Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti (1).

I

Uma circunstância de religião mui freqüentemente inculcada nas divinas letras, é querer a Majestade divina, que só é digna de louvor, ser louvada na igreja: In media ecclesiae laudabo te. Apud te laus mea in ecclesia magna. Laus ejus in ecclesia sanctorum (2). – Todos estes textos e outros são de Davi. Mas isto que antigamente se dizia não é o mesmo que hoje soa. Igreja entre nós significa vulgarmente templo, e no tempo de Davi não havia templos, porque em todo o reino e povo de Israel não houve mais que o templo de Jerusalém, edificado a primeira vez por Salomão, filho do mesmo Davi, depois de sua morte. Diz, contudo, Davi que louvava e louvaria a Deus na igreja, porque igreja não é nome de lugar, senão de pessoas, e significa ajuntamento, ou congregação de gente, principalmente da mesma fé ou crença, ou seja na casa, ou na praça, ou no campo, ou em lugar consagrado a Deus, como este em que estamos.

Isto suposto, qual fosse o lugar em que sucedeu a história do nosso Evangelho não se sabe com certeza, porque o não referem os evangelistas. Consta porém que, onde quer que sucedesse, foi na igreja, porque foi em um ajuntamento de muita gente da Judéia, que eram os fiéis daquele tempo, os quais em grande número tinham concorrida a ver o combate de Cristo com o endemoninhado mudo, que, pela resistência do mesmo demônio, deu tempo à fama e ao concurso. E esta é a multidão de que fala o Evangelho quando diz: Quaedam mulier de turba. – Foi pois o caso que, vencida a resistência do demônio contumaz, e lançado do castelo – como disse o mesmo Senhor – em que tão fortificado estava e se defendia, exceto alguns hereges, que foram os escribas e fariseus, toda a outra igreja fiel reconheceu e admirou o milagre: Et admiratae sunt turbae (3). Mas, como esta admiração pouco animosa parasse toda no pasmo e no silêncio, então levantou a voz uma mulher de humilde condição, mas de sublime espírito, a qual, louvando o soberano autor de tão prodigiosa maravilha, e juntamente a aventurosa Mãe, que tal Filho trouxera em suas entranhas e criara a seus peitos, disse: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti.

Este foi em suma o fim do sucesso e seus efeitos sobre o qual noto uma coisa e duvido outra. O que noto é que, sendo aquela mulher uma só, deu ela mais glória a Cristo que toda a multidão ou igreja presente. Porque a multidão só louvou mudamente a Cristo com admiração: Et admiro tae sunt turbae – e a mulher, levantando a voz sobre todos – extollens vocem – não só disse quanto eles reconheciam e calavam, mas muito mais louvando publicamente o Filho, e, pelo Filho, a Mãe: Beatus venter qui te portavit – Isto é o que noto ou nota o mesmo texto. E, passando daquela igreja à nossa, o que duvido é se assim como neste caso uma mulher, que era uma pequena parte daquela multidão, fez mais que a mesma multidão toda junta, assim possa uma só mulher, ou um só homem em algum caso, não somente igualar, mas exceder o que faz em louvor de Deus toda a multidão dos fiéis, que é a Igreja universal? A razão de duvidar é o exemplo do Evangelho. Mas como o exemplo foi obrado em um canto da Judéia e a Igreja universal está estendida por todo o mundo, parece dificultosa coisa admitir que possa fazer mais um fiel, que toda a multidão dos fiéis, e que haja de louvar mais a Deus um devoto em particular que toda a Igreja em comum? Se esta questão se me propusera antes de haver na mesma Igreja a devoção do Rosário, havia de responder, sem mais dúvida, que a proposta era impossível. Porém, na consideração do que é o do que faz o Rosário, digo que absolutamente não pode ser; mas em algumas, e em muitas circunstâncias, sim, O que determino, pois, e espero mostrar neste discurso, é que, comparada a devoção do Rosário com a de toda a Igreja, em algumas circunstâncias muito notáveis dela, faz mais um devoto do Rosário em particular que toda a Igreja universal em comum. O assunto por si mesmo está pedindo a graça: Ave Maria.
 
 

II

Extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te portavit.

– Grande é o assunto que prometi. E para eu provar uma tão grande excelência do Rosário, onde posso ir buscar a prova, senão a S. Domingos? Uma das mais singulares prerrogativas desta sagrada religião, como devotíssima da Virgem, Senhora nossa, é que no mesmo dormitório – e, antigamente, descalços como Moisés diante da sarça – dão a primeira alvorada à aurora de que nasceu o divino Sol, cantando o seu ofício. Sucedeu, pois, que ao tempo em que entoavam o invitatório, pelo estilo e rito comum da Igreja Romana, dizendo Ave Maria gratia plena, apareceu em presença de todos os religiosos A Rainha dos Anjos, e, atalhando aquelas vozes com a sua, lhes disse: – Non sic, fratres mei: Não haveis de dizer assim meus devotos. – Pois como, Senhora? – Sed Regem Virginis Filium venite adoremus: O que haveis de dizer é: Ao Rei, Filho da Virgem, vinde, e adoremo-lo. – Assim o quis e ensinou a mesma Virgem, e desde então se mudou o invitatório antigo, e se conserva na Religião Dominicana este segundo e singular entre todos. A razão desta mudança diremos logo. Mas se aquele estilo, era então, e é ainda hoje, o universal de toda a Igreja, como o variou a Senhora, e não quis que se fizesse assim, senão por outro modo? Para que entendamos que, na devoção particular de uma comunidade ou instituto, pode haver alguma tal circunstância, pela qual Deus e sua Mãe se sirvam e agradem mais dela que da universal que toda a Igreja. Tal foi a que a Mãe de Deus de novo instituiu, e tal é a que eu hei de mostrar na devoção do Rosário. Mas para que melhor a vejamos e ponderemos, saibamos primeiro a razão que a Virgem, Senhora nossa, teve para fazer aquela mudança.

A razão sem dúvida foi como das mesmas palavras se colige, porque quando se dizia: Ave Maria, gratia plena – louvava-se a Mãe expressamente, e o Filho só por conseqüência; mas quando se diz: Regem Virginis Filium, venite adoremus – louva-se expressamente o Filho, e também expressamente a Mãe. E este é o louvor perfeito com que a Mãe quer ver louvado o seu Filho, e o filho ver louvado a sua Mãe. E verdade, como bem diz S. Bernardo, que nos louvares de Jesus e Maria basta falar de um para louvar ambos, porque o louvor do Filho é glória da Mãe, e o louvor da Mãe honra do Filho. Mas a devoção que inspira ao melhor e maior, não se contenta com essas conseqüências, como se não contentou a devota oradora do nosso Evangelho. A vitória da onipotência com que foi vencido o demônio mudo, e o triunfo da eloqüência com que ficaram convencidos os caluniadores, ambos foram ações de Cristo somente, e não de Cristo menino, qual a Senhora o concedeu em suas entranhas, nem de Cristo mudo e com as mãos atadas, qual o criava a seus peitos, senão de Cristo homem perfeito, e tão crescido no saber e poder. Logo, o aplaudido, o aclamado e o louvado, parece que havia de ser somente o Filho, e não a Mãe, ou bastava que a Mãe o fosse por conseqüência. Mas a devoção inteira, e não de meias, a devoção heróica e perfeitíssima, qual era a daquele excelente espírito, não se contenta com conseqüências, que são louvores mudos. A vozes louvou expressamente o Filho, e a vozes expressamente a Mãe: Beatus venter quite portavit et ubera quae suxisti.

Isto é o que fez a Virgem, Senhora nossa, na mudança da primeira fachada do seu ofício. E isto o que faz o Rosário, ou o que fez nele, como em instituto seu, o ritual da mesma Senhora. Porque, deixadas as duas orações em que o Filho e a Mãe são expressa e distintamente louvados e invocados, qual é a matéria soberana de que o mesmo Rosário se compõe senão as vidas igualmente de ambos, ordenadas e distribuídas nos principais e mais insignes mistérios? Mas porque os mesmos mistérios, e não outros, da vida de Cristo e sua Santíssima Mãe são também os que celebra a Igreja universal, e não privada, senão publicamente, com toda a pompa e majestade de cerimônias sagradas, santidade de sacrifícios, concurso dos fiéis, harmonia de vozes nos coros, e a eloqüência nos púlpitos, que circunstância pode haver na devoção particular do Rosário, que com este culto universal da Igreja, por tantos modos divinos, se deva comparar, quanto mais dizer-se que possa preferir? Assim o que disse e torna a dizer, não absolutamente – como já adverti – por uma certa e singular circunstância, a qual não só não é vencida nesta mesma comparação, mas sem controvérsia incomparável. E qual é? É que a igreja universal celebra todos estes mistérios da vida de Cristo e sua Santíssima Mãe, mas em um ano: o Rosário celebra-os cada dia. Some agora quem quiser os dias do ano, e multiplique a diferença.

III

Tendo Deus decretado um grande castigo a todo o povo de Israel, para que todos conhecessem o que haviam de padecer, ordenou que o profeta Ezequiel o representasse e padecesse em si mesmo publicamente onde fosse visto de todos. E porque o castigo havia de durar muitos anos, reduziu-lhe a divina providência os mesmos anos a dias, de sorte que o que o profeta padecesse em um só dia fosse o que todos haviam de padecer em um ano. Assim o mediu e dispôs Deus, e as palavras com que o declarou ao profeta foram breves mas notáveis: Diem pro anno, diem, inquam, pro anno dedi tibi (4): Sabe, Ezequiel, que no que te mandei fazer, te dei dia por ano – diem pro anno – e torno a dizer que dia por ano: Diem inquam, pra anno dedi tibi. – Esta repetição na boca de Deus, e este modo de falar novo, e desusado, não pode deixar de ter grande significação. Não bastava declarar uma vez ao profeta que lhe dava dia por ano. Diem pro anno? – Porque torna a repetir o mesmo, Diem inquam pra anno – como quem encarecia o mistério, e queria que ele o entendesse bem e ponderasse muito? E se o que lhe mandava fazer era verdadeiramente um grande trabalho e uma grave penitência que lhe impunha, porque diz dedi tibi, e lhe põe o nome de dádiva, como se fora alguma mercê ou graça muito particular que lhe concedia? Porque verdadeiramente, bem entendida a empresa, assim era. Queria Deus que merecesse Ezequiel, padecendo em um só dia, o que todo Israel havia de padecer em um ano, e que, sendo os anos muitos, como haviam de ser, ele os igualasse todos em outros tantos dias; e não pode haver maior indústria de obrar, nem mais alto artifício de merecer, que chegar o trabalho particular de um homem em um só dia, e igualar o universal de todos em um ano inteiro: Diem pra anno, diem inquam, pro anno dedi tibi.

Isto ordenou Deus a Ezequiel, sendo maior o merecimento que lhe dava que o trabalho que lhe pedia; e, com a devida submissão e reconhecimento, o mesmo que Deus disse ao profeta pode qualquer devoto do Rosário dizer a Deus, quando lho oferece: Diem pro anno diem inquam, pro ano dedi tibi. – Neste Rosário, Senhor, em que se contêm os mistérios da vida de vosso bendito Filho e de sua bendita Mãe, vos dou – enquanto uma criatura pode dar a Deus – não só uma vez dia por ano, senão duas vezes: Diem pro anno, diem, inquam, pro anno. – Porque, se a Igreja, seguindo o curso do ano natural, celebra pela roda do ano os mesmos mistérios, eu, reduzindo o ano natural e o ano eclesiástico à roda do meu Rosário, os medito e celebro todos em um só dia. A Igreja celebra os passos da vida de Cristo e sua Santíssima Mãe como signos verdadeiramente celestes, pelo zodíaco do sol, que faz seu curso em um ano; e eu celebro os mesmos passos, e corro os mesmos signos pelo zodíaco do Rosário, que faz não outro, senão o mesmo giro em um dia: Diem pra anno dedi tibi. – O ano consta de trezentos e sessenta e cinco dias: e que faça o Rosário em um dia o que faz a igreja em trezentos e sessenta e cinco! Vede se é grande a diferença. As hebdômadas de Daniel eram semanas que se formavam de sete anos, computando-se os anos por dias. E é coisa notável que lhe chame a profeta semanas abreviadas: Septuaginta hebdomades abbreviatae (5). – Parece que se haviam de chamar semanas não abreviadas, senão estendidas, porque os dias se estendiam em anos. Mas chama-lhes o profeta abreviadas, porque não eram os dias os que se estendiam, senão os anos os que se abreviavam neles. Não eram dias-anos, senão anos-dias, como os do Rosário, porque o que no universal da Igreja são anos, no particular do Rosário são dias: Diem pro anno, diem, inquam, pro anno dedi tibi.

Mas, se os dias do Rosário são anos abreviados em dias, constando o ano de tantos dias, segue-se que cada dia do Rosário há de constar também de muitos dias. Conheço a força e dificuldade da conseqüência, mas eu concedo e a provo. Louva Davi a Deus no salmo sessenta e sete e diz que seja Deus bendito e louvado no dia cada dia: Benedictus Dominus die quotidie (6). – Todos reparais no dito. Se dissera o devotíssimo profeta: Seja Deus louvado cada dia no ano, ou cada hora no dia – bem se entendia este afeto do seu espírito, porque o ano compõe-se de dia, e o dia de horas; mas que seja Deus louvado na dia cada dia: Die quotidie? – Sim, porque há dias que se compõem de muitos dias, e estes são os dias do Rosário. Que haja dias compostos de muitos dias, as mesmas palavras do profeta o supõem, porque só nesta suposição se pode louvar a Deus no dia cada dia: Die quotidie. Mas que estes dias sejam os do Rosário donde se pode provar? Não de outra Escritura buscada ou trazida de mais longe, senão do mesmo salmo.

A matéria do salmo sessenta e sete, como dizem todos os padres, e o confirma S. Paulo, é um cântico universal e profético, em que se descreve a jornada do Filho de Deus ao mundo, e suas vitórias e conquistas. Como se levantou do seio do padre; como desceu feito homem à terra, como fez guerra ao pecado; como o desfez com a sua presença em fumo; como pregou em Jerusalém; como fertilizou seus montes com o próprio sangue, que, sendo vermelho, os fez mais alvos que a neve; como, finalmente, carregado de gloriosos despojos e acompanhado de inumeráveis exércitos de anjos levando livre diante de si os cativos que tinha resgatado, entrou triunfante no céu donde mandou o Espírito Santo derramando os dons de sua graça sobre todos os que nele creram. Esta é a última cláusula da história, como também o foi da vida de Cristo, a qual refere S. Paulo pelas mesmas palavras do profeta: Ascendens in altum captivam duxit captivitatem: dedit dona hominibus (7).

Suposto, pois, que na narração seguida do dito salmo se contém, não alegórica, senão literalmente o princípio e fim das divinas e humanas ações do Verbo Encarnado, desde que saiu do céu e do seio do Padre, até que tornou ao mesmo céu, e de lá mandou o Espírito Santo, o que muito se deve notar é que imediatamente depois desta última cláusula, então rompeu Davi naquele extraordinário afeto e nunca ouvida sentença: Benedictus Dominus die quotidie.. Louvado seja Deus no dia cada dia. – Chamei-lhe afeto extraordinário e sentença nunca ouvida, porque nem em todos os salmos, nem em outro lugar ou texto da Sagrada Escritura se lê semelhante. Pois, que motivo teve Davi para neste passo – e só neste passo – desejar como santo, e pronunciar como profeta, que seria Deus louvado no dia cada dia? Dê outra melhor razão quem a souber. Mas é certo que neste passo, e só neste passo se cerraram os últimos mistérios de Cristo na glória. E também é certo que estes mistérios gloriosos são os últimos com que se reza o Rosário. Logo o Rosário é aquela única devoção em que Deus é louvado no dia cada dia, porque os dias do Rosário não são dias como os outros dias, que se compõem de horas, mas dias como anos, que se compõem de dias: Diem pro anno, diem, inquam, pro anno dedi tibi.

IV

Muito era que o Rosário fizesse em um só dia o que a Igreja faz em trezentos e sessenta e cinco dias, quantos tem o ano; mas bem repartido este ano, e bem somados estes dias, também se não pode negar que a Igreja os não emprega todos em celebrar os mistérios de Cristo e sua Mãe. Faz a Igreja nestas solenidades o que notou com grande advertência o Eclesiástico que fazia Deus nas antigas. Excita uma curiosa questão este grande sábio – que muitas querem fosse o mesmo Salomão – e pergunta porque hão de ser uns dias melhores que os outros: Quare dies diem superat (8)? E a razão de duvidar que ele aponta, é porque todos os dias são feitos pelo mesmo sol – a sole. – Mas declarando que não fala dos dias naturais, senão dos dias eclesiásticos, responde que a sabedoria divina, depois de feito o sol, e a que fez esta grande diferença e distinção: A Domini scientia separati sunt, facto sole. Et immutavit tempora, et dies festos ipsorum,et ex ipsis exaltavit et magnificavit Deus, et ex ipsis posuit in numerum dierum(9) – Deus, como senhor e autor dos tempos, é o que fez esta separação de dias a dias, ordenando que uns fossem descanso, outros de trabalho; uns festivos outros feriais; uns santas, outros vulgares; uns honradas e celebrados, e exaltados sobre todos os outros, e os demais sem honra nem celebridade, e que só servem de encher o ano e fazer número. Assim o ordenou Deus, e assim o executa santissimamente a Igreja, ensinada e governada por ele. Daqui é que nós não devemos admirar, senão venerar como disposição divina, quando vemos que os mesmos mistérios da vida de Cristo e sua Santíssima Mãe, que o Rosário medita e celebra todos os dias, a Igreja universal os distribui somente por certos dias do ano, aplicando e consagrando um dia a cada um. Um dia ao mistério da Encarnação, outros à Visitação, outro ao Nascimento, outro à Presentação no Templo, outros, e uma semana inteira, aos mistérios da Paixão, outro à Ressurreição, outro à Ascensão, outro à vinda do Espírito Santo e outro, finalmente, à Assunção e Coroação da Virgem, Senhora nossa, que são todos os do Rosário.

Declara-se, com grande propriedade esta distribuição da Providência eclesiástica com um exemplo da natureza – de que também Deus é o autor – excelentemente notado por Santo Isidoro Pelusiota. – Não vedes – diz ele – a ordem, a harmonia e o compasso com que a natureza distribuiu os tempos aos frutos da terra, e os mesmos frutos aos tempos? O janeiro e o fevereiro deu-os às sementeiras e às raízes; o março e o abril às flores; o maio e o junho aos frutos temporãos; o julho e o agosto à sega e ao trigo; o setembro e o outubro às vindimas; e o novembro e dezembro aos frutos serôdios e mais duros. E porque repartiu assim a natureza os meses, uns frios, outros temperados, outros calmosos, e não quis que os frutos crescessem, amadurecessem e viessem sazonados todos juntamente? Nam si cuncta confestim ad vigore suum pervenirent, profecto agricolae industria ob temporis brevitatem in angustias veniret – A razão é – responde o santo – porque se os frutos viessem todos juntos, afogar-se-ia a indústria dos lavradores e, impedindo-se uns aos outros, seria maior a perda que a colheita. – Na agricultura espiritual sucede o mesmo. O fim para que a Igreja celebra os mistérios da vida de Cristo, e da vida da Mãe do mesmo Senhor, ambas santíssimas e férteis de divinos exemplos, é para que delas colhamos os frutos com que sustentemos as nossas almas; e para que o possamos fazer sazonada e pausadamente, sem que a mesma multidão e grandeza delas confunda e afogue a estreita capacidade de nossos entendimentos, antes vá penetrando pouco a pouco a dureza e divertimento das vontades, não só foram convenientes estes espaços intercalares, ou entremeios, em que a repetição, não continuada, mas nova, de ano em ano com a mesma novidade nos excite o fervor e convide à consideração dos mesmos mistérios. Tal é o conselho e a razão da Igreja universal, tão alta e bem fundada como sua.

Contudo, se houvesse algum lavrador tão industrioso e diligente que os mesmos frutos que a natureza repartiu por todos os meses ou tempos do ano, ele os presentasse juntos ao senhor do pomar cobertas de flores, não há dúvida que esta oferta, como de todo o campo metida em um açafate, e de todo o ano recopilado em um dia, lhe seria muito agradável. Assim o fez el-rei Salomão à lavoura do Líbano, quando às portas da bosque real, chamada saltus Libani (10), lhe presentou de uma vez quanto dentro nele nascia em todos os tempos do ano: In portis nostris omnia, poma, nova et vetera, dilecte mi, servavi tibi (11)  Aqui vos ofereço, Senhor, juntos neste dia todos os frutos de todo o ano, assim os velhos como os novos, assim os temporãos como os serôdios. E quem é esta lavradora do Líbano, senão a Virgem, Senhora nossa, a qual, quando instituiu o seu Rosário, ofereceu a Deus – coberto de flores e rosas – e nos ensinou a que nós lhe oferecêssemos junto em um dia tudo o que a Igreja divide e reparte em um ano? A Igreja e o Rosário, ambas dão a Deus dia por ano – diem pro anno – mas com grandes diferenças. O ano da Igreja dá um dia a cada mistério; e quando o Rosário dera somente um mistério a cada, dia, era diferença quase incomparável porque vai muita de dar tantas dias aos mistérios quantas são os mistérios, ou dar tantas dias aos mistérios quantos são as dias. Mas a Rosário ainda faz muito mais, porque, se a Igrejas dá um dia a cada mistério, o Rosário não só dá a cada mistério um dia, senão todos os dias a todos. Isto sim que só é dar dia por ano, porque quem não dá todas os dias do ano, não dá o ano, dá partes dele somente.

Diz a Igreja que faz esta variedade por se acomodar ao fastio dos homens: Qui temporum das tempora, ut alleves fastidium. – Mas, se a Igreja reparte os dias e os mistérios para se acomodar ao fastio dos homens, o Rosário ajunta os mistérios e mais os dias, para se acomodar ao gosto de Deus. O gosto de Deus não é como o nosso. O mesmo comer continuado cada dia, que a nós nos causa fastio, para Deus é o seu maior gosto. No capítulo vigésimo oitavo dos Números, mandava Deus aos sacerdotes que a ele – isto é, ao mesmo Deus – lhe dessem de comer todos os dias. É texto notável e expresso no original hebreu: Oblationem meam, panem meum, ignitiones meas(12) – o que tudo na nossa frase vem a ser: Victimas Deo oblatas et incensas: hae enim sunt panis, idest, cibus Dei – como literal e genuinamente comenta o A Lápide. De sorte que o comer de Deus eram as vítimas que lhe ofereciam os sacerdotes; e quando as mesmas vítimas ardiam, e as consumia o fogo, então as comia Deus, o qual apareceu em forma de fogo a Moisés, e por esta causa se praticava entre os hebreus, naquele tempo, que Deus era fogo que comia: Deus noster ignis consumens est (13). – Suposta esta erudição – que para muitos será nova – que vinha a ser o que Deus comia? Ou de que mandava que lhe fizessem o prato? O mesmo texto a diz: Agnos anniculos immaculatos duos quotidie, unum mane et alterum ad vesperum (14). – Eram dois cordeiros de um ano, ambos imaculados, um de manhã, outro de tarde, e isto cada dia. – Pois, cordeiro todos os dias, sem variar, quando Deus ordena por si mesmo o que quer que lhe ponham à mesa? Cordeiro de manhã, e cordeiro de tarde, e sempre cordeiro, e só cordeiro? Sim. Porque aos homens o mesmo comer continuado cada dia, ainda que seja o maná, causa fastio, e a Deus, não só lhe não causa fastio com a continuação de todos os dias, mas há de ser o mesmo e continuado cada dia, para lhe dar gosto.

Que significavam, pois, estes dois cordeiros de manhã e de tarde, ambos imaculados, ambos de um ano, e ambos de cada dia? Primeiramente é certo que o cordeiro significava a Cristo, cordeiro imaculado enquanto Deus, que é a santidade por essência, e Cordeiro imaculado enquanto homem, que é a suma santidade por graça, e sempre sem mácula de imperfeição ou pecado, porque ele é o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Até aqui não há dúvida. Mas, se Cristo é um só, porque eram os cordeiros dois, um sacrificado de manhã, outro de tarde? Porque nestes dois cordeiros, como diz com grande propriedade S. Bernardo, se representavam os dois estados da vida de Cristo, em que foi oferecido e sacrificado a seu Padre. Um da manhã, que é o princípio da vida e o tempo da infância, em que foi oferecido no Templo; e outro da tarde, que é o fim da vida e o tempo da morte, em que foi sacrificado na Cruz. Porém, se a vida e idade de Cristo foi de trinta e três anos, o cordeiro, porque havia de ser de um ano nomeadamente? Porque todos os trinta e três anos da vida de Cristo, e seus mistérios, queria Deus que se reduzissem a um ano, dentro do qual todos fossem representados e celebrados, como com efeito os representa e celebra a Igreja, dentro no mesmo termo, todos os anos. E contentou-se Deus só com isto? Não. Mas sobre esta representação universal, e de todos os anos, quis que houvesse outra mais particular, e de todos os dias – quotidie – e esta é só – porque não há outra – a que se faz na devoção do Rosário.

E se quisermos saber quanto mais agrada esta circunstância do Rosário a Deus, só por ser de cada dia, no mesmo sacrifício a acharemos. Tinha tanta dignidade este sacrifício, como consta da Escritura, só pela circunstância de ser de cada dia, que ele unicamente preferia a todos os outros sacrifícios que se ofereciam a Deus em diferentes tempos ou dias do ano, ainda que, pelo número e grandeza das reses, e pela celebridade das festas fossem mais solenes. Preferia aos sacrifícios da sábado, que eram de cada semana; preferia aos sacrifícios das Neomênias, que eram de todos os meses; preferia ao sacrifício pro peccato, e ao do cordeiro pascal, que eram uma vez no ano; preferia, enfim, aos sacrifícios chamados hóstias pacíficas, que eram muitos e vários em qualquer tempo, ainda que fossem dos sacerdotes, dos reis, e de todo o reino ou república. E tal é a prerrogativa do Rosário, pela circunstância somente de ser de cada dia. É verdade que os mesmas mistérios do Rosário se celebram publicamente na Igreja, com a grandeza, com a pompa, com a majestade e despesas que no Rosário não há; mas, como aquelas solenidades são de alguns dias somente, e a devoção do Rosário de todas as dias, basta só a circunstância de cada dia – quotidie – para nela e por ela ser mais aceito e agradável a Deus.

V

Mas porque nesta interpretação não pareça que me aparta da mais comum sentença dos santos e mais natural alegoria daquele sacrifício, tão fora está ele de contrariar o que digo do Rosário, que antes o confirma mais. Nem podia ser que, quando o diviníssimo Sacramento se dignou de autorizar com sua real presença a celebridade deste dia, fosse para diminuir as prerrogativas da maior devoção de sua Santíssima Mãe, senão para mais as engrandecer com o seu exemplo, e mais confirmar com a sua autoridade. S. Jerônimo, S. Irineu, S. Hipólito, S. Teodoreto, Primásio e mais comumentes padres e expositores, dizem que naquele sacrifício foi significado o do corpo e sangue de Cristo, que, consagrado e oferecido é sacrifício, e conservado como o temos presente é sacramento. Prova-se do mesmo texto, porque o rito ou cerimônia, com que os sacerdotes sacrificavam aquele cordeiro, era lançando-lhe em cima duas quantidades certas, uma de farinha de trigo, outra de vinho, nas quais se significavam proprussimamente os acidentes do Sacramento, como no cordeiro a substância. A duração e continuação que o ritual do texto prescrevia àquele sacrifício, eram também as mesmas do Sacramento. Porque, quanto à duração, assim como Cristo nos prometeu nele que a sua assistência conosco havia de ser perpétua: Ecce ego vobiscum sum usque ad consummationem saeculi (15)  assim mandava Deus que fosse perpétuo aquele holocausto: In holocaustum sempiternum (16). – E quanto à continuação, assim como o sacrifício da sagrada Eucaristia se consagra e oferece na Igreja todos os dias, assim aquele também se havia de oferecer cada dia – quotidie – e por isso se chamava com nome, que lhe pôs o mesmo Deus: Juge sacrificium – sacrifício contínuo. Toda esta explicação ou aplicação do que antigamente foi figura e hoje é realidade se declara admiravelmente na profecia de Daniel, a qual diz que o anticristo, quando dominar o mundo, há de tirar de todo ele o sacrifício contínuo: Cum ablatum fuerit juge sacrificium (17). – E como o anticristo há de fazer guerra a Cristo e à sua Igreja, que isso quer dizer anticristo, e ele se há de chamar Messias dos judeus, segue-se que o juge sacrificium que há de tirar do mundo, não é o sacrifício continuo da lei velha, que era o cordeiro, senão o da lei da graça, que é o corpo de Cristo.

Assim é com evidência; mas aqui parece que falta, ou quando menos fraqueia a excelência da nossa comparação. Porque o culto e veneração dos mistérios do Rosário, sendo na Igreja os mesmos, só dizemos que preferem no Rosário pela circunstância de serem nele de cada dia, e na Igreja de alguns dias somente. E esta diferença parece que não tem lugar ou exemplo no Sacramento, porque se bem é sacrifício de cada dia, ao modo do Rosário, não tem outro mistério de igual dignidade com o qual se possa comparar, e ao qual, por esta circunstância, deva preferir. Está bem duvidado, mas espero que a solução seja maior que a dúvida. Ouvi o mais que se pode encarecer, assim no Sacramento como no Rosário, a circunstância de serem de cada dia.

Fala o profeta Zacarias à letra de Cristo, redentor nosso, e diz assim: Quid bonum ejus, et quid pulchrum ejus, nisi frumentum electorum, et vinum germinans virgines (Zac. 9, 17)? Que coisa fez Cristo boa, e que coisa fez formosa, senão o pão dos escolhidos e o vinho que gera virgens? – O pão dos escolhidos é o Santíssimo Sacramento, debaixo de espécies de pão, e chama-lhe o profeta pão dos escolhidos, porque o outro pão é dado a todos, ou tenham fé, ou não tenham fé, ou estejam em graça, ou não estejam em graça; aquele divino pão só é dos que Deus escolheu para a fé, que são os católicos, e entre estes particularmente só é daqueles que escolheu para a sua graça, porque os que estão fora dela não lhes é lícito comer daquele pão. Do mesmo modo o vinho que gera virgens é o mesmo Sacramento Santíssimo debaixo das espécies de vinho, e chama-lhe o profeta vinho que gera virgens porque o outro vinho naturalmente é incentivo de apetites torpes, por onde disse S. Paulo: Nolite inebriari vino, in quo est luxuria(18) – e só aquele puríssimo licor, e verdadeiramente divino, tem virtude de gerar temperança e castidade. Assim que, o que diz Zacarias, e o que conclui expressa e declaradamente neste grande epifonema, é que tudo o bom e tudo o formoso que Cristo fez é o diviníssimo Sacramento. E se falara das obras de Cristo enquanto Deus, nenhuma dificuldade nem encarecimento continha tão resoluto e absoluto dito. Todas as coisas que Deus criou, a propriedade universal em que se parecem com seu autor, é em serem boas e formosas, e tão boas e tão formosas que, porque os homens vêem a sua bondade e formosura, e não vêem a de Deus, por isso deixam ao Criador pelas criaturas. Porque deixou Eva a Deus? Porque viu que o fruto da árvore vedada era bom e formoso: Vidit igitur mulier quod bonum esset lignum ad vescendum, et pulchrum oculis (19). – Daqui nasceram as idolatrias do sol e das estrelas, e tantas outras do céu abaixo. E, posto que os nossos olhos se ceguem tão facilmente com o bom e formoso das criaturas, não há fé de tão fraca vista que não veja esta mesma cegueira, e que não conheça a infinita vantagem com que é bom e formoso, sobre todas as coisas criadas, aquele soberano mistério, em que toda a bondade e formosura, não só humana, mas divina, estão encerradas.

Em que está logo a grandeza e dificuldade do encarecimento? Está em que o profeta fala das obras de Cristo enquanto Deus e enquanto homem, e determinadamente das que o mesmo Senhor obrou nos últimos dias de sua vida, depois que entrou triunfante em Jerusalém, porque o exórdio com que começa o que aqui conclui são aquelas animosas palavras: Exulta satis, filia Sion: Ecce Rex tuus veniet tibi justus, et salvator; ipse pauper, et ascendens super asinam (20). E basta que peguemos na palavra salvator para pôr ao profeta uma objeção que parece indissolúvel. A obra da redenção do gênero humano e o sacrifício da cruz, quando menos, é tão bom e tão formoso como o do Sacramento. Digo quando menos, porque se o sacrifício da cruz e o do altar; enquanto à bondade é igual e o mesmo, para conosco o da cruz foi melhor; porque o da cruz remiu-nos do pecado e do inferno, e o do altar não; e o da cruz deu-nos a primeira graça, e toda a graça, e o do altar não nos dá a primeira, porque só foi instituído para aumento dela. E se quanto à formosura, que no Sacramento do altar está encoberta – como a do Tabor com a nuvem – se disser que no Calvário, com os tormentos da Paixão e da Cruz, esteve escurecida e afeiada, é certo que para a luz da fé e para os olhos do amor nunca esteve Cristo mais formoso. Diga-o Santo Agostinho: Christus est pulcher in caelo, pulcher in terra; pulcher in utero, pulcher in manibus parentum; pulcher in miraculis, pulcher in flagellis; pulcher invitans ad vitam, pulcher non curans mortem; pulcher deponens animam, pulcher recipiens; pulcher in ligno, pulcher in sepulchro (21). Pois se a bondade e formosura do sacrifício da cruz quando menos é igual à do Sacramento, como diz tão afirmativamente Zacarias que o mesmo Sacramento, debaixo dos acidentes da hóstia e do cálix, é tudo o que Cristo fez bom, e tudo o que fez formoso: Quid bonum ejus, et quid pulchrum ejus, nisi frumentum electorum, et vinum germinans virgines (22)?

A razão, que já deve estar entendida, é porque o sacrifício da cruz foi sacrifício de um só dia: o sacrifício do altar é sacrifício de todos os dias. E é tão relevante circunstância esta de ser cada dia que, ainda que os mistérios na substância e na dignidade sejam os mesmos, os que são de todos os dias avultam tanto que os que são de um só dia quase desaparecem. Assim parece que não viu ou não atendeu o profeta ao mistério da Cruz, posto que no aparato das ações, e ainda na utilidade pública fosse mais insigne, porque lhe levou toda a vista e toda a admiração o do Sacramento. Logo, ainda que os mistérios que celebra e festeja a Igreja, com tanta solenidade, sejam os mesmos que os do Rosário, como a cada um daqueles se dedica um só dia, e a todos no Rosário todos os dias, esta circunstância de cada dia tem tanta bondade e formosura nos olhos de Deus, que não é muito que lhe sejam mais agradáveis. Na principal oração do Rosário nos manda Deus que lhe peçamos o pão para cada dia: Panem nostrum quotidianum da nobis hodie. – E por que para cada dia, e não para muitos dias, ou para alguns, quando menos? Por que gosta Deus de que lhe peçamos cada dia, e tem por mais dar menos cada dia que dar muito por uma vez. Nem pára aqui o desejo que Deus tem e a estimação que faz deste quotidie. Assim como no Padre-nosso quer que lhe peçamos cada dia o sustento para a vida: Panem nostrum quotidianum da nobis hodie – assim quer também na Ave-Maria que peçamos a sua Mãe cada dia o socorro para a morte: Ora pro nobis peccatoribus nunc, et in hora mortis nostrae. – E desta maneira, tanto nas orações, e em cada oração, como nos mistérios, e em cada mistério, sempre segue e conserva o Rosário a singular circunstância de ser cada dia.

VI

De todo este discurso podemos colher, se quisermos – e é bem que queiramos – um documento tão necessário como útil, e tão útil como admirável. Suposto que nos dias do Rosário vale tanto para com Deus um dia como um ano: Diem pro anno dedi tibi – segue-se que, para recuperar os anos perdidos e mal gastados, não há meio mais eficaz e mais certo que rezar o Rosário.

S. Paulo, escrevendo aos efésios, dá-lhes um conselho notável: Videte, fratres, quomodo caute ambuletis: non quasi insipientes (Ex. 5,15): Meus irmãos – diz o apóstolo – andai com grande cautela, e vivei como prudentes, e não como néscios. – E porque há vários modos de cautela e de prudência entre os homens, em que as cautelas são enganos e as prudências ignorâncias, a que eu vos ensino e aconselho é que trateis de resgatar o tempo, porque os dias de vossa vida até agora têm sido maus: Redimentes tempus, quoniam dies mali sunt (23). O sunt aqui é o mesmo que fuerunt. Mas como pode ser que o tempo, que já passou, se resgate? Supõe S. Paulo que o tempo que passou, ainda que está morto para a vida, está vivo para a conta. E também supôe que, se foi mal gastado, está cativo, e assim é. Está cativo o tempo passado, ou porque, sendo livre e nosso, nós o vendemos ao demônio: Venundatus est ut faceret malum(24) –ou porque, sendo nosso, e muito precioso, nós o não defendemos, e o deixamos roubar, como disse o outro filósofo a um amigo que lhe tomava o tempo sem proveito: Abi hinc, fur temporis (25). Suposto, pois, que o tempo mal gastado está cativo e se pode resgatar, como se há de fazer este resgate?

S. Jerônimo dá o modo, e diz assim: Quandotempus in bono consumimus, emimus illud, et proprium facimus quod venditum fuerat: sicque dies malos in bonos vertimus, et facimus illos non praesentis saeculi, sed futuri: Quando gastamos o tempo em boas obras compramos o mesmo tempo, e tornamos a fazer nosso o que tínhamos vendido. E deste modo os dias que foram maus se convertem em bons, e os que pertenciam ao mundo e ao inferno pertencem ao céu. – O mesmo diz Santo Anselmo. E daqui se segue que o tempo se resgata dando tempo por tempo e dias por dias: tempo bem gastado por tempo mal gastado, e dias bons por dias maus. Mas, como o tempo e os dias da vida são incertos nos moços, e nos velhos impossíveis, quem haverá que tenha ou se possa prometer cabedal seguro para tão comprido resgate? Por isso digo que só no Rosário é certo, porque nos outros modos de recuperar os anos perdidos e resgatar os mal gastados dão-se dias por dias: no Rosário dão-se dias por anos: diem pro anno. – Grande texto em Isaías.

Spiritus Domini super me, eo quod unxerit Dominus me, ut praedicarem captivis indulgentiam, ut praedicarem annum placabilem Domino, et diem ultionis Deo nostro (26). – Em lugar de ultionis lê o original hebreu compensationis, e quer dizer: – Veio sobre mim o Espírito do Senhor; e ungiu-me para que consolasse aos tristes e pregasse redenção aos cativos, anunciando a todos que Deus promete indulgência de um ano em recompensa de um dia: Annum placabilem Domino, et diem compensationis Deo nostro. – Alguns quiseram que falasse aqui o profeta em seu nome, mas é certo e de fé que falou em nome de Cristo, a qual, como refere S. Lucas, lendo na sinagoga diante de muitos rabinos este texto, disse que ele era de quem falava a profecia de Isaías e que naquele dia se cumpria: Hodie impleta est haec scriptura in auribus vestri(27). – De maneira que diz Cristo que veio resgatar cativos, e, declarando o preço do resgate, diz que dará Deus ano por dia. Os cativos que Cristo veio resgatar são os homens: logo, parece que havia de cortar o preço dos homens, e não dos anos. Pois, porque não diz apreço de cada homem senão o preço de cada ano? Porque Cristo não só veio resgatar os homens, senão também os tempos. O preço dos homens não o declarou, porque era muito caro, e lhe tocava só a ele; o preço dos tempos sim, porque era muito barato, e nos pertencia a nós. Era muito caro o preço dos homens, porque cada homem se havia de resgatar por todo o sangue de Deus; e era muito barato o preço dos tempos porque se havia de dar a indulgência e perdão de um ano inteiro pela pensão de um só dia: Annum placabilem Domino, et diem compensationis Deo nostro. – E isto é o que faz um só dia do Rosário, e o Rosário cada dia e todos os dias.

Oh! se Deus nos abrisse os olhos! Quantos exemplos lemos e temos ouvido de almas que Cristo e sua Santíssima Mãe resgataram do cativeiro de muitos anos e de toda a vida, só pela pensão do Rosário de cada dia! Que homem há, não digo dos velhos, senão de todos, que se lhe ofereceram um remédio com que tornar a viver os anos de toda sua vida, o não comprasse a todo o preço? E se este remédio se pusesse em leilão no inferno ou no purgatório, que dariam por ele, não só as almas que estão ardendo temporalmente, senão as que hão de arder por toda a eternidade? Pois este remédio é o Rosário, e remédio de cada dia. Tanta é a força das suas orações e da meditação de seus mistérios! Notificou o mesmo profeta da parte de Deus a el-rei Ezequias, gravemente enfermo que morreria sem dúvida: Morieris tup et non vives (28) – E vendo-se ele chegado ao último dia, que faria? Oh! que boa resolução, e melhor, se não se deixar para tão tarde! De mane usque ad vesperam finies me. Sicut pullus hirundinis, sic clamabo; meditabor ut columba (29): Suposto que me não resta mais que um dia de vida, da manhã até à tarde o remédio que só possa ter é meditar e orar: Meditabor ut columba. Sicut pullus hirundinis, sic clamabo. – Meditou e orou, que são as duas partes de que se compõe o Rosário, e deu-lhe Deus quinze anos de vida, como se fora em honra dos quinze mistérios. O certo é que fez o rei propósito – se não foi voto – de continuar a sua oração todos os dias: Domini salvum me fac! Et psalmos nostros cantabimus cunctis diebus vitae nostrae (30).

Mas estes quinze anos foram acrescentados e futuros. O que eu digo é que a oração e meditação faz tornar a viver os passados. Assim o experimentou neste mesmo caso, e o disse o mesmo Ezequias: Recogitabo tibi omnes annos meos in amaritudine animae meae. Domine, si sic vivitur (31). Suposto – diz o rei, falando com Deus – que nestes apertos de tempo em que me vejo, não tenho outra coisa com que satisfazer o passado, meditar-vos-ei, Senhor, todos os anos da minha vida. – Aqui ponto. E logo acrescentou: já que assim se vive. – Notável razão! Ezequias estava morrendo, e parece que havia de dizer: Meditar-vos-ei todos os anos de minha vida, já que assim se morre. – Pois, porque não diz: já que assim se morre, e não, já que assim se vive: Domine, si sic vivitur? – Porque meditar os anos da vida passada é o único remédio para as tornar a viver. Chegado a rei àquele último e temeroso dia, desejava o que todos desejam debalde, quando se vêem nele. Desejava desandar, se pudesse, o caminho e os caminhos de toda a vida. Desejava tornar a viver os anos vividos e passados, para os viver de outro modo. Mas como isto era impossível: – Ao menos, Senhor – dizia – já que não posso viver os meus anos, quero-os meditar e orar. Quero-os meditar, oferecer-vo-los meditados, que isso é recogitabo tibi omnes annos meos – e quero orar e pedir-vos perdão deles, que isso é in amaritudine animae meae. E quando ia para dizer: E assim morrerei – ilustrado com maior lume do céu disse: E assim viverei: Domine, si sic vivitur – Porque o cuidar deste modo é viver, e o recuidar, reviver. Ele dizia: já que não posso reviver os meus anos, quero-os recuidar – e o recuidá-los era revivê-los: Recogitabo tibi omnes annos meos. Domine, si sic vivitur.

VII

Pois, se cuidar e recuidar os anos próprios já vividos, meditando e orando, é torná-los a viver, que será meditar desta maneira, não os anos próprios e mal gastados, senão os anos puríssimos e santíssimos da vida de Cristo e de sua Mãe, como se faz no Rosário? O Rosário não diz: Recogitabo tibi omnes annos meos – senão: Recogitabo tibi onmes annos tuos. – Omnes annos tuos falando como Filho de Deus, e omnes annos tuos falando com a Mãe de Deus. Oh! como me arrependo já do pouco que disse, e do assunto que tomei a medo, parecendo-me grande e muito encarecido quando comparei os dias do Rosário com os anos da Igreja. Que muito é que um dia do Rosário seja tão grande como um ano de Igreja, se é tão capaz e tão imenso, que abraça todos os trinta e três anos da vida de Cristo, e todos os sessenta e três da vida de sua Mãe? E se os anos que se meditam e tornam a meditar se vivem e revivem em um dia, que vidas e que anos serão os que vive em um só dia o verdadeiro devoto do Rosário, meditando a vida e vivendo os anos de Cristo, e meditando a vida e vivendo os anos da Virgem Maria? Cristo instituiu o Santíssimo Sacramento para que nós vivêssemos pela sua vida, assim como ele vive pela do Padre; e a Virgem Maria instituiu o Rosário como outro Sacramento, para que nós vivêssemos a vida de seu Filho e mais a sua. E assim como Cristo no Sacramento, não contente com viver em nós por graça, quis também viver em nós por memória – In mei memoriamfacietis – assim a Virgem Santíssima no Rosário se não contentou somente com que rezássemos as orações, senão que meditássemos os mistérios, para que por meio da meditação da vida de seu Filho e sua, vivessem ambos em nós, e nós em ambos por memória e graça.

Vejam agora os que não rezam o Rosário, ou o rezam só de boca, e o não meditam, que meditações são as dos seus dias e dos seus anos: Omnes dies nostri defecerunt. Anni nostri sicut aranea meditabuntur (Sl. 29, 9): Passaram-se os nossas dias – diz Davi – e quase se tem passado os anos, e todas as nossas meditações são como as da aranha. Toda a meditação da aranha é estar urdindo e tecendo redes. E para quê? Para tomar uma mosca. Pois, aranha vã e altiva, que sempre buscas o mais alto da casa, estas são as tuas meditações, e estes os teus cuidados? Para isto fias, para isto teces, para isto te desentranhas? – Sim. E mais razão tenho eu – diz a aranha – de estranhar as meditações dos homens do que eles as minhas. Eu medito em tomar uma mosca com que sustento a minha vida, eles meditam em tomar moscas com que perdem a sua. A esta meditação da vaidade de nossos dias e anos ajunta Davi no mesmo lugar outra da brevidade deles, que para os que rezam o Rosário é de casa, porque é da rosa: Mane sicut herba transeat; mane floreat, et transeat; vespere decidat, induret, et arescat (32). De manhã nascida, de dia florente, à tarde murcha e seca: De mane usque ad vesperam finies me(33) disse el-rei Ezequias, e o mesmo pode dizer a rainha das flores. Pela manhã majestade, ao meio-dia febre, à noite desengano, e tudo isto em um dia. Boa meditação para quando se toma nas mãos o Rosário. Sobre este conhecimento da vaidade e brevidade da vida: primeiro, meditar os nossos anos para resgatar os passados; depois, meditar os de Cristo e sua Mãe, para multiplicar e segurar os futuros. Este é o Rosário de que falei, e o que não é este não é Rosário da Virgem, Senhora nossa, o qual não consiste em falar, senão em meditar e orar. A mesma Senhora se digne de orar por nós, agora e na hora da nossa morte. Amém.
 

(1) Uma mulher, levantando a voz do meio do povo, lhe disse: Bem aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Lc. 11,27).

(2) No meio da igreja te louvarei. Para contigo o meu louvor na igreja (Sl. 21,23,26). Seja o sue louvor da igreja dos santos.

(3) E se admiraram as gentes (Mt. 9,33).

(4) Um dia que eu te dei por cada ano, um dia, digo, por cada ano (Ez. 4,6).

(5) Setenta semanas abreviadas (Dan. 9,24).

(6) Bendito o Senhor em toda a série dos dias (Sl. 67,20) - segundo a versão clássica do Pe. António Pereira de Figueiredo.

(7) Quando ele subiu ao alto, levou cativo ao cativeiro, deu dons aos homens (Ef. 4,8).

(8) Por que é que um dia é preferido a outro dia (Eclo. 33,7).

(9) Foi a ciência do Senhor que os diferenciou, depois que criou o sol. E variou as estações, e os seus dias de festa. Destes mesmos dias fez Deus a uns grandes e sagrados, e a outros pôs no número de dias comuns (ibid. 8, ss).

(10) Bosque do Líbano (3 Rs. 10,17).

(11) Nós temos às nossas portas toda a casta de pomos; eu tenho guardado para ti, amado meu, os novos e os velhos (Cânti. 7,13).

(12) Núm. 28, 2, Text. Hebr.

(13) O nosso Deus é um fogo consumidor (Hebr. 12,29; Dt. 4,24; 2 Mac. 2,10; 2 Par. 7,1; Lev. 9,24).

(14) Dois cordeiros de um ano, sem defeito, cada dia, um pela manhã e outro à tarde (Núm. 28,3 s).

(15) Estais certo de que eu estou convosco todos os dias, até à consumação do século (Mt. 28,20).

(16) Em holocausto perpétuo (Núm. 28,3).

(17) Desde o tempo em que o sacrifício perpétuo for abolido (Dan. 12,11).

(18) Não vos deis com excesso ao vinho, donde nasce a luxúria (Ef. 5,18).

(19) Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos (Gên. 3,6).

(20) Salta de extremado prazer, ó filha de Sião: Eis aí o teu rei virá a ti, justo e salvador: ele é pobre, e vem montado sobre uma jumenta (Zac. 9,9).

(21) S. August. in. Psalm. 44.

(22) Qual é o bem dele, qual é a sua formosura, senão o pão dos escolhos, e o vinho que gera, virgens (Zac. 9,17)?

(23) Remindo o tempo, pois que os dias são maus (Ef. 5,16).

(24) Vendeu-a para fazer o mal (3 Rs. 21,25).

(25) Vai-te daqui ladrão do templo.