muyto bem vestido e concertado com muytos servidores, e no caminho topou com o pay que hia com suas bestas carregadas. E em vendo o filho tirou-lhe o barrete e fez-lhe hũa grande mesura, e elle nam quis falar ao pay e fez que o nam via, porque se desprezava  delle e tendo fazenda nam o ajudava pera que deixasse tam bayxo oficio. Foy ysto dito a el-rey e ouve disso tamanho desprazer que nunca mais quis ver o dito Joam Alvarez, e lhe mandou loguo dizer que nam parecesse mais diante delle, porque o homem que desprezava seu pay e lhe nam fazia bem podendo-o fazer nam era pera se fiarem delle. E o dito Joam Alvares se foy logo enojado a hũa sua erdade onde dahi a pouco acabou mal que o mataram huns seus lavradores.

Da merce que el-rey fez a Joam Goo

Capitulo XC

Foy el-rey hum dia de Evora a ouvir missa a Nossa Senhora do Espinheiro, e por fazer grande calma e muyto poo e yr muyta jente com elle, se recolheo depois da missa dentro no moesteiro, e mandou dizer a todos que se fossem a comer que elle queria ficar soo. Foram-se logo como mandou e despois de serem ydos el-rey sayo com muyto poucos senhores e pessoas principaes que com elle ficaram. E quatro cavaleiros em que entrava hum que se chamava Joam Guoo nam se forão e vinham detras delle e fizeram poo.  E el-rey virou atras e disse-lhe: "O Sancta Maria, se mandey a todos que se fossem a comer porque vos não fostes e me vindes enchendo de poo?"; respondeo o Joam Goo e disse: "Senhor, os que tinham de comer se foram, e os que aqui vem nam tem que comer"; e el-rey lhe disse: "Prometo-vos, Joam Goo, que eu vo-lo dee e muito cedo"; e logo aquelle dia aa tarde o mandou chamar e lhe deu a comenda da Freirea em Evora e aos outros fez merce.

Da honrra que el-rey fez a mestre Antonio

Capitolo XCI

Mestre Antonio sororgiam-mor destes reinos foy judeu, e quando se tornou christão, el-rey folgou muito e lhe fez muita honrra, porque lhe tinha boa vontade e era bom letrado. E quando foy baptizado el-rey foy com elle aa porta da ygreja, e o levou polla mão com muita honrra e muito bem vestido de vestidos ricos que lhe el-rey deu de seu corpo e foy seu padrinho. E depoys de baptizado quando lhe quiseram poer o capelo nam vinha no bacio por esquecimento. E querendo yr por hũa  toalha pera della se tirar, disse el-rey: "Pera cousa tam sancta nam he necessario tanto vagar"; e perante todos desabotoou o gibam e tirou a manga da camisa fora, e dela rompeo e tirou de que lhe poseram o capello. Que desta maneira honrrava os que se tornavam aa fe de Nosso Senhor Jesu Christo.

Do que el-rey disse por dous ladrões que enforcaram em Portel

Capitolo XCII

Mandou el-rey hũa grande alçada de certos desembargadores à comarca d' Alentejo, e em Portel andavão dous yrmãos a saltear a cavallo e roubavam pola comarca muitas pessoas. E eram tam valentes homens e andavam em muito bons cavallos e armados de maneira, que as justiças nam ousavam de os cometer por cousas que ja tinham feytas sobre os quererem prender. Souberam os d' alçada como estavam em Portel, e com muita gente deram sobre elles; e fizeram em sua prisam tantas finezas que se falou muito nisso, que nunca os poderam prender senam depois de muyto  feridos e tam cansados que se nam  podiam bolir; e elles tinham feridos e desbaratados tantos, que pareciam que nam eram homens senam fortes bestas bravas. Foram logo ambos enforcados, e quando os d' alçada escreveram o caso a el-rey pesou-lhe muito de serem mortos, e disse que nam quisera que mataram taes homens, porque muyto melhor fora perdoar-lhes e mandá-los aos lugares dalem pois que tam valentes eram, que lá fizeram muito serviço a Deos e a elle. E aos d' alçada escreveo que taes homens nam deveram de condenar e justiçar sem primeiro lho fazer saber. Tanto estimava os homens que em qualquer cousa faziam aos outros avantajem, que sendo estes ladrões salteadores por serem muyto esforçados e forço­sos lhe pesou porque os mataram e lhes quisera dar a vida.

Do que el-rey escreveo ao conde de Borba sobre Fernam Caldeira

Capitolo XCIII

Hum Fernão Caldeira contador que depois foy d' Arzilla muito bom cavaleiro de sua pesoa, tinha hũa sua yrmaã solteira em Arronches e tendo-a casada honrradamente  em Lisboa foy lá pera a trazer; e dando-lhe conta ao que hia e como a tinha casada, ella lhe disse que nam podia ser, porque era casada com hum cavaleiro dahi homem honrrado que se chamava de Sequeira. Do que Fernam Caldeira ficou agastado, e foy logo em busca delle e lhe disse o que sua yrmaã lhe dissera, e lhe pedio por merce se assi era que a recebesse e que elle lhe daria o casamento que fosse rezam. E o Sequeyra lhe disse que nam era casado com sua yrmaã nem na conhecia nem avia com ella de casar. E Fernam Caldeira lhe tornou a dizer: "Ora peço-vos muito por merce que pois atee aqui a nam conheceis, que daqui em diante a nam conheçaes", e assi se apartaram. Teve Fernam Caldeira tal espia sobre ele, que dahi a muito poucos dias soube como jazia com a yrmaã. E soo aa mea-noite fez hum buraco em hũa parede, por onde entrou com elles e os matou ambos o cavaleiro e a yrmaã, e se acolheo logo a Castella e de Castella se passou a Arzila. Foy el-rey disso sabedor e quando soube que era em Arzilla, escreveo logo hũa carta ao conde de Borba em que lhe dezia: "Fernam Caldeira he lá por fazer hum feito d' omem, agardecer-vos-ey muyto honrrarde-lo e favorecerde-lo, porque de toda a honrra que lhe fezerdes eu receberey muito prazer e contentamento pois polla honrra fez tal feyto".

Do que el-rey fez a Gomez de Figueyredo provedor d' Evora

Capitolo XCIV

Hindo el-rey hum dia passeando a cavallo em Evora, veo a elle hum judeu, e deu-lhe capitolos de Gomez de Figueredo provedor da comarca, que fora muito privado e camareiro d' el-rey Dom Afonso seu pay. E el-rey porque vio que ouviram o que o judeu dezia por dissimular acenou aos moços d' estribeira que o arrepelassem, e disse alto: "Trazia-me capitolos de Gomez de Figueredo". E depois só secretamente mandou chamar o judeu e vio os capitolos; e por ser cousas de que ouve desprazer, dahi a muytos dias mandou chamar Gomez de Figueiredo e soo o reprendeo muito e lhe disse que se nam fora feitura de seu pay, que ele o castigara bem alem de lhe tirar o officio. Porém por nam dizerem que hia contra has cousas d' el-rey seu pay teria nisso temperança. E lhe fazia a saber que ele lhe tinha tirado seu oficio pollo nam servir nele aa sua vontade; e por nam cuydarem que o desonrrava nem lho tirava por descontentamentos que delle tevesse lhe fazia merce doutro  muito melhor e de mais honrra que era veador da casa do principe seu filho, que lhe logo deu sem ninguem saber que el-rey fora delle descontente, e tudo por ser feytura d' el-rey seu pay. E depoys da morte do principe por o dito Gomez de Figueredo ser muy honrrado e muito bom cavaleiro e homem de muito bom saber lhe tornou el-rey com grandes esconjurações a dar o dito oficio.

Da merce que el-rey fez a hum desembargador

por dar hũa sentença contra ele

Capitolo XCV

Tendo Joam Roĩz Paaes contador-mor de Lisboa hũa demanda em que muito hia com el-rey, se louvaram ambos em juyzes os principaes letrados que na Relaçam avia e pessoas virtuosas, que eram o doutor Ruy Boto chanceler-mor e o doutor Fernam Roĩz adayão de Coimbra, os doutores Joam Pirez e Ruy da Grãa, e o vigairo de Tomar, que depois foy bispo da Guarda e prior de Sancta Cruz, e todos deram sentença contra el-rey. E quando lho foram dizer, disse que folgava muito, e pois que todos foram contra ele que seria por lhe nam acharem  justiça. E perguntou qual fora o que primeiro votara; disseram-lhe que o vigairo de Tomar que vivia com o duque. O qual logo mandou chamar, e ele vindo com receo, el-rey muito alegre com palavras e geito de muito contente lhe disse: "Vigayro, eu vos tive sempre em muyto boa conta, e agora vos tenho em muito melhor por serdes o primeiro que votastes contra mi, que os bons e virtuosos assi o ham-de fazer quando eu nam tiver justiça; e para verdes quanto com isso folgo e vo-lo agardeço, hi falar com Antam de Faria e elle vos dara dozentos cruzados, de que vos faço por ysso merce pera ajuda de vossa despesa". O vigairo lhe beijou a mão e teve muito em merce, e foy a Antam de Faria que lhos logo deu.

Do que el-rey fez a Alvoro Mazcarenhas sobre outra demanda

Capitolo XCVI

Andando o precurador dos feitos d' el-rey em demanda com Alvoro Mazcarenhas sobre cousas da Mina onde estevera por capitam, estes mesmos doutores foram juyzes da causa e deram sentença contra el-rey, e o doutor Fernam Roĩz se foy a ele e lhe dise: "Senhor,  de-me vossa alteza alvissara que julgamos contra vós". El-rey disse que lha prometia, e mandou a todos que tornassem a ver o feito outra vez se per ventura era em obrigaçam a Alvoro Mazcarenhas por aver hum anno que o trazia em demanda. Viram-no todos e depois de bem visto lhe disseram que lhe não era obrigado em cousa algũa por quanto tevera rezam de alegar; e el-rey lhe fez todavia por isso merce de trinta mil reaes de tença.

Do que el-rey sobre outro feito passou

com o doutor Nuno Gonçalvez

Capitolo XCVII

Estando el-rey hum dia con desembargadores sobre hum feito seu depois de lido e ha casa despejada pera darem seus votos, disse o doutor Nuno Gonçalvez: "Senhor, nós nam podemos aqui votar neste feito"; perguntou el-rey porquê; disse ho doutor: "Porque vossa alteza he parte nele e está presente". El-rey levantou-se em pee avendo disso desprazer e disse-lhe: "Isso me aveis vós de dizer, como em mi se entende isso, se eu sam a mesma justiça como ey-de ser parte?"; respondeo o doutor: "Senhor, que vossa alteza seja a mesma justiça como o feito he convosco vós soes parte";  e el-rey com payxam passeou hum pouco polla casa sem falar nada. E tornou logo aa mesa, e encostado nella em pee disse: "Doutor, eu vos agradeço muito o que me dissestes e fizeste-lo como muito bom homem que soes. E a mi me parece assi como a vós que nam devo de ser presente e por isso me vou e todos julgay segundo vossas conciencias, e sayo-se logo e deyxou-os soos.

De hum homem a que el-rey deu a vida sendo julgado à morte

Capitolo XCVIII

Em Evora antes das festas do casamento do principe Dom Afonso, foy el-rey aa Relaçam hũa sesta-feira como sempre fazia; e na mesa grande era julgado hum homem à morte por matar outro e foy trazido diante d' el-rey; e por saber que era dado sentença que padecesse disse: "Senhor, quatorze annos há que sam preso e em quanto tive fazenda pera peitar sempre me alongaram meu feito e agora que ja nam tenho cousa algũa me julgaram à morte; e se entam me mataram eu soo padecera, e minha molher e filhos ficara-lhe fazenda pera se manterem;  e agora, senhor, matam todos poys tudo gastey por alongar a vida. Olhe vossa alteza ysto com olhos de piadade e de tam virtuoso rey como he". El-rey ouvindo as palavras ficou muyto triste e vio o começo do feito; e quando achou que dezia verdade e que avia quatorze annos que era preso disse aos desembargadores: "Melhor merecieis vosoutros todos ha morte que aqueste pobre homem, mas quem ha-de matar tantos?"; e chamou entam o homem e disse que lhe perdoava livremente, e que ele mandaria à sua custa por perdam das partes; e assi o fez e o mandou logo soltar; e disse-lhe que em quanto nam viesse o perdam que se fosse aas obras dos paços que ahi lhe dariam cada dia dous vintens; e o homem lhe beijou a mão e o fez assi. E el-rey dahi a tres dias foy ver as obras e vio lá o homem com hũa muito grande barba que avia quatorze ãnos que nam fezera, e disse-lhe: "Nam soes vós o a que eu dey a vida?"; respondeo: "Senhor, si"; disse el-rey: "Poys porque nam fazeys essa barba?";e o homem disse: "Senhor, por nam ter dinheiro que dar a quem ma faça". E el-rey lhe mandou dar ahi logo dous mil reaes e disse-lhe: "Ora yde logo fazer a barba e nam vos veja eu mais com ela"; e o homem se lançou a seus pes pera lhos beijar chorando com prazer e rogando a Deos por sua vida e seu estado.

De hum moço a que el-rey deu a vida

sendo tambem julgado aa morte

Capitulo XCIX

Neste mesmo tempo em Evora julguaram aa morte hum moço de desassete ãnos por matar hũa sua yrmãa e hum homem que com ella achou. E el-rey estando na Relaçam quando lhe leram a sentença mandou vir o moço diante si, e perguntou-lhe porque os matara; disse o moço: "Senhor, aquele homem por eu ser muito seu amigo o levava a casa de meu pay e ele começou d' atentar em minha yrmaã; e vendo eu que andava apos ella, lho disse muitas vezes a ambos e pedi que nam curassem disso, e ambos me desprezavam e davam pouco por mi; e hum dia por acerto e minha maa ventura os topey ambos metidos em hũa  mouta, e foy tamanha a dor e paixam que disso ouve, que com hũa azagaya que levava na mão os matey ahi ambos"; disse-lhe el-rey: "E nam sabias tu que se te prendessem que te aviam por ysso de enforcar?"; respondeo: "Senhor, si, mas antes me quis aventurar a ysso que sofrer tamanha desonrra, e a paixam me fez esquecer de tudo". E el-rey movido de piedade e contente das palavras do moço disse-lhe: "Poys o tam bem fizeste e assi ho sabes dizer bom homem deves de ser e eu te perdoo livremente"; e o mandou logo perante si soltar, e lhe ouve ainda por dinheiro perdão das partes, e o moço com prazer se lançou aos seus pees e lhos beijou; e todos folgaram de el-rey lhe dar assi a vida e lho louvaram muito.

Do que el-rey fez no feito do carcereiro João Baço

Capitolo C

No Limoeyro de Lixboa estava preso hum homem estrangeiro muito rico e estava julgado aa morte. Concertou-se com o carcereiro que se chamava Joam Baço, e per seu consentimento se fez muito doente e confessado e feito seus autos fez que morria. Vierão homens por elle em hũa tumba, e o levaram a soterrar yndo vivo e são e da ygreja fugio e se salvou, e o carcereiro se pôs em salvo. Quando o el-rey soube, ouve disso desprazer, e mandou poer tanta deligencia que ouve o carcereiro à mão; e desejando muito de o castigar quis estar ao julgar de seu feito com certos desembargadores, os quaes foram deferentes nos votos tantos de hũa parte como da outra. Que  huns o julgaram aa morte e outros o remetiam aas ordens. E disseram a el-rey: "Senhor, agora fica o feito em vossa alteza somente pera o castigar como quiser". E elle ficou hum pouco cuydoso sem falar como a homem a que pesara muito com ysso, e disse: "Eu certo desejava muito de castigar este homem por o caso que fez ser feo; porém pois sois tantos a hũa parte como a outra, a rey nam pertence senam yr aa parte da cremencia e dar a vida, e eu sam em lha dar e dou a ysso meu voto desejando muito o contrayro".

Doutro homem que el-rey perdoou sendo julgado que morresse

Capitolo CI

Julgaram na Relaçam hum homem à morte por dormir con hũa sua cunhada irmãa de sua molher, e ter della filhos. Vio el-rey o feito e achou que sendo a molher viva, elle tinha a cunhada em casa e que era moça fermosa, e que per morte da molher por descuido dos parentes ficara assi com elle das portas adentro, e que neste tempo a ouvera. E el-rey vendo ysto disse: "O diabo pode muyto e nossa fraca humanidade muyto pouco e neste peccado da carne ainda menos, e mais avendo ahi tantos azos de pecar como he estarem sos em hũa casa tanto tempo. E avendo respeito a tudo me parece que pois ysto he feito desta maneyra que por esta moça se nam perder seria mais serviço de Deos casá-los ambos e mandar-lhe despensaçam", e assi o fez. E lhe perdoou a morte e mandou aa sua custa pola despensaçam, e fez aynda merce aa moça pera se vestir que era prove.

De como el-rey deu a vida a outro homem

que estava pera justiçarem

Capitolo CII

Em hũa quinta-feyra d' Endoenças andando el-rey correndo as ygrejas, se pôs hũa molher em joelhos diante dele e chorando muito lhe disse: "Senhor, polo dia que oje he, e aa honrra das cinco chagas de Jesu Christo peço a vossa alteza que aja misericordia comigo"; e el-rey lhe perguntou que era o que queria; disse: "Senhor, meu marido he julgado aa morte, polla morte e paixam de Nosso Senhor lhe perdoay"; e el-rey lhe disse: "Molher, mayor cousa quisera que me pedireys por esse por quem  mo podis, eu lhe perdoo livremente", e logo dali lho mandou soltar. De que todos foram muy sastifeitos e ouveram enveja de tam bem feita cousa por ser em tal dia, e por amor de Nosso Senhor Jesu Christo que tantas cousas nos perdoa cada ora.

Do que el-rey disse a hum homem que lhe dizia mal doutro

Capitollo CIII

Hum homem honrrado disse hum dia a el-rey mal doutro, dizendo que sendo casado com hũa muito honrrada e muyto boa molher, era tam mao que tinha vinte mancebas; perguntou-lhe el-rey: "Quantas dizeis que tem?"; respondeo: "Senhor, vinte"; disse el-rey: "E ysso provar-lho-eis vós?"; e elle se afirmou que si; e el-rey lhe disse: "Ora hi-vos muyto embora, que quem tem mancebas nam tem manceba". E ysto lhe respondeo por nam dar orelhas a mexeriqueiros, e tambem porque nam se pode manter mais de hũa manceba e o al he ser hum homem amigo de molheres.

Do que el-rey disse ao corregedor da corte

Capitolo CIV

Disseram a el-rey que Joam Fernandez Godinho corregedor da corte dos feitos civeis, tomava peytas e fechava suas portas e despachava mal as partes. E el-rey por Joam Fernandez ser homem honrrado o quis primeiro amoestar pera que nam se emendando lhe dar hum grande castiguo, e o mandou loguo chamar e nam curou de muytas palavras soomente lhe disse: "Corregedor, olhai por vós e da maneira que viveis que me dizem que tendes as portas cerradas e as mãos abertas". E nam lhe disse mais porque confiava de si que ysto soo abastava.

Da maneira que el-rey deu hum oficio a hum homem

que lho pedio

Capitolo CV

Hum homem veo pedir hum oficio que vagara a el-rey a que disse que o tinha dado, e o homem lhe beijou a  mão; el-rey ficou enleado e disse-lhe: "Vós entendestes-me?"; respondeo: "Senhor, si"; disse-lhe el-rey: "Que he o que vos disse?"; e o homem tornou: "Dise-me vossa alteza que jaa o tinha dado"; disse el-rey: "Poys porque me beijastes a mão?"; e elle lhe disse: "Porque me podera vossa alteza remeter a hum official que me trouxera aqui hum mes apos si em que gastara vinte cruzados que aqui trago; e por estes beyjey a mão a vossa alteza porque delles me fez merce em me logo despachar"; e el-rey lhe tornou: "Ora por ysso vos faço merce do oficio, e eu darey outra cousa a quem ho tinha jaa dado", e lhe fez dele merce.

E outro homem veo pedir a el-rey outro oficio e trazia a petrina muyto alta, e el-rey lhe disse que o tinha dado, e elle perguntou: "Senhor, a quem?"; e el-rey lhe disse: "A hum homem que trazia a petrina em seu lugar".

Do que el-rey fez a hum homem que esperou hum touro

Capitulo CVI

Estando hum dia el-rey vendo correr touros em Evora no terreiro dos paços, estava hũa tranqueira mal concertada, e com muita gente nella. E hum touro muito bravo quis sayr por ella, e a gente toda fogio. Ficou somente hum homem que estava detras dos outros embuçado com hũa capa e hum sombreiro, o qual levou da capa e da espada e só aas cutiladas muyto vallentemente defendeo a passajem ao touro e o fez tornar atras. Pôs el-rey os olhos nelle pollo tam bem fazer, e o mandou logo chamar, e perguntou-lhe que homem era e com quem vivia e o que fazia na corte e tanto apertou com elle, que o homem lhe disse que tinha morto hum homem em Lamego, e que por nam ser conhecido na corte nem em Evora andava ahi escondido. Mandou el-rey logo chamar ho corregedor, e cuydando o homem que era pera o mandar prender e justiçar lhe disse: "Corregedor, emcomendo-vos muito que me livreis este homem de qualquer maneyra que poderdes que receberey nisso muyto prazer"; e o corregedor o fez assi; e tanto que foy livre el-rey ho tomou por seu criado e lhe fez merce; e desta maneira estimava e favorecia os valentes homens.

Do que el-rey fez por nam passar hum alvara em contrairo doutro

Capitolo CVII

Acabando-se el-rey hum dia de confesar disse ao confesor: "Padre, eu tenho dito tudo quanto me lembrou; agora vos requeiro da parte de Deos que se mais sabeis de mi que mo digaes"; e ho confessor lhe disse: "Senhor, esse he tam justo e tam sancto requerimento que por elle vos acrecentará Deos a vida e estado neste mundo, e no outro vos dara salvaçam; e sem mo vossa alteza mandar trazia em lembrança pera vos dizer, que me disseram que a hum homem do Algarve passáreis hum alvara, pollo qual deram contra outro hũa sentença em que perdeo dozentos mil reaes"; e el-rey lhe disse: "He verdade que eu passey esse alvara com falsa emformaçam; e quando o soube por nam passar outro em contrairo mandey chamar o homem, e secretamente lhe mandey por Antam de Faria dar dozentos mil reaes em ouro, e elle he bem contente e sastifeyto e lhe mandey que nam fallasse nisso".

Do que el-rey disse por Manoel de Melo

Capitollo CVIII

Manoel de Mello reposteiro-moor d' el-rey e yrmão do conde d' Olivença foy muito valente cavaleiro, e homem que el-rey por ysso estimava e fazia muita honrra. E estando por capitam em Tanjere pelejou com Barraxe e o desbaratou e matou muyta gente, sendo os mouros muyto mais sem conto que os christãos que foy hum honrrado e valente feyto e sem dano algum dos christãos. E sendo Manoel de Mello ja vindo, estando em Portugual, Barraxe fez ameude algũas corridas e entradas na terra de Tangere. Disseram-no a el-rey, e hum dia falando nisso aa mesa disse alto perante todos: "Guarde-se Barraxe nam tire eu o caparaçam  a Manoel de Mello". E com estas taes cousas aviventava tanto os esperitos e a honrra aos homens que nam trabalhavam por outra cousa senam por honrra e vertudes.

Das cortes que el-rey fez em Evora sobre o casamento do principe

Capitolo CIX

No mes de Janeiro de mil e quatrocentos e noventa, foram as cidades e villas principaes do reino apercebidas pera cortes geraes sobre o casamento do principe. Sobre que el-rey ordenou de mandar logo embaixada a Castella, e queria dos povos ajuda de dinheiro pera as festas do dito casamento; as quaes cortes se fizeram na cidade d' Evora a vinte e quatro dias do mes de Março logo seguinte dentro nos paços na sala da raynha que se armou muito ricamente; e se fez hum alto estrado ricamente alcatifado com grande dorsel de brocado e cadeira real pera el-rey, e outra abaixo dele aa mão dereita pera o principe, e na sala feitos assentos pera os senhores e pessoas principaes do conselho, e pera as cidades e villas todos segundo suas precedencias; e el-rey depois de todos os precuradores estarem assentados, veo com grande estado diante muitas trombetas, charamelas, e sacabuxas, porteiros de maça, reis d' armas, arautos, e passavantes, o porteiro-mor, e mestre-salas, veador, e veadores da Fazenda, camareiro-mor, e guarda-mor e mordomo-mor, e assi o regedor, chanceler-mor, e todolos oficiaes e desembargadores; e el-rey vestido em opa roçagante de brocado com rico forro e o ceptro na mão, e com ele o principe ricamente vestido, e o duque e todos outros senhores entrou na sala e se assentou em sua cadeira real e o principe junto com elle e o duque e todolos outros senhores e oficiaes em seus assentos ordenados; e como a casa foy ordenada e todos calados, o licenceado Ayres d' Almada corregedor da corte muito bem vestido de vestidos ricos que lhe el-rey deu, fez em linguajem hũa arengua de muytos louvores d' el-rey e das muitas obrigações em que lhe seus povos e todos os do reino eram, alegando os grandes perigos e risco de sua pessoa que passara nas guerras, e o vencimento da batalha de Touro, e como posera o principe seu filho em terçarias, e o apartara tanto tempo de sua vista, tudo por dar a elles paz e sossego, e os livrar de guerras e manter em muita paz e justiça; e assi dos grandes proveitos que a todos em geral vinha de o dito casamento se acabar, e das grandes festas que por ysso queria fazer; e que por estar sem tanto dinheiro quanto avia mester lhe rogava que o quisessem com ele ajudar; e que nam lhe pedia cousa certa senam o que elles por suas vontades quisessem e podessem boamente fazer. E os precuradores todos pollo muito amor que os povos a el-rey tinham, e por lhe parecer rezam depoys de nisso praticarem e averem seu conselho, logo sem lhe mais ser falado fizeram com muito boa vontade a el-rey serviço de cem mil cruzados, que lhe ele muito agardeceo ho serviço e boas vontades. De  que logo fazerão pollos povos suas repartições, e el-rey pôs os recebedores e officiaes e todos ficaram contentes.

De hũa nova justiça que el-rey mandou fazer

Capitolo CX

Neste ãno de mil e quatrocentos e noventa, estando el-rey em Evora antes da vinda da princesa, lhe foy dito que em Lixboa em casa de hum cavaleiro que se chamava Diogo Pirez do Pee, e vivia junto da praça da palha, se jugavam dados e cartas e outros jogos, com que Deos era desservido e seu sancto nome renegado, e o de Nossa Senhora e dos sanctos brasfemados. E como el-rey era muy catholico, devoto e amigo de Deos por atalhar e evitar tamanho mal, e por castigo do que nas ditas casas se fazia, pollo mesmo caso na  metade do dia com pregam de justiça as mandou queymar no primeiro dia de Junho do dito anno. De que na cidade foy grande espanto e alguns homens que em suas casas  tinham jogos e tavolajens com muito grande receo se tiraram logo disso.

Da tomada de Targua e Camice

Capitolo CXI

Barraxe mouro principal e grande senhor que atras se disse neste ãno de quatrocentos e noventa, tratava de tomar a cidade de Ceyta per manha e ardil de hum Lopo Sanchez cavaleiro que nella estava e fengio de lha dar, de que loguo mandou aviso a el-rey estando em Evora; e o concerto antre ambos chegou a tanto que parecia que por Barraxe fiar tanto no dito Lopo Sanchez o poderiam com hum trato dobrez tomar dentro na cidade. Pera o qual el-rey mandou Dom Fernando de Meneses filho mayor e erdeiro do marquês de Villa Real, pessoa de muyto merecimento que depois foy marquês. E depois de el-rey com elle estar e tomar concrusam do que avia de fazer, partio pera Ceyta com cincoenta vellas que no Algarve com muyta brevidade foram armadas e aparelhadas de todo o necessario, e nellas muyta e boa gente e assi chegou a Gibaltar. E Fernam de Pina  escrivam da camara era diante sobre ho dito trato pera de lá o avisar do que nisso se passasse. O qual por nam achar o tratamento certo, avisou Dom Fernando que em Gibaltar entrasse de noyte por nam ser visto dos mouros, porque com sua vista se perderia a esperança do dito trato e de qualquer outra cousa que quisesse fazer. E o dito Dom Fernando e Dom Antonio seu yrmão que em Ceyta estava por capitam acordaram com conselho de fidalgos e cavaleiros que laa estavam que em tanto fossem dar na villa de Targua que he na costa; a qual depois de bem vista e espiada partiram para laa com a dita frota e com alguns navios de Ceita e de Castella que se a ella ajuntaram bespora de Ramos. Na qual frota hiam dous mil homens e nam mais que cento e cincoenta de cavallo. E Dom Fernando mandou sayr a jente em terra em tam boa hordem e regimento que a villa foy logo entrada e sem nenhũa resistencia tomada; porque os mouros tanto que viram que a dita frota hia sobre elles, hos mais se acolheram logo às serras onde se salvaram; e porém alguns foram mortos e captivos, e a vila toda roubada e queimada e derribada pollo chão, e talada das arvores e cousas principaes de fruito. E acabado o feyto Dom  Fernando fez cavaleiros Dom Anrrique e Dom Diogo seus yrmãos que com elle eram, e muytos fidalgos e pessoas honrradas. E acharam no porto de Targua vinte cinco navios antre grandes e pequenos, e na casa da tereçana, bombardas, polvora, e salitre, e ancoras, e muytas lanças, couraças, e capacetes, e muytas ferramentas d' almazem que todo recolheram. E acharam trinta christãos captivos que salvaram e trouxeram a Ceita alem doutros que loguo passaram a Castella. E com ysto outro muyto despojo da villa com que entraram em Ceita sesta-feira d' Endoenças com muito prazer, sem algum dos christãos ser morto nem ferido de que o dito Dom Fernando, como bom capitam foy muy louvado.

E nam sastifeito disto desejando de fazer mais serviço a Deos e a el-rey e acrecentar mais em sua honrra, porque o trato principal de Barraxe a que fora hia ja perdendo esperança de concerto, per conselho e acordo que fez com Dom Martinho de Tavora capitão d' Alcacer Ceguer, e com Manoel Paçanha que estava em Tanjere por capitão, e com outras pessoas que o bem entendiam, determinou hir a Camicee e destruy-lo, que era lugar sem cerca, posto nas mais asperas e altas serras de todo Africa, a que os mouros por sua grande fortaleza e muyta povoaçam, e por atee entam nunca de christãos ser cometido nem visto chamavam o Encantado. Pera a qual hida se ajuntaram em Alcacer donde partiram quatrocentos de cavalo e mil e dozentos homens de pee. E depoys de serem junto do lugar vendo os que nisso mais entendiam sua grande fortaleza e muy perigosas entradas ouve muyta duvida se o cometeriam e porém repartiram a jente pera cometer e segurar o perigo e com muito esforço e ardideza cometeram o lugar, em que acharam muitas povoações e entraram o mais forte delle pellejando tam valentemente, que os mouros desempararam o lugar e se meteram per branhas e serras onde nam escaparam de mortos e captivos, porque ha serra era jaa tomada dos christãos. E o lugar foy tomado, roubado e queimado; e ao recolher por ha terra ser muyto aspera e tam maa, que huns aos outros nam podiam socorrer, morreram dos christãos  setenta e dos mouros quatrocentos e captivaram cento. E tomaram grande cavalgada de cavalos, bestas, e gado, e muyto despojo da villa, o que tudo foy em Alcacer repartido segundo suas ordenanças a contentamento de todos. E logo Dom Fernando se  veo à corte e foy d' el-rey com muita honrra recebido dando-lhe muytos agardecimentos por seus honrrados serviços.

De como foy mudado o Moesteiro de Sanctos

Capitolo CXII

Aos cinco dias de Setembro deste anno de quatrocentos e noventa, mandou el-rey mudar e trasladar o Moesteiro de Sanctos, que estava em Sanctos-o-Velho onde ora sam os paços alem de Boa Vista pera o lugar onde ora estaa, que he Sancta Maria do Parayso antre o Moesteiro de Sancta Clara e o Moesteiro da Madre de Deos. O qual moesteiro he da hordem de Santiago, e el-rey o mandou ali fazer de novo e as reliquias dos martires que no moesteiro velho estavam foram lá levadas em hũa tumba dourada e a comendadeira que se chamava Violante Nogueira molher de muita vertude e honestidade, e assi todas as donas do convento foram no dito dia levadas a pee com solene priciçam do cabido e todas as ordens e cruzes ao dito moesteiro, no qual sempre viveram honestamente.

De como o senhor Dom Jorge veo a primeira vez aa corte

Capitolo CXIII

Quando el-rey Don Afonso o quinto faleceo que foy no mes d' Agosto de mil e quatrocentos e oytenta e hum, naceo o senhor Dom Jorge filho d' el-rey que sendo principe e casado ouve de Dona Anna de Mendoça molher muito fidalga e moça fermosa de muy nobre geraçam. O qual el-rey mandou criar em poder da infanta Dona Joana sua irmã que estava em Aveiro, a qual o criava muyto honrradamente como o pertencia a filho d' el-rey seu yrmão. E porque neste anno de mil e quatrocentos e noventa a infanta Dona Joana faleceo, el-rey quis mandar trazer seu filho aa corte pera que junto de si fosse criado, e primeiro que o fizesse pedio aa raynha sua molher que o ouvesse assi por bem, e lhe nam lembrassem payxões que sobre ysso ja tevera pois ante elle eram tam esquecidas. E a raynha por suas grandes virtudes e muita bondade, e polo  grande amor que a el-rey tinha, nam abastou consentir nisso mas ainda pedio por merce a el-rey que lho deyxasse criar em sua casa e que como a proprio filho o criaria; de que el-rey foy muyto alegre e mandou logo por elle.

E entrou ho senhor Dom Jorge em Evora a quinze dias de Junho, e vinha com elle o bispo do Porto Dom Joam d' Azevedo e outras pessoas honrradas. Sayram a o receber fora da cidade o principe seu yrmão e ho duque e todolos senhores e fidalgos e nobre gente da corte, e nam lhe foy feyto festa algũa por caso da morte da infanta sua tia que avia pouco que falecera. E ho senhor Dom Jorge quisera beijar a mão ao principe a pee, e ele o nam consentio, e a cavallo lha deu e abraçou com honrra de proprio yrmão e assi o abraçou o duque e o marquês e os senhores de titolo que ahi eram, e antre o principe e ho duque veo com muita honrra beyjar as mãos a el-rey seu senhor e padre que com muyto prazer e honrra ho recebeo nas casas de Joane Mendez d' Oliveira onde entam pousava, pollas muitas e grandes obras que nos paços entam se faziam pera a vinda da princesa. E dahi foy logo o senhor Dom Jorge beijar as mãos aa raynha que com mostranças de muito amor e muita honrra o recebeo e recolheo logo pera si com cuydado e carrego de todallas cousas que a sua vida, criaçam e bom emsino compriam, o que sempre se assi fez em quanto andou em sua casa muy inteyramente que foy atee o tempo da morte do principe como adiante se dira.

Do principio do casamento do principe Dom Afonso

com a princesa Dona Isabel, e das grandes festas que se fezeram

na cidade d' Evora

Capitulo CXIV

Por que as guerras passadas antre os reys e reynos de Portugal e Castela se acabassem, por serviço de Deos e bem dambos os reynos, foy feyta e assentada paz perpetua per meo da senhora ynfanta Dona Breatiz, antre os ditos reys e reynos e socessores delles, por ser pessoa que tanta licença tinha em ambos que era mãy da rainha Dona Lianor nossa senhora e tia da raynha Dona Isabel de Castela yrmã da rainha sua mãy, a qual paz se fez no ãno de mil e quatrocentos e setenta e nove. E pera mayor firmeza e segurança, foy concertado e jurado casamento antre o principe Dom Afonso e a princesa Dona Isabel, que ao tal tempo eram infantes por ser em vida d' el-rey Dom Afonso. E por nam serem entam de ydade pera logo poderem casar, se assentou e concertou que fossem ambos postos em terçaria na villa de Moura que he junto do estremo, em poder da dita ynfanta Dona Breatiz que os ahi avia de ter a grande recado como teve. E depois da morte d' el-rey Dom Afonso por consentimento dos reys seus padres, por causas justas que pera ysso teveram, sayram o principe e ynfanta da dita terçaria com algũas condiçoẽs que conformavam a dita paz e amizade; antre as quaes como atraz fica dito foy hũa que chegando o principe à hidade de quatorze ãnos, estando entam a dita infanta Dona Isabel por casar que casassem ambos. E porque a este tempo o principe entrava em quinze annos e a ynfanta nam era casada, desejando el-rey acabar o dito casamento, mandou sobre ysso a Castella por embayxadores Fernão da Silveira  condel-mor e regedor da Casa da Sopricaçam, o doutor Joam Teixeyra chançarel-mor destes reynos, e por secretario da embayxada Ruy de Sande, que depois foy Dom Rodrigo de Sande que jaa sobre ho dito casamento fora aos ditos reys e o deyxara bem concertado. Ha qual  embaixada foy muito honrradamente com muytos fidalgos muy galantes e ricamente ataviados e partio da cidade d' Evora no começo do mes de Março. E a requerimento da raynha de Castella levavam o principe tirado polo natural, que era o mais fermoso e gentil homem que no mundo se sabia. El-rey e a raynha de Castella e o principe seu filho, a princesa e infantes e toda a corte estavam na cidade de Sevilha. E tanto que a dita embaixada partio, el-rey como virtuoso e catolico principe, porque o principal de seus fundamentos era no serviço e amor de Deos, mandou logo com grande devaçam muytas esmollas a todolos moesteiros e casas virtuosas do reino, encomendando muito a todos que em suas orações, jejuns e obras meritorias pedissem a Deos que no dito casamento fizesse o que mais fosse seu serviço e bem destes reynos, e que nam deixassem de fazer as ditas devações atee se ho dito casamento acertar, ho que se fez muy inteiramente com muyto amor e devaçam.

E hos ditos embayxadores chegaram aa cidade de Sevilha, e foram per todolos grandes da corte, do reino e da cidade recebidos com tanta honrra e cerimonias, quanto atee entam nunca foram recebidos embayxadores de nenhum rey. E assi lhe foram feytas outras muytas honrras e favores de honrrados apousentamentos, presentes, e visitações. Em que craro se via ho muyto prazer e contentamento que todos em geral e espicial com sua yda tinham. Ho que muyto mais viram nas proprias pessoas d' el-rey e da raynha, quando os embayxadores lhe deram sua embayxada, cuja substancia era requerem e concordarem o dito casamento. Que logo sem duvida nem dilaçam algũa se concordou; e logo ho dito Fernam da Silveyra que pera ysso levava suficiente e abastante precuraçam, em nome do principe per palavras de presente como manda a Sancta Madre Ygreja de Roma recebeo a dita princesa Dona Isabel por sua molher, per mão do cardeal Dom Pero Gonçalvez de Mendoça, perante el-rey e a raynha, o príncipe e infantas suas yrmãas, e muitos e grandes senhores com muyto grande solenidade, o domingo da Pascoella a noyte deste anno de mil e quatrocentos e noventa; na qual noite e outros dias seguintes ouve em Sevilha muito grandes e sumptuosas festas de momos e justas reaes, em que el-rey justou e foy mantedor, e assi justaram muitos grandes e pessoas principaes e ouve outras muytas e grandes festas.

De quando veo nova a el-rey do principe ser recebido em Sevilha

Capitolo CXV

E porque el-rey era avisado pelos ditos embaixadores do dia em que o dito recebimento avia de ser, pera em poucas oras saber quando se fizera, ordenou paradas de cavaleiros de sua guarda homens deligentes e em cavalos muito ligeiros d' Evora até Sevilha de tres em tres legoas, pera que tanto que o recebimento fosse acabado, a todo correr de hum em outro viesse a nova. A qual deu a el-rey Felipe do Casal irmão de Ruy de Sande que era o derradeiro e estava na Torre dos Coelheyros. E chegou com ella a el-rey logo ao outro dia segunda-feira ainda de dia andando passeando na praça; e sayra aquella ora de casa do secretairo Afonso Garces de receber hũa sua filha com hum Luis da Costa que vivia em Alhos Vedros, que el-rey entam foy casar em pessoa, e com elle o principe e o duque e outros muytos senhores.

Ha qual nova foy d' el-rey e do principe e de todolos grandes e nobres e de todo o povo ouvida com tanto prazer e alegria que mays nam podia ser, dando todos principalmente muitas graças a Deos. E el-rey tinha prestes sem se saber per toda a cidade, pera que tanto que ha nova viesse, muitas e muyto grandes fogueiras por todas as praças, ruas principaes e todas as torres do muro e da cidade, e pollos muros, torres, e lugares altos da cidade, muitas infindas bandeiras, muitas bombardas, e outros tiros de fogo, e foguetes, muytas trombetas, e atambores, charamellas, e sacabuxas, e que todos os sinos repicassem, e as ruas, praças, muros, e torres muito enramados de ramos verdes; e isto era repartido por muitos homens sem se saber. E tanto que a nova foy dada a el-rey todas estas cousas se fizeram juntamente com tanta brevidade e presteza que foy cousa espantosa. E era tamanho o estrondo que com ysso e com a grita da gente parecia que a terra tremia: tudo muito  pera ver por ser tam supitamente, e feyto em muyta perfeyçam.

El-rey e ho principe da praça onde andavam se forão logo aa See a darem muytas graças a Deos, e acabado dahi aa casa da raynha onde jaa acharam tanto alvoroço, tanto prazer, e alegria, assi nella como em todalas damas que nam se pode estimar. E loguo ouve muyto grande serão de muytas danças, e baylos, e allegrias, e muytas  festas. E toda a gente da cidade foy logo posta em danças e folias, com ynfindas tochas na praça e no terreiro dos paços, e por todas as ruas principaes, e tanta gente honrrada e nobre, e assi a do povo que nam cabia, nem se vio nunca tanto alvoroço e alegria. E muitos velhos e velhas honrradas com o sobejo prazer, foram juntos cantar e baylar diante el-rey e a raynha: cousa de que suas ydades os bem escusavam. Nos quaes entrou Ruy de Sousa e Diogo da Silva que depois foy conde de Portalegre, homens ja de dias e de muita autoridade; e em vindo el-rey da See com o principe e o duque e con muito grande estado lhe sayo aa rua cantando com hum pandeiro na mão Dona Briolanja Anrriquez dona muito honrrada molher d' Aires de Miranda; e el-rey com prazer a tomou nas ancas da mula e a levou assi com muita honrra onde a raynha estava. E nam somente foy ysto nos paços d' Evora, mas em todo o reino, tanto que a nova foy sabida sem mandado d' el-rey, senam de suas proprias vontades faziam todas as festas que podiam; e os cavaleiros dos lugares dos estremos de Castella com a muita alegria desta nova se ajuntaram todos, e com as bandeiras dos lugares partiam e se vinham todos a cavallo ao estremo dambos os reynos, e à vista dambos por sinal da paz que antre elles ja  avia, e do muito contentamento e prazer do dito casamento abaixavam e alçavam muitas vezes as bandeiras com grandes gritas e prazeres rogando todos a Deos por as vidas do principe e princesa, lembrando-lhe quam poucos annos avia que com as ditas bandeiras sayam dos ditos lugares com muito odio, guerras, pelejas, e mortes dambas as partes, e agora com tanta paz e sossego.

E logo ao outro dia terça-feyra polla menhaã cedo, el-rey, ho principe, e ho duque com todollos grandes e fidalgos da corte, e a raynha com suas damas e as senhoras e donas honrradas da corte e da cidade cavalgaram muito ricamente vestidos, e diante delles hos mouros e judeus com suas touras, guinolas, e festas, e assi todo ho povo com muytas folias e envenções de prazeres, foram ao Mosteiro de Nossa Senhora do Espinheiro a ouvir missa e dar a Deos muitas graças e a ella. E lá no moesteiro comeram, e aa tarde com grande estrondo de prazer se tornaram aa cidade em que pollas praças e ruas ouve comeres mui abastados, e nos paços muitas danças e festas atee acerca da menhaã.

E logo a quarta-feira o pateo dos paços onde ora estam as bestas foy toldado per cima e todo  ricamente armado com estrado real e dorseis de brocado, e ouve nele momos reaes e muito ricos en que entrou el-rey com os senhores casados, e o principe e o duque cada hum per si com muitos fidalgos de suas casas, e assi outros muytos fidalgos todos com grande riqueza e singulares antremeses e muita galantaria em perfeiçam, e foram tantos e tantas danças que a noite nam abastava. E aa quinta-feyra ouve na praça da cidade touros e canas, a que el-rey e a raynha vieram com muyto grande estado e riqueza, e todas as damas com muyta nobre gente.

Da morte da ynfanta Dona Joana yrmaã d' el-rey

Capitolo CXVI

E estas e outras muito mayores festas se ordenavão cada vez em mayor perfeiçam e mayores despesas se nam fora a morte da infanta Dona Joana yrmãa d' el-rey que entam se finou no Moesteiro de Jesu cl' Aveiro onde estava solteira sem casar, e falleceo em ydade de trinta e seys annos. De que el-rey foy bem anojado porque nam tinha nem teve outro irmão nem yrmaã, e queria-lhe muyto grande bem, e estimava-a muito por ser singular princesa de muytas virtudes, bondades, e perfeições, muito catolica, devota, e amiga de Deos, e muy obediente a el-rey seu yrmão, por que elle e a raynha, o principe tomaram grande doo, e os paços todos foram desarmados de panos ricos e armados de panos azues, e assi toda a corte tomou doo. El-rey lhe fez logo muito solene saymento com muyta despesa em muyta perfeiçam no Moesteiro de São Francisco da dita cidade. E sentio el-rey muyto sua morte por ser em tam poucos dias que nam ouve tempo pera elle a poder yr ver e estar com ella em tal hora. Porque parecendo aos que com ella estavam que a doença nam era de tanto perigo, o nam fizeram saber a el-rey, que por ysso foy muito triste; e lhe pareceo que falecer em tal tempo fora em pendença do sobejo prazer e alegria que por este casamento tomara, que por el-rey ser muyto catholico todalas cousas que lhe aqueciam, se eram boas atribuya a Deos, e as maas a seus peccados, dando com tudo louvores a Nosso Senhor.

De como el-rey e a raynha de Castella notificaram

o dito casamento a el-rey e aa raynha

Capitolo CXVII

E tanto que o embaixador Fernam da Silveira recebeo a princesa em Sevilha como fica dito, logo el-rey e a raynha de Castella, o noteficaram a el-rey e à raynha per suas cartas, com palavras de muyto amor e grande contentamento. E assi escreveo a princesa ao principe com muyta prudencia e honestidade; has quaes cartas trouxeram moços fidalgos filhos de grandes senhores de Castella a que foy feito muito gasalhado e dado ricas merces aa partida. E el-rey, a raynha e o principe lhe responderam a el-rey em muita conformidade com grande amor e alegria e as repostas levaram outros nobres moços fidalgos, a que lá tambem muito favoreceram e fizeram muitas merces. E estas visitações dambas as partes se fizeram muytas vezes atee a vinda da princesa.

E porque compria muyto com cedo dar-se grande aviamento às muitas e grandes cousas que el-rey ordenava de fazer com todo o sentimento da morte da infanta nam deixou de prover com muito cuidado e deligencia todo o que pera a vinda da princesa cumpria, que se esperava logo no Outubro seguinte, porque ordenou el-rey e quis que seu recebimento fosse feito com as mayores honrras, festas e cerimonias, que nunca a outra princesa nem raynha foram feitas. E logo pera ysso ordenou de ter em  seus paços casa apartada que se chamava das festas em que se nam entendia em outro despacho, de que deu carrego a Dom Martinho de Castelbranco veador de sua Fazenda, homem de muyta confiança e a elle muyto aceyto, e galante pera o tal carrego poys era pera gentileza e galantaria; e com elle Anrrique de Figueyredo escrivam da Fazenda muyto grande oficial e homem de muyto bom saber, e assi outros oficiaes pera ysso escolhidos, que entendiam em cuydar, praticar, e ordenar todalas cousas que lhe pareciam serem mais convenientes e necessarias pera mays comprimento e mayor perfeiçam das festas; porque el-rey ordenou e mandou que fossem as mayores, mais reaes e mais perfeitas que se podessem fazer, assi nas cousas que tocavam às cerimonias reaes que nas visitações e recebimentos se esperavam, como em apousentamentos, abastança de mantimentos, e outras muitas policias, e sala da madeira pera banquetes e consoadas, e justas, momos, touros, e canas e antremeses; e principalmente de ouro, e prata, borcados, e seda pera el-rey fazer merces, e tapeçarias, e ricos panos, cavallos, arneses, lanças, e armeiros, borladores, e oficiaes de chaparias, e canotilhos, ourivezes, esmaltadores, jaezes, e douradores, ginetes, e mulas, e sirgueyros. E assi fruytas, conservas, especearias, açucares, meles, e manteyga, carnes, caças, e pescados, e todo o mais que cumpria. O que tudo se logo proveo com tempo antes d' aver necessidade de nada. E escolheo logo pera cada carrego homens que pareceo que o melhor saberiam fazer e os mais autos que no reyno pera ysso achou; e tudo se fez com tanta deligencia, abastança, e perfeiçam, e as festas foram em tudo tam reaes e tam ricas, que jaa em Espanha pera sempre seram lembradas soos e sem comparaçam.

E antre has cousas que el-rey com hos deputados ordenou, foram algũas as seguintes. Primeyramente el-rey per suas cartas e com palavras de grande confiança, amor e prazer, notificou o dito casamento a todolos perlados, senhores, e fidalgos principaes de seus reynos, e os convidou pera as festas delle, encomendando a todos que trouxessem consigo somente hos continos de suas casas, e que de suas pessoas, casas, camas, e mesas, viessem apercebidos quanto melhor podessem, pera que con honrra e abastança podessem agasalhar e festejar os senhores estrangeiros que às festas viessem. E a muytos escreveo e encomendou que trouxessem suas molheres como trouxeram muy ricamente ataviadas. E enviou com muyta  deligencia e muyta abastança de dinheiro muitas pessoas per mar e por terra a Levante e a Ponente a comprar todas as cousas que pera arreo e comprimento de tam ricas festas eram necessarias. E ainda pera mayor perfeiçam dellas mandou notificar a todallas gentes e nações do mundo, que poderiam aas ditas festas trazer ou enviar suas joyas, brocados, tellas, sedas, e ricos panos, e todas as outras cousas que pera ellas fossem necessarias, e os franqueou geralmente de todolos dereytos que delas ouvessem de pagar, e que o preço delas podessem tirar em ouro ou em prata, e asi se cumprio muy inteiramente. E mandou logo hũa caravela muy armada a Italia com feitores pessoas de que confiava, com grande soma d' ouro que compraram e trouxeram grande soma de ricos brocados, tellas d' ouro e de prata e muitas e muy ricas sedas, e assi muita pedraria e outras muitas cousas pera as ditas festas, assi pera arreos e vestidos das pessoas reaes e suas salas, camaras, camas, e guarda-roupas, como pera toda a corte. E tanta foy a cantidade que dos ditos brocados e sedas se comprou e pera o dito casamento foram necessarias, que pera as receitas que levavam, nam abastaram quantas acharam em Genoa, Florença, e Veneza, especialmente brocados e sedas  que ainda deixaram muitas fazendo-se nos teares que depois foram trazidas.

E porque na cidade de Lixboa principal do reyno ao tal tempo morriam nela de peste, e por isso se nam podiam fazer nella as ditas festas como el-rey por mayor perfeição desejou, determinou que fossem na cidade d' Evora que he a segunda do reyno; e posto que nella ouvesse nos paços apousentamentos em que el-rey e a rainha, o principe e a princesa se podessem bem agasalhar, porém por que todas as cousas do dito casamento fossem em grande perfeiçam, mandou el-rey sem embargo da grande brevidade do tempo acrecentar e fazer nos paços muytos apousentamentos de novo com grandes sallas e camaras pera si e pera o principe e princesa. E quis que a brevidade do tempo se comprisse com grande soma de dinheiro e infinitos oficiaes que nas ditas obras andavam, que era cousa espantosa o que logo assi se fez e comprio, com tanta diligencia e perfeiçam que parecia cousa impossivel. Mas os oficiaes eram tantos de todolos oficios, que juntamente lavraram que era cousa muito pera ver; e em seis meses fizeram obras que ouveram mester bem de annos.

Mandou mais vir d' Alemanha, Frandes, Ingraterra, e Yrlanda em navios muytas e muy ricas tapacerias e panos de lam muyto finos, e forros de martas, arminhos, e outros forros, e facaneas fermosas e muyta prata em pasta. Muitos e boõs cosinheiros, muitos menistres altos e baixos, cuja vinda e aviamento destas cousas custou muyto dinheiro. E assi mandou de Castella e outra partes vir muitos ourivezes pera fazerem arreos e outras cousas esmaltadas, e muytos douradores e todos boõs oficiaes de todolos oficios; e assi os mercadores pollos favores e liberdades que recebiam acodiam de muytas partes onde el-rey estava.

E todolos brocados, telas d' ouro e sedas que vieram de Ytalia e assi outros infinitos que mandou comprar e trazer das feiras das cidades e villas de Castella, mandou el-rey recolher ao tesouro de sua casa. Das quaes cousas a seus cortesãos e a outros muytos do reyno e fora delle fez muito grandes e liberaes merces. E a outros que assi o queriam por lhes fazer merce mandava dar emprestado todo o que do tisouro aviam mester, e o tisoureiro recebia depoys os pagamentos pollas tenças e desembargos que do dito senhor tinham atee tempo de dous annos. E os preços das cousas que assi recebiam eram per juramento apressados em sua justa avaliaçam que foy grande aviamento e merce aos homens acharem o que queriam fiado por seu justo preço, e nam no mandaram comprar fora onde em tal tempo lhe custava o dobro.

E ordenou que a todo fidalgo que quisesse justar lhe fosse dado cavalo e armas que ouve de muytas partes, e pera ajuda da despesa da justa dozentos cruzados de merce em brocados e sedas quaes quisessem que lhe logo eram dados no tesouro. E aos fidalgos que nam justavam e fossem para dançar e fazer momos, que os que em momos quisessem entrar, dessem a cada hum de merce nos ditos brocados e sedas cem cruzados, e a alguns dozentos segundo as calidades de suas pessoas. E ysto asi da justa como dos momos per ordenança sem por ysso beijarem a mão a el-rey nem tirarem despacho algum.

E a todos seus oficiaes-mores, mordomo-moor, veadores da Fazenda, guarda-mor, camareiro-moor, porteiro-moor, veador e mestre-salas, fez muyto grandes merces e a todos os outros vestidos de ricas sedas e brocados e outras merces. E a todolos moços da camara, e da capella, porteiros de maça, reys d' armas, arautos, e passavantes, moços d' estribeira, reposteiros, deu  vestidos de finas sedas e muitos moços d' estribeira  foram vestidos de ricos brocados. E aos pajes que eram quatro afora o paje da lança deu muytos e muito ricos vestidos, e assi a muytos moços fidalgos.

E assi foy ordenado e feyto orçamento como despesa necessaria e principal, quanto se poderia dar de merce e dadivas, por el-rey e raynha e o principe aas pessoas de toda calidade que aas festas viessem assi em ouro amoedado como em coraes, joyas, bayxellas de prata lavrada, e borcados, sedas, cavallos, escravos, o que tudo se comprio em muyto grande abastança; porém as festas e comprimento delas socederam de maneira, que a despesa destas cousas passou muito polla ordenança; o que tudo se cumprio com muyta grandeza e louvor d' el-rey.

E mays segurou el-rey por dous annos as rendas de todos aqueles que pera despesa das festas as arrendassem antecipadas quer fossem ecclesiasticas quer seculares; e deu a todallas pessoas que aas festas per seu mandado viessem espaço de hum anno pera a paga de suas dividas de qualquer calidade que fossem, e outro anno as demandas, e ysto nam se entendia quando as taes dividas e demandas tambem tocavam a pessoas que viessem aas festas porque em tal  caso este privilegio nam avia lugar.

E proveo-se mais de muita infinita cera que pera festas he adiçam muy principal, a qual cera se ouve de Berberia e de Guine. E assi de muitas fruitas verdes, e de tamaras, açucares, e conservas, especearias, meles, manteiga, arroz e todalas outras cousas desta calidade em muito grande avondança pera banquetes e consoadas; e proveo-se nos portos de mar com dinheiro que laa foy enviado por pessoas pera isso ordenadas que fizessem sempre pescar todolos pescados d' estima, e enviá-los aa corte com muita pressa huns frescos e outros en conservas. E mandou que de todallas comarcas derredor fosse trazido per contrebuyçam geral muyto trigo dos lavradores, farinha, e cevada, vacas, carneiros, porcos, e outras calidades de mantimentos, por que nunca falecessem e sempre sobejassem; e estas cousas se davam e repartiam ordenadamente e com proveito e prazer de seus donos; e ordenou mais que os caçadores de toda sorte, e os pescadores de rio daquellas comarcas, depois da princesa ser entrada em Portugal, e as festas durassem sempre continuadamente caçassem e pescassem per giros, e as caças e pescados enviassem logo aa corte per torteiros que pera ysso eram ordenados. E ordenou mais que de todo o reino permar e por terra seus almoxarifes e oficiaes mandassem aa corte, galinhas, capões, patos e adens, pavões, e outras muitas aves; e mandaram tam grande numero dellas que foy certo que as ditas aves durando as festas comeram mais de cem moyos de trigo, porque tanto se levou em conta e despesa aos oficiaes que delas tinham carrego en casas e quintaes que lhe pera ysso deram; e lhe davam de comer muyto e beber pera que estevessem gordas. Ordenou que das partes ao redor d' Evora mais chegadas constrangessem os lavradores criadores pera trazerem junto da cidade muitas vacas e cabras paridas pera manjares de leite, e assi porcas com leitões e vacas com vitellas, as quaes cousas seus donos vendiam aas suas vontades, e porém honestamente. E mandou que de todalas comarcas ao redor fossem trazidas a Evora muytas camas porque as da cidade pera a muita gente que chegava nam podiam abastar; e estas foram entregues a pessoas deputadas que as davam, e depois recolhião per boa e segura recadaçam todas com sinaes, pera saberem cujas eram e se darem a seus donos. E assi mandou que de todalas mourarias do reino viessem às festas todolos mouros e mouras que soubessem bailar, tanger e cantar; e a todos foy dado mantimento em abastança e vestidos finos, e enfim lhe foy feito merce  de dinheiro pera os caminhos. E mandou que dos lugares mais acerca viessem mancebos gentis homens e moças fermosas que soubessem bem cantar e bailar pera bailos e folias, e a todos foy dado de vestir de panos finos e comer em abastança, e acabado dinheiro pera hos caminhos e erão todos vestidos de libres.

E foram ordenadas na cidade cinquo praças que de toda calidade de mantimentos forão sempre muyto abastadas e muyto providas a toda ora; e na principal praça da cidade em durando as festas nam se vendeo cousa algũa porque foy soomente pera as justas e festas ordenada.

Da grande sala de madeira que el-rey mandou fazer

Capitollo CXVIII

E porque nos paços todos nam avia casa tam grande e em que tanta jente se podesse agasalhar, avendo ahy grandes salas, mandou el-rey fazer hũa salla nova de madeira per grande engenho e arteficio, e cousa grande que se fez onde era a horta de Sam Francisco pegada com a porta do moesteiro, e os paços que jazia ao longo norte e sul, tamanha que era de longuo de trezentos palmos, e de largo de setenta e cinco palmos, e de alto de setenta e dous palmos. Foy armada das paredes sobre grandes e fortes mastos que com grande custo de Lixboa foram trazidos, e antre os mastos de paredes e taypas, e per cima armada de mastos delgados e outras madeiras, e cuberta de tavoado trincado e calafetado e breado como nao de madeira que nam podia chover nella gota d' aguoa. E de dentro era toda das paredes e de cima armada e toldada de ricos e fermosos lambees, cousa nova que parecia muyto bem polla deferença que tinha dos brocados e tapecerias. Tinha a porta principal muyto grande com as portas muyto bem pintadas, no topo contra o norte, e no outro topo era feyto hum muyto grande estrado real que cheguava de parede a parede, a que subião per muytos degraos, tudo alcatifado de ricas alcatifas. E contra o ponente tinha hũa porta junto do estrado de que se serviam pera os paços por onde as pessoas reaes vinham e hiam; tinha quatro casas de fora peguadas nella com muyto grandes arcos altos nas paredes da sala, dous de cada banda que a faziam ainda parecer mayor, pera muitos menistres que nellas estavam muito altos e bem gasalhados donde tangião aas suas vontades. E hum muito grande cadafalso aa entrada da porta aa mão esquerda pera trombetas bastardas e atambores, de muytos degraos em que estavam assentados aas suas vontades sem tolherem vista huns aos outros. E aa mão dereita era feita hũa muito grande e muyto alta copeyra de muitos degraos a mayor que nunca vi, que tomava da porta atee a parede da sala; tinha tanta e tam rica prata, e tantas e tamanhas e ricas peças que era cousa espantosa e de grande maravilha. E ao longo da sala de cada parte foram feitos huns estrados que chegavam de junto da copeyra e cadafalso das trombetas atee junto do estrado real, a que subiam por degraos e tinham de cada parte duas grades de pao muito bem lavradas hũa que estava no chão ao pe dos degraos e a outra no degrao de cima. Isto pera nos degraos vazios antre hũa grade e ha outra se recolher e estar muita gente sem pejar a sala, e verem todos muyto bem sem tolherem vista huns aos outros, os quaes eram pessoas honrradas, cortesãos, e cidadãos que ali entravam per mandado dos mestres-salas; e da grade de cima estavam as mesas e os servidores que delas estavam ordenados os que eram necessários e mais nam. E as mesas que estavam em todo cima com seus assentos encostados aas paredes, eram por todas quatorze mesas muito grandes, sete de cada parte em que cabia muyta gente; e no meo destes estrados ficava a sala despejada em muito grande largura e o chão bem argamassado. E ao longo da sala em dereito das primeiras grades, estavam altos pendurados no aar per polees que vinhão de cima do madeyramento, trinta castiçaes muyto grandes e muyto bem feitos em cruz e dourados, e em cada hum estavam quatro tochas, e debaixo de cada castiçal bacios muyto grandes, em que as tochas pingavam por nam pingarem sobre a gente. De maneira que durando as festas na sala sempre no ar ardiam cento e vinte tochas, alem das com que os pajes serviam que eram cento afora os brandões que estavam pollas mesas, e na copeira que eram muitos, e serião por todos perto de trezentas tochas e brandões acesas que ficava a sala tam crara como se fosse de dia.

De como el-rey despejou a cidade e mandou meter nela muito gado

Capitolo CXIX

E sendo ja feytas muitas e grandes despesas pera as ditas festas e as mais principaes, por a muita gente que vinha de muitas partes e de Lixboa onde morriam, em Evora ouve rebates de peeste. De que el-rey foy muito triste porque se mais mal fosse, as festas se nam poderiam fazer com aquella perfeyção que elle tinha ordenado. E por ver se poderia atalhar isto com que a todos tanto pesava, acordou com conselho dos fisicos, que ante do antrelunho de Setembro, em que os ares corruptos tinham mais força, toda a gente da cidade e da corte se saysse dela, como logo sayo por espaço de quinze dias. Nos quaes el-rey andou fora pollas Alcaçovas e Viana, e esteve na quintam da Oliveyra onde a primeira vez justou, e ha gente toda por quintas, erdades, e ortas, e em tendas no campo. E a cidade foy chea de infindo gado vacum sem conto, que de toda a comarca veo e per mandado d' el-rey ahi foy trazido, e nella dormia de noite e o metiam ao sol-posto, e ja bem de dia o levavam seus donos a comer fora. E porque todas as fazendas dos cortesãos e moradores ficavam dentro na cidade em suas casas e pousadas sem levarem mais que camas e mesas, ouve hi grandes guardas, homens de fiança e recado na cidade repartidos pollas ruas, e assi fora dos muros pera que ninguem podesse entrar nem sayr, muitos cavaleiros da guarda que a roldava com que tudo esteve tam seguro, que se nam achou menos cousa algũa de quanto na cidade ficou, nem somente fechadura de porta com que se bolisse. E acabado os quinze dias o gado todo se levou e a cidade foy toda muito limpa e todallas ruas e casas defumadas e cayadas antes d' el-rey entrar nella. E assi no antrelunho de Outubro depois da gente estar dentro, el-rey mandou que todolos escravos e negros que na cidade avia, se sayssem fora por dez dias so pena de se perderem assi se fez. E por estas grandes deligencias, e principalmente polia piadade de Deos a quem se fizeram juntamente com ysso muytas devações e esmolas, a cidade ficou de todo saã, de que el-rey e todos foram muyto alegres por se poder fazer nella o que estava ordenado.

De quando a princesa partio pera estes reynos

Capitolo CXX

E sendo assi prestes todas as cousas pera a vinda da princesa, el-rey o mandou logo noteficar a el-rey e aa raynha de Castella que estavam na cidade de  Borba pera que podessem logo mandar a princesa sua filha. E tanto que o recado lhe foy dado, partiram com ella, e em pequenas jornadas vieram atee o lugar de Costantina acompanhados do principe seu filho e de muitos grandes; e dali com muitas lagrimas e grande saudade, a princesa lhe beyjou as mãos e se despedio delles, e elles lhe deitaram suas bençoẽs e dahi se tornaram a Borba; e a princesa começou seu caminho a dez dias do mes de Novembro, e vinha com ella o cardeal Dom Pero  Gonçalvez de Mendoça arcebispo de Toledo e o mestre d' Alcantara, e o conde de Benavente, e o conde de Feria, o bispo de Jaem, e Dom Pedro Portocarreyro, e Rodrigo d' Ilhoa contador-mor que vinha por embayxador, e assi outros muitos ricamente aparelhados; e trazia a princesa consigo nove damas filhas de grandes e nobres homens de Castela e Aragão; e vinha por sua aya e camareira-mor Dona Isabel de Sousa portuguesa, molher muito fidalga, e prudente, e de muy onesta vida, e outras molheres e oficiaes de sua casa. Chegou a princesa com todos os que com ela vinham à cidade de Badajoz sesta-feyra dezanove dias do dito mes de Novembro, e todas as jornadas que fazia era el-rey sabedor delas per paradas.

De como a princesa foy entregue em Portugal

Capitolo CXXI

E depoys de el-rey saber o dia que ha princesa avia de ser entregue em Portugual, ordenou que em seu recebimento e entrega que no estremo dos reynos se avia de fazer, fosse em nome do principe ho duque Dom Manoel primo com yrmão d' el-rey e yrmão da raynha filho do infante Dom Fernando, e primo com yrmão da raynha Dona Isabel de Castela, que levava poder especial do principe. E mandou el-rey com elle ho bispo d' Evora Dom Afonso filho do marquês de Valença e primo com irmão da infanta Dona Breatiz homem de muita autoridade, e o bispo de Coimbra Dom Jorge d' Almeida, e o conde de Monsanto, e o conde de Cantanhede; os quaes muito acompanhados de muitos fidalgos e cavaleiros chegarão aa cidade d' Elvas o dia que ha princesa chegou a Badajoz, todos com grande riqueza e perfeyçam de corregimentos de suas pessoas, casas e servidores. E segunda-feyra a vinte e dous dias do dito mes de Novembro a princesa partio da cidade de Badajoz acompanhada do cardeal e todollos senhores que com ella vinham, e com a gente da cidade e suas danças. E no mesmo dia sayo o duque com todos os senhores que com elle hiam da cidade d' Elvas grandemente acompanhado da nobre gente que com elle vinha, e mais com toda a gente da cidade e outra muita comarcaã que ahi veo; e dentro em Castella se foy pera a princesa que o recebeo com grande honrra e muito amor por hyr em nome do principe, e ser primo com yrmão da raynha Dona Isabel sua mãy; e assi fez muita honrra ao bispo d' Evora por ser parente seu tam chegado e os outros senhores; e assi vieram juntos até a Ribeyra de Caya que he o marco do reyno. E depoys de o doutor Vasco Fernandez de Lucena chançarel da Casa do Civel ahi fazer hũa arenga endereçada aa princesa em nome d' el-rey e do reyno, o cardeal entregou a princesa ao duque com as cerimonias acustumadas; e depois de entregue ele e muitos senhores se despediram dela e se tornaram, e com ella vieram muitos atee Elvas. Onde a princesa foy grandemente recebida com paleo de rico borcado e muytas festas, e foy apousentada no Moesteiro de Sam Domingos; e has salas, camaras, e camas, eram per mandado d' el-rey armadas de ricos brocados; e alli foram feitos  e dados aa princesa grandes presentes de cousas de comer.

E ao outro dia terça-feira vinte e tres do mes, a princesa com o duque e os outros senhores todos, foy dormir a Estremoz onde ja chegou noyte, e foy recebida com outra arengua e grande triunfo de festas com paleo de rico brocado e assi de grandes presentes. E nos lugares onde chegava assi de caminho debaixo de paleo hia primeiro fazer oração aa ygreja principal, e dahi a seus apousentamentos; e pollas torres e muros e lugares mays altos das cidades e villas avia muytas bandeiras de suas cores e armas e muytos tiros de fogo que em chegando todos juntamente tiravam; e muitas festas e folias de homens e moças muyto bem vestidas, e as ruas armadas de tapeçarias enrramadas e espadanadas. E aqui em Estremoz foy a princesa decer à Ygreja de Santa Maria junto do castello onde o bispo de Viseu Dom Fernam Gonçalvez de Miranda a recebeo com solene pricissam; e dahi se foy a pee com infindas tochas a seu apousentamento que era ahi perto concertado em tudo com grande riqueza e perfeiçam.

De como el-rey e o principe foram ver a princesa a Estremoz,

e como foram ahi recebidos

Capitolo CXXII

E porque el-rey desejava muito de ver a princesa, a quis yr ver a Estremoz aforrado com o principe e alguns principaes do reyno a elle mais aceytos o mesmo dia que ella ahi chegasse. E foram todos vestidos de caminho e pera o tempo, os mais ricos, mais galantes, e escolheitos que podiam ser, com muitos borcados, tellas, e chapados, e ricos forros, e singular pedraria e em estremo ataviados. Chegaram a Estremoz aa ora que a princesa entrava e se foram decer aa casa do duque com quem aquela noite pousaram. E logo a princesa soube como elles ahi eram e a queriam yr ver, e com grande alvoroço, prazer, e alegria nam pôde comer e depressa se levantou da mesa e logo se vestio, e assi suas damas, e mandou concertar suas casas como cumpria. E el-rey e o principe com esses que com eles vinham se foram pera ela, e a princesa os veo esperar em pee no topo de hũa escada, e em el-rey chegando acima ella se pôs en joelhos pera lhe beijar as mãos; e el-rey com muito amor, muy alegre, com muyta cortesia lhas nam quis dar, e com as mãos a alevantou e deu lugar ao principe e ambos com os joelhos em terra se abraçaram, e el-rey posto aa mão esquerda da princesa, e o principe aa dereita, se foram assentar em hum estrado ricamente concertado; e el-rey tendo a princesa polla mão com muito prazer e alegria lhe disse com muyta descriçam e graça, algũas palavras de quanta gloria e contentamento tinha em ver cousa tanto estimada e que seus olhos tanto desejaram ver, e de quam satisfeito e alegre era com sua vista. E a princesa lhe respondeo com palavras de muyta prudencia, honestidade, e descriçam, de que el-rey ficou muy contente por ver que respondiam com a fama que della ja tinha sabida. E acabadas estas falas el-rey ouve por bem que alem do solene recebimento que em Sevilha se fezera per precuraçam do principe elle em pessoa a tornasse ahi a receber por sua molher, como logo recebeo per palavras de presente como manda a Sancta Madre Ygreja de Roma, nas mãos de Dom Jorge da Costa arcebispo de Braga. E acabado ouve ahi muytas danças e festas e depois d' acabadas el-rey e o principe se despediram della e recolheram a casa do duque onde aquella noyte foram muito bem banqueteados, agasalhados e servidos.

E ao outro dia polla menhaã cedo el-rey e ho principe se foram diante a Evora, e a princesa con ho duque, e o bispo d' Evora e de Coimbra, e os condes de Monsanto e Cantanhede, e Rodrigo d' Ilhoa embayxador, se foram ao Moesteyro de Nossa Senhora do Espinheiro onde jaa chegaram de noite; e a ygreja e apousentamentos estava tudo concertado em muito grande perfeiçam. E logo ha quinta-feyra seguinte el-rey e a raynha e o principe com toda a corte e muyto grande triumpho foram ao Moesteyro de Nossa Senhora, e depois que a rainha com grande contentamento, prazer e alegria vio a princesa que ainda nam vira, se vieram todos aa ygreja do dito moesteyro onde pollo arcebispo de Braga lhe foram feitas as  benções pola Sancta Madre Ygreja ordenadas, e o arcebispo disse missa solene. E acabada a princesa se despedio delles e se recolheo a seu aposentamento, e el-rey, a raynha e o principe se tornaram com grande estado real aa cidade. E aa sesta-feyra e ao sabado esteve a princesa no dito moesteyro, onde d' el-rey e do principe per suas pessoas foy sempre visitada. E segundo fama antes dela entrar na cidade ali nas casas do moesteyro onde pousava, teve o principe ajuntamento com ella, o que de muitos foy estranhado por ser em casa de Nossa Senhora e de tanta devação. E afirmou-se por muito certo que naquella propia noite cahio da parede da ygreja hũa amea junto da camara donde jouveram, a qual amea até oje nam  foy concertada e está assi por memoria que os frades disso fezeram.

Da entrada da princesa em Evora

e do real recebimento que lhe foy feyto

Capitulo CXXIII

E ao domingo vinte e sete dias de Novembro do dito ãno de mil e quatrocentos e noventa que era o dia ordenado pera a entrada da princesa em  Evora, el-rey depois de comer cavalgou acompanhado de todollos grandes e perlados e senhores e nobre fidalguia e toda sua corte, e a milhor vestida e mais rica gente que atee entam nestes reynos se vio, e sem o principe se foy ao dito moesteyro com grandissimo estado e muito grande estrondo de festa. Diante delle vestidos de ricas sedas e muito bem encavalgados, muitas trombetas bastardas, e muitos atambores, muitas charamellas, e sacabuxas, muitos porteyros de maça, muitos reys d' armas, arautos e passavantes, e o porteyro-mor, e quatro mestres-salas, e o veador e os veadores da Fazenda, e o mordomo-mor, e todos huns antre outros nesta hordem e muitos cavallos  a destro ricamente arrayados; e derredor d' el-rey muitos moços d' estribeira vestidos de brocado. E el-rey hia vestido aa francesa com hũa opa roçagante de rica tella d' ouro forrada d' arminhos, e en cima hũa rica e grande cadea de pedraria, e hum pelote de brocado forrado de ricas martas com muytos golpes, e nelles ricos firmaes de pedraria e ricas perlas,

hũa rica adaga d' ouro em hũa rica cinta, e hum chapeo branco com hum penacho branco, e encima de hum muy fermoso ginete ruço pombo aa brida com riquissima guarniçam e detras delle seus pajes ricamente vestidos e muitos senhores e nobre gente. E do moesteiro até a cidade avia muitos antremeses da gente do povo e dos judeus e mouros, e o caminho muito concertado e limpo, tudo em perfeiçam e cheo de gente com muytas folias de folliães e moças muyto bem vestidos.

Chegou el-rey ao moesteiro, e a princesa que ja estava prestes sayo logo vestida com muita riqueza e grande galantaria e assi todas suas damas; ella em hũa mula muy ricamente arrayada, e as damas em mulas com ricas guarnições. E diante dela muitas trombetas, e atabales, charamelas, e sacabuxas, muitos porteiros de maça, e reys d' armas d' el-rey e da raynha de Castella vestidos de ricas sedas e bem encavalgados, e  seus mestre-salas, veador, e mordomo-mor ricamente vestidos. E o estrondo de todas as trombetas e atambores, menistreis altos d'el-rei, da princesa e do duque, e muitos senhores que os levavam era cousa espantosa. E em a princesa saindo, el-rey se foy a ella, e com muito grande cortesia se pôs à mão esquerda, e assi vieram caminho da cidade, e a princesa ainda que a el-rey nam levava pola mão, porque era mui prudente e mui cortês tirou a luva da mão daquella parte donde el-rey hia, e sempre levou a mão descuberta que loguo se julgou por molher de muyto primor e de grande acatamento e assi vieram. O caminho era cheo de tanta e tam nobre e rica gente qual se nunca vio; e aa ponte d' Enxarrama estavam juntos de hũa parte e da outra saindo della sessenta fidalgos juntos todos de ricas opas de brocados e telas d' ouro com ricos forros e grandes e ricos collares e cadeas d' ouro, e as bestas ricamente guarnecidas de que se os castelhanos espantaram principalmente das envenções e galantaria.

Chegaram à porta d' Avis onde eram muito bem feitos grandes arcos triunfaes, e nelles fadas que fadavam a princesa cada hũa de sua cousa. E antre as portas d' Avis era feyto ho parayso muito grande, muito alto, ricamente ordenado com todalas ordens do ceo com muito ouro e muita riqueza concertado, cousa de muito custo, e  avia nele singulares cantores cousa muito pera folgar de ver e ouvir. E estando el-rey e a princesa dentro aa porta da cidade se fez hũa arenga aa vinda e entrada da princesa; e acabada os do paraiso com singulares estormentos que tamgiam, e os cantores cantavam suavemente, fezeram hũa espantosa musica, e assi se fezeram outras muytas e muy concertadas representações, e ali aa porta da cidade se deceram todos a pee, salvo el-rey e a princesa e suas damas, e com cada dama hum fidalgo castelhano. E o duque e o senhor Dom Jorge postos a pee cada hum de sua parte levaram a princesa pollas  redeas da mula, e aas estribeiras hiam condes e grandes senhores. E el-rey atou rico e honrado cordam da Garrotea aas redeas da mula da princesa e por sua honrra a levou asi . E postos ambos debaixo de hum grande paleo de rico brocado e borlado que levavam os regedores principaes da cidade entraram assi. E as ruas da porta d' Avis atee a See, e da See atee os paços e toda a praça eram de cima todas toldadas de panos finos de cores postos sobre muitos mastos que de Lixboa e outros portos de mar foram trazidos, todos forrados dos mesmos panos com infinitas bandeiras, e as ruas todas armadas de panos de seda e ricas tapeçarias; e pollas janellas e portas postas muytas joyas e muytos ramos de louro e larangeira e o chão todo daquella ora espadanado e muitos perfumos aas portas, e na praça e em outros lugares ouve muitos cadafalsos de muytos e muy naturaes antremeses e representações e tudo com muita riqueza, concerto e grandissima perfeyçam.

E assi com este tam grande triumpho e ordem chegaram aa See, onde foram recebidos com muito solene preciçam, e depois de fazerem oraçam e a princesa beyjar o sancto lenho da vera cruz que lhe foy oferecido, tornaram a cavalgar, e na mesma ordem primeira chegaram aos paços jaa de noyte com infinitas tochas que levavam todollos moços fidalgos, e assi moços da camara vestidos de ricas sedas e brocados. E decidos el-rey levou logo a princesa a seu aposentamento; e na sala estava jaa a raynha e o  principe  e muitas senhoras e honrradas donas e damas tudo em tanta ordem e tam ricamente armado de ricos brocados e concertado, que mais nam podia ser e naquela noite antes da cea e  depois ouve grandes festas e danças em que todallas pessoas reaes dançaram, e assi outros muitos com muyto prazer e alegria.

E neste dia ouve dozentos senhores homens vestidos aa francesa de opas roçagantes as cento e vinte de ricos brocados e tellas d' ouro e chapados  todas ricamente forradas, e as oitenta eram de ricas sedas forradas de brocados e ricos forros com muitos canotilhos e borlados. E assi ouve outros muitos vestidos de tabardos, capuzes abertos de ricas sedas e brocados e ricos forros e envenções aa geneta com muyto ricos arreos e todos com muitos moços d' esporas e pajes vestidos de sedas e brocados, e as bestas com riquissimas goarnições e jaezes, e elles com ynfinitos colares e grandes cadeas d' ouro, ricos cintos e espadas e adagas, e muitos firmaes d' ouro de martello e outras tantas policias, que creo que em Espanha nunca outro tal dia se vio nem ouvi que em outra parte nenhũa o vissem.

Do primeyro banquete de cea que el-rey deu na sala da madeyra

Capitolo CXXIV

E logo aa terça-feyra aa noyte ouve banquete de cea na sala da madeyra, em que el-rey e a rainha e o principe, a princesa comeram, e com elles o duque, e o senhor Dom Jorge e Rodrigo d' Ilhoa embaixador; todos em hũa grande mesa com muyto grandes dorsees de brocado que  tornavam toda a salla a través. E na primeyra mesa da mão dereyta comia o marquês de Villa Real com as senhoras, donas e damas, e na primeyra da mão esquerda o arcebispo de Braga, e o bispo d' Evora, e bispos, e condes, e pessoas principaes do conselho, que eram muitos de hũa parte e da outra, assi homens como molheres. E aa mesa d' el-rey com todollos oficiaes vestidos de brocados e servida per moços fidalgos que serviam de tochas e bacios ricamente vestidos. E as outras mesas todas com trinchantes e oficiaes vestidos de ricas sedas e brocados e muy galantes, e assi os moços da camara ordenados a cada mesa todos vestidos de veludo preto. No qual banquete ouve ynfinitas e diversas ygoarias e manjares e singular concerto e abastança, e muitas e assinadas cerimonias. E quando levavam aa mesa d' el-rey as ygoarias principaes e fruta primeyra e derradeyra, e de beber a elle e à rainha e ao principe e princesa, hiam sempre diante dous e dous muitos porteyros de maça, reys d' armas, arautos e passavantes, os porteyros-mores, quatro mestres-salas, o veador, e os veadores da Fazenda, e detras de todos ho mordomo-mor; e todos hiam com os barretes na mão atee o estrado onde faziam suas grandes mesuras; e os  veadores da Fazenda hiam com os barretes na cabeça até o meo da sala, e do meo por diante os levavam na mão, e o mordomo-mor hia sempre cuberto atee ho fazer da mesura que juntamente fazia e tirava ho barrete. E era tamanha cerimonia que durava muyto cada vez que hiam à mesa. E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas, e sacabuxas, e de todolos menistres era tamanho que se nam ouviam; e ysto se fazia cada vez que el-rey, a raynha, o principe e a princesa bebiam e vinham as primeiras ygoarias aa mesa; e a copeira era cousa espantosa de ver. E logo à entrada da mesa veo hũa grande carreta dourada, e traziam-na dous grandes bois assados ynteiros com hos cornos e mãos e pees dourados; e o carro vinha cheo de muitos carneiros assados ynteiros com os cornos dourados; e vinha tudo posto num cadafalso tam baixo com rodetas per fundo delle que nam se viam, que os boys pareciam vivos e que andavam. E diante vinha hum moço fidalgo com hũa aguilhada na mão picando hos bois que parecia que andavam e levavam a carreta; e vinha vestido como carreteiro com hum pelote e hum gabam de veludo branco forrado de brocado, e assi a carapuça que de lonje parecia proprio carreteiro; e assi foy oferecer os bois  e carneiros aa princesa e feito o serviço, os tornou a virar com sua aguilhada por toda a sala atee sayr fora e deyxou tudo ao povo que com grande grita e prazer forão espedaçados, e levava cada hum quanto mais podia. E assi vieram juntamente a todalas mesas muitos pavões assados com os rabos ynteiros e os pescoços e cabeça com toda sua pena que pareceram muito bem por serem muitos e outras muitas sortes de aves e caças, manjares, e fruita, tudo em muito grande avondança e muita perfeiçam.

E ouve ahi hũa muito grande representaçam dhum rey de Guinee em que vinham tres gigantes espantosos que pareciam vivos de mais de quarenta palmos cada hum com ricos vestidos todos pintados d' ouro que parecia cousa muito rica; e com elles hũa muy grande e rica mourisca retorta em que vinham dozentos homens tintos de negro muito grandes bayladores todos cheos de grossas manilhas polos braços e pernas douradas que cuidavam que erão d' ouro e cheos de cascavees dourados e muito bem concertados: cousa muy bem feita e de muito custo por serem tantos, e em que se gastou muita seda e ouro; e faziam tamanho roydo com os muitos cascavees que traziam que se nam ouvião com elles; e assi ouve outras representações, e depois da cea muitas danças e outras muitas  festas que quasi toda a noite duraram, cousa certo pera ver.

Do outro banquete que el-rey deu na sala da madeira

Capitulo CXXV

E assi se fezeram muitas e grandes festas todos os dias e noytes atee domingo cinco dias de Dezembro em que ouve outro segundo banquete na dita sala da madeira de muytas mais envenções, abastança, e gentileza, e de muito mais policias e muito melhor servido que ho primeiro. E era cousa fermosa pera ver as mesas como estavam ordenadas, que em cada hũa avia tres grandes bacios de ygoarias cubertos, e em cima dos dous dos cabos estavam tendas de damasco branco e roxo que eram as cores da princesa; as tendas eram borladas e muyto galantes com muitas bandeyrinhas douradas, e eram grandes de dez covados cada hũa; e na ygoaria do meo estava hum castello feyto como tribolo feito de madeyra sotil e pano de tafetaa dourado, com tantos chapiteos e bandeiras tudo dourado,  que era muito fermosa cousa e de muyto custo. E em entrando na sala estavam as mesas tam fermosas e tam guerreyras, que eram muyto pera folguar de ver e cousa nova que ainda se nam vira, e has tendas eram por todas trinta, e hos castellos quatorze. E el-rey, e a raynha, o principe, e ha princesa vieram, e se assentaram aa mesa, e com elles ho duque, e ho senhor Dom Jorge, e Rodrigo d' Ilhoa como dantes, e assi aas outras mesas has mesmas pessoas que no outro banquete vieram. Tanto que todos foram assentados, os moços da camara que tinham carrego das mesas, tiraram as tendas e as tomaram pera si; e os castellos por serem tamanhos que nam cabiam debaixo das mesas, hos davam a pessoas que os pediam pera moesteyros e ygrejas, em que estiveram muyto tempo pendurados e pareciam muito bem. Começaram a comer, e por ha infinidade das ygoarias, manjares, conservas e fruitas, que foy como consoada durou muyto grande espaço; e acabado ouve muytos e ricos momos e muy singulares antremeses, cada vez com mays riqueza, gentileza, e melhores envenções que duraram até acerca da menhaã. Cousa que se se ouvesse d' escrever meudamente como foy pareceria fabula d' Amadis ou Esprandiam. E destes dous banquetes foy veador e ordenador Fernam Lourenço feitor da Casa da Mina que foy nisso muito polido e abastado. E na sala da madeira nestes dous banquetes, e assi nos outros dias dos momos qualquer homem que ahi vinha rebuçado com touca era logo pollos mestres-salas e porteiros-mores muy bem agasalhado onde bem via tudo; ysto tinha el-rey mandado porque eram ahi muitos grandes senhores de Castella desconhecidos a ver as festas, os quaes todos foram muyto bem agasalhados. E toda a gente da corte e da cidade que estava em pee antre has grades que era muita todos comiam do que se tirava das mesas que era em tanta avondança, que muyto mais era o que sobejava que o que se comia e por ysso nam avia pessoa que deytasse mão de cousa algũa nem fizesse mao ensino, e tambem pollos muitos oficiaes que nisso traziam tento, e pollo castigo que sabiam que aviam d' aver se o fizessem, e mais sobejando tudo a todos. Que certo foy em tanta abastança, e tanta perfeiçam, tanta honrra, tanto estado, quanto no mundo podia ser.

E neste tempo até o Natal em que os justadores se ensayavam e aparelhavam as cousas pera a justa, ouve na praça da cidade e no terreiro dos paços muitas vezes muitos touros com muitos galantes a eles e ricos jogos de canas e muytos momos, e serãos, musicas, e festas sem nunca cessarem; e assi ouve justas de muito bons justadores detras de Sam Dominguos a caram do muro, a que el-rey e ho principe foram. E os paços erão todos armados de ricos brocados e veludos cramesins e ricas tapeçarias com riquissimas camas tudo em muita perfeiçam.

De como se ordenaram fias justas reaes,

e se pôs ha tea na praça e da fortalleza de madeyra

Capitolo CXXVI

E aa segunda-feyra primeiro dia das Oytavas se pôs a tea na praça, que era per cima toldada de finos panos sobre grandes mastos, e com infinitas bandeyras reaes. E a tea era cuberta de panos finos verdes e roxos, que eram as cores d' el-rey toda de hũa parte e da outra chea de pellicanos dourados, e bordados na tea que parecia muyto bem. E no cabo da tea se poseram em mastos muyto altos, bandeyras muyto grandes e muyto ricas das armas  de Portugal e Castela juntamente que eram as da princesa. E foy feyta hũa fortaleza e tavola de madeira com grande novidade pera o caso no cabo da Rua dos Mercadores pegada na praça como fortaleza de guerra com suas torres e cubellos com muytas ynfindas bandeiras, e com hum facho cuberto de brocado posto muy alto pera se derribar aa entrada e vinda dos aventureiros e com hum sino com que repicavam como em frontaria de contrairos. E a fortaleza tomava o vão da rua e as casas onde ora he a camara e has outras da outra parte, e tudo era ricamente armado com ricas camas pera os mantedores e officiaes d' el-rey que esses dias ahi esteveram com elle, todos banqueteados em muita perfeiçam e muitas festas e prazeres dentro. E a fortaleza era de fora toda chea de muytas e claras lanternas muito bem feitas pera ysso e eram tantas, que acesas de noite parecia de fora que a fortaleza ardia em fogo, e era cousa muyto fermosa, afora as luminarias da praça que eram sem conto.

Dos ricos momos que el-rey fez na sala da madeira

pera desafiar a justa

Capitolo CXXVII

E logo a terça-feira seguinte ouve na sala da madeira muito excelentes e singullares momos reaes, tantos, tam ricos e galantes com tanta novidade e deferenças d' antremeses que creo que nunca outros taes foram vistos. Antre os quaes el-rey entrou primeiro pera desafiar a justa que avia de manter com envençam e nome do Cavaleiro do Cirne; e veo com tanta riqueza e galantaria quanta no mundo podia ser. Entrou pollas portas da salla com nove batees grandes em cada hum seu mantedor, e os batees metidos em ondas do mar feytas de pano de linho e pintadas de maneira que parecia agoa; com grande estrondo d' artelharia que tirava, e trombetas, atabales, e menistres altos que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de muitos apitos de mestres, contramestres e marinheiros vestidos de brocados e sedas com trajos d' alemães; e os batees cheos de tochas e muitas vellas douradas acesas com toldos de brocado e muitas e ricas bandeiras. E assi vinha hũa nao aa vela cousa espantosa, com muitos homens dentro e muytas bombardas sem ninguem ver o arteficio como andava que era cousa maravilhosa. O toldo e toldos das gaveas de brocado, e has vellas de tafetaa  branco e roxo, a cordoalha d' ouro e seda e as ancoras douradas, e assi a nao como batees com muitas velas de cera douradas todas acesas; e has bandeyras e estandartes eram das armas d' el-rey e da princesa todos de damasco e douradas. E vinham diante do batel d' el-rey que era o primeyro sobre as ondas hum muyto grande e fermoso cirne com as penas brancas e douradas, e apos elle na proa do batel, vinha o seu cavaleyro em pee armado de ricas armas e guiado delle, e em nome d' el-rey sayo com sua falla e em joelhos deu aa princesa hum breve conforme a sua tençam, que era querê-la servir nas festas de seu casamento, e sobre concrusam de amores desafiou pera justas d' armas com oyto mantedores a todos os que o contrayro quisessem combater. E por rey d' armas, trombetas e officiaes pera ysso ordenados, se pubricou em alta voz o breve e desafio com as condições das justas e grados dellas, assi para o que mais galante viesse aa tea, como pera quem melhor justase.

E acabado hos batees botaram pranchas fora e sayo el-rey com seus requissimos momos, e a nao e batees que enchiam toda a sala se sayram com grandes gritos e estrondo d' artelharias, trombetas, atabales, charamelas, e sacabuxas  que parecia que a sala tremia e queria cair em terra. El-rey dançou com a princesa, e os seus mantedores com damas que tomaram. E logo veo o duque com fidalgos de sua casa com outros riquissimos momos. E veo outro entremes muyto grande em que vinham muitos momos metidos em hũa fortaleza antre hũa rocha e mata de muitas verdes arbores, e dous grandes salvajens aa porta, com os quaes hum homem d' armas pelejou e desbaratou, e cortou hũas cadeyas e cadeados que tinham cerradas as portas do castello, que logo foram abertas, e por hũa ponte levadiça sayram muitos e muy ricos momos; e em se abrindo as portas sayram de dentro tantas perdizes vivas e outras aves, que toda a sala foy posta en revolta e chea d' aves que andavam voando per ela atee que as tomavam. E saydo este grande e custoso entremes, veo outro em que vinham vinte fidalgos todos em trajos de peregrinos com bordões dourados nas mãos e grandes ramaes de contas douradas ao pescoço, e seus chapeos com muitas ymagens, todos com manteos que os cobriam até o joelho de brocados e per cima com remendos de veludo e cetim; e dado seu breve deytaram os manteos, bordões, contas, e chapeos no chão, e ficaram ricamente vestidos todos de  rica chaparia; e os manteos e todo o mais tomavam moços da camara e reposteyros e chocarreyros quem mais podia, e valiam muito que cada manteo tinha muytos covados de brocado. E assi vieram outros muitos e ricos momos, que nam digo com singulares entremeses, riquezas, galantaria, e muitos com palavras e envençoẽs d' ardideza aceitavam o desafio com as mesmas condiçoẽs, e dançaram todos atee antemenhã; e foy tamanha festa que se nam fora vista de muytos que ao presente sam vivos eu a nam ousara d' escrever.

E aa quarta-feyra o principe e a princesa com muita pompa e grande estado se foram apousentar no meo da praça, e tambem a rainha que andava mal sentida pera dahi verem as justas. E aa tarde partio el-rey de seus paços, e foy tomar a tea com tanta realeza, e tantas novidades, e cerimonias de grandeza como nunca outra se vio tomar. El-rey com seus mantedores foy decer aa fortaleza jaa de noyte onde todos cearam com elle em mesas junto da sua; e todos dormião no castello e comiam com elle, e dentro tinhão suas armas e muytos cavallos sempre selados e elles armados a giros, pera que em vindo o aventureyro tanto que o facho fosse derribado sayssem com muita deligencia sem detença algũa; e assi se fazia e fez em quanto as justas duraram.

De como el-rey deu sua amostra, e do grande estado

e riqueza e invenções que trazia

Capitolo CXXVIII

E aa quinta-feyra depoys de comer fez el-rey sua amostra com seus oyto mantedores, e apos elle a fizerão todos os aventureiros que passaram de cincoenta. Nos quaes todos en cavallos, arneses, paramentos, cimeiras, letras, e lanças, moços d' esporas, e todas as outras cousas de justa ouve tanta riqueza, galantaria, envenções, tudo em tanta perfeiçam, que muitos justadores velhos e de muitas partes que ahi eram, e que ja viram outras muitas justas reaes se maravilharam muito destas, e deziam que nunca tal cousa cuydaram de ver.

Sayo el-rey da fortaleza com seus oito mantedores, os quaes eram o prior de Sam Joam de Castella, Valençoila, e Dom Diogo d' Almeida, Joam de Sousa, Aires da Silva camareyro-mor, Dom Joam de Meneses, Monseor de Veopargas frances, Alvoro da Cunha estribeiro-mor, e Ruy Barreto com grandissimo estado e estrondo, tudo em tanta realeza que se nam pode dizer tam inteiramente como foy. Sayram primeiramente grande soma de trombetas bastardas vestidos de ricas sedas das cores d' el-rey e muito bem encavalgados. E apos elles vinham dous grandes e altos cadafalsos com rodas per dentro, que homens faziam andar sem se ver como andavam; os quaes eram ricamente pintados d' ouro e muito bem feitos e ordenados com muytas e ricas bandeiras todos cheos d' atabaleyros com os atabales polas bordas dos cadafalsos da parte de fora, que fazião tamanho roydo por serem tantos que se nam ouvia ninguem, e os atabaleiros vinham todos sem figuras d' omens. O carro primeiro eram todos feitos de feiçam de bogios tam naturaes que ninguem os teve por homens; e o outro em figuras de liões reaes com as felpas douradas muito naturaes e com os atabales todos dourados que parecia muito bem. E detras dos cadafalsos vinham muytas charamellas e sacabuxas ricamente vestidos. Apos elles vinha hum gigante muito grande e espantoso armado de todas armas douradas com hum escudo em hũa mão, e na outra hũa grande facha tam natural que parecia vivo, e passava de trinta palmos d' alto. E vinha encima de hũa muito grande azemolla que pera ysso se buscou vestida de pelles de ussos e tam natural, que cuidavam que era usso com hũa sela e guarniçam d' estranha maneira; e derredor do gigante muytos homens d' armas a pee com alabardas douradas nas mãos que pareciam muyto bem. E entam vinham muitos porteiros de maça, muytos oficiaes, todos ricamente vestidos e encavalgados, e apos eles o porteyro-mor e depois quatro mestres-salas, e atras o mordomo-mor, todos com opas roçagantes de ricos brocados, e tellas d' ouro com ricos forros; e apos elles vinham muitos cavallos a destro com riquissimos paramentos e muy singulares armas, e os moços d' estribeira que os levavam todos vestidos de brocado. E diante d' el-rey vinha hum seu paje que se chamava Dom Jorge de Castro moço muyto fermoso e gentil homem armado e todo cheo d' ouro e pedraria, com hũa guirlanda de pedraria na cabeça e diante hum penacho branco de garça; e vinha encima de hum muito grande e fermoso cavallo com muito grandes paramentos de tela d' ouro e forrados de muyto ricas martas zevrinas; e os paramentos eram tamanhos que pera o cavallo poder andar, os levavam levantados do chão, e afastados doze moços d' estribeyra vestidos de brocado de pelo, que faziam hum gram terreiro, e era fermosa cousa pera ver. E entam vinha el-rey armado de riquissimas armas com coroa real no elmo, e sua cimeyra rica e galante em tanta maneyra quanto no mundo podia ser, com muy riquissima pedraria e perlas, e o cavallo muyto fermoso e em estremo rico, com tantos canotilhos e chaparia, que o brocado rico e ricas tellas era o de que se fazia menos conta; e derredor d' el-rey corenta moços d' estribeyra muyto bem despostos vestidos todos de brocado de pello.

E apos el-rey vinham os mantedores muy ricamente ataviados com riquissimos paramentos de brocados e tellas e ricas sedas, bordados e entretalhados e com muitos moços d' esporas vestidos de sedas hum e hum detras d' el-rey, que desta maneyra fez sua mostra, e deu hũa volta aa praça com este grande triumpho que verdadeyramente foy cousa muyto pera desejar de ver e recear d' escrever.

E tanto que el-rey foy recolhido ao castello com seus mantedores, veo logo o duque com sete aventureyros fidalgos de sua casa, com grande soma de trombetas, atambores, charamelas, e sacabuxas, e antremeses diante com muita riqueza e galantaria e apos elle os outros aventureyros todos com tam ricos e galantes paramentos, e antremeses, e envençoẽs, tantos brocados, e tellas, tanta chaparia, e borlados, antretalhos e tanta riqueza, que me parece que dia de tamanha e tam galante festa nunca foy visto outro tal. E neste dia ouve ahi começo de justa e nam foy mais por logo anoytecer, aynda que pola grande claridade do castello e as muitas e grandes luminarias da praça que toda a noyte ardiam, a tea e a praça era tudo tam craro que podiam justar como na metade do dia. E com este dia de quinta-feyra justaram quatro dias continos atee o domingo, nos quaes dias nevou muyto e fezeram grandes frios, porém a neve nam fazia nojo aa tea por ser a praça toldada. E a justa foy muyto bem justada, e deram-se nella muytos e grandes encontros, sem aver perigo algum. E a cimeyra d' el-rey e dos seus mantedores e suas letras escreverey aqui e assi das dos aventureyros que me lembrarem. E que a  alguns ysto pareça sobejo outros avera que folgaram de o ouvir, que quem escreve nam pode contentar a todos, e nam faraa pouco se de poucos for tachado, que todos querem enmendar e muy poucos escrever. E pera se ysto evitar nam devia d' aver outra pena senam aos grosadores meter-lhe papel e tinta nas mãos e fazê-los per força escrever, e seria muito bom freo pera os desbocados, que sem saber o que dizem, grosam o que não entendem. E as cimeiras e letras são estas.

El-rey levava por cimeira huns liames de nao pola raynha Dona Lianor sua molher cheos de pedraria e dezia a letra:

Estes liam de maneira,

que jamais pode quebrar

quem co elles navegar.

O prior de Sam Joam de Castella, Valençoila, que fora grande senhor, e andava cá desterrado, trazia Alexandre encima dos grifos e dizia:

No es menor mi pensamiento

mas ha quebrado tristura

las alas de mi ventura.

Dom Diogo d' Almeida que depois foy prior do Crato, levava a boca do ynferno com almas dentro e dizia:

Acorda-os de mis passiones

animas, descansareis

de quantas penas teneis.

Joam de Sousa trazia hũa besta fera e dizia:

Aquesta guarda sus armas

mas a mí que amor enciende

nunca dellas me defiende.

Ayres da Silva camareiro-mor  trazia o cão cerveiro e dezia:

Guardas tu mas no tam cierto

como yo siempre guardé

la fe del bien que cobré.

Monseor de Veopargas frances trazia hũa cabeça de cabra e dezia:

Quien me tocare naquesta

yo le rompere la testa.

Dom Joam de Meheses trazia hum ychoo com hum homem metido nelle atee a cinta e dizia:

Es tam dulce mi prision

que deve para matar-me

no prender-me mas soltar-me.

Alvoro da Cunha estribeiro-moor trazia hũa arpa sem cordas e dizia:

Quanto más oye alegria

quien no alcança ventura

tanto más siente tristura.

Ruy Barreto levava hum banco pinchado e dizia:

Más quiero morir tras él

sus peligros esperando

que la muerte recelando.

Aventureyros:

O duque Dom Manoel yrmão da raynha trazia  seis justadores seus com os sete planetas.

O duque levava o deos Saturno e dezia:

El consejo que he tomado

deste muy antiguo dios

es dexar a mí por vos.

Dom Joam Manoel levava o Sol e dizia:

Sobre todos resplandesce

mi dolor

porque es él qu' es mayor.

Pedr' Ornem trazia Venus e dizia:

Si esta gracia y hermosura

puede dar-la,

de vos tiene de tomar-la.

Garcia Afonso de Mello trazia a Lũa e dizia:

Ante la luz de su lumbre

de vuestra gran claridad

es la desta escuridad.

Lourenço de Brito trazia Mercurio e dizia:

No ay saber ni descrecion

al que os mira

porque viendo-os se le tira.

Joam Lopez de Sequeira levava Mares e dizia:

La vitoria que de aqueste

he recebido

es ver-me de vos vencido.

Antonio de Brito levava Jupiter e dizia:

Aqueste suele dar vida

al que más servir-se halla

y vos al vuestro quitar-la.

Outros aventureyros que vieram per si:

Dom Fernando de Meneses que depoys foy marquês de Villa Real trazia hum forol e dizia:

En el mar de mi desseo

viendo su lumbre segui

a ella e dexé a mí.

Pedr' Aires castelhano trazia hũa serpente e dizia:

La vida pierde dormiendo

el que muerde este animal

e yo callando mi mal.

Dom Anrrique Anrriquez senhor das Alcaçovas trazia hũa torre com hum sino e dizia:

Este sona mi servicio

ser con vos

tan cierto como con Dios.

O conde d' Abrantes Dom Joam d' Almeida trazia hũa ydra de sete cabeças e dizia:

Quando sanam de un dolor

los que como yo padecen

siete dél se le recrecen.

O capitam dos ginetes Fernam Martinz Mazcarenhas trazia hũa atalaya e dizia:

Ha descubierto mi vida

desde aqui

gran descanso para mí.

Dom Rodrigo de Meneses guarda-moor do principe trazia hũas limas e dizia:

Estas sueltan las prisiones

de que muchos han salido

y a mí han más prendido.

Dom Martinho veador da Fazenda que depois foy conde de Vila Nova levava hũa mão com huns malmequeres e dizia:

Cien mil destas desfojé,

mas fue mi ventura tal

que siempre quedo en el mal.

Jorge da Silveira levava hũas fateixas e dizia:

Van buscando mis servicios

el galardon que cayó

donde nunca parecio.

Dom Diogo Pereira que depois foy conde da Feyra, levava o anjo Sam Miguel com as balanças e dezia:

Si a mi gran querer y fee

galardon tiene defesa

tu lo pesa.

Dom Rodrigo de Monsanto levava a torre de Babilonia e dizia:

Es tan baxa mi ventura

y tan alto el edificio

que no basta mi servicio.

Dom Diogo Lobo barão d' Alvito levava hum lião rompente e dezia:

Con sus fuerças e mi fee

todos mis males dobré.

Dom Pedro de Sousa que depois foy conde do Prado trazia hum matador e dizia:

Vuestra vida desbarata

más do qu' este roba y mata.

Francisço da Silveira coudel-mor trazia hũas luas cheas e vazias e dezia:

Las minguadas son mis bienes

y por mi dicha ser tal

las llenas son de mi mal.

Diogo da Silveira trazia hum madronheiro com madronhos e dizia:

Neste remedio de vida

tengo la mia perdida.

Pero d' Abreu trazia hũa aguea e dizia:

Nam t' espantes do que faça

sigue-me bem e verás

e eu te matarey a caça

e tu a depenarás.

Nuno Fernandez d' Atayde levava huns ramos de fetos e dizia:

En el comienço de aquestos

comencé

y en ellos acabé.

Garcia de Sousa trazia huns compassos e dizia:

No puede ser compassada

la fe que os tengo dada.

Joam Ramirez d' Arelhano castelhano trazia hũa cellada e dizia:

Es descanso de mi mal

ser en aquesta celada

toda mi vida gastada.

Diogo de Mendoça levava hũas ancoras e dizia:

Que venga toda fortuna

jamas sueltan vez ninguna.

E ao domingo por noite se desfizerão e acabaram as justas, e el-rey, a raynha, o principe, e a princesa se foram pera hos paços com grande triumpho, e aquella noite ouve muito grandes festas. E pollos juyzes das justas que eram Rodrigo d' Ilhoa, Ruy de Sousa, e o regedor Fernam da Silveira se julgaram e pubricaram a el-rey ambos os preços. Os quaes preços eram ao mays galante hum anel dum muito rico diamante, e a quem melhor justasse hum grande colar d' ouro muito esmaltado. A qual sentença foy muy justa, porque alem d' el-rey vir aa tea mays galante que todos, por ser aquela a primeira vez que justara quebrou com muita desenvoltura as primeiras quatro lanças que pera ganhar o grao erão ordenadas. Mas el-rey tomou pera si somente a honrra, e o proveito dos preços deu a outrem: o colar a hum Mossem Alegre fidalgo valenciano que ahi andava grande justador, e o anel deu a Diogo da Silveira. E apos estas justas eram outras tam ricas ordenadas  na praça e na salla da madeira, mas por rebate de peste que na cidade ouve pollo dano que o muito ajuntamento das justas fazia se deyxaram de fazer. E os muytos estrangeyros que a este casamento e festas vieram, fez el-rey muytas e grandes merces, e com grandes honrras os despedio, e a todos segundo suas calidades com grande nobreza deu muy grandes dadivas com que todos partiram muy alegres e muito contentes d' el-rey, das festas e de toda sua corte. E vieram a Evora muytos senhores de Castella desconhecidos a ver as festas, em que entrou hum yrmaão do almirante tio d' el-rey, e pessoa muy principal que el-rey desejou de ver e soube hum dia como estava em casa da princesa escondidamente e de supito foy dar de noyte com elle e o desembuçou e abraçou com muita honrra e gasalhado, e rogou muyto que descubertamente viesse ao paço, e elle disse que si, e ao outro dia polla manham cedo lhe mandou el-rey dez mil cruzados pera hum vestido, e elle era ja hydo que se foy a mesma noyte parecendo-lhe que el-rey avia de fazer o que fez.

De como el-rey sayo da cidade a primeira vez depoys das festas

Capitulo CXXIX

E com receo do antrelunho que avia de vir el-rey se sayo da cidade e se foy com poucos aa erdade da Fonte Cuberta, e o principe e a princesa ao Moesteiro de Nossa Senhora do Espinheiro, e a raynha por estar doente ficou na cidade muy guardada. E el-rey sendo fora achou-se tam mal e de tam fortes acidentes que cuydou que era peste ou peçonha, e soo sem o principe nem a princesa se tornou aa cidade bespora dos Reys, e logo com brevidade ouve saude e foy fora das maginações que teve por entam. E porque depois da morte do principe dahi a poucos dias el-rey tornou logo adoecer de mal de que ao diante morreo e ouve sospeytas que foy de peçonha, ficou hũa jeral presunçam que nesta Fonte Cuberta lhe fora dada em agoa que bebeo; a qual presunçam e sospeiçam se confirmou em muytos com as mortes de Fernam de Lima seu copeiro-moor e de Estevam de Sequeira copeiro e de Afonso Fidalgo homem da copa que hinchados e solutos como el-rey antes delle poucos dias todos tres faleceram. E mais por hũa molher religiosa de sancta vida foy el-rey avisado que se guardasse de peçonha que lhe ordenavam dar, e el-rey nam lhe  deu credito; e depois que se sentio mal e que hia pera pior, mandou chamar a mesma molher, e querendo saber della o que lhe tinha dito, ella com muita tristeza lhe disse que pois na primeyra lhe nam dera fee, que jaa entam nam aproveitava mais que pera ser certo que ja tinha recebida a mesma peçonha, polo qual el-rey secretamente lhe mandou fazer merce, e encomendou-lhe muito que o nam dissesse a pessoa algũa.

E aos dez dias de Janeyro de mil e quatrocentos e noventa e hum, el-rey e a raynha com o principe e princesa se foy a Viana d' Alvito; no qual dia o conde de Marialva Dom Francisco Coutinho entrou em Evora, vindo entam aas festas que passaram com muyta gente e muitas azemollas de ricos reposteyros de seda, muytas trombetas e ataballes e ricos concertos de casa; e à tornada d' el-rey a Evora, manteve depois na cidade no terreyro dos paços com muyta despesa, hũas muyto honrradas e ricas justas com preços em que justaram muytos fidalgos honrrados, e foy muyto boa festa em que ganhou muyta honrra, e el-rey o favoreceo muito niso e agardeceo seu bom serviço.

De como el-rey se tornou a Evora, e dahi se foy a Santarem

Capitolo CXXX

De Viana se tornou el-rey ante do Entruydo com toda sua corte à cidade, onde esteve a Coresma e a Pascoa e Oytavas com momos, festas, e grandes prazeres; e passada a festa se partiram todos logo no mes de Mayo pera Santarem, e foram por Montemor-o-Novo onde ouve festas e recebimento honrrado; e dahi foram correndo montes reaes, e pollo campo com ricas tendas armadas e enrramadas com muita grandeza e abastança pera arrayaes. E pollos montes e arvores de noyte ardiam sempre muitos fogareos, e assi com muito prazer chegaram a Coruche o Pintecoste. Onde estavam ordenadas muytas festas que se nam fezeram por ahi dizerem a el-rey que a marquesa de Villa Real era falecida, de que mostrou sentimento e se encerrou por ela, e de Coruche foram a Almeirim onde todos repousaram com muyto prazer e grandes desenfadamentos alguns dias. E el-rey em tanto mandou fazer ho apousentamento da corte em Santarem, e  aperceber as cousas pera o recebimento do principe e princesa que el-rey quis que se fizesse em grande perfeiçam.

De como o principe e a princesa entraram em Santarem

Capitolo CXXXI

E aos catorze dias do mes de Junho em que o principe e a princesa entraram em Santaren primeiro que el-rey e a raynha, o principe e a princesa depois de ouvirem missa em Almeyrim, acompanhados de grandes senhores e nobre gente foram jantar ao casal de Lopo Palha que he junto do Tejo acima de Santarem, onde soya d' estar hũa lezira de grandes arvoredos que o Tejo depois levou. E ahi foram armadas muytas e ricas tendas em que se todos gasalharam e foram banqueteados com grande abastança e perfeiçam. E depois de repousarem embarcaram ahi, e ouve hum singular recebimento d' albetoças, barcas e bateis e outros muytos navios que pera ysso ahi foram vindos, toldados em grande perfeyçam. E o principe e a princesa com suas damas e muytos senhores embarcaram em hũa grande alivadoyra toda toldada de brocado com muytas bandeiras de seda e alcatifada, e muytas almofadas de brocado, e batees que a levavam aa toa com os remeiros todos vestidos de libree das cores da princesa, e os bateys muyto embandeirados e pintados todos e os remos e muy enrramados, e nelles muytas folias d' omens e molheres muyto bem vestidos das cores da princesa e muitos antremeses e festas.

E em o principe embarcando, sayo o conde d' Abrantes de hũa ponta onde estava escondido com grande soma de barcas e bateis muito embandeiradas e enrramadas, e todas com muytas bombardas que tiraram, e com muytas trombetas e atambores e grandes gritas que pareceo muito bem. E com estes bateis e barcas e outros muitos era o rio cuberto delles todos com folias, prazeres, e antremeses, muitas trombetas bastardas, muitos atambores, muytas charamelas, e sacabuxas, muitas infindas bombardas que foy muito alegre festa por ser no Tejo; e ao sayr d' agoa estava feito hum grande cadafalso ricamente toldado, armado e alcatifado com degraos metidos n' agoa por onde todos sayam sem tocar n' agoa, no qual estavam hos regedores da villa;  e ao sayr d' agoa foy feita hũa arengua em nome da villa, e acabada o principe e a princesa se poseram debayxo de hum paleo de rico brocado que hos regedores levavam. E com grande estrondo de trombetas, e atabales, charamelas e sacabuxas, e muitos tiros de foguo do rio, e outros muitos que estavam no muro e torres d' alcaçova começaram d' andar. Os muros e toda a vila era cayada e toda enramada e muytas infindas bandeiras, e as ruas espadanadas e muyta e rica tapeçaria aas janellas com sinaes de muyta alegria que entam todos tinham. Foram assi polla ribeira e calçada decer a Sancta Maria de Marvilla, e depois de fazerem orações tornaram a cavalgar e se foram aos paços. E ao outro dia entrou el-rey e ha raynha sem paleo, porque ja na vila foram com elle recebidos. E nestes primeiros dias ouve muitas festas, e pollos oficiaes da villa e os judeus e mouros della se deram aa princesa grandes presentes de vacas, carneiros, galinhas, capões, patos, e muitas caças tudo levado em grandes carros atee o paço com muitas festas, e assi ouve logo muitos touros com muitos galantes a elles.

E depois d' el-rey, e a raynha, o principe, e a princesa estarem em Santarem todo o mais do tempo se gastava em festas, prazeres, alegrias avendo muitos serãos de sala, e assi danças às mesas e muitos touros com muitos galantes a elles ricamente ataviados. E dia de Sam Joam ouve singulares e muyto ricas canas reaes em que jugou el-rey e ho principe e todollos senhores que na corte estavam e muitos fidalgos que passaram de dozentos de cavallo com riquissimos arreos e atavios todos vestidos de brocados e ricas sedas, muitos borlados, antretalhos, e canotilhos com muyta galantaria e muy gentis envenções. El-rey com grande estado real e ho principe sayram pola menhaã cedo com a raynha e princesa e todallas damas com muyta riqueza vestidas, e foram ao campo d' Alvisquer na Ribeira de Santarem a colher ramas verdes; e en hũa orta tinham grandes casas feytas de rama muyto concertadas e embandeiradas em que avia muytas mesas pera el-rey, raynha, principe, e princesa e pera todos em que depois das canas jugadas se deu hum muito bom almorço; e tanto que as ramas e muitas capelas d' ervas cheirosas que ahi tinham foram tomadas, el-rey com todos se foi ao campo. E indo por elle sayo o duque Dom Manoel yrmão da raynha de hũa cillada com doze fidalgos de sua casa todos vestidos de hũa maneyra de brocados  e ricas sedas e muyto galantes à mourisca, com suas lanças nas mãos com bandeiras, e as adargas embraçadas com grande grita como mouros. E os corredores d' el-rey que diante eram como que hiam descubrir terra, vieram todos fugindo e bradando alto: "Mouros, mouros!"; el-rey com todos abalou loguo pera elles, e ouve hũa muyto galante escaramuça que pareceo muyto bem, e por ser cousa que se nam sabia senam el-rey. E ho duque com muyto prazer quis beyjar has mãos a el-rey, e à raynha, ao principe, e princesa, e nam lhas quiseram dar, e de todos foy recebido com grandissima honrra, que vinha entam da sua villa de Tomar aas mesmas canas. Concertou logo el-rey e repartio a gente e suas bandeiras e alferez, el-rey e o principe de hũa parte, e da outra o duque e muytos senhores e principaes fidalgos repartidos, e começaram logo de jugar; as quaes canas foram em estremo ricas e muyto bem jugadas, e caindo nellas muytos homens grandes queedas e antre tantos nam ouve desastre nem perigo.

De como foy ha triste morte do principe

Capitolo CXXXII

E nestas e outras festas andaram sempre atee segunda-feyra onze dias de Julho em que el-rey e o principe se passaram a Almeirim a correr montes e tornaram no mesmo dia. E o principe depoys de recolhido a casa da princesa, ao outro dia terça-feira lá se vestio em sua casa, e com ella ouvio missa e comeo e repousou a sesta. E na mesma terça-feyra doze dias de Julho do dito anno de mil e quatrocentos e noventa e hum à tarde el-rey quis yr nadar ao Tejo como muytas vezes fazia nos verãos apartado com alguns aceytos a elle; e tinha na guarda-roupa aparelho pera ysso de bragas e ceroilas, e panos de cubrir e enxugar, que todas as cousas d' omem folgava de fazer; e mandou recado ao principe se queria yr com elle como sempre tambem hia e nadava; e elle lhe mandou dizer que se achava cansado dos montes do dia passado. E quando el-rey deceo parecendo-lhe que o principe estava mal sentido perguntou por ele aa porta da princesa, e o principe lhe veo falar aa porta assi como estava na sesta. Foy-se el-rey e do terreyro de fora oulhou pera has jenellas da princesa, e vio o principe e ella estar ambos a hũa jenella assentados, tirou-lhe o barrete e elles se levantaram e lhe fizeram grandes mesuras e el-rey abalou pera o Tejo. O principe vendo que el-rey o viera ver aa porta e depois lhe falou aa janella, per cima de lhe mandar dizer e dizer que estava cansado, pareceo-lhe bem yr com elle e vestio-se depressa e mandou por hũa mula, e vindo jaa vestido a mula nam era vinda; achou ahi hum seu ginete muito fermoso fouveyro em que entam cavalgara o seu estribeyro-moor; e por alcançar el-rey cavalgou nelle e se foy depressa com poucos que com elle eram, e foy cousa pera notar e de misterio, que sendo em tempo de tamanhas festas e tantos brocados e sedas, o principe sayo vestido com hum pelote e tabardo aberto de pano preto tofado e gibam de cetim preto, e o cavallo com huns cordões e topeteyra e nominas de seda preta que nam me lembra que outras taes visse, e hum caparação de veludo preto, que verdadeiramente a deferença do que antes vestia e entam vestio, e de como achou o cavalo ataviado foram muy craros sinaes da grande desaventura que lhe ordenada estava.

Alcançou el-rey e foy com elle atee o Tejo, e custumando de nadar sempre quando el-rey nadava entam o nam quis fazer, e começou de passear pelo campo e lançar o ginete, por ser de singular redea e muito ligeyro, e cometeo a Dom Joam de Meneses o que morreo em Azamor primeyro capitão que nelle ouve, homem de muito merecimento e muitas e boas calidades que corressem ambos hũa carreira de que se Dom Joam escusou por ser jaa noyte. Deceo-se entam o principe pera cavalgar na mula que mandara trazer, e em sobindo nella lhe quebrou o loro do estribo por onde tornou a cavalgar no cavalo e apertou entam com Dom João que todavia corressem. E Dom Joam polla muita vontade que pera isso lhe vio o fez e o tornou pola mão e correndo assi ambos a carreyra na força do correr, o cavallo do principe cayo, e o levou debayxo de si, onde logo emproviso ficou como morto, sem falla e sem sentidos. E Dom Joam vendo tamanho desastre e tam grande desaventura, como chegaram ao principe muitos senhores e fidalgos, desapareceo e se foy com muita tristeza, e esteve ãnos sem vir aa corte, atee que per especial mandado d' el-rey veo.

Tomaram logo o principe nos braços e meteran-no na primeira casa que acharam que era de hum pobre pescador ahi n' Alfange, e tanto que a triste e desaventurada nova deram a el-rey, veo logo a grande pressa. E quando achou hum soo filho que tinha que criara com tanto amor, tanto receo, tanto contentamento por ser o mais singular principe que no mundo se sabia, em que se el-rey revia e  queria tam grande bem que hum soo dia nam podia estar sem o ver, nem tinha outro descanso senão sua muito estimada vista e conversaçam, ficou em tam grande estremo triste e desconsolado que se nam pode dizer nem cuidar, dizendo sobre o filho tantas lastimas e palavras de tanta dor e tristeza que o nam podia ouvir ninguem sem muytas e tristes lagrimas. Foy logo dada a lastimosa e desastrada nova aa raynha sua mãy e aa princesa sua molher; as quaes assi como a deram sayram como desatinadas a pee e em mullas alheas que acharam, e o senhor Dom Jorge filho d' el-rey com ellas; com muy pouca companhia foram como fora de seus sentidos atee chegarem aa pobre e triste casa onde o principe jazia. O qual acharam como morto que com quantas palavras d' amor, d' amargura e desconsolaçam lhe ambas disseram, a nenhũa nam acodio nem mostrou algum sentimento. De que as tristes mãy e molher ficaram tam cortadas e trespassadas com tam grandissima tristeza, que ellas sentiam a dor e dores que elle jaa nam sentia.

El-rey per cima de tanta tristeza fez logo ajuntar os fisicos todos e com muita segurança esteve com eles ordenando-lhe quantos remedios sabiam; e com estes primeiramente buscou os de Deos mandando logo por todolos moesteyros e casas virtuosas fazer devotas precições e muitas e continas devações e muito grandes prometimentos que se entam prometeram, em que entrou Dom Pedro da Silva comendador-mor d' Avis que prometeo d' ir a Jerusalem, o que logo foy e outros a outras muitas romarias. E estando todos asi esperando na misericordia de Deos que por ser queda tornaria a seu acordo, pasaram aquella noite toda em tristes lagrimas e saluços e continas orações.

Todalas pesoas nobres e a outra gente toda era ahi junta com tantas e doridas lagrimas e lamentações que mais nam poderam ser sendo o principe filho de cada hum, pedindo todos a Deos sua vida e saude como as suas propias vidas. E per todos se fez logo hũa muito grande e muy devota preciçam com toda a clerezia, reliquias, e cruzes, e todos descalços e alguns nus, andaram per todolos moesteyros e ygrejas onde todos em joelhos com muitas lagrimas e grandissimos gritos bradavam: "Senhor Deos, misericordia!", cousa que fazia tremor e espanto e grandissima tristeza.

E el-rey, a raynha e a princesa estiveram sempre com o principe atee o outro dia quarta-feyra hũa ora da noyte que el-rey foy enformado e certificado de todollos fisicos que o principe morria e acabaria logo de se finar; ha qual nova  el-rey deu aa raynha e princesa que estavam pegadas com elle beijando-o e tendo-lhe as mãos, e ellas a receberam com tam grandissima dor que se nam pode escrever. El-rey chegou ao principe, e beijou-o na face e pera sempre lhe deitou sua bençam, e tomou a raynha e a princesa pollas mãos que as nam podia desapegar dele, e com ellas se sayo fora da casa; deyxou ho filho em poder do confessor e doutros fisicos d' alma, e aa porta virou el-rey atras e disse aos que na casa estavam: "Ahi vos fica o principe meu filho", sem poder dizer mays pallavra. E com ysto se levantou antre todos hum muyto grande, muyto triste e desaventurado pranto, dando todos em si muytas bofetadas, depenando muitas e muy honrradas barbas e cabellos, e as molheres desfazendo com suas unhas e mãos a fermosura de seus rostros que lhe corriam em sangue, cousa tam espantosa e triste que se nam vio nem cuydou. A este tempo chegou o duque seu tio que de Tomar acudio aa triste nova; o qual em estremo ho principe amava, porque sempre se criaram ambos em hũa mesa e hũa cama, e fazia tamanho pranto com tam grande sentimento e tristeza que com quanto elle ficava então por erdeiro destes reynos, deyxara naquela ora outra mayor socessam polla vida e saude do principe. E logo el-rey se foy dali a pee e a raynha e princesa como mortas levadas e atravessadas em mullas aas casas de Vasco Palha que sam na mesma ribeira. E acabando todos de se recolher, veo a el-rey recado e a muito mortal nova que elle jaa esperava que o principe seu filho depois da derradeira unção lhe sayra a alma do corpo.

Morreo em ydade de dezasseis ãnos e vinte dias, parecendo no corpo, na barba, no saber, siso, e sossego homem de vinte e cinco annos. Foy casado sete meses e vinte e dous dias. E sendo criado com tanto amor e prazer, tanto estado e grandeza, tanta estima e estremecimentos, e tanta gloria mundana que todos desejavam de o trazer sobre suas cabeças, o viram em hum instante debayxo dos pees dhũa besta. E o que naquelle dia, e os outros todos estava em camaras reaes armadas de ricos brocados e alcatifadas, nam teve nem lhe poderam entam achar outra camara senam hũa triste casa de hum pobre pescador; e aquele que antre os principes do mundo e os homens de todo Espanha era avido por mais gentil homem, naquella ora foy desfigurado, e sua muy grande fermosura em breve tornada em terra; e os seus tam allegres e graciosos olhos com que todos rescebiam tanto contentamento e allegria naquella ora foram quebrados e pera sempre sem vista perante el-rey seu pay, a triste rainha sua mãy, e a desconfortada princesa sua molher; e a sua doce boca de que tam doces, brandas e gostosas palavras sayão e de que muitos recebiam favor e contentamento naquelle momento ficou pera nunca mais falar; e has suas fermosas e reaes mãos de tantos cada dia beyjadas polas grandes e muitas merces que fazia, como em tam pouco espaço foram tornadas em po. E as orelhas tam acustumadas a ouvir singulares e doces musicas e praticas de prazer, como se tornaram surdas sem ouvir has grandes lastimas d' el-rey e a raynha e princesa, e os muito grandes gritos e desesperados prantos que todos por ele faziam. E hos narizes criados em tantos cheiros, tanto ambar e almizcre, tantas pastilhas, caçoilas, e pivetes, e tantas aguoas cheyrosas, estoraques, beijoins, e outros muitos perfumes, como foram acabar no cheyro das çujas redes das espinhas e escamas da casa dhum pescador. E os seus singulares cabellos que tanto ajudavam sua gentileza que foy delles, onde estam? E o que todos tinham por verdadeira esperança e paz, sossego e emparo, em hum nada foy desesperado de saude e todos desemparados delle. E aquelle excelente principe por quem tam grandes e reaes festas se fizeram que outras taes nam se viram, e que pello seu todos andavam alegres vestidos de brocados e ricas sedas, em quam breve tempo tornou os brocados em burel, e as sedas em almafega e vaso, e hos prazeres e alegrias em muito grandes e tristes prantos, nam somente em Portugal, mas ainda em toda Espanha. E a sua muyto branda e doce conversaçam tam grande conforto d' el-rey seu pay, da raynha sua mãy e da princesa sua molher, e tanta esperança dos que o serviam e conversavam em campo, foy desconversavel e pera sempre apartado da conversaçam de todos. E aquelle tam real casamento tantos annos desejado, tantas vezes cometido, com tanto gosto e prazer de toda Espanha acabado, como foy em sete meses per tam desastrado caso apartado pera sempre; e o que era verdadeyro, natural e primeyro cedro destes reynos, e o segundo de Castella, em quam poucas oras perdeo tamanhas eranças, e seu pay com tanta tristeza, nojo, desconsolaçam, erdou delle ho grande dote que com tanto prazer e alegria lhe tinha dado avia tam pouco tempo, cousas bem pera lembrarem e os reys e grandes principes terem sempre na memoria.

Oo Senhor Deos eternal, quam encomprensiveis sam teus secretos! Oo quem podesse saber teus juyzos e que pecados podia ter hũa tam angelica criatura, e de tam pouca ydade pera tam supito sem confissam nem comunhão tam desastrada morte morrer! Se dissermos que pollos do pay, sua vida foy sempre tam virtuosa, de tantas perfeições, e tam amigo de teu serviço, que era pera dar vida a muytos filhos e filhas, quanto mais a hum soo e tal como este era; se por peccados do povo nenhuns lhe sabiamos pubricos. Tu, Senhor, que o fizeste sabes a causa porquê; e porque nós sem ti nam podemos saber nada, teu nome seja pera sempre louvado.

El-rey estando muito mais anojado do que se pode dizer nem cuydar, por perda de tal filho em que perdeo toda sua consolaçam e prazer, se doya em grande maneyra e sentia sem comparaçam a grande dor e magoas da raynha e princesa, e porque a dorida e lastimosa nova do principe ja ser morto, poderia ser que sabendo-a doutrem seria risco de suas vidas, lha quis dar primeiro que ninguem. E com muyta segurança e sossego e os olhos bem enxutos das continuas lagrimas que chorava, com seu muito grande esforço e prudencia se foy primeiro a casa da princesa que achou deytada como morta no chão; e depois de a fazer alevantar com palavras  de pay verdadeiro e de rey tam virtuoso lhe quis dar os confortos de que elle mais que ninguem tinha necessidade atribuindo tudo em dar graças e louvores a Nosso Senhor poys elle disso fora servido. E deixando a princesa se foy logo aa raynha e lhe deu ha mortal nova, pedindo-lhe muito pollo seu amor que ouvesse paciencia e conformasse sua vontade com a de Deos, que pois elle fora servido de lhe assi levar seu filho fosse seu nome louvado. Isto tam ynteiro e tam dissimulado por confortar a raynha, como se elle nam fora o principal na tristeza, e na door e sentimento, nem ho pay que naquella ora perdera o mais excelente filho que no mundo se sabia, e delle muyto mays amado do que nunca filho foy de pay. A raynha como muyto virtuosa que era pollo grandissimo amor que a el-rey tinha, vendo que na perda do filho nam avia ja remedio, o quis buscar pera a vida d' el-rey, de que tanto receo tinha como elle da sua. E com muita seguridade nam somente tomou os confortos d' el-rey, mas ainda como molher muy inteira o queria confortar, com seu rosto muy seguro e seus olhos muy enxutos e suas palavras muy temperadas de que el-rey ficou algum tanto alivado. E era tamanho o bem que se queriam que por confortar hum ao outro como  estavam juntos nam avia ahi chorar, e como eram apartados as lagrimas e palavras de lastima eram tantas, que nam avia quem os podesse ver sem chorar muito com elles.

Foy logo o corpo do principe depois das exequias feitas concertado e metido em huũ ataude e pollo marquês de Villa Real e outros senhores e honrrados fidalgos levado con muyta dor e tristeza ao Moesteiro da Batalha; e foy sepultado na casa do capitolo junto d' el-rey Dom Afonso seu avoo onde ainda agora jaaz. El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e sentimento se trosquiou. E elle e a raynha se vestiram de muyto baixo pano negro. E a princesa trosquiou os seus prezados cabellos e se vestio toda d' almafegua e a cabeça cuberta de negro vaso. E na corte e en todo o reyno nam ficou senhor nem pessoa principal nem homem conhecido que se nam trosquiasse. E todos foram vistidos d' argaos de burel e almafega, e muytos homens cingidos com baraços e seus gibões e pelotes abotoados com atacas de couro sem parecer fita nem seda. E a gente pobre que nam tinha com que comprar burel que valia a trezentos reis a vara, muitos tempos andou com os vestidos virados do avesso; que polo grande amor que todos tinham ao mal logrado do principe  e a el-rey seu pay e à raynha sua mãy e pola muita dor e grandissima tristeza que neles viam e o caso ser de tamanha desaventura, foy a mais sentida morte, e os mayores prantos geraes na corte e por todo o reino quaes nunca forão vistos, de homens, e molheres, velhos, e moços, e meninos, que en todos avia tanto sentimento que era cousa d' espanto. E porque se nam achava tanto burel, os lavradores e gente bayxa vendiam as cubertas de suas camas a preço de panos finos, e os homens se vestiam de sacos e cubertas de bestas.

Veo logo a esta desaventura a senhora duquesa de Bragança Dona Isabel yrmã da raynha que com suas tristezas e nojos passados, e suas mui honestas e prudentes palavras trabalhava confortar a raynha e princesa a quem muito aproveitou sua vinda e conversaçam. Estiveram assi  quinze dias nas casas de Vasco Palha, e dahi hũa noyte escura sem tocha nem claridade se mudaram às casas de Dona Maria de Vilhana molher que foy de Fernam Telez onde estiveram muytos dias encerrados, que por suas grandes tristezas ninguem ousava de os confortar, e logo ali forão visitados de todos os senhores e cidades do reyno. E el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel de Castella que entam estavam sobre  Granada tanto que a nova souberam os mandaram visitar por Dom Anrrique Anrriquez tio d' el-rey e seu mordomo-mor, pessoa muy principal que logo ahi veo cuberto de grande luto, e todos os seus com sinais de muita tristeza; e assi os mandaram visitar todos os grandes senhores de Castela, onde em todo o reyno se tomou grande doo e se fezeram pola alma do principe muyto solenes saymentos.

El-rey foy muy requerido de todos os grandes de seu conselho e por religiosos que deixasse tamanhos ençerramentos, pola perda de sua saude e vida que delles lhe podia recrecer. O qual el-rey quis conceder, e saindo hum dia pola menhã a ouvir missa fora cuberto de muito grande doo, quando se vio sem o principe seu filho que sempre trazia junto de si, nam se pôde ter que lhe nam saissem as lagrimas, e como foy visto, levantou-se tamanho choro e pranto em todos que era piadosa e muy triste cousa pera ver; e como ysto foy ouvido em casa da raynha e princesa, começaram de novo outro tam grande, tam dorido e desconsolado pranto com tantos e tam grandes gritos que parecia que os paços se vinham a terra, e foy necessario a el-rey decer-se pera yr confortar a rainha e a princesa sem ter quem confortasse a ele.

Da mudança do senhor Dom Jorge

Capitulo CXXXIII

E el-rey depois da morte do principe, deu logo carrego do senhor Dom Jorge seu filho, a Dom Joam d' Almeyda conde d' Abrantes, e por tirar paixam aa raynha sua molher com a vista do senhor Dom Jorge, lembrando-lhe a morte do principe seu filho, ouve el-rey por bem que por entam nam viesse a sua casa; e em caso que o el-rey fizesse com fundamento honesto e virtuoso, a rainha ouve disso desprazer e tanto que depois que el-rey lho requereo e muito apertadamente lhe pedio que o tornasse a recolher a sua casa, foy nisso tam dura e tam contraira que recebendo por ysso d' el-rey muitos disfavores nunca em vida d' el-rei o quis ver nem recolher. O que el-rey com muito desejo precurava com algũa ymaginaçam e desejo que depois mostrou de ver se poderia legitimar e habilitar o dito senhor Dom Jorge seu filho pera sua socessam, que ao duque direitamente pertencia. O qual pola muita lealdade e amor e muy grande obediencia que como propio filho a el-rey tinha, fosse de crer que consenteria nisso  e em qualquer outra cousa que fosse da vontade d' el-rey. A raynha sua yrmaã com muita bondade, virtude, e conciencia sosteve sempre a honrra do duque, a qual se afirma ser d' el-rey muitas vezes pera ysso requerida, e por nam consentir sofrer muitas paixões, desfavores, e esquivanças, que com muita paciencia, dessimulaçam e prudencia sofria, sem nunca querer nisso outorgar. O que pareceo ser per misterio divino, pois ella foy causa do duque seu yrmão, ser depois rey tam poderoso e tam prosperado e deyxar tam singulares filhos como deyxou, e el-rey seu marido fazer com tanta verdade, vertude, bondade, tam justo testamento e morrer tam santamente, como ao diante em sua morte se dira.

Do saymento do principe

Capitolo CXXXIV

Aos vinte e cinco dias d' Agosto el-rey e o duque e todolos perlados e senhores, senhoras e donas e honrrados fidalgos, de todo o reyno que pera isso foram chamados, partiram pera o Moesteyro  da Batalha a se fazer o saymento do principe, e assi outra muyta e honrrada gente; e desejando muito a raynha e princesa hirem ao dito saymento, el-rey ouve por bem nam hirem por o perigo que lhe dahi podia vir; e em seu lugar foram ha senhora duquesa de Bragança yrmã da raynha, e a senhora Dona Felipa yrmã da infanta Dona Breatiz com muytas condessas e donas principaes do reyno. E de Castella vieram ao saymento por mandado d' el-rey e da raynha o bispo de Cordova, e o prior de Nossa Senhora d' Agoadelupe. O qual saymento se fez com a mayor perfeyçam e abastança, e com mays lagrimas e prantos que numca tee entam foy visto. Chegou el-rey bespora de Sam Bertolameu aa Yrmida de Sam Jorge, donde o Moesteyro da Batalha parece, onde o começaram logo de receber, nam com paleos de brocado nem com festas e antremeses de prazer como tam poucos dias avia que passaram com tanta realeza, mas com outras envenções ao reves, de muito grande tristeza, grande dor e sentimento, porque logo vio o moesteyro todo cuberto de infinitas e grandes bandeyras negras, e na yrmida estava hũa grande e negra bandeyra alta, com a cruz e marteyros de Nosso Senhor Jesu Christo; e dali atee o moesteyro era o caminho  todo dhũa parte e da outra cheo de muitas e grandes bandeyras negras, sem armas nem devisa algũa que eram muytas sem conto; e por todalas arvores que ao longo do caminho estavam tantas bandeiras que ficavam negras e nam verdes, que faziam tanta tristeza que nam avia pessoa que se podesse ter aas lagrimas. E assi chegou ao moesteyro, o qual estava todo de alto a bayxo armado de panos negros e os esteos tambem; e polo alto todo ao redor, e pola nave do meo de hũa parte e da outra eram feytos andaimos de madeira cubertos de doo em que ardiam tochas sem conto, e os homens que as andavam espevitando, com lobas e capellos que lhe cobriam os rostos; e a essa era no cruzeiro no meo dele, muito grande, muito alta, de muitos degraos, cuberta de panos de doo; e encima della alto no aar hum sobreceo de veludo preto muito grande todo polas bordas cheo d' armas  reaes, e principes parentes do principe, muito bem pintados d' ouro e prata; e do meo do sobreceo estava pendurada hũa grande bandeyra de seda das armas do principe com ouro e prata; e debayxo della em o mais alto da eessa hũa tumba de veludo preto com hũa cruz de cetin branco; e por derredor da eessa grades de pao negras com muitas tochas acesas, e os homens que as espevitavam, cubertos de doo sem lhe parecer os rostos; e assi todalas outras cousas necesarias em grande comprimento e abastança, com muita perfeiçam quanto podia ser, e era cousa tam triste soo à vista que quebrava os corações, quanto mais a causa por que se fazia de todos era em estremo sentida.

E logo aquela tarde com grandes e espantosos prantos e doridas lamentações d' el-rey e do duque e de todolos do reino que hi eram, e grandes gritos e carpinhas das senhoras e honradas molheres se disseram as besporas, e ao outro dia misa solene e outras infinitas missas, e assi hũa pregaçam que fez hum grande letrado e singular pregador, que se chamava mestre João Farto, da hordem de Sam Francisco, em que alegou tantas e tais rezões pera choro e tristeza que muitos homens de muita autoridade, muito saber, muito siso, aquela ora parecia que o nam tinham, vendo-lhe muito cruamente dar na essa tamanhas cabeçadas que parecia que quebravão as cabeças depenando todos suas barbas e cabelos dando em si muitas bofetadas assi homens como molheres, velhos e moços, cousa tam espantosa e de tanta dor e tristeza que nam se vio outra tal; e durou tanto que os nam podiam fazer calar porque a dor e sentimento era em todos em geeral grande sem comparaçam, por quam amado e bem quisto o principe de todos era. E aa oferta da missa mayor ofereceram por parte d' el-rey e da raynha, da princesa e do duque pola alma do principe muitas e muy ricas cousas d' ouro e de prata e ornamentos de brocado e tellas d' ouro pera a capela, cousa de muito grande valia que oje em dia estam no moesteyro, peças de muyto grande preço. E verdadeiramente estas duas cousas se podem afirmar que nunca se viram tam grandes festas nem tamanho nojo.

De como a princesa partio pera Castella

Capitolo CXXXV

E acabado assi este solene e triste saymento, el-rey vindo por casas sanctas e devotas fazendo muytas e muy grandes esmollas polla alma do principe, se tornou a Santarem. Onde logo determinou a yda da princesa pera Castella, pera que Dom Anrrique tio d' el-rey, e o bispo de Cordova eram ahi vindos, porque por condiçam do contrato do casamento ella o podia fazer. E com muyta door e sentimento da morte do principe que alli foy renovada e com muyto grande saudade de hũa parte e da outra, a princesa se despedio da raynha com muytas lagrimas e grandes salluços no mes de Setembro. E el-rey foy com ella e assi toda ha corte todos cubertos de burel sem parecer homem de preto salvo el-rey e alguns bispos e clerigos. E a princesa cuberta de almafega e vaso, metida em hũas andas cubertas de burel e as azemolas que as levavam da mesma libree, que era bem desviada das com que ella entrou em Portugal avia tam poucos meses. E a tristeza era em todos tamanha que nam havia outra pratica nem passatempo senam sospiros e lagrimas; que verdadeiramente ver o dia de sua entrada em Evora, e este de sua sayda de Santarem, em tam pouco tempo tamanha deferença, foy cousa de muito espanto e pera nunca esquecer. Chegaram assi aa villa d' Abrantes, onde a princesa esteve tres dias provendo algũas cousas suas que ficavam em Portugal, e d' Abrantes partio el-rey com ella caminho da Ponte do Sor, e dahi a duas leguoas com muytas lagrimas e poucas palavras se despediram ambos. E el-rey se tornou e apartou do caminho soo por hum soveral e foy assi ao longo do caminho sem  companhia algũa, e todos ficavão muito tristes polla grandissima tristeza que nelle conheciam. A princesa acompanhada de muitos senhores e fidalgos portugueses foy dormir a Avis e dahi a Olivença, e no estremo dos reynos polo arcebispo de Braga com hũa breve e prudente fala e ao tempo bem conforme que hi fez, entregou a princesa ao mestre de Santiago e a outros senhores de Castella que ahi esperavam por ella. E os portugueses se tornaram, salvo Dom Joam de Meneses governador que fora da casa do principe que com muitos e honrrados fidalgos per mandado d' el-rey sempre a servio e acompanhou atee chegar onde estava el-rey seu pay e a raynha sua mãy que com muito grande tristeza e sentimento a receberam.

Partida d' el-rey e da raynha pera Lixboa
depois da morte do principe

Capitulo CXXXVI

Como a princesa foy partida de Santarem, logo a raynha se partio pera o Moesteyro das Vertudes e dahi pera Alanquer, onde el-rey veo ter com ella e ambos se foram ao Moesteyro de Varatojo onde por devaçam estiveram alguns dias, e dahi foram ao lugar de Colares junto de Sintra, donde el-rey mandou fazer o apousentamento em Lixboa da corte pera se yr lá. E no mes d' Outubro se vieram aa cidade pera nella tirarem o burel que aynda todos traziam. E sem recebimento algum pola Mouraria foram decer e fazer oraçam ao Moesteyro de Nossa Senhora da Graça, e aas portas da cidade junto com Sancto Andre por onde entraram estavão todos os regedores, e oficiaes dela, e os fidalgos e cidadões todos a pee vistidos de burel e com as cabeças e rostos cubertos; e per hum lhe foy feyta hũa breve fala de confortos e oferecimentos, cuja reposta de hũa parte e da outra foram muitas lagrimas e saluços sem algũa outra palavra.

E acabadas as oraçoẽs no moesteyro se foram decer aos paços d' alcaceva e acabados d' apousentar a raynha foy logo ver a camara onde parira o principe; e indo ja cortada e trespassada da dor disse: "Filho, aqui nesta casa onde vós nacestes com tanto prazer e contentamento meu, aqui seria muyta rezam que eu morresse e acabasse tam triste e escusada vida, pois fuy tam desaventurada e desditosa raynha que perdi o nome de vossa mãy com que eu era tam bem aventurada; e ainda nam abastou perder-vos a vós, mas da maneira com que vos perdi, e sem de vós nem de mi ficar filho com que algũa ora me podesse confortar"; e com ysto cayo no chão como morta. Foram-no dizer a el-rey que andando tam cheo de payxões e tristezas acudio logo à pressa con remedios e confortos com que a tornou a seus sentidos e lhe pedio muyto que se consolasse.

De como el-rey deu os mestrados de Santiago e d' Avis
ao senhor Dom Jorge seu filho

Capitulo CXXXVII

Logo depoys da morte do principe, el-rei supricou ao Papa Inocencio polla governança e ministraçam dos mestrados de Santiago e d' Avis pera o senhor Dom Jorge seu filho. E estando el-rey em Lisboa lhe vieram as letras dambos despachados; e logo lhe foy dada obediencia pollos comendadores e cavaleiros das ditas ordens no Moesteiro de Sam Domingos a doze dias d' Abril de mil e quatrocentos e noventa e dous, onde aquelle dia ouvio missa d' estado. E deu-lhe el-rey por ayo e governador de sua casa Dom Diogo d' Almeida que  dahi a poucos dias foy prior do Crato per fallecimento do prior Dom Vasco d' Atayde. O qual Dom Diogo foy homem muy principal, muy vallente cavalleiro, muyto cortesão, e de muytas e boas calidades e muyto aceito a el-rey.

Do que el-rey respondeo a certos senhores
que ho confortavam pola morte do principe seu filho

Capitolo CXXXVIII

Estando el-rey assi anojado depois de pasarem alguns dias em que ja entravam com ele certos senhores e pessoas principaes do conselho o estavam confortando e buscando modos e maneiras pera o consolar, e elle lhe respondeo: "Eu verdadeiramente per cima de tanta tristeza, tanto nojo, e desconsolaçam dou muitas graças a Deos pois elle foy servido de me assi levar meu filho, que elle soo sabe o que faz, e nós nam podemos saber nem alcançar seus secretos e escondidos juyzos. E vos certefico que de hũa cousa soo estou em algũa maneyra confortado, que he parecer-me que Nosso Senhor Jesu Christo se lembra da gente destes reynos, porque  meu filho nam era pera ser rey deles". No que mostrou tamanho amor a seus povos.

E dizia el-rey ysto porque o principe era muyto cheo de branduras e prezava-se muito de sua gentileza; e vistia-se sempre de tabardos, e com martas ao pescoço forradas de cetim e guarnecidas d' ouro, cousa mais de molheres que de homens; e nam queria trazer capas abertas nem espada de que el-rey recebia muita paixam, e tambem de ver as pessoas com que folgava, que nam eram as que el-rey desejava e queria, senam homens delicados e brandos; e com quanto o reprendia e amoestava e com muyto amor ensinava, nam lhe podia tirar seu natural, que el-rey avia que nam era pera a condiçam destes reinos. E claramente o principe era mays incrinado aas cousas d' el-rey Dom Afonso seu avoo que às d' el-rey seu pay; e era mais brando e massio do que cumpria, que se ysto nam fora segundo o grande amor que lhe tinha el-rey morrera de nojo e paixam de sua morte. Mas este descontentamento e o grande amor que a seus naturaes tinha, lhe deu Deos por remedio de tamanha perda e desconsolaçam como a sua era.

Da merce que el-rey fez aos filhos de Dom Pedro d' Eça
e aos de Vasco Martinz de Mello

Capitollo CXXXIX

Dom Pedro d' Eça alcaide-moor de Moura muito bom cavaleiro e homem que el-rey estimava estando pera se finar em Santarem onde el-rey estava, mandou pedir por merce a Antam de Faria que o fosse ver, e per elle mandou dizer a el-rey que elle estava em passamento, e portanto mandava a sua alteza as chaves da fortaleza de Moura de que lhe tinha feito merce. E el-rey ouvindo o recado pesando-lhe muyto de assi estar, disse a Antam de Faria que logo lhe tornasse as chaves e lhe dissesse que aos taes cavaleiros como elle era nam acustumava tirar o seu a seus filhos, mas antes lhe fazer muytas merces; que tomasse as chaves e que a fortaleza e quanto dele tinha repartisse per seus filhos aa sua vontade como cousa sua propria, e mandasse fazer os despachos que logo foram feitos e assinados em sua vida; e lhe mandou dizer muytas pallavras de conforto pera tal tempo de que Dom Pedro foy muyto consolado e ficou muy satisfeito.

E quando se finou Vasco Martinz de Melo alcaide-mor do Castello da Vide, hum fidalgo principal foy pedir a el-rey que lhe fizesse merce do dito castello e el-rey lhe respondeo: "O que farey por amor de vós sera guardar-vos segredo, e nam saber pessoa algũa que me pedistes ysso; porque a hum homem que tem cinco filhos que me servem ja com a lança na mão eu nam ousaria de pedir o seu". E logo sem requerimento deu o castello a Duarte de Melo seu filho mayor, e o que mais tinha repartio pelos outros filhos.

Do fundamento e principio do esprital grande de Lisboa

Capitolo CXL

E no anno de mil e quatrocentos e noventa e dous a quinze dias do mes de Mayo mandou el-rey perante si fundar e começar os primeiros aliceces do esprital grande de Lixboa da invocaçam de Todolos Sanctos na maneira en que ora está feito, o qual lugar era horta do Moesteiro de Sam Domingos. E nos primeyros aliceces el-rey por sua mão por honrra de tam sancto, tam grande, e tam piadoso edeficio, lançou muytas moedas d' ouro. E esse dia andou todo ahi vendo como se começava e comeo em casa do conde de Monsanto que he pegada com ha orta do dito esprital.

E neste ãno el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel de Castela tomaram per cerco a cidade de Granada aos mouros que por ser cousa de honrrada memoria se poem aqui.

Do que el-rey respondeo a hum recado da raynha de Castella

Capitolo CXLI

Sendo o principe Dom Afonso que Deos aja casado com a princesa Dona Isabel filha d' el-rey Dom Fernando e da raynha Dona Isabel de Castela estando em muita paz, muita liança e muito grande amizade, a raynha Dona Isabel mandou dizer a el-rey que desejava muito de ver a cidade de Lixboa e vir a ella com vinte de mulla somente se ele disso ouvese prazer. E el-rey lhe respondeo que assi desejava elle muito entrar em Sevilha com cincoenta cavalos a destro diante dele.

Do que el-rey disse quando deu o oficio de mordomo-mor
a  Dom Joam de Meneses

Capitollo CXLII

Depoys da morte do principe pouco tempo se finou Dom Pedro de Noronha mordomo-moor d' el-rey homem de muita honrra e grande autoridade; e pedindo-lhe o oficio muitos senhores e pessoas aceitas a ele, el-rey o deu a Dom Joam de Meneses que fora governador da casa e terras do principe seu filho, que depois foy conde de Tarouca e prior do Crato homem de muito merecimento; e cuydando alguns que por andarem mais metidos que el-rey desse o oficio a outrem, lhe disseram hum dia em pratica: "Senhor, nunca cuidamos nem nos pareceo que vossa alteza desse este oficio de mordomo-mor a Dom Joam"; e el-rey lhe respondeo: "Sabeis porque lho dey? Dey-lho porque sempre me falla verdade, ainda que me nisso nam fale à vontade"; e verdadeiramente se os oficios se dessem por taes aderencias averia ahi poucos agravados e quiçaes os reis seriam melhor servidos.

De quando el-rey defendeo as mulas

Capitolo CXLIII

Neste tempo porque el-rey sempre provia as cousas antes d' aver necessidade dellas, e vendo que a  liança de Castela com a morte do principe ficava desatada per cima da muita paz e amizade que tinham defendeo que em todos seus reinos nam ouvesse mulla de sela, nem besta que nam fosse de marca, nam quis que perlados nem outro nenhum clerigo podessem andar nelas; e porque muitos abades e clerigos abastados d' Antre Doiro e Minho e de Tra-los-Montes mandaram requerimentos a el-rey que lhe guardasse os privilegios da Igreja e que nam lhe defendessem mulas, senam que apelariam pera o Papa e mandariam sobre ysso a Roma. Co­mo lhe nisso tocaram disse que ele nam queria entender na jordição da Ygreja que as tevessem muito embora; que elle faria o que por sua jordiçam e poder podia fazer. E mandou logo apregoar em todos seus reinos que qualquer ferrador ou homem que ferrasse mula de sela que morresse por isso, e nunca com isto quis dispensar com ninguem. Por onde os clerigos sem terem com que yr nem mandar ao Papa deixaram as mullas e em vida d' el-rey nunca as mais ouve.

Do que el-rey fez a Dom Francisco d' Almeida

Capitolo CXLIV

Dom Francisco d' Almeida que depois foy o primeiro viso-rey da India, andou em Castela nas  guerras de Granada, onde fez muyto boas cousas, e ganhou muyta honrra e fama de muyto bom cavaleyro. E depois de Granada tomada se veo a estes reynos, e el-rey polo bom nome que trazia lhe fez muyta honrra e favor. E hum dia estando el-rey em Alcouchete comendo pola menhã pera yr a monte, Dom Francisco veo aa mesa com vestidos de monte e touca posta, e el-rey lhe perguntou se comera jaa; respondeo: "Senhor, nam, deixey-o pera depois do monte acabado, porque he aynda cedo"; e el-rey lhe disse: "Muito trabalho sera esse; assentay-vos ahi e comey comigo". E mandou-o assentar em hũa cadeyra aa mesa, e comeo com ele soo perante muytos grandes e nobres que hi estavam em pee, soo por ser bom cavaleyro.

Do que el-rey respondeo a Ruy Gil e a Francisco de Miranda

Capitolo CXLV

Hum Diogo Gil Magro cavalleyro da casa d' el-rey em Evora, enjuriou muito a Alvoro Mendez do Esporão, homem bem honrrado e muito bom cavaleyro, e por lhe parecer que estaria bem guardado e seguro delle, se foy aa fortaleza d' Arrayolos onde estava com Pero Jusarte senhor da vila, com que tinha muita amizade bem guardado e temido. E no anno de noventa e dous, Joane Mendez de Vasconcellos, e Diogo Mendez seu yrmão, filhos do dito Alvoro Mendez per estucia do pay, com muita gente de cavalo e de pe que ajuntou entraram per manha ao dito castelo hum dia ante manhã e quebraram as portas da casa do dito Diogo Gil e o mataram. Do que pesou a el-rey porque lhe tinha boa vontade e queria bem a Ruy Gil seu irmão e era descontente d' Alvoro Mendez. E por o feito ser tam crime e el-rey nam ter boa vontade ao dito Alvoro Mendez, Ruy Gil com Aires da Silva camareiro-mor por valedor pedio a el-rey que lhe fizesse merce das fazendas d' Alvoro Mendez e seus filhos, que per bem de suas ordenações perdiam por fazerem assumadas com gente do estremo e de Castela e entrar em hũa fortaleza e matarem seu irmão; e el-rey lhe respondeo: "Milhor faria eu de dar a elles as fazendas de Pero Jusarte e de vosso yrmão que a vós as suas; a de Pero Jusarte por quam mal guardou a fortaleza e a de vosso yrmão por quam mal se soube guardar; que Alvoro Mendez e seus filhos fizeram o que deviam pois souberam vingar sua injuria honrradamente como bons cavalleyros". E porque el-rey sobre o caso mandava tirar grandes enquirições, devassas e  fazer muytas deligencias, e era certo que o barão d' Alvito, Diogo de Mendoça, Diogo d' Azambuja, Ayres de Miranda e outros deram pera ysso gente e ajuda, Francisco de Miranda falou a el-rey sobre ysso pedindo-lhe por merce que nam quisesse devassar sobre tantos e honrrados homeẽs e que oulhasse sua alteza como homem e nam como rey, se outro tanto fizeram a seu pay o que elle sobre ysso fizera e el-rey lhe respondeo: "Francisco de Miranda, fizera o que eles fizeram e por ysso me averey com elles temperadamente"; e logo sem outro mais requerimento mandou cessar as devassas e emquerições sem falar nisso mais porque fora sobre vingança de ynjuria de pay.

Do que el-rey fez sobre hũa caravella

da Mina que lhe tomaram os franceses

Capitolo CXLVI

Neste tempo estando el-rey em Lixboa lhe tomaram os franceses hũa caravela da Mina com muyto ouro tendo paz com França. Tanto que o soube teve sobre ysso conselho com os principaes que na corte estavam. E todos lhe aconselharam que mandasse sobre ysso hũa pessoa a el-rey de França; e elle disse: “A mi me parece o contrairo do que parece a todos vós outros porque nam quero que a pessoa que laa mandar possa ser mal ouvida ou trazida em dilações do que mais me pesaria que da perda do ouro”, e levantou-se do conselho  sem dizer o que queria fazer. Acertou-se estarem em Lixboa dez naos de França grandes e de boas mercadorias; mandou-as tomar loguo todas e recolher com muyto recado as mercadorias n' alfandega e tirar-lhe as vergas e governalhos e meter nelas homens que as guardassem e lançar os franceses fora dellas. E mandou logo a grande pressa con grandes provisões e poderes a Setuvell e ao reyno do Algarve Vasco da Gama fidalguo de sua casa, que depois foy conde da Vidigueira e almirante das Indias, homem de que elle confiava e servia em armadas e cousas do mar a fazer outro tanto a todas as que laa estivessem o que fez com muyta brevidade. E asi mandou outro tanto aa çidade do Porto e a Aveyro. E os donos todos delas se forão a el-rey de França cramar e pedir que lhes fizesse tornar o seu. E el-rey de França pôs loguo tal deligencia e mandou fazer tanto nisso que ouve tudo à mão e mandou a el-rey sua caravella com todo seu ouro, e o das partes sem falecer hũa dobra. E assi o ouve sem nisso falar mandando-lhe ainda el-rey de França dar desculpas; e aos donos das naos mandou logo entregar tudo da maneira que lhe fora tomado sem falecer cousa algũa.

Do que el-rey fez quando a sua nao grande partio pera Levante

Capitolo CXLVII

El-rey mandou fazer hũa nao de mil toneis a mais forte e  milhor acabada, mayor e melhor que até entam fora vista de tam grossa, forte e basta liaçam e tam grosso tavoado que artelharia a nam podia passar, e tinha tantas bombardas grosas e outras artelharias que foy muyto falado nella em muytas partes; estando esta nao com outros navios que com ella hiam pera partir para Levante, onde a mandava mais ricamente concertada e com  milhor gente que nunca nao foy e Alvoro da Cunha seu estribeiro-moor pessoa de que muyto confiava por capitam-moor.

E estando em Restelo pera se partirem, e el-rey em Sintra pera yr a Belem e dahi a ver partir, lhe veo recado que na nao adoeceram de peeste cinco ou seys pessoas, do que muyto pesou a el-rey, e lhe aconselharam todos que nam fosse a Belem por o periguo que era. Chamou entam Dom Dioguo d' Almeyda prior do Crato, e Dom Dioguo Lobo baram d' Alvito pessoas de muyta autoridade, e disse-lhes que lhe agardeceria muyto chegarem a Belem, e de sua parte dizerem a Alvoro da Cunha e aos fidalgos e cavaleiros que com elle hiam, que lhe pesara muito dos rebates que na nao ouvera pollos nam yr ver como desejava, por ser aconselhado que nam fosse laa, e que Nosso Senhor hos levasse e trouxesse como elle e elles desejavam. O prior e ho baram pesando-lhe da yda o disseram ao camareyro-moor Ayres da Silva, que per licença dambos disse a el-rey que lhe parecia cousa pouco necessaria mandar taes pessoas e tam achegadas a elle sem necessidade a lugar tam periguoso; e el-rey lhe respondeo: "Ora poys que ham medo nam vam que eu yrey laa". E ao outro dia levantou-se muyto cedo e foy ouvir missa a Belem, e ahi lhe beyjaram a mão Alvoro  da Cunha e todos os fidalgos e cavaleyros seus criados que n' armada hiam; e acabado os despedio e se tornou a jantar a Sintra.

Do que el-rey disse ao barão  sobre hum cavaleiro
que fora de seu pay

Capitolo CXLVIII

Hum cavaleyro da casa d' el-rey que se chamava Bras Afonso homem honrrado e de bom saber, que fora criado do barão Dom Joam da Silveyra, pedio por merce a el-rey que lhe desse licença pera comprar hum oficio, e el-rey lhe disse que tinha nisso pejo; apertou ele que pedia por merce a sua alteza que olhasse sua pessoa e seus serviços e sua calidade, e a de quem lhe o oficio vendia, e que veria craramente que aquelle e outro mayor cabia nelle, e el-rey lhe tornou que tinha a isso pejo. Foy-se o Bras Afonsso a Dom Diogo Lobo filho mayor do baram que depoys foy baram, e muito agastado lhe contou o caso, e Dom Diogo foy falar a el-rey, agravando-se de sua alteza negar aquella licença merecendo elle outra cousa mayor e lhe disse bens delle, e el-rey lhe  respondeo: "Dom Diogo, nam deyxey de fazer por elle nam ser pera o oficio, mas homem que foy criado de vosso pay e vós nam me falaveis por elle, pareceo-me que seria por sua culpa, e por ser de mao conhecimento, e o yngrato nam pode ser bom homem, mas agora que me vós dizeis que o he e me falais por elle, sam contente de lhe dar a licença, e assi o fezera da primeira se me vós nisso faláreis".

Do que el-rey disse a Joam Fogaça sobre Egas Coelho

Capitollo CXLIX

Hum Egas Coelho que ora he capitão de hũa das Ylhas Terceyras, era moço da camara d' el-rey, jaa homem e tinha morto hum cavaleyro de que era livre, e temia-se muito dos yrmãos, e andava armado e guardado, sendo ainda moço da camara; e hũa noyte ceando el-rey Joam Foguaça veador andava merencoreo dos moços da camara, e a quantos entravam dava com hũa cana e arrepelava, que era algum tanto aspero de condiçam no oficio; acertou de entrar ho Egas Coelho com capa e espada  e armado nam em auto pera servir, e Joam Fogaça como o vio se foy a elle e lhe quisera dar com hũa cana; e elle lhe disse: "Senhor, nam me deys que sam homem e não venho agora pera poder servir", e o veador querendo-lhe todavia dar e levantando a cana pera  isso, elle apunhou a espada e disse: "Se me dais meterey esta espada em vós". Foy gram rumor na salla, e Joam Fogaça nam lhe deu, e foy rijo fazer queixume a el-rey alto perante muitos que aa mesa estavam. El-rey chamou logo o Egas Coelho que estava ja preso, e perguntou-lhe como fora, e elle mostrou como vinha armado, e disse: "Vosa alteza sabe como ando temido e ho porquê; e vinha agora nam pera servir aa mesa e sendo tam homem como sam e andando armado, o veador sem causa algũa que eu fizesse me queria dar com hũa cana como a moço perante tanta gente, e por ysso, senhor, fiz o que fiz; vossa alteza me pode castigar como quiser". E el-rey lhe disse que fizera bem e que por ysso lhe nam dava castigo algum, que se fosse emboora; e disse a Joam Fogaça alto: "Veador, nam sam esses os moços da camara que se ham-de castigar com cana, e mais vindo da maneyra que esse vem"; e nam fez mais nada, antes teve o Egas Coelho em boa conta por assi olhar por sua honrra.

Do que el-rey fez a Pero d' Alanquer pilloto

Capitollo CL

El-rey por ter a Mina guardada, fez crer em sua vida que navios redondos nam podiam tornar da Mina por caso das grandes correntes, somente navios latinos, e isto porque em nenhũa parte da christandade os há senam as caravellas de Portugal e do Algarve, e os galeões de Roma que nam sam pera navegar tam longe. E hum dia estando el-rey aa mesa praticando porque navios redondos nam podiam vir da Mina, disse hum Pero d' Alanquer muyto grande piloto de Guine e que bem tinha descuberto, que elle traria da Mina qualquer nao por grande que fosse. E el-rey lhe disse que nam podia ser pois ja muitas vezes se esprimentara, e que todas as que lá mandara nam poderam vir. E o Pero d' Alanquer se afirmou que o faria e se obrigaria a isso. E el-rey disse: "Hum vilão peco nam há cousa que lhe nam pareça que fara e enfim nam faz nada"; e depois de comer o mandou chamar soo e lhe disse a causa por que aquillo lhe dissera, e que lhe perdoasse porque compria assi a seu serviço, e que outra ora nam dissesse tal e o tivesse em grande segredo; e lhe fez merce de que elle foy bem contente; e sempre em vida d' el-rey se teve por muyto certo que naaos nam podiam vir da Mina e dessas partes de Guine, e por ysso teve sempre todo Guine muyto guardado.

Do que el-rey fez a huns capitolos que lhe mandaram de Coimbra,
sobre hum cavaleyro que lá mandou

Capitolo CLI

Avendo em Coimbra muito grandes bandos antre o bispo e o prior de Santa Cruz e a cidade toda revolta, mandou el-rey laa hum cavaleyro de sua casa valente homem e de quem confiava com grandes poderes a paceficar os bandos. Foy e prendeo muitos homens, e outros degradou da cidade e emprazou pera a corte; e pôs nisso tanta força e deligencia que paceficou tudo. E porque alguns homens ficaram escandalizados delle, mandaram a el-rey huns grandes capitolos de cousas que lá fizera. Os quaes el-rey logo vio,  e achou que tudo era fazeren-lhe queixume que dormira com molheres. E quando achou que não era com casadas nem com freyras, nem forçara nenhũa, mandou logo perante si queimar os capitolos, e disse que touro capado nam era bom pera corro.

Do que el-rey disse ao bispo de Tangere sobre Dom Diogo de Crasto

Capitolo CLII

Dom Diogo de Crasto alcayde-moor do Sabugal, era muyto valente cavaleyro e homem que el-rey por ysso estimava e fazia muita honrra. E porque era muyto apayxonado e solto em suas palavras quando tinha paixam, e el-rey porque lhe queria bem, receava de soltar algũa palavra de mao ensino ou de pouco acatamento perante elle por onde fosse necessario castigá-lo do que lhe pesaria, lhe mandou dizer por Dom Diogo Ortiz bispo de Tangere e seu capelão-mor, que elle folgava de lhe fazer merce e que sempre lha faria; que lhe rogava muito que quando algũa cousa lhe quisesse requerer fosse per outrem e nam per si por escusar payxões  de que lhe depois pesaria muito. Tanto cuydado tinha dos homens que nam abastava ensiná-los, mas ainda os desviava dos caminhos em que podiam errar.

Do que el-rey disse a hum homem que bebia vinho
mais do necessario

Capitolo CLIII

Hum homem honrrado que se nam nomea, folgava de beber vinho, e porque o el-rey nam bebia, avia-se por tacha e todos em geral trabalhavam por seguir as obras e condiçam d' el-rey. E este homem aas vezes lhe fazia o vinho dano de que el-rey tinha desprazer. E hum dia o mandou chamar e elle por nam cheirar a vinho comeo folhas de loureyro a que muito cheirava; e el-rey lhe disse: " Foam, debayxo desse louro a como val a canada?"; de que o homem ficou envergonhado e trabalhou de se enmendar.

Do que el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel de Castella,
e el-rey Carlos de França e outros disseram por el-rey

Capitollo CLIV

Disseram muitos grandes a el-rey Dom Fernamdo de Castella que devia de castigar muyto o seu coronista-moor porque o vencimento e toda a honrra da batalha de Touro dava ao principe de Portugal, e que elle soo fora o vencedor. E tantas vezes lho disseram e apertaram que ho visse, que el-rey mandou vir ho coronista perante si e lhe fez ler ho capitolo perante os que lho tinham estranhado. E depois de visto como singular principe que era e muy esforçado rey, disse ao coronista que estava muito bem escrito, e que nam tirasse nem posesse palavra, porque tudo aquilo e muito mais era verdade, que ele o vira muy bem por seus olhos e que assi ficasse escrito porque assi era verdadeiramente. Palavras certo de muyto louvor pera ambos, e ambos foram singulares principes.

E a raynha Dona Isabel de Castella estando hum dia huns grandes senhores com ella cuidando que lhe apraziam nisso lhe disseram mal d' el-rey Dom Joam. E ella como tam excelente e singular princesa como era lhe respondeo: "Prouvesse a Deos que tais fossem meus filhos como elle he".

E outra vez estando em quebra com el-rey lhe disseram muytos senhores em hum conselho, que pera que sofria tantas cousas a el-rey de Portugal, que lhe fizesse guerra e lhe tomasse o reyno. E ella lhe perguntou pera ver como se poderia fazer, que gente de cavalo averia em Castella e em Portugal, sabendo-o ella muy bem. Disseran-lhe que em Castella averia hi dezaseis mil de cavallo e di pera cima, e em Portugal a todo mais sete ou oyto mil, e ela lhe respondeo: "E que faremos nós a ysto que esses todos sam filhos, e os nossos sam vassallos?". Isto dizia a raynha porque sabia em quanto estremo el-rey era amado dos seus, e que todos aviam de morrer diante delle. E quando lhe deram a nova de como el-rey era morto disse: "Agora morreo o homem que eu em tanta estima o tinha".

E el-rey Carlos de França fazendo a mayor parte da christandade ligua contra elle, quando lho disseram, disse que nam dava nada por isso, que pera desbaratar todos nam avia mister mays que ser com el-rey Dom Joam de Portugal seu yrmão. E que pera tomar o mundo elles ambos abastavam. E este foy singular principe .

E o cardeal de Portugal Dom Jorge da Costa, querendo grande mal a el-rey Dom Joam, e muyto grande bem a el-rey Dom Afonso, cuja feytura era quando lhe disseram como era morto el-rey Dom Joam, em Roma onde estava disse perante muitos: "Agora morreo o melhor rey do mundo, filho do melhor homem do mundo". Foy el-rey tal que seus inmigos em vida e depois de morto, nam podiam deyxar de dizer bem delle e louvarem suas obras.

E Monseor d' Escalas yrmão da raynha d' Ingraterra homem muy principal", veo a ver Portugal e Castella e a guerra de Granada, e tornou por Lixboa, onde el-rey lhe fez muyta honrra e merce, e deu muy honrrada enbarcaçam em que foy. E laa em Inglaterra falando nas cousas de caa lhe perguntou el-rey, que qual era a cousa que milhor lhe parecera. E elle respondeo que vira hũa de que vinha muy sastifeyto, a qual era ver hum homem que mandava todos e ninguem mandava a elle. E isto dizia elle por el-rey Dom Joam, o qual foy sempre tanto contra sua condiçam ser mandado que disse hum dia, que por menos mal averia a hum rey ser puto ou erege que eram as piores partes que podia ter que ser mandado.

E o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida pessoa muy principal e muy aceyto a elle, estando el-rey hum dia em hũa pratica com outros nam falando com ele, o prior atravessou-se e falou, e ele  lhe respondeo: "Isso seraa querer mostrar que tendes comigo valia". E outro dia estando el-rey assinando encostado sobre a mesa, o prior se chegou por detras muito a el-rey com o barrete na cabeça; e el-rey quando o vio tam acerca disse alto: "Chegay-vos pera lá mais, mais, mais, que o rey nam tem avesso nem dereito". Tudo ysto a fim de nam parecer alguem que o podia governar; e assi viveo sempre absolutamente senhor atee a ora de sua morte.

De como se descubrio o reyno de Manicongo,
e de como el-rey e a raynha foram feitos christãos

Capitulo CLV

No ãno de mil e quatrocentos e noventa e dous estando el-rey na cidade de Lisboa lhe veyo recado como el-rey de Manicongo muito grande rey e senhor, em Guinee e muyto alem da Mina era feyto christão; e de como se fez, e seu reyno e terra se descubrio foy na maneira seguinte.

No ãno de mil e quatrocentos e oitenta e cinco desejando el-rey o descubrimento  da India e Guinee, que o infante Dom Anrrique seu tio primeyro que nenhum principe da christandade começou, mandou no dito anno sua frota aa dita costa armada e provida pera muito tempo como cumpria, e por capitão-moor della mandou Diogo Cão cavaleiro de sua casa, que outra vez ja lá fora por seu descubridor. O qual yndo polla dita costa com assaz perigo e trabalho, foy ter com a dita armada ao Rio de Manicongo que he hum dos grandes que no mundo se sabe d' agoa doce, que he de largo duas legoas, e d' alto em toda a boca e muyto dentro setenta braças, e dizem que entra pollo sertão trezentas legoas, e que traz tanta força que pollo mar faz corrente ao longo da costa cincoenta legoas; o qual rio e terra de Congo he de Portugal mil e setecentas legoas; onde por ser tam longe da outra terra de Guinee ja descuberta, não se poderam entender com a gente da terra, e levando muytas lingoas nenhũa entendia nem sabia aquella lingoajem. O qual capitam por assegurar a gente da terra e lhe terem boa vontade, determinou de mandar ao rey da terra que estava longe pollo sertam hum presente; o qual lhe logo mandou per certos christãos de muitas cousas desvairadas hũas das outras, e lhe mandou dizer como a dita armada era d' el-rey de Portugal que com todo o mundo tinha paz e amizade. E por lhe dizerem camanho rey elle era desejando de a ter com elle e muyta prestança e trato o mandava buscar, dizendo-lhe logo o proveito e honrra que aos seus e sua terra dahi lhe poderiam vir.

Os quaes christãos com o presente chegaram ao rey e foram delle recebidos com muita honrra, muito prazer, e alegria, e espanto, e muito bem agasalhados, e folgou tanto de os ver e perguntar-lhe por as cousas de cá que hos nam podia despedir de si e deixá-los tornar aa frota. E pola muita tardança sua pareceo ao capitam que deviam de ser cativos ou mortos, e vendo que os negros da terra se fiavam delle e entravam ja nos navios, determinou nam esperar os christãos que mandara e partir-se com alguns daquelles negros, e assi o fez; porque os que primeyro delle se fiaram e vieram aa frota  acolheo-os dentro e nam os deyxou mais sair a terra e se veo com eles pera Portugal, nam nos trazendo como cativos, mas com fundamento que depois de aprenderem a lingoa e costumes nossos e a tençam d' el-rey, tornariam a Manicongo e per elles se poderia bem saber tudo o que comprisse de hũa parte e da outra, porque lhe pareceo que doutra maneira nam podia ser. E  ante que o dito capitão do porto partisse o certeficou assi às gentes da terra, e prometeo que antes de passarem tantas luas que he o modo em que elles contam os tempos com ajuda de Deos  tornara aquelles que levava ali donde os tomara, vivos e sãos com muita honrra e riqueza; e com isto segurou todo aquele tempo as vidas dos christãos que tinham mandado ao rey. O qual tomou por isso sentimento, avendo tudo por mentira e determinando que passado o tempo se os seus nam viessem mandar matar os christãos que lá ficaram. E com quanto dantes folgava muito com elles depois nam nos quis mais ver.

E os negros vindo a estes reynos com quanto foram trazidos sem ordenança d' el-rey ele folgou muito com elles, principalmente porque antre elles acertaram de vir homens fidalgos e principaes da casa do rey e de muito bom saber. Os quaes mandou logo vistir de finos panos e sedas e tratá-los muito bem, honrrá-los e favorecê-los, e mandou a todos que assi o fizessem, e elles sempre no mar foram do capitão honrradamente tratados. E depois de serem muy bem enformados da vertuosa tençam e vontade d' el-rey que era serem christãos, e assi depois de terem vistas muitas cousas principaes destes reynos e maneyra de nossa fee, el-rey ouve por bem  que os tornassem a sua terra. E mandou logo armar sua frota pera o dito descobrimento, e nela mandou os ditos negros despedidos com muita honrra e grandes merces das cousas destes reinos que lhe a elles milhor parecia, e assi enviou per elles ao dito rey de Congo sua embayxada com hum presente rico de muitas e boas cousas; e lhe mandou oferecer sua amizade e descobrir sua vontade, que era desejar sua salvaçam convidando-o com rezões e amoestações pera a fe de Jesu Christo Noso Senhor, encomendando-lhe que deixase os ydollos e feitiçarias que tinha e adoravam em seu reino, dando-lhe pera isso muitas e boas rezões que elle podesse entender, e dito de maneira que elle se nam escandalizasse pola erronia e ydolatria em que vivia que nisso teve el-rey muito resguardo e temperança pera com brandura o provocar.

De como os negros chegaram a sua terra

Capitolo CLVI

Chegou a frota com os negros a terra de Manicongo e ho dito rey com toda sua corte que he bem  grande, ouve grande prazer e contentamento com a vista dos seus fidalgos que ja davam por mortos ou cativos sem esperança de os mais ver. E vendo-os em trajos tam honrrados tornados com tanta paz e saude, era em todos o prazer e alegria tanta como se todos ressuscitaram da morte à vida. E com a nova de sua tornada que foy pera todos de grande espanto e se espalhou por muitas partes, vinha tanta gente aa corte que se nam podia estimar porque os negros que vieram eram homens nobres e muito conhecidos. E el-rey de Congo com a embayxada e presente se avia por tam bem aventurado que se nam conhecia, e mandava chamar os grandes senhores seus vassallos pera lhe dar parte de tanta gloria, fazendo aaquelles seus fidalgos que muy a meude em pubrico com altas vozes  dissessem as vertudes, bondades e grandezas d' el-rey de Portugal e dos seus reynos, e da honrra e humanidade com que os tratara, e as muitas e muy grandes merces com que os despedira, e assi o presente que lhe mandara. E a todos rogava muito que por amor delle se alegrasem com tanta honrra sua, e que por honrra d' el-rey de Portugal fezessem muitas festas e prazeres. E as palavras e amoestações pera a fee de Nosso Senhor Jesu Christo  recebeo com tanta eficacia que parecia que Deos as espritara nele; que com o muito desejo que jaa tinha de sua salvaçam nam dava lugar que o embaixador e frota de Portugal se partisse, polo muito contentamento que levava em falar com os christãos. E depois de com muyta graça e fervor mostrar desejo de querer ser christão, despedio o capitão e navios. E nelles mandou a el-rey por seu embayxador Caçuta que primeiro a estes reinos viera, homem mui principal e a elle muy aceyto que depois de ser christão ouve nome Dom Joam da Silva, homem de bom natural e muy bom christão, amigo de Deos; e trouxe a el-rey hum presente de muitos dentes d’ alifantes e cousas de marfim lavradas e muitos panos de palma bem tecidos e com finas cores. E o principal de sua embaixada era beijar-lhe as mãos polo cuydado que tevera de lhe honrrar em sua vida o corpo e lhe precurar a salvaçam pera sua alma. E que elle em sua vontade avia el-rey por tam bem aventurado e de tanto coraçam e saber que ele avia por boaventura sua reger-se per suas leis e sobre sua fe se salvar; porque aquela e nam outra avia de ser a verdadeira pois Deos nela o criara. E que nam podia ser que o criador criaria cousa tam grande, tam boa e tam perfeita como elle era pera o condenar, e  que por tanto cria o que lhe dezia e desejava de vontade de o fazer; polo qual lhe pedia muyto por merce e polo de Deos que aquilo pera que o convidara que era receber a agoa do santo bautismo nam lhe tardasse mais. E que pera isto pois seus reynos eram tam apartados huns dos outros que em pessoas se nam podiam ver, lhe pedia muito por merce que lhe mandasse logo frades e clerigos e todas as cousas necessarias pera elle e os de seus reynos receberem agoa de bautismo. E assi lhe mandase pedreyros e carpinteiros pera lhe fazerem ygrejas e casas d' oraçam como as destes reinos; e tambem lhe mandasse lavradores pera lhe mansarem bois e lhe ensinarem aproveitar a terra; e assi algũas molheres pera lhe ensinarem as do seu reyno a amassar pão porque levaria muito contentamento por amor delle que as cousas do seu reyno se parecessem com as de Portugal. E assi enviou dizer a el-rey outras cousas como homem muy prudente e pera começo de christandade muy necessarias, antre as quaes foy que elle lhe pedia por merce que certos moços pequenos de seu reyno que lhe mandava, lhos mandasse logo fazer christãos e ensinar a ler e escrever e aprenderem muyto bem as cousas de nossa fee, pera que estes em  tornando em seu reino por saberem ambas as lingoas e custumes que saberiam, poderiam a Deos e a ele muito servir e aproveitar a todolos de seu reino.

Com a qual embaixada o dito embaixador chegou a el-rey estando em Beja no começo do anno de quatrocentos e oitenta e nove. E com os requerimentos e tençam do rey de Manicongo el-rey ficou tam ledo e tam contente de si dando tantos louvores a Deos, por cousa de tanto seu serviço como esta era quanto hum muito catolico principe como elle podia fazer. E recebeo o embaixador com muita honrra e gasalhado, e logo per suas vontades elle e os de sua companhia com muita solenidade foram christãos, e el-rey e a raynha foram padrinhos e assi alguns senhores. E depois de feitos christãos quis el-rey que estevessem nestes reinos até o fim do ãno de quatrocentos e noventa pera que neste tempo soubessem bem a lingoajem e aprendessem os artigos da fee e os mandamentos divinos e todo o mais que pera serem christãos cumpria. E sendo ja prestes a frota pera yr ao dito reino de Congo, el-rey mandou por seu embaixador ao dito rey de Manicongo Gonçallo de Sousa fidalgo de sua casa e capitam-mor da frota que em ajuda do dito rey tambem enviava e com elle o dito Dom Joam da Silva embaixador, e em sua companhia muitos frades da ordem de  Sam Francisco e alguns deles bons letrados e de boa vida. E com elles mandou muitos e ricos ornamentos e cruzes, calizes, castiçaes, e galhetas, campaynhas, e sinos, e orgãos, e muitos livros, e todalas outras cousas necessarias pera ygrejas tudo em muita perfeiçam. E da maneira que se avia de ter com fazerem o rey christão e os de seu reino teve sobre ysso conselho, e do que se determinou com theologos levaram os frades muy clara estruçam. E ordenado o presente pera el-rey e os navios prestes partiram de Lisboa segunda-feira dezanove dias de Dezembro de mil e quatrocentos e noventa; e sendo junto com as Ylhas do Cabo Verde ho dito Gonçalo de Sousa capitam-moor morreo de peeste porque aa sua partida morriam disso em Lisboa; e assi faleceo apos elle o dito Dom Joam da Silva e outro negro christão, com as quaes mortes os da armada foram mui anojados; e ficou por capitão-mor da dita armada Ruy de Sousa primo com yrmão do dito Gonçalo de Sousa; e seguindo sua viajem aportaram ao Rio do Padram no reino de Congo por onde aviam d' hir onde el-rey estava. E chegaram a este rio a vinte nove dias de Março de mil e quatrocentos e noventa e hum, e era ahi senhor hum tio d' el-rey que se chamava Monisonho homem de cincoenta ãnos e muito grande senhor e de  muito bom saber e estava duas legoas do porto onde lhe foy recado da frota e pedido que o mandasse dizer a el-rey. E o dito Monisonho com mostranças de muyto prazer e grande acatamento d' el-rey de Portugal sabendo como o Dom Joam da Silva era morto e christão disse que morrera bem aventurado pois morrera christão e em serviço de taes dous reis; e que por amor e reverencia de tam virtuoso e poderoso rey como era el-rey de Portugal ele queria loguo fazer tamanhas festas como se el-rey seu senhor fosse presente; e pera ysso ajuntou logo muita gente e a mais honrada de sua terra, homens e molheres, e a seu modo fez as mayores festas que antre eles avia. E querendo-se os christãos que lhe levaram o recado vir, disse que nam se agastassem que ele queria levar o recado ao capitão e ver o que nenhum de sua linhajem vira, e sobre tudo queria ser christão porque ho rey em que Deos posera tanta virtude e grandeza de coraçam como em el-rey de Portugal elle queria adorar quem elle adorasse e crer em quem ele cresse; e depois de com isto despedir os messageiros christãos partio pera o porto onde estavam os navios acompanhado de tres mil archeyros e muitos tangeres, e muitos carregados com mantimentos porque antre elles nam há bestas; e o capitam o sayo a receber fora dos navios acompanhado de boa gente bem armada com muitas espingardas, beestas, bombardas; e Monisonho o recebeo com muito prazer e alegria e grande gasalhado, e lhe mandou dar muita abastança de mantimentos, e mandou apregoar que toda a gente ao outro dia fosse ahi junta pera festejar el-rey de Portugal, a qual veo muita infinda, e pedio ao capitão que o quisesse fazer christão, isto com tanta vontade e devação que lhe disseram que si, e logo ordenaram casa de madeira muito bem concertada pera isso; e tudo prestes ele fez hũa falla aos seus em que lhes disse que no mundo nam avia homeẽs bem aventurados nem sabedores senão os brancos, e que na perfeyçam de suas cousas o veriam, por crerem no Deos verdadeyro lhe dava suas cousas perfeytas e de verdade; polo qual lhes  fazia saber que elle se queria tornar christão, e que lhe nam dava que por ysso lhe quesessem mal; e todos lhe louvavam sua vontade e pediram que tambem os fizesse christãos que elles o queriam ser com elle. E elle lhe respondeo que lhe aprazia, porém que seria depois de o ser el-rey seu senhor que por nam saber se o averia por mal não queria agora que o fosse mais que elle e hum seu filho; e elles lho teveram muito em merce com grande prazer e alvoroço.

E dia de Pascoa de Ressurreição tres dias d' Abril do ãno de noventa e hum, o dito Monisonho com grande devaçam e tudo ricamente concertado foy feito christam ele e hum seu filho. E ele quis aver nome Dom Manoel por amor do duque dizendo que pois era duque como ele e parente muy chegado a el-rey queria ter o seu nome e ao filho chamaram Dom Antonio. E acabado o oficio os frades com muita devaçam e lagrimas o levaram com precissam a sua casa onde foy com tanta devaçam e alegria que disse aos seus que nunca em sua vida tevera tal prazer e contentamento como entam.

E logo o dito Dom Manoel mandou dar conta de tudo a el-rey, e como elle e seu filho somente eram feitos christãos; e el-rey lhe respondeo logo por hum grande senhor primo com yrmão do principe agradecendo-lhe muito a honrra e gasalhado que fezera aos christãos d' el-rey seu yrmão e amigo e que folgava muito elle ser christão como ele o esperava ser; e que por o assi fazer que elle o estimava por grande e asinado serviço lhe fazia por ysso merce de trinta legoas de terra ao longo da costa do mar e dez legoas por o sertão com todolos vassallos e rendas della, encomendando-lhe muyto ha frota e os christãos, e que tudo lhe dessem de graça em tanta abastança como se fossem seus filhos. E o dito dia de Pascoa se fizeram muitas festas; e à tarde o dito Dom Manoel se apartou com hos frades e lhe  pedio que lhe ensinassem o caminho de sua salvaçam; os quaes folgaram muito de sua confirmaçam e fee, e lhe disseram sobre ysso todo o necessario, o que elle tomou como homem de muita prudencia e muyta fee; e logo mandou por todolos ydolos de sua terra, e perante os frades hos mandou todos queimar e derribar e desfazer todas as casas e altares em que estavam. E lhe disseram os frades missa cantada com orgãos e ricos ornamentos que levavam pera o rey; e em grande maneira folgou de a ouvir e esteve a ella com muyta devação, e sempre pedia aos frades que lhe ensinassem as cousas que era obrigado fazer pera poder merecer salvaçam de sua alma; e este dia em que primeiro ouvio missa por honrra della mandou que em sua terra pera sempre se guardasse por dia sancto; e outras cousas fez e disse como homem que nacera christão, o que certo parecia ser mais por milagre de Nosso Senhor Deos que por outra nenhũa razam.

De como os christãos, capitam e frades foram a el-rey

Capitolo CLVII

Depois destas cousas assi feitas e acabadas com muito serviço de Deos e muita honrra  e grande louvor d' el-rey ordenou o dito Dom Manoel com o capitam que os frades e a outra gente fossem com a sua embaixada a el-rey seu senhor, os quaes se fizeram logo prestes com muita deligencia; e depois do capitam deixar os navios a bom recado partio per terra com dozentos negros que levavam todas as cousas, e outros muytos pera segurança de tudo e levavam muitos mantimentos. E indo seu caminho lhe veo hum fidalgo com recado d' el-rey alegrando-se muito com sua yda, e com hum mandado geral que aos christãos em seu reino se desse tudo de graça so pena de morte e assi se cumprio inteiramente; porque era o rey daquelas terras mais temido, amado, e obedecido, e com este mandado os negros da companhia tomavão aos outros muitas cousas demasiadas e nam avia quem se agravasse; e sendo ja junto da corte per mandado d' el-rey veo a eles outro seu grande privado com muita soma de buzios que he sua moeda e com muitos carneiros, cabras, farinha, galinhas, vinho de palma, e mel e outros muitos mantimentos. Do porto atee corte sendo cincoenta legoas tardaram vinte dias.

Da entrada dos christãos na corte d' el-rey de Congo

Capitolo CLVIII

O dia que os christãos entraram na corte foram de gente sem conto recebidos com estrondos e festas e foram logo aposentados em hũas grandes e boas casas muyto providas de todallas cousas necessarias. E o recebimento foy que pera o capitam e frades mandou el-rey muitos gentis homens feitos momos de muitas maneiras, e apos elles infindos archeiros, e depoys lanceiros, e outros com outras armas de guerra, e tambem molheres sem conto todos em batalhas repartidos, e com muytas trombetas de marfim, e atabaques, e outros estormentos cantando todos muitos louvores d' el-rey de Portugal, e contando suas grandezas com muito grande alegria; e nesta ordem chegaram a el-rey, que estava em hum terreiro de seus paços acompanhado de muita infinda gente e posto em hum estrado rico e nu da cinta pera cima com hũa carapuça de pano de palma e ao hombro hum rabo de cavalo guarnecido de prata e da cinta pera baixo cuberto com panos de damasco que lhe el-rey de cá mandara e no braço esquerdo hum barcelete de marfi; e o capitam chegou a ele e lhe beijou a mão com as cerimonias de Portugal, e lhe deu as encomendas d' el-rei e disse de sua parte outras cousas com que el-rey de Congo recebia muito prazer; e em sinal d' agradecimento tomou terra nas mãos e a correo pelos peitos do capitam, e depois pelos seus dele mesmo rey que segundo seu custume he o mayor acatamento que os reys podem fazer. E sobre ysto todolos de sua corte fizerão grandes festas, e levantavam todos as mãos contra o mar como que mostravam Portugal dizendo com grandes gritas "Viva o rey e senhor do mundo e Deos o acrecente poys he tam amigo d' el-rey nosso senhor !". E depois de muitas festas passadas el-rey com grandes honrras despedio o capitam.

E como o capitam e christãos descansaram do caminho tornaram a el-rey com o presente e todas as cousas muito concertadas e as poseram em hũa muito boa casa a que el-rey logo veo com certos senhores e fidalgos, e segundo se afirmava alguns deles podiam servir el-rey com cem mil homens; e foram-lhe logo mostrados os ornamentos e cousas da igreja cada hũa per si com que mostrava tanta alegria e prazer que muitas vezes se levantava do estrado e abraçava o capitam e o levantava nos braços mostrando-se o mais bem aventurado rey do mundo e que nunca poderia pagar a el-rey de Portugal tamanha merce. E depois de mostradas as cousas da ygreja e o presente, o capitão lhe mostrou o que elle mandara pedir: os pedreiros e carpinteiros com suas ferramentas e os lavradores com seus aparelhos, e as molheres pera amassar com suas bacias e caldeiras, e depois hum cavalo concertado muito bem. E o presente pera sua pessoa era brocado de pello e rasos em peça, e muitas peças de ricas sedas de cores e escarlatas e olandas e rabos de cavalo guarnecidos de prata que ele muito estimava e huns ruços pombos  estimava mais, e assi chocalhos e cascaveis e vestidos ricos ja feitos pera elle e pera a raynha; e lhe ofereceo tudo da parte d' el-rey com muito boas palavras dizendo que daquellas cousas avia muitas em seus reinos, e outras doutras sortes com que folgaria de lhe aproveitar quando elle as quisesse. E el-rey espantado da riqueza e novidade delas respondeo que sendo grande rey e senhor de muitas terras lhe parecia que nam tinha nada pera poder servir tamanhas merces. E o capitam se lhe ofereceo com toda a frota e gente della pera o servirem no que ele mandasse tee morrerem porque asi o trazia por mandado d' el-rey; e ele com muito prazer e alegria se abaixava e com as mãos tocava a terra; e depois de tudo recebido disse aos senhores que com ele estavam: "Certamente o rey en que tanta virtude, tanta bondade, e tanta nobreza há, este só he o senhor do mundo e merece de o servirem porque sem lho merecer me faz tantas merces, vede que fara aos que o servirem"; e todos lhe diziam que era assi, e que elle lhe era em grande obrigaçam. E logo mandou chamar todos os senhores e fidalgos e lhe mostrou tudo com grande prazer rogando-lhe que todos se alegrassem com tanta honrra sua pois de tam alongadas terras e com tantos perigos e mortes, e tamanhas despesas me manda tam ricas cousas hum tal rey que eu nunca acabarey de saber e deixarey por bençam a meus filhos que o tenham por senhor. E disse logo ao capitão perante todos que todas as cousas que  visse e lhe parecessem que seriam de  contentamento d' el-rey as tomasse de graça e lhas levasse, porque com quanto tinha desejava de o servir e assi o despedio.

De como se fez a primeyra ygreja

Capitulo CLIX

E logo el-rey mandou e deu cargo a certos fidalgos que mandassem tirar a pedra pera se fazer a ygreja; os quaes ordenaram logo mil negros que com muita deligencia a traziam às costas de duas e tres legoas com tantas cantigas de prazer e alegria, e com tam boa vontade que era de maravilhar, e muitos a que o nam mandavam se convidavam pera ysso. E a ygreja com muita pressa se começou a seis dias de Mayo de mil e quatrocentos e noventa e hum, e acabou-se o primeyro dia de Julho logo seguinte, casa grande e de muita devaçam com muitos ornamentos, e de muitas ymagens e foy da invocaçam de Nossa Senhora Santa Maria. E em se a dita ygreja fazendo todo aquele tempo os frades falavam muitas vezes com el-rey nas cousas da fee e elle as ouvia com grande contentamento e esperava que a ygreja se acabasse. E hum dia mandou chamar os frades e perguntou-lhe se podia ser christão em outra casa senam na ygreja, e elles lhe responderam que si, e ele lhe disse: "Eu té gora estive neste erro esperando que a ygreja se acabasse; e pois se pode fazer antes disso eu nam quero estar mais nelle, e de menhã em toda maneira eu quero ser christão porque assi mo diz meu coraçam; e minha molher e filhos e os de meu reyno depois se faram". E os frades muy contentes e alegres de sua tençam de que nam duvidavam lhe disseram: "Senhor, ysso he ja graça de Deos e por tal lhe dá muitas graças e louvores".

De como el-rey foy feito christão

Capitolo CLX

Ao outro dia os frades concertaram hũa casa a milhor que nos paços acharam, na qual fizeram altar e ordenaram tudo em grande perfeiçam com tochas e vellas  acesas, e oferta e bacias grandes cheas d' agoa postas em mesas, tudo em  muito boa ordem. E como foy concertado, el-rey veo logo aa dita casa com muyta gravidade e sinaes de muita devaçam acompanhado de seis fidalgos grandes de seus reinos pera com elle serem christãos; e posto el-rey em pe ante o altar com os seus, frey Joam começou e acabou o oficio muy devotamente, e bautizou el-rey e aos seus, e el-rey por amor d' el-rey de Portugal ouve nome Dom Joam. E os seus ouveram nome o primeiro Dom Francisco, o segundo Dom Gonçalo, o terceiro Dom Jorge, o quarto Dom Lopo, o quinto Dom Diogo e o sexto Dom Rodrigo, e el-rey e seus fidalgos receberam a agoa do sancto baptismo com tanta devaçam e boas vontades que parecia misterio de Deos. E logo ao outro dia disseram missa com todalas cerimonias reaes, de que el-rey recebia grande contentamento. E foy isto feito com muito louvor e serviço de Deos, e exalçamento de sua sancta fe catolica, e por honrra, merecimentos, e memoria d' el-rey Dom Joam o segundo de Portugal dia da sancta vera cruz de Mayo de mil e quatrocentos e noventa e hum.

E neste dia depois de comer ouve no terreiro dos paços muitas e mui grandes festas com gente sem numero, e el-rey por si festejou ao seu modo mayor de festa que tinha, tudo em louvor de Deos e por honrra d' el-rey de Portugal. E alli vieram ante elle todos os senhores e fidalgos que presentes eram huns antre outros, e todos lhe alegavam seus serviços e merecimentos e se agravavam delle por lhe nam fazer aquelle bem de serem logo christãos. E el-rey com muito boas palavras respondeo a todos que nam se agravassem que elle recebia muito contentamento em ver suas vontades, e que tanto que a raynha sua molher e o principe seu filho o fossem que seria com a graça de Deos mui cedo eles todos o seriam; do que todos ficaram muito contentes e tocaram todos a terra e a punham sobre seus rostros em sinal de grande acatamento e com grandes gritas se levantaram e fizeram muitas e grandes festas que duraram até noite com tanto contentamento que era cousa milagrosa. E logo ao outro dia se lançou pregam geral que todo o que aos christãos d' el-rey seu yrmão em seus reinos e terras bem  parecesse e o quisessem tomar lho dessem de graça e que el-rey o pagaria a seus donos. E assi mandou em geral queimar logo todolos ydolos de seus reynos e derribar suas casas e altares e se cumprio inteiramente; e aa quinta-feira seguinte cinco dias de Mayo, o capitam e frades tornaram a el-rey, e como a igreja manda a ele e aos seis que com elle foram christãos tiraram os capellos; e acabado el-rey se assentou com os frades e capitão junto com elle, e começando de falar nas cousas da fee, hum dos fidalgos que se chamava Dom Jorge disse a el-rey: "Senhor, quanta merce tu e nós temos recebida de Deos nam podemos merecer, e jaa agora  sei que nam há outro bem nem outra verdade senam ser christão, porque toda esta noyte nunca me deyxou hũa molher muito fermosa que com muito prazer me dizia que te dissesse, que agora eras tu e todo o teu reyno ganhado; e deu-me por isso tanto esforço que agora eu soo me mataria com cem homens e não lhes averia medo. E por isso, senhor, faze christãos todos teus fidalgos e vassallos, e com elles sabe certo que em tudo sera teu poder muyto mayor". E acabando este com muitas graças que se deram a Deos e a Nossa Senhora, começou outro fidalgo que se chamava Dom Diogo yrmão do Dom Joam da Silva que morreo no mar e disse: "Senhor, por aquela mesma maneira, e com aquella mesma molher me aconteceo a mim tambem, e ja tinha cuidado de to contar como sonho, mas agora o tenho e creo por verdade porque nam podiamos ambos sonhar hũa cousa. E mais em saindo pola menhã de casa, achey hũa cousa santa de pedra que eu nunca vi, e he feyta como aquella que os frades tinham quando fomos feitos christãos" e dizia-o polla cruz. E el-rey mandou-lhe que fosse por ella e elle em pessoa a trouxe cuberta e com muito acatamento a deu a el-rey. E era hũa cruz de pedra muyto bem feyta e de dous palmos, e os braços lavrados em redondo e muito lisos; e a pedra era preta e sem nenhũa semelhança de pedra algũa que na terra ouvesse; e el-rey a tomou nas mãos e disse aos christãos: "Que vos parece isto?"; e elles vendo-a com muitas lagrimas e devaçam com as mãos levantadas aos ceos lhe disseram : "Senhor, estas cousas sam sinaes da graça e salvaçam que Deos envia a ti e a teus reynos e por isso lhe damos e tu tambem dá muytas graças  porque per estes milagres e revelações que aos teus se descubrem te deves agora d' aver polo mais bem aventurado rey do mundo pois sobre tam poderoso como es nesta vida Deos se alembrou de ti e te quer na morte dar outro reyno pera sempre, se neste proposito de seu serviço continuares". E el-rey com as lagrimas que nos christãos vio ficou em estremo muy alegre e muito confortado se levantou e andou abraçando e alevantando os christãos nos braços que he o mayor sinal de prazer que antre elles há. E logo a cruz com solene precisam e muita devação foy levada aa ygreja onde estava por hũa grande reliquia e notavel milagre, por honrra da qual el-rey mandou fazer muito grandes festas.

De como a raynha foy feita christaã

Capitulo CLXI

E pasados alguns dias antes da ygreja se acabar a raynha em pubrico se veo agravar a el-rey porque nam dava lugar que fosse christaã, dando-lhe pera ysso muytas e muy boas rezões fundadas no amor de Deos. E el-rey se escusava com a ygreja nam ser acabada, e tambem por esperar por o principe seu filho que era longe e o tinha mandado chamar. E neste tempo se finou de doença frey Joam o principal dos frades, e com sua morte foy el-rey muy anojado porque cria muyto nelle. E receando de os frades morrerem e desejando ja da raynha ser christaã, porque os frades eram ja todos doentes, perguntou a frey Antonio a quem o carrego ficou sobre os outros se com toda sua doença poderia somente  fazer  a raynha christaã porque elle estava de caminho pera a guerra e folgaria muito de deixar a rainha cristaã  e sem ysso lhe pareceria que nam seria vencedor nem tornaria de laa. E frey Antonio lhe disse que con toda sua fraqueza por serviço de Deos e seu o faria; e concertado tudo como cumpria em muita perfeiçam, na mesma casa onde el-rey o foy, e por aquella mesma maneira sabado quatro dias do mes de Junho do dito anno a raynha com a graça de Deos sendo el-rey presente foy feita christaã com grande devaçam e muito acatamento a Deos e ouve nome Dona Lianor por amor da raynha Dona Lianor.

E no mesmo dia em que a raynha foy feita christaã, porque el-rey ja ordenava de se yr à guerra lhe entregaram o capitam, e os frades a bandeira com a cruz que lhe el-rey de cá mandava, e lhe disseram as virtudes daquelle sinal da cruz, e quantos com elle foram com poucos vencedores de muytos, e que el-rey por ysso lha mandava que a tevesse em grande honrra e estima; e com estas palavras o dito rey com os joelhos no chão e a cabeça descuberta ha tomou em suas mãos com muito acatamento, e de sua mão a entregou logo a Dom Gonçalo homem principal e seu alferez-moor. E el-rey e todos os senhores e fidalgos se foram com elle até sua casa; e por mayor reverencia da bandeira hiam alguns senhores com abanos abanando-a que esta he hũa grande cerimonia e acatamento que se faz ao rey.

E aa segunda-feira logo seguinte seis dias de Junho, ho capitam  e frades foram ao paço da raynha per seu mandado pera lhe tirarem o capello do oleo, e folgou muito com elles e muy honradamente os agasalhou, e com grande tento lhe perguntou pollas cousas da fee, rogando-lhe que muy decraradamente lhas dissessem pera as cumprir inteiramente. E os frades lhe louvaram muyto sua tençam e devaçam, e lhe disseram aquellas cousas da fe que entam mais cumprião. E ella assi como as elles diziam as punha no estrado per tentos de pedrinhas que he a sua arte memorativa dizendo que por ali lhe lembrariam; e assim lhe esteve perguntando com muita prudencia e repouso polas cousas destes reinos, e por el-rey e a raynha e seus estados; e depois de com verdade responderem a tudo se despediram della, e lhe mandou fazer merce de muita soma de sua moeda e de mantimentos tudo com muyta graça e nobreza.

E acabadas assi as ditas cousas o capitão disse a el-rey que pois tinha mandado ajuntar suas gentes pera a guerra, que lhe pedia por merce que por quanto a frota e gente della o nam serviam e adoeciam e morriam sem proveyto no porto se servisse de tudo com tempo. E el-rey folgou muito com sua lembrança e apressou sua partida pera yr fazer guerra a huns senhores seus vassalos que lhe desobedeciam em hũas ilhas situadas no Rio do Padram.  Partio el-rey pera a dita guerra, e levava diante a dita bandeira de Christo em mão do alferez-mor; e el-rey e todolos seus hiam a pee e descalços porque a terra he de tal calidade que os pes não consintem calçado nem os corpos vestidos, e o capitão se despedio delle e foy dar hordem ao porto como os navios e gente delle o viessem servir como vieram. E depois dalgũas grandes e cruas pelejas que ouveram com os das ylhas que desobedeciam a el-rey em que morreo muita gente e boa parte dos christãos, o senhor principal da ylha vendo-se sem remedio foy-lhe necessario pedir piadade a el-rey e por-se em suas mãos e obediencia; e el-rey lhe deu a vida e lhe tirou toda a honrra, terras e rendas que delle tinha e o desfez de fidalgo, de maneyra que com a ajuda e favor d' el-rey de Portugal, e por o dito rey ser favorecido da bandeira da cruz que levava elle ouve a vitoria de seus ĩmigos como desejava. E a gente de seu arrayal foy estimada em oytocentos mil homens, e segundo o parecer dos que os viram tomariam cinco legoas de terra.

E dahi despedio el-rey o capitão e gente de Portugal com muita honrra e merces que a todos fez; e ficaram com elle quatro frades e alguns outros christãos com todolos hornamentos da ygreja pera lhe dizerem missa e fazerem christãos seus filhos e todolos de sua corte. E assi ficaram os oficiaes fazendo a dita ygreja e hos outros seus oficios e has molheres. E ficou hum negro christão natural da terra que sabia ler e escrever, e começava ja de ensinar os moços da corte filhos dos grandes,  que he hũa grande memoria d' el-rey; e assi ficaram outras pessoas de descriçam ordenadas pera yrem por terra descubrir outras terras com fundamento da India e Preste Joam. E o capitam e frota se tornaram a estes reynos, e acharam el-rey em Lisboa no anno de quatrocentos e noventa e dous e com sua vinda foy muy alegre e recebeo muyto contentamento e deu a Deos muytas graças e louvores por as novas que ouvio da christandade d' el-rey e da raynha e de todo ho mays que lhe contaram.

Do principio da doença d' el-rey em Lisboa

Capitolo CLXII

El-rey depoys da morte do principe pola muita tristeza e grande sentimento que por ella teve, ou por peçonha que lhe deram como muytos  sospeitaram nunca mays foy bem são. E neste anno de noventa e dous estando em Lisboa no mes de Mayo lhe vieram grandes acidentes e desmayos, de que em casa da raynha sua molher esteve muito mal e muyto perigoso aa morte e dahi por diante nunca foy bem são. E porque atee entam em que el-rey avia trinta e sete annos nunca bebera vinho, foy-lhe apertadamente pedido por todolos fisicos que por quanto suas payxões eram manenconizadas e tristes que como meezinha muy necessaria pera elle o bebesse. E el-rey começou de o beber a dezassete dias do dito mes, e dahi por diante sempre o bebeo com grande temperança.

Da entrada dos judeus de Castela em Portugal

Capitolo CLXIII

Neste anno el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel de Castella como catolicos principes lançaram de todos seus reynos fora todolos judeus, pera que so pena de morte em certo termo assinado se sayssem fora delles, dando-lhe licença que em mercadorias tirassem suas fazendas nam sendo em ouro nem em prata; e isto fizeram por o muito dano que faziam em nossa fee como pola Enquisiçam que fezeram se veo. Os quaes judeus desacorridos e porém com sua dureza nam se querendo tornar christãos, se socorreram a el-rey e lhe mandaram pedir por merce que os recolhesse por entam em seus reynos, e nelles lhe desse nos seus portos do mar enbarcaçam e passagem pera em certo tempo se hirem a outras partes, e que por ysto lhe farião serviço de muita soma de dinheiro. E el-rey porque seus desejos foram sempre passar em Africa o que muyto desejava e não no podia fazer por estar sem dinheiro polos muytos e grandes gastos que nas festas do casamento do principe seu filho fezera, assi em outras cousas que socederam, e por lhe parecer que com o dinheiro que dos ditos judeus ouvesse, poderia ordenar sua passagem em Africa e fazer a Deos muito serviço, consentio nisso e lhe deu a dita licença com tençam de passar com o dito dinheyro como dito he sem dar apressam a seus povos a que elle muito queria e elles a elle, e isto com tal decraraçam que todolos judeus que viessem, entrassem por certos portos dos lugares do estremo logo assinados, e que  pagassem tanto por cabeça, de que tiraram certidões e recadações dos oficios d' el-rey pera isso ordenados de como tinham pago o que eram obrigados. E que os que entrassem sem pagar e sem as tays recadações e fossem achados se perdessem e ficassem cativos pera el-rey; e que desta maneira poderiam entrar e estar nestes reynos oyto meses, nos quais lhe daria embarcações por seus dinheiros em certos portos de mar que lhe logo pera ysso mandou nomear.

E os judeus das ditas condições foram contentes e entraram nestes reynos, e dentro no termo lhe deu el-rey a todos embarcações e se foram fora de seus reynos. E el-rey ouve hũa grande soma de dinheyro, do qual nunca despendeo hũa soo peça porque o tinha pera a dita passagem que com sua doença não pôde fazer, e por sua morte se achou todo o dinheiro junto assi como o ouve sem falecer nada. E destes mal aventurados judeus foram muitos mortos em Portugal de peste que consigo traziam, e mortos com muito desemparo, por caminhos e terras despovoadas. E os que passaram em Fez foy nelles hũa grande perseguição, que foram dos mouros roubados, deshonrrados e per força lhe dormiam com as molheres e com as filhas e filhos, e a muitos matavam, cousa piadosa; e nunca tanta perseguiçam em lembrança d' omens foy vista em nenhũa gente como nestes tristes judeus que de Castella sairam se vio. E alguns depois destroydos, deshonrrados, e perdidos se tornavam a Castella a fazer christãos, e tambem outros se fizeram em Portugal e ficaram no reyno.

Da embaixada que el-rey mandou a Roma com obediencia

Capitolo CLXIV

E no mes de Julho deste anno de noventa e dous, faleceo o Papa Ynocencio oitavo, e socedeo em seu lugar o Papa Alexandre sexto, que era vice-canceler de naçam valenciano, e chamava-se Dom Rodrigo Borja; do que el-rey foy certeficado em Sintra a dezasete dias d' Agosto. E mandou-lhe sua embaixada por Dom Pedro da Silva comendador-mor d' Avis, que ao dar dela se juntou em corte de Roma com Dom Fernando d' Almeyda bispo de Ceita  seu yrmão, e com Dom Diogo de Sousa bispo do Porto que lá  estavam. E porém ante de se darem a dita obediencia estiveram por aviso d' el-rey na cidade de Sena muitos dias  esperando pola entrada d' el-rey Carlos de França em Ytalia, a cuja parte e favor el-rey fingidamente mostrava que se yncrinava porque era contrayro a el-rey de Castella, avendo-se delle por enganado no contrato da entregua de Perpinhão, em que ficara de o nam empedir na requesta do reyno de Napoles e o empedia. E porque neste tempo antre os reis de Portugal e Castella ouve causas e cousas que pareciam de quebra, e el-rey alem das lianças que com França mostrava, mandou no reyno e fora delle fazer grandes e dessimulados apercebimentos que pera se segurar da guerra que desejava escusar por causa de sua doença muito lhe aproveitaram. E os embaixadores depois da entrada d' el-rey de França deram sua embaixada e obediencia, e foram com muita honrra recebidos e levava o dito embaixador muy honrrada companhia.

De como se descobriram per Colombo as Antilhas de Castella

Capitolo CLXV

E no anno seguinte de mil e quatrocentos e noventa e tres, estando el-rey no lugar de Val de Parayso que he acima  do Moesteyro das Vertudes, por caso das grandes pestes que nos lugares principaes daquela comarca avia, a seis dias de Março veo ter a Restello em Lixboa, Christovão Colombo ytaliano que vinha do descubrimento das ylhas de Cipango e Antilhas que per mandado d' el-rey e da raynha de Castella tinha descuberto. Das quaes trazia consigo as mostras das gentes, e ouro e outras cousas que nellas avia e foy dellas feyto almirante. E sendo el-rey disso avisado o mandou chamar e mostrou por ysso receber nojo e sentimento, assi por crer que o dito descobrimento era feyto dentro dos mares e termos de seus senhorios de Guine, como porque o dito Colombo por ser de sua condiçam alevantado, e no modo do contar das cousas fazia isto em ouro e prata e riquezas muito mayor do que era, e acusava el-rey por se escusar deste descubrimento e nam no querer mandar a isso pois primeiro se lhe viera oferecer que aos reys de Castella, e que fora por lhe não dar credito. E el-rey foy cometido que ouvesse por bem de lho matarem ahi, porque com sua morte o descubrimento nam hiria mais avante de Castella. E que dando sua alteza a isso consentimento se poderia fazer sem sospeita, porque por elle ser descortes e alvoroçado podiam com elle travar de maneira que cada hum destes seus defeitos parecesse  a causa de sua morte; mas el-rey como era muy temente a Deos nam somente o defendeo mas aynda lhe fez honrra e merce e com ela o despedio.

E cuidando el-rey bem o negocio e peso deste caso se foy logo a Torres Vedras, onde logo sobre ysso teve conselhos em que foy determinado que armasse contra aquellas partes hũa grande armada que logo mandou fazer com grande deligencia, e fez capitão-mor della, Dom Francisco d' Almeida que depoys foy ho primeyro viso-rey da India, homem de muita confiança e muyto bom cavalleyro. E sendo ja ha armada prestes chegou a el-rey hum mesageiro d' el-rey e da raynha de Castella; os quaes por serem certeficados que a dita armada hia contra outra sua que logo laa avia de tornar, mandaram requerer a el-rey que a nam mandasse até se ver per dereito em cujos mares e conquista ho dito descubrimento cabia. Pera o qual mandasse a elles seus embayxadores e precuradores com todallas cousas que fizessem por seu titolo, e segundo rezam e justiça elles se justificariam, e concertariam como fosse dereyto. Polo qual el-rey deyxou de mandar a dita armada, e sobre ysso mandou logo aos ditos reis o doutor  Pero Dias, e Ruy de Pina que da verdade bem enformados foram a elles que estavam em Barcelona ao tempo que per el-rey Carlos de França se fez a segunda concordia e entrega de Perpinham, e do condado de Roselham em Catelunha. E os ditos precuradores não tomaram com os ditos reis concrusão algũa, e a causa foy por lhe socederem assi prosperamente suas cousas com França, e principalmente porque ante de tomarem concerto sobre a dita conquista, ylhas e terras, quiseram outra vez ser certificados de toda a verdade dellas e de tudo o que nellas avia, pera que jaa tinham enviados seus navios que ainda nam eram tornados, porque segundo fosse a estima das ditas terras assi se concertariam. E pera dilatarem este negocio que nam parecese que o faziam por esperar a dita armada e passar este tempo sem se tomar concrusam ordenaram de enviar a reposta a el-rey por seus embaixadores e assi lho mandaram dizer.

Da embayxada que el-rey e a raynha de Castela mandaram a el-rey

Capitolo CLXVI

El-rey e a raynha de Castella mandaram a el-rey por embayxadores hum Dom Pedro d' Ayala, e Dom Garcia do Carvajal yrmão do cardeal Sancta Cruz, e sobre o dito caso traziam precuraçam pera concerto. Os quaes acharam el-rey em Lisboa e foram com muita honrra recebidos, e elles traziam honrrada companhia e grande aparato de negocio tudo fingido. E depois d' estarem com el-rey taes cousas requereram e apontaram e per taes meos e modos tam fora de rezam e concrusam, que bem claro se vio que vinham mais pera dilatarem que pera concerto algum segundo suas razões e palavras eram mal concertadas; e el-rey os despachou sem concrusam algũa porque elles vinham sem ella. E depois que os reis de Castela foram sabedores de todo o das ditas ilhas e terras polos navios que vieram e de tudo bem certificados el-rey lhe mandou sua embaixada. E os ditos embaixadores eram, o Dom Pedro d' Ayala muito manco de hũa perna, e o Dom Garcia do Carvajal muyto vão. E el-rey depoys d' estar com elles e os ouvir, disse que aquela embayxada d' el-rey e da raynha seus primos não tinha pees nem cabeça, nas pessoas dos embaixadores e na concrusam della. E quando esta embayxada veo era no tempo em que el-rey mandara contar as mulas; e em entrando os embaixadores polla porta de Sam Vicente mandou el-rey contar aa porta quantos de cavallo sayram de Lixboa e achou-se que dous mil.

Da embayxada que el-rey mandou a el-rey e aa raynha de Castella

Capitulo CLXVII

E sobre a concordia e concerto da dita conquista mandou el-rey por seus embaixadores e procuradores aos ditos reis Ruy de Sousa, e Dom Joam de Sousa seu filho, e o lecenceado Ayres d' Almada corregedor da corte, e Estevam Vaz por secretayro, pessoas no reino de muito bom saber, grande confiança e muyta autoridade, e com elles muy honrrada companhia; e foram com grande honrra recebidos de toda a gente da corte em Medina del Campo onde os reis estavão. Deram suas embaixadas e em nome d' el-rey se concertaram com os ditos reys sobre a demarcaçam e repartiçam dos ditos mares per certos rumos  e linha de pollo a pollo, per que as ditas ylhas e terras descubertas ficaram com os ditos reis de Castella com outra muita parte do mar e da terra, sem perjuyzo da costa e ylhas da conquista de todo Guinee. De que se fizeram contratos assinados e jurados pelos ditos reis com grande seguridade. De que todos mostraram receber descanso e contentamento por se escusarem antre elles deferenças e discordias que se ja começavam a revolver contrairas a sua paz e amizade. E com este assento concertado tornaram os ditos embayxadores no mes de Julho do dito anno a Setuvel onde el-rey estava, que com sua vinda foy allegre e os recebeo com muyta honrra e gasalhado porque todos eram muy aceytos a elle.

Dos avisos que el-rey mandava aos ditos embaixadores

Capitolo CLXVIII

E estando os ditos Ruy de Sousa, Dom Joam e Aires d' Almada embayxadores no dito negocio e outros de muita importancia, muitas vezes per paradas que  el-rey tinha ouveram carta em que lhe dizia: "Tal dia vos ham-de dizer el-rey e a raynha tal e tal cousa, a que respondereis tal e tal". E vindo o propio dia lho deziam sem falecer palavra. De que os embaixadores erão muito espantados, e assi el-rey e a raynha por lhe responderem emproviso sem escreverem a el-rey. Tanta parte tinha no conselho d' el-rey e da raynha de Castella que tudo lhe logo era revelado antes de se fazer. E tinha maneira que ao duque do Infantado e a outros senhores mandava merces e dadivas pubricas pera os reys de Castela se goardarem e nam fiarem delles, porque sabia que nam eram os do seu secreto. E aos de que mais se fiavam dava merces tam grandes e tam secretas que todollos conselhos e segredos lhe eram descubertos primeiro que nenhũa cousa se fizesse.

Da vinda de Monseor de Liam frances aa corte

Capitolo CLXIX

No anno de mil e quatrocentos e noventa e tres estando el-rey em Torres Vedras, veo ahi  hum senhor de França pessoa muy principal e de gram maneira, que se chamava Monseor de Lião; ho  qual vinha grandemente acompanhado de muitos fidalgos, gentis homens e muito bem ataviados e outra muita e limpa gente, e muitos servidores com grande aparato de sua mesa, e trazia muito boa capela de muitos e bons cantores tudo como grande senhor. Foy-lhe feito muy honrrado recebimento e el-rey lhe fez muita honrra. E a causa de sua vinda era de sua propia vontade sem nenhũa obrigaçam somente pola grande fama que d' el-rey polo mundo corria de suas vertudes e grandezas; desejou de o ver e servir, e se lhe veo oferecer pera com trezentas lanças o hir servir na guerra d' Africa. Sobre o qual lhe fez hũa pubrica e bem ordenada falla em sala pera ysso ordenada, a que el-rey respondeo como principe muy prudente e com muita honrra e palavras de muito amor muito agardeceo sua vinda e tam bom oferecimento. E em sinal de quanto com ysso folgava o fez com muyta honrra e cerimonia conde de Gazaa que he em Africa, e lhe deu honrrado assentamento, e fez outras grandes merces de ginetes arreados, escravos e prata lavrada, e outras cousas, e assi aos fidalgos que com elle vinham; e lhe tomou pages seus por moços fidalgos a que fazia muy grande favor e mandava muy bem criar. E assi lhe ficaram cantores de sua capella. E dahi de Torres Vedras se despedio d' el-rey com muyto contentamento e assi todos os de sua companhia, e elle com tençam de se fazer prestes pera vir servir el-rey como lhe tinha dito; e por as grandes guerras que logo socederam em França nam pôde vir como levava determinado. E porém de França escrevia muytas vezes a el-rey que o tevesse em lugar de seu criado e que assi o teria sempre quando a seu serviço cumprisse. E destes tinha el-rey em muytas partes que secretamente recebião delle muytas merces e de quem elle recebia muytos avisos bem necessarios a seu serviço e estado e a bem de seus reynos.

Da embaixada e presentes d' el-rey de Napoles

Capitolo CLXX

Aqui em Torres Vedras veo a el-rey hum embayxador d' el-rey de Napolles com hum muy grande e rico presente de cousas de muita estima. E o embayxador era muyto grande de corpo, muyto bem feyto, e muyto gentil homem, manhoso, avisado, e de bom despejo, e ho mayor musico de cravo e orgãos que entam se sabia, que el-rey algũas vezes ouvio. O presente era os mays singulares arneses e cubertas de azeiro  de cavallos, e outras cubertas de pintura, tudo o melhor que atee entam se vio. E assi outras muitas sortes d' armas e arcos, e outras cousas de muyta valia e grandissimas policias que el-rey muyto estimou; e recebeo ho presente em salla pera ysso concertada, e com muyta solenidade, de que mostrou receber grande contentamento. E ho embayxador foy grandemente recebido e com muyta honrra d' el-rey e de toda a corte e muytas vezes banqueteado dalguns senhores por comprazerem a el-rey. E dahi de Torres Vedras se partio, e el-rey lhe fez muitas e liberaes merces de que elle foy muy contente e bem satisfeito.

Da romaria que el-rey cumprio daqui de Torres Vedras

Capitolo CLXXI

Neste ãno aqui em Torres Vedras esteve el-rey muito doente e perigoso, e na doença prometeo d' ir  a pee ao Moesteiro de Sancto Antonio da Castanheira da ordem de Sam Francisco, e tanto que lhe Deos deu saude pera o poder fazer cumprio a dita romaria. E com alguns senhores e fidalgos e outras pessoas que pera ysso escolheo, partio de Torres Vedras hum dia polla menhã a pee e foy jantar a hũa quinta e dormir a hũa aldea que se chama Riba Fria junto d' Aldea Gavinha. E ao outro dia foy jantar a outra quinta e dormir aas Cachoeiras; e ao terceiro dia foy pola menhaã ao moesteiro com muita devaçam sempre a pee e ahi ouvio missa e ofereceo esmollas. E dahi se partio ja a cavallo e foy por o Moesteiro de Sancta Caterina de Carnota e a Sam Francisco d' Alanquer, e dahi a Sintra onde ja a raynha era que partio de Torres Vedras o dia que ele partio pera romaria. E em Nossa Senhora da Pena ele e a raynha forão estar onze dias por hũa novena que prometeram, e estiveram muito soos porque entam a casa era hũa bem pequena yrmida; e os que com elle estavam pousavam em tendas que el-rey ahi mandou levar onde se gasalhavam muito bem e a todos se dava de comer em muita perfeyçam e nos onze dias acabada a dita novena el-rey e ha raynha se tornaram a Sintra.

Do que el-rey fez a Dom Joam de Sousa

Capitulo CLXXII

Estando el-rey por hum rebate de peste no lugar d' Atalaya, Dom Joam de Sousa foy apousentado fora do lugar em hũa quinta ahi perto. E estando el-rey comendo lhe perguntou onde pousava, e Dom Joam lhe disse que fora do lugar, e o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida por zombar disse: "Senhor, nam lhe acharam casas em que podese caber"; e el-rey lhe respondeo alto à mesa perante todos: "Nam sera ysso por mingoa de casas que lhe nam aviam a elle de falecer, que se elle cá quiser pousar aqui tem estas pousadas e esta mesa"; de que Dom Joam ficou com muito contentamento e o prior com muyto pouco.

Do que el-rey fez a Ruy de Sousa per duas vezes

Capitolo CLXXIII

Ruy de Sousa foy pessoa de muita valia e autoridade e de bom conselho e vivo saber, muy despejado e de muyta graça, e estimado, e muy favorecido d' el-rey e de todolos reis que alcançou. Aqueceo que estando el-rey em Lisboa sobreveo a Ruy de Sousa hum negoceo em que lhe muito comprio aver tres mil cruzados emprestados; e como era muy despejado com el-rey lhe contou sua necessidade, e pedio-lhe por merce que ao domingo seguinte quando sua alteza cavalgasse como sempre cavalgava na Rua Nova dos Mercadores lhe fezesse algum favor pera achar quem lhe emprestasse o dito dinheyro, e el-rey disse que si. E ao domingo cavalgou e na Rua Nova chamou Ruy de Sousa, e só falando com elle deu tres voltas na Rua Nova rindo ambos, e perguntou-lhe se abastaria, e Ruy de Sousa lhe disse que sobejava; e ao outro dia foy Ruy de Sousa aa Rua Nova e a soo dous mercadores que falou lhe emprestaram os tres mil cruzados e se vinte mil quisera tantos achara, que tão estimados eram os homens que el-rey favorecia.

E estando el-rey em Evora hindo pera se recolher depois de comer lhe falou Ruy de Sousa em pee sobre hũa cousa de justiça que el-rey lhe nam quis fazer; e apertando Ruy de Sousa nisso soltou algũas palavras soltas com paixão, aas quaes lhe el-rey respondeo aspero e lhe mandou que se tirasse de diante dele; e recolhido por Ruy de Sousa ser pessoa principal e velho que elle muito estimava pesou-lhe do que lhe disse; e tanto que todos se recolheram mandou por hũa mula e cavalgou, e só com muito poucos se foy a casa de Ruy de Sousa e mandou que lhe mandasse fazer hũa camilha que queria hi ter a sesta, e mandou chamar Dom Joam de Sousa seu filho e com elles sos lhe disse: "Ruy de Sousa, porque as palavras que me oje dissestes tocavam a rey vos respondi mal, que se tocaram a homem eu vo-las sofrera como Dom Joam que está hi; e com tudo como se eu fosse Dom Joam vos peço que me perdoes porque me pesa muito de vo-las ter ditas"; e Ruy de Sousa e Dom João lhe quiseram beyjar a mão e elle lha nam quis dar e esteve com elles a seesta atee a tarde que acudiram os grandes e toda a corte e cavalgou e se tornou pera hos paços trazendo Ruy de Sousa e Dom Joam consigo cada hum de sua parte com muita honrra e favor.

Da merce que el-rey fez a Vasco Fernandez Cabral
e a Joam Falcão, e a Dom Martinho

Capitolo CLXXIV

Quando faleceo Fernam Cabral fidalgo da casa d' el-rey e do seu conselho, Vasco Fernandez Cabral seu filho mandou pedir a el-rey pelo conde de Marialva que lhe fizesse merce de hũa tença que ficara de seu pay, e el-rey se escusou, e ho conde disse a Vasco  Fernandez que el-rey lha nam quisera dar. Dahi a poucos dias passou Vasco Fernandez perante el-rey em hũa salla e elle ho chamou, e lhe perguntou cujo filho era conhecendo-o muyto bem; elle lhe disse que de Fernam Cabral; disse el-rey: "E vós viveis comigo e soes pera me servir no que vos eu mandar?"; respondeo-lhe: "Senhor, si"; e el-rey tornou: "Pois que soes pera me servir porque nam soes pera me pedir merce do que ficou de vosso pay e mo mandaes pedir por outrem, que cuidais que polo seu vo-la faço? Ora manday fazer o padram da tença que a vós que me aveis de servir faço a merce e nam por respeito de ninguem".

E Joam Falcam tinha-lhe el-rey feyto hũa merce, e por aver dias que não assinava ouve o alvara aa mão e pedio por merce ao capitão dos ginetes por ter com el-rey muyta valia que lho assinasse laa dentro; e ho capitão estando el-rey assinando huns papeys lho deu e pedio por merce que assinasse, e el-rey o rompeo em pedaços, de que ho capitão ficou muy aguastado, e muyto mays Joam Falcam quando ho soube. E ao outro dia vio el-rey Joam Falcam e chamou-o e disse-lhe: "Bem a merce que vos eu faço mandais vós assinar por ninguem; hora hi a hum escrivam que vos faça ho despacho e mo  dee logo que a vós hey-d' assinar a merce que vos faço e nam a outrem".

E Dom Martinho de Tavora filho de Ruy de Sousa sendo mancebo pedio a el-rey a alcaydaria-moor de Fronteyra que entam vagara, e el-rey lha deu; e elle acabado de lhe beyjar a mão e saydo fora da casa, topou ho conde de Faram de que era muyto amigo, e deu-lhe conta da merce que lhe el-rey fezera tam levemente, e loguo sem ho remeter a official yndo muyto contente. E ho conde por folgar muyto com ysso entrou loguo com el-rey e lhe foy por ysso beyjar ha mão, e el-rey lhe disse: "Nam me entendeo que nam lhe dey tal". E quando o conde o disse a Dom Martinho ficou morto, e tornou a el-rey e disse-lhe: "Senhor, nam me fez vossa alteza agora merce do castelo de Fronteyra?"; e el-rey lhe tornou: "Si, mas homem que tam pouco sabe, que daa conta da merce que lhe eu faço primeyro ao conde de Faram que a Ruy de Sousa seu pay não he pera ter fortaleza". E dahi a pouco vagou Sousel, e el-rey o mandou chamar e sem o ele saber nem pedir lhe fez merce da fortaleza.

Da merce que el-rey fez a Nuno Fernandez escrivão
da camara de Lixboa

Capitulo CLXXV

El-rey tinha Nuno Fernandez cavaleyro de sua casa em boa conta, e fiava delle e o mandava com hum negocio a el-rey de Fez pera laa andar algũus dias; e o principal fundamento era pera lhe ver bem Feez, e os muros e sitio e quão forte era. E sendo laa vagou cá o escrivão da camara de Lixboa, que rende quatrocentos mil reaes, e pedindo-lho muitos el-rey o não quis dar. E quando Nuno Fernandez veo e lhe beyjou a mão el-rey lhe disse: "Bem achastes toda vossa casa que eu tinha cuidado de mandar saber como estava, e em quanto laa andastes vagou cá o oficio d' escrivam da camara de Lixboa que he honrrado e de muito proveyto, e por isso o goardey pera vós. Manday fazer ha carta delle".

E desta maneira deu ho oficio de veador de sua Fazenda a Dom Alvoro de Crasto sendo em Jerusalem. E ao bispo do Algarve que ora he deu o bispado de Lamego e ho oficio de regedor da Casa da Sopricaçam estando em Roma; e assi outros muitos desta maneira sem lhos pedirem nem saberem disso parte, que era cousa que muito contentamento dava aos homens e grande desejo de o servirem pois estando tam longe delle e sem requerimentos lhe fazia merces e honrra; e isto fazia polo livro das lembranças que tinha feyto em segredo.

Da merce que el-rey fez a Diogo Fernandez feytor de Frandes

Capitolo CLXXVI

Estando em Frandes por feitor d' el-rey Diogo Fernandez Correa cavaleyro de sua casa, veo Maxemeliano rey dos romãos que depois foy emperador a Enves; e por ter muito grande necessidade de dinheiro pera as guerras em que andava, mandou chamar o dito Diogo Fernandez, e lhe deu conta da estrema necessidade em que estava, e como a gente se lhe queria toda hir por lhe nam poder pagar o soldo; que lhe rogava muito como a oficial d' el-rey seu primo que lhe quisesse socorrer e lhe emprestasse trinta mil ducados, que muito relevava a seu estado. E que elle lhe ficava por sua fe real que el-rey seu primo o ouvesse por bem e que elle lhos  tornaria a dar muy cedo. E Diogo Fernandez  ouvindo as palavras e sabendo a necessidade, sem nenhũa dilaçam lhe deu trinta mil cruzados e lhe ofereceo toda a feitoria, com ho qual dinheiro el-rey remedeou tudo. E Diogo Fernandez depois de lhos ter dado cuidou no que fizera sem licença d' el-rey, e muito arrependido vendo que nisso errara em seu oficio e no serviço d' el-rey, lho escreveo logo e mandou hum correo dando-lhe conta de todo o caso, pedindo-lhe por merce que lhe perdoasse a culpa e mao recado que de sua fazenda tinha feito, e quando nam que lhe desse o castigo que quisesse que elle aparelhado estava pera ysso e confessava que o merecia. E quando el-rey vio a carta folgou muito e mostrou receber muyto contentamento, e respondeo logo a Diogo Fernandez que nenhum serviço lhe podera fazer de que mais guosto levara, e que o fezera como muyto bom homem e bom criado e que lho agardecia muyto, e que cada vez que comprisse a el-rey seu primo lhe desse toda sua feitoria. E que o castigo que lhe dava polo fazer sem seu mandado era fazer-lhe por isso merce de mil cruzados, os quaes logo tomasse em si como tomou; e dahi em diante teve el-rey o feitor en mayor estima e o favorecia muito.

Do que el-rey disse a Lopo Soarez quando foy pera a Mina

Capitolo CLXXVII

Lopo Soarez que depois foy capitão-moor da India homem de muito bom saber e grande memoria e com que el-rey folgava e fazia merce e favor o mandou por capitão aa Mina; e quando lhe veo beijar a mão pera se partir el-rey lhe disse: "Lopo Soarez, eu vos mando aa Mina, nam sejaes tam peco que venhaes de lá prove". Folgava el-rey que seus oficiaes não lhe roubassem sua fazenda e soubessem fazer seu proveyto. E sendo tam cioso da Mina e guardando-a tanto, ouve por mais seu proveito dar aos homẽes favor e muyto grandes soldos, e assi muito grandes castigos quando erravão sem perdoar a ninguem, por que por amor ou temor folgassem de ho servir; e disto disse que se achava melhor que de tudo quanto provou. Porque hos homens por nam perderem os grandes ordenados nam se queriam aventurar a ysso por pouca cousa, e outros com temor do aspero castigo que sabiam que aviam d' aver fazendo o que nam deviam.

Da merce que el-rey fazia a Dom Joam d' Atayde

Capitulo CLXXVIII

E el-rey trabalhava quanto nelle era de buscar pera hos oficios da Justiça e de sua Fazenda homens vertuosos, de boa tençam e bom saber. E porque Dom Joam d' Ataide filho mor do conde d' Atouguia e erdeiro da casa era muito vertuoso e amigo de Deos como depois o mostrou por obra que se meteo frade, e o ham por sancto, e que fez  milagres, el-rey lhe dava e lhe cometeo que fosse regedor da Casa da Sopricaçam, sendo Dom Joam homem mancebo. E apertando el-rey muitas vezes com elle que o fosse nunca o quis aceytar; e por ysto e pola muita honrra que lhe el-rey fazia e assi a todollos homens relegiosos e leigos que tinha por vertuosos, avia em sua vida muitos ypocritas, que todos queriam mostrar vertude; e muitos que entam parecia que a tinham depoys da morte d' el-rey se deram a conhecer e mostraram bem quem eram.

De como el-rey mandou aa Ylha de Sam Tomee hos moços
que foram judeus

Capitolo CLXXIX

No ãno de quatrocentos e noventa e tres em Torres Vedras deu el-rey a Alvoro de Caminha cavaleyro de sua casa a capitania da Ylha de Sam Tomee de juro e d' erdade, com cem mil reaes de renda cada anno pagos na Casa da Mina. E porque os judeus castelhanos que de seus reynos se nam sayram nos termos lemitados, os mandou tomar por cativos segundo a condiçam da entrada, e lhe tomou hos filhos e filhas pequenos que assi eram cativos, e os mandou tornar todos christãos; e com o dito Alvoro de Caminha os mandou todos aa dita Ylha de Sam Tomee pera que sendo apartados dos pais, e suas doutrinas, e de quem lhe podesse falar na ley de Moyses fossem bõos christãos, e tambem pera que crecendo e casando se podesse com eles povoar a dita ylha que por esta causa dahi em diante foy em crecimento.

Da doença da raynha Dona Lianor em Setuvel

Capitolo CLXXX

E no anno de noventa e quatro vindo el-rey de Santarem de ver a Excelente Senhora, em chegando a Alcouchete lhe deram  recado como a raynha Dona Lianor sua molher que em Setuvel ficara, supitamente adoecera e estava muito perigosa. E el-rey polo grande bem que lhe queria tanto que lhe a nova deram partio logo muy à pressa e muito só por mingoa de bestas, porque el-rey partio de Benavente em hũa barca, e por trazer muito boa viajem veo em poucas oras e cuidava repousar em Alcouchete atee as bestas virem por terra; e por ysso foy nas bestas que achou no lugar e soo, e muytos fidalgos forão apos elle em bestas d' albarda por ho seguirem. Chegou a Setuvel bem soo muito noite, e achou ha raynha muito mal e com pouca esperança de sua vida, de que ficou em estremo triste; e eu o vi chorar soo muytas lagrimas com grandes salluços e sospiros avendo-a jaa por morta; e ella foy saã e viveo depois trinta ãnos e elle faleceo dahi a hum. E o duque e a duquesa yrmãos da raynha tanto que a nova souberam acudiram logo de Beja onde estavam e foram em sua cura e visitações muy continos e delligentes; e a ha raynha esteve de todo aa morte com seu testamento feyto confessada, comungada e ungida, tudo como muy catolica princesa.

E de sua doença e perigo pesou muyto a todo ho reyno porque era muyto bem quinta de todos; e fizeram por ella em  muitas partes pricições e muitas devações e prouve a Nosso Senhor de lhe dar vida, porém não inteira saude, porque vivendo depois mais de trinta ãnos sempre foy doente e o mais do tempo em cama. No qual tempo depois da morte d' el-rey viveo sempre muy honestamente como princesa muyto virtuosa guardando muy inteiramente a honrra d' el-rey e a sua com muito grande honestidade, e fazendo a muytos muytas e grandes merces de grandes casamentos e outros somenos e muytas e muy continuas esmollas e obras muy virtuosas. E com grandes despesas suas fez a igreja, dormitorios, enfermarias, e botica das caldas d' Obedos, com todallas cousas em grande perfeiçam e lhe deu muita renda pera sempre se soster, obra muy sancta e de muyta misericordia com que muytos sam curados de graça. E assi fez o Moesteiro da Madre de Deos junto de Lisboa casa de muita devaçam e sancta vida, e de muito grandes cumprimentos e oficinas e muitas policias e refrigerios tudo em muyta perfeiçam onde ella estava muyta parte do tempo em honrrados paços que ahi fez pera si e apousentamentos outros. E assi fez outras muitas obras virtuosas dignas de memoria como raynha muyto virtuosa de muyta bondade, honestidade e muy amiga de Deos, e em estremo da honrra e d' alma d' el-rey seu marido, que tam honrradamente tinha seu corpo sendo morto como o elle era em vida.

De como el-rey aqui em Setuvel enventou e achou em caravellas
e navios pequenos trazer bombardas grossas

Capitolo CLXXXI

Porque el-rey sempre cuidava nas cousas que compriam a bem de seus reynos e a defensam e goarda delles e via que pera goardar o estreyto de navios de mouros, e a costa de cossayros se  despendia muito nas armadas de grandes naos que pera ysso mandava armar, como era engenhoso em todolos oficios e sabia muito em artelharias cuidando muito nisso por melhor goardar sua costa com mais seguridade e menos despesas, aqui em Setuvel com muitos esprimentos que fez achou e ordenou em pequenas caravellas andarem muito grandes bombardas e tirarem tam resteiras que hiam tocando na agoa; e elle foy ho primeyro que isto enventou. E poucas caravellas destes grandes rios faziam amaynar muytas naos grossas porque atee então nam andavam no mar tiros grossos, e ellas com elles e por serem muito ligeiras e pequenas que as naos grossas lhe não podiam fazer nojo com seus tiros. Foram tam temidas no mar as caravellas de Portugal muito tempo que nenhuns navios por grandes que fossem as ousavam esperar, atee que se soube a maneira em que traziam os ditos tiros e se trouxeram depois como agora trazem geralmente em todas partes o que dantes nam era; e el-rey foy o primeyro que o enventou.

E assi mandou fazer entam a torre de Cascaes com sua cava com tanta e tam grossa artelharia que defendia o porto. E assi outra torre e baluarte de Caparica defronte de Belem em que estava muita e grande artelharia, e tinha ordenado de fazer hũa forte fortaleza onde ora está ha fermosa torre de Belem que el-rey Dom Manoel que santa gloria aja mandou fazer, pera que a fortaleza de hũa parte e a torre da outra tolhessem a entrada do rio. A qual fortaleza eu per seu mandado debuxey e com elle ordeney aa sua vontade; e ele tinha ja dada a capitania della a Alvoro da Cunha seu estribeiro-mor e pessoa de que muito confiava; e porque el-rey logo faleceo nam ouve tempo pera se fazer. E a sua nao grande que foy a mayor, mais forte e mais  armada que se nunca vio, mays a fez pera guarda do rio que pera navegar. Que posta sobre ancora no meo do rio ella soo o defendera, quanto mays a fortalleza e torre, porque era a mayor e mais forte e armada nao que se nunca vio.

Partida d' el-rey pera Evora e do que ahi fez

Capitolo CLXXXII

E porque a doença d' el-rey assentou em mortal idropesia no verão deste anno e a villa de Setuvel por ser muito humida era contraira a sua saude, elle com a raynha se foram aa cidade d' Evora na entrada do Inverno. Onde por descarrego de sua conciencia mandou polo reyno Alvoro Pacheco cavaleiro de sua casa, e com elle Estevam Barradas com muito dinheiro pera pagarem algũa parte da prata das ygrejas e dinheiro dos orfãos, que se tomou pera as guerras de Castella em tempo d' el-rey Dom Afonso seu pay que ainda nam era acabada de pagar e entam se pagou tudo. E aqui em Evora no Inverno se achou algum tanto melhor e hia muitas vezes aa caça. E no Verão lhe correram muytos touros na praça e no terreiro dos paços, e ouve muytos galantes a cavallo que andaram a eles. E dia de Sam Joam andando ja bem fraco e descoorado por não perder seu custume juguou as canas no terreiro dos paços e na praça com muita galantaria e envenções; e acabadas na çotea dos paços deu a todos hum muyto abastado e muy perfeyto almorço. O que tudo fazia por seu muito esforço nam tendo jaa forças, soo por dar contentamento aos de seu reino, que por caso de sua doença andavam todos muyto tristes.

De como el-rey ordenou oficiaes pera despacharem

Capitulo CLXXXIII

E porque el-rey em sua saude se agastava com papeis e pitições, na doença entendia nelles de pior vontade, e porém sempre despachava e fazia o que era obrigado ainda que fossem com payxam. E porque era muy justo e muyto virtuoso, e polas grandes payxões e agastamentos de sua grande doença nam podendo bem  despachar, doendo-se das partes a que nam podia acudir como desejava, ordenou certos leterados que com alguns do conselho entendessem em todalas cousas do reyno e com justiça as despachassem ficando somente algũas que el-rey avia de despachar per si e a elle se aviam de requerer. E porque se ouvesse d' assinar tudo o que se despachasse, lhe faria muito dano a sua enfermidade, mandou fazer dous sinaes, o grande e o pequeno entalhados em ouro, pera que como letra de forma assinassem tudo: e quando assi vinham os despachos com as vistas postas nelles el-rey dava o sinal, e per qualquer oficial que presente era se assinava tudo diante delle com muito resguardo; e eu o fiz muitas vezes diante dele per seu mandado.

Do que el-rey disse a Ruy de Sande

Capitolo CLXXXIV

Neste tempo estando el-rey em Evora, hum Nuno Antunez cavaleiro de sua casa veo da Mina por capitam de hũa caravela e trazia trinta mil pesos d' ouro. E porque morriam de peste em Lisboa sayo em  Setuvel e trouxe o ouro todo a el-rey pera o ver por ser muito antes de se levar aa moeda; e vinha feito em muitas cousas diversas de muytas feições e parecia por ysso muito mais. El-rey estando com poucos somente algũas pessoas com que folgava mandou estender o ouro todo em hũa alcatifa e estando o assi vendo, disse Ruy de Sande manso a Diogo da Silveyra: "Bem contente e descansado estaria quem tevesse todo aquele ouro"; el-rey ouvio o que disse e virou-se a elle e disse-lhe: "Certefico-vos, Ruy de Sande, que vo-lo dera todo se o jaa nam fizera el-rey Dom Afonso de Napoles".

Do que el-rey disse a Joam Fogaça vindo da Sitima

Capitulo CLXXXV

Foy el-rey hum sabado caçar e jantar a Sitima como muytas vezes fazia; e porque el-rey tinha mandado que sempre em sua ucharia ouvesse em muita avondança todolos pescados bons e chacinas, pera que quando falecesse as pessoas principaes podessem laa mandar por tudo, assi era sempre em  tanta abastança, que ho que se lançava a longe podre e se levava em despesa ao uchão era muyto grande cousa. E porque entam nam fez tempo pera poder vir pescado de Setuvel e Lisboa donde sempre vinha, e o veador João Fogaça vio que os que hiam com el-rey nam tinham muito bem de comer como sempre comião em muita perfeição, por escusar algũa paixão pedio a Diogo Pirez de Sequeira que servisse por elle e nam foy com el-rey; e vendo el-rey que nas outras mesas nam avia tanta abastança de pescados bõos como soya pesou-lhe muyto. E quando veo pera a cidade, Joam Fogaça o veo esperar aa porta e levava a barba rapada daquele dia; e el-rey como o vio disse-lhe alto perante todos: "Veador, vós vindes com a vossa barba rapada, e eu com a minha muito chea de vergonha por quam mal nos oje destes de comer". E com quanto o veador nam tinha culpa porque fora polo forte tempo que passara lhe pedio por merce que lhe perdoasse e que tal nam passaria mais.

Do que el-rey fez ao bispo d' Evora vindo de Viana

Capitolo CLXXXVI

Ho bispo d' Evora Dom Afonso filho do marquez de Valença e primo com yrmão da ynfanta Dona Breatiz era de sua condiçam ysento e livre. E por alguns descontentamentos que el-rey delle ouve, ho mandou sayr fora d' Evora até sua merce, o que o bispo logo cumprio e se foy a Viana d' a par d' Alvito onde esteve muytos dias. E indo el-rey hum dia a Viana o bispo muy acompanhado dos seus e dos da villa o veo receber ao caminho, e el-rey lhe fez muito grandes honrras e muyto gasalhado, e aa mesa com muita graça falou sempre com elle e assi na seesta com muito despejo; por onde o bispo ficou tam contente que lhe pareceo que el-rey de todo era fora da paixam que delle tevera e que indo com elle o deixaria entrar em Evora sem mais requerimentos e cometeo de o fazer. E no caminho aa vinda, vindo el-rey falando com o bispo com muito prazer vio passar hũas azemalas do bispo e conheceo suas devisas e armas, e entendeo a tençam do bispo e fez que não via nada; e vendo que o bispo per dissimulações queria entrar em Evora sem lho pedir, foy sempre falando com elle atee Sancto Andre que he perto dos muros onde ja chegou muyto noyte; e alli lhe disse el-rey: "Bispo, sera bem que vos torneis embora que he jaa tarde" e assi o despedio. E o bispo corrido e com seu  fato ja em Evora e o fundamento desfeito se tornou a Viana onde chegou aas duas oras depois de mea-noite bem enfadado e cansado. E porém dahi a poucos dias o mandou el-rey vir pera a cidade sem requerimento algum.

Do que el-rey disse a Dom Martinho sobre seu yrmão

Capitolo CLXXXVII

Saindo el-rey hum dia dos paços pera cavalgar decendo pollas escadas vinha-lhe falando Dom Martinho veador da Fazenda em hum requerimento de Dom Pedro seu yrmão; e el-rey vendo ante si muitas partes que esperavam e requeriam despachos, disse alto a Dom Martinho que o ouviram todos: "Melhor seria falardes-me vós no despacho destas partes que aqui andam por despachar, que no despacho de vosso yrmão a que nam ha-de falecer tempo"; de que Dom Martinho ficou corrido e as partes muito contentes. E como el-rey veo entendeo em seus despachos e os despachou todos.

Do piloto e marinheiros que el-rey mandou matar

Capitolo CLXXXVIII

Hum pilloto e dous marinheyros fugiram pera Castella com dinheiro da Mina furtado e com tençam de desservirem a el-rey, que tanto que o soube teve tal maneira que dentro em Castela os ouve logo aa mão. E trazendo-lhos todos, foy sabido das yrmandades que por muytas partes espalhados vieram apos elles. E os que os traziam sentindo os que vinham, e vendo que os nam podiam trazer todos sem muyto risco de suas pessoas, se embranharam em hũa grande mata e mataram os cavallos por nam rincharem, e aos dous marinheyros cortaram as cabeças que trouxeram e ao piloto depoys da terra segura e as yrmandades ydas, trouxeram andando de noite com anzolos na boca por nam falar, e vieram com elle a Evora onde logo foy esquartejado. Por onde nenhum ousava de se yr como nam devia, porque nam sabiam onde podessem escapar a el-rey. E com mandar às vezes matar poucos escusava a morte de muitos, e outras perdas e danos que os reys fazem  quando nam tem medo nem receo; que quanto bem os bons fazem por amor tanto mal os maos deixão de fazer com temor.

Do que se fez em Evora aa entrada de hũa porta da salla

Capitolo CLXXXIX

Neste tempo foy el-rey hum domingo ouvir missa aa See e com sua doença se achou lá mal e agastado, e mandou ao veador que tevesse a mesa posta em hũa sala grande, e que a tevesse de todo despejada; e o veador o fez assi e lha teve sem pessoa algũa muito augoada e enrramada de canas e ramos verdes. Vindo el-rey e entrando pola porta sem entrar ninguem diante a mandou fechar; muitas pessoas principaes nam sabendo o que elle tinha mandado e por ser em sala quiseram entrar e punham força nas portas, e por serem muito grandes e o veador e porteiros as nam poderem fechar disseram alto: "Senhores, tende-vos que manda el-rey que nam entre pessoa algũa". E elle em ouvindo o rumor virou atras e disse alto: "Abri essas portas"; e em se abrindo os que per força queriam  entrar e ouveram de cair por diante em vindo el-rey cairam todos por detras huns sobre outros que tanta força poseram por el-rey nam ver os que queriam forçar a porta, e nam se vio algum aa porta e el-rey as mandou ficar abertas e em quanto comeo nam pareceo pessoa algũa em toda a varanda que desta maneira era acatado e temido andando ja pera morrer.

Do que el-rey disse hum dia a Dom Martinho

Capitolo CXC

Vindo el-rey hum dia da missa da capela d' Evora pola varanda vinha falando com elle Dom Martinho veador da Fazenda em hũa cousa sua d' el-rey; e em chegando aa sala estando muytos fidalgos e cavaleyros juntos de hũa parte e da outra, el-rey lhe respondeo alto fora do preposito em que falavam e disse: "Nam ey-de dar isso a esse homem porque nam sabe ter  hũa lança na mão nem trazer hũa espada na cinta". Que nam era contente de fazer honrra e merce aos valentes homens e bons cavaleyros mas ainda dava a entender que a nam avia de fazer aos que taes nam fossem. Por onde todos trabalhavam de ho ser ou ao menos de o parecer.

De como el-rey ordenou que em sua capella se rezassem as oras
canonicas como ygreja catredal, e do que se passou com o adayam

Capitolo CXCI

Porque todolos reys passados, assi el-rey atee este tempo em suas capelas nam se fazia mais do que dizerem-lhe missas e besporas quando as ahi queriam ouvir, e os capelães diziam missas nas ygrejas onde queriam, e as oras rezavam em suas pousadas, e aas vezes nas estrebarias vendo curar suas mulas. E el-rey como era catolico e muito devoto e amigo de Deos, por se os officios divinos fazerem com mais perfeiçam e acatamento e em muyta perfeiçam, estando aqui em Evora neste anno ordenou e fez que todos seus capelães, cantores, e moços da capela rezassem as oras solenemente em sua capella cantadas como em ygreja catredal. E assi mandou logo pera ysso fazer seus coros e  assentos e muytos ornamentos e todas has cousas necessarias muy perfeitas e em grande avondança. E por que folgassem de o fazer e com melhor vontade yr servir Nosso Senhor, deu-lhe logo rendas de que ouvessem cotidianas destribuyções, e a pôs na ordem e regimento em que ora está que he a melhor servida capella que rey christão tem.

E estando el-rey ouvindo missa, rezava com elle Diogo de Sousa adayam de sua capella que depois foy arcebispo de Braga. E em se el-rey levantando ao evangelho se lhe tirou hum pantufo do pee e querendo tomá-lo, ho adayam se abayxou rijo e tomou ho pantufo e em joelhos lho quisera meter no pee. E el-rey ouve menencoria e disse-lhe aspero: "Tiray-vos di, ysso aveys vós de fazer, o homem que toma o sacramento nas mãos as ha-de poer no meu pantufo? Ora por esse mao ensino que fizestes, tanto que acabarem a missa vos hi logo pera a pousada e nam sayaes della atee o eu mandar". E o teve por ysso hum mes em casa que desta maneira acatava, e honrrava, e reverenciava o culto divino.

De como el-rey fez e ordenou meirinho do paço

Capitolo CXCII

Ho prior do Crato Dom Diogo d' Almeida e Dom Joam de Sousa ouve antre elles deferença, e em ausencia vieram a dizer muyto maas palavras hum do outro e a tanta quebra que cada dia se esperava que viessem a rompimento e às cutiladas onde se topassem. E aqui em Evora acertaram ambos a ter todas suas valias que eram tamanhas e tam nobre gente que nam avia homem na corte que nam fosse de hũa parte ou da outra elles valentes cavalleyros. E porque se viessem a romper ambos fora gram oniam e fizera-se muito mal porque andavam muito acompanhados de seus parentes e criados, e se fora no paço ou no terreyro fora ja muito pior e el-rey nam podera deixar de dar os grandes castigos que em tal caso mereciam, por evitar isto ordenou então e fez meirinho do paço hum Estevam Fernandez cavaleyro de sua casa valente homem de sua pessoa; e deu-lhe doze homens da guarda buscados e escolheitos pera isso homens de coraçam, e bem despostos, muito bem vestidos das cores d' el-rey que com alabardas nas mãos estavam sempre aa porta do paço em assentos que lhe hi poseram. E mandou el-rey ao meyrinho e a elles que qualquer pessoa que no paço ou no terreiro tirasse  espada, que o matassem sem aver hi prisam nem outra cousa, e assi o mandou noteficar per escritos postos às portas do paço. E com este mandado d' el-rey que todos tinhão por muy certo ouverão tamanho receo que os bandos se desfizeram per si sem mais aver ajuntamento. E este foy o primeyro meyrinho do paço que em Portugal ouve, e por ser oficio tam necessario ficou sempre d' antam pera cá.

Do que el-rey fez sobre dous moços fidalgos
que ouveram brigas no paço

Capitolo CXCIII

Dous moços fidalgos jaa grandes e porém andavam ainda em pelotes, ouveram rezões no paço e vieram aos cabellos e soube-o el-rey e mandou-os logo chamar anbos pera os castigar como moços e não virem a mais e ficarem em brigas e pendenças; veo hum deles a que logo mandou açoutar por Antão de Faria, e os parentes do outro quando o souberam, esconderam-no e nam no quiseram mandar. E como el-rey vio que nam vinha mandou chamar  o corregedor e sayo com hũa sentença em que o degradava por dez annos pera Ceyta. Hos parentes se vieram agravar de tam aspera sentença e el-rey lhe disse: "Pois não quisestes que o castigasse como moço, castiguey-o como homem ". Ouveram elles seu conselho, e depois d' avido trouxeram todos juntos o moço a el-rey pera que o castigasse a sua vontade. E el-rey como vio o ajuntamento perante todos pedio hum pao e andando muito doente o tomou pollos cabelos e o espancou bem. E cansado se recolheo a outra casa, e disse a Dom Joam de Meneses e a Aires da Silva: "Nam dey aquellas pancadas aaquelle moço senam polas dar aaquelles necios que vinham juntos a fazer caso no bem que eu queria fazer; e quiçaes se ficaram em brigas nam se ajuntaram pera isso como agora vinham juntos e eu por aqui lhas atalhey".

Do que el-rey disse ao comendador-mor sobre Gonçalo da Fonseca

Capitulo CXCIV

Gonçalo da Fonseca homem fidalgo e muy bom cavaleyro, era pequeno de corpo e el-rey o favorecia  e lhe fazia honrra e merce. E hum dia estando em pratica com certos senhores e fidalgos vieram a falar nelle, e o cõmendador-mor Dom Pedro da Silva disse "Gonçalinho da Fonseca", e el-rey lhe disse logo: "Gonçalinho lhe chamais nam sey, se vós vos tomardes com ele Gonçalão vos parecerá". Isto disse el-rey pollo mao ensino que foy em lhe chamar perante elle Gonçalinho.

Do que el-rey disse ao mordomo-mor sobre ho apousentador

Capitolo CXCV

O mordomo-mor Dom Joam de Meneses sobre hũas pousadas, disse maas palavras a Alvoro Rodriguez apousentador, que foy logo fazer queixume a el-rey que o mandou logo chamar; e estando-lhe perguntando por o caso e reprendendo-o muito disso, ho mordomo-mor lhe disse: "Vossa alteza nam quer crer a mim e dá credito a Alvoro Rodriguez que he muito grande sandeu". E el-rey lhe respondeo: "Mais sandeu sereis vós se outra vez disserdes tal palavra perante mi". De que Dom Joam  lhe pedio logo perdam em joelhos e lhe beijou a mão pollo ensino.

Do que el-rey disse ao conde de Borba em hum conselho

Capitolo CXCVI

Ho conde de Borba Dom Vasco Coutinho de sua condição falava sempre muito alto, e às vezes quando se queria frautar falava muito baixo. E hum dia estando el-rey em hum conselho, quando veo o conde a dizer seu parecer falava tam baixo que se nam ouvia, e el-rey lhe disse: "Conde, os vossos baixos sam tam baixos que vos nam ouve ninguem, e os altos tam altos que se nam ouve ninguem comvosco".

Do que el-rey disse sobre as espadas

Capitolo CXCVII

E estando certos senhores e fidalgos hum dia perante el-rey em pratica sobre qual era melhor espada se a comprida ou a curta, e os mais eram que a comprida; e elle disse: "Muito melhor espada he a curta, porque o verdadeiro portugues nam ha-de ferir senam com os terços".

Do que el-rey fez e disse a Antam de Figueiredo

Capitolo CXCVIII

Antam de Figueredo moço da guarda-roupa andava muyto honrradamente e trazia grande casa nam tendo mais que mil e quinhentos reaes de moradia; e tendo-lhe el-rey muyto boa vontade se agravava delle e andava muy descontente e nam servia como soya, e el-rey o chamou hũa noyte soo perante Anrrique de Figueiredo seu tio que era escrivam da Fazenda e homem que el-rey muyto estimava, e lhe disse que de que se agravava dele. E Antam de Figueredo lhe respondeo, que porque servia sua alteza muito bem com muyto amor, e nam tinha mais que mil e quinhentos reaes de moradia sem tença nem outra cousa certa; e el-rey disse: "Antam de Figueredo, tendes vós seys homens de capas, e seis moços, e quatro  escravos e duas escravas brancas todos muito bem vestidos e ataviados, e dous ginetes, e duas azemallas e muito bons concertos de casa que eu muyto bem tenho sabido?"; respondeo: "Senhor, si"; disse el-rey: "Ora como sostendes tudo ysto com mil e quinhentos reaes de moradia que vosso pay nam vos daa nada nem no tem pera ysso?" E elle ficou enleado sem saber responder; disse-lhe el-rey: "Ora se ysto tudo se sostem com a minha guarda-roupa e das minhas capas, pelotes, gibões, e calças, e camisas, e pontas d' ouro e outras muytas cousas que vós tendes em voso poder sem vos serem carregadas em receyta nem aver ahi escrivam, como quereis vós cuidar que mo furtaes, e nam que vos faço eu de tudo merce poys o sey muyto bem e o consinto? Ora me beijay ha mão por tudo e servi-me muyto bem que eu tenho cuydado de vos honrrar e fazer merce". E logo elle e o tio lhe beijaram a mão, e dahi por diante servio melhor, e el-rey o casou e lhe fez honrra e merce; e desta maneyra era largo com seus oficiaes.

Do que el-rey fez a Eitor Borralho

Capitulo CXCIX

Hum Eytor Borralho cavalleiro da casa d' el-rey vindo da Mina por capitão de hũa caravela vinha muito alvo; e quando beijou a mão a el-rey e o vio assi espantou-se e perguntou-lhe como vinha tam alvo; e elle lhe respondeo: "Senhor, fuy e vim sempre muito embuçado com touca e sombreiro e sempre luvas calçadas", e el-rey lhe disse: "Nam fora melhor vir negro como homem, que alvo como molher? Andar di pera neicios que quem ysso faz nam deve de ser pera nada"; e o fez levantar e yr sem o querer ouvir.

Do que el-rey disse a Anrrique Correa

Capitolo CC

Annrique Correa tio do mestre de Santiago tendo dor de olhos trazia na mão hum lenço lavrado, e el-rey lhe perguntou pera que era; respondeo: "Senhor, pera alimpar os olhos que trago muito doentes; disse-lhe el-rey: "Pera ysso melhor he hum pequeno de cendal, ou alimpá-los com as habas do pellote, que menos mal he que trazer lenço lavrado como molher". E em vida d' el-rey nunca ninguem perante ele trouxe luvas untadas, nem lenços lavrados, nem barbas tintas, nem unturas. E os homens que com necessidade traziam cabeleiras que eram muito poucos avia-se por tacha. Que nos porquês poseram porque traz Nuno Pereira cabeleira sobre velho, e elle seria homem de quarenta annos.

Dalgũas cousas que el-rey disse a Garcia de Resende

Capitolo CCI

Quando el-rey deu casa ao principe Dom Afonso seu filho antes das festas me passou a elle. E eu pesando-me muyto lhe pedi por merce com algũas lagrimas que me nam desse ao principe porque nenhũa pessoa desejava servir senam a su' alteza; e mais que era muyto moço e me agasalhava com meu tio e pasando-me ao principe ficava desagasalhado.

E el-rey me disse: "Eu quando dey casa a meu filho dey-lhe os meus livros da cosinha para que elle à sua vontade escolhesse nelles os moradores que quisesse, antre os quaes elle escolheo a ti; ora como queres tu que lhe tire eu nenhum daqueles que elle per meu mandado escolheo? E mais por essa vontade e lagrimas que te vejo me lembrarey sempre de ti; e servindo tu a meu filho serves a mi; e o empedimento de teu tio he nenhum, porque meu filho nam no ey-d' apartar de mi; e mais he melhor pera vosoutros porque teu tio requererá a mi por ti e tu a meu filho por elle". Tam humano era el-rey pera hos bayxos que a hum moço como eu estava assi confortando e dizendo taes palavras; e sempre em vida do principe me fazia favor.

E depois da morte do principe quando torney pera elle me fez logo merce da sua escrevaninha que ficara de Ruy de Sande quando fora acrecentado, e avia perto dum ãno que a nam dava a ninguem, e era entam a melhor cousa que avia antre os moços da camara, porque el-rey sempre escrevia com a sua escrevaninha, e nunca molhava a pena quando escrevia, somente eu lha tinha na mão molhada e limpa, e como a com que elle escrevia gastava a tinta, elle ma dava e tomava a outra; e sempre tinha na mão hũa pena concertada com tinta, e via tudo o que elle escrevia. E hum dia estando elle escrevendo pera el-rey de Castella, e eu soo com ele no escriptorio por eu ver ser cousa de muyta substancia estava com o rosto virado pera outra parte, e elle querendo a pena quando me vio estar virado  disse: "Vira-te pera cá que se me nam fiasse de ti nam te mandaria estar hi. E porém isto nam te dê presunçam senão vontade pera milhor servir e ser milhor ensinado". E eu lhe beijey a mão de que elle mostrou folgar; e dava a outros e a mim tantos e bons ensinos que nunca ouve pay que os tais desse; e elle me ensinou as oras polo norte, e assi outras cousas que por lhas eu entam não merecer quis Deos que agora lhas servisse em escrever sua vida e contar suas vertudes.

Eu debuxava muito bem, e elle folgava muito com isso e me acupava sempre, e muitas vezes o fazia perante ele em cousas que me elle mandava fazer. E porque eu levasse gosto em o fazer me disse hum dia perante muitos que me prezasse muito disso porque era tam boa manha que elle desejava muito de a saber, e que o emperador Maxemeliano seu primo era grande debuxador e folgava muito de o saber e fazer.

E porque eu começava de tanger bem me mandava ensinar e me ouvia muitas vezes na sesta e de noite na cama, e me gabava tanto e tantas vezes que eu nam cuidava em outra cousa senam em servir e aprender.

E estando hũa noyte na cama ja despejado me perguntou se sabia as trovas de Dom Jorge Manrrique que começam "Recorde el anima  dormida", e eu lhe disse que si; fez-mas dizer de coor, e depois de ditas me disse que folgava muito de mas ver saber e que tam necessario era a hum homem sabê-las como saber o pater noster; e gabou muyto o trovar de muito singular manha e isto porque eu fiz hũa trova que elle vio e a gabou muito por me dar vontade de ho aprender e saber fazer.

Quando el-rey hia pera o Algarve no tempo de seu falecimento, deziam-lhe os fisicos que se guardasse de dormir de dia, e elle por nam dormir jugava sempre na sesta o enxadrez; e no caminho ja na serra do Algarve foy jantar a hum ribeiro de muito boa agoa debayxo de hũas sovereiras grandes; e depoys de comer quisera jugar ho enxadrez como sempre fazia por nam dormir, e a bolsa com hos trebelhos estava ahi e ho tavolleyro era diante com ha cama per esquecimento e elle ouve disso desprazer e disse muito maas palavras ao moço da guarda-roupa e bem agastado. E eu vendo como estava assi apayxonado, ajuntey duas folhas de papel e com tinta debuxey nellas hum tavoleyro e com huũa pouca de cera vermelha fuy loguo e disse-lhe: "Senhor, aqui trago hum tavoleyro", e apeguei-lho na mesa com a cera; ficou tam ledo e folgou tanto como se fora hũa  grande cousa e fez-me muito favor gabando-me muyto, e disse perante todos: "Pera que he trazer taboleyro nem trazer nenhũa cousa senão trazer somente Resende?". Que desta maneira era agardecido de qualquer cousa por pequena que fosse.

Do que el-rey fez em Evora sobre a  venda do pão

Capitolo CCII

E estando el-rey em Evora começou d' aver necessidade de pam avendo muito na cidade en poder dalguns fidalgos e cidadões que ho nam queriam vender esperando por maior necessidade cuidando que o aviam de vender a como quisessem. Mandou-lhe el-rey rogar a todos que vendessem seu trigo a trinta reaes o alqueire, que lhe parecia preço honesto pera elles ganharem e ho povo ser provido, pois avia annos que o nam venderam tam caro e que nisso lhe fariam prazer. E que se  o nam quisessem vender que soubessem certo que depois lho não deixaria vender em quanto elle na cidade estevesse. Escusaram-se todos esperando por mayor valia, salvo hum Joam Mendez Cecioso, cidadam honrrado que mandou loguo levar aa praça huns corenta moyos que tinha, e mandou dizer a el-rey se queria sua alteza que o posesse a vinte reaes que assi se venderia. Agardeceo-lho el-rey e quis que a trinta se vendesse; e fez-lhe logo por ysso merce de dous escravos. E mandou loguo ao mestrado de Santiago em Castella dizer que lhe aprazia dar licença pera poderem vir a Evora vender seu pam como lhe requeriam avia dias, e el-rey nam queria por lhe não levarem ho dinheyro do reyno; e tanto que teve recado que estava muyto pam pera vir, mandou logo apregoar pola cidade que qualquer homem della que vendesse triguo em quanto elle ahi estevesse, que perdesse por isso sua fazenda; e mandou poer sobre ysso tanta guarda que se nam vendeo alqueire. Acodio  loguo de Castella tanto que valia a vinte reaes o alqueire, e o anno seguinte valeo em Evora a catorze reaes o alqueire. Por onde todos os que tinham pam ho perderam casi todo. E el-rey sem castigo os castigou bem e deu grande  perda aos cubiçosos, e muyto proveito a sua corte e a todo ho povo de que sempre tinha muito grande cuidado. E quando sayo d' Evora pera as Alcaçovas mandou dizer aos que o nam quiseram servir que agora que se ele hia da cidade poderiam vender seu pão em que os ainda tornou a envergonhar.

Partida d' el-rey d' Evora pera as Alcaçovas

Capitolo CCIII

Esteve el-rey com sua corte atee ho mes de Julho de mil e quatrocentos e noventa e cinco em Evora onde muyto folgava, e quatro mil e quinhentos moradores em que entravam muitos fidalgos honrrados e dos principaes do reyno e avia na cidade trezentos de cavallo e d' entam pera cá foy sempre mingoando. E tinha ja el-rey ordenado de fazer vir a ela agoa da Fonte da Prata onde ja tinha muitas fontes compradas e feitas d' aboboda e concertadas e medida a agoa que aa cidade podia vir que era muita. E estando assi sobrevieram aa cidade rebates de peeste e taes, que esteve muytos dias encerrado com hos paços fechados pera ver se os podia remedear; e vendo que hiam em crecimento se partio pera as Alcaçovas com a raynha, o duque, o senhor Dom Jorge muy aforrados com certos escolhidos e logo nomeados. E nas Alcaçovas foy a doença d' el-rey em grande crecimento pera mal que se gastava e sumia, e enfraquecia muyto e perdia o gosto de comer, e era tam manenconizado, que lhe aborrecia ja ver gente e nam folgava com cousa algũa.

De como determinaram que el-rey entrasse em banhos

Capitolo CCIV

E na fim do mes de Setembro os principaes fisicos que no reyno avia e ahi eram com el-rey, teveram muytos conselhos sobre sua cura, e pelos mais se acordou que era bem entrar em caldas nas de Monchique ou nas de Obedos. E porque as agoas delas eram desviadas em algũa maneira, foy acordado de buscarem doentes da doença d' el-rey pera mandarem a ambas as caldas e verem as que faziam mays proveito; o que logo se fez, e buscaram muytos ydropicos que logo às ditas caldas foram levados per pessoas que el-rey com elles mandou.

E el-rey tinha determinado yr envernar a Santarem onde ja d' Evora tinha mandado parte de sua casa. E na fim de Setembro foy el-rey folgar a Vila Nova d' Alvito, e a raynha no mesmo dia se foy ver com a infanta sua mãy e com a duquesa sua yrmaã a Viana; as quaes por comprazerem a el-rey trabalhavam com ella que quisesse ver o senhor Dom Jorge e servisse delle, que por o a raynha ho nam querer fazer como atras se disse foy el-rey alli nas Alcaçovas em grande desavença com ella. E esperou-se que da vinda da raynha aas Alcaçovas a que logo el-rey e ella vieram, o senhor Dom Jorge saysse a recebê-la e beyjar-lhe as mãos, mas nam se fez porque ouve pera ysso dilaçam pera se tomar concrusam.

Da embaixada que aas Alcaçovas veo d' el-rey
e da raynha de Castella

Capitolo CCV

Daqui das Alcaçovas foy el-rey a Viana; vindo de laa o mandou Ruy de Sousa avisar ao caminho como hia a elle hum embaixador de Castela que se chamava Dom Alonso da Silva pessoa principal e de muyto bom saber, yrmão do conde de Cifontes e vinha bem acompanhado. O qual sem querer recebimento nem no mandar dizer a el-rey o foy tomar ao caminho de Viana. E porque el-rey era ja avisado da vinda do embaixador e que vinha pera ameude avisar os reys de Castella de sua doença e desposiçam, depois de lhe o embaixador beijar a mão lançou hum ginete em que vinha tres ou quatro vezes e alçou ho braço e disse alto: "Ainda este braço estaa pera dar hum par de batalhas", e dahi a pouco disse "aa mouros". E logo nas Alcaçovas ouvio o dito embaixador, e querendo despachá-lo quando lhe disse que vinha pera andar na corte de vaguar, ho mandou yr a Estremoz por el-rey estar pera partir aas caldas; e ahi em Estremoz o teve com cavaleiros em que confiava que o guardavam e tinham como preso, e nam mandava carta a Castella que lhe não fosse tomada e mandada logo a el-rey.

Da armada que el-rey tinha prestes pera o descubrimento da India

Capitolo CCVI

Pollos grandes desejos que el-rey sempre teve do descubrimento da India, no que muito tinha feyto e descuberto atee alem do Cabo de Boa Esperança, tinha concertada e prestes a armada pera descubri-la com os regimentos feitos, e por capitão-moor dela Vasco da Gama fidalgo de sua casa; e por falecimento d' el-rey a dita armada nam partio. E el-rey Dom Manoel que sancta gloria aja tanto que reinou mandou partir a dita armada assi como estava prestes, pela mesma ordenança e os mesmos regimentos que estavam feitos, e por capitam-moor o mesmo Vasco da Gama, que depois foy conde da Vidigueira e almirante das Indias que com a ajuda de Deos e seu esforço como vallente cavalleiro com grandes perigos e trabalhos a descubrio.

De como el-rey determinou d' hir aas caldas do Algarve

Capitolo CCVII

Huũa noite estando el-rey ceando lhe trouxeram hum moço do doutor Pero Diaz que vinha das caldas do Algarve, onde fora mandado doente de ydropesia, e era daquelles que el-rey mandara pera esprimentar as caldas. E porque de todo veo são, creceo a vontade a el-rey d' hir, e assi o determinou; e porque era jaa tarde, no mes d' Outubro ouve nos fisicos contradições em alguns, principalmente em hum mestre Liam judeu muyto bom fisico que o contradisse, e requereo a el-rey que nam fosse lá, e elle nam quis yr com elle, e ouve outros que lhe disseram que fosse. E logo ao outro dia mandou el-rey partir Joam Fogaça diante a Monchique a lhe concertar as caldas e seu apousentamento, e tudo o que fosse necessario pera logo yr apos elle.

De como el-rey fez seu testamento

Capitolo CCVIII

Porque Nosso Senhor Jesu Christo no tempo da necessidade nunca desempara os catolicos, e virtuosos, e devotos seus mas  entam acode com sua graça e misericordia, como sabia que o tempo da morte d' el-rey se chegava, e que fora rey justo e muyto temente a elle, lhe quis acodir em tal tempo com sua ajuda e piadade. E porque foy muito devoto da sua morte e paixam lhe deu graça pera que antes que morresse fizesse todalas cousas que compriam a salvaçam de sua alma como fez inteiramente como catolico principe que era. E mandou chamar logo frei Joam da Povoa frade observante da ordem de Sam Francisco homem muito virtuoso e de sancta vida que era seu confessor, e a elle se confessou logo muy perfeitamente, e com muyta devaçam de suas mãos tomou o sacramento. E acabado ysto com elle fez seu justo e verdadeiro testamento estando ambos soos assentados e foy escripto com as minhas penas e meus aparos; e eu estava aa porta de fora e acudia quando chamava. E estando el-rey assi fazendo o dito testamento, chegou o duque aa porta e perguntou-me que fazia el-rey, e eu lho disse, e perguntey se queria sua senhoria que dissesse a el-rey como elle ahi estava, e disse que nam, e se assentou na casa de fora que estava de todo despejada com soo Aires da Silva e Antam de Faria. E el-rey sentio que viera alguem, chamou e perguntou-me quem era, e eu  lhe disse que o duque, e que me perguntara que fazia sua alteza, e eu lho dissera, e perguntara se queria que dissesse a sua alteza como elle estava ahi, e elle me dissera que nam, e se fora assentar; e el-rey me respondeo: "Bem fez e bem fezeste". E assi esteveram atee bem noite e acabaram o testamento de todo.

E desta confissam e testamento foy alli em muita amizade e amor com a raynha sua molher, e de todo fora d' algũas payxões em que andavam. E neste proprio tempo que o duque chegou à porta bem longe de cuidar ho que se fazia, o deixou el-rey e decrarou no dito testamento por soo e ligitimo erdeiro destes reynos e senhorios, e deixou-lhe o senhor Dom Jorge seu filho encomendado como vassallo seu. O qual testamento foy assi verdadeiro e virtuoso que Deos foy com elle servido e todos os do reyno muy contentes.

De como el-rey partio pera ho Algarve e aprovou seu testamento

Capitulo CCIX

E el-rey assentou em yr ao Algarve aforrado e levar consigo o senhor Dom Jorge seu filho, e que a raynha e ho duque se fossem logo a Alcacer do Sal e ahi o esperasem, pera da vinda a raynha por ser mal desposta yr a Setuvel por aguoa e dahi a Alcouchete, e pollo rio acima yr a Santarem, e el-rey por terra correndo montes; hos quaes caminhos se nam fezeram porque Deos ordenou outra cousa.

E no propio dia que el-rey partio das Alcaçovas na entrada do mes d' Outubro polla menhaã antes que partisse, aprovou pubricamente seu testamento, em que assinaram sete pessoas mais principaes que ahi estavam, antre as quaes foy ho duque e ho senhor Dom Jorge. E acabada a provaçam, em hũa quarta-feira polla menhaã partio e foy dormir a Ferreira, e ao outro dia partio alegre e bem desporto, e por Messagena e Panoyas e os Colos foy suas jornadas atee o sabado que chegou a Monchique. E esteve o domingo onde sentio frio, e ahi folgou o dia e vio lutas dos da terra e da corte com que folgou; e fez lutar Ayres Telez que ora he frade que era grande lutador e ganhou alli as fogaças com que el-rey recebia prazer. E aa segunda-feira por a frialdade da terra ser jaa muita, foy el-rey aconselhado que nam entrasse nas caldas, e elle por se achar em boa desposiçam todavia foy aquele dia dormir aas caldas, e entrou nellas. E ao outro dia terça-feira tambem entrou nas caldas polla menhaã, e aa noite muyto contente de si, e dizendo que se achava melhor. E assi entrou a quarta-feira pola menhaã, e aa tarde porque ahi perto estavam porcos emprazados pera monte, perguntou aos fisicos se poderia lá yr, e disseram-lhe que si. E bem forrado pera o frio e cuberto pera o ar embuçado com touca e hum chapeo per ordem dos fisicos foy lá em cavalo muito manso em que vinha no caminho. E sendo laa ou pollos quatro banhos que tinha tomados, ou polo abalo que fez se achou mal, e veo com muito grande dor de estamago e com fruxo que o logo muito apertou, com que ficou muito agastado e triste porque por se achar os dias dantes bem tinha muita esperança de sua saude, e com este fruxo ficou duvidoso della; e por nam poder mais esteve nas caldas a noite da quarta-feira, e ha quinta e ha sesta-feira com grandes agastamentos.

Partida d' el-rey das caldas pera Alvor

Capitulo CCX

E ao sabado polla menhã o melhor que pôde, el-rey cavalgou a cavallo bem fraco e foy jantar a hũa quinta  de bons pomares e casas que estava no caminho, e dahi dormir a Alvor onde chegou tarde com muita fraqueza, e pousou nas casas d' Alvoro d' Atayde. E o senhor Dom Jorge com muita gente da d' el-rey per seu mandado se foy a Vila Nova de Portimam, onde foy de Dom Martinho senhor da villa que depois foy conde della, servido com muitos e grandes banquetes. E el-rey esteve em Alvor alguns dias que se levantava e vinha de hũa camara onde jazia a hũa casa debaixo, e deitado vestido em hũa camilha ouvia missa na salla; e ysto fez alguns dias atee que veo a tanta fraqueza que se nam podia levantar, e laa na camara lhe deziam missa e da cama via Deos. E hindo el-rey assi cada vez pera pior, o senhor Dom Jorge o veo ver duas vezes e no mais, e sempre dambas tornou a dormir a Vila Nova. E logo pareceo a muitos que el-rey tinha ho duque seu primo declarado por rey polo verem ficar em Alcacer tam afastado e el-rey ver tam poucas vezes o filho. E hindo el-rey achando-se cada vez pior desejou muito ver a raynha sua molher e o duque seu primo; e por a raynha ser mal desposta lhe pareceo que nam poderia vir e escreveo ao duque, e lhe rogou muito que o viesse ver, com tençam de lhe declarar como o deyxava por rey e encomendar-lhe seu filho. E porque o duque tardava lhe mandou el-rey outro recado por Antonio de Miranda, e depois outro por Dom Martinho de Noronha. E o duque vindo ja pera Alvor estando no lugar dos Colos, foy aconselhado que nam fosse mais adiante; e com recados e cartas que disse receber da raynha em que o mandava chamar à pressa pera vir ver el-rey se tornou a Alcacer. E por ho capitão Fernam Martinz Mazcarenhas mandou dizer a el-rey que elle tornara per mandado da raynha porque ella a grande pressa o queria hir ver. O qual recado foy dado a el-rey aa sesta-feyra pola menhã quando elle se achou bem e folgou muito com ysso, e logo começou d' ordenar onde a raynha e o duque aviam de pousar. E porque o fruxo d' el-rey hia em muyto grande crecimento os fisicos ordenaram de lho estancar, e com remedios que pera ysso fizeram lho estancaram; e porque o humor era ja muito corruto por todo o corpo como nam tevesse lugar de sayr, saltou com elle letresia tam grande que o nam deixava acordar nem abrir hos olhos senam fora de seus sentidos dormir sempre e com muito trabalho o acordavam; e acordado dizia a todos com grande eficacia que por amor de Deos o acordassem e o nam deyxassem morrer como besta. Falavam-lhe muyto alto, boliam com elle, esfregavam-lhe hos pees, e vendo que com nada acordava, o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida que nesta doença ele e Ayres da Silva ho serviram grandemente, e tanto que se el-rey vivera lhe ouvera de fazer grandes merces e quiçaes outros o nam esperaram, tomou el-rey pola barba e bradou rijo: "Senhor, acorday"; e elle acordou muy inteyro e disse: "Prior, essa mão mays honesta fora posta em outro lugar, que pees avia ahi", estando morto nam consentia cousa mal feyta. E com esta payxam de dormir esteve atee quinta-feira bem noyte vinte e dous dias d' Outubro, em que hos fisicos tomaram por remedio dar-lhe meezinhas pera tornar ao fruxo, pera com elle retornar a seus sentidos.

E neste dia de quinta-feyra hos de seu conselho que presentes eram sem o elle saber mandaram hũa caravella a Lisboa pera de laa trazer panos de doo, tochas e veludo preto e outras cousas. E com ysto que se logo soube dizem que o duque se tornou e no reyno ouve alguns alvoroços. E como el-rey tornou a sayr, aa sesta-feira polla menhaã cedo allivou, e sem ter os accidentes que tinha ficou allegre com mostranças de são, que claramente cuydou que era. De que na villa ouve grande alvoroço e muito prazer e alegria e veo a gente toda ao paço que avia dias que o nam viram e o tinham por morto. E ele ouvindo o rumor perguntou que era, e quando lhe disseram que era, com prazer de sua saude mandou abrir ha porta e disse: "Deyxay entrar essa gente que folgua de me ver e eu a elles". Entraram todos com elle poucos e poucos, e com muito prazer e lagrimas lhe beyjavam a mão e se tornavam a sayr e elle rindo fazia a todos muyto gasalhado. E aquelle dia se fizeram muitas festas e alegrias. E el-rey fez escrever cartas pera a raynha e pera o duque e pera as cidades principaes do reyno, e assi muytas villas dando-lhe conta do seu acidente passado de que estivera mal, e que jaa estava bem com esperança de vida, encomendando a todos que lhe rogassem a Deos por ela e nam fizessem alvoroços alguns; e em algũas partes encomendou que lhe fizessem precições a casas devotas. As quaes cartas foram logo feytas, e sendo muytas as assinou todas per si, e com muita pressa foram dadas em todo o reyno. E muytos has teveram por nam verdadeiras, e cuidaram que eram falsas e que el-rey era morto. E aa sesta-feira logo pola menhã cedo mandou chamar o senhor Dom Jorge seu filho a Villa  Nova onde estava; e ho veo logo ver acompanhado de muytos fidalgos que com muito grande prazer e alegria vieram ver el-rey, que muyto folgou com o filho e com elles; e logo depois de comer ho fez tornar com todos os que com elle vieram.

De como el-rey conheceo sua morte, e se quis nisso certificar
dos fisicos e dos que com elle eram e como lhe foy descuberto,
e o que sobre ysso fez

Capitolo CCXI

Esteve el-rey assi a sesta-feira atee a tarde em que logo se achou mal, e foy en todos a mayor tristeza que podia ser, porque o aviam ja por são segundo pola menhaã até depois de comer estivera, e estava ja fora do nojo e receo passado. E assi el-rey ficou muyto triste e muy cortado, e toda aquella noyte deu muytos sospiros com muita paixam porque aquelle dia se dera por são; o qual prazer lhe durou tam pouco. E ao sabado se achou jaa  muyto pior e se lhe dobrou o fruxo, com que lhe vieram desmayos e mortaes acidentes, pollos quaes el-rey conheceo sua morte. E como principe prudente e muito devoto e bom christão pelos fisicos e pessoas principaes que com elle eram, o quis saber e ser da verdade desenganado. E os chamou todos juntos e com muyta segurança e esforço lhe disse os sinaes que em si sentia, por onde lhe parecia que se chegava sua morte. E porque com suas dores e paixões poderia ser maginaçam, queria saber delles a verdade, a qual pela obrigaçam que a Deos e a elle tinham lhe nam encubrissem poys sabiam quanto nisso hia pera sua vida ou salvaçam de sua alma. E eles lhe disseram que praticariam sobre ysso e a reposta trariam a sua alteza. E depois de todos praticarem e terem por muyto certo ha morte d' el-rey, escolheram pera lhe darem o triste e mortal desengano o bispo de Tangere Dom Diogo Ortiz e o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida. Que nam lho podendo dizer, com muitas lagrimas e saluços lhe disseram que os fisicos eram ja desesperados de sua saude, e que sua morte se nam escusava  se nam fosse por millagre de Deos. E o bispo como grande letrado, e ho prior como esforçado cavalleiro, lhe disseram entam o que pera sua alma e corpo cumpria. E el-rey muito en si e com o rosto muy seguro como muito esforçado e valente principe lhe respondeo: "Essa embaixada que me ambos dais he bem triste e de muyta desconsolaçam pera o corpo, mas com ella dou  muitas graças a Deos; e pois elle disso he servido ey que pera salvaçam de minha alma he muy necessaria. E pois me fez tanta merce que me deu conhecimento de minha morte espero na sua misericordia que pelos merecimentos de sua santa morte e payxam e nam polo eu merecer se lembraraa de minha alma.

E logo com muita segurança mandou desarmar a casa e armar nella altar com a cruz e hum retavolo de Nosso Senhor Jesu Christo crucificado, Nossa Senhora, Sam Joam e mandou tirar a arquelha e desfazer a cama alta e fazê-la no sobrado; tudo com tanto tento e sossego como se fora pera partir pera mais perto. E logo com muyta devaçam e lagrimas se confessou e comungou; e aa noyte com Ayres da Silva camareyro-mor fez hũa cedula alem do testamento que nas Alcaçovas fizera, e ficara em poder de Antam de Faria, o qual ahi era ja trazido. E assi com grande cuidado começou de entender nas cousas de descargo de sua alma. E por que em tal tempo o nam emportunassem com desordenados requerimentos, quisera ver  pollos livros de seus moradores as pesoas a que tinha mais obrigaçam d' acrecentar, satisfazer e fazer merces, e assi tambem perdoar. E a isto dos livros da cozinha nam deu lugar a brevidade do tempo e os muitos e sobejos requerimentos das pessoas que com elle eram.

E porque o camareiro-mor Ayres da Silva sabia ja certo pola cedula que escrevera como el-rey deyxava ho duque por seu erdeyro e socessor, lhe pedio por merce que com a tal nova o mandasse ao duque por que por ella lhe fizesse honrra e merce, e que tambem elle melhor que outrem requereria as cousas do senhor Dom Jorge seu filho que el-rey na cedula muito encomendava ao duque. E a el-rey aprouve que Ayres da Silva e Dom Alvoro de Crasto veador de sua Fazenda fossem ambos por serem cunhados e muito amigos com a dita nova ao duque. E ao sabado bem noyte el-rey só com Ayres da Silva acabou a dita cedula, e assinou e cerrou Ayres da Silva e pôs o sinete; tambem foy escrita com meus aparos e penas como ho testamento; e beijou a mão a el-rey com muitas lagrimas e logo elle e ho dito Dom Alvoro partiram com ella d' Alvor bem noyte caminho d' Alcacer onde ho duque estava com a raynha.

Dos perdões que el-rey pedio, e satisfações e merces que fez,
e como foy sua morte e das cousas que fez e disse

Capitolo CCXII

Ao domingo pola menhaã cedo el-rey muy devotamente ouvio missa, e con muitas lagrimas e grande contriçam e arrependimento de seus peccados tornou a comungar outra vez. E mandou com muyta pressa a Lagos pollo olleo da sancta unção, com o qual veo o prior da dita villa com todas has cousas necessarias. E loguo com hos bispos e capellães que eram presentes com muyta devaçam e lembrança de Deos tomou a derradeira unção tam inteiro na fee e com tanta acusaçam de si mesmo que a todos fazia enveja. E ao jantar comeo hum meollo de pão molhado em çumo de lombo de vaca assado, e alguns bocados doutras cousas, tendo jaa tamanho salluço que cada vez que lhe vinha parecia que ja lhe saya a alma. E per escripto mandou pedir perdão aa raynha sua molher e aa infanta Dona Breatiz sua sogra e ao cardeal Dom Jorge da Costa com palavras de muita humildade e verdadeira contriçam. E assi per palavra pedio perdão aa clerezia, cavalleiros e povos de Portugual com conhecimento dalgũas cousas que fezera como nam devia. E a muytos homens fez com muita temperança muytas merces de tenças, e quitas, oficios, e beneficios, satisfações em dinheiro segundo cada hum o merecia, e os padrões e alvaraes assinava per sua mão tendo jaa ha alma na boca, e ao duque seu primo como a erdeiro e socessor encomendava jaa que as comprisse inteiramente segundo se nellas continha. E tudo dava e deu com tanta temperança, peso, e medida, e tam justamente, que a nenhũa se pôs duvida. E neste tempo de tam poucas oras de vida, a algũas pessoas se escusou el-rey de cousas que lhe requeriam com tanta rezam e honestas pallavras, que ganhou muyto mais louvor na temperança que teve em as nam dar do que ganhara em as dando. Porque assi repartia as satisfações e merces com tal tento e ygoaldade como se estivera pera viver outros corenta annos. E disse a Dom Martinho veador da Fazenda sendo homem que ele sempre estimou muito e muy aceyto a elle, pedindo-lhe Vila Nova pera seu filho: "Dom Martinho, eu verdadeiramente estou ja tal e de maneira que dando-vos agora ysso pareceria que dava o alheo; porém vós sois tal que nam virá nenhum apos mi, que vos nam faça muita honrra e muyta merce".

E neste tempo de seu falecimento nam quis el-rey que estivesse com elle ho senhor Dom Jorge seu filho nem que viesse ahi. E mandou que quando Deos fosse servido de o levar logo seu testamento fosse aberto, e nelle achariam o que depoys de sua morte aviam de fazer; e que depoys de visto o levassem logo tres do seu conselho ao duque seu primo. E porque nele tinha mandado que ho enterrassem na ygreja de Lagos onde fora soterrado o infante Dom Anrrique seu tio, tornou a mandar que ho levassem aa cidade de Silves e lançassem seu corpo na See, e depois levassem dahi sua ossada ao Moesteiro da Batalha, como levaram depois por el-rey Dom Manoel com muyto grande honrra e muita solenidade, como em seu lugar se dira. E estando el-rey tirando com muyta pena o bispo de Tangere lhe lembrava alto muitas cousas sanctas e muito necessarias em tal tempo, antre as quaes tocou algũas da bribia; elle lhe disse: "Bispo, nam me lembreis nenhũa cousa da ley velha". O bispo do Algarve Dom Joam Camelo que com elle estava sendo muyto bom homem, muy liberal e gastador era avido por mao clerigo e nunca dizia missa nem entendia en oficios divinos, e el-rey o tinha disso reprendido algũas vezes e era delle por ysso descontente; e estando nesta derradeira hora lhe disse: "Bispo, eu vou muy carregado de vós; por amor de mi vivey daqui avante bem e a serviço de Deos e dai-me vossa fee de o fazerdes assi"; e ho bispo lha deu, e elle lhe tomou a mão de ho cumprir. E dando-lhe a assinar hum padrão de certa renda que deyxou a Dona Ana de Mendoça mãy do senhor Dom Jorge seu filho, tendo a pena na mão pera o assinar, a deyxou cayr e começou de chorar muito, e porque o confortavam disse: "Nam me conforteis que eu fuy tam mao bicho que nunca me acenaram que nam mordesse", e com muitas lagrimas o assinou; e porque lhe falavam por alteza como soyam disse: "Nam me chameys alteza que nam sam senam hum saco de terra e de bichos". Hum Francisco da Cunha das Ilhas Terceiras chegou a elle e disse-lhe, que pollas cinco chagas de Jesu Christo lhe fizesse algũa merce que era fidalgo e muito pobre. E el-rey lhe mandou com muita pressa fazer hum padram de trinta mil reaes de tença e o assinou, e disse-lhe que tomasse a prata que na casa estava que nam tinha ja que lhe dar; e em o outro se saindo disse el-rey: "Ja posso agora ysto descubrir, nunca em minha vida me pediram cousa aa  honrra das cinco chagas que nam fizesse". Mandou saber em que ponto estava a maree, e dando-lhe a reposta disse: "Daqui duas oras me finarey" e assi foy. E estando assi com muyta pena tirando com grandes e mortaes salluços que lhe acudiam de quando em quando disse: "Tenho tamanho amargoz na boca que se nam pode sofrer". Disse-lhe o bispo de Coimbra: "Senhor, lembre-vos o vinagre e azedo que deram a beber a Nosso Senhor Jesu Christo estando na cruz e nam vos amargará a boca"; e el-rey lhe respondeo: "Oo bispo, quanto vos agradeço ysso porque esse passo soo me esquecia da payxam". E estando assi veo-lhe hum muito grande accidente antes de lhe sayr a alma que o trespassou; e cuydando todos que era finado, ho bispo de Tangere lhe fechou os olhos e a boca, e ele o sentio e tornou a si e disse: "Bispo, aynda nam vem a ora". E falando sempre palavras sanctas, e encomendando a todos que nam chorassem entam  por lhe nam fazerem torvaçam, beijando muitas vezes o vulto de Nosso Senhor e a cruz, com os olhos postos nele e a candea na mão, com todo seu perfeito saber e os sentidos muy espertos e a vista toda ynteira sem fazer geito nenhum, rezando sempre com os bispos verso por verso, e na derradeira com o nome de Jesu na boca com grandissima devaçam dizendo "Agnus Dei qui tolis peccata mundi miserere mei" lhe sayo a alma da carne domingo em se querendo poer o sol, vinte e cinco dias d' Outubro do ãno de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e quatrocentos e noventa e cinco, em hidade de corenta ãnos e seis meses, dos quaes foy casado com a raynha Dona Lianor sua molher vinte e cinco e reynou catorze ãnos e dous meses; e sendo muito vertuoso na vida acabou desta maneira, que he muito pera aver enveja.

Das pessoas que com el-rey eram ao tempo de sua morte

Capitolo CCXIII

E com el-rey eram ao tempo de seu fallecimento estes senhores e pessoas principaes do conselho e fidalgos, o bispo de Coimbra Dom Jorge d' Almeida, o bispo de Tangere Dom Diogo Ortiz capelam-mor, e o bispo do Algarve Dom Joam Camello, o conde de Penella Dom Joam de Vasconcelos, o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida, Dom Martinho veador da Fazenda, Dom Joam de Sousa, Ayres da Silva camareiro-moor, Fernam Martinz Mazcarenhas capitão dos ginetes, Dom Alvoro de Castro, Dom Diogo Lobo, Lopo da Cunha trinchante, Dom Francisco d' Eça, Dom Pedro de Crasto, Dom Anrrique de Sousa, Joam Fogaça veador, Alvoro d' Ataide, Nuno Fernandez d' Ataide, Afonso d' Albuquerque, Diogo Lopez de Sequeira, Pero Correa, Dom Duarte de Meneses, Ayres Telez, Antonio de Mendoça, Fernão d' Albuquerque, Pero de Melo, Joam Freyre, Dom Martinho de Noronha, Dom Manoel de Meneses, Antonio de Miranda, Alonso Anrriquez, Vasco de Foes, Ruy de Pina, e outros fidalgos, cavaleyros, oficiaes, e  capelães, que foy per rol aforrado. E os que com el-rey sempre estavam e o curavam e  faziam todo serviço eram somente, o prior do Crato e Ayres da Silva, o doutor mestre Rodrigo fisico-mor, e o doutor de Lucena fisico da ynfanta, e mestre Josepe, e Afonso Fernandez Montarroyo tesoureyro da casa e Antão de Figueiredo moço da guarda-roupa, e eu Garcia de Resende; que a este se nam tinha porta e os outros entravam ao comer e quando el-rey o mandava.

E na casa onde el-rey faleceo eram presentes estas pessoas, o bispo de Coymbra com a cruz nas mãos, o bispo de Tangere com o vulto de Nosso Senhor, o bispo do Algarve com a agoa benta, e Diogo Fernandez Cabral todos rezando com elle verso por verso, e o conde de Penella que lhe teve a candea na mão, e o prior do Crato, e o capitão Fernão Martinz, e Dom Francisco de Eça, e Afonso Fernandez Montarroyo, e Antam de Figueyredo, e eu Garcia de Resende que a tudo fuy presente por dormir em sua camara e nunca sayr dahi.

Do que se fez depois da morte d' el-rey

Capitolo CCXIV

Esteve assi finado com o rosto descuberto mais de hũa ora até de todo ser frio; e em quanto o concertavam e amortalhavam muito limpamente pera ho meterem na tumba os principaes que hi istavam tiraram de hum cofre o seu testamento que logo abriram, e Ruy de Pina o leo perante todos; e se achou nelle que deixava o duque seu primo por verdadeiro erdeyro destes reynos e senhorios, o decrarou por rey delles, encomendando-lhe muito com palavras de grande amor e muita obrigaçam o senhor Dom Jorge seu filho, a que deixou feito duque de Coimbra, e senhor de Montemor-o-Velho com as vilas e terras que tinha o ynfante Dom Pedro seu bisavo. E mais encomendava ao duque que lhe desse todalas cousas que elle em duque tinha em que entrava ho mestrado de Christus e a Ylha da Madeyra. E o titulo de duque com algũas cousas destas lhe deu el-rey Dom Manoel depois de reynar, e de outras se escusou porque o reyno o nam poderia consentir, e mais aaquelle tempo nam era pera tamanhas cousas se darem a hũa pessoa tendo ja os mestrados d' Avis e Santiago. E mais sendo el-rey mancebo e solteiro com esperança de logo casar, e aver muitos filhos como ouve, que nam poderia com eles tanto partir tendo o senhor Dom Jorge tres mestrados. E cabado de ler o testamento, os senhores e os do conselho fizeram sua cerimonia devida e custumada, em que logo declararão e ouveram o duque por seu rey e senhor; e assi lhe escreveram e mandaram logo o testamento por tres honrradas pessoas do conselho.

E a mea-noite foy o corpo d' el-rey levado em hũa tumba cuberta de veludo preto, e encima hũa cruz de damasco branco, posto en cima de hũa azemala cuberta com hum grande reposteyro de veludo preto com muitas tochas aa See de Silves com muita tristeza e muyto grandes prantos dos senhores, e fidalgos, cavaleyros, e povos que ali eram e acompanhavam. E foy soterrado na ygreja mayor onde jouve com  esperança de milagres que Nosso Senhor por elle fazia. E dahi foy depois levado ao Moesteiro da Batalha per el-rey Dom Manoel que santa gloria aja com muita infinda honrra, e acatamento, e grande solenidade onde ora jaz seu corpo, onde tem muytos por fee que tem feytos muitos milagres, e em seu corpo por hũa buraca que tem na sepultura se tocam muitas cousas e se levam por reliquias de santo. E a nova certa do falecimento d' el-rey foy dada aa raynha e ao duque em Alcacer logo ao outro dia segunda-feira. E aa terça-feira logo seguinte XXVII dias d' Outubro do dito anno de mil e quatrocentos e noventa e cinco o duque foy solenemente alevantado e obedecido por rey em Alcacer do Sal, e assi logo em todo seu reino com muita paz e concordia de todos.

Do que se achou em hũa boeta d' el-rey

Capitolo CCXV

Depois do falecimento d' el-rey ho bispo de Tangere, e ho prior do Crato secretamente e sos com a casa despejada por  os outros senhores serem ydos a  suas pousadas ordenar sua partida pera Silves, como ambas eram feituras d' el-rey e muy aceytos a elle, abriram hũa sua boeta de que elle sempre trouxe a chave, por ouvirem dizer e aver antre alguns sospeita que el-rey trazia alli peçonha com que mandara matar o bispo Dom Garcia, pera que sendo assi ha deytassem no mar, e nam se soubesse tamanha vergonha. E abrindo a boeta com esta boa e leal tençam de boõs criados, acharam nella hum confissionayro e hũas disciprinas, e hum aspero celicio, que era bem desviado do que cuidavam, e tornaram fechar a boeta.

E quando el-rey foy soterrado lhe lançaram dentro no ataude tres alcofas de cal virgem pera ser comido mais cedo; e quando o desenterraram cuidando de achar somente os ossos o acharam todo inteyro que se conhecia como em vivo, e com hum muyto suave cheyro nam sabido que cheirava muito bem, de que foy muy grande espanto; e assi ynteyro jaz aynda agora, e as cousas que em seu corpo tocam prestam pera muytas enfirmidades, e tem feitos muitos milagres como dito he.

De como ho senhor Dom Jorge veo a el-rey Dom Manoel

Capitolo CCXVI

E acabado em Silves ho enterramento do corpo d' el-rey, os que com elle foram se tornaram pera o senhor Dom Jorge que estava em Vila Nova, principalmente o prior do Crato que era seu ayo, donde logo partio acompanhado de muitos senhores e honrados fidalgos, e veo ter o dia de Todolos Santos a Messajena no Campo d' Ourique , onde chegou a ele Anrrique Correa yrmão de sua mãy com as primeiras cartas d' el-rey escriptas de sua mão com palavras de confortos e muita esperança que ahi em Messajena lhe deu. E dahi partio o senhor Dom Jorge caminho de Montemor-o-Novo onde el-rey ja estava; e de caminho foy decer ao paço cuberto de burel elle e todolos que com ele vinham, e foy beijar a mão a el-rey que o recebeo com muito grande gasalhado e mostranças de muito amor, e com lembrança da morte d' el-rey com que ali se nam poderam escusar muitas lagrimas e tristeza. E o prior do Crato seu ayo por lho assi ter mandado el-rey seu pay, tomou o senhor Dom Jorge polla mão e ambos com os joelhos em terra o entregou a el-rey seu tio. E sobre ysto fez hũa falla alta a el-rey, em que com palavras de muyta prudencia e grandes obrigações pedio a el-rey merce e acrecentamento pera o senhor Dom Jorge: e a ele com outras muitas aconselhou que sempre muito bem e lealmente o servisse  e amasse como a seu verdadeyro rey e senhor; e logo entam el-rey recolheo o senhor Dom Jorge em sua casa e o tratou e honrava como era razam.

De Garcia de Resende
em que diz como el-rey falecendo soo foy sua morte muy sentida,
e como Nosso Senhor sempre daa seus galardões conformes
aos serviços que lhe fizeram

Capitulo CCXVII

El-rey faleceo sem pay, nem mãy, sem filho nem filha, sem yrmão nem yrmaã e ainda com muito poucos, fora de Portugal no reyno do Algarve em Alvor muyto pequeno lugar. E sendo assi na morte tam soo, foy de todos tam sentido, tam chorado, com tamanhos doridos e pubricos prantos, que mais nam podera ser sendo muy acompanhado. E todo o reyno foy vestido de burel, almafega, e vaso, com tamanho nojo e tristeza, que ha cidade de Lisboa alem dos grandes e solemnes saymentos que polla sua alma fez, mandou apregoar que nenhum barbeiro fizesse barba nem cabello dahi a seis meses sob muy graves penas e assi se comprio muy inteiramente o que nunca se vio nem leo que por outro rey se fizesse. E tambem em outras cidades se fez ysso muito bem com muy grande sentimento, que aynda que el-rey fosse só de parentes o acompanhavam muitas e grandes vertudes, grandezas, e grande esforço, e muitas perfeyções que nelle avia.

E porque Nosso Senhor Jesu Christo sempre dá seus galardões e grandissimas merces e acostumadas misericordias conformes aos serviços que lhe fezeram, e aos corações, vontades, e tenções com que forem feytos, manifestamente ho quis agora manifestar naquesta morte d' el-rey como elle em sua vida per desejo, per devisa, per obras manifestava. E porque sempre seus pensamentos e cuidados eram em servir a Deos e comprir seus mandamentos com grande fervor de fee, esperança, e caridade e em amar muito seus povos, que pola ley e pollos seus dezia que derramaria seu sangue como pelicano por seus filhos, Jesu Christo Nosso Senhor verdadeyro pelicano lho quis altamente pagar naquesa mesma moeda; que pola grande devaçam e contriçam que el-rey tinha se lembrou tanto de sua alma a ora de sua morte que acabou tam santamente que he avido por santo. E pollo muyto grande bem que a seus povos queria, ficou a todos em geral hum tam grandissimo amor a sua alma, e sua memoria, sua vida, e seus feitos que pera sempre sera desejado, louvado, muyto bem quisto, e de muy honrrada fama.

Que desta maneira sabe Nosso Senhor pagar os serviços que lhe fazem; e a outros que o servem por cousas vaãs deste mundo, nele lhe daa prosperidades, senhorios, e riquezas, honrras, poderes e mandos, saude, muytos prazeres, e muita pompa mundana. E por ysso veja cada hum da maneira que o serve, que da sorte que servir daquessa lhe pagaraa. Porque daa aos que deve, perdoa a quem tem rezão, reparte muyto por muitos, daa sempre sem lhe mingoar, por conhecer bem a todos não pode ser  enganado, aos bons daa galardão, aos maos castiguo e pena. Nam olha altos nem bayxos senam  quem tem mais virtudes, o que ha-de dar daa logo sem muito ser requerido; faz pouco por aderencias nem emportunações. Como qualquer peccador brada por ele lhe acode; estaa c' os braços abertos pera todos recolher. Cheo de misericordia, de verdade, de justiça, de constancia, sem mudar-se de fazer bem e nam mal, de graça, consolaçam, de piadade, humildade, de saude, de conselho, de amor, de caridade, de castidade, e de paz, de verdadeyra esperança; e daa gloria pera sempre, e tambem pena eternal.

Deo gratias

A TRASLADAÇÃO DO CORPO
D' EL-REY DOM JOÃO O SEGUNDO

A trasladação do corpo do muy catolico e magnanimo e muy esforçado rey Dom João o segundo deste nome, da See da cidade de Silves pera o Moesteiro da Batalha, por o muy serenissimo e esclarecido senhor el-rey Dom Manoel seu socessor e herdeiro nestes reynos e senhorios de Portugal.

Foy visto e examinado pollos deputados da sancta Inquisição.

A TRASLADAÇÃO

Tanto que o virtuoso e esclarecido rey acabou seus dias (como fica dito) e levado à See de Silves com aquella honrra que a tal rey pertencia, metido em seu ataude com muyta cal dentro nelle pera se o corpo comer mais cedo, e sepultado na dita See esteve assi tee a era de mil e quatrocentos e noventa e nove annos; em ho qual tempo ho muyto poderoso e excelente rey Dom Manoel no mes de Outubro foy por elle com todollos grandes de seus reynos, arcebispos, e bispos, e clerezia, e o mandou levar ao Moesteiro da Batalha da maneyra seguinte.

Mandou ao bispo de Silves, e ao bispo de Tangere, e a Dom Francisco d' Eça, e a Joam Fogaça que o tirassem da sepultura; os quaes quando o tiraram acharão as tavoas do ataude em que o corpo estava quasi queimadas da cal, e assi hũa alcatifa e lençol, e o corpo do glorioso rey são e inteiro, com hum cheiro singular, com suas barbas e cabellos na cabeça, e nos peitos, e pernas e braços, e o estamago testo como se fora vivo; e dalli com grande acatamento como corpo sancto que era per experiencia de milagres que ja tinha feitos, o poseram em outro ataude cuberto de brocado cremesi e emburilhado em hum lençol d' olanda; e o ataude em que jazia foy todo desfeito em rachas e levado por reliquias.

E metido no ataude como fica dito meteram o ataude em hũas andas cubertas de brocado; e assi os cavalos que as levavam com suas guarnições de brocado; e dous pajes que hiam encima dos cavalos vestidos de veludo preto; e os arcebispos e bispos com ele; e oitenta capelães e cantores com capas ricas cada hum com sua tocha acesa na mão dhũa parte e da outra todos a cavalo; e diante muitas trombetas, charamelas, sacabuxas, e tambores; e diante do sancto corpo hũa cruz da capela e muitos condes e senhores e fidalgos e gente honrrada que acompanhavam o sancto corpo, que el-rey vinha sempre hũa jornada atras.

E como o santo corpo chegava a algum lugar era recebido com preciçam, e posto na ygreja principal em seu estrado que vinha de engenho em azemolas cuberto de brocado com seus bancos cheos de muytas tochas, e assi estava tee o outro dia que o bispo de Tangere dizia missa; e deixava na igreja onde o sancto corpo estivera hũa vestimenta de seda e hum calez de prata; e desta maneira e ordem foy seguindo suas jornadas.

E a noyte que o sancto corpo chegou a Alcanede que foy hũa sesta-feira a vinte dias do mes de  Outubro da dita era de noventa e nove el-rey foy dormir a Rio Mayor, e ao sabado foy jantar a Alcobaça e dali se foy aguardar o sancto corpo a Sam Jorge da Vitoria; o qual trouxeram polla Serra da Mindiga e pella Serra Ventosa e sobre o Porto de Mos té chegarem aa Igreja de Sam Jorge onde el-rey o estava aguardando e com elle o mestre de Santiago e d' Avis duque de Coymbra, e o duque de Bragança, e o senhor Dom Alvoro e outros  muitos senhores; e assi foy com o sancto corpo atee o Moesteyro da Batalha; e aa entrada da rua estava a cruz da capela e a da See da cidade d' Evora, e a de Santa Cruz de Coymbra, e a d' Alcobaça, e a do dito Moesteiro da Batalha; e os bispos da Guarda e de Viseu, e de Lamego, e de Tanjere, que com o santo corpo vinha o bispo de Feez com outros muitos perlados e dinidades, monges e frades; e juntos em pricição que seriam quatrocentos religiosos cada hum com sua tocha acesa na mão, e capas ricas e muitos cantores chegaram aa porta do moesteyro.

Alli foy o sancto corpo tirado das andas em o ataude cuberto de brocado como vinha; o qual tomaram aas costas o senhor Dom Alvoro, e o marquês de Villa Real, e o conde de Marialva, e o conde de Penella, e o conde d' Abrantes, e o conde de Portalegre, Ayres  da Silva regedor, e Fernam d' Albuquerque, e Pero da Silva Rele, e na derradeira hiam os duques de Bragança e de Coymbra, e el-rey com todos os outros senhores atras, e ho prior de Sancta Cruz filho do marquês revistido em pontifical; e o conde-prior mordomo-mor hia diante do sancto corpo que assi veo sempre com elle desd' a cidade de Silves té o dito moesteiro tendo carrego de mandar correger o estrado em que o sancto corpo era posto com seus bancos de tochas e nam deixava chegar ninguem aho sancto corpo.

Tanto que foy pellos ditos senhores tomado, foy levado com esta solene preciçam, com muitas trombetas, charamellas, sacabuxas, cantores dentro do dito Moesteiro da Batalha, o qual estava todo armado de muy rica tapeçaria; e no cruzeiro estava hum cadafalso que tomava toda a nave do corpo do moesteiro, o qual tinha treze degraos cubertos os sete que deciam da tumba pera baixo de brocado de pello yrmão do com que vinha cuberto o sancto corpo e os seis debaixo cubertos de muy rico brocado raso té arrastar pello chão, encima do qual poseram o sancto corpo com hũa cruz d' ouro encima da tumba, e hũa bandeira coadrada das armas reaes atravessada no aar a caram da cruz d' ouro encima da tumba que nam tocava nela mas ficava pequeno espaço; e fizeran­-se as mais solenes obsequias que até li forão feitas; e estavam ao redor do cadafalso hũas grades altas negras e nelas cem tochas acesas, e dalli té a porta principal ao longo de  hũa parte e da outra estavam todos os bispos ja ditos e dinidades de Lixboa, Evora, Coymbra, Porto, Braga, Silves, Lameguo, Viseu, Guarda, e todallas outras cidades e outros muitos lugares, e muitos capellães, cantores, monges d' Alcobaça, frades do dito moesteyro, conegos de Sancta Cruz; e disse a missa em pontifical o prior de Sancta Cruz; e toda esta clerezia tinham tochas acesas nas mãos; e dentro nas grades, no primeiro degrao do cadafalso estavam postas todas as cruzes e os que as tinham todos revistidos d' almaticas de brocado e assi se acabaram por aquele dia as obsequeas; e recolheo-se el-rey com tanta gente que nam cabia a decima parte no moesteyro.

E ao domingo seguinte que foram vinte e sete dias do dito mes foram concertados no cruzeyro sete altares todos armados de cortinas e frontaes de brocado rico cada hum com dous castiçaes de prata grandes com suas vellas grossas acesas, e no chão outros castiçaes muito grandes de prata encima d' alcatifas ao  pee de todos os altares cada hum com sua tocha acesa; e no altar-mor hum retabolo e frontal de prata muy ricos com o guarda-poo e corrediças de seda; e a bandeyra das armas reaes e o escudo e elmo com que o sancto rey justou em Evora nas festas que fez ao casamento do principe seu filho, e a cota d' armas e lança, e espada com que pelejou na batalha de Touro sendo principe e ficou no campo como vencedor, tudo pendurado na capela; e el-rey estava no choro logo aa entrada da parte do avangelho, e a igreja chea de grandes; começou a missa em pontifical o dito prior de Sancta Cruz, e pregou o bispo de Tangere e contou as grandes virtudes do catolico rey e as grandezas, e esmolas e merces que fizera sendo vivo, e quantas ajudas dera pera casamentos de suas filhas a muitos fidalgos e cavaleiros, escudeiros, e donas, viuvas e orfaãs, e grandes esmolas a muitas ygrejas e moesteyros até a Casa Sancta de Jerusalem; e dera grandes ajudas e dadivas, a reys christãos e a grandes de seus reynos; e que fora rey muy penitente e que nunca se arrependera das grandes dadivas e merces que fizera; e disse mais como era sancto em caso que por a Ygreja o nam ter canonizado o nam podesse dizer, e porém que bem podiamos dizer sancto  pois fora rey tam catolico e penitente, e que estava inteiro seu sancto corpo com cabelos na cabeça e barba e peitos; dizendo mais como lhe deitaram no ataude muyta cal que comera o ataude e lençol e alcatifa que estava debaixo sem tocar no sancto corpo, alegando que na lenda de Sam Marco diz que o ouveram por sancto, porque sendo trasladado o acharam inteiro com cabellos e barbas como estava o corpo do sancto rey; e disse muytas cousas muy catolicas que o sancto rey aa ora de sua morte dissera.

E tanto que a pregaçam foy acabada veo o prior de Santa Cruz aa oferta, à qual el-rey mandou ofertar as cousas seguintes: hũa cruz de prata grande dourada e esmaltada de filagrana muito bem obrada com muytas pedras que foy avaliada em mil cruzados, e hum tribolo de prata muy grande, e hũa caldeira grande com seu ysope tudo de prata dourada, e hũa capa com suas almaticas de brocado rico que fora do pontifical do sancto rey; que toda a oferta juntamente foy avaliada em dez mil cruzados. E como a missa foy acabada vieram todos os bispos e dinidades, e toda a outra clerezia e cantores com capas ricas e cada hum com sua tocha acesa, e poserão-se em duas azes de preciçam desd' a porta de São Christovam ao longo do cruzeiro até a porta travessa; e vieram todas as  cruzes com a que se deu à oferta e poseram-nas todas no segundo degrao da eessa; e logo veo o dito prior de Sancta Cruz em pontifical, e começaram os cantores e clerezia o responso e o dito prior has orações tudo muy divinamente; e a missa foy tangida com orgãos, charamelas, sacabuxas, trombetas. E acabado o responso foy tirado o sancto corpo da eessa onde estava, e levado pelos bispos e dinidades ao pescoço pera a capella de Nossa Senhora do Pranto onde se o sancto rey mandara lançar, e tanto que deceram o primeiro degrao da eça começaram os cantores o cantico de Zacarias "Benedictus dominus Deus Israel", com tantas vozes e estormentos e devação que nam avia pessoa que nam chorasse; e desta maneira foy levado aa capela onde estava outra tumba de dez degraos cuberto tudo de veludo, e na tumba hũa cruz de damasco branco, a qual foy logo tirada e o sancto corpo posto na de brocado em que viera com tres alampadas de prata muito grandes acesas; e acompanhou o santo corpo tee ser alli posto el-rey e os duques de Bragança, e de Coimbra, e o senhor Dom Alvoro, e o marquês con todolos outros senhores ja nomeados; e como assi foy posto se sayo el-rey com todos os senhores e perlados e se recolheo.

E tanto que foy noyte jaa depoys de cea deu el-rey boas noytes e foy-se com alguns ao moesteiro e meteo-se  dentro na capella onde o sancto rey jazia, e com o provincial e outros frades mandou abrir ho ataude em que o corpo estava e vio que tinha muito poo da cal e mandou aos frades que com canudos de cana lha  assoprassem e elle mesmo lha alimpava; e beijou-lhe as maos e os pees muytas vezes, e achou o sancto corpo inteiro com cabellos e barba e cabellos nos peitos e nas pernas alvo que parecia vivo, e depois que o esteve oulhando com muitas lagrimas sempre com o barrete na mão, o mandou emburilhar em olanda muito fina e tornarão-no ao ataude, e todos os que ali estavam tocaram o sancto corpo com muitas cousas pera reliquias e cerraram o moymento. E como foy cerrado assi encima dos dez degraos mandou  el-rey antes que dali sayse cobrir todo ho assento e degraos em que o sancto corpo estava de muy rico brocado de pello atee o chão e  tiraram ho velludo e mandou pôr no altar hũas cortinas e frontal de pano d' ouro muyto rico e mandou armar toda a capela de panos de ras e poseram na dita capella a cota d' armas e o seu escudo, e elmo, e a lança, e a espada que estiveram aa missa na capela-moor com a bandeyra das armas reaes que sobre a eessa estava no cruzeiro, e a cruz d' ouro sobre o sancto corpo. E tudo ysto feito recolheo-se e esteve no moesteiro a segunda-feira que foy dia de Sam Simão e Judas e ao outro dia se partio. E assi jaz o sancto rey onde Nosso Senhor por ele faz muitos milagres.

Deo gratias

A ENTRADA D' EL-REY DOM MANOEL EM CASTELLA

A ENTRADA D' EL-REY DOM MANOEL EM CASTELLA

Quando el-rey Dom Manoel nosso senhor casou com a raynha Dona Isabel nossa senhora nos proprios dias que a recebeo em Valença d' Alcantara e se as vodas celebraram, se finou em Salamanca o principe Dom Joam seu yrmão, por onde ella ficou erdeyra de Castella. E acabados oyto dias que em Castello da Vide estiveram com ha morte do principe encuberta por se nam perderem e mostrarem os muitos gastos que os senhores e fidalgos de Portugal tinham feytos pera ho dito casamento, partiram dahi  pera a cidade d' Evora ja com grande doo. E dahi a pouco tempo estando em Lixboa el-rey Dom Fernando e a rainha Dona Isabel escreveram a el-rey nosso senhor e à raynha sua filha e muy apertadamente lhe pediram que eles fossem logo a Castela pera lá serem jurados por principes erdeiros de todos seus reinos e senhorios. Sobre esta yda teve el-rey nosso senhor muitos e grandes conselhos com todas as pessoas que presentes eram, e outros muytos que pollo reyno pera isso mandou chamar, e tambem  com hos precuradores e villas notaveys que em Lisboa eram ajuntados pera cortes que ahi entam fazia. Nos quaes conselhos ouve muytos pareceres desviados huns dos outros, que a huns parecia bem ele nam deixar seus reinos nem sayr fora deles por cousa nenhũa, ysto por casos que podiam sobrevir a rey fora de seus reinos e em reino alheo em poder doutro rey como algũas vezes aqueceram. Outros aviam ysto por cousa muy leve, e lhes parecia que elle em nenhũa maneira nam devia deixar d' ir pois hia a tamanha cousa como era a ser jurado por principe de Castela e de tamanhos reinos e senhorios; e mais tendo com el-rey e com a raynha tam grande liança, tamanho parentesco e tam verdadeira amizade; e por hos deferentes pareceres que ouve os conselhos duraram muito. E enfim el-rey nosso senhor determinou d' ir e assi o pôs por obra. E com consentimento e prazer de todos deixando tudo ordenado como cumpria a serviço de Deos e seu e a bem de seus reinos e naturaes, partiram elle e ha raynha da cidade de Lisboa no mes de Março do anno de mil e quatrocentos e noventa e oito ãnos. Deixou a governança do reino aa raynha Dona Lianor sua yrmaã e com ella ficou o duque de Bragança seu sobrinho, e o marquês de Villa  Real, muitos senhores e pessoas principaes do Conselho e os outros oficiaes-mores da Justiça e Fazenda com quem juntamente tudo se fazia.

Vieram ter aa cidade d' Evora e dahi a Estremoz, e a Elvas donde entraram em Castella, primeyramente na cidade de Badajoz. Levava pouca gente por el-rey e a raynha de Castella lho mandarem assi pedir, e tambem por se escusarem brigas e debates antre portugueses e castelhanos. Porém era gente muy nobre e muy apurada: eram trezentas encavalgaduras muy concertadas e muytas e boas azemolas muy ataviadas com muitos concertos de casa. Hiam com elle alguns senhores e pessoas muy principaes, das quaes nomearey algũas porque nomeando todas seria proluxidade. Hia o senhor Dom Jorge filho d' el-rey Dom Joam que era mestre de Santiago e d' Avis, e duque de Coimbra, etc. E o senhor Dom Denis sobrinho d' el-rey e yrmão do duque de Bragança e o senhor Dom Alvoro seu tio, e o conde de Portalegre, Dom Diogo da Silva e o bispo da Guarda, e o bispo de Tangere, e o mordomo-mor Dom Joam de Meneses que depois foy conde de Tarouca e prior do Crato, e Dom Francisco filho do bispo d' Evora Dom Afonso que foy depois conde do Vimioso e veador da Fazenda, e Dom Martinho de Castelbranco veador da Fazenda que depois foy conde de Villa Nova, e o capitam dos ginetes Dom Fernamdo Mazcarenhas, e Dom Joam de Meneses, e Dom Anrrique, e Dom Diogo filhos do marquês de Villa Real, e Ruy de Sousa que lá morreo em Toledo, e Dom Joam de Sousa senhor de Nisa e Sagres, Dom Manoel de Sousa, e Dom Francisco d' Almeida que depois foy viso-rey, Dom Rodrygo de Monsanto, e o camareyro-mor Dom Joam Manoel, e Dom Nuno Manoel almotacee-mor, Dom Duarte de Meneses, Dom Diogo de Meneses, e Dom Garcia de Meneses, Joam da Silva que foy depois regedor, e Dom Afonso d' Atayde senhor d' Atouguia, o comendador-mor Dom Pedro da Silva, Nuno Fernandes d' Atayde e Dom Gastam Coutinho, e o marichal Dom Fernando Coutinho, e Gonçalo da Silva, Tristam da Cunha, Febos Moniz e Joam Fogaça que hiam por mestre-sallas e o veador Corte Real, Dom Antonio d' Almeida, Dom Manoel de Meneses e Jorge Barreto pages da lança d' el-rey, Simão de Miranda, Anrrique Anrriquez, Joam Lopez de Sequeira e Pero Correa que hia por estribeyro-mor e Dom Rodrigo de Sande, Jorge Furtado, Anrrique Correa e Antonio de Mendoça e Dom Duarte d' Almeyda, Ruy de Mello, Nuno Vaaz de Castelbranco, e  Diogo de Melo, Lourenço de Brito copeiro-moor, Manoel de Goyos, Fernam d' Albuquerque, e Francisco d' Albuquerque, Manoel de Noronha, Dom Gonçalo Coutinho, e Dom Anrrique Coutinho, Anrrique de Sousa, e Joam Rodriguez Pereira o Marramaque que hia com el-rey duas ou tres jornadas bem doente pera acabar hum requerimento, e a raynha folgou tanto com ele que el-rey lhe deu dinheiro pera a yda e o levou assi consigo. E outros muytos nobres fidalgos e cavalleyros e oficiaes da casa, e muy singular capella de muytos e bons cantores e muy ricos ornamentos; e todos muyto concertados e pera ysto escolheytos; e as melhores bestas de ginetes e mullas que podiam ser; e assi os atavios muy ricos pera o tempo que era porque hiam todos vestidos de negro polla morte do principe de Castella.

E partindo da cidade d' Elvas pouco mais de mea legoa os veo receber o duque de Medina Cidonia muy acompanhado de senhores seus parentes e amigos e muytos e muy nobres fidalgos e com muito ricos concertos de casa: trazia passante de trezentas encavalgaduras todos de doo, e trinta e oyto caçadores de falcam todos de sua libree com tam singulares aves que nam parecia cousa polo caminho que nam tomassem. E dezasseis trombetas e oyto atambores tudo de prata, e tres mil marcos de prata lavrados e seiscentos marcos d' ouro de serviço de sua mesa que comia em ouro e outras muytas grandes policias e abastanças.

E em chegando as trombetas e atambores tangeram e as d' el-rey nam e junto d' el-rey quasi hum tiro de pedra se deceo e todos os nobres que com elle vinham; e depoys de feitas tres mesuras com o joelho no chão e o barrete na mão foy beijar a mão a el-rey nosso senhor e à raynha e apos elle todos per esta maneyra. E ha cortesia que lhe el-rey fez, foy poer a mão no sombreyro e allevantá-lo muy pouco sem o tirar. E acabado cavalgou o duque e os de sua compan­hia, e a cavallo foy falar ao senhor Dom Jorge e se abraçaram e assi esses outros senhores e el-ey começou andar.

E logo adiante veo o duque d' Alva e o conde de Feria e toda a casa d' Alva com muitos senhores e honrrados fidalgos com perto de trezentas encavalgaduras muito bem concertadas, e suas trombetas e atambores. E pola mesma maneira beijaram a mão a el-rey e aa raynha e el-rey lhe fez a mesma cortesia. E por todo ho caminho atee chegarem a Badajoz vieram muitos senhores e principaes pessoas a recebê-lo e lhe beijar a mão, os quaes deixo de nomear por serem tantos.

Chegou el-rey à cidade de Badajoz onde foy muy bem recebido com paleo de brocado e muyta gente e cerimonias. Foy decer aa Ygreja Mayor e feyta oração tornou logo a cavalgar e foy comer e dormir a hum pequeno lugar dahi a tres leguoas que se chama Talaveroyla. E dahi por diante as trombetas a atambores d' el-rey e dos senhores nam tangeram mais.

Ao outro dia el-rey e ha raynha com todos partiram caminho de Nossa Senhora d' Aguadalupe; no qual caminho o veo receber o mestre d' Alcântara e outros senhores, hos quaes se logo tornavam somente os duques de Medina e d' Alva que sempre foram com el-rey atee se ver com el-rey Dom Fernando, e o aguardavam continuamente con muy grande acatamento e cerimonias e lhe mandavam cada dia serviços de cousas de comer; e assi à raynha e às damas, e convidavão sempre muytos senhores e fidalgos que continuamente com elles comiam e tinham nisso muyto grande abastança e singular concerto, principalmente ho duque de Medina que fez nisso grandes larguezas. E porque hiam por terra longe do mar e de poucos pescados e em Quaresma todos os dias e noytes mandava a el-rey e aa raynha todos os singulares pescados frescos e de conservas que se podiam nomear, a assi às damas e a todollos senhores e pessoas principaes que com elle nam comiam; e trazia nisso tantas azemalas em paradas, tantos servidores, ordem, e abastança que era muyto grande cousa.

Foy el-rey dormir a Merida onde esteve o Domingo de Ramos e dahi por suas jornadas sem fazer detença atee quarta-feira de Trevas que chegou ao Moesteiro de Nossa Senhora de Guadalupe, onde teve as Endoenças, Pascoa e Oytavas. Foy recebido dos frades com solemne precição, todos com ricas capas e as cruzes e reliquias do moesteyro; e ahi ouvio os oficios das Endoenças e Pascoa, e ao moesteiro fez muito grandes esmollas.

Ahi o veo ver e beijar a mão o conde de Benalcacer, e outros senhores que se loguo tornaram pera suas casas.

E depois de passada a Pascoa, a quinta-feira seguinte se partiram el-rey e a raynha e todos os que com ele vinham caminho da cidade de Toledo onde el-rey Dom Fernando e a raynha Dona Isabel com muitos grandes e senhores estavam esperando por elles. Forão polla Ponte do Arcebispo e Talavera de la Reina e outros lugares té chegarem a hũa aldea quatro legoas de Toledo onde estiveram  tres dias atee se ordenar sua entrada. E estando ahi veo nova como el-rey Carlos de França era falecido de sua doença; e ahi se encerrou el-rey por elle. E por todo este caminho sempre foy recebido de senhores que lhe vinham beijar a mão; e na Ponte do Arcebispo passou ysto. A ponte he dum soo arco tamanho que passa o Tejo por ele, e dous arcos pequenos que estam em seco pera quando enche; e tem duas grandes torres à entrada e sayda da ponte muyto fortes e armadas com portas d' alçapões e nellas seus alcaides-mores, hum d' el-rey e outro do arcebispo de Toledo cujo o lugar he; e em chegando à torre a porta estava fechada e abrio-se, e o alcaide-mor veo a beijar a mam a el-rey e aa raynha e entregou-lhe as chaves da torre; e en indo pola ponte a outra torre estava tambem fechada e abrio-se, e fez o alcaide­-mor a mesma cerimonia, que por me parecer cousa nova o escrevi.

E aa quinta-feira da Pascoela el-rey e ha raynha e todos se levantaram cedo e ouviram missa e comeram; e acabado de comer partiram da dita aldea caminho de Toledo, onde o mesmo dia entraram na maneira que se segue.

Antes d' achegar aa cidade aacerca dũa legoa mandou el-rey nosso senhor ho senhor Dom Jorge, ho senhor Dom Alvoro, ho  senhor Dom Denis, ho conde de Portalegre, hos filhos do marquês, o mordomo-moor, Dom Francisco, Ruy de Sousa, Dom Joam de Sousa, o capitam dos ginetes, o camareiro-moor, e outros muitos nobres fidalgos a receberem el-rey Dom Fernando que vinha ja fora da cidade a receber el-rey e a raynha. E dous ou tres tiros de beesta da cidade chegaram todos juntos a el-rey e se deceram todos a pee, e el-rey esteve quedo; e o senhor Dom Jorge tirou o sombreiro que levava encima dhũa touca, e indo pera el-rey fez tres mesuras sem el-rey fazer nada; e em chegando a elle, o mordomo-mor e o capitam dos ginetes o tomarão nos braços e o levantaram té beijar a mão a el-rey e elle lha deu; e depois de lha ter dada perguntou quem era e elles lhe disseram: "Senhor, he filho d' el-rey Dom Joam"; el-rey tirou entam muyto rijo o sombreyro fora e disse-lhe: "Perdoay-me que nam vos conhecia, que se vos conhecera eu me decera". E então o fez logo cavalgar com grandes cortesias e o pôs aa sua mão dereita e sempre laa precedeo todos hos senhores. E entam o senhor Dom Alvoro, o senhor Dom Denis, e todos os outros senhores e fidalguos portugueses beyjaram a mão a el-rey, aos quais fez muita honrra e gasalhado; e a Dom Joam de Sousa mostrou muito amor porque  o teve hum espaço abraçado, e acabado el-rey com todos começou d' andar pera onde el-rey nosso senhor vinha.

E assi mesmo da parte d' el-rey Dom Fernando se adiantaram muytos senhores e quasi todas as pessoas principaes a beyjar a mão a el-rey nosso senhor, e aa raynha; ho primeyro foy Dom Anrrique tio d' el-rey, e o comendador-mor Cardenes, e muytos perlados e senhores; e todos a pee com a mesma cerimonia atras dita lhe beyjaram a mão. E dahi a pouco chegaram o condestabre, e o marquês de Vilhena, e outros duques, e fezeram outro tanto. E foy tanta a gente nobre que vinha beyjar a mão a el-rey e à raynha que em espaço de hum tiro de beesta hos reys hum do outro estiveram bem tres oras sem se poderem ver.

El-rey Dom Fernando vinha muy acompanhado de grandes e perlados, e muytos senhores e trinta mil encavalgaduras todas de lobas e capellos, e diante delle seus mestres-sallas, e porteyros de maça, reys d' armas, e suas trombetas, e tambores; e vinha com elle hum embaixador de Veneza.

E el-rey nosso senhor com todos seus oficiaes, mordomo-mor, mestres-sallas, porteyro-mor,  reys d' armas, porteyros, apresentador com seus cavallos a destro com telizes, e suas trombetas, tambores, os quaes nam tangeram depois d' entrar na cidade. E a gente era tanta que todolos oficiaes e porteiros dambos os reys com muito trabalho fezerão lugar pera se poderem ver. E tanto que se viram estando quedos tiraram ambos juntamente os sombreiros que levavam na cabeça e abalaram hum pera o outro; e em chegando el-rey Dom Fernando tirou o barrete na mão; e tornado a poer na cabeça foy abraçar el-rey nosso senhor, o qual levava hũa touca posta à mourisca e hum capuz de contray; e hia em hum ginete grande ruço queymado aa gineta; assi com a touca na cabeça sem poer a mão nela se abraçaram ambos polos pescoços com muito contentamento. E por el-rey nosso senhor yr em cavalo grande e aa gineta e el-rey Dom Fernando em hũa mula pequena pera se ygoalarem e abraçarem el-rey nosso senhor se abaixou muito, e neste ponto as trombetas d' el-rey Dom Fernando tangeram hum pouco. A raynha foy pera beyjar a mão a el-rey seu pay e elle lha nam quis dar e lhe deitou sua bençam e se passou logo aa sua mão esquerda e fez poer el-rey nosso senhor aa mão dereita e a raynha no meo e assi começaram loguo a andar caminho da cidade que seria dahi a mea  legoa e o caminho era todo cheo d' omens e molheres que vinham a ver.

E chegando aa cidade foram aa porta grandemente recebidos com paleo de muito rico brocado o qual levavam pessoas muy principaes que tinham casas e fazendas na cidade como cidadões. No qual paleo os reys assi como vinham entraram debaixo delle; e em alguns passos estreitos el-rey Dom Fernando se saya do paleo fora e depois tornava a entrar. A cidade era muy fermosa cousa pera ver a muita gente que nela avia que de muitas partes ahi viera a ver este dia; e as ruas muitas delas estavam toldadas de muitos panos ricos e polas paredes armadas de rica tapeceria e muitos panos de brocado e veludo e outras muitas sedas sem ahi entrar outra cousa. As molheres fermosas eram tantas que nam sabia homem onde posesse os olhos, que alem das toledanas serem gabadas de muito fermosas eram muitas vindas doutras partes; e verdadeiramente nunca em nenhũa parte tantas gentis molheres vi. Foram assi el-rey nosso senhor à mão dereita e el-rey Dom Fernando à esquerda e a raynha na metade atee a Igreja Mayor onde se deceram a fazer oraçam e foram recebidos aa porta com muyto grande e requissima precição, que esta he hũa das boas ygrejas e grande arcebispado que no mundo  há; e quando  ja chegaram aa ygreja foy quasi noite e com tochas. E acabadas has orações tornaram cavalguar na mesma ordem debaixo do paleo atee os paços onde a raynha com as ynfantas suas filhas e a princesa sua nora e muitas senhoras e damas e muitos senhores os estavam esperando. Chegaram assi aos paços onde todos juntamente pousaram que eram casas de Garcia Lasso de la Vega e de Pero Lopez de Padilha que partiam hũas com as outras e se abriram. E em entrando por hũa porta estreita, os reys se rogaram muito aa entrada, e el-rey nosso senhor entrou diante, e dali atee que foy jurado por principe sempre lhe el-rey Dom Fernando dava todas as honras, e posto que se rogasem sempre lhas fazia tomar. E depois que foy jurado e lhe ficou em lugar de filho nunca mays se rogou com elle, e em todas has cerimonias em pubrico e em secreto elle precedia el-rey nosso senhor.

Ha raynha hos veo esperar a hũa varanda terrea aa entrada dos paços muyto longe de seu apousentamento, e o comendador-moor Cardenes que era grande seu privado e contador-moor e tinha dezasseys contos de rendas e muytas villas, a trazia de braço de hũa parte, e da outra Dom Joam de Sousa que ella chamou por lhe fazer honrra que o  conhecia, e pera lhe dar a conhecer as pessoas que com el-rey nosso senhor hiam; as quaes antes de se el-rey ver com ella lhe foram diante beyjar a mão, e Dom Joam lhos dava todos a conhecer, e passou nisso alguns passos em que foy louvado por cortesão. E em chegando os reys, como el-rey nosso senhor vio a raynha se foy a ella, e ella abalou pera elle e se abraçaram e abaixaram ambos tanto que poseram os joelhos no chão, e el-rey foy abraçar as infantas e a rainha nossa senhora foy pera beyjar a mão aa mãy, e ella lha nam quis dar e a abraçou e deitou sua bençam, e tambem nam quis dar a mão ao senhor Dom Jorge e lhe fez muita honrra.

E acabado se foram todos juntos ao apousentamento da rainha e princesa e ahi esteveram em serão mais dia ora praticando todos com muito contentamento; e el-rei e a raynha de Castella e as infantas com todos se recolheram pera seus apousentamentos e  deixaram el-rey e a raynha nossos senhores nos seus.

Este serão e casa foy cousa bem pera ver, porque nella estavam taes dous reys e taes duas  raynhas, e a princesa viuva molher que foy do principe e filha do emperador, e duas infantas filhas d' el-rey e da raynha, e dous ynfantes filhos d' el-rey de Granada e ho filho d' el-rey Dom João de Portugal, e outra filha d' el-rey  Dom Fernando, e as principaes duquesas e senhoras de Castella, e muitas e nobres damas, o patriarca, o arcebispo de Toledo e muitos perlados, o condestabre, o duque de Medina, o duque d' Alva, o marquês de Vilhena, o duque de Vila Fermosa, o conde de Feria, o senhor Dom Alvoro, e o senhor Dom Denis, o gram comendador-mor Cardenes, e Dom Pedro Portocarreiro, e muitos marqueses e condes, e tantos senhores que nam escrevo, que verdadeiramente poucas vezes se veria outra tal casa no mundo.

        E logo ao domingo seguinte que foram vint' oyto dias d' Abril juraram el-rey nosso senhor por principe na See com muyto grande solenidade. Alevantaran-se cedo elle e a raynha sua molher e foram-se ao apousentamento d' el-rey Dom Fernando e da raynha Dona Ysabel, e ajuntados todos cavalgaram loguo acompanhados de todolos grandes e perlados, e senhores, e grandes senhoras e nobres damas, e diante delles todos seus oficiaes, mordomos-mores, mestre-sallas, porteyros-mores, reys d' armas e porteyros de maça, muitas charamelas, trombetas, e tambores com muito grande triunfo e estrondo. E como foram a cavalo o duque de Medina Cidonia, o conde de Feria tomaram ambos a pe as redeas  do cavalo d' el-rey nosso senhor cada hum de sua parte, o duque aa mão dereita e o conde aa esquerda, e o condestabre e o duque d' Alva tomaram as redeas da mulla da raynha nossa senhora, o condestabre aa mão dereita, e à esquerda o duque. E assi foram os reis e raynhas com muy grande estado aa Ygreja Mayor onde ouviram missa em pontifical dita pollo arcebispo de Toledo, todos juntos em hũa grande cortina de muyto rico brocado; e depoys da missa acabada os juraram nesta maneira.

       Na capela mayor junto com a cortina estava hum grande estrado alto com dorsel de brocado e  cadeiras d' estados ricamente concertado e alcatifado em que os reys e raynhas se foram assentar. E na mesma capella da outra parte grandes bancos pera os precuradores en que estavam assentados segundo suas precedencias; e os grandes e pessoas principaes assentados nos degraos do altar-mor, que tudo estava muito bem alcatifado, e muitas ricas almofadas pera os grandes os quaes nam estavam em ordem porque por antre alguns aver deferenças na precedencia dos lugares, el-rey e a raynha lhe rogaram muyto que por aquela vez nam curassem disso e estivessem como se acertassem, e assi ao beijar da mão fosse cada hum  como quisesse sem nisso aver ordem pola necessidade que avia de tamanha cerimonia se acabar; e elles o ouverão por bem e assim se fez.

E como todos foram assentados e os oficiaes fizeram calar a gente, levantou-se hum doutor, e em pee fez a todos hũa grande arengua em nome d'el-rey Dom Fernando e da raynha Dona Isabel, na qual a substancia era: que poys a Nosso Senhor aprouvera de lhe levar pera si o principe Dom Joam seu filho, e por sua morte a raynha Dona Isabel sua filha e el-rey de Portugal que presentes estavam ficarem por principes erdeiros de todos seus reinos e senhorios, que por ysto e por el-rey ser tam excelente, tam singular e virtuoso rey, elles o mandaram chamar a seus reynos, e pedir muito que elle e a raynha sua filha quisessem vir a ser jurados por principes. Aos quaes aprouve de vir e estavam presentes como todos viam; e eram taes e de tantas virtudes que elles grandes e o povo o deviam ter em muito boa ventura, e por tanto lho encomendavam que os quisessem jurar. E elles todos responderam que lhes aprazia com muito verdadeira e muy leal vontade. Dizendo tambem ho mesmo doutor a el-rey e à rainha nossos senhores por parte dos grandes e povo que lhe pediam todos por merce que elles o fizessem bem e dereitamente a serviço de Deos e bem comum, e que seus previlegios lhe confirmassem e guardassem.  E el-rey e a raynha disserão que assi o fariam; levantou-se entam o patriarca e tomou hum livro missal aberto, e encima dele hũa grande cruz d' ouro, e nele deu juramento a el­-rey e aa raynha de assi tudo cumprirem; os quaes assi o juraram poendo suas mãos encima da cruz e do livro. E tanto que juraram, o condestabre se levantou e tomou o mesmo livro nas mãos, e nelle deu juramento a todolos grandes e pessoas principaes e precuradores do reyno, os quaes todos juraram por principes erdeiros de todolos reynos e senhorios que el-rey, e ha raynha, seu pay, e mãy tinham. E como juraram o mesmo condestabre por parte d' el-rey nosso senhor tomou a todos as menajens, as quaes lhe todos deram; e acabadas de dar foram todos a beijar a mão a el-rey e aa raynha por seus principes, os grandes primeiro, e apos eles os precuradores das cidades, e depois todos os outros per ordem.

A igreja estava a mais fermosa cousa que se podia dizer riquissimamente armada e muitas bandeyras reaes e a gente era tanta que nam cabia; e tantos orgãos, charamellas, sacabuxas, trombetas, atambores, e outros muytos estormentos, que quando acabaram de jurar juntamente tangeram e os sinos repicavam que neste ponto nam avia homem que nada ouvisse nem entendesse. E acabada esta grande cerimonia que durou muito, os reis e raynhas forão todos comer a casa do arcebispo de Toledo, que sam pegadas com a See, onde os reys comeram em hũa parte, e as raynhas em outra. E yndo todos a pee pera casa do arcebispo na crasta da See vieram os precuradores e regedores de Toledo beijar a mão a el­-rey nosso senhor e aa raynha, e nam lhas beijarão com os outros precuradores, porque os da cidade de Burgos os precediam e aviam de beijar diante delles, e por esta causa o fizeram depoys per si soos.

Estiveram os reys em Toledo dezoito dias, e neste tempo despediram de si muitos grandes e perlados e precuradores que muita parte de gente nobre do reino era ahi junta. E acabados os dezoito dias partiram com suas casas ordenadas e alguns grandes aforrados, caminho de Çaragoça do reino d' Aragam cidade principal pera nella serem jurados dos aragoeses. E dahi era determinado yrem a Valença e Barcelona e tornarem a Granada, e a Sevilha; hos quaes caminhos se nam fizeram porque Deos ordenou outra cousa.

Partiram de Tolledo e foram per suas jornadas ter a Chinchon hũa villa do marquês de Moy, que era tisoureyro-moor d' el-rey  e ha marquesa era a Bobadilha muito nomeada e grande privada da raynha e sua collaça. Ha qual vila tem hũa grande e muy forte fortaleza que de novo tinhão feyta, e hũas muyto boas casas de prazer, de grandes agoas, pescarias, apousentamentos, policias. E ahi esteveram os reys quatro dias, onde foram melhor agasalhados, e com mais ricos e abastados concertos pera ele e todolos grandes que nunca vi, e me parece que hum rey nam podia mais fazer. Que tinha nestas casas de prazer e nas suas casas da villa trinta e tres camas armadas e aparamentadas de pano d' ouro, brocado e muy ricas sedas sem daqui abayxar. E algũas das camas, as mesmas camaras eram armadas todas do mesmo pano d'ouro, brocados, sedas, e tam galantes, borladas e entretalhadas, e tantas alcatifas entretalhadas e borladas d' ouro e assi almofadas, que era cousa de muyto grande espanto pera hum tam pequeno senhor, que verdadeiramente os feitios valiam tanto que ho nam ousaria escrever; e as outras casas somenos armadas de rica tapeçaria, tantas baixelas, banquetes, e outras policias que seria muito escrever-se polo meudo, e era tanto e tam ricas cousas que se dizia, que nam podia ser senam que fossem da rainha.

De Chinchon foram os reis a Alcalaa de Enares hũa villa do arcebispo de Toledo, e ahi vierão jurar el-rey nosso senhor e a raynha, o duque de Najere, e hum yrmão do duque de Medina Celi com hũa sua precuraçam por estar tam doente que nam podia vir; e assi o juraram outros senhores que ahi vieram; e o juramento foy hũa noyte em casa da raynha nossa senhora.

Partiram os reys e raynhas d' Alcalaa e foram a Guadalajara onde o duque do Infantado tem seu assento e as mais ricas casas d' Espanha. Foram muyto bem recebidos com paleo e festas, e ahi estiveram tres dias e pousaram todos em outras singulares casas do duque que foram do cardeal Dom Pero Gonçalvez de Mendoça seu yrmão e estavam muyto bem concertadas. E os reys e raynhas foram todos hum dia ver ho duque a sua casa que estava doente em cama; e ahi na cama jurou el-rey nosso senhor e a raynha.

E de Guadalajara foram a Calatau primeira cidade d' Aragão e ahi foy el-rey nosso senhor e a raynha sua molher muy bem recebidos com muy bom paleo, e no meo delle as armas de Castella e Portugual borladas e muytas festas; e desta cidade foram a Çaragoça, onde foi feyto grande recebimento a el-rey e aa raynha  nossos senhores. Porque el-rey e a raynha de Castella nos lugares onde avia recebimento entravam sempre diante sem festa por trazerem ainda dó pola morte do principe, e todolos recebimentos eram feitos a el-rey nosso senhor e à raynha. Nesta cidade ouve hum grande arroydo, os da corte com os da cidade em que ouve muitos homens feridos e mortos; e foy tamanho que el-rey Dom Fernando veo em pessoa a estremar porque suas justiças nem as d' el-rey nosso senhor o nam podiam fazer nem se fizera sem muita perda se el-rey nam viera em pessoa; que tanto que o viram tudo foy pacificado e ninguem nam bolio mais.

Chegaram aa cidade de Çaragoça o primeiro dia de Junho do mesmo anno, e el-rey e a raynha de Castella entraram na cidade polla menhã sem festa nenhũa; e el-rey nosso senhor e a raynha vieram pousar em huns singulares paços e casas de prazer que el‑rey ahi tem fora da cidade a que chamam Aljoufaria, e ahi comeram; e no mesmo dia aa tarde entraram na cidade na maneira seguinte.

Antes de sayrem de casa veo o arcebispo de Çaragoça que he filho d' el-rey Dom Fernando e nam tem ordens, e alguns deziam que com presunçam de ser ainda rey d' Aragão, ho qual era viso‑rey em Çaragoça. E com elle vieram os governadores e jurados e toda  a nobre gente da cidade, e elle beijou a mão a el-rey nosso senhor e à raynha, e apos elle todos os que com elle vinham. E acabado el-rey e a raynha cavalgarão grandemente acompanhados e todos seus oficiaes e cavallos a destro diante tudo muyto bem ordenado, e assi abalaram pera a cidade e logo sayram fora todalas bandeyras do reyno e da cidade, e dos oficios que eram muytas e muito boas, e com ellas muitas trombetas, e tambores, e outros estormentos, e muita infinda gente do povo muito limpa e bem vestida; e à porta da cidade estavam ja os principaes e seus regedores a pee com hum paleo de rico brocado, e polas bordas as armas do reyno borladas, e suas ricas franjas e torçaes, e as varas douradas. E el-rey vinha vestido de contray com hum rico colar de pedraria, e em hum cavalo aa brida, e a raynha tambem de contray por doo e outro rico colar de pedraria, e em hũa mula goarnecida de veludo preto. E em chegando aa porta da cidade lhe beijaram todos has mãos, e elles se meteram debaixo do paleo e começaram a andar, e diante todos seus oficiaes e  menistres, e hos d' el-rey e raynha de Castella e outros muytos. E diante d' el-rey hiam ho arcebispo de Çaraguoça  e o senhor Dom Jorge, os infantes de Granada, o duque de Najere, o duque de Villa Fermosa, o senhor Dom Alvoro, o senhor Dom Denis, e outros muitos senhores castelhanos e portugueses, e com muito grande triunfo foram assi pollas ruas principaes que estavam ricamente armadas e muita gente atee chegarem aa praça da cidade.

E em chegando as bandeiras se deixaram ficar todas atras e el-rey e a raynha passaram diante. Na praça estava feito hum grande cadafalso toldado e armado de rica tapeçaria, e hum dorsel de brocado no meo, e duas cadeiras d' estado e muyto bem alcatifado. E como a elle chegaram, el-rey e a raynha se deceram e todos os grandes, e sobiram ao cadafalso que era bem alto e de muitos degraos. E como el-rey e a raynha foram assentados as bandeiras lhe vieram obedecer. Veo logo a bandeira do reino muito grande e rica, e homens que com cordeis de seda a traziam de quatro partes dereita; e tanto que chegou a el-rey se abaixou tres vezes atee dar no chão. E apos ella veo a bandeira da cidade da mesma maneira e fez outro tanto, e depois todallas outras per ordem que pareceo muyto boa cerimonia e tardou muito. E acabado tornaram a cavalgar jaa com tochas, e na mesma ordem foram decer aa Ygreja Mayor  que he pegada com os paços. E à porta estava toda a clerezia em hũa grande precissam ricamente vestidos com suas cruzes, e hum bispo em pontifical com as reliquias na mão. E em el-rey e a raynha decendo, em entrando polla porta da See assi debayxo do paleo, os conegos e clerigos remeteram ao paleo, que os principaes da cidade levavam pera lho tomar, e elles lho nam quiseram dar; e os clerigos poseram nisso tanta força que quebraram as varas e lho tomaram das mãos; e foy tamanha revolta que derribaram o duque de Najere e o arcebispo e outros muytos e ouveram de derribar el-rey e a raynha, cousa muyto fea e que a todos pareceo muito mal; e passou sem castigo por se nam escandalizar a cidade, por amor do requerimento que logo se avia de fazer. E a rezam que davam era que melhor seria o paleo pera a ygreja que pera o estribeiro-mor. Fizeram oraçam e tornaram a cavalgar sem paleo e foram decer nos paços que eram pegados com a See, casas do arcebispo donde os reis e raynhas todos pousavam e se corriam hũas casas com outras.

El-rey Dom Fernando quisera que loguo ao outro dia que era domingo juraram el-rey e a raynha, e assi ho cometeo aos aragoeses; os quaes nam quiseram e lhe responderam em camara  que primeyro fariam cortes e seria todo o reyno ajuntado a elles, s., os lugares principaes, e querendo todos que entam jurariam. E logo se as cortes começaram, e el-rey Dom Fernando foy a ellas tres vezes, e de cada vez lhe deu espaço de quatro dias pera nelles virem com sua reposta; e o derradeiro dia do prazo que foy dia de Corpo de Deos lhe responderam que pois Valença e Barçalona nam vinham que elles nam jurariam sem lhes el-rey primeiro tornar e confirmar alguns previlegios que lhe tinha quebrados. As quaes cousas lhe el-rey nam quis conceder nem elles nam quiseram jurar. E nisto passaram algũas vezes palavras asperas e muytos conselhos de maneira que el-rey se achava algum tanto desobedecido delles; e em hum conselho lhe disse a raynha sua filha que pera que queria sua alteza temporizar tanto com elles que seria milhor sayr-se fora d' Aragam e torná-lo a tomar de novo e entam poer e fazer as leis aa sua vontade. Isto souberam hos aragoeses e por temerem algũa revolta em duas noytes meteram secretamente na cidade oyto mil corpos d' armas e se fizeram muy fortes; e nestes debates, e perfias, escusas, e delongas andaram sem se tomar concrusam atee que a Nosso Senhor deu com a morte da rainha  e princesa por onde tudo cessou.

A raynha nossa senhora andava em dias de parir e bem pejada e por sua maa desposiçam e presunçam que tinha d' etigua muy temorizada de morrer. E como molher tam prudente, vertuosa, tam devota, e tam amiga de Deos como ella era, e pelo receo que trazia tinha seu testamento feyto e muy vertuosamente ordenado, e estava de pouco confessada e comungada e todalas cousas feytas tam perfeytamente quanto a hũa singular pessoa pertencia. E a vinte e quatro dias d' Agosto do mesmo ãno de noventa e oyto dia de Sam Bertolameu polla menhaã ha tomaram as dores grandes e com muyto trabalho pario hum filho a que chamaram Dom Miguel principe erdeyro dos reynos de Portugual e Castella, sendo presentes el­-rey nosso senhor e el-rey seu pay e a raynha sua mãy e muytas outras nobres pessoas, e foy o prazer tamanho em todos que el-rey Dom Fernamdo sahio logo fora a dizer alto aos grandes e senhores, e pessoas principais que na casa de fora estavam esperando polla nova: "Alegray-vos todos que filho temos". Foy a alegria tamanha e tanto alvoroço e prazer que com a nova tiveram que mays nam podia ser; e loguo foy sabido por toda a cidade; e as festas eram tantas e tantos repiques da See e todallas ygrejas e moesteiros, que nam avia pessoa que em outra cousa fallasse nem entendesse, dando em todollos moesteiros e ygrejas muytas graças a Deos revestidos com suas cruzes e capas em precissão dentro nas casas cantando o "Te Deum laudamus" e outras muitas devotas orações.

A raynha acabado de parir ficou muito fraca e muy debilada, hos espritos derribados, tanto que el-rey seu pay acudio rijo e a tomou nos braços, e vendo que se finava bolia muyto com ella, e bradava-lhe muyto alto dizendo: "Filha, lembre-vos ha morte e paixão de Jesu Christo. Filha, chamay por elle e polla Virgem Nossa Senhora que seja comvosco nesta ora", e outras muitas sanctas palavras muy necessarias em tal tempo, ysto com muyta devaçam, e tam alto que os que estavam de fora o ouviam, e tam ynteiro e sem lagrimas como se nam fora sua filha que elle tanto amava; e ha raynha assi nos braços do pay se finou e deu alma a Deos, que verdadeiramente de tão virtuosa pessoa nam se deve menos esperar; morreo assi vestida como estava perante todos que foy a mayor tristeza que podia ser. A raynha sua mãy vendo assi supito diante si morrer hũa tal filha, tamanha raynha e senhora tam virtuosa, e prudente, tam obediente, e a primeira que ella parira, e que sobre todos tanto amava e prezava, com a grande dor e tristeza de seu coração cayo logo sem fala como morta no cham. E el-rey Dom Fernando a tomou logo nos braços e a levou a sua camara e a deixou deitada como morta, e tornou muito prestes a el-rey nosso senhor que estava muy cortado e triste em grande maneira, e o tomou polla mão e levou a seu apousentamento confortando-o muito com muitas e prudentes palavras, dizendo-lhe que desse graças a Deos pois elle disso fora servido. E como o deixou tornou logo à filha e a deitou sobre hũas almofadas de veludo, e ella vestida em hum habito de velludo avelutado preto, e a cabeça alta com ho rosto descuberto, com hum veo muyto delgado por cima que a viam todos, esteve assi no meo da casa até noite que lhe fizeram seus oficios. E como el-rey isto fez e deixou ordenado o que se avia de fazer, se recolheo pera seu apousentamento sem lagrimas e com tanta segurança como se nada nam fora. E como lá foy começou de chorar a filha que tanto amava, e nos seus braços lhe morrera dizendo palavras de lastima; e tanto que foy sentido que elle chorava começou-se logo tam grande pranto em  todos os paços e tamanhos gritos que parecia que se vinham a terra, e nam avia pessoa que se nam carpisse e chorasse tam bravamente como se a perda fora só sua. E a See que estava pegada com os paços, começou logo dobrar todos os sinos e fazer triste sinal, e todos os moesteiros e igrejas repicavam; e a cidade toda em muito grande alvoroço e festas. De maneira que em hum momento e por hũa pessoa se faziam em hũa cidade juntamente em hũa parte muito grandes e tristes prantos, e na outra festas e alegrias.

Esteve assi na casa descuberta à vista de todos até noite que lhe fizeram muy devotamente e com muytas lagrimas seus oficios os perlados que presentes eram, e a meteram em hũa tumba cuberta com hum pano de veludo preto com hũa cruz de damasco branco, e encima hũa cruz e hũa vela. E acabado isto despejaram todos a casa e ella ficou assi soo atee a mea-noyte que a tiraram secretamente e soo com doze frades de Sam Jeronimo dhum moesteiro fora da cidade que por ella vieram com hũa pequena cruz e duas alanternas a levaram soo com oyto ou dez criados seus os mais portugueses; e assi foy levada por casas soos e tirada por hũa porta escusa junto com a ponte por onde passaram; e foy soterrada tam pobremente no mesmo moesteiro no chão que mays nam podia ser nenhũa pessoa por pobre e baixa que fosse. E ysto se fez desta maneira por ella o ter assi mandado em seu testamento.

E verdadeiramente quem a vio naquele dia tam alta raynha, tam grande princesa e senhora, molher tam acabada e de tam perfeyta ydade, tam bem casada antre seu marido e seu pay e sua mãy, tamanhos senhores e suas yrmaãs, e com tanto prazer e contentamento por ter diante si filho erdeiro de tamanhos reinos e senhorios que ella tanto desejava ver nacido, e com tudo ysto dahi a mea ora a vio morta e a mesma noite tão pobremente soterrada. Foy cousa muito pera se homem lembrar de Deos e dar bem pouco pollas cousas deste mundo, pois em tam pouco espaço tam grandes mudanças faz.

Deyxou em seu testamento que por ela se nam tomasse burel como sempre até li d' antigo tempo atras se fazia em Portugal e Castela polos reis e raynhas e por outros senhores, e que nam trouxessem lobas grandes e capelos somente lobas e becas como agora se cá costumam; e d' entam pera cá nunca mais em Portugal ouve dó de burel nem lobas grandes, somente as que se agora trazem e este custume nos ficou por seu falecimento, porque dahi a pouco tempo fez el-rey noso senhor a ordenaçam do doo. Deixou por seu testamenteiro el-rey nosso senhor, ho qual nisso ho fez tam virtuosamente que mays não podia ser, e depoys de sua morte atee  elle partir pera Portugal de dia nem de noyte nunca outra cousa entendeo e tanto fez nisso que ante de se vir o comprio de todo tam inteyramente que alguns casamentos que ella deixou a molheres pera quando casassem ele quis que nam ficasse nada por fazer e todo o dinheyro que nisso montava deyxou logo pago e depositado em mãos de pessoas abonadas pera lho darem como fossem casadas. E fez nisso tantas finezas que foy de todos muy louvado sendo em tempo que elle se achou com muy pouco dinheyro por as grandes merces e gastos que tinha feytos.

Nesta morte da raynha que santa gloria aja aconteceo hũa grande cousa em Lixboa em casa da raynha Dona Lianor, que hũa sua criada castelhana que se chamava Velazquita que muitas vezes era fora de seu siso, diz que disse aa raynha perante muitas pessoas o mesmo dia de Sam Bertolameu e a mesma ora: "Senhora, agora pario a raynha hum filho em Çaragoça e a raynha se finou logo". A raynha Dona Lianor parecendo-lhe ysto misterio mandou logo vesitar el-rey e a raynha e escreveo o mesmo caso a el-rey, e o messageyro achou ja el-rey no caminho vindo pera Portugal por onde se afirmou ser verdade.

El-rey nosso senhor ficou muyto triste e muy anojado pola perda  de tal molher e tam grande senhorio como juntamente perdeo, e todos os portugueses muito tristes e alguns receosos d' el-rey de Castella querer fazer algũa novidade com el rey nosso senhor pois o tinha em seu poder, ou dilatar sua vinda pera que nam viesse tam cedo a Portugal. El-rey Dom Fernando o fez tam virtuosamente quanto se podia fazer, e cada dia o visitava e confortava muitas vezes e lhe mostrou em tudo tanto amor como se fora seu propio filho e assi a raynha. E em quanto el-rey Dom Fernando viveo nunca tirou a el-rey nosso senhor o titulo de principe de Castella.

E nos dias que el-rey esteve acupado nas cousas do testamento mandou a seus oficiaes fazer prestes tudo o que pera sua vinda compria porque tinha determinado tanto que o testamento acabasse se partir e assi o- fez que acabado de comprir ao outro dia ante menhã se partio pera seus reynos, despedido d' el-rey e da raynha, da princesa e das infantas com muito grande amor e nam com poucas lagrimas que choravam; sayo de Çaragoça a oyto dias do mes de Setembro do mesmo ãno de mil e quatrocentos e noventa e oito ãnos. Vieram com ele té Portugal o patriarca e outros senhores; e polos lugares por onde vinha era servido e acatado como se fora rey de Castela. E em Aranda do Douro estavam o condestabre  e o duque d' Alva que no reyno ficaram por viso­-reys, os quaes vieram receber el-rey nosso senhor muito fora da vila com muita gente e cheos de tamanho doo e tanta tristeza assi elles como todolos seus e tantas lagrimas que verdadeyramente a todos doeo o coração. E em chegando a el-rey se deceram a pee e com todas suas cerimonias acustumadas lhe beijaram a mão e el-rey lhe fez muita honrra. E dali atee Portugal veo o duque d' Alva com el-rey, e fez com elle que viesse pola sua vila d' Alva onde esteve hum sabado e hum domingo e ho agasalhou grandemente e com mais abastança, concerto e policia que se podia fazer. E assi a el-rey como a todos quantos com ele  vinham portugueses e castelhanos cousa tam bem feyta que mais nam podia ser em que o duque gastou muito. E mandou apregoar que nenhũa cousa se vendesse e que tudo se desse de graça e assi se fazia; e os ferradores ferravam de graça; andavam pola vila muytos mordomos com muitas carretas e bestas carregadas de mantimentos, e como chegavam aas pousadas segundo eram as pessoas assi lhe deytavam dentro muita soma de vaca, carneyros, galinhas, perdizes, patos, coelhos, cabritos, e muitas outras sortes de aves e caças, muito pão cozido e muytas fruitas de muitas maneiras,  muitos e bõos vinhos, muitos pescados, muita cevada e palha, muitas tochas novas e muitas velas grandes e pequenas, e todalas outras cousas em tanta abastança que nam podem alembrar, e tudo muito perfeito e tam sobejo que aos hospedes ficava muyto pera muitos dias; e hos portugueses e castelhanos hião caregados de cera e de singulares vinhos e doutras muitas cousas quanto podiam levar. De maneira que em nenhũa parte vi tanta abastança nem cousa desta sorte tam bem feita.

E d' Alva partio el-rey por suas jornadas ordenadas sem fazer detença atee entrar em Portugal; e em Cidad Rodrigo mandou a Dom Garcia de Toledo filho mor do duque d' Alva dous singulares ginetes arrayados com arreos d' ouro que valiam muito e o duque muito estimou. Vieram todos com el-rey atee a vila d' Almeida primeiro lugar de Portugal onde entrou e despedio o duque d' Alva e o patriarca e outros senhores que com ele vinham. E d' Almeida partio logo e veo por Lamego e Coimbra e outros lugares até chegar à cidade de Lisboa onde a rainha Dona Lianor estava e foy recebido dela e de todolos grandes, fidalgos, cavaleyros e todo o povo com muito grande prazer e contentamento polo verem em seus reinos donde avia seis meses que era fora.

Deo gracias

IDA DA IFFANTE DONA BREATIZ PERA SABOYA

IDA DA IFFANTE DONA BREATIZ PERA SABOYA

No anno de mil e quinhentos e dezaseis estando o muito alto e muito poderoso rey Dom Manoel nosso senhor e a serenissima senhora rainha Dona Maria sua molher e o muito alto e muito excelente principe Dom Joam nosso senhor, e os muito excelentes senhores iffantes seus yrmãos na muito nobre e sempre leal cidade de Lixboa, o illustrissimo e muito excelente Dom Carlos duque de Saboya, etc., per seus embayxadores mandou requerer e cometer a sua alteza casamento com a muito excelente senhora yffante Dona Breatiz sua segunda filha. Os quaes embayxadores se chamavão hum Monseor de Confinhão, e o outro Pero Caes; andaram na corte muitos dias em seu requerimento, e foram-se sem tomarem con­crusam algũa.

E dahi por diante nunca o senhor duque deixou per seus messageiros e cartas d' apertar e falar no dito casamento como homem que em estremo desejava de se acabar.

Neste tempo faleceo a serenissima e muito vertuosa senhora raynha Dona Maria que santa gloria aja; e depois de seu falecimento el-rey nosso senhor casou com a serenissima e excellente princesa a raynha Dona Lianor nossa senhora yrmaã do emperador Carlos rey de Castella e d' Aragam e de Napolles, e de Granada, de Cezilia e Navarra, etc.

E estando suas altezas e o principe nosso senhor e yffantes seus yrmãos na muito nobre e sempre leal cidade d' Evora o ãno de quinhentos e vinte, o senhor duque lhe tornou a mandar por embayxador Monseor de Brosi seu camareyro, pessoa principal e muyto aceito a elle, e Chatel por secretario com boa companhia. Foy recebido per os muito manificos condes, o conde de Tentugal, e conde do Vimioso com mil e quinhentas encavalgaduras. Deu sua embaixada e andou na corte tantos dias e apertou tanto e per tantas vezes o negocio, assi per si como per pessoas principaes que nisso metia, que ouve d' el-rey nosso senhor boa palavra e com ella se partio, com muyto contentamento por lhe parecer que tinha aberto caminho pera se poder esperar o que o duque seu senhor sobre tudo tanto desejava.

E tornando outra vez a estar sua alteza e a raynha e principe, e os ynffantes na cidade de Lixboa, o senhor duque lhe mandou outra embayxada no anno de vinte e hum, em que vieram por embayxadores Monseor de Balsisam tres vezes baram e seu  camareiro-moor, e Jafredo Paserio doutor em leys e seu desembargador do paço, e por secretairo Chatel e com elles muy boa companhia. Os quaes foram grandemente recebidos de todollos grandes e perlados e pessoas principaes, e nobre fidalguia e cavalaria da corte de sua alteza. Deram sua embayxada com toda honrra e cerimonia que podia ser, e per muytas vezes falaram a sua alteza e apertaram e trabalharam tanto nisso, que se veo o dito casamento a concertar e fazerem seus contratos. Pera hos quaes el-rey nosso senhor tomou por seus procuradores Dom Alvoro da Costa do seu conselho e seu camareiro e armador-moor, pessoa de que muyto confiava, e o doutor Diogo Pacheco do seu desembargo, homem nas letras e em tudo muy estimado. E por parte do senhor duque eles embaixadores que pera isso traziam abastante precuraçam; e o concerto que todos fizeram foy este.

Que sua alteza dava à senhora yffante sua filha em dote de seu casamento cento e cincoenta mil cruzados, cem mil cruzados em ouro, e os cincoenta mil em joyas d' ouro, pedraria, perlas, aljofar, e prata de serviço de sua mesa, e camara, capella, guarda-roupa, e estrebaria, e em corregimentos de sua casa, e camara, e ornamentos, tapeçaria, e outras cousas. E mais a mandaria atee a cidade de Niça ou porto de Villa Franca aa sua propria custa e despesa como cumpria a seu estado; no que sua alteza gastou mais doutros cento e cincoenta mil cruzados, segundo na grande armada e grossas despesas que fez se verá.

E o yllustrissimo senhor duque dava aa muyto excelente senhora ynffante duquesa pera soster seu estado, todalas cidades, villas, fortalezas, e lugares que tinha a illustrissima Madama Branca que foy duquesa de Saboya, com todas suas jurdições mero e misto imperio, e nellas quinze mil cruzados de renda em cada hum anno e se mais rendessem fosse pera a senhora iffante, e se menos que o senhor duque lho perfizesse e lhe dava pera fazer merces, esmollas, e ho que lhe bem viesse cinco mil cruzados que sam per todos vinte mil, e mays lhe daria todos os vestidos de sua pessoa em sua vida como cumpre a seu estado; e que falecendo elle duque primeiro que ella que lhe ficasse tudo livremente pera sempre, e mais lhe dava d' aarras os cento e cincoenta mil cruzados que ouve de seu dote, e todas as joyas e cousas que tiver, e outras muyto grandes cousas que no contrato vão declaradas.

Os contratos acabados domingo de Pascoella sete dias do mes de Abril, que receberam a senhora iffante duquesa com o embaixador Monseor de Balcisam, o principe nosso senhor cavalgou e com elle o yfante Dom Luis seu primeyro yrmão, e toda a corte e se foy pera casa dos embayxadores; os quaes vinham ja per caminho e com elles o marquês de Villa Real e o arcebispo de Lixboa com muito nobre companhia e se toparam aa porta principal da See; e dahi os trouxe sua alteza consigo com muytas e grandes honrras atee hũa grande sala armada toda de rica tapeçaria d' ouro, e alcatifada em que el-rey nosso senhor e a senhora raynha estavam em hum grande e alto estrado alcatifado com hum dorsel de rico brocado, e as cadeiras cubertas com hum grande pano d' ouro, e os yffantes seus filhos, e as senhoras yffantes Dona Isabel e Dona Breatiz todos no estrado assentados em almofadas de rico brocado, e todas as damas assentadas na sala de hũa parte e da outra em alcatifas, e com ellas muitos senhores e nobres fidalgos, e a sala toda chea de muitos e muyto grandes castiçaes de prata com tochas e todolos menistres que se podiam nomear.

E como o principe nosso senhor  e o senhor iffante chegaram com os embayxadores jaa perto da noyte se foram logo onde suas altezas estavam; e no estrado estando todos em pee o muito reverendo Dom Martinho arcebispo de Lixboa recebeo a yllustrissima e muito excelente senhora iffante Dona Breatiz com o muy nobre embaixador Monseor de Balcisam em nome do duque seu senhor per palavras de presente como manda a Sancta Madre Ygreja de Roma, por que o embaixador trazia pera ysso e pera tudo suficiente e abastante precuraçam.

Acabado o recebimento o principe nosso senhor e todos seus yrmãos beijaram a mão a el-rey e aa raynha por o casamento da senhora iffante, e apos elles todolos grandes de Portugal que na casa estavam; e acabando el-rey, raynha, principes, e yffantes se assentaram e el-rey mandou poer a hum cabo do estrado hum escabello cuberto com hũa alcatifa em que mandou assentar os embaixadores.

Começou-se logo hum grande seram em que el-rey, e a raynha com o principe, e as senhoras iffantes Dona Isabel, e Dona Breatiz, e o yffante Dom Luis, dançaram todos.

E assi todos grandes e fidalgos da corte que durou o serão muitas oras em que ouve muitas damas, muitos galantes ricamente vestidos.

Logo do outro dia por diante el-rey nosso senhor começou de mandar ordenar todallas cousas necessarias pera a yda da senhora yffante, e dizer aas pessoas que com ela aviam d' ir que se apercebessem, e mandou fazer prestes e concertar todallas naos grossas, galees, galeões, e outras naos, e caravelas pera sua embarcaçam que foram por todas dezoyto vellas, quatro naos grossas, quatro galees, dous galeões, cinco naos, duas caravellas, e hũa fusta, todas as melhores que podião ser e pera ysso muyto escolheitas de fortes, novas, grandes, e veleiras; e hiam tam grandemente armadas que era cousa d' espanto, porque allem da artelharia que tinham e soyam de trazer, levavam mais do almazem d' el-rey quinhentos e trinta e sete tiros, todos de metaes, muyto singular artelharia, cento e duas peças de bombardas grossas muyto grandes, muyto fortes, e muito furiosas, e trinta e cinco peças de falcões, e cincoenta peças de lagartixas, e trezentos e cincoenta berços, tudo de metal repartidos por todas quanto cada hũa podia levar; e a nao em que a senhora yffante hia era d' oytocentos tonees, e a do arcebispo de seyscentos e cincoenta, e a de Dom Francisco de Castelbranco de trezentos e cincoenta, e a de Dom Francisco da Gama de trezentos, e o galião em que Fernão Perez hia de dozentos e cincoenta toneis, e o galião d' Afonso d' Albuquerque de dozentos e trinta; e has galees eram reaes e muy grandes, e hia por capitão-moor dellas Dom Pedro Mazcarenhas. E os capitães das outras eram Francisco de Mello, e Luys Machado, e Gonçalo de Campos, e na fusta Alvoro do Couto.

E a nao em que ho marichal hia era de cem toneis, e a de Christovam de Brito doutros cento, e a d' Alonso Perez passava deles, e a de Dom Fernando d' Abranches da mesma grandura. E tres caravellas muy grandes: na hũa Dom Luys Coutinho, e na outra Ruy Mendez de Vasconcellos; e a outra hia com aves e caça; e mays hũa grande nao dos embaixadores.

E em companhia da senhora yffante mandou o muyto reverendo Dom Martinho da Costa arcebispo de Lixboa perlado muy principal e de muyta autoridade, e o muyto magnifico Dom Martinho de Castelbranco conde de Villa Nova, e camareiro-moor do principe nosso senhor, que hia por capitam-mor e governador de toda a frota, a quem el-rey entregou a senhora iffante e a levou até a entregar ao senhor  duque seu marido, homem que el-rey tinha em grande estima, e a que mostrava muyto amor e confiança, e a quem sempre deu parte de todallas suas cousas e segredos, e outra muyta e muito nobre companhia e muy principaes pessoas, as quaes sam estas, o bispo de Targa que hia por capellão da senhora inffante, e Dom Francisco de Castelbranco filho mayor do dito conde de Villa Nova, e Dom Joam, Dom Antonio, e Dom Afonso, tambem seus filhos, e Dom Francisco da Gama filho erdeiro do conde almirante, e Dom Estevão seu yrmão, e Dom Luis Coutinho, Dom Fernando de Castro filho mayor do governador de Lisboa, e Nuno da Cunha veador da Fazenda do principe nosso senhor, Afonso d' Albuquerque, o craveiro Dom Diogo de Meneses, Dom Pedro d' Almeida, e Dom Alvoro Coutinho marichal, e Joam Lopez de Sequeyra mordomo-mor da yffante, Joam Rodriguez de Saa, e Dom Pedro Mazcarenhas, Joam da Silveira, Dom Fernando de Monroy, e Dom Jorge Anrriquez reposteiro-mor do principe nosso senhor, Alonso Perez Pantoja, Christovam de Tavora, Ruy de Sousa, e Pero Moniz da Silva, Dom Fernando de Lima, Dom Duarte da Costa, Gaspar de Brito, e Fernam de Miranda, Ruy Mendez de Vasconcelos, Antonio de  Moura, Joam de Mello Pereira, e Dom Fernando d' Abranches, Dom Fernando de Noronha, Christovam de Brito, Lionel de Brito, e Pedr' Afonso d' Aguiar, Pero Gomez da Graã, Fernam Perez d' Andrade, Pero da Fonseca, e Pero de Mendanha, Dom Jeronimo de Moura e Lourenço de Sousa filho de Ruy de Sousa, Simam Correa veador da yffante, Jeronimo Correa estribeiro-moor e seu yrmão, Pero Pantoja, e Martim Vaz filhos d' Alonso Perez, Antonio Pereira, Diogo Brandam, Francisco de Melo, e Gonçalo Coelho, Dom Jorge filho do conde d' Odemira, e Dom Bras Anriquez filho de Dom Fernando Anrriquez pages da iffante, Antonio Reaes, Luis Machado, Gonçalo de Campos, Alvoro do Couto, e Diogo Ferreira feitor d' armada, Francisco Coelho, Alvoro do Tojaes tisoureiro da iffante, Gaspar de Sequeyra ucham, Joam de Lousado mantieiro, e Francisco Homem copeiro, Afonso Manhoz tisoureiro da capella, dezoyto moços da camara, seis moços da capela, seis homens da camara e  seis  guardas das damas, quatro porteiros de maça, oyto moços d' estribeira, e oito reposteyros,  seis cozinheiros e homens dos oficios, seis charamelas, tres violas d' arco, hũa  citra, oito trombetas, e seis atambores, e sua capela ordenada, mui ricos ornamentos, e todalas cousas de casa tam perfeitas e abastantes, que valia o movel que levou cincoenta mil cruzados como atras fica dito.

E has molheres que com ella foram sam estas,  Dona Lianor da Silva que hia por camareira-mor e Dona Mecia filha de Dom Denis yrmão do duque de Bragança, e Dona Maria filha do conde de Faram, e Dona Maria de Meneses, Dona Isabel Anrriquez, Dona Ines de Mello, e Dona Joana de Meneses, Dona Breatiz Mazcarenhas, e Dona Francisca de Lacerda, e Dona Ines de Brito, Guiomar Cardosa, Francisca Tavares, e Ines d' Aguileira, e moças da guarda-roupa, moças da camara,  guardas das damas e escravas brancas. E a todas el-rey deu ricamente de vestir, e foram estas senhoras e damas com tantos, tam ricos e galantes vestidos que mays nam podiam ser, e assi todas as cousas necessarias.

E mandou sua alteza que fossem prestes pera poderem embarcar até dia de Santiago vinta cinco dias de Julho; e pollo muy grande desejo que todos tinham de o servir posto que o tempo fosse muyto breve pera tamanhos gastos e tantas cousas se averem de fazer, se concertaram tam asinha, que ante do termo posto poderam partir se nam acontecera que a senhora yffante duquesa adoeceo de fevres; e com os grandes remedios que lhe fizeram foy sãa dahi a quinze dias.

E domingo quatro dias d' Agosto foy el-rey nosso senhor, e a raynha, principes, e yffantes todos com a senhora iffante duquesa aa See, e dahi aa casa da serenissima senhora rainha Dona Lianor sua tia a despedir-se della; e neste dia se vestiram e derão mostra todos os que com a senhora iffante hiam que foy hũa cousa bem pera ver e adiante se dira. El-rey com todo estado real como acima fica dito sayo do paço aas quatro oras depois de meyo dia todos muy requissimamente vestidos e as bestas muito arrayadas. El-rey nosso senhor vestido aa framenga em hum cavallo de brida, e ha raynha nossa senhora em hũas andas cubertas de pano d' ouro e os cavalos que as levavam guarnecidos de brocado rico de pello e com ella dentro a senhora yffante duquesa; e o principe nosso senhor vestido de capa aberta e espada em hum ginete singularmente arrayado, e ha senhora yffante Dona Isabel em hũa mulla com hũa guarniçam e andilhas de muito rica chaparia d' ouro. E o muy reverendissimo e muyto excellente senhor cardeal yffante Dom Afonso com seu roxete e vestido d' escarlata, capello, e sombreiro de cetim cramesi em hũa  mula aparamentada de velludo cramesi. E o senhor iffante Dom Luys vestido aa framenga em hum cavallo de brida ricamente guarnecido, e ho senhor yffante Dom Fernando vestido de capa aberta em hum ginete com hum muy rico arreo d' ouro. E hos senhores yffantes Dom Anrrique e Dom Duarte muyto bem vestidos, e em facas aa brida com muy ricas guarnições d' ouro. E todallas damas assi da raynha como das senhoras yffantes singularmente vestidas e em bestas muyto arrayadas e muytos pajes e moços d' esporas muito bem ataviados e muito mays hos gallantes que com ellas hiam.

Sayram do paço aas horas que disse, e vieram por a tenoaria aa Rua Nova que estava muy fermosa cousa, toda armada de muy rica tapeçaria, e dahi por ha padaria foram  atee a See. E da See depois de feitas orações por has ruas principaes atee a casa da senhora raynha onde esteveram, e ha iffante se despedio della; e aa vinda vieram por toda a Ribeyra que era cousa muy bem lustrosa.

Deceram no paço, e em hũa muy grande salla armada toda de muy rica tapeçaria d' ouro e muyto bem alcatifada, dorsel, cadeiras, e almofadas de muy  rico brocado, se começou hum grande serão, em que el-rey nosso senhor dançou com ha senhora yffante duquesa sua filha, e a raynha nossa senhora com a yffante Dona Isabel, ho principe nosso senhor e o senhor yffante Dom Luys com damas que tomaram. E assi dançaram todos hos galantes que hiam a Saboya, e muytos outros senhores e galantes que durou muyto. E as danças acabadas se começou hũa muyto boa e muyto bem feyta comedia de muytas figuras muyto bem ataviadas e muy naturaes, feyta e representada ao casamento e partida da senhora yffante, cousa muyto bem ordenada e bem a proposito; e com ella acabada se acabou ho serão.

Neste dia se vestiram e deram mostra todas has pessoas que com ha senhora yffante hiam; e com muyta verdade se pode dizer e afirmar que nunca d' Espanha sayo nem se vio gente tam rica, tam galante, e tam atilada. Porque ouve muytos homens de vestidos borlados de muy ricas perlas e muy riquissima pedraria, muytos de canotilhos, muyta chaperia, muytos borlados d' aljofar, muytos d' ouro de martello e singulares borlados e entretalhos. E nam avia homem que nam levasse muyto ricos colares de pedraria, perlas, e ouro esmaltados, e assi grandes cadeas de tiracolo. E todos muy ricas espadas, estoques, adagas e punhaes d' ouro esmaltados, e muitas con pedraria e de muitas feições e envenções, e assi ricas cintas e tecidos d' ouro esmaltados, e infindos botões de pedraria, perlas, e ouro, e muytos e muy riquissimos firmaes de pedraria e infinidade de pontas, de perlas, ouro, e esmaltes, atee os çapatos que todos levavam de veludo feitos aa framenga com ricas guarnições d' ouro esmaltadas. E hos vestidos todos ou os mais eram de tres sedas, a de cima toda golpeada e feita em tiras, com grande soma de firmaes, botões, e pontas por todos os golpes; e outra seda debaixo que parecia; e de dentro forrados doutra seda afora antretalhos, bandas e debruns, e ysto nam somente nas opas, roupões, e capas, mas nos sayos e gibões. E cada hum tantos vestidos desta sorte, tantos trajos e envenções e tam ricas sedas que mais nam podia ser. E era cousa bem pera ficar em escrito o que cada hum levava e gastou. Porém porque seria muita leitura o deixey d' escrever, abaste ser visto de tantos. E hos pajes, escudeyros, e moços d' esporas muy grandemente vestidos de muitas singulares librees e muy galantes  envenções e muytos de chaparia, borlados e entretalhos. E as bestas com ricos jaezes e guarnições de muitas envenções, e assi muy ricas camas e paramentos de casas, riquissimas baixellas pera laa no mar e na terra darem convites e banquetes. E muyto grande soma de charamellas, sacabuxas, trombetas, e atambores e outros muytos menistres ataviados. E os capitães, os remeiros que remavam seus bateis muito bem vestidos de suas librees e devisas, que verdadeiramente não lembra a riqueza, policia, e abastança de tudo. E por que os que depois ysto lerem lhe nam pareça muito, saibam certo que Portugal a este tempo estava o mais rico reino de christãos, e toda a riqueza delle de pedraria, perlas, aljofar, colares, e todas as peças d' ouro levavam estes cincoenta ou sessenta homens atras nomeados seu e emprestado, que por ser a viajem perto e averem logo de tornar, cada hum levemente emprestava o que tinha; e o principal por servirem e fazerem a vontade a el-rey, que pois o não hiam servir com as pessoas folgavam d' ir suas fazendas polo gosto e contentamento que nisso lhe viam levar. E por ysso se fizeram muytos e muy grandes e demasiados gastos, principalmente o arcebispo de Lixboa e o conde de Vila Nova, e o conde almirante com seus  filhos, e assi todos hos outros que se afirma e há por muito certo que se gastaram nesta armada passante de seiscentos mil cruzados, e se el-rey nosso senhor não defendera brocados e telas d' ouro e de prata muito mais se gastara, que por duas cousas gastam os portugueses levemente suas fazendas. A primeira por serviço de seu rey, e a segunda por suas honrras com algũa competencia e vaydade de mestura.

Logo ao outro dia que foy segunda-feira dia de Nossa Senhora das Neves aa tarde, a senhora yffante duquesa embarcou com grandissimo estado; sayo com ella el-rey nosso senhor e a raynha, o principe, e yffantes, e todallas damas, e senhores que na corte estavam, e assi os embaixadores do senhor duque, e toda a companhia da senhora iffante e diante dela o conde por mordomo-mor d' el-rey, e o mordomo-mor da raynha, e todos os porteiros, mestres-salas, e reys d' armas, porteyros de maça e outros oficiaes, e muitas charamelas, sacabuxas, trombetas e atambores e muitos outros estormentos e menistres. E por hũa salla grande e hũa muito grande varanda vieram ter a hum caes que estava dentro na agoa tudo armado de muy rica tapeçaria, e o caes alcatifado; e ao sayr e entrar de todalas portas a raynha nossa senhora se ro- gou sempre com a senhora iffante duquesa e ambas saíam e entravam juntamente; e embarcaram todos em hum muito grande batel todo de popa a proa toldado de rico brocado de pelo e alcatifado com muitas almofadas de brocado, e muitas e ricas bandeiras e  estandartes de damasco carmesi e branco, pintados d' ouro e outros muitos batees muy ataviados com os marinheiros muito bem vestidos todos de hũa libree que o levavão aa toa; e derredor dele todos os batees de todalas naos, galees, galeões e caravelas da armada ricamente ataviados de ricos toldos, e bandeiras e marinheiros muito bem vestidos cada hum de suas cores com muitas charamelas, trombetas e tambores.

E todallas naos e navios em grande maneira concertados de toldos, estandartes e bandeiras e muitas caravelas da cidade muito embandeiradas e enramadas com muitas folias, trombetas e  atabaques que sempre andavam aa vella derredor da nao da senhora iffante; e com estes batees outros e muitos de gente que vinha a ver eram tantos e tam fermosa cousa que mais nam podia ser; e a gente que pola Ribeira estava assi aas janelas como a cavalo, e a pee era sem numero, e a artelharia que se entam tirou sem conto.

Foram assi atee a nao e por hũa grande ponte que tinha muito bem ordenada feyta sobre barcas e armada de rica tapeçaria, entraram na nao tam chaã como em hũa salla. Estiveram lá hum grande espaço, e el-rey e a raynha e o principe se tornarão e com a senhora yffante duquesa ficaram a senhora yffante Dona Isabel e os senhores iffantes seus yrmãos, e dormiram laa na nao aquella noyte, e assi ho conde de Villa Nova, e hos embayxadores do senhor duque, e todolos officiaes da senhora yffante, e muytos fidalgos muy honrrados que na nao hiam com ella. E era muyto pera ouvir todas has noytes que no mar esteve as muytas e boas musicas que continuadamente avia que faziam muyta saudade. E nos dias tantas charamellas, sacabuxas, tantas trombetas, e atambores, e tam grossa artelharia que se nam podiam ouvir.

E a nao em que a senhora iffante hia era cousa muy maravilhosa pera ver ho concerto e riqueza della. Era nao d' oytocentos toneis, foy feyta na India, chamava-se Sancta Caterina de Monte Sinay, nao muyto forte, muyto fermosa, muyto veleyra e muy segura no mar, toda feyta em muytos e grandes apousentamentos, todos for­rados de bordos com maçonaria dourada. E a senhora yffante tinha grandes sallas e camaras e debayxo de seu apousentamento o  das suas damas e molheres, mays guardado que em hum ençerrado moesteyro, estes na popa da nao e pollas outras partes muitas e muy boas camaras pera o conde e embayxadores, e fidalgos, e oficiaes da senhora iffante todas apartadas sobre si, e cada hũa muy ricamente armada e muy ricas camas com ricos concertos de casa, e muyta e muy rica prata, e tantas outras abastanças de cousas que nam podem alembrar.

A camara em que a senhora yffante dormia era toda armada de brocado rico de pello e alcatifada, e os paramentos e cobertor da cama do mesmo brocado tudo franjado d' ouro e muytas almofadas de brocado. E a outra antecamara era toda armada de muyto fino velludo carmesi com muitas almofadas do mesmo veludo, e alcatifada, e hum dorsel de brocado, e outra cama e cobertor do mesmo veludo franjado d' ouro toda guarnecida e bandada de hũas muyto galantes bandas de pano d' ouro, e a salla e todalas outras camaras armadas de rica tapeçaria. E o conde de Villa Nova levava hũa sua camara toda armada de rico brocado de pello, e alcatifada, e a cama do mesmo brocado com outros muito ricos  concertos.

O toldo da nao era de veludo carmesi e damasco branco, e polas bordas entretalhado de veludo azul posto sobre cetim amarelo, e trocelado de seda branca e os entretalhos da bordadura eram de largura de cinco palmos, e tinha tres esperas muito grandes borladas hũa no meyo e de cada parte outra tambem de velludo azul posto sobre cetim amarelo, e trocelado de seda branca tudo franjado de seda, e forrado de dentro de damasco azul da China; e era tam grande que tinha passante de mil covodos de seda afora o forro; de comprimento dava dambas as partes na agoa, e de largura tomava toda a tolda feyto em tres peças que por sua grandura nam se podia doutra maneira armar e se ajuntava com botões e troçaes.

E hos toldos das gaveas eram de damasco carmesi e damasco branco tambem antretalhados e franjados.

E muytos estandartes de damasco carmesi e branco por todos os mastos e assi mesmo por todas as pontas das vergas; e os dous estandartes das gaveas eram muito grandes em estremo que dava muito polla agoa, tambem de damasco carmesi e  branco, bandados de brocadilho com muitas esperas d' ouro de pintor pintadas dambas as faces, hũas muito grandes e outras menos segundo se hiam estreitando.

Levava duas bandeiras de damasco carmesi muito grandes em estremo com as armas reaes pintadas d' ouro e prata; hũa hia na popa da nao e a outra no estaes que vem da gavea pera ho castelo d' avante, e ambas franjadas de brocadilho branco e vermelho com grandes troçaes e borlas de seda das mesmas coores.

E oytenta e quatro bandeyras muito grandes todas de damasco carmesi e branco, e de hũa maneira todas com esperas e bordaduras d' ouro singularmente pintadas dambas as partes e suas franjas e troçaes de seda, que verdadeiramente ver a nao com seus toldos, estandartes e bandeiras, suas sallas e camaras com seus ricos paramentos e ricas camas e concertos, e a nobreza dos fidalgos e damas que nella hiam, e os ricos vestidos que levavam ao modo do mar, e todas as outras policias e abastanças, era cousa espantosa e muito pera folgar de ver e nam ousar d' escrever.

E hos toldos, estandartes, e bandeiras das galees que hiam concertadas aa custa d' el-rey tambem eram desta sorte.

E as outras naos, galeões, e caravelas todas com ricos toldos, estandartes, e bandeiras cada hum de suas cores e devisas muy ricos e muy galantes e de muytas maneiras borlados e entretalhados, e assi todos os toldos dos batees concertados em tanta maneira que mais nam podia ser. E poucas vezes ou nunca se veria armada em tudo tam concertada, porque aynda que se fizessem jaa outras mores com muyta parte se nam fariam tam ricas; e se fossem ricas nam seriam tam atiladas; e se atilladas em algũa cousa nam em todas como esta foy, porque gente nunca tal se vio de riqueza e galantaria. E as vellas todas assi grandes como pequenas tam escolheitas e em tudo tam perfeitas que lhe nam falecia nada; os toldos, estandartes, e bandeiras assi delas como dos bateis eram tais que cada hum antes de se verem cuydava que ho seu era milhor que todos, e sem duvida tudo era tal que era rezam que ho cuydassem e se enganassem comsigo.

A terça-feira seguinte aa tarde foy el-rey, a raynha, o principe, e os yffantes, e a senhora yffante Dona Isabel e todallas damas e senhores, e os fidalgos que hiam a Saboya, e outros muitos aa nao a ver a senhora iffante duquesa. E depoys de laa serem ouve ahi hum grande seram em que dançaram todos os galantes que com a senhora yffante hiam e outros muitos que foy hũa muito gentil festa por ser feita no mar, e avia pera ysso na nao tamanho lugar como em hũa boa salla, que verdadeiramente depois de entrar nella eram tam grandes apousentamentos e tam ricos que pareciam huns boõs paços d' ouro; o seram atee acerca da noyte que se el-rey, raynha, e ho principe e todos vieram, ho mar era cheo de batees muy ataviados assi os d' armada como outros de gente que hiam ver. E todallas naos, galees e outros navios com seus toldos, estandartes, e bandeyras, e artelharia que tiravam era tanta e tam grossa que avia homem receo de perigo por estarem tam acerca huns dos outros; este dia foy muyto pera folgar de ver por ser tudo feito no mar e por hos muytos e muy ricos vestidos que todos os da armada levavam, que de muy custosos e muy galantes nam se podia mays fazer.

A quarta-feira se passou toda em os senhores e senhoras, e muitas donas e pessoas principaes hirem beijar a mão aa senhora iffante e despedirem-se della, e assi das senhoras e damas que com ella hiam; e com quanto era tempo de tamanhas festas as lagrimas que com saudade choravam eram tantas que mais nam poderam ser se fora tempo de nojo; e no principe nosso senhor se vio bem o grande amor que tinha aa senhora iffante sua yrmaã, porque todos os dias que no mar esteve nunca deixou d' estar com ela e antemenhã se ia pera a nao e laa comia e estava sempre, e quando se vinha era tam tarde que a senhora yffante se recolhia logo pera dormir; e os senhores yffantes todos hiam sempre aa nao e estavam laa todo dia com ella; e el-rey nosso senhor se a nam hia ver tantas vezes era por nam amostrar a grande saudade que della avia que pollo grande bem que lhe queria a nam podia encobrir. Nesta tarde de quarta-feira e na noyte se fez toda a frota prestes pera poderem partir.

E a quinta-feira polla menhã aas oyto oras a nao da senhora yffante deu aa vella e com ella todas as naos, gallees, galeões e caravellas que com ella hiam e outras muytas da cidade que a acompanhavam atee sayr de  foz em fora; que era muyto fermosa e bem saudosa cousa pera ver como todas hiam e a muita artelharia que tiravam e a soma das charamellas, e sacabuxas, trombetas, atambores, e outros muytos estormentos que tangiam; foram assi todas juntas atee defronte de  Nossa Senhora de Belem onde deitaram ancora e a salvaram com muyta e muito grossa artelharia e muytos tangeres. E o principe nosso senhor e os yffantes seus yrmãos hiam na nao com a senhora yffante duquesa, e el-rey e a raynha, e a yffante Dona Isabel a foram ver partir de hum baluarte grande que estaa metido no mar, e estiveram todos tres sos com muito grande saudade, muitos sospiros e lagrimas com os olhos sempre na nao atee que a viram deitar ancora.

Como foram ancoradas as galees se tornaram logo aa cidade pera el-rey nosso senhor yr nelas a ver a senhora iffante. E como a raynha nossa senhora o soube a quis tambem hir ver sendo ja della despedida; que verdadeiramente sua alteza mostrou em tudo tam grande e verdadeiro amor aa senhora yffante que mays nam podia ser sendo sua propia filha. E como acabaram de comer el-rey e a raynha nossa senhora,  ha yffante Dona Isabel se foram logo à galee capitoa e com elles todas as damas e muitos senhores, e nas outras galees e bates muitos fidalgos e outra muita gente; foram a Rastelo onde a senhora ynfanta duquesa estava e por o mar andar hum pouco alevantado a raynha nossa senhora, e a senhora yffante não poderam entrar na nao nem sayr da galee; el-rey nosso senhor entrou e foy ver a senhora yffante sua filha, e esteve co ella hum bom espaço soo em sua camara falando ambos; e acabado lhe deitou sua bençam e com muita saudade e grandissimo amor se despedio dela, e assi o principe nosso senhor, e hos senhores yffantes seus yrmãos que com ella estavam todos, e se vieram aa galee; e a senhora yffante duquesa chegou a hũa janella da nao da camara onde estava e dahi vio a raynha e a yffante sua yrmaã e com muitas lagrimas e saluços e grandissima saudade se despedio dellas, e acabado el-rey nosso senhor com todos se veo pera a cidade onde chegaram bem tarde.

Logo ao outro dia sesta-feira pola menhã a nao da senhora yffanta e todallas outras deram aa vella pera fazerem sua viagem e passaram polla torre e fortaleza de Rastelo que foy espantosa cousa pera ver a artelharia que tirou, e por o tempo nam servir deitaram ancora ahi perto.

E ao sabado polla menhã dia de Sam Lourenço dez dias do dito mes d' Agosto do dito anno de mil quinhentos e vinta hum ãnos a senhora iffante com toda a frota de sua armada partio e sayo de foz em fora e fez sua viajem. Que prazeraa a Nosso Senhor Deos ser tanto por seu bem e descanso, quanto el-rey seu pay e a senhora raynha, o principe, e hos iffantes seus yrmãos e ela mesma desejam e todos desejamos. Amen.

Deo gracias

A PAYXÃO DE NOSSO SENHOR JESU CHRISTO

Começa-se a paixão de Nosso Senhor Jesu Christo toda inteira, segundo os quatro evangelistas, tirada de todos elles em lingoajem portugues, ajuntada e concertada per Garcia de Resende por serviço e louvor de Deos.

A PAYXÃO DE NOSSO SENHOR JESU CHRISTO

Naquele tempo disse o Senhor Jesu Christo a seus discipolos: "Ja sabeys que daqui a dous dias ha-de ser a Pascoa, e o filho da Virgem seraa traydo pera que seja crucificado".

Então se ajuntarão os principes dos sacerdotes e os mais anciãos do povo nos paços de Caifas principe dos sacerdotes, e teveram conselho sobre como avião de prender a Jesu pera o matar, mas temiam o povo e diziam: "Nam no façamos em dia de festa, porque por ventura se levantaraa na gente algum roydo ou escandalo". E Jesu estava em Betania em casa de Simam leproso, e chegou-se a ele hũa molher com hũa boceta de lavastro de precioso inguento, e deitou-o sobre a cabeça de Jesu que estava assentado comendo aa mesa. E os discipolos que o viram indinaram-se contra ella, dizendo pera que se consentia tal perdição, que este inguento se podera vender por muito preço e dar-se aos pobres; e sabendo o Senhor que elles murmuravam disso disse-lhe: "Porque estais penados e anojados desta molher que boa obra há obrado em mi, que vós outros sempre tereis pobres convosco, e quando quiserdes lhe podeys fazer bem. Mas a mi nam me tereys sempre, porque esta molher há feito o que pôde do que tinha, e se pôs  este inguento sobre mi, nam no fez senam por se anticipar a ungir meu corpo pera a sepultura em significança de minha morte. E certamente vos digo que onde quer que este evangelho for pregado, em todo o mundo se dira que ho que esta fez ho fez em seu favor e memoria".

Entam entrou Satanas em hum dos doze discipolos que se chamava Judas Escariote, e foy-se aos principes dos sacerdotes e disse-lhes: "Que me quereis dar e eu vos darey preso em vossas mãos a Jesu?"; e elles lhe offereceram trinta dinheiros de prata; e dahi por diante buscava Judas tempo desposto em que o podesse prender e entregar.

E o primeiro dia em que comiam os pães asmos, quando se sacrificava e matava ho cordeiro pera a Pascoa, foram os discipolos a Jesu e disseram-lhe: "Onde queres que te aparelhemos pera comer a Pascoa?"; e elle disse a São Pedro e a Sam Joam: "Hi aa cidade e em entrando encontrareis com hum homem que traz hum cantaro de agoa, hi-vos apos elle, e onde quer que entrar direis ao senhor da casa: O mestre te manda dizer que o seu tempo estaa ja perto, e por ysso quer celebrar a Pascoa contigo; que nos mostres o lugar e habitação onde elle com seus discipolos a hão-de comer; e ele vos mostraraa hũa grande salla e lugar aparelhado onde ha-de ser e ahi  o fareis prestes". E os discipolos se forão aa cidade e acharam tudo da maneira que o Senhor lhes disse, e aparelharam-lhe ha Pascoa. E como foy tarde veo elle com seus discipolos e assentou-se aa mesa e os doze apostolos com ele, e disse-lhes: "Com grande desejo ey desejado de comer esta Pascoa com vosoutros antes que padeça; porque vos digo em verdade que eu não comerey disto atee que se cumpra no reino de Deos. E certamente vos digo que hum de vosoutros que comigo come aa mesa me ha-de trayr e trazer aa morte". Do que todos ficaram muy tristes e maravilhados, e começarão antre si de dizer, qual delles seria o que ouvesse de emprender tal cousa, e perguntar cada hum: "Senhor, por ventura sam eu?", e elle entam respondeo: "Hum que comigo mete a mão no bacio me entregaraa, e o filho da Virgem vay segundo o que delle he escripto; mas ay daquelle por quem sera dado, e fora bom pera elle nam ser nacido!". Respondeo entam o mesmo Judas que ho vendeo e disse: "Oo mestre, sou eu quiçaes"; e disse-lhe Jesu: "Tu o disseste". E moveo-se entre eles hũa contenda qual delles era ou avia de ser o mayor e disse-lhes o Senhor: "Os reys das gentes sam senhores delles, e os que tem poder sobre elles sam chamados fazedores de merces, e antre vosoutros nam  seja assi, mas o que he mayor antre vós seja feito como menor, e o que he presidente seja como servo. Ca pergunto quem he o mayor antre o que estaa assentado aa mesa ou ho que serve? Mayor he por certo o que estaa assentado aa mesa. Mas eu em meo de vós outros estou como quem serve, e vós soes os que permanecestes comigo em minhas adversidades e tentações, e por ysso eu desponho a vosoutros o reyno assi como mo há desposto e aparelhado meu padre, pera que comaes e bebaes sobre minha mesa em meu reyno, e vos assenteis sobre hos doze tronos pera julgar os doze tribos de Israel"; e dito ysto disse o Senhor a Simam: "Simam, sabe que Satanas há muyto desejado de ter poder sobre vosoutros, pera que vos tratasse na joeyra como se move o trigo, mas eu ey rogado por ti por que nam faleça tua fee; quando em algum tempo tu fores convertido confirma na fee a teus yrmãos"; e elle lhe respondeo: "Senhor aparelhado estou a yr contigo aa prisão e aa morte"; e elle disse aos discipollos: "Quando vos eu enviey sem saco, sem alforge, e sem çapatos, faleceo-vos por ventura alguũa cousa?"; e elles responderam: "Não, por certo"; e elle disse-lhes: "Poys agora o que tever saco tome tambem seu alforge, e ho que nam  tever, venda sua tunica e merque cutello; que eu vos digo que ainda ysto que estaa escripto convém que se cumpra em mi, onde diz que com os maos foy contado, que as cousas que de mi são escriptas fim averam"; e elles disseram-lhe: "Senhor, aqui temos dous cutellos"; e elle disse­-lhes: "Abasta". E ceando elles tomou o Senhor o pam e  benzeo-o, e partio-o, e deu-o a seus discipollos e disse-lhes: "Tomay e comey que este he meu corpo ho qual sera por vós outros entregado; fazey isto em minha memoria"; e tomou tambem o calez e deu graças e deu-lho e disse-lhes: "Bebey todos delle que este he o meu sangue do novo testamento o qual sera derramado por muitos em remissam dos pecados. E digo-vos que nam beberey daqui em diante deste licor de vinho atee aquelle dia em que o beba novo no  reyno de meu padre".

E dita a bençam e dadas as graças sayo-se Jesu com todos e foy-se como acustumava ao Monte Olivete allem do Ribeyro dos Cedros onde era o orto, e entam lhe disse Jesu: "Todos vós outros padecereis escandalo em mi esta noyte, porque escripto estaa: Ferirey o pastor, e derramar-se-ham as ovelhas, mas depoys de ressuscitado eu serey antes que vós em Galilea"; e Sam Pedro lhe respondeo e disse: "Ainda  que todos em ti se escandalizem eu nunca serey escandalizado"; e o Senhor lhe disse: "Digo-te certamente que esta noyte antes que ho galo cante me negaraas tres vezes"; e Sam Pedro lhe respondeo: "Oo Senhor, poys se for necessairo que eu moira contigo nam te negarey"; e assi o deziam todos os discipollos.

Entam veo Jesu com eles a hum orto que se chamava Gethsamani e disse-lhes: "Assentay-vos aqui em tanto, que eu vou alli a fazer oração"; e tomou consigo a Sam Pedro e a Santiago e São Joam os filhos do Zebedeu, e começou de aver receo e entristecer­-se e ter muito grande angustia e disse-lhe: "Triste he a minha alma atee a morte, sofrey-vos e esperay aqui e velay comigo", e foy-se hum pouco adiante quasi hum tiro de pedra, e debruçado e posto ho rosto no chão fez oração e disse: "Oo padre meu, se possivel he passe de mi este calez, e porém nam seja como eu quero, mas como tu o mandas". E apareceo-lhe hum anjo do ceo que o confortou e esforçou, e posto em agonia da morte suou hum suor que era como gotas de sangue que cayam em terra; e alevantado da oraçam veo depoys a seus discipollos e achou-os dormindo e disse a Sam Pedro: "Simão, dormes, nam podeste velar hũa ora soo comigo; velay e oray por  que nam entreis em tentaçam, o esprito por certo aparelhado e pronto estaa, mas a carne he enferma"; e foy-se outra vez e fez esta oraçam: "Padre meu, se nam pode este calez passar sem que o beba, seja feito tua vontade"; e veo outra vez e achou-os dormindo que tinham os olhos muy pesados de sono com tristeza, e nam sabiam que lhe respondessem e deyxou-os; e foy-se ha terceira vez a fazer esta mesma oraçam; e entonces veo a seus discipolos e disse-lhes: "Dormi e folgay que ja he chegada a ora em que o filho da Virgem sera entregado e posto nas mãos dos peccadores, levantay-vos e vamos e olhay que jaa estaa acerca o que me ha-de entregar".

E sabia muy bem Judas aquelle lugar, porque muitas vezes Christo com seus discipolos a elle vinha; e como Judas ja ouvesse recebido a gente e menistros pera o prender dos pontifices e mayores dos fariseus, veo em o sobredito lugar com muyta gente com armas, tochas, e lanternas; e tinha-lhe dito em sinal: "Aquele que eu beijar na face esse prendereys e tereis a bom recado". Jesu porque sabia o que sobre elle avia de viir, adiantou-se e sayo a elles e disse-lhes: "A quem buscais?", e responderam: "A Jesu de Nazare"; e disse-lhes Jesu: "Eu são"; e era tambem com eles Judas que o avia vendido; e assi  como disse Jesu "Eu são", tornaram atras e cayram em terra; e outra vez perguntou: "A quem quereis?"; disseram: "A Jesu de Nazare!". Respondeo Jesu dizendo-lhes: "Jaa vos disse que eu são, se a mi quereis deyxay yr aquestes", por que fosse cumprida a sua palavra que avia dito a seu padre "Nam perdi nenhum dos que me deste"; e Judas chegou entam ao Senhor e beyjou-o na face e disse-lhe: "Deos te salve, mestre"; e ho senhor lhe disse: "Amigo, a que vieste aqui?"; e elles neste ponto deytaram mão delle e ho prenderam; e Jesu disse-lhe: "Como a ladram saystes com espadas e lanças a me prender; eu cada dia estava com vosoutros pregando e ensinando-vos no templo, e nunca estendestes has mãos pera me tomar, mas esta he vossa hora e ho poder das trevas, e ysto passa assi por que se cumpram as escripturas das prophetas"; e hos discipollos vendo ho que dali se podia seguir disseram-lhe: "Senhor, queres que firamos nelles e ponhamos mãos em nossos cutellos?". E Sam Pedro tinha hum cutello e tirou delle, e ferio hum servidor do pontifice que se chamava Malco e cortou-lhe a orelha dereita; e Jesu disse: "Chegay-o cá"; e tomou-a e pos-lha e ficou são; e disse a Sam Pedro: "Mete teu cutello em sua bainha,  nam queres que beba o calez que me meu padre deu? Porque todos os que matam com cutello, com cutello morrerão; e cuydas tu que não posso eu rogar a meu padre, e ele me mandaria logo mays de doze legiões de anjos; mas como se cumpriram has escripturas que assi convem que se faça". E entonces todollos discipollos ho deixaram e fogiram; mas hum mancebo que levava hum lençol cuberto sobre as carnes o seguia, e elles prenderam-no e elle deixou-lhe o lençol e fogio-lhe despido. Levaram entam a Jesu preso e atado primeiro a casa de Annas que era sogro de Cayphas e pontifice em aquelle anno. O qual Cayphas deu por conselho que era melhor que hum homem morresse por ho povo, que nam que todo ho povo fosse perdido. E seguiam a Jesu Simão Pedro de longe, e outro discipollo o qual era conhecido em a casa do pontifice, e entrou com Jesu no paço do pontifice, e Pedro estava aa porta de fora, e sayo o discipollo conhecido do pontifice, e disse aa porteyra que o deyxasse entrar, e meteo a porteyra a Pedro dentro e disse-lhe: "Eras tu porventura dos discipollos deste homem?"; e disse: "Nam são"; estavam os menistros e hos servidores ao fogo porque fazia frio e aquentavam-se; e ho  pontifice perguntou a Jesu pollos seus discipollos e doutrina; e respondeo-lhe Jesu: "Eu manifestamente faley em ho mundo, eu sempre ensiney em a sinagoga e templo donde todos hos judeus convinham e nada disse em escondido, pergunta a elles que me ouviram o que lhes ey falado". E como ysto ouve dito Jesu, hum dos menistros dos que ahi estavam deu hũa bofetada a Jesu dizendo: "Assi respondes ao pontifice?"; e respondeo-lhe Jesu: "Se mal faley daa testimunho do mal, mas se bem porque me feres?"; e mandou-o Annas atado a Cayphas pontifice; e estava Simam Pedro aquentando-se e disseram-lhe: "Verdadeyramente tu dos seus discipollos es, que tua fala ho descobre e manifesta"; negou e disse: "Nam são nem no conheço"; e disse hum dos servos do pontifice primo daquelle a que Pedro avia cortado a orelha: "Nam te vi eu no orto com elle?"; e Pedro começou-se de maldizer, e outra vez negou com juramento dizendo: "Nunca tal homem vi"; e loguo cantou ho galo e virou-se o Senhor e olhou a São Pedro. E Pedro alembrou-se do que o Senhor lhe dissera, que antes que o galo cantasse tres vezes o negaria; e sayo-se logo fora e com muito grande amargura começou de chorar.

Levaram a Jesu a casa de Cayfas principe dos sacerdotes; e en sua casa estavam ajuntados todos os letrados e os mais anciãos do povo, e os principes saçerdotes e mais antiguos. E todo o conselho buscava falsos testemunhos contra Jesu pera o trazer aa morte; e posto que viessem muitas testemunhas falsas não acharam cousa que lhes comprise porque nam eram convenientes nem conformes aa verdade seus testemunhos, nem concordavam huns com os outros, mas aa derradeira chegaram dous falsos testemunhos que disserão: "Nós outros lhe ouvimos dizer: Eu posso destruyr o templo de Deos, e dahi a tres dias torná-lo a edeficar". E levantou-se logo o principe dos saçerdotes e disse-lhe: "Nam respondes aas cousas que estes afirmam contra ti?", e o Senhor calava-se; e o principe dos saçerdotes lhe disse: "Eu te conjuro por Deos vivo que me digas se es tu Christo filho de Deos!"; respondeo-lhe Jesu: "Tu o ás dito que eu aynda que o diga nam me crereis, e se algũa cousa vos perguntar nam me respondereis nem me deixareis; porém eu vos digo em verdade que vereis o filho da Virgem asentado aa destra da vertude de Deos e vir em as nuvens do ceeo". E entam o principe dos sacerdotes rasgou suas vestiduras e disse: "Brasfemado há, nam avemos mister mais testemunhas; e nam aveis agora ouvido a brasfemea, que vos parece?". E então todos o condenarão e disseram: "Senhor, dino de morte"; e começaram-lhe alguns de cuspir no rosto, e cobriram­-lhe os olhos com hum pano, e davam-lhe bofetadas, e pescoçadas, e diziam zombando e escarnecendo dele: "Profetiza-nos, Christo, quem te deu". E logo em amanhecendo teveram conselho os principes dos sacerdotes e os mais antiguos do povo contra Jesu pera o trazerem aa morte, e levaram-no atado, e poseram-no em mão de Poncio Pilato presidente. E entam Judas que o avia vendido, que era danado e perdido arrependeo-se do que avia feito, e tornou aos principes dos sacerdotes e principaes do povo os trinta dinheiros de prata, e disse-lhes: "Pequey em vender o sangue do justo" e elles lhe responderam: "E a nós que nos daa disso? Olharas tu o que fazias"; elle deytou o dinheiro no templo e foy-se enforcar com hũa corda. E entam os principes dos sacerdotes tomaram os dinheiros e disseram: "Nam se devem de poer na arca das esmollas porque sam preço de sangue", e teveram conselho sobre o que delles deviam de fazer, e mercaram delles o campo que se diz do oleiro pera enterrarem e sepultarem nelle perigrinos, e por ysso até o dia d' oje foy chamado o campo de Acheldemach que quer dizer campo de sangue, e entam se comprio o que disse o propheta Jeremias: "e tomaram trinta dinheyros de prata, preço pollo qual foy apreçado e vendido; o qual apreçaram os filhos de Israel e deram-no pollo campo do oleyro, assi como o senhor mo estabeleceo"; e diante de Pilato começaram-no de acusar dizendo: "Temos sabido que este anda enganando e pervertendo nossa gente, e defendendo que se nam paguem os tributos a Cesar afirmando ser elle Christo rey"; e Pilato perguntou-lhe entam e disse-lhe: "Tu es rey dos judeus?"; e respondeo-lhe e disse: "Tu o dizes"; e disse Pilato aos principes dos sacerdotes e a toda a gente: "Nam acho causa algũa neste homem pera que moira"; e entam elles esforçavam mais suas vozes dizendo: "Há cõmovido e alterado o povo ensinando por toda Judea, e começando de Galilea até qui". E Pilato como ouvio Galilea perguntou-lhe se era galileo; e como soube que era da jurdiçam de Herodes, remeteo-lho loguo que estava naquelles dias em Jerusalem. E como Herodes vio a Christo alegrou-se muito porque avia gram tempo que desejava de o ver por ouvir dizer dele muitas cousas e esperava de lhe ver fazer algum milagre ou sinal; e Jesu de quantas ele lhe disse e perguntou a nenhũa lhe respondeo. E estavam ali os principes dos sacerdotes e letrados acusando-o afincadamente, e Herodes e toda sua hoste e companha desprezou a Christo e teve-o en pouco, e como por escarnio o vestio de hũa vistidura branca e o remeteo a Pilato, e daquelle dia foram amigos Herodes e Pilatos, que dantes ymmigos eram. Levaram entam a Jesu a casa de Pilato, e eles nam entraram em o consistorio por nam serem çujos pera poder comer a Pascoa; sayo Pilato a eles fora e disse-lhes: "Que acusaçam trazeis contra aqueste homem?"; responderam-lhe e disseram-lhe: "Se nam fosse este malfeytor nam to averiamos trazido"; disse-lhe Pillato: "Pois tomay-o vós e segundo vossa ley o julgay"; e disseram-lhe os judeus: "A nós nam he licito matar ninguem", por que fosse cumprida a palavra que Jesu disse: "Da-lo-ham a outras gentes que o crucifiquem", mostrando a morte que havia de morrer; entrou entam Pilato em o consistorio e chamou a Jesu e disse-lhe: "Es tu rey dos judeus?"; respondeo Jesu: "Falas de ti mesmo, ou outrem te há dito de mi?"; e disse-lhe Pilato: "Sam eu por ventura judeu? Tua gente e teus mayores te me ham trazido, que fezeste?"; respondeo Jesu: "Meu reino nam he deste mundo que se deste mundo fosse meu reino, meus servos e menistros pellejarião que eu não fosse entregado aos judeus, mas agora meu reyno nam he daqui"; e disse Pillato: "Segundo ysso rey es tu?"; respondeo Jesu: "Tu o dizes que eu rey sam e pera isto sam eu nacido e pera isso vim ao mundo pera que desse testemunho da verdade, e todo aquele que he de verdade ouve a minha voz"; e disse-lhe Pilato: "Que cousa he verdade?", e dizendo isto outra vez sayo fora aos judeus e disse-lhes: "Trouxestes-me este homem como alvoroçador e pervertedor do povo, e perguntado perante vós outros eu nam acho nele cousa algũa pera que deva de morrer de quantas o acusaes, nem menos lha achou Erodes que por ysso mo remeteo, mas eu o castigarey e soltarey porém corregido e enmendado; e he vosso custume que vos solte hum preso em a Pascoa; quereis que vos deixe o rey dos judeus?", porque sabia Pilato que por enveja o acusavam os sumos saçerdotes; e elles todos bradaram juntamente: "Nam este senam Barrabas"; e Barrabas era ladram e homecido e malfeytor, mas estava todo o povo ensinado dos principes dos saçerdotes, letrados, e fariseus que pedissem a Barrabas e que Jesu fosse crucificado.

E estando assi Pilato assentado em sua cadeira de juizo decraram-lhe hum recado de sua molher que nam tevesse de ver com aquelle justo porque muitas cousas avia sofrido aquella noyte por elle em visam. E entam tomou Pilato a Jesu e mandou-o açoutar muyto; e os cavaleyros ajuntaram hũa coroa de espinhos e poseram­-lha sobre a cabeça, e vestiram-no de hũa vestidura de purpura, e com hũa cana na mão e vinham a elle e em joelhos o adoravam e escarneciam, e davam-lhe bofetadas e assi com a cana e deziam: "Deos te salve rey dos judeus", e sayo entam Pillato fora e disse-lhe a elles: "Vedes, aqui vo-lo trago por que conheçaes que em elle nenhũa cousa acho de morte"; sayo entam Jesu trazendo hũa coroa de espinhos e vestidura de purpura e disse Pilato: "Vedes aqui o homem"; e como o vissem os menistros e juyzes bradavam e deziam: "Crucifica-o, crucifica-o"; e disse-lhes Pilato: "Tomay-o vós e crucificay-o que nam acho em elle causa"; responderão os judeus: "Nós ley temos e segundo ley deve morrer porque se fez filho de Deos"; e como Pilato ouvio esta palavra temeo mais e entrou em o consistorio outra vez e disse a Jesu: "Donde es tu?"; e Jesu nam lhe respondeo; disse Pilato: "Nam me falas; nam sabes que tenho poder de te crucificar e de te soltar?"; respondeo Jesu: "Nam terias poder algum contra mi se nam te fosse dado de cima; porém quem a ti me há trazido há mayor pecado"; e de si buscava Pilato como o deixaria mas os judeus bradavam: "Se este leyxas nam es amigo de Cesar porque qualquer que se faz rey contradiz a Cesar", e Pilato como ouvisse estas pallavras tirou a Jesu fora e assentando-se por juiz em hum lugar que he dito Licostratos e em habrayco Gabatha, ja casi ora sexta em a sesta‑feyra, disse aos judeus: "Vedes aqui vosso rey?"; e elles bradavam: "Tira-o, tira-o diante de nós e crucifica-o", e disse‑lhe Pilato: "Vosso rey crucificarey?"; responderam os pontifices: "Nam temos rey senam Cesar". E vendo Pillato que nam aproveytava o desejo que tinha de o livrar, e que avia alteraçam e hos gritos e vozes creciam cada vez mais, tomou agoa e lavou as mãos diante do povo e disse: "Inocente e sem culpa sam eu do sangue deste justo; vede vós outros o que vos cumpre!"; respondeo todo o povo e disse: "O sangue dele venha sobre nosoutros e sobre nossos filhos". Entam leyxou-lhe Pillato a Barrabas e entregou-lhe a Jesu Christo pera que o crucificassem; tomaram-no entam hos judeus e depois de bem escarnecido e cuspido, desvestiram-lhe ha vestidura de purpura e tornaram-lhe a vestir seus vistidos, e tiraram-no fora, e poseram-lhe a cruz has costas, e levavam dous ladroẽs pera com elle serem  crucificados. E em sayndo polla porta da cidade encontraram com hum homem que se chamava Simão Cireneo, e tomaram-no pera que ajudasse a levar a cruz, o qual a levou pollo cabo detras de Jesu. E seguia-o muyta gente do povo, e muytas molheres que choravam e o pranteavam, e virou-se o Senhor a ellas e disse-lhe: "Filhas de Jerusalem, nam choreis sobre mi, mas choray sobre vosoutras mesmas e sobre vossos filhos, porque sabey por certo que viram dias em os quaes diram: "Bem aventuradas as entranhas e os ventres que nam conceberam, e hos peytos que nam deram leyte. E entam começaram de dizer aos montes "Cahi sobre nós outros", e aos outeyros "Cubri-nos"; e se no tronco verde fazem ysto que faram no seco?". E veo ao lugar dito Calvario, e em hebrayco Golgotha que he Monte Calvario, e davam-lhe a beber vinho mesturado com fel, como gostasse nam no quis beber. E ahi o crucificaram e com elle dous ladroẽs o hum à parte  dereyta e ho outro à esquerda, e Jesu no meyo. E foy comprida a profecia que dizia "Com hos ynicos e malvados foy contado"; e Jesu dizia: "Padre, perdoa a estes que me crucificão porque não sabem o que  fazem". E escreveo Pilato hum titolo e pô-lo sobre a cruz, e era nele escripto "Jesu nazarenum rey dos judeus". E este titolo leram muitos, porque o lugar onde era crucificado Jesu era acerca da cidade, e era escripto em letras hebraycas, gregas e latinas, e diziam a Pilato os pontifices dos judeus: "Não escrevas rey dos judeus", mas que elle dezia "Rey sam dos judeus"; respondeo Pilato: "O que escrevi, escrevi". E os que passavam diante de Jesu brasfemavam-no e faziam-lhe geytos com as cabeças e deziam-lhe: "Goay de ti; tu es o que avias de destruyr o templo de Deos e em tres dias o avias de tornar a edeficar, salva poys agora a ti mesmo, e se filho de Deos es dece-te agora da cruz". E por semelhante os principes dos sacerdotes com os letrados e mays anciãos o escarneciam antre si e diziam: "Aos outros há feitos salvos e a  si mesmo não pode salvar. Se he rey de Israel deça-se agora da cruz e creremos nelle, e pois há confiado em Deos livre-o agora se quiser, que elle disse "Eu sam filho de Deos". E os ladrões que estavam crucificados com elle dizia hum brasfemando dele: "Se tu es Christo filho de Deos salva a ti mesmo e a nós outros"; respondeo o outro reprehendendo-o: "Tu nam temes a Deos sendo condenado aa morte, porque nós outros justamente padecemos segundo nossos merecimentos e este nenhum mal há feyto"; e disse a Jesu: "Senhor, quando vieres em teu reyno lembra-te de mi"; e disse-lhe Jesu: "Em verdade te digo que oje seras comigo no Parayso". E como jaa os cavaleyros o ouvessem crucificado tomaram suas vestiduras e fezeram-nas em quatro partes a cada cavaleyro sua parte. E a roupa principal era sem custura toda por cima tecida, e disserão antre si: "Nam na cortemos nem partamos, lancemos sortes cuja seraa”, por que fosse ha escriptura comprida, que diz "Partiram antre si minhas vestiduras e sobre minhas vestiduras lançaram sortes"; e os cavaleyros eram os que o fizeram. Estavam acerca da cruz de Jesu Maria sua madre e a yrmaã de sua madre Maria Cleofee, e Maria Madalena; e como visse Jesu a madre com o discipolo que ahi estava que elle amava disse a sua madre: "Molher, vees ahi teu filho"; e de si disse ao discipolo: "Vees aqui tua madre"; e des aquella ora a recebeo o descipolo por sua; e da hora da sexta atee a ora da noa foram feytas trevas em toda a terra. E acerca da ora da noa, disse o senhor com grande voz: "Heli, Heli lamazabatani", que quer dizer "Meu Deos, meu Deos porque me desemparaste?"; e alguns dos que ali estavam e o ouviram diziam: "Chama  a Elias"; e outros diziam: "Deixay-o, vejamos se vem Elias a o livrar". E sabendo Jesu que tudo era comprido, por que a escriptura fosse acabada disse: "Ey sede". Era ahi posto hum vaso cheo de vinagre; e eles tomaram hũa esponja chea de vinagre posta em hũa cana e apresentaram-lha; e como o gostou disse: "Consumado he"; e cramando com grande voz disse: "Padre, em tuas mãos encomendo meu espirito"; e yncrinou a cabeça e deu o espirito. E nesse ponto o veeo do templo se rompeo d' alto abayxo em duas partes, e ha terra toda tremeo, e has pedras se partiram por meo e has sepulturas se abriram, e muytos corpos de sanctos que eram defuntos ressuscitaram e sayram das sepulturas depoys da ressorreyção, e vieram aa santa cidade e apareceram a muitos. E ho Centurio e hos que com elle estavam guardando a Jesu, visto o terremoto e as cousas que se fezeram temeram muyto; e o Centurio disse: "Verdadeyramente este filho de Deos era". E todos hos outros que eram presentes a ver este feito, vendo o que aqueceo tornavam-se ferindo seus peitos; e estavam todos seus conhecidos longe delle, e has molheres que o seguiam de Gallilea olhavão ysto. Os judeus porque era festa e hos corpos nam ficassem em a cruz ao sabado (que aquelle dia antre si era grande) rogaram a Pilato que suas pernas fossem quebradas e os tirassem dahi. Vieram entam os cavalleiros e primeiro quebraram as pernas dos que com elle erão crucificados, e a Jesu como viessem viram-no jaa morto e nam lhe quebraram as pernas, mas hum dos cavaleiros com sua lança abrio seu costado e logo sayo sangue e agoa; e o que o vio deu testemunho e seu testemunho he verdadeyro, e elle sabe que verdade diz por que vós creaes; e ysso foy feyto por que a escriptura fosse comprida "Osso nam quebrareis delle"; e outra escriptura que diz "Veram em elle que trespassaram". Depois veo Josepe de Abarimatia homem principal na corte, rico, regedor, e justo, que esperava o reyno de Deos, e nam avia consentido nem cabido no conselho e autos dos judeus, que era discipollo de Jesu oculto por medo delles, e ousadamente pedio a Pilato o corpo de Jesu. E aprouve a Pillato depoys que soube por o Centurio como jaa era morto, que aynda Pillato cuydava que era vivo. Veo entam elle e descravou da cruz e tirou dahi ho corpo de Jesu. E veo mays Nicodemos o que veo a Jesu de noyte e trouxe consigo quasi cem livras de hũa mistura de  myrrha e aloes; e tomaram o corpo de Jesu e untaram-no e emburilharam-no em lençoes novos com os yngoentos aromaticos como he aos judeus costume de enterrar. Era ahi em o lugar donde foy crucificado hum orto, e em o orto hum moymento de pedra novo, em o qual ainda nenhum nam fora posto, e porque a festa dos judeus era acerca, poseram no moymento o corpo de Jesu. E as molheres que o aviam seguido de Galilea viram o moymento e como nelle ficava seu corpo sepultado; e tornadas a suas pousadas aparelharam especias odoriferas e yngoentos, e ao sabado calaram-se segundo o mandamento da ley. E ao outro dia sabado vieram os principes dos saçerdotes, e os fariseus a Pilato e disseram-lhe: "Senhor, nós outros nos acordamos que aquelle enganador disse: "Eu ressuscitarey depois de tres dias"; manda pois guardar seu sepulchro atee o terceiro dia por que por ventura nam venham seus discipolos e furtem o corpo e digam ao povo que há ressuscitado dos mortos e sera entam o derradeiro error pior que o primeiro"; disse-lhes Pilato: "Jaa vós outros tendes postas guardas; hi e guarday-o como vos parecer" e assi se foram elles e poseram derredor suas guardas, e sellaram com sinetes ho moymento.

Deo gratias

Nenhum dos evangelistas decrara que molher era aquella que derramou o inguento sobre a cabeça de Jesu por onde Judas se escandalizou; e tem por certo ser a Madanella.

Nem se Jesu decrarou a Nossa Senhora a quinta-feira da cea quando dela partio que hia a padecer.

Nem dizem o nome do homem senhor da casa onde ceou com seus discipulos e foy agasalhado com tanto amor, e onde lavou os pees aos apostollos, e onde Nossa Senhora com todolos discipulos estiveram escondidos depois da paixão atee a vinda do Espirito Sancto, homem pera ser bem nomeado.

Nem em nenhũa das paixoẽs falam no lavar dos pees que foy depois da cea falando na cea; Sam João diz no mandato.

Nem dizem quem era o mancebo que seguia a Jesu na prisam, e vinha despido com hum lençol sobre as carnes, e que o prendiam e lhe deixou o lençol e fogio nu; e diz-se que era hum mancebo ortellam do orto que jazia ja e aa revolta se levantou com o lençol sobre si.

Nem decrara nenhum delles se levou Christo baraço ao pescoço, nem se lhe foram as mãos atadas detras ou a diante.

Nem da maneira que esteve preso em casa de Cayfas aquela noyte, nem de quantos açoutes lhe deram, nem com que foy açoutado  e se foy atado aa colũna ou solto.

Nem da coroa dos espinhos que taes eram nem quanto entravam pola cabeça.

Nem menos da Veronica fazem nenhũa menção.

Nem quando Jesu foy crucificado se ho cravaram na cruz, no cham se no aar.

Nem se foram desmembrados seus braços com cordas por nam chegar a mão ao furo da cruz.

Nem se esteve de todo descuberto na cruz ou se teve algũa cousa cuberta.

Nem do tempo que Nossa Senhora chegou a elle se foy depois de ser crucificado se antes.

Nem do sudairo do lençol em que foy emburilhado no sepulchro se ficou ali a fegura como se cá tem em tanta veneraçam, e estaa em Saboya.

Nam falando estas cousas cada hũa em sua paixam deixa de falar em muitas outras; que huns contam hũas cousas que os outros nam dizem; e Sam Joam estando presente ao pee da cruz nam falla dos terremotos e cousas que aqueceram. E ele soo diz como Nosso Senhor o encomendou a sua madre e lho deu por filho; e elle soo diz do tornarem atras e cayrem em terra na prisam, e assi outras cousas em que os outros nam falam, e Sam Lucas conta muytas cousas particulares em que algum dos outros nam fala; e elle soo diz que apareceo a Nosso Senhor no orto hum anjo que o confortou; e elle soo que suou hum suor que era como gotas de sangue que cayam em terra e outras muytas cousas. E assi Sam Mateus conta muy meudamente do terremoto e sinaes, e outras cousas, e assi Sam Marcos. E verdadeiramente o que cada hum deixa de dizer nam pode ser sem grande misterio. E porém Sam Mateus e Sam Marcos se conformão mais que os outros.

Deo gratias

O SERMÃO DOS TRES REYS MAGOS

Começa-se o sermão sobre a vinda dos sanctos tres Reis Magos. Foy visto e examinado polos deputados da sancta Inquisição.

O SERMÃO DOS TRES REYS MAGOS

Senhor:

Porque são muyto devoto dos bem aventurados tres Reys Magos ouço sempre suas pregações, e neste anno e em outros achey muy diversas oppiniões em diversos pregadores, e todos ou os mais delles quiseram antes mostrar suficiencia em absolver duvidas e quistoões que devotamente contar em o sagrado Evangelho da maneira que passou; e porque, senhor, ouvi muytos, tomando ho que pude de huns e outros, determiney escrever ho mays em breve que pude esta devota historia nesta maneyra seguinte.

Os bem aventurados sanctos tres Reis Magos, Gaspar, Melchor, e Baltesar, claro e muy provado estaa serem reys e muy grandes sabedores, e terem ha prophecia de Balão e outras à cata da vinda do Mexias e muita esperança de em seus dias ho verem; e por ysso muytas vezes vigiavam, e sendo como eram reys nam aviam d' estar juntos, porque aynda que seus reynos fossem pequenos, os dous cabos  viveram alongados hum do outro, e o do meyo estaria mays preto dambos; e de assi estarem longe  he boa prova ser hum delles baço e hos dous muy alvos, que de homens brancos a pretos distancia de terras há; e por nam estarem juntos e estar cada hum em seu reyno ha estrella juntamente em hum momento apareceo a todos tres, e em lhe aparecendo per ynspiração divina lhe foy revelado o mysterio; e logo com muita pressa e sem dilaçam algũa cada hum per seu caminho partiram e a estrella os guiava a todos dereitos a Jerusalem; e assi guiados della andaram em breve tempo tanto caminho que foy millagrosa cousa, e todos tres em hum ponto se ajuntarão acerca da cidade de Jerusalem sem saberem huns dos outros, e maravilhados elles e suas companhas que eram muytos, e perguntando huns ahos outros ao que vinham. Quando todos tres acharam que seu caminho fora e era buscar o filho de Deos, e que na mesma ora que a estrella apareceo a hum apareceo a todos, foram em grande maneyra consolados e muy alegres e se ajuntaram, e juntos entraram em Jerusalem dizendo: "Onde he ho que he nacido rey dos Judeus? Vimos em verdade a sua estrella em oriente e vimos com dões a o adorar".

E dizerem que viram a estrella em ho oriente, era por ser muy longe de Jerusalem, e tambem porque esta estrella nam era como as outras porque foy novamente formada do aar; e era de muito mayor resplandor que sua claridade na metade do dia; era muy grande, e parecia muyto bayxa no aar, e nam andava como has outras que continuadamente andam em roda do oriente pera ho ponente; e esta hora andava e ora não, que quando hos reys comião ou dormiam ella estava entam queda, e quando elles andavam andava ella direyta diante delles e não em roda como has outras; e tanto que fez seu officio em hos guiar como  guiou, foy logo desfeyta em aar.

E ouvindo ysto el-rey Erodes porque era rey tirano, cruu e de maa condição, e tinha ho reyno como não devia foy muy turbado e assi todos os da cidade com elle não tendo rezam pera ysso poys que reynando rey não lhe diziam que era nacido outro bom, e tambem se trovarão el-rey e hos mays da cidade porque com a vinda dos boõs não podem folguar hos maos. E fez então el-rey Herodes ajuntar todos hos principes dos saçerdotes e leterados da ley, e lhe perguntou a todos onde Christo avia de nacer; disseram-lhe que em Belem, terra de Judea, que era profetizado; e sabido ysto delles secretamente mandou pidir aos reys que fossem a sua casa e delles se enformou do tempo em que ha estrella lhes aparecera e de todo ho mais que pôde, e os encaminhou pera Belem pedindo-lhe muyto que fossem, e deligentemente soubessem do menino, e que depois de o verem e o adorarem tornassem por ahi e lho dissessem pera elle o yr tambem adorar; e ysto maleciosa e falsamente com tençam de o matar.

Despedindo-se os tres reys delle e saidos nam vendo a estrella que atee li os guiara e lhes avia desaparecido ficaram com muita tristeza e grande cuidado e sem saberem o que fizessem pois que perderam tal guia; e estando assi enleados e agastados a estrella lhe tornou aparecer, e com grande contentamento a tornaram a seguir yndo dereita a Belem; e foy muy grande misterio que sendo sua vinda de tanto espanto e de temor, e os judeus desejando muito a vinda do Mexias e vendo que o tempo era chegado e ouvindo aos reys que era nacido, nam ouve homem em todo Jerusalem que fosse apos elles a ver e saber onde hiam e ho que nisso faziam.

E caminhando assi muy alegres chegaram aa cidade de Belem; e aa porta da cidade de  fora estavam hũas casas velhas e pardieyros antiguos que serviam de estrebarias e recolhimento de bestas de lavradores e homens de fora pobres quando aa cidade vinham, nas quaes estrebarias ha Virgem Maria Nossa Senhora estava, e ahi parira ho seu sacratissimo filho Jesu Christo Nosso Senhor Deos e homem verdadeyro por ser tanta sua pobreza e ha pouca virtude dos da terra ou por Deos assi o querer, que nunca em Bethlem achou hũa casa por muy pequena que fosse em que ha quisessem aguasalhar e recolher pera nella poder parir, e assi desemparada pobre em terra alhea acheguando de caminho, se foy meter no luguar onde metiam has bestas por nam poder mays fazer; e chegando hos bem aventurados reys guiados pella estrela às muy pobres casas e estrebarias, ha estrella esteve queda, deitando todos seus rayos sobre a casa, de que elles ficaram muy espantados por ser tam pobre luguar que esperavam que por ser rey ho achassem em reaes paços com muy grandissimo estado, riqueza e muytas festas; e cuydando todos nisso,  quanto mays estavam quedos,  tanto a estrella deytava mayores rayos sobre ha estrebaria.

Mandaram  entam hum homem de confiança que entrasse dentro e visse muyto bem quem hi estava; foy e veyo com recado que vira hũa moça muy honesta soo e junto com ella hum boy e hũa mulla; e elles ouvindo ysto, vendo a continuaçam dos rayos da estrella sem nunca se mudarem dali, antes parecia que caya sobre ha casa, deceram-se todos tres e entraram dentro na estrebaria onde a gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora estava com muyto grande receo e temor por ouvir ha muy grande revolta e rumor da muyta gente que junto da casa e de si sentia. Falaram-lhe hos reys com muyta cortesia e ella  assi a elles, e pediram-lhe que lhe dissesse se era casada; disse que si; e tambem se tinha algum filho; e respondeo que tinha; tornaram a pedir que lhe dissesse se nisso nam tinha pejo de quanta hidade era, e a que horas nacera; a bem aventurada e gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora com muyto grande honestidade e hos olhos postos no chão lhe disse que avia treze dias que ho parira em hũa sesta-feyra aa hora de mea-noyte; e vendo elles como aquella era ha propria hora em que ha estrella lhe aparecera allumiados mays do Esprito Sancto com mayor acatamento lhe disseram como que ha conheciam: "Senhora, por vossas muy grandes virtudes nos fazey tanta merce que nos mostreis esse vosso filho, porque ho desejamos ver mays que cousa deste mundo e vimos de muy longes terras nam a mays que a buscá­-lo". O que ha sagrada Virgem Maria Nossa Senhora com muyto boa vontade lhe concedeo, e allevantou-se loguo do muyto pobre lugar onde assentada estava e foy-se ao presepe em que ho minino jazia lançado na palha e feno, e cuberto com pobres panos antre ho boy e ha mulla que com seus bafos ho estavam aquentando pello muy grandissimo frio que fazia e descobrio-o e tomou-o em seus muy sanctos braços e mostrou-lho. E elles em o vendo com muy grande fervor de fee, de amor, e humildade se lançaram no chão debruçados e assi o adoraram e conheceram por filho de Deos; e levantados e abertos seus thesouros lhe vieram oferecer cada hum per si con tanto acatamento quanto a Deos pertencia, ouro, encenço e myrrha reconhecendo-o e confessando por Deos, por rey, por homem mortal e o honrraram com almas e hos corpos e fazendas: com almas em ho adorarem, com hos corpos em se debruçarem, com has fazendas em lhe oferecerem dões.

E acabado assi de offerecerem com muy grandissima reverencia e muy grande fee se despediram da Virgem Maria Nossa Senhora por Deos assi ho ordenar (que elles alli folgaram d' estar sempre) e se foram apousentar na cidade com muyto grande alegria, e tanto contentamento, quantos sam hos contentamentos que Deos daa aos que verdadeiramente o buscam e o acham. E aquella noyte estando dormindo lhe apareceo hum anjo em sonhos, e lhe disse que nam tornassem a el-rey Herodes; e elles per outro caminho se tornaram a seus reynos; e dizem alguns doutores que vindo em treze dias e trazendo muitos cavalos e dromedayros que andam muyto, era tam longa ha jornada que tornaram em seys meses.

Ha gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora ficou com muyto grande prazer, por ver assi tres reys gentios de tam allongadas terras em tam breve tempo convertidos aa nossa sancta fee catholica, e virem adorar e crer ho seu muy sacratissimo filho, dando por ysso muytas ynfindas graças a Nosso Senhor Deos, e recolheo ella e Joseph has riquezas que hos reys lhe offereceram; e alguũs tem que  com ellas se mantiveram os sete annos que no Egipto andaram e outros tem que tudo logo deram d' esmolla, porque no oferecer do templo offereceo como pobre, e ho que ella  fizesse ysso seria ho milhor poys era feyto por ella e ordenado per Deos. E os reys partidos Nossa Senhora ficou na pobre estrebaria com tam grande desemparo atee se comprirem os quarenta dias em que dalli se foy a Jerusalem oferecer o seu bento filho ao templo.

Nosso Senhor quis nacer em tal lugar e tam pobre pera nam estimarmos muyto as riquezas, e sabermos que ally onde elle estava com tanta pobreza era adorado dos anjos do ceeo, e dos reys da terra; e em nacendo chorou por nós, pera que nós por amor delle choremos nossos pecados, e nos guardemos de sobejos prazeres e deleytações; começou loguo a aver frio porque na ora que naceo quis padecer por nós outros pois por nós veyo a ser homem e tomou humanidade, tristeza, fome, miserias, e morte por nos salvar, dando-nos tambem exemplo que quando tivermos adversidades e padecermos paixões as soframos com paciencia por amor delle pois elle tanto sofreo por nós; jouve com tanta humildade em  hum presepe muy baixo por nos livrar de soberba, e pompas e vaydades; esteve antre o boy e a mula que sam animais tam bayxos porque alli se mostrou sua muyta grande alteza; quis primeyro mostrar-se aos muy pobres pastores que vigiavam seus gados, pera os pastores das almas vigiarem sobre elas; naceo na noyte muy escura que foy clara como ho dia por manifestar quem era a quem o quisesse ver; esteve em aquelle pobre lugar quarenta dias por mostrar quam aceyto he a elle este numero de quarenta, que jejuou quarenta dias e esteve quarenta oras no sepulchro, e depois da ressurreyçam andou quarenta dias no mundo atee ho dia da sua sancta assençam em que subio aos ceeos, e em significaçam disto Moyses quando lhe foy dada a ley jejuou quarenta dias e Elias outros quarenta. E a Virgem Nossa  Senhora se de todas estas payxões e outras que entam sentia com ellas de mestura tinha os mores contentamentos que outra molher algũa teve nem menos teraa, que ser madre de Deos e parir ficando virgem sem dor mas muyto prazer, muyto grande alegria, tambem sabia que tudo o que o filho padecia era por elle ho querer por  salvação da geraçam humana, porque elle quis ser homem e sofrer o que sofreo.

Se ysto parece bem a vossa merce dee as graças a Nosso Senhor donde todo bem procede, e assi às pessoas a quem o ouvi e de quem o aprendi; e nam lhe satisfazendo ha culpa torne a mi, pois sem saber o que digo, escrevo ho que nam entendo. Esta festa, senhor, dos Reys he muyto principal na Sancta Ygreja de Deos, porque neste sancto dia se ajuntou a gentilidade e a vio com ela e por estes tres reis como precuradores de todollos gentios, e  em nome de todos se recebeo nossa sancta fee catholica e elles foram recebidos na Ygreja; e neste dia dos Reis que sam seis dias de Janeyro foy Nosso Senhor Jesu Christo baptizado e neste mesmo dia fez o primeiro milagre de tornar agoa em vinho; e por estas tais tres cousas he este dia tam festejado na Sancta Ygreja com tanta veneraçam.

Beijo, senhor, as mãos a vossa merce a XV de Janeiro de mil e quinhentos e trinta e seys annos.

Deo gratias

MISCELLANEA DE GARCIA DE REESENDE,
E VARIEDADE DE HISTORIAS, COSTUMES, CASOS E COUSAS
QUE EM SEU TEMPO ACCONTESCERAM

MISCELLANEA DE GARCIA DE REESENDE,
E VARIEDADE DE HISTORIAS, COSTUMES, CASOS E COUSAS
QUE EM SEU TEMPO ACCONTESCERAM

Prólogo

Senhor:

Has perdas, nojos, doenças

e fortunas tem remedio

mas quem deixa perder tempo

nunca ho mais pode cobrar;

eu naqueste em que me vi

descontente e ocioso

e fora de ocupações

non de paixões e cuydados

me occupei em cuydar

e recolher aa memoria

has muitas e grandes cousas

que em nossos dias passaram

e has novas novedades

grandes accontescimentos

e desvairadas mudanças

de vidas e de costumes.

Tantos começos e cabos

tanto andar desandar

tanto sobir e descer

tantas voltas maas e bõas

tanto fazer desfazer

tanto dar, tanto tomar

tantas mortes, tantas guerras

tam poucas vidas e pazes

tanto tẽer, tanto non ter

tantos descontentamentos

tantas e vãas esperanças

tanto mal, tam pouco bem

tanto favor desfavor

tanto valer desvaler

tanto plazer, tantos nojos

tam pouco dar por virtudes

tantos falsos e mentiras

tam pouca fe e verdade

tantos soberbos e baixos

tanto saber sem dar fructo

tantos simples e errados

tam poucos hos que acertam

tantos serviços em vão

tanto medrar sem servir

tanto soltar e prender

tantos enganos e modos

tantos bõos sem galardam

e tantos maos sem castigo

conselhos sem caridade

ingratidam sem razam

cobiças, pouco amor

e amizades fingidas

tam perseguida ha Igreja

de christãos mais que de mouros

tanto trabalhar por vida

tam pouco por bem morrer

tantos avaros tiranos

tantos cuydados do mundo

tantos descuydos de Deos

por cousas que ham d' acabar

e quem verdadeiramente

estas todas bem sentir

veeraa que em muitos tempos

nunca taes accontesceram.

Quando, senhor, me lembrou

tãmanho numero dellas

e tam grande esqueecimento

que poucas veemos escriptas,

me paresceo que erraria

non has põer em lembrança

e tambem outras pequenas

que sam dignas de notar.

E tanto foy ho desejo

que tive de ho fazer

que me esqueceo de quan pouca

sofficiencia tinha.

E porque tãmanhos casos

me fezeram tẽer em pouco

quanto ho mundo agora pode

e quanto pode poder

determiney de soffrer

de ouvir antes glosadores

que deixar escurecido

ho que devia ser claro;

e pois muitos gostam veer

libros, fabulas antiguas

a que por auctoridade

dos escriptores dam fee

muito mais devem folgar

de leer estas, que tam certo

todos sabem e algũos viiram

e esqueecidas estavam;

mas ha natureza he tal

que poucos querem ouvir

nem aprender, nem saber

cousas certas, nem verdades

e mais veendo esta obra

escripta por quem caresce

de lingoajem, de duçura,

de saber, graça, eloquencia,

e em estilo tam baixo

que se vossa alteza soo

com seu favor lhe non val

bem em vão foy meu trabalho.

Começa ha obra

1

Vimos taes cousas passar

em nosso tempo e hidade

que se se ouviram contar

por mentira e vaydade

se ouveram de julgar;

e pois has tẽemos sabidas

estam tam esqueecidas

que nam lembram a ninguem

veja vossa alteza bem

que viimos em nossas vidas.

2

Vimos ho turco tomar                                     Ho imperio de Costantinopole

gram parte da christandade                             e o de Trapisonda, e dizem

muitos mouros sobjugar                                  que XXVIII regnos.

veemos seu senhorear

sem tẽer contrariedade;

tem dous imperios ganhados

e muitos regnos tomados

e Rodes por derradeiro

faz justiça por inteiro

os moores castigados.

3

Cousas muito d'espantar

tomando Rodes passou,

deixo quanto ho conquistou

mas terra assi fez juntar

que mais que os muros alçou;

dalli dentro lhe lançavam

quantos mortos lhe matavam

e de peste lhe morriam

e fumos que assi fediam

que hos de dentro se afogavam.

4

He muy gram conquistador

tem gram força, tem verdade

quem se lhe daa per vontade

com quanto tem, com favor

deixa em sua liberdade;

aos que toma pellejando

mata-hos nunca leixando

cousa viva no logar

isto lhe faz conservar

tantas terras, tanto mando.

5

Elle soo tem mayor renda

que os reys da christandade

paga junta sem contenda,

trazida sua fazenda

com muita seguridade;

tem quatorze contos d'ouro

que mette em seu thesouro

cada ãno sem mingoar peça

todos pagam por cabeça

ho christão, judeu e mouro.

6

Por culpa dos reis christãos

se faz tam grande senhor

que nam pode ser mayor

pois nam tem par'elle mãos

nem entre si paz e amor;

sam homicidas no mal

que faz, salvo Portugal

que por ser tam desviado

a  hũo mal tam mal olhado

non pode valer nem val.

7

Que ja sendo mais a jecto

tal empresa do que jaz

elle ha tomara a pecto

como em Africa tem fecto

e contino em Asia faz;

e toma villas, ciidades

regnos e cõmunidades

com victoriosa mão,

este he vero christão

por seu esforço e bondades.

8

Constantinopla fundou

imperador Constantino

filho de Elena que achou

ho lenho sancto divino

da cruz que tantos salvou;

ho imperador coytado

Constantino era chamado

e ha mãy tambem Elena

que ho imperio com gram pena

perdeo e foy degollado.

9

E vimos ho Tamorlam

com grandissimo poder

tam gram senhor se fazer

que tinha de sua mão

reys grandes a seu querer;

viimos sua crueldade

gram tirania, maldade

sobir em tam grande estado

que era de muitos chamado

açoute da christandade.

10

Ho gram cam tambem mandou

grandes gentes, muitas terras

viimos quanto prosperou

e quantos desbaratou

em muitas e grandes guerras;

como foy obedescido

de tantos e tam subido

tam temido e acatado

em breve tempo acabado

foy e ja non he sabido.

11

E viimos por eleiçam

como papa se eleger

por vozes ho gram soldam

de renegado christão

se avia de fazer;

quantos christãos renegaram

nossa fe e se lançaram

no Cayro com vãidade

de alcançar tal dignidade

e has almas condemnaram!

12

Viimos tambem levantar

sem ninguem, se non por si

ho xeque Ismael Sophi

e por amor adjuntar

gente, mais que nunca ouvii;

deste mais a tento falo

duzentos mil de cavallo

traz e muitos reys consigo

he dos seus tam grande amigo

que ho mais, que he muito, callo.

13

Estes infiees pagãos

possuem mares e terras

todo bem lhes vem aas mãos

veemos entre os christãos

pestes, fames, grandes guerras;

paresce que sam melhores

pois com todos seus errores

teem mais, senhoream mais

os juyzos humanaes

non penetram taes primores.

14

Vimos ho muy poderoso

rey de Napole e Aragam

Dom Afonso virtuoso

catholico e grandioso

de muy real condiçam;

em nobreza nomeado

em esforço signalado

prudente, gram vencedor

humano, merescedor

de ser entre reys louvado.

15

Tam grandes fectos fazer

viimos em França ha Poncella

que non sam cousas de creer

nem se viram antes della

nem creo que se ham-de veer;

em dous ãnos de hũo villão

viimos duque de Milam

pessoa muy singular

prosperamente acabar

Esforça grande capitam.

16

Viimos seu filho que herdou

que foy duque Galeaço

que Joam Andree deshonrou

de que Joam Andrre tomou

ha vingança em breve espaço;

na See beisando-lhe  ha mão

lhe deu hũa petiçam

e em ha leendo tirou

de hũa daga e ho matou

e comprio sua tençam.

17

Ludovico seu hirmão

seus filhos mandou matar

com peçonha por herdar

foy duque com tal auçam

viimo-lo mal acabar,

que el-rey de França ho prendeo

e em gayola ho metteo

de ferro forte e fechado

onde esteve deshonrado

e assi preso morreo.

18

Viimos que hũo cavalleiro                                Dom Alonso de Monroy

d'Alcantra cõmendador                          mestre d’ Al cantara.

por lhe ho meestre-mayor

em hũas cãnas e terreiro

fazer hũo soo desfavor,

contra ho meestre se ergueo

e em batalha ho venceo

ho meestrado lhe tomou

e por meestre se alçou

meestre foy, mestre morreo.

19

Ho meestre tam gram privado                          Dom Alvoro de Luna.

que Castella assi mandou         

condestable prosperado

que tanto senhoreou

viimos morto degollado;

e tambem em Portugal

viimos outro caso tal                            Dom Fernando duque de Bragança.

em outro muy gram senhor

de tal poder e valor

que non tinha seu ygual.

20

Muy poderoso e servido

el-rey Dom Enrrique era

muy gram rico, muy querido;

fora muy obedescido

se governar-se soubera;

mas viimos-lhe tanto dar

e tanto deixar tomar

hos grandes toda Castella

que elles eram hos reys della

elle sem ter que reynar.

21

Vimos seu irmão mais moço

por rey ser allevantado

dos grandes muy agoardado

todo ho reyno em alvoroço

e el-rey mal acatado;

viimos este grande estado

muy asinha derribado

e sem porquê, sem vergonha

ho mataram com peçonha

ante de hũo ãno accabado.

22

Viimos el-rey Dom Fernando

rey de Sicilia e mais nam

ser tam grande capitam

e crescer tanto seu mando

que ganhou logo Aragam,

depois Castella e Liam

com guerras e devisam

Graada e Napoles tambem

e Navarra, e em Tremecem

tornou villas e Ouram.

23

Este foy ho que lançou

hos judeus e mouros fora

de Castella, e ordenou

Inquisiçam e formou

ha Hirmandade tee agora;

e tornou os tres mestrados

pera si e hos estados

dos muy grandes abaixou

hos reynos pacificou

que achou muy levantados.

24

E viimos ha poderosa

raynha Dona Iabel

tam prudente, virtuosa

tam real, tam grandiosa

governar bem per livel;

bem tevera que fallar

de molher tam singular

que nam foy tal haa mil annos

raynha dos castelhanos

muito digna de louvar.

25

E viimos el-rey Luys

de França muito mal quisto

cruo, avaro, muy provisto,

fazendo quanto mal quis

morrer bem velho foy visto

e seu filho muy amado

gram liberal, esforçado

Carlos, virtuoso, humano                                 Elle e tres filhos morreram juntos em

com tres filhos em hũo ãno                              hũo año, e ficou ho reino a el-rey Luis

morreo moço, mal logrado.                              seu primo.

26

El-rey Dom Afonso andou                                Quando tomou Alcacer Ceguer, quando 

seys vezes fora da terra                                 lá tornou outra vez, foy a Nossa Senhora

Castella, Feez conquistou                               d’Aguadelupe a ver-se com el-rey Dom

em batalhas pellejou                                      Anrique, foy tomar Arzella e Tanger,

seu sogro matou em guerra;                            entrou em Castela, e foy a França.

depois veo e morreo

na casa em que nasceo

em Sintra onde accabou

seus trabalhos e deixou

gram filho que sobcedeo.

27

Viimos el-rey Dom Joam

muy cristão, muy esforçado

virtuoso em perfeiçam,

no mundo muy estimado

de muy gram veneraçam,

de seus povos muy querido

e dos grandes muy temido

que eram contr'elle adjuntados

os quaes vimos justiçados

e elle por sancto avido.

28

Tinha livro em qu'escrevia

serviços, merescimentos

e nunca distribuhia

sem ver a quem mais devia

e hos mais justos e isentos;

muitas vezes deu officios

comendas, e beneficios

a homens muy descuydados

e delle bem alongados

por serem bõos e servicios.

29

Viimos as festas reaes                          No anno de CCCCXC.

que em Evora foram fectas

nam se viiram outras taes,

tam ricas, nem tam perfectas

nem gastos tam desiguaes;

que multidam de borcados

chaparias e borlados!

que justas, momos, torneos!

que touros, cãnas, que arreos!

que banquetes esmerados!

30

E que sala da madeira

que ficaraa por memoria!

real em tanta maneira

de perfeições tam inteira

de tanta mundana gloria!

touros inteiros assados

nao, batees apendoados

per ingenho nella entravam

entremeses que espantavam

huns ydos, outros entrados.

31

Que raynha, que gram rey!

que principe singular!

princesa, damas sem par!

e dos nobles que direy!

do seu amor, do gastar,

das merces que el-rey fazia,

dos poovos quanta alegria!

como tudo peresceo!

que triste morte morreo

ho principe em hũo soo dia!

32

Era de dezaseis annos                           No ãno de CCCCXCI a XIII de Julho.

e casado de octo meses

perfecto entre hos mundanos

muy quisto dos castelhanos

descanso dos portugueses;

hũa triste terça-feira

correndo hũa carreira

em hũa cavallo cahio

nunca fallou, nem bollio

e morreo desta maneira.

33

Por sua gram fermosura

foy no mundo nomeado

angelica criatura

nunca foy tal desventura

nem principe tam amado;

em Castella e Portugal

foy tam sentido seu mal

tam chorado em toda Espanha

que foy tristeza tamanha

que se nam vio outra tal.

34

Vii a princesa tornar

bem a reves do que veo

cousa muito d' espantar

tam gram pressa, tal mudar

do tempo, tam gram rodeo;

entrou ha mais triumphosa

mais real, mais grandiosa

que nunca se vio entrada

sahio muy desesperada

muy triste, muy chorosa.

35

Entrou com mil alegrias

sahio com grandes tristezas

tanto ouro e pedrarias

nam se veo em nossos dias

nem taes gastos, taes riquezas;

has galantes envenções

se tornaram em paixões

hos borcados em sayal

ho prazer grande geeral

em nojos, lamentações.

36

Viimos Portugal, Castella                                 El-rey Dom Afonso, ho principe

quatro vezes adjuntados                               Dom Afonso, ho rey Dom Manoel,

por casamentos liados                                    ho principe Dom Miguel.                         

principe natural della

que herdava todos reynados;

todos viimos fallescer

em breve tempo morrer

e nenhum durou tres annos:

portugueses, castelhanos

non hos quer Deos juntos ver.

37

Principes da christandade                                No ano de 1536, nem ho Papa nem ho

Papa, imperador, reys                                     imperador nem rey algum da christandade

veemos de pouca hidade                                 chegava a cinquoenta anos.

e com muita autoridade

governar per suas leys;

todos quantos elles sam

na melhor hidade estam

na mayor força da vida

Deos lha dê muito comprida

em tudo perfeiçam.

38

Viimos em Bruges prender

el-rey Maximiliano

toda ha ciidade por creer

que lhe queria fazer

com sua gente algum dãno;

muitos dos seus degollaram

e a elle nam ousaram

por viir logo com rigor

seu pay ho imperador

com medo seu ho soltaram

39

Viimos a guerra de Graada

nunca se vio outra tal

ha gram raynha esmerada                               Ha raynha Dona Isabel.

de damas acompanhada 

andava no arrayal;

assi aas pellejas hia

a quem vantagens fazia

dava logo galardam

entre has damas no seram

merces, honras, recebia.

40

Quem nam seria valente

d'esforçado coraçam

estando sempre presente

raynha tam excellente,

damas de gram perfeiçam!

ha raynha soo tomou

Graada e ella ganhou

ha honra de tal victoria;

ella meresce mais gloria

que quem muito pellejou.

41

Tambem os mouros fezeram

muitas e grandes finezas

muito grandes gentilezas

e se ho reyno perderam

nam foy por suas fraquezas;

hũo soo quis a el-rey matar                                    Foy ferir aho senhor Dom Alvoro de

como Scevola foy errar                                           de Portugal, cuydando que era el-rey.

  outros muitos signalados

foram taes, tam arriscados

que sam dignos de louvar.

42

Hũo foy salvar os mininos                                Ho alcayde de Baça Fazerim.

porque corriam hos mouros

outros namorados finos

de honra, de fama dignos

em esforço liões e touros

Cohim foram descercar

por suas damas laa estar

e diziam muy inteiros

por mingua de cavalleiros

nam se há Graada de tomar.

43

Viimos a el-rey Duarte

de Ingraterra hum só hirmão

bom, virtuoso que farte,

leal sem manha, sem arte,

de singular condiçam,

tam bem quisto, tam amado

que el-rey de desconfiado

com medo lhe levantou

que era tredor e ho matou

em hũa pipa affogado.

44

Viimos ha corte e folgar.

que ho Papa Alexandre teve

e ho filho, seu mandar                               Ho duque valentino

seu vencer e triumphar

que nesse tempo sosteve;

matou ho duque de Gandia

senhores de senhoria

quantas terras que tomou

como tam cedo accabou

preso e morto sem valia!

45

       

Hos reys d'Escocia e Ungria.

viimos mortos em batalha

ho duque Charles de hum dia                           Ho duque de Borgonha

de quem França medo avia

foy morto com gram mortalha;

Napoles tam triumphante

tam linda, tam abastante,

viimos assi destruyda

que he toda consumida

sem lembrar ho que foy ante.

46

E viimos em Sanctarem                                   El-rey Dom Joam ho segundo, el-rey

dous principes nomeados                                Dom Joam terceiro nosso senhor e hos

Afonsos, hos paes tambem                              filhos ambos Afonsos.

ambos Joãnes chamados

non em hũo tempo porém;

he cousa para nam creer 

virem ambos a morrer

no mes de Julho e hũo dia

nos quaes tempos non avia

mais filho que sobceder.

47

El-rey Dom Manoel era                                    El-rey Dom Joam, ha iffante Dona Joãna,

filho mais moço do iffante                               ho principe Dom Afonso e tres hirmãos

teve por devisa esphera                                 seus mais velhos que el-rey.

esperou, foy tanto avante

quanto sua honra prospera;

he muito para espantar

que por elle viir herdar

seys herdeiros fallesceram

hos quaes todos ouveram

antes delle, de reynar.

48

Rey e principe se vio                                      Foy jurado em Toledo, no ãno de

de Castella e laa andou                                  CCCCXCVIII.

dii a pouco descobrio

ha India e ha tomou

como todo ho mundo ouvio,

tomando reynos e terras

per muy guerreadas guerras

ganhando toda ha riqueza

do soldam e de Veneza

sobjugando mares, serras.

49

Vimos-lhe fazer Belem

com ha gram torre no mar

has casas do almazem

com armaria sem par

fez soo el-rey que Deos tem;

viimos seu edificar

no reyno fazer alçar

paços, igrejas, moesteiros

grandes, povos, cavalleiros,

vii ho reyno renovar.

50

Outro mundo encuberto                                  Per ho conde-almirante

viimos entam descobrir                                   Dom Vasco da Gama.

que se tinha por incerto

pasma homem de ouvir

ho que sabe muito certo;

que cousas tam grandes sam,

hos da India e Lucatam 

e quam na China espantosas

que façanhas façanhosas

no Brasil e Peru vaam!

51

Nisto que posso dizer

que non seja todo dicto!

tambem non posso escrever

taes cousas sem se fazer

hũo processo infinito;

que grandes povoações!

que grandes navegações!

que grandes reys! que riquezas!

que costumes! que estranhezas!

que gentes, e que nações!

52

Por non parescer a alguem

que sam a mi encubertas

escondidas ou incertas

contarey das que sey bem

que sam publicas, abertas;

muitas sam de admiraçam

sem ordem, regla, razam,

sem fundamento, verdade

senam costume, vontade

natureza e condiçam.

53

E começo em Guinee

e Manicongo por tẽer

costume de se comer

huns a outros, como he

muy notorio se fazer;

compram homens como gaados

escolhidos, bem criados

e matam-hos regateiras

e cozidos em caldeiras

hos comem tambem assados.

54

Por muito mais saborosa

carne das carnes ha tẽem

por melhor e mais gostosa

mais tenra, doce, cheirosa

que quantas na terra veem;

nos que trazem a matar

nam há chorar nem fallar

mas como mansos cordeiros

ou ovelhas, ou carneiros

se deixam espedaçar.

55

Ho conde anda laa cingido

com hũa pelle de carneiro

e por isso he conhecido

ho duque traz guarnecido

hũo rabo de cavallo inteiro;

se parescer cousa estranha

em Italia, França, Espanha

por pelles sam conhescidos

de pergaminho e sabidos

e tambem em Alemanha.

56

Em Benii de antiguamente

tem por costume, por ley

matarem da nobre gente

e principal que he presente

quando quer que morre ho rey,

para lá ho acompanharem

no outro mundo, e estarem

com elle sempre presentes

e assi morrem contentes

sem has vidas estimarem.

57

Dixe al rey hũo fecticeiro

que seu pay guerra fazia

no outro mundo e queria

gente que fosse primeiro

e mais da que elle pedia;

quinze mil homens juntou

degollar todos mandou

em hũo poço por juntos yrem

e a seu pay accodirem,

e desta arte lhos mandou.

58

Hũos aos outros se vendem

e haa muitos mercadores

que nisso soomente entendem

e hos engãnam e prendem

e trazem aos tratadores;

muitos se vendem na terra

se tem hũos com outros guerra

servem-se de bestas delles

pollas non aver entr' elles

a mais terra he chão sem serra.

59

Vem gram somma a Portugal

cad' ãno, tambem aas ilhas

he cousa que sempre val

e tresdobra ho cabedal

em Castella, e nas Antilhas;

por ha terra ser muy queente

anda nua toda ha gente

descalços todos a pee,

muitos delles tem ja fee

tem marfim, ouro excellente.

60

Tem elefantes pasmosos

coobras de grande grandura

lagartos muy espantosos

gatos d’ algalia cheirosos

arvores de grande altura

arroz, inhames, palmeiras

gatos de muitas maneiras

e papagayos de sortes,

cavallos marinhos fortes

que andam fora das ribeiras.

61

Hos do Cabo d' Esperança                               Sam bestiaes e entenden-se per assovios.

ferro sobre tudo estiman

por hũo dardo ou hũa lança

postos em hũa balança

quintaes d'ouro desestimam;

ouro nam tomam nas mãos

e hii mataram christãos

armas, ancoras tomaram

cadeas d'ouro deixaram

e ãnees nos dedos sãos.

62

E na India, em geeral

haa costumes desvairados

hũos dos outros desviados

tanto como bem e mal

entr'elles muy costumados;

terra bem aventurada

de grandes dotes dotada

nam tem peste nem tem fome

ha gente barato come

vive sãa, rica, abastada.

63

Há nella toda avondança

de maças, cravo, canella,

noz, gengibre em abastança,

pimenta de si lança

que se enche ho mundo della;

ambar, almizcre, tincal

lenhe loes, cordial

licorne, ruybarbo tem,

cassia, sandalos tambem

canfar, aguila, e isto tal.

64

Tem robiis, diamantes taes

que nam tem preço ou contia

esmeraldas muy reaes 

perlas de muy gram valia

espinellas, e tem mais

carbunclos, ametistas

turquesas e chrysolithas

çafiras, olhos de gato

jagonças, de tudo há tracto

e outras mais que non sam dictas.

65

Tem ouro, prata, borcados

de mil feições, muy fermosos

entretalhos e borlados

muitos e sotiis chapados

muy ricos, pouco custosos;

ricas sedas de mil sortes

alcatifas, chamalotes

porcelanas, beijoiis

sinabafos, rambotiis

delgadissimos e fortes.

66

Muitos damascos da China

cofres de rede dourados

mesas, lectos marchetados

e muy rica prata fina

de bestiães bem lavrados;

e quanto aljofar tem

quanta seda de laa vem!

que policias tam polidas!

riquezas, cousas sabidas

que antes non soube ninguem!

67

Tem ciidades populosas

de grandes povoações

cercadas, fortes, pomposas,

de pedra, cal, muy lustrosas,

casas de mill perfeições;

há aii outras de madeira

e cubertas de palmeira

que se fogo entra nellas

arde tam forte per ellas

que se faz tudo em fogueira.

68

He de arroz muy avondada

trigos, fructas como caa

e outras muitas que há laa,

de pexe, carne abastada

tudo barato se daa;

galinhas sam infinitas

e outras aves nam dictas

de que avondança tem

sam muy sãos, tem muyto bem

cousas dignas ser escriptas.

69

Tem infinitas palmeiras

por suas terras, herdades

de infinitas novidades

fructos, panos de maneiras,

e de muitas qualidades;

dam vestir, calçar, comer,

agua, vinho que beber,

azeyte, açucar, mel,

casas, cordas e papel

e camas em que jazer.

70

Haa cãnas de grande altura                                      Em Maluco as há, e tem mea pipa d’ agua

cheas d'agoa excellente                                cada hũa. Gasta-se cãnudo e cãnudo.

de tres palmos de grossura

de muito grande grandura

de que bebe ho rey e gente;

e sam pollo pee cortadas

assi inteiras levadas

longe per terra, per mar

sem agua nunca minguar

estam muito conservadas.

71

Tem elefantes ensinados

de muito grande entender

em gram preço estimados

muy forçosos, bem mandados

que tem como homens saber;

e muy certo se provou

que hũo elefante fallou

em Cochim palavras certas

claras, altas, descubertas

do qual se cá fee mandou.

72

Tractam ricas pedrarias

sam muy grandes mercadores,

tem ricas mercadorias

drogas, especiarias

sam nisso muy sabedores;

tractam na terra, no mar,

sabem tudo bem guardar

ho que na terra se cria

para quando tem valia

per dedos he seu contar.

73

Querem ouro, prata, cobre,

vermelham, querem coral

azougue tambem lá val

quem tem vinho, non vem pobre

se he de Almada ou Sexal;

non vendem nada alguns meses

tee que vaam hos portugueses

por venderem junto e bem

mais modo no tracto tem

que Veneza e genoeses.

74

Grandes arteficiaes

em tudo muy entendidos

muy sotiis oficiaes

de toda sorte e metaes

muy prestes, muito sabidos;

baratos para fallar

ver ourivez trabalhar

hũo dia por hũo vintem

e fazem tudo tam bem

que nam haa que melhorar.

75

Sam moores volteadores

que nunca foram sabidos

muy grandes esgrimidores

archeiros, tresectadores

moores que viiram nascidos;

ham por grande honra engordar

e fazem muito por alargar

quem me dera laa viver

para por isso valer

pois qua nam posso medrar.

76

He muito pera louvar

has suas navegações

quem nas bem quer esperar

muy seguro navegar

dous ventos, duas mouções;

vaam sempre à popa e vem

grande segurança tem

de virem a salvamento

polla certeza do vento

se os tempos tomam bem.

77

Sam gentios e acatam

ydolos com grande amor

haa em algũos tanto fervor

e devaçam, que se matam

por sua honra e louvor,

quando os querem festejar

em grandes carros mostrar

com grandes rodas d'aceiro

muitos vam tomar marteiro

e deixam-se espedaçar.

78

Deytam-se no chão tendidos                           Em Cambaya

hos carros passam por elles

ficam por meo partidos

da vida e mundo esqueecidos

matam-se assi muitos deles;

enganada devaçam

e esta condenaçam

e martiiro hos tristes tem

por seu mal, non por seu bem

por sua moor perdiçam.

79

E outros vam esgrimando

com hos lombos travessados

com ganchos de ferro alçados

por cordas altas cantando

em carros assi levados;

cousas muy duras de creer

de contar e d' escrever

se nam foram tam sabidas

tam vistas e tam ouvidas

que bem has posso dizer.

80

Há aii rey com condiçam                                 No Cabo de Camorim quando se faz ha festa

de quatorze ãnos regnar                        ao seu ydolo como jubileu de XIV em

hos quaes tanto que acabar                            XIV annos.

por seu Deos de obrigaçam

se haa per si de matar;

perante todos despido

em hũo cadafalso subido

com facas muy aguçadas

daa per si taes cutilladas

que cae morto estendido.

81

Acabado de morrer

logo elejem outro rey

que outro tal haa-de fazer

acabados de correr

os ãnos que tem por ley;

isto se faz em hũo dia

de muito grande alegria

de perdões e jubileu

quando mostram ho Deos seu

que lhes daa tal ousadia.

82

Na Jaava, Narsinga tem                                 

costume de se matarem                                              

quando morre ho rey tambem                                       

como em Benii e tomarem

morte sem temer ninguem;                                            Diz que se mataram em Narsiga quinhentas  

homens per si aas dagadas                                           pessoas: porque se matam as mancebas do rey

molheres no mar lançadas                                             que sam muitas.

muitas com pedra ao pescoço

e queimadas com esforço

outras vivas soterradas.

83

E molheres por vontade                                  Em Narsiga.                               

quando morrem seus maridos                                        

com amor e lealdade                                     

se matam com crueldade                                             

seus corpos em poo ardidos

com seus paes, mães e irmãos                                      E primeiro que se lance no fogo tira as joyas e reparte-as  

amigos e ciidadãos                                         per seus parentes que tem todos panelas d’ azeite

sam com grande honra trazidas                               que lançam juntamente quando ella se lança.

da cinta acima despidas                                               

com joyas, anees nas mãos.

84

Está hũa gram fogueira

em hũa gram cova ardendo

e ella com verdadeira

vontade, livre e inteira

anda derredor dizendo

palavras de obrigaçam

aos homens por razam

da morte que toma assi

entam se lança por si

no gram fogo sem paixam.

85

E se nam querem morrer

ficam como infamadas

dos paes e maes desprezadas

sem as ninguem querer veer

por baixas e abiltadas;

molheres de tal primor

que por honra e amor

de seus maridos padecem 

tal morte e honra merecem

e sam dinas de louvor.

86

Haa outras tam desviadas                                                         No Malabar.

muito perto destas taes

que sendo muy bem casadas

honrradas e abastadas

sam a todos muy geraes;

lançam-se com quantos querem

sem lhe os maridos tolherem

quantos querem escolher

deixam-lhe tudo fazer

sem lhe nada reprenderem.

87

Como chegam à hidade                                            No Malabar.

moças de dez ou onze ãnos

has mães fora da ciidade

mancebos de autoridade

de linhajem sem enganos

buscam e mandam chamar

para has filhas ensinar

e perdida ha virgindade

cada hũa tem liberdade

de a quem mais quer tomar.

88

Há tambem costumes tais                                         Em Pegu.

em Pegu, que homens competem

a qual delles teraa mais

em seus membros genitais

cascaveis, onde hos mettem

ha sua carne cortando

e por tempo se soldando

ficam dentro entremetidos

dizem que sam mais queridos

das femeas assi usando.

89

E moças vam prometer                                             Em Cambaya.

a ydolos virgindade

e se vam oferecer

e por si mesmas corromper

em sinal de castidade;

em hũas lajeas polidas

muito limpas, muy luzidas

em hum corno muy polido

que no meo estaa metido

se rompem nelle sobidas.

90

Differentes maravilhas                                              Em Meçua.

de uso e variedade

que has mais em tenra hidade

em Meçua cosem has filhas

por guardar virgindade;

fica ha carne tam soldada

que quando vem ser casada

com faca se ha-de romper

sem doutra arte poder ser

ha tal virgem violada.

91

Haa reys que sam costumados                                   Em Çamatra.

peçonha sempre comerem

de meninos ensinados

em muy pequenos bocados

tee se nella converterem;

e se lha dam a comer

nam lhe pode empeecer

e se alguem bebe seu vinho

ou mosca come seu cospinho

morre sem poder viver.

92

Outros reys nam tem cuidados                                                  Em Syam e Paacer.

de reger nem de mandar

estam sempre despejados

com as molheres criados

sem fazer mais que folgar;

e tem huns governadores

rejaos que sam regedores

tudo mandam: soo lhe dam

aos reys disso razam 

como a seus soperiores.

93

Hos aceptos e privados

que el-rey de Maluco servem

sam todos muy corcovados

de meninos tam quebrados

que as cabeças nam erguem;

estes sam seus sabidores

e vam por embaixadores

a elle hos mais aceptos

nam se serve de dereitos

em casa por mais primores.

94

Os reys d'Ormuz nam mandavam

mas hos seus governadores

se algũa cousa falavam

logo lhe os olhos quebravam

por serem sempre senhores;

em hũa casa os mettiam

assi cegos e  elegiam

outro rey de sua linha

ho qual nenhum mando tinha

e elles tudo regiam.

95

Quando foram sobjugados                                

hos d'Ormuz de nossas gentes

foram quinze reys achados

cegos com os olhos quebrados

per mãos de seus presidentes;

ho capitam-moor tomou                                                Afonso d’ Albuquerque.

todos e dii hos levou

a Goa onde hos teve

e ho rey livre sosteve

e seu regedor matou.

96

Hos reys do Malabar                                       Em Calecu.                                

senhores e nobre gente

seus filhos nam ham-de herdar

por das mães nam confiar

e ha-d'erdar hũo parente

filho de yrmãa ou de prima

mais chegada, este estima

e declara por herdeiro

como filho verdadeiro

hos seus todos desestima.

97

Como he por rey alçado

ho rey e obedecido

he por principe jurado

ho sobrinho mais chegado

por herdeiro conhecido;

e como he confirmado

e por filho nomeado

logo ho mandam apartar

sem na corte mais entrar

atee el-rey ser finado.

98

Nam mandam embaixadores

reys a reys, gentes a gentes

nem senhores a senhores

sem lhe mandarem presente

por ser bons negoceadores;

costumam dar e prestar

por melhor se aproveitar

sam muy cheos de respecto

de interesse e provecto

de aquirir e adjuntar.

99

Há laa reys de gram poder                               Dizem que querem pedraria, porque onde

de grandes gentes e terras                             querem hir levam na mão cem mil   

que sabem muy bem reger                               ducados.

e grandes tesouros tẽer

juntos na paz pera as guerras,

outros de menos estados

porém muito acatados

e entre todos haa mouros

grandes ricos com tesouros

em pedraria ajuntados.

100

Estes fazem imizade

entre indios e christãos

porque tem autoridade;

ordenam sempre maldade

lançam pedras, cobrem mãos;

quantos casos lá passaram

tudo mouros ordenaram

como maos secretamente

em que morreo muita gente

muitos delles ho pagaram.

101

Sam tam reverenciados                         No Malabar.

hos fidalgos dos villãos

tam grandemente acatados

que se delles sam tocados

sam logo mortos aas mãos;

e quando vem caminhando

haam-de viir sempre bradando

dizendo "fastar, fastar"

por ninguem a elles chegar

e elles longe se afastando.

102

E se honrada molher                                       Em Calecu.

a homem vil se abaixar

seus parentes tem poder

de ha matar, qual quiser

sem ninguem lho demandar;

e el-rey se ho souber

logo ha manda vender

por captiva desterrada

desta sorte he castigada

se acerta de nam morrer.

103

Todos hos officiaes                                        Em Calecu e no Malabar.

nunca deixam seus officios

nem ham-de sobir ja mais

que seus avos e seus paes

nem ter moores beneficios;

e sam tam desistimados

os baixos dos mais honrados

que se lhos viirem tocar

hos pode quem quer matar

sem ser por isso acusados.

104

Há aii naires cavalleiros                  No Malabar.

como homens d'ordenança

que pellejam por dinheiros

muy leaes, muy verdadeiros

muy destros de frecha e lança

e de adargas e espadas

e assi aas cutilladas

pellejam atee morrer

sem se deixarem vencer

fazem cousas signaladas.

105

Haa outros como perlados                               Em Narsinga.

que sam muy obedescidos

e sam bramanes chamados

muy servidos e louvados

por homens sanctos avidos;

mostram grande sanctidade

e tẽer muita caridade

carne, pescado, non comem

nem menos em camas dormem

e tem muita autoridade.

106

E quem quer ser cavalleiro                               Em Maluco.

nam ha-de ser sem perigo

que haa-de cortar primeiro

ha cabeça de hũo ĩmigo

com esforço verdadeiro;

ha qual traz assi cortada

ao pescoço pendurado

como isto tem acabado

he cavalleiro armado

com ha sua mesma espada.

107

Hos homens que tem doente                            Em Maluco, e dizem que como isto fazem

de doença prolongada                                    ho enfermo se acha bem.

dizem que ho demo he presente

mettido em baixa gente

que lhe faz nam ser curada

e entam mandam matar

cinco ou seis que vam topar

homens baixos sem olharem

por isso, nem castigarem,

por ho doente saarar.

108

Em Ceilam tem pendurados                                            Na ilha de Ceilam.

seus finados em fumeiros

e depois de bem secados

sam em casa agasalhados

hos corpos assi inteiros;

tem seus paes, mães, decendentes

e os chegados parentes

em casa juntos guardados

muito limpos, muy honrados

hos tem sempre assi presentes.

109

Se morre pay ou hirmão                                  Em Syam, como morre ho parente logo ho

ou filho, sam logo assados                               sam todo inteiro e stando com facas aho re-

e comidos com paixam                                                  dor chorando cortam e comem, atee ficarem so-

dos parentes mais chegados                                         mente os ossos que fazem a cinza.

isto se faz em Syam;

dizem que por mais honrar

querem em si sepultar

sua carne e natureza

comem-se com gram tristeza

hos ossos mandam queimar.

110

Hos de Choromandel vendem                           E outros se vam vender a si mesmos.

seus filhos e suas filhas

por pouco, nam se arrependem

nem se estranha, nem defendem

taes erros e maravilhas;

hũos por duzentos reaes

e trezentos he ho mais 

mayor preço e contia

que os dam, e moor valia

por que hos vendem seus paes.

111

Em Amboino, e no Brasil

em Çamatra e Paacer

e em outras partes mil

entre nobres gentes vil

gentios que nam tem fee,

hũos a outros se comem

como quer que matam homem

em pelleja ou em guerra

hos de fora e da terra

depois de comidos dormem.

112

Hos celebes por mostrar                        Junto com Maluco.

que tem muitos servidores

mandam aas portas lançar

esterco de homens juntar

por verem que sam senhores,

e quem tem moor cantidade

haam por moor autoridade

competem nisto à porfia

mais esforço, moor valia

mais limpeza ha sugidade.

113

No reyno de Deli haa                                      Ha rayz se chama baçaragua e ha fructa mirabexi.

arbores daquesta sorte

que ha raiz he tam maa

peçonha que se se daa

a comer dá logo morte;

ha fructa tem tal virtude

que comendo-ha daa saude

a todo peçonhentado

he fructo muy estimado

com que se aa peçonha acude.

114

India grande cousa he

tem grandes cousas estranhas

há nella ilhas tãmanhas

Sam Lourenço e Paacer

como França e as Espanhas;

tem juntas onze mil ilhas                                               Has ilhas de Maldiva. 

repartidas por partilhas

entre reys, entre senhores

pequenas, meãas, maiores,

outras muitas maravilhas.

115

El-rey de Narsinga veo

conquistar ho Idalcam

trouxe de omens conto e meo

Idalcam sem receo

com esforço e coraçam

com trezentos mil que tinha

foy a elle onde vinha

desque ambos se encontraram

hos mais hos menos mataram

e venceram muy asinha.

116

Ho Idalcam se salvou

vendo sua perdiçam

com muy poucos escapou

nunca gente se ajuntou

em tam gram multidam;

cavallos, artelharia

non abasta ha fantasia

aho que dizem escrever

crea-ho quem ho quiser crer

que he cousa de longa via.

117

Hũo barbeiro degollou                                     Ho rey era muito mal quisto e os grandes nam podiam matar,

ho grande rey poderoso                                  porque se guardava, e commeteram ao barbeiro

de Narsinga e se alçou                                   que ho matasse e que ho fariam rey e assi foy.

por rey e por rey ficou

fecto mao e espantoso;

em sua vida reynou

em paz, tee que se finou

e reynou logo apos elle 

este rey que filho delle

que pacifico deixou.

118

Este he hum dos reis do mundo                                                            

de mais ouro e pedraria                        

tanta de tam gram valia                                 

que nam tem cabo nem fundo

nem se estimar poderia;

em seu reyno tem as minas

onde se acham pedras finas,

ninguem has pode vender

sem lhas primeiro trazer

sob grave pena e doctrinas.

119

Hos grandes que em corte stam

haam-d'estar sempre no paaço

com medo de trayçam

nam tem cõmunicaçam

hũos com outros hũo espaço,

nam se podem visitar

hũos aos outros nem fallar

em plazer, nojo, doença

sem el-rey lhes dar licença

sob pena de hos matar.

120

Quando quer que vam comer

vam sempre muy apressados

sem se poderem detẽer

nem preguntar, responder

soo dos seus acompanhados;

terra de pouca verdade

de pouca fidelidade

pois vivem tam sospectosos

temidos e temerosos

e cheos de falsidade.

121

Ainda podera contar

outras cousas doutras sortes

que haa na terra e no mar

defferentes no casar

nos costumes, vidas, mortes

tambem nos mandos, poder,

em seus nojos e plazer

em reger e governar

das quaes por non enfadar

muitas deixo d' escrever.

122

De indios se nos pegou

tractar, e mercadoria

dantes non se custumou

por baixeza se avia,

em alteza se tornou;

a muitos aprovectou

a outros muitos custou

has fazendas e as vidas,

com muitas naos lá perdidas

muita honra se ganhou.

123

Viimos Dom Philipe entrar

em Castella grande, forte

seu sogro fora lançar

bem pouco ho viimos durar

e acabar de maa morte;

nesses dias que reynou

tudo mandou, governou

Dom Joam Manoel soo

que se desfez como poo

no que era se tornou.

124

Viimos el-rey d' Ingraterra                               Ha raynha filha d’ el-rey Dom Fernando e

em França com gram poder                             da raynha Dona Isabel de Castella.

e entrar-lhe sua terra

el-rey d'Escocia a fazer

com gram gente, grande guerra;

viimos sayr ha raynha

com bem poucos muy asinha

e com elle pellejou

e em batalha ho matou 

tomou-lhe ho reyno que tinha.

125

Viimos alçar branca rosa                                                Andou em Portugal este moço e foy

por rey, muitos dos ingleses                            paje de Pero Vaz Visagudo.

foy cousa maravilhosa

que em dias e non em meses

juntou gente muy fermosa,

chamou-se rey natural

a el-rey batalha campal

deu, mas foy desbaratado

por justiça enforcado

por acharem non ser tal.

126

Quinze reys, quinze reynados                           França, Castella, Portugal, Inglaterra, Napoles, Aragam, Ungria

viimos ja na christandade                                              Dinamarca, Polonia, Boemia, Cecilia, Chypre, Scocia, Navarra, rey dos romãos.

hũos dos outros sam tomados

per força ou falsidade

em soos septe sam tornados;

ho gram poder do soldam

e do grande Tamorlam

viimos tomar para si

ho turco e ho Sophi

com poder e sem auçam.

127

Por enveja, por cobiça

de reynar, senhorear

viimos ordenar soyça,

artes de guerra inventar

que cada vez mais se atiça;

tantos modos d' artilheiros

de minas fazer outeiros

invenções d'artelharia

foram mais em nossos dias

que em todos tempos primeiros.

128

Non deixa de aver agora

taes homens com'os passados

mas se sam avantajados

sam mortos em hũa ora 

ante de ser affamados;

que ha muita artelharia

destruy ha cavalleria

e depois que se usou

nos homens se nam fallou

como dantes se fazia.

129

Castelhanos e franceses

alemães, venezeanos

navarros, aragõeses

napolitanos, ingleses

romanos, cezelianos,

italianos, milaneses,

soyços e escorceses,

vimos todos batalhar

hũos com outros se matar

salvo ungros e portugueses.

130

Estas muy injustas guerras

fazem ho turco prosperar

nos mares, campos e serras

reynos, imperios e terras

tudo ser a seu mandar

sem hos christãos querer veer

quanto lançam a perder

por se nam quererem bem

nem lembra Jerusalem

que hos mouros tem em poder.

131

Non sey como Deos consente

tantos males caa na terra

e que moirra tanta gente

sem causa e innocente

per mandado de quem erra;

vivem em guerra e contenda

sem aver quem se rrependa

de quanto mal faz fazer

nem há aii satisfazer

nem correger, nem emenda.

132

Quando dous reys guerra tem

hũo haa-de tẽer ho directo

ho que ho tem estaa bem

ho outro por tẽer mao fecto

concerto e paz lhe convém;

se se non quer concertar

com razam justificar

por cobiça ou contumaz

quanto mal nisso se faz

he obligado pagar.

133

Veede que conta dara

a Deos quando lha pedir

quem com tal cargo se viir

nam sey que razam tẽeraa

de repicar, repetir;

conta muy mal tenteada

mal vista, mal concertada

maa recepta, maa despesa

maa razam, e maa defesa,

quitaçam lhe non he dada.

134

Guerra digna de louvor,

de perpetua memoria,

de honra, de fama, de gloria,

tem el-rey nosso senhor

com muito grande victoria,

com os mouros africanos

e gentios, asianos

turcos, rumes e pagãos

e muita paaz com christãos

inimigo de tirannos.

135

Viimos em Roma hum villão                              Hirmão do Papa Sisto e pay do Papa Julio e

pobre com bem pobre capa                             ambos vio em sua vida papas.

de muy baixa geeraçam

veer papa hũo seu hirmão

e tambem hũo filho papa,

que foy Julio, muy timido

acatado, obedescido

mais que papa, imperador

ho moor edificador

que se vio, nem foy sabido.

136

Em hũo mes tres papas ser                              Alexandre e Pio, ho de Sena que viveo XVIII dias,

viimos, e outro elegido                                    e Julio e Hadriano.

sem ho terem conhescido

nem ho veerem, mas viver

em Castella esqueecido;

dahi ho viimos levado

em Barcelona embarcado

sem tẽer mais outro primor

que meestre do imperador

e por isso ouve ho papado.

137

Viimos obras espantosas                                 Fazia juntamente Sam Pedro e as casas para todolos officios,

que Papa Julio fundou                                     e ha varanda de Belveder e as obras dos paços e ha fortaleza                 

tam grandes, tam sumptuosas                         de Ervitu, e outras.           

sem comparaçam famosas

has fez e has ordenou;

vii Sam Pedro começar

obra tanto d'espantar

que outra tal non se sabe

nem sey papa que ho acabe

se ho Deos non acabar.

138

Vimos Chipre em poucos ãnos

muitos reys nelle reynar

com revoltas, mortes, dãnos

tanto que hos venezianos

ho vieram governar;

e tanto que governaram

polla raynha, lançaram

mão dos filhos, que metteram

em prisam, hos esconderam

e com ho reyno se alçaram.

139

Vii em Florença adjuntado

povoo contra ha clerizia

com gram furia indignado

sem ordem, todo yrado

combatteo ha See hũo dia;

e tanto que ha entraram

hos clerigos se salvaram

ho arcebispo ficou

no coro onde ho povo entrou

e no coro ho enforcaram.

140

Viimos ha gram maldiçam

ho gram mal e gram vergonha

de tantos destruyçam

que matam aa trayçam

em Italia com peçonha;

matam papas, cardeaes

reys, senhores principaes

nobres, ricos, sabedores,

baixos, meãos, e maiores

estrangeiros, naturaes.

141

Ho mayor rey de Ethiopia

de Manicongo chamado

viimos christão ser tornado

e com elle grande copia

de gente de seu reynado;

mandou por religiosos

e por frades virtuosos

que lhe el-rey de caa mandava                        El-rey Dom Joam segundo, no ãno de CCCCXCI

elle mesmo pregava                                       dia de Sancta Cruz de Mayo.

nossa fee ahos duvidosos.

142

Hos judeus vii caa tornados                             No ãno de CCCCXCVII per el-rey Dom Manoel.

todos nũo tempo christãos

hos mouros entam lançados

fora do reyno passados

e ho reyno sem pagãos;

viimos synogas, mezquitas

em que sempre eram dictas

e preegadas heresias

tornadas em nossos dias

igrejas sanctas, benditas.

143

Viimos ha destruyçam                                                   Per el-rey Dom Fernando e raynha Dona Isabel.

dos judeus tristes errados                               No anno de CCCCXCII.

que de Castella lançados

foram com gram maldiçam

aho reyno de Feez passados;

dos mouros fouram roubados

deshonrados, abiltados

que filhos, filhas e mães

lhe incestavam esses caães

moças e moços forçados.

144

Viimos grandes judarias

judeus, guinolas, e touras

tambem mouras, mourarias

seus bailos, galantarias

de muitas fermosas mouras;

sempre nas festas reaes

serão hos dias principaes

festa de mouros avia

tam bem fecta se fazia

que non podia ser mais.

145

Vii que em Lixboa se alçaram                           A XX de Abril  de DVI em dia de Pascoela.

povoo baixo e villãos

contra hos novos christãos

mais de quatro mil mataram

dos que ouveram aas mãos;

hũos delles vivos queimaram

mininos espedaçaram

fizeram grandes cruezas

grandes roubos e vilezas

em todos quantos acharam.

146

Estando soo ha ciidade

por morrerem muito nella

se fez esta crueldade

mas el-rey mandou sobr'ella

com muy grande brevidade;

muitos foram justiçados

quantos acharam culpados

homens baixos e bragantes

e dous frades observantes

viimos por isso queimados.

147

El-rey teve tanto a mal

ha ciidade tal fazer

que ho titulo natural

de noble e sempre leal

lhe tirou e fez perder;

muitos homens castigou

e  officios tirou

depois que Lixboa vio

tudo lhe restituyo

e ho titulo lhe tornou.

148

Hũo frade pobre abaixado

viimos tam alto erguer

que ho gram arcebispado

de Toledo lhe foy dado

primeiro de nada tẽer;

e logo foy cardeal

e senhor tam principal

governador de Castella

que morreo como rey della

tomou Ouram sendo tal.

149

Viimos hos grandes estados

que em Castella se fezeram

tantos duques tam honrados

tam grandes, tam prosperados,

tanto moores do que eram;

que casas que se juntaram!

que rendas que alcançaram!

vassallos, villas, riqueza!

jurdições, mando, nobleza!

que senhorios herdaram!

150

Viimos ho gram sabedor                                  Hos filhos foram ho cardeal Dom Pero Gonçalves de que veo

Dom Anrique de Vilhana                                  o marquês de Cenete, e ho duque do Iffante e ho conde de

Joam de Mena ho trovador                              Tendilha, e ho conde da Curunha, e dous outros moorgados,  

no cume, e ho primor                                     Dom Inhigo e Dom Furtado, e deixou seys morgados.                               

do marquês de Santilhana;

que saber, cavallaria,

que honra, que fidalguia

que grandes filhos deixou

de que casas hos herdou

de que rendas e valia!

151

Viimos ho muy liberal

grande duque de Sevilha

assi chamado em gẽeral

muy quisto, muy principal,

muito noble a maravilha;

viimos seu filho herdeiro

com gram gente, gram dinheiro

por seu rey, por sua fama,

descercar dentro em Alfama

hũo imigo verdadeiro.

152

E viimos hos dous hirmãos                               Dom Joam Pacheco meestre de Santiago ho mais velho,

meestres que tanto mandaram                                      e Dom Pedro Giron meestre d’ Alcântara. Dona Isabel que foy ha

Pachecos, que assi medraram                          raynha poderosa.

que grandes, povo, meãos

hos mais delles governaram;

ho moço determinou

de ser rey, e adjuntou

cinco mill lanças possante

para casar com ha iffante,

no caminho se finou.

153

Ho mais velho, mais honrado

com contas na mão e cãna

deixou grandemente herdado

seu filho muy estimado

grande marquês de Vilhana;

quarenta contos herdou

de renda, e mais ficou

com taes villas, tanta terra

que com el-rey teve guerra

e depois se concertou.

154

Outro meestre singular

viimos que he bem que non fique

sempre vencer, pellejar

com mouros, terras tomar:

foy Dom Rodrigo Manrique;

por seu filho assi dizer

sua vida, e escrever

em estilo tam subido

e de todos tam sabido

ho deixo eu de fazer.

155

E viimos ha grande empresa                            

do conde de Ribadeo                                     

polla qual el-rey lhe deu

comer com elle aa mesa,                                 Ho palanque que fez em Toledo

tambem ho vestido seu;                        em que salvou el-rey.

este valeo tanto em França

sendo homem de hũa lança

que dez mil lanças mandou

e em Castella alcançou

ho que quem tal faz alcança.

156

Viimos outros tres senhores                                           Quando el-rey Dom Fernando se foi de Castella pera Napoles

condestable, almirante                          estes tres senhores soos seguiram seu partido.

duque d'Alva, servidores                

d'el-rey Dom Fernando, moores

nas fortunas que non ante;

em tempo de adversidade

mostraram gram lealdade

por tam singular senhor

cousa de grande primor

de esforço, honra, bondade.

157

Viimos ho Gram Capitam                                  Ho duque Dom Gonçalo Fernandez d’ Aguilar.

que tanto honrou Castella

que bondade, que razam

em tudo que perfeiçam

outro tal non viimos nella:

que batalhas que venceo

que senhores que prendeo,

meresceo ter triumphal carro;

viimos ho conde Navarro

quem foy e como se ergueo.

158

Que honrados cavalleiros

para per si pellejar

para capitanear

conselhar, ser verdadeiros,

viimos haa pouco accabar;

ficou tal necessidade

de homens desta qualidade

que para ha India mandar

se non pode hũo achar

sem muita difficuldade.

159

Viimos fallescer na corte                                 Ho marquês de Villa Real, ho bispo da Guarda,

senhores velhos honrados                               ho bispo de Viseu, ho conde-prior, ho baram

todos mui apressurados                         d’ Alvito, ho conde de Monsancto.

hos viimos levar ha morte

sem falla, nem confessados;

e hos outros que isto veem

muy pouca emmenda tẽem

antes andam tam mundanos

como se fossem seus annos

como de Matusalem.

160

Vimos bem breves medranças

e outras bem vagarosas

viimos ja muitas privanças

ficar com vãas esperanças

e outras bem provectosas,

e viimos ha gravidade

presunçam, auctoridade

que os reys dam com favor,

e tambem seu desfavor

desfaz muita vãidade.

161

Ho duque viimos chegar                         Dom Jemes duque de Bragança e de Guimarães.

a Azamor, logo tomá-lo

viimos sobr'elle levar

mais de dous mil de cavallo

tantas leguas sobre mar;

non haa nenhũa memoria

nem s'escreveo em historia

de tantos cavallos yrem

sobre mar tam longe e viirem

e nam fallo da victoria.

162

Hũo clerigo natural                                         Dom George da Costa                                   

da villa de Alpedrinha

viimos caa ser cardeal

em pouco tempo e asinha

cardeal de Portugal;

teve dous arcebispados

abadias e bispados

fez dous hirmãos arcebispos

parentes, amigos bispos,

e criados muy honrados.

163

Vii ho bispo Dom Garcia                                   Bispo d’ Evora e da Guarda

bispo de taes dous bispados,

que honra, que gram valia

que grandes merces fazia

a parentes e chegados;

nas guerras fronteiro-moor

nas letras gram sabedor

que casa, que conversar,

como foy triste acabar

com tanta tristeza e door.

164

Vii ho viso-rey primeiro                                   Dom Francisco d’ Almeyda.

que aa India foy mandado

muy valente cavalleiro

sem cobiça, verdadeiro,

muy sesudo, muy avisado;

hos rumes desbaratou

com que ha India segurou

tomou Quiloa e Mombaça

paresce cousa de graça

veer de que morte accabou.

165

Viimos muito prosperados                                Ho bispo Dom Garcia, ho conde de Loulee, ho conde

hos Almeidas e Meneses                                 de Tarouca, ho conde de Cantanhede e Dom Joam

muitos senhores honrados,                              de Meneses. Ho bispo de Coimbra. Ho bispo de Ceita,

tantos hirmãos, tam prezados                          ho conde d’ Abrantes, ho prior do Crato. Ho viso-rey

na corte e nos arneses;                 e o comendador-mor.

tantos condes e prelados

e no reyno tam liados

e capitães tam sabidos

em quam pouco consumidos

viimos tãmanhos estados.

166

Ho gram conde de Monsancto                          Dom Alvoro de Castro.

em honra, cavallaria

em saber, galantaria,

viimos privar, valer tanto                      

que a todos precedia;

viimos ho conde-almirante                               Dom Vasco da Gama.  

com tantos medos diante

non recear, senon yr

tee as Indias descobrir

quanto quis levou avante.

167

Diogo d'Azambuja vii

de muitos mouros cercado

com poucos quasi tomado

sayr e tomar Çafii

foy fecto muy signalado;

Malaca, Ormuz, e Goa

tomou com reys de coroa

soo Afonso d'Albuquerque

que nam sey com que se merque

hũa memoria tam boa.

168

E viimos tomar Bintam                                    Pero Mazcarenhas.

com bombardas assestadas

quatrocentas, e estacadas

e hũo rey sabedor cam

e estancias muy armadas,

e bem cinco mil pagãos

e tam poucos os christãos

que a trezentos non chegaram

e aas lançadas tomaram

ha ciidade assi aas mãos.

169

Dous reys na India matar

George d'Albuquerque ouvii

em Malaca hũo degollar

ho de Paacer lancear

e agora anda per hii;

viimos Duarte Brandam

tam valente capitam

e valer tanto na guerra

em ho reyno de Ingraterra

que honrou ha gẽeraçam.

170

Viimos outros que podera

escrever ho que tẽem fecto

de que louvores dera

muito grandes se quisera

mas chamaram-me sospecto;

tambem por non agravar

hũos e outros contentar,

non quero louvar presentes

pollos inconvenientes

que nisso podem entrar.

171

Se fallara dos passados

dignos de grandes memorias

capitães tam esmerados

de fectos tam signalados

fezera grandes historias;

has quaes deixo de fazer

pois ninguem non quer dizer

louvores de Portugal

que fora fecto immortal

se ouvera quem escrever.

172

Has terças da clerizia                                     No ãno de DXIV.

viimos Papa Liam dar

a el-rey pera gastar

na conquista que fazia

viimo-las el-rey soltar,

dar-lhe igrejas, mõesteiros

para dar a cavalleiros

en comendas, se servissem

na sancta guerra e comprissem

dous e quatro ãnos inteiros.

173

Tres raynhas adjuntadas                                               Ha raynha Dona Joana na Excelente Senhora, ha raynha    

viimos em Lixboa estar                                    Dona Lianor, ha raynha e princesa, ha raynha Dona 

viint'octo annos sossegadas                            Maria, ha raynha Dona Lianor hirmaã do imperador.

poucas vezes espalhadas

se ha peste dava lugar;

ha que viuvou primeiro

he viva por derradeiro

vii tres mortas antes della

outra tornada a Castella

com joyas e com dinheiro.

174

Viimos costume bem chão

nos reys tẽer esta maneira

Corpo de Deos, Sam Joam

aver cãnas, procissaam

ahos domingos carreira,

cavalgar pella ciidade

com muita solennidade

ver correr, saltar, luctar,

dançar, caçar, montear

em seus tempos e hidade.

175

Quando hos principes sahiam

dias sanctos cavalgavam

todos seus povoos hos viam

elles viam e ouviam

todos quantos lhe fallavam;

ninguem pode ser querido

de quem non he conhescido,

que hos olhos haam-de olhar

para ho coraçam amar

ho que tem visto e sabido.

176

Muy prezada e estimada

viimos ha gineta ser

d'estrangeiros muy louvada

tam rica, tam atilada

que era muito para veer;

de granadis, de africanos

de andaluzes, castelhanos

era Portugal ho cume

agora por mao costume

se perdeo em poucos ãnos.

177

Viimos cadeas, collares

ricos tecidos, espadas,

cinctos e cinctas lavradas,

punhaes, borlas, alamares,

muytas cousas esmaltadas;

arreos quanto lustravam

duravam muito e honravam

soo com vestidos frisados

com taes peças arrayados

hos galantes muito andavam.

178

Agora veemos capinhas

muito curtos pellotinhos

golpinhos e çapatinhos

fundas pequenas, mulinhas

gibõeszinhos, barretinhos,

estreitas cabeçadinhas

pequenas nominaszinhas

estreitinhas guarnições

e muito maas invenções

pois que tudo sam cousinhas.

179

E viimos em nossos dias                                  Achou-se em Alemanha.                                

ha letra de forma achada

com que a cada passada

crescem tantas livrarias

e ha sciencia he augmentada;

tẽe Alemanha louvor

por della ser ho auctor

daquesta cousa tam digna

outros affirmam na China

ho primeiro inventador.

180

Outro mundo novo viimos                                Descobrio-ho ho conde da Videgueyra.

per nossa gente se achar

e ho nosso navegar

tam grande, que descobrimos

cinco mill leguas per mar;

e viimos minas reaes

d'ouro e doutros metaes

no reyno se descobrir

mais que nunca vii subir

ingenho de officiaes.

181

Viimos riir, viimos folgar

viimos cousas de plazer

viimos zombar, apodar

motejar, viimos trovar

trovas que eram para leer;

viimos homens estimados

per manhas aventajados

vimos damas muy fermosas

muy discretas, e manhosas

e galantes affamados.

182

E depois viimos cuydados

paixões, descontentamentos

muitos malenconizados

muitos sem causa agravados

sobejos requerimentos;

viimos desagardecidos,

viimos outros esqueecidos

que deviam de lembrar

viimos muito pouco dar

pollos desfavorescidos.

183

Viimos tambem ordenar                                   Ordenada por ha raynha Dona Lianor, e instituyda

ha misericordia sancta                                    per seu hirmão el-rey Dom Manoel no ãno de                 

cousa tanto de louvar                                    CCCCXCIX.

que non sey quem nam s'espanta

de mais cedo non se achar;

socorre a encarcerados

e conforta hos justiçados

a pobres dá de comer

muitos adjuda a sostẽer

hos mortos sam soterrados.

184

Musica viimos chegar

aa mais alta perfeiçam

Sarzedo, Fonte, cantar

Francisquilho assi juntar

tanger, cantar, sem razam;

Arriaga que tanger

ho cego que gram saber

nos orgãos e ho Vaena,

Badajoz, outros que ha pena

deixa agora d'escrever.

185

Pinctores, luminadores 

agora no cume estam

ourivizes, esculptores

sam mais sotiis e melhores

que quantos passados sam;

viimos ho gram Michael

Alberto e Raphael

e em Portugal haa taes

tam grandes e naturaes

que vem quasi aho livel.

186

E viimos singularmente

fazer representações

d'estilo muy eloquente

de muy novas envenções

e fectas por Gil Vicente;

elle foy ho que inventou

isto caa, e ho usou

com mais graça e mais dotrina

posto que Joam del Enzina

ho pastoril começou.

187

Lixboa viimos crescer

em povos e em grandeza

e muito se nobrescer

em edificios, riqueza

em armas e em poder;

porto e tracto non haa tal,

ha terra non tem ygual

nas fructas, nos mantimentos,

governo, bõos regimentos

he fallesce e non al.

188

Hos mais dos governadores

que haa India foram mandados

vii mortos ou accusados,

cavalleiros, sabedores

non vii destas escapados;

hos mais sam lá soterrados

e hos vindos demandados,

socrestadas has fazendas

hũos presos, a outros contendas

e libellos processados.

189

Viimos muito espalhar

portugueses no viver

Brasil, ilhas povoar

e aas Indias yr morar,

natureza lh'esqueecer;

veemos no reyno metter

tantos captivos, crescer

e yrem-se hos naturaes

que se assi for, seram mais

elles que nós, a meu veer.

190

E viimos cõmunicar

el-rey com ho Preste Joam

embaixadas se mandar

cousa que nella fallar

parecia admiraçam;

viimos caa viir elefantes

outras bestas semelhantes

trazer da India per mar

por mar has viimos mandar

a Roma muy triumphantes.

191

E viimos monstros na terra

e no ceo grandes sinaes

cousas sobrenaturaes

grandes prodigios de guerra

fomes, pestes, cousas taes;

dizem que em Chipre foy visto

muy grande numero disto

Roma, Milam, outras partes;

viimos nigromantes artes

que remedam Antechristo.

192

Viimos grandes sabedores                     

muy pouco tempo viver

sem lhes valer seu saber

Mirandula seus primores                                  Ho conde de Mirandula.

non acabou d'escrever;

e algũos religiosos

em doctrina copiosos

viimos e de auctoridade

mas sollapou vãidade

edificios tam pomposos.

193

Para que se algum cavide

de vãa gloria se ha tem

lembre-lhe que viimos bem

a frey Joam d' Atayde 

mais humilde que ninguem

que viveo tam sanctamente

que era julgado da gente

sendo cortesão por sancto

fez-se frade, foy-ho tanto

que fez milagre evidente.

194

Deixou conde d'Atouguia

e nam quis ser regedor

deixou rendas, fidalguia,

honras, privança, valia,

por servir Nosso Senhor;

e quem bem quiser olhar

he muito pouco deixar

por Deos quanto caa se alcança

pois ha bem aventurança

com isso pode alcançar.

195

E viimos em ha christandade

mover grandissimas guerras

muito grande mortindade

destruydas muitas terras

com muy grande crueldade;

e tal batalha passou

que segundo se affirmou

quarenta mil peresceram

hos homẽes alli morreram

e ho odio vivo ficou.

196

Viimos hos bõos descaydos

e hos maos muy levantados

virtuosos desvalidos

hos sem virtudes cabidos

per meos falsificados;

ha prudencia escondida

ha vergonha sobmettida

ho mentir muy desfaçado

ho saber desestimado

ha falsidade crescida.

197

Ha cubiça muy lembrada

nobleza bem esqueecida

manhas non valerem nada

devaçam desbaratada

caridade destruyda;

hos sesudos mal julgados

sandeus desemvergonhados

valer com seus arteficios

estrangeiros com officios

e senhores engãnados.

198

Viimos honrar lisongeiros

e folgar com murmurar

e caber mixiriqueiros

hos mentirosos medrar

desmedrar hos verdadeiros;

viimos tambem villania

preceder ha fidalguia

ha razam e ha vontade

ha franqueza e liberdade

sobjectas da tirania.

199

Viimos moços governar

e velhos desgovernados

fracos, em armas fallar

e viimos muitos mandar

que deviam ser mandados;

viimos os bẽes estorvados

hos males acrescentados,

viimos clerigos viverem

com molher e hos filhos serem

dos beneficios herdados.

200

Outras symonias callo

grandes trocas e partidos

e beneficios vendidos

a taes, que de soo falá-lo

scandaliza hos ouvidos;

mõesteiros muy honrados

de mitra e bago, ordenados

para tẽer abbades beentos

viimos livres e isentos

dados a homẽes casados.

201

Viimos ricos acquerir

riquezas mal adjuntadas

com mal comer, mal vestir

sem pagar, restituyr

e com vidas muy cansadas;

trabalham por adjuntar

ho que haa caa de ficar

por ventura a maos erdeiros

e thesouros verdadeiros

non querem entesourar.

202

Hos quaes sam, soo Deos amar

e guardar seus mandamentos

esmolar e nam pecar

fazer bem, non contentar

de baixos contentamentos;

jejũos e oraçam

lagrimas e contriçam

e confissam verdadeira

com satisfaçam enteira

entesouram salvaçam.

203

Estas cousas dam plazer

e riquezas dam cuydado

estas fazem non temer

terremotos, nem morrer

e mais viver descansado;

riquezas sam maas de aver

e muito maas de sostẽer

quem mais tem moor desejo

ho amor dellas sobejo

faz ho amor de Deos perder.

204

Viimos tristezas nas vidas

nojos, descontentamentos

com merces distribuydas

per vontade repartidas

e non por merescimentos;

merescer sem galardam

faz perder ha devaçam

de virtude, de bondade

d'esforço, saber, verdade

tudo mata ha sem razam.

205

Muy mal se pode sofrer

com siso nem paciencia

veer a hũos muito valer

sem esforço, sem saber

virtudes nem eloquencia

e veer outros qu' isto tẽem

e sempre serviram bem

viver sempre mesterosos 

sem favor e desgostosos

da gram sem razam que veem.

206

Para serem confundidos

os maos, non haa mor certeza

que veerem restituydos

hos bõos e favorescidos

isto lhes daa gram tristeza,

pois hos maos se entristecem

e com ver bem aos bons padecem

que faraam hos bõos por veer

hos maos com honra e poder

que os bõos lhe obedecem.

207

Cousa he de confusam

veer hos maos permanecer

e hos bõos com oppressam

sem ordem nem concrusam

maos subir e bõos descer;

mas devem-se consolar

em saber que ham-de pagar

hos maos quanto mal fezeram,

e ho exemplo que deram

para outros mal obrar.

208

Viimos mill ordenações

e demandas non cessarem

viimos malsis e bulrões

viimos maas conversações

boas vontades dãnarem;

viimos alguns gramponados

em muy pouco prosperados

soo com officios tẽer

e outros por dar vii ser

do que non tinham louvados.

209

Viimos esterilidades

pestes e aares non sãos

usuras e crueldades

veemos comprar novidades

e revendê-las christãos;

há aii de Deos pouca lembrança

pouca fee, muita esperança

e hũa vãa presumpçam

bõos costumes, mortos sam

justiça, posta em balança.

210

E viimos maos pagadores

dever, sem querer pagar

a quem sam devedores

nem comer, vestir, calçar

se non de alheos senhores,

e hos mais indevidados

folgam, dormem, descansados

e vivem sem tẽer de veer

com pagar, nem com morrer

nem satisfazer criados.

211

E viimos ja lavradores

pagar seus dizimos bem

pagar bem a seus senhores

dar-lhe Deos ãnos melhores

dos que lhes agora veem;

trigo, cevada, centeo

furtam quasi de per meo

e deitam terra no pam

sam tam maos os que maos sam

que de Deos non tem receo.

212

Veemos em ladrões fallar

se hos há nam sam achados

ou non hos querem catar

viimos ja officios dar

a homens non bem julgados;

poucas vezes vii buscarem

homens bõos para lhos darem

viimos com muitos officios

homens de erros e vicios

viimos aas partes chamarem.

213

Hũo soo mao oficial

que haa em hũa ciidade

destrue ha cõmunidade

veede bem se faram mal

muitos desta qualidade;

Deos e el-rey non sam servidos

hos povos sam destruydos

ha policia dammnada,

ha republica roubada

e hos pobres opprimidos.

214

Vii grandes perdas no mar

maas novidades na terra

muitas mudanças no aar

nos verãos, no invernar

veemos jaa tambem que erra;

pam, carnes, fructas e vinhos

e hos pescados marinhos

azeytes, e todo ho al

se nos vay de Portugal

e non sey per que caminhos.

215

Viimos os muy comedidos

non lembrarem se nasceram,

e hos muy entremettidos

viimos em cousas metidos

que elles nunca meresceram;

viimos muito mais valer

mais medrar, mais ricos ser

hos muy importunadores

que hos grandes servidores

que acertam vergonha tẽer.

216

Vemos poucas amizades

se has haa sam com respectos

veemos odios, imizades

veemos parcialidades

secretas por seus provectos;

officiaes e privados

vemos ser muy aguardados

mil amigos na bonança

se lhes fallesce ha privança

logo sam desemparados.

217

Viimos hos escrupulosos

poucas vezes acertar

e hos muito regurosos

serem pouco piedosos

e muy maos de conversar;

viimos bebados, golosos

tafures e luxuriosos

nam olhar mais que ho presente

acabarem pobremente

entrevados e gottosos.

218

Viimos ingratos negar

beneficios recebidos

cousa para castigar

e cousa para chorar

non serem hos taes punidos;

quando Roma prosperava

por gram crime se accusava

em juyzo ingratidam

e como gram traiçam

se punia e castigava.

219

Viimos hos muy confiados

confiarem pouco nelles

e viimos desconfiados

brigosos, apassionados

enfadonhos os mais delles;

viimos hos pecos fallar

fora de tempo e logar

hos sesudos e sabidos

no fallar muy cõmedidos

cheos de ouvir e callar.

220

Viimos muitos ociosos

sem querer nada fazer

deixar ho tempo perder

e dos bõos e virtuosos

non lhes minguar que dizer;

pollas praças, pellas ruas

sem verem has vidas suas

andam vagamundeando

ho tempo muy mal gastando

e has mãos e linguas cruas.

221

Viimos os muy sospectosos

viver sempre com paixam

e viimos hos envejosos

soturnos, presumptuosos

de perversa e maa naçam;

enveja vem de torpeza

pois que vive com tristeza

por veer ahos outros bem

e nenhũo descanso tem

tem pesar, door e vileza.

222

Glosadores, maldizentes

desfazedores de quem

hos faz viver descontentes,

com amigos nem parentes

non tem ley, nem com ninguem;

vii fracos de coraçam

asperos sem criaçam

trabalhar por tẽer imigos

e deixar perder amigos

por sua maa condiçam.

223

Viimos hos muito ciosos

non viver nem descansar

pensativos e cuydosos

orgulhosos, comichosos

pollo vento e aar olhar;

viimos outros descuydados

folgazões, desenfadados

começos nom atalhar

depois viirem acabar

em deshonrados cuydados.

224

Em medos e adversidades

veemos propositos tẽer

de emendar e correger

has más vidas e maldades

a honesto e bom viver;

mas como passa ho temor 

torna tudo a ser pior

porque nós a nós tornamos

e de novo começamos

ter aho mundo mais amor.

225

Gastos muy demasiados

veemos nas dõnas casadas

em joyas, prata, lavrados,

perfumes e desfiados,

tapeçarias dobradas,

has conservas, ho comer

vestidos, donzellas tẽer

has camas e hos estrados

viimos per viinte cruzados

luvas de coiro vender.

226

Aas portuguesas honradas

viimos por deshonra aver

no rostro e face, põer

e trazer averdugadas

e tambem vinho beber;

por desonestas aviam

as que taes cousas faziam

depois foram tam usadas

todas que haam que has passadas

nem sabiam, nem viviam.

227

Hos portugueses sohiam

ser nas armas muy destrados

mollicias tẽer non sabiam

hos homens muy delicados

por homens fracos aviam;

non lhes lembrava tractar

nem muito negociar

eram com pouco contentes

com amigos e parentes

costumavam de folgar.

228

Depois foram tam polidos

tam ricos, tam attilados,

tam doces e tam luzidos

e tam cheos d'esmaltados

cabelleiras e tingidos,

e em gastar desordenados

e tantos trajos mudados

tanto mudar de viver

tanto tractar, revolver

tanto ser negociados.

229

Veemos muy anticipadas

has vidas d' agora todas

moços com capas, espadas

moças com moços casadas,

ante tempo fazer vodas;

quem deve ser insinado

reprendido, castigado

muito mal pode insinar

casa e filhos governar,

se deve ser governado.

230

Vii soberba nos villãos

e baixeza nos honrados

vii cubiça no prelados

descuydo nos anciãos

e desordẽes nos estados;

viimos mortes apressadas

e vidas muy encurtadas

doenças non conhescidas

muitas canseiras nas vidas

poucas vidas descansadas.

231

Hos reys por acrescentar

has pessõas em valia

por lhe serviços pagar

viimos a hũos ho dom dar

e a outros fidalguia;

ja se hos reys non haam mester

pois toma dom quem ho quer

e armas nobres tambem

toma quem armas nam tem

e dá ho dom aa molher.

232

Vii muitos matos romper

grandes paules abertos

muitas herdades fazer

em terras, matos, desertos

veemos ho pam mais valer;

veemos tudo levantar

mantimentos maos de achar

officiaes, mercadores

logreiros, alugadores

tudo muy caro custar.

233

Viimos em Evora valer                                    

hos moyos de pam yguaes

quinze, viinte mil reaes

agora hos veemos vender

a septenta mil e maes;

anno vii tam abastado

que a octo reaes comprado

foy ho alqueire de pam

outro viimos em que nam                                No ãno de vinte e hum.  

se achava por hũo cruzado.

234

Viimos os campos coalhados

de aves e de caçadores

ho mar cheo de pescados

muito bõos, muito prezados

e de muitos pescadores;

perde-se ha altanaria

non haa pexes que sohia

nem gaviães, nem relee

nem sey onde isto hee

pois de tudo tanto avia.

235

Viimos tanto costumar

todos arcos de pelouros

tanto com elles folgar

nas ciidades, ortas, mar,

como agora com tesouros;

nam avia homem algũo                                   Porque ho principe Dom Afonso folgava muito com elles.            

que se contentasse de hũo

avia delles mil tendas

muitas compras, muitas vendas

agora non veemos nenhũo.

236

Viimos jogos de mancaes 

tambem da pequena pela

infinitos e geeraes

entre poovo e principaes

em Portugal e Castella;

isto com tempo passou

pela grande começou

começou fluxo, primeira

rumfa ficou derradeira

e como tudo acabou.

237

Hos jogos, nojos, plazeres,

costumes, trajos e leys

virtudes, manhas, saberes,

e bõos e maos paresceres

sam segundo querem reys;

que como sam adorados

aho que sam inclinados

todos veemos inclinar

tudo lhes veemos louvar

ainda que vaam errados.

238

Com heresias e manha

viimos ho falso Luterio

converter em Alemanha

tanta gente que he façanha

na moor força do imperio;

contra nossa fee pregando

e do papa brasphemando

dos bispos, dos cardeaes,

venceo batalhas campaes

ha gram gente do seu bando.

239

Com sua lingua maligna

E preceptos deshonestos

semea sua doctrina

chea de luxuria indigna

e vergonhosos incestos;

ho que mais deve doer

he que veemos extender

este veneno a mais terras

e com pestiferas guerras

tarda remedio põer.

240

Viimos ha astrologia

mentir toda em todo mundo

que toda juncta dizia

que em vinte e quatro avia

de aver deluvio segundo;

e secco viimos ho anno

e bem claro ho enganno

em que astrologos estavam

pois dantes tanto affirmavam

por chuvas aver gram dãno.

241

Viimos tambem soverter

em Graada muitos logares

e muita gente morrer

e tal terremoto ser

que serras foram algares;

na ilha aquem da Terceira                               Na Ilha de Sam Miguel, e morreram CCCC pessoas e foy 

hũa grande villa inteira                                   no ãno de DXXII.

neste anno se soverteo

e todo ho povo morreo

foy gram caso em gram maneira.

242

Vii que em Lixboa cahio                                   No ãno de DXII.

da costa gram quantidade

duas ruas destruhio 

duzentas casas sumio

foy gram temor na ciidade;

aquestes tremores taes

e outros muitos signaes

veemos sem termos lembrança

de Deos nem fazer mudança

de nossas vidas mortaes.

243

Hos povoos de Alemanha

viimos todos levantados

contra hos grandes adjuntados

e entr'elles guerra estranha

hos grandes desbaratados,

hos fidalgos non ousarem

de parecer nem falarem

hos villãos victoriosos

soberbos e poderosos

em busca delles andarem.

244

Tambem viimos em Castella 

guerras das cõmunidades

e muitas batalhas nella

em villas e em ciidades

muitos mortos na querella;

depois veo ho imperador

e castigou com fervor

justiçou e desterrou

patrimonios tomou

bispo matou com rigor.

245

Em Valença e sua terra

vimos que os mouros se alçaram

contra os christãos pellejaram

ouve ahi tam grande guerra

que muitos nella accabaram,

e depois se concertaram

todos christãos se tornaram

nenhũa arma lhes ficou

e el-rey os isentou

trebutos mais non pagaram.

246

E viimos tambem el-rey

de Dinamarca perdido

desterrado e destruydo

pellos seus, sem dar por ley,

em Flandres acolhido;

viimos ha triste raynha                          Morreo em Flandres, e era yrmãa do imperador.

sua molher, ha qual vinha

trabalhar por lhe valer

em terra alhea morrer

desemparada, mezquinha.

247

Principe dos chiprianos

vii em Roma requerer

seu reyno que por engãnos

lhe tem hos venezianos

de absoluto poder;

vii-ho consigo trazer

hũo seu hirmão e non tẽer

de comer, nem quem lho desse

nem a quem se socorresse

para lhe poder valer.

248

Vii Carlos imperador

de seus avos herdar tanto

que foy jaa mayor senhor

que ho Carlo Magno sancto

e ditoso vencedor;

herdou gram parte d'Espanha

Flandres, Borgonha, Alemanha

Napole, Aragam, Cecilias,

Navarra, Austria, e as Antilias,

terra rica e muy estranha.

249

Quantos viimos alcançar

ho que muito desejaram

quam poucos se contentaram

outros sem nada acabar

suas vidas accabaram;

hũos e outros non ouveram

descanso, nem ho teveram

porque non haa descansar

nem plazer, nem contentar

senam nos que bem morreram.

250

E viimos el-rey de França

com todo França consigo

pellejar com sua lança

na moor força do perigo

donde victoria se alcança;

viimo-lo por hũo senhor                                  No ãno de D e XXV.  

capitam do imperador

preso e desbaratado

e a Castella levado

e em toda França door.

251

Porque os principaes morreram

prenderam hos principaes

e quanto tinham perderam

tantas perdas receberam

que nam podiam ser maes;

que perderam fidalguia

capitães, cavallaria

seu rey e suas fazendas,

arrayaes com muitas tendas

e com toda artelharia.

252

Tomando Roma morreo                                   No ãno de DXXVII.

este mesmo capitam

que era ho duque de Borbam

e sua gente prendeo

ho Sancto Padre em prisam;

e saqueou ha ciidade

com muy grande cueldade

captivou hos cardeaes

destruhio todos hos mais

sem nenhũa piedade.

253

Has igrejas destruydas

de todo foram roubadas

has reliquias vendidas

has cruzes espedaçadas

entre ladrões repartidas;

ho rico pontifical

que laa foy de Portugal

tomado pellos soldados

e bispos foram jugados

ahos dados, e jogo tal.

254

Fezeram grandes cruezas

grandes deshumanidades

roubaram suas riquezas

suas pompas, vãidades

lhe tornaram em tristezas;

molheres, freiras forçadas

has nobres casas queimadas

e mortos hos moradores

principaes e mercadores

sem porquê aas cutilladas.

255

Neste tempo acodio

a Roma tal mortindade

de peste qual se nam vio

tambem esterilidade

mayor que nunca se ouvio,

que morriam cada dia

mil pessoas, e valia

a sessenta mil reaes

ho moyo de trigo, e maes

ninguem ave-lo podia.

256

Desventurada ciidade

mal aventurada terra

tẽendo tanta sanctidade

te perdeste per maldade

em poucas horas de guerra;

maldito ho povo christão

que sem causa pôs ha mão
em tanta cousa sagrada

hos que matam com espada

com espada hos mataram.

257

Vii que em Africa aqueeceo                             No ãno de DXXI.  

ser morte e fame muy forte

cavallos e gado morreo,

muita gente peresceo

nunca foy tal fome e morte;

hos paes hos filhos vendiam

duzentos reaes valiam

muitos se vinham fazer

christãos caa, soo por comer

nos campos, praças morriam.

258

Ho reyno de Feez ficou

com dous ou tres mil cavallos

de Tremecem se formou

laa e mais longe mandou

muita gente a comprá-los;

que foy tanta perdiçam

que nam ficou geeraçam

para poderem geerar

has eguas mandou buscar

para fazer criaçam.

259

Se neste tempo tevera

Portugal soo que comer

levemente se podera

tomar Fez e se ouvera

com pouca força e poder;

mas caa mesmo entam andava

tanta fame, que custava

trigo alqueire a cruzado

carne, vinho, e pescado

tudo com pena se achava.

260

Neste anno se finou

ho gram rey Dom Manoel

quantos consigo levou

ha morte triste cruel;                                                    Morreo no ãno de DXXI a XIII de Dezembro.

que rey! que gente matou!

duzentos homens honrados

em que hiam muitos d'estados

viimos que entam se finaram

de modorra, e escaparam

muitos ja quasi enterrados.

261

Viimos gram planto fazer

pollos reys quando morriam

burel, grande doo trazer

cousa muy digna de ser

pois tam gram perda perdiam;

viimos burel defendido

e viimos pouco sentido

hũo rey que depois morreo

porque ho doo se perdeo

foy tambem nojo perdido.

262

Vii el-rey nosso senhor                                   Foy no anno de DXXI a XIX de Dezembro hũa quinta-feira. 

quando foy por rey alçado

nunca foy tam grande estado

nem rey com tanto primor

se vio nunca allevantado,

com tanto estado real

iffantes e cardeal

duques, marqueses, prelados,

condes, fidalgos honrados,

com ha frol de Portugal.

263

Em Lixboa assi sahio

dos paaços polla Ribeira

gente sem conto ho seguio

gentileza non se vio

nunca em rey tam verdadeira

a cavallo muy galante

e todos a pee diante

do gram triumpho non fallo

e has redeas do cavallo

a pee levava ho iffante.                                  Ho iffante Dom Fernando.

264

Pollas ruas novas hia

e ho iffante seu hirmão                         Ho iffante Dom Luys.

com estoque alto na mão

rey do mundo parescia

em poder e perfeiçam;

nos alpendres foy descido

de Sam Domingos e subido

num estrado triumphal

por nosso rey natural

foy alli obedescido.

265

Filho de pay excellente

e de mãy muy virtuosa

de grandes reys descendente

desd'os godos que foy gente

no mundo muy poderosa;

nepto d'el-rey Dom Fernando

de gram poder, de gram mando

da poderosa raynha

Dona Isabel que tinha

grande nome governando.

266

Marido da esclarescida

raynha nossa senhora

deste gram sangue nascida

no mundo muy escolhida

de Deos grande servidora;

por crescerem seus estados

deu-lhe Deos mais acabados

mais reaes octo hirmãos

que nunca antre reys christãos

nasceram tam esmerados.

267

Veemos-lhe altos desejos

e propositos fundados 

hos espritos apurados

gram sabor, graça, despejos

nos logares despejados;

em publico gravidade

gram condiçam, gram bondade

magnanimo, liberal

em tudo grande, real

isento, sem vãidade.

268

Em obras muito polido

real edificador

em tudo muy entendido

em plazeres cõmedido

em monteiro e caçador;

em jogos muy temperado

em comer muito reglado

bem falado, bem regido

muy sotil, leydo, sabido,

humano, muy avisado.

269

Seus concertos, concertados

de muy reaes paramentos,

riquissimos, attilados

na capella, esmerados

sumptuosos ornamentos;

em esmolas caridoso

em virtudes virtuoso,

no que compre gastador

do que tem conservador,

alegre, muy amoroso.

270

Veemo-lo sempre ocupado

nunca ho veemos ocioso

tem gram siso, gram recado

tem seu reyno sossegado

na justiça he piedoso;

quanto bem faz, fá-lo elle

pollas grandezas que haa nelle

e non ho faz por ninguem 

que seu natural he bem,

se fizer mal non vem delle.

271

Veemos-lhe paz com christãos

com mouros guerra, imizade

non como os reys comarcãos

fez christãos muitos pagãos

accrescenta ha christandade

nunca em ligas quis entrar

com reys christãos, nem quer dar

a mouros pazes que pedem

soo por Deos se non concedem

polla fee sancta exalçar.

272

E veemos ho gram poder

que em Guinee e Indias tem

tantos reynos de sostẽer

tantos reys a seu querer

de que pareas lhe veem;

tantas villas e ciidades,

terras e cõmonidades

ganhadas per cruas guerras

cheos hos mares e terras

de suas prosperidades.

273

Tem laa noble fidalguia

muy valentes cavalleiros

mil victorias cada dia

gram somma de artelharia

bombardeiros, marinheiros;

tem gastos demasiados

e hos retornos dobrados

tem gram nome, gram louvor

de poder e vencedor

tem muitos christãos tornados.

274

Ciidades e villas suas

em que sempre se faz guerra

a mouros dentro em sua terra

quatro sobre viinte duas

tẽem, se me ha pena non erra;

trezentas naos e navios

traz nos mares e nos rios

de seus reynos alongados

com has quaes tem sobjugados

muitos reys e senhorios.

275

Tem Ceita, Tanger, Arzilla

Alcacer, Paacer, Çafim

Mazagam, Sam George, Arguim

Çofalla muy rica villa

Chaul, Ceilam e Cochim,

Moçanbique, Sancta Cruz,

Malaca, Goa, e Ormuz,

Maluco e Cananor

Coulam, Sam Tomee, Zamor

Quiloa, Chaale, Aguz.

276

Viimos ho seu casamento

com hirmaã do imperador

viimos tam gram juntamento

em Elvas tanto senhor

que fallar em mais he vento;

cinco mil encavalgados

grandemente ataviados

muito ricos, muy galantes

com hos senhores iffantes

na raya foram juntados.

277

Ho ouro, ha pedraria

cãnotilhos e borlados

has perlas, ha chaparia

hos forros, hos esmaltados

nam tem conto nem valia;

em Estremoz se juntaram

has vodas hii celebraram

nunca tal par se juntou

Deos assi hos conformou

que em tudo se conformaram.

278

Veemos-lhe largar ha mão

grandemente em dar dinheiro

viimo-lo tam boõ hirmão

da hirmaã tam verdadeiro

como sabem quantos sam;

polla fazer moor senhora

que foy no mundo tee agora

de imperio e reynados

hũo conto d'ouro em cruzados

lhe deu de dote em hũo ora.

279

Viimos-lhe condes fazer                                 

quatro duques crescentar                               Ho duque de Beja, ho duque da Guarda. Ho duque de Barcelos.

bispados novos criar                                      Ho duque d’ Aveiro.

e marqueses nobrecer

e outros muitos honrar;

viimos como socorria

com dinheiro al rey de Ungria

socorro muy abastante

se el-rey non mataram ante

jaa ho socorro laa hia.

280

Acrescentou grandemente

hos seus desembargadores

fez muitos corregedores,

e no reyno juntamente                                    No reyno.

fez mais tres governadores;

e fez leys muy provectosas

ahos povos amorosas

para hos fectos breviar

e justiça conservar

mais blandas que rigurosas.

281

Ha corte de Portugal viimos

bem pequena ser

depois tanto ennoblescer

que non haa outra ygual

na christandade, a meu ver;

tem cinco mil moradores

em que entram muitos senhores

a que el-rey dá assentamentos

moradias, casamentos,

tenças, merces e honores.

282

Ho reyno viimos valer

sessenta contos non mais

has rendas tanto crescer

que agora ho veemos render

duzentos milhões de reaes,

India, Mina non entrando

que estas duas assomando

hos gastos e hos provectos

duzentos contos bem fectos

rendem forros, navegando.

283

A veadores da Fazenda

vii hũo contrato fazer

que bem se pode dizer

sem nisso aver contenda

outro tal nunca se veer;

venderam juncto em hũo dia

em drogas, especiaria

septecentos mil cruzados

outros lhe vii contractados

de pouco menos contia.

284

Viimos quatro embaixadores

na corte junctos andar

que sam dos moores senhores

e dignidades maiores

que se podem alcançar;

sam do Papa, imperador,

rey de França, do senhor

que Preste Joam se chama,

conhescido soo por fama

mas nam por embaixador.

285

No tempo de agora veemos

ho que non sey bem louvar

tam singular rey qual tẽemos

raynha tal qual queremos

ambos taes que non tẽem par;

tẽemos tambem octo iffantes

tam perfectos e abastantes

de virtudes, graças, manhas

que nove irmãos nas Espanhas

nunca ouve semelhantes.

286

E viimos de que maneira

ho duque d'Arcos casou

com moça pobre, estrangeira

estando ja quasi freira

de Odivelas ha tirou;

sem ha veer, nem conhescer,

nem fallar, nem escrever,

nem tẽer mais que soo ser bõa

veo por ella a Lixboa

sem ella mesma ho saber.

287

Tomou assi esta empresa

por vontade ou devaçam

de modo que em conclusam

foy assi fecta duquesa

sem sabermos ha razam;

elle a el-rey ha mão beijou

e com elle soo falou

foy d'el-rey bem recebido

com grande honra despedido

ricas joyas lhe mandou.

288

Em Lixboa entam se vio                                  No ãno de D e XXX.

e viimos mula parida

para isso ahii trazida

de Punhete onde pario

de todos vista e sabida;

e ho filho que criava

perante todos mamava 

no Ressio, na Ribeira

foy vista desta maneira

de muita gente que olhava.

289

E depois apareceo                                         Apareceo no ãno de DXXX no Verão.

hũo cometa muy famoso

que non minguou nem cresceo

nem andou, nem se moveo,

e non era luminoso;

cousa branca, muy comprida,

directa, com gram medida,

bem quinze noctes se vio

pouco e pouco se sumio

tee ser desaparescida.

290

E depois disto em Roma                         No ãno de DXXX no começo d’ Oitubro.

soo com tres dias chover

em Octubro ho Tibre toma

agoa tanta, em tanta somma

que foy espanto de veer;

toda ha ciidade allagou

ha agua dizem que chegou

tee hos segundos sobrados

hos baixos foram lagados

soo nos montes non tocou.

291

Infindas casas cahiram

castellos todos inteiros

levados do rio viiram

edificios se sumiram

casas fortes, mõesteiros;

e pellas ruas andavam

grandes barcas que salvavam

a gente, tambem com ellas

poderam yr caravellas

pois tam alto navegavam.

292

Muita gente se sumio

foy muy gram destruyçam

ha moor que se nunca vio

desta sorte, nem ouvio

do Tibre tal perdiçam;

e morreo gram quantidade

de bestas, e na ciidade

se perderam vinho e pam

e cousas de provisam

tudo em geeralidade.

293

Segundo todos diziam

non foy cousa natural

ho damno que recebiam,

mas por castigo ho aviam

e temiam viir mais mal;

muitas procissões fezeram

e grandes esmolas deeram

e ho Papa a todos deu

per confissam jubileu

soo porque a Deos temeram.

294

E no Janeiro do anno

logo seguinte, signaes

espantosos viimos: taes

que non basta ingenho humano

a hos boquejar non mais;

antemanhaã quinta-feira

foy em tam grande maneira

terremoto em Portugal

que se non vio outro tal

nem Deos que se veja queira.

295

Veyo primeiro hũo rayo

apos elle hũo trovam

e gram terremoto entam

tam grande que pôs desmayo

qual nam viiram nem veraam;

tal que a todos parescia

que ho mundo se destruhia

para non haver mais mundo

e que tudo era de fundo

e ha terra se sovertia.

296

Obra de hũo credo durou

se mais fora, destruyra

tudo por terra cahira,

morrera quem escapou

ha moor parte se fundira;

em hũo poncto punctual

foy em todo Portugal

na Estremadura moor

nas outras partes menor

que non foy todo ygual.

297

E aas septe horas do dia

foy outro tremor estranho

que pôs medo e covardia

e depois do meo-dia

outro, porém non tamanho;

e em outra quinta-feira

ante manhaã da maneira

que foy ho grande, espantoso,

foy outro muy temeroso

outro ante aa terça-feira.

298

Deste grande aho primeiro

cincoenta dias ouve

nos quaes todos per inteiro

tremem, deu tal marteiro

qual tee gora se non soube;

hũo anno todo tremeo

mas pouca cousa, e perdeo

ha gente ja ho temor

aprouve a Nosso Senhor

que cessou, non esqueeceo.

299

Gretas, buracos fazia

ha terra e se abrio

agua e arẽa sahia

que a enxufre fedia

isto em Almeirim se vio;

e porque logo vieram

grandes chuvas que chouveram

e algũos dias duraram,

has aberturas taparam

que nunqua mais paresceram.

300

Todos com medo que aviam

deixaram casas, fazendas,

nos campos, plaças dormiam,

em tendilhões, e em tendas

casas de ramas faziam,

has mais das noctes velando

temendo e receando

porque tremor non cessava

ha gente pasmada andava

com medo, morte esperando.

301

Dous meses assi esteveram

na moor força do Inverno

aguas, ventos sosteveram

tormentas, torvões soffreram

bradando por Deos eterno;

todos logo confessados

casos grandes perdõados

fectas grandes devoções

romarias, procissões

em esmolas ocupados.

302

Tambẽe se sentio no mar,

sem vento mares se alçaram

navios foram tocar

no fundo com quilhas dar

como perdidos andaram;

todas has cousas nascidas

foram quasi amortescidas

feras, domesticas bestas

caães, e aves, cousas destas

estavam esmorescidas.

303

Muros e torres cahiram

villas, paços, mõesteiros

igrejas, casas, celleiros

quintas, e has mais abriram

non cahiam pardieiros;

pedras se viam rachadas

e em pedaços quebradas

e cousas de muitas sortes

quanto mais rijas, mais fortes

tanto mais espedaçadas.

304

Hinfinda gente morreo

grandes perdas receberam

grande perda se perdeo

muitos maa morte morreram

porque de nocte aqueeceo;

cousas per nossos peccados

nunca vistas dos passados

nestes regnos, nem ouvidas

Deos nos livre nossas vidas

de casos tam desastrados.

305

Em Evora vii hum minino                                  Thomas filho de Manoel Thomas no anno de DXXIII.

que a dous ãnos non chegava

e entendia e fallava

e era ja bem latino

respondia e perguntava;

era de maravilhar

veer seu saber, seu fallar

sendo de viinte dous meses

monstro entre portugueses

para veer, para notar.

306

Estas novas novidades

mudanças e grandes fectos

em papas, reys, dignidades

em reynos, villas, ciidades

viimos fectos e desfectos;

e pois tudo vii passar

começar e acabar

e desta mundana gloria

non ficar mais que memoria

desta me quis adjudar.

307

Esta devemos de tẽer

deste mundo tam mudado

para disso recolher

quem tever siso e saber

que ho porviir he passado,

tudo accaba, se nam

amar Deos, de coraçam

e servi-lo de vontade

todo ho al he vãidade

e cousas que vem e vaam.

308

Porque soo Deos tem poder

ele soo he ho que sabe

ninguem pode comprender

seus juyzos e saber

e poder que nelle cabe;

elle he toda bondade

elle he toda verdade

elle he ho summo bem

ele daa ser e sosteem

nossa fraca humanidade.

309

Que se elle fosse esqueecido

de nós outros hũo momento

tudo seria perdido

e ho mundo destruydo

pois he nossa vida vento;

tomarey logo daqui

destas cousas que escrevi

e de quanto foy e hee

louvar Deos, tẽer firme fee

veer quem sam, como nasci.

Conclusam

310

Muy poucos adjudadores

acha quem quer fazer bem

e se alguem bem fecto tem

sam tantos hos glosadores

que ho non faz ja ninguem;

has cousas ante de achadas

nem vistas nem practicadas

he muito quem has bem acha

e muy pouco por-lhe tacha

quem has deseja tachadas.

311

Ho caminho fica aberto

a quem mais quiser dizer

tudo ho qu'escrevi he certo,

non pude mais escrever

por nam tẽer mais descuberto;

sem letras e sem saber

me fuy naquisto metter

por fazer a quem mais sabe

que ho que minguar acabe,

pois eu mais nam sey fazer.

Deo gratias

Foy impressa esta Miscellanea de Garcia de Reesende
em ha ciidade Evora, em casa de Andree de Burgos
impressor do Cardeal iffante, etc. Accabou-se aho
fim de Mayo do anno do nacimento
de Nosso Senhor Jesu Christo de
1554.