Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Salmon autem genuit Booz de Rahab (1).

I

Salvarem-se os pregadores e perderem-se os ouvintes ou salvarem-se os ouvintes e perderem-se os pregadores, casos são e desigualdades que podem ter acontecido muitas vezes no mundo. Mas assim como perderem-se os pregadores e os ouvintes seria a maior desgraça, salvarem-se uns e outros não será a maior felicidade que se podem desejar? Claro está que sim. Pois, tal é a que por meio do seu Rosário nos prometem neste sermão a Virgem Senhora nossa. Queira misericórdia e bondade de seu bendito Filho que não falte por parte do pregador. Mandando Deus ao profeta Ezequiel que fosse pregar ao seu povo, disse-lhe, com eleição e nome notável, que o tinha feito sentinela da república de Israel; – Fili hominis, speculatorem dedi te domui Israel(2) – e por que são ou devem ser sentinelas os pregadores? Porque têm as mesmas obrigações e os mesmos encargos. A sentinela está vigiando do alto para toda a parte, e se vê vir os inimigos, dá rebate, toca a arma e avisa a cidade a grandes brados. Esta é a sua obrigação. E os encargos quais são? Os que logo declarou o mesmo Deus ao profeta. Se vires o perigo, e o não avisares à cidade, perecerá a cidade, e tu também perecerás, porque te hei de pedir conta dela, e de todos seus moradores. Porém, se tu avisares como deves, e a cidade se não armar nem defender, ela se perderá por sua culpa, e tu, porque a não tiveste, ficarás livre. Tão perigoso como isto é o ofício de pregador, e tanto igualmente o perigo dos ouvintes, se não se aproveitarem do que ele lhes pregar! E pode haver, além destes, outro terceiro caso? Sim, pode, e felicíssimo, o qual também apontou o mesmo Deus. Mas se tu, diz o Senhor, fizeres tua obrigação bradando, e a cidade e seus moradores fizerem a sua crendo o que lhe disseres, armando-se, resistindo e vencendo, neste caso tu e mais eles todos sereis salvos. Isto é o que Deus principalmente pretende, e este o fim e ofício dos pregadores. Os pregadores são as sentinelas da Igreja, os templos as suas fortalezas, as guaritas destas fortalezas os púlpitos, e as pregações de verdadeira, zelosa e importante doutrina os rebates com que avisam e admoestam aos ouvintes do estado perigoso de sua salvação. Assim o determino fazer hoje, com tanta esperança de se aproveitarem muitas almas, como no princípio disse, e não sem novo e grande exemplo, no mesmo tema que propus. Chegado Josué à vista da Terra de Promissão, mandou duas sentinelas que ocultamente fossem explorar a cidade de Jericó, que era a primeira que havia de ser conquistada. Entraram na casa de Raab, que estava pregada aos muros, avisaram-na do seu perigo e de toda a cidade, e foi com tão feliz sucesso de ambas as partes, que as sentinelas, sendo vistas e buscadas, escaparam das mãos dos inimigos, e Raab, sendo destruída e abrasada a cidade, só ela, com toda a sua família, se livrou do incêndio. Dizem agora os expositores que as sentinelas de Josué são os pregadores de Jesus, e Raab e sua família os ouvintes que fazem o que eles dizem. Mas o que faz mais admirável o caso é que, assim os pregadores como os ouvintes, todos foram salvos pelo mesmo instrumento. Este nos dirá o discurso, que foi o Rosário: Ave Maria.
 
 

II

Salmon autem genuit Booz de Rahab. (Mt. 1,5).

Estamos com o Evangelho em Jericó, remota mas original pátria da Virgem Maria, e na qual profetizou a mesma Senhora as exaltações do seu Rosário: Exaltata sum quasi plantatio rosae in Jericho (3). E por que razão mais em Jericó, que em outra terra fértil também de rosas? Porque entre todas as rosas do mundo só as de Jericó – de que já outra vez citei os autores – nascem vestidas de cento e cinqüenta folhas. Assim que a terra de Jericó, onde estamos, nas rosas nos dá o nome do Rosário, e nas folhas o número ou as contas dele. Os efeitos maravilhosos veremos agora.

Salmon autem genuit Booz de Rahab. – Esta Raab, de quem diz o evangelista que Salmon, príncipe da tribo real de Judá, gerou a Booz, não só era gentia de nação cananéia, mas publicamente de ruim vida. E assim este exemplo, como outros, três que se lêem no mesmo Evangelho, o de Tamar o de Rute e o de Bersabé, deram justo motivo aos santos padres para inquirir a causa porque na genealogia de Cristo e de sua Santíssima Mãe se nomeiem declaradamente estas quatro mulheres, todas notadas de ações culpáveis e afrontosas, calando-se muitas outras conhecidamente santas, e de vida louvável. Se se nomeia Raab, mãe de Booz, por que se não nomeia Sara, mãe de Isac? Se se nomeia Rute, mãe de Obed, por que se não nomeia Rebeca, mãe de Jacó? Se se nomeia Tamar, mãe de Farés e Zarão, por que se não nomeiam Lia e Raquel, mães das cabeças mais nobres das doze tribos? E se também de Bersabé se faz menção, por que se não faria de outras mulheres mais leais e seus maridos, do que ela foi a Urias? Pode-se responder, e com razão, que onde na árvore da geração de Cristo, e no cume mais alto dela, se vê com o Filho de Deus nos braços Maria de qua natus est Jesus(4) toda a outra santidade, por grande que seja, desaparece e se oculta, e tudo o que aparece e se descobre mais é vicio que virtude. À vista da bondade de Deus ninguém é bom: Nemo bonus nisi solus Deus(5)à vista de sua infinita pureza até a dos anjos parece culpa: In angelis suis reperit pravitatem (6)e o mesmo que se diz de Deus absolutamente, com a devida proporção, se pode também dizer de sua Mãe. O que eu digo confiadamente é que, à vista da mesma Senhora, todas as mulheres santas se ocultam, porque a santidade de Maria as escurece; e só aparecem, e são vistas as pecadoras, porque o seu resplendor as alumia. Quando a primeira vez foi vista no mundo a Virgem Maria, o que disseram admirados, e lhe cantaram a dois coros o céu e a terra, foi que era formosa como a lua e escolhida como o sol: Pulchra ut luna, electa ut sol (Cânt. 6,9). – E por que é comparada a mesma Senhora a tão diferentes planetas, um que preside ao dia, e outro que preside à noite? Porque o sol escurece as estrelas, a lua alumia as trevas. E isto é o que faz neste formoso anfiteatro, ou neste hemisfério do Evangelho, quando se pronuncia no fim dele o nome de Maria. Não aparece Sara, Rebeca, Raquel nem Lia, que eram as estrelas da virtude, porque Maria como sol as escurece; e só aparecem e são vistas, Raab, Tamar; Rute e Bersabé, que foram as trevas dos vícios, porque Maria como lua as alumia. As escurecidas pelo que são, as alumiadas pelo que foram, e todas melhoradas e honradas pelo resplendor de Maria.

III

Isto é o que eu dissera. Porém a razão ou resposta comum dos doutores, com S. Jerônimo, Santo Ambrósio, S. João Crisóstomo e outros padres, é que se não constam na genealogia de Cristo algumas mulheres santas, senão somente as de vida em outro tempo culpável, para que no seu mesmo nascimento mostrasse o Filho de Deus que, pois se dignava nascer de pecadores, vinha livrar a todos de seus pecados. As palavras de S. Jerônimo são estas: Notamdum in genealogia Salvatoris nullam sanctarum assummi mulierum, sed eas quas Scriptura reprehendit ut qui propter peccatores venerat, de peccatoribus nascens, omnium peccata deleret (7). Aceitada, pois, e reverenciada, como devo, esta razão, não posso deixar de admirar e ponderar nela duas coisas em que muito reparo. Os defeitos de que foram notadas ou infamadas estas quatro mulheres, todos pertencem à honestidade. Rute, que foi a menos murmurada, é certo que solicitou o tálamo de Booz; a culpa de Bersabé notoriamente foi adultério, a de Tamar incesto, e o da nossa Raab comércio de si mesma, público e vago, como declara o nome de Raab meretriz. Pois, se em muitos dos outros ascendentes desta larga genealogia se acham outros pecados de todo o gênero, e não poucos ainda mais graves, por que se faz somente memória, e se trazem só por exemplo as que encontram e ofendem a honestidade? Não foi a redenção de Cristo tão copiosa, como lhe chama o profeta, que nos remiu e livrou de todos os pecados, e, se foram mais e maiores também nos livraria deles? Sim, e as mesmas palavras o dizem: Ut de peccatoribus nascens, omnium peccata deleret – por que se faz menção logo deste só pecado, quando se diz que nasce Cristo de pecadores, porque vem a salvar de todos os pecados?

Porque é tal o pecado da desonestidade que ou ele só compreende todos os pecados, ou todos se contêm nele. Não foi este o pecado da Madalena? Este foi, como todos sabem. E, contudo, o evangelista S. Lucas, sem reparo nem escrúpulo, lhe chama absolutamente a pecadora: Mulier in civitate peccatrix (8). – Pois, um pecado particular em certa espécie merece o nome e censura universal de todo o pecado? Nesta espécie sim, e assim o qualificou o evangelista, porque o pecado de sensualidade é um compêndio universal de todos os pecados, e uma suposição certa de todos. Por isso se refere no mesmo Evangelho, que Cristo lançara do corpo da Madalena sete demônios: De qua ejecerat septem daemonia (9). – E que sete demônios eram estes? Eram, diz S. Gregório, os sete demônios que presidem aos sete pecados capitais, ou os mesmos sete pecados capitais, piores que os mesmos demônios, os quais são companheiros inseparáveis do vício da torpeza. Os outros vícios podem andar separados uns dos outros, e ainda encontrados, porém o vício da torpeza, ou juntos em si, ou encadeados após si, sempre os traz todos consigo. É doutrina e conclusão esta de todos os padres, sem faltar um só. Ouçamos por todos a Santo Agostinho,: Nulla virtus, nulla bonitas, nulla sapientia cum luxuria stare potest, sed omnis perversitas in ea regnat(10) – Ninguém cuide – diz Agostinho – que a torpeza é um só vício, uma só maldade, um só erro, e uma só ignorância. Por quê? Porque é um vício que se opõe a toda a virtude: nulla virtus; é uma maldade que destrói toda a bondade: nulla bonitas; é um erro de ignorância que cega e escurece toda a sabedoria: nulla sapientia; enfim, é um pecado em que dominam e reinam todos os pecados: Omnis enim perversitas in ea regnat.

E para que fique mais clara esta tão importante verdade, vejamo-la, com S. João, admiravelmente retratada no seu Apocalipse. Diz S. João que viu uma mulher assentada sobre um monstro encobertada de púrpura o qual tinha sete cabeças e dez pontas: Vide mulierem sedentem super bestiam coccineam, habentem capita septem, et cornua decem (Apc. 17,3). – As galas de que vinha vestida a mulher eram tão ricas, como o costumam ser as que se compram para o corpo vendendo a alma: Circumdata purpura, et auro, et margaritis(11) – Trazia na mão uma taça de ouro cheia de toda as abominações e delícias torpes: Habens paculum aureum in manu sua, plenum abominatiane et immundita (Apc. 17,4). – E o que fazia com esta taça era brindar a todos os reis do mundo, os quais, e quantos dela bebiam, todos perdiam o juízo: Cum qua fornicati sunt reges terrae, et inebriati sunt qui inhabitant terram de vina prostitutionis ejus(12). – Quem fosse ou representasse esta mulher, ninguém haverá que a não tenha entendido. S. João lhe chama a grande meretriz: Meretricis magnae – e ela mesma, publicamente e sem nenhum pejo, trazia escrito na testa um letreiro que dizia: Babylan magna, mater fornicationuni (ibid. 5): Eu sou a grande Babilônia, mãe de todas as torpezas. – Nota particularmente o evangelista que todos aqueles a quem ela brindava, em vez de lhe fazerem a razão, a perdiam: Et inebriati sunt de vina prostitutianis ejus – porque o primeiro e mais pernicioso efeito da torpeza é entorpecer e tirar o juízo a todos os que se lhe entregam: Cum luxuria semel mentem invaserir; nullum bonum cogitare permitnit – diz S. Gregório Papa. – E este é o mistério por que a sensualidade vinha assentada sobre um bruto, que é o apetite bruto e irracional, que se não distingue dela: Sedentem super bestiam.

Mas esse mesmo bruto, a cujos passos ela caminhava para a condenação, como diz o texto, porque pintou Deus ao evangelista com sete cabeças e dez pontas: Habentem capita septem, et cara na decem? – Parece que o número das pontas havia de responder ao das cabeças, e serem somente sete pontas, ou o número das cabeças havia de responder ao das pontas, e serem também dez cabeças. Pois, se as cabeças eram sete, porque eram as pontas dez? Bem se mostra ser Deus o pintar de uma figura tão natural. Nas cabeças eram significados os poderes com que a sensualidade domina, e nas pontas as armas com que peleja, e os estragos que executa. A sensualidade, entre os sete pecados capitais, tem um só lugar, que é o terceiro, e contra os dez mandamentos tem também um só, que é o sexto; mas porque, sendo um só pecado capital, domina em todos sete, por isso tem sete cabeças: capita septem – e porque, opondo-se a um só mandamento, destrói e desbarata todos dez, por isso tem dez pontas: et cornua decem. – De sorte que, sendo um só pecado, e encontrando um só mandamento, assim entre os pecados, como contra os mandamentos, é um que pode tanto como todos. E como o pecado da desonestidade é um pecado em que se contêm e resumem todos, por isso com grande propriedade faz só menção o evangelista dos pecadores deste gênero, quando diz que nasce Cristo para salvador de todos os pecados: Ut omnium peccata deleret.

IV

Aqui, porém, entra agora o meu segundo reparo, que não é menos bem fundado que o primeiro. Que se faça somente menção do pecado da desonestidade, porque nele vão compendiados e resumidos todos os outros, bem está. Mas nesta mesma genealogia temos Judas, Booz, Davi, Salomão, e a outros muitos homens, que também delinqüiram no mesmo pecado. Pois, porque se não introduzem e alegam os exemplos ou escândalos dos homens, senão os das mulheres? Porque nas mulheres, assim como é mais afrontoso este pecado, assim é mais perigoso e mais pernicioso. Considerai todos os estragos que tem feito no mundo o pecado da desonestidade, e achareis que as mulheres foram a causa. Descreve S. Bernardo o vício da sensualidade assentado em uma carroça, e diz que esta carroça se move sobre quatro rodas, que tiram por ela dois cavalos, e que os governa ou desencaminha um cocheiro. Eu, na aplicação destas partes, me desvio alguma coisa da idéia do artífice, mas creio que ele o haverá por bem. As quatro rodas sobre que se move a carroça da sensualidade são a abundância, a gula, a ociosidade, e a delícia. Os dois cavalos fortes e bem pensados que tiram por ela, um é o gosto do presente, outro o esquecimento do futuro. O cocheiro que os governa é o apetite, não só cego de seu nascimento, mas sobre isso com os olhos vendados. Não leva as rédeas na mão, porque aqueles cavalos não sofrem rédeas, e só se serve do açoite incessantemente, com que os esperta e incita a que corram a toda a fúria, a que se precipitem, a que se despenhem. Nesta carroça, pois, tão mal guiada, peleja, e, por isso mesmo, vence a sensualidade, e porque raramente é vencida, como diz Santo Agostinho, nela triunfa e triunfou sempre do mundo desde seu princípio.

A primeira figura que aparece neste lastimoso triunfo, é Adão vestido de peles, lançado do paraíso e despojado do império do mundo por uma mulher, e essa não alheia, mas própria. Oh! quantos filhos o seguem sem cabeça, porque a não tiveram! Mas as mesmas que lhas fizeram perder, para maior ostentação e publicidade as levam nas mãos. Dina leva na mão a cabeça de Siquém, Jael a cabeça de Sisara, Dalila a de Sansão, Judite a de Holofernes, Bersabé a de Urias, Tamar a de Amon, filhos ambos de Davi, e Herodias a maior cabeça que nasceu entre os nascidos, a do grande Batista. Mas que muito que cada mulher destas em diferentes idades, ou desse ou ocasionasse a morte de cada um destes homens tão notáveis no mundo, se a quantos hoje são, a quantos foram e a quantos hão de ser, uma só mulher os matou a todos, Eva! Admiramo-nos de que uma só Helena, com dez anos de cruelíssima guerra, abrasasse finalmente a Tróia, e não advertimos que em todas as partes do mundo houve Tróias e Helenas. Helena foi da Ásia, Semíramis em Babilônia; Helena da África, Cleópatra no Egito; Helena da Europa, Lucrécia em Roma; e Helena de Espanha, não Florinda, mas Cava. Aquela com o cetro de Rômulo acabou de uma vez todos os reis romanos, e esta com o de Rodrigo cativou por oitocentos anos o florentíssimo dos godos. E se a intemperança de uma só mulher, ou voluntária, ou rendida, faz tamanhos estragos, que fará a de muitas juntas? Não falo nos poderosíssimos exércitos, nem de Moisés em Moab, nem de Aníbal em Cápua, nem de Antíoco nas suas bodas, feridos e desbaratados desta peste porque tudo desaparece à vista do que agora vejo. Vejo flutuar todo o mundo dentro em uma arca, e todo o gênero humano, não nadando, mas afogado debaixo do dilúvio. E de um castigo tão universal, tão estranho, tão horrendo, tão novo, e nunca repetido, qual seria a causa? A causa, diz o texto sagrado, que foi a universal corrupção, que se podia curar com a universal sepultura: Omnis quippe caro reperat viam suam(13)e se perguntarmos à mesma Escritura qual foi a causa dessa corrupção, com a mesma clareza responde que não foi outra senão a descompostura das filhas dos homens, que corromperam a virtude dos filhos de Deus: Videntes filii Dei filias hominum quod essent pulchrae (14).

Já não tem mais mundo para onde correr a sensualidade, pois já assolou e destruiu todo, e já aqui pudera parar o seu infame e portentoso triunfo, mas quer levar a toda às rodas da sua carroça, como o maior troféu de todo ele, a sabedoria de Salomão em estátua, com a sua mesma sentença: Mulieres apostatare faciunt sapientes (15). – Quem cuidará, diz o nosso português Santo Antônio, que aquele mesmo homem, a quem Deus tinha escolhido para lhe edificar o templo de Jerusalém, na mesma Jerusalém havia de edificar outros templos, e levantar outros altares aos ídolos de suas concubinas, e não na mocidade, senão na velhice? Oh! quão perigosa está a fé onde tanto reina e domina este maldito contágio! Por isso os hereges antigos – e o mesmo fazem os modernos – vendo que não podiam impugnar a fé católica com força de verdadeiras razões, por traça e conselho verdadeiramente saído do inferno, trocaram as armas e lhe fizeram a guerra por meio de mulheres. Assim o fez Simão Magno por meio de Silene, assim Montano por meio de Maximila, assim Apeles por meio de Filomena, assim os origenistas por meio de Melânia, assim os arianos por meio de Constança, assim os priscilianistas por meio de Ágape e Gala, e assim Marcião e Nicolau Antioqueno por meio, não de uma mulher ou duas, senão de muitas, como escreve S. Jerônimo (16). Desta maneira os hereges, assim como a serpente não acometeu por si mesmo a Adão, senão por meio de Eva, assim eles, passando os seus mesmos argumentos das suas línguas às das mulheres, ervaram astutamente as setas, e lhes deram com o doce veneno a força de matar, que por si mesmas não tinham.

Note, porém, o sexo feminino – para que se conheça – que aquelas enganadoras também eram enganadas, e que, antes de brindarem a taça de Babilônia, primeiro a bebiam. As abelhas picando morrem, e maior é o dano que recebem que o que causam. O que fazem padecer é de fora: o que padecem, de dentro. Que importa que atirem setas de fogo, se lhes fica o inferno no coração? O carvão que não arde não queima. Por isso Salomão comparou este gênero de gente às brasas: Numquid potest honro ambularesuper prunas, ut non comburantur plantae ejus? Sic qui ingreditur ad mulierem (17). – É sem dúvida, que quanto Virgílio escreveu da rainha Dido foi falso testemunho e fábula. Mas o que disse do fogo, dos incêndios, da inquietação, do desassassego, da perpétua imaginação e cuidados, com descuido e esquecimento de tudo o mais, eram efeitos verdadeiros e próprios da paixão que supunha e descrevia. E se não, dispomo-los da majestade, e vejamo-los em sujeito menos indecente. Tanto que a Samaritana conheceu a Cristo por quem era, foi logo levar a nova aos da sua cidade, e as palavras que lhes disse foram estas: Venite, et videte hominem qui dixit mihi quaecumque feci (Jó. 4,29): Vinde ver um homem, o qual me disse tudo quanto fiz em minha vida. – O que Cristo tinha dito a esta mulher foram somente as amizades passadas, em que tinha vivido torpemente, e a última e presente em que agora continuava; e não lhe disse mais. Pois isto é tudo a que esta mulher tinha feito em sua vida? A palavra quaecumque ainda aperta mais a dúvida, que se dissera omnia, porque omnia quer dizer tudo em geral,e quaecumque não só significa tudo geralmente, senão todas as coisas, e cada uma delas em particular. Pois, se Cristo não lhe falou mais que nas suas ruins amizades, como diz que lhe dissera quanto tinha feito? Não tinha feito outra coisa em toda sua vida esta mulher?

Não. Porque as mulheres de semelhante vida tudo o que fazem é isto. Tanto que o apetite mulheril se entrega a semelhantes divertimentos, ou se diverte e empenha o amor em semelhantes cegueiras, isto é o que faz enquanto faz, e isto só, e nenhuma outra coisa. Aqui emprega toda a vida e toda a alma; aqui todas as potências e todos os sentidos; aqui todos os pensamentos, todas as palavras e todas as obras. Se obra com a memória, disto só se lembra; se como entendimento, nisto só cuida; se com a vontade, isto só ama Se vê, para isto só olha; se ouve, isto só escuta; se conversa, nisto só fala; se dorme, isto só imagina, e com isto sonha. E como não há alegria sem tristeza, nem desejo sem temor; nem esperança sem dúvida, se está alegre, estes são os seus gastos, se triste, estas são as suas lágrimas, e se prevalece no coração qualquer outro afeto – sempre vário e sempre o mesmo – estes são os seus cuidados, estes os seus desvelos, estas as suas ânsias, sem descanso, sem quietação, sem sossego, ardendo, enfim, e penando perpetuamente naquele fogo infernal, cego e furioso, o qual na coroação feminil, como mais brando, prende com maior facilidade, como mais estreito, queima com maior violência, como mais frio, dura com maior contumácia. Na mesma Samaritana se viu esta diferença. O fogo que pegou aos homens apagou-se, que por isso foram cinco os amigas que já não eram, e o seu, em que ela dentro em si mesma ardia, coma fogo do inferno, não se extinguiu, e ainda durava: Et quem babes, non est tuus vir (18).

Sendo, pois, o vício e pecado da sensualidade em todo o gênero humano o mais universal, e no gênero feminino mais pernicioso, com razão, deixados todos os outros vícios e pecados, nos representa o evangelista particularmente só este, e debaixo destas mesmas circunstâncias, quando nos diz que nasce Cristo de pecadores, para os remir e salvar de todos seus pecados: Ut omnium peccata deleret.

V

Mas porque não basta ter Cristo remido o gênero humano de todos os pecados, se nós tornamos a cair neles, que importará ter mostrado tão largamente o perigo, se não houver quem nos descubra e nos ensine o remédio? Isto é o que agora havemos de ver, desenrolando a história de Raab, o que o mesmo evangelista sucintamente se refere nas poucas palavras que propus: Salmon autem genuit Booz de Rahab (19). – Era Raab uma mulher, não só de vida pouco honesta, mas publicamente pecadora, como já dissemos; estava condenada por sentença, não menos que do mesmo Deus, para arder com todos os mais da cidade de Jericó; escapou, contudo, ela só da morte e do incêndio, por meio de um cordão vermelho, que distinguiu a sua casa de todas as outras. E que cordão vermelho foi este? Assim como o incêndio de Jericó, toda abrasada em chamas vivas, foi figura do inferno, e assim como Raab, condenado a arder nas mesmas chamas, foi figura dos que se condenam pelo pecado da sensualidade, assim diga que aquele cordão vermelho foi figura do Rosário da Virgem, Senhora nossa, por meio do qual os que dele se valem, se livram do fogo eterno. Peço atenção a todos, e muito particularmente ma devem dar os que têm fundamento para se temer deste vício.

Fala Davi da Virgem, Senhora nossa, debaixo do nome e metáfora de Jerusalém – porque Jerusalém e Maria ambos foram morada de Deus – e depois de tomar por assunto quão gloriosas são as maravilhas que da mesma Senhora se têm dito: Gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei (20)! aquela que põe em primeiro lugar é prometer a Mãe de Deus que até de Raab e de Babilônia se lembrara, se elas a conhecerem: Memor ero Rahab et Babylonis, scientium me (21). E em que desmereceram Raab e Babilônia a lembrança da Virgem Maria, para ser tão glorioso encarecimento de piedade na sua memória o lembrar-se delas (22)? Não serão necessárias muitas palavras para o declarar; pois já temos dito que é Raab e quem foi Babilônia. Babilônia foi a grande meretriz que viu S. João: Raab também foi meretriz e não pequena; Babilônia foi aquela que trazia escrito na testa: Babylon magna, mater fornicationum: – Raab foi aquela, cuja casa na primeira entrada na cidade de Jericó tinha por insígnia: Rahab meretrix. E que até destas duas mulheres tão dissolutas e depravadas, uma mãe e outra filha da torpeza, prometa a Santíssima e Puríssima Virgem ter de memória, se elas a conheceram: Memor era Rahab et Babylonis, scientium me – não há dúvida. Mãe da divina graça, que entre todas as glórias de vossa benignidade e grandeza, justamente a conta Davi – que também teve necessidade dela – como a primeira: Gloriosa dicta sunt de te: memor era Rabab et Babylonis.

Onde se deve advertir e ponderar muito aquela palavra dicta sunt, na qual nota Davi, e quer que nós notemos, que esta ação gloriosa da Senhora não é coisa nova que ele agora diga ou haja de dizer, senão antiga, e que já estava dita: Dicta sunt de te. – Mas quando estava dito, e por quem? Estava dita por Josué, que floresceu mais de quatrocentos anos antes de Davi, quando o mesmo Josué escreveu a história de Raab, que é a do texto do nosso Evangelho, na qual foram representadas estas glórias da Virgem, Senhora nossa, e do seu Rosário, como agora veremos.

VI

Chegaram, pois, as duas sentinelas dos hebreus, e entraram em casa de Raab como casa pública; disseram-lhe que eram exploradores do conquistador daquelas terras, a quem o verdadeiro Deus, criador do céu e da terra, as tinha dado, e debaixo desta fé – que logo recebeu – concertaram com pacto de que depois lhe dariam a vida, se ela os encobrisse às rondas dos cananeus, que já lhes andavam nos alcances, e os pusesse em salvo. Fê-lo assim Raab escolhidamente. E diz o texto sagrado que, lançando da muralha – para onde tinha a janela – um cordão vermelho: funiculus coccineus (Jos. 2,18) – por ele se desceram segura e ocultamente os dois aventureiros, e se salvaram. Esta foi até aqui a história: vamos agora à significação, que já imos enfiando o Rosário, ainda que não se veja.

Perguntam os santos padres primeiramente: este cordão, e vermelho – o que facilmente não podia ser acaso – que é o que significava? E respondem S. Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, e os demais, que o cordão significava a Cristo, e o vermelho o sangue da Redenção. Bastem por todas as palavras elegantes de Santo Ambrósio: Vidit hoc meretrix, quae in excidio civitatis remedia desperaret salutis, quia fides vicerat signa fidei, atque vexilla dominicae passionis attollens, coccum in fenestra ligavit ut species cruoris mystici, quae foret mundum redemptura vernaret (23): Foi significado Cristo, Senhor nosso, e compara-se com grande propriedade ao cordão, porque o cordão forte e bem formado compõe-se de três ramais, e tal é o composto inefável de Cristo. Os outros homens compõem-se só de duas partes, como de dois fios, que são corpo e alma; Cristo, porém, que não só é homem, senão homem e Deus juntamente, compõe-se de três, que são corpo, alma e divindade. Assim como Deus enquanto Deus – diz S. Bernardo – é um em substância e trino em pessoas, assim o mesmo Deus feito homem, é um em pessoa e trino em substâncias; e assim como em Deus nem a trindade divide a trindade, nem a trindade diminui a trindade, assim em Cristo nem a pessoa confunde as substâncias, nem as substâncias dividem a pessoa: Finalmente, conclui o Santo: Verbum et anima, et caro in unam convenere personam, et haec tria unum, et hoc unum tria (24). Não pudera dizer mais nem menos, se definira um cordão de três ramais. Assim como no cordão de três ramais um são três, e três são um, assim no composto divino e humano de Cristo, unido o corpo à alma, e o corpo e alma à divindade, estes três são um, e este um são três: Haec tria tinum, et hoc unum tria. – Nem esta comparação ou este nome é novo, porque do mesmo Cristo, como entendem graves autores (25), falava Salomão, quando disse que o cordão de três fios dificultosamente se rompe: Funiculus triplex difficile rumpitur (Ecl. 4,12).-Mas, se a união da divindade e humanidade em Cristo de sua natureza é indissolúvel, e nunca se rompeu nem há de romper; como podia Salomão falar de Cristo, quando admite no cordão ruptura, posto que dificultosa? Essa mesma é a energia e a maior graça da comparação. Porque no composto de Cristo há duas uniões, uma entre a divindade e humanidade que nunca se rompeu, e outra entre o corpo e alma, que se rompeu na morte; e como a maior dificuldade daquele tremendo mistério era poder-se romper esta união, e haver de morrer Deus, por isso Salomão admiravelmente, admitindo a ruptura do cordão, lhe chamou dificultosa: difficile rumpitur

Rompeu-se o cordão na morte, mas logo se soldou na ressurreição. Foi, porém, necessário que Cristo morresse e derramasse o sangue, para que o cordão se tingisse, e, tinta de vermelho, fosse o remédio da Redenção: Ut species cruoris, quae foret mundum redemptura, vernaret. – Verdadeiramente que na circunstância desta cor bem se vê que era pincel divino o que, no remédio e salvação daqueles dois homens, pintava já então a de todos. Para os dois exploradores salvarem as vidas não importava a cor do cordão pelo qual desceram e se salvaram; mas para a significação do mistério, que neles se representava, foi tão necessária a cor vermelha, como foi necessário o sangue de Cristo para a salvação do gênero humano. Sendo, porém, Adão e o gênero humano um, parece que também havia de ser um e não dois os que aqui se salvaram por este meio. Ora, vede como serem os exploradores dois foi nova valentia da pintura e maior propriedade do mistério. O gênero humano dividiu-se em dois povos, os quais naquele mesmo caso concorriam: o povo judaico, que eram os hebreus, e a povo gentílico, que eram os cananeus. E porque o Messias não só havia de remir o povo judaico, como eles andavam, senão também o gentílico, por isso na liberdade dos dois exploradores se representou a salvação dos dois povos.

Os dois primeiros exploradores da Terra de Promissão, a quem estes segundos sucederam na mesma conquista, foram os dois valentes soldados Josué e Caleb, os quais, para demonstração da fertilidade do terreno, trouxeram o grande cacho de uvas aos ombros, atravessado em uma lança. E que significava esta nova pintura? O fruto prodigioso pendente da lança significava a Cristo pendente da Cruz: os dois que o levavam aos ombros significavam os dois povos: o de diante o judaico, que foi o primeiro, e de trás o gentílico, que veio depois. E diz mais alguma coisa a figura? Ainda fala admiravelmente. O povo gentílico, que ia detrás, levava o fruto diante dos olhos, porque estimou e recebeu a Cristo; e o judaico, que ia diante, levava-o de trás das costas, porque o desprezou e lhe voltou o rosto, e não o quis receber: Duo bajuli duo sunt testamenta: praeeunt Judaei, sequuntur Christiani: salutem hic ante conspectum suum gerit, ille post dorsum: hic obsequium praefert, ille contemptum (26)disse com tanto aplauso Santo Agostinho, que lhe tresladaram o pensamento Santo Ambrósio, S. Cipriano, S. Jerônimo, S. Próspero, S. Bernardo, Ruperto. Estes são, pois, os dois povos em que se divide o gênero humano; e se o quisermos, não dividido, senão unido em um só, também o temos no mesmo texto. Quando Raab os escondeu para que os não descobrissem as rondas, diz assim o original hebreu ao pé da letra: Acceperat autem mulier viros illos, et abscondit illum (27): Levou a mulher aqueles dois homens, e escondeu-o. – Se eram dois, havia de dizer escondeu-os, e não escondeu-o. Pois, por que diz abscondit illum, escondeu-o a ele, e não a eles? Porque aqueles dois homens significavam os dois povos, em que se divide o gênero humano, e o mesmo gênero humano, enquanto dividido, são dois, enquanto unido, é um; enquanto dividido, é ele, enquanto unido, é ele: Abscondit ilium.

VII

Esta foi a propriedade com que na primeira parte da história de Raab se representou a Encarnação e Morte de Cristo, e a Redenção do gênero humano. E esta é a matéria de que a Virgem, Senhora nossa, formou o seu Rosário, não mudando nem acrescentando nada ao mesmo cordão, mas dispondo-o somente de tal modo que, assim como ele tinha sido o instrumento universal da redenção do mundo, assim o fosse particular da salvação dos pecadores. E esta é a segunda parte da mesma história. Tinha Raab assentado com os exploradores que na destruição de toda a cidade de Jericó seria excetuada a sua casa, e que, para ser conhecida entre as demais, tivesse por sinal na janela o mesmo cordão vermelho por onde os tinha descido. Fez-se assim com a pontualidade e vigilância de uma e outra parte, que o caso e o perigo pedia; e, arrasados os muros só com o som das trombetas de Josué, entram os soldados vitoriosos levando tudo a ferro e fogo, e no meio de tão grande tumulto o que se ouvia somente era uma voz que dizia: Sola Rahab vivat (Jos. 6,17): Morram todos, e só viva Raab. Assim o dizia a voz, assim o tinha jurado a promessa, e assim se cumpriu à risca, porque, não ficando da cidade mais que as cinzas, só Raab escapou e viveu, e com a sua família foi recebida em triunfo nos arraiais vencedores.

Quando Deus mandou ao anjo que degolasse todos os primogênitos do Egito, havia um grande perigo e dificuldade nesta execução, porque, como os hebreus moravam juntamente com os egípcios, à volta dos egípcios podia a espada do anjo levar também os hebreus. E de que modo facilitou Deus esta dificuldade, e os livrou deste perigo? Era o mesmo dia, ou a mesma noite, em que, conforme a lei, em todas as famílias dos hebreus se comia a primeira vez o cordeiro pascoal; e como uma das cerimônias da mesma ceia era que todos rubricassem as suas portas com o sangue do mesmo cordeiro, observando o anjo este sinal e divisa, matou todos os primogênitos egípcios, e ficaram livres todos os hebreus. O mesmo sucedeu em Jericó daí a quarenta anos, não só pelo mesmo modo, mas também com a mesma significação. Porque, assim como o sangue do cordeiro que tingiu de vermelho as portas dos hebreus significava o sangue de Cristo, assim o cordão vermelho que pendia da janela de Raab significava o mesmo sangue. E assim como ela se salvou do incêndio universal, em que pereceram todos, em virtude daquele misterioso cordão assim digo que se salvarão todos os que rezarem o Rosário em virtude do mesmo Rosário, que no mesmo cordão era significado.

Esta última palavra, que no mesmo cordão era significado, parece dificultosa de provai; mas a prova é tão autêntica que ninguém lhe porá dúvida. Fala Cri sto com sua Santíssima Mãe no capitulo quarto dos Cânticos, e diz assim, conforme o texto dos setenta intérpretes, que é o de que o mesmo Cristo usou sempre no Evangelho: Sicut funiculus coccineus labia tua, et eloquium tuum decorum (Cânt. 4, 3): As vossas palavras, Mãe e Esposa minha, são para mim de grande decoro e respeito, porque na boca de quem as pronuncia são como o cordão vermelho na janela de Raab. – Assim comenta este lugar, falando com a mesma Senhora, o mais insigne doutor de seu tempo, Ruperto Abade: Ecce Rahab meretrix dulcis eloquii tui funiculum coccineum in fenestra sua ligavit, dum Ecclesia quondam peccatrix, et idolatriae meretricio sordida dulce eloquium tuum, pignus salustis, jugiter personat (28): Quando Raab, a pública pecadora, atou da sua janela o cordão vermelho, o mesmo cordão, Virgem Santíssima, era composto das vossas doces palavras, e por isso a Igreja, convertida da gentilidade – que é a católica – em prenda de sua salvação, continuamente as reza. – Não pudera falar mais claro se nomeara o Rosário – que é a mais própria oração da Senhora, e que mais continuamente se reza todos os dias – mas no tempo de Ruperto ainda não tinha este nome. E para que a sua exposição não pareça singular, a mesma têm Teodoreto, Justo Orgelitano, Filo Carpácio e Rabi Salomão, os quais todos afirmam que o cordão vermelho, de que neste lugar fala o Espírito Santo, é o funiculus coccineus de Raab.

E que semelhança tem o Rosário com o cordão vermelho na janela de Raab, para ser significado nele como em sua própria figura? Não só uma semelhança, senão todas. Lembremo-nos do que fica dito. Aquele cordão – como vimos com todos os padres – significava a Cristo e os mistérios da Redenção do gênero humano, e desses mesmos mistérios se compõe o Rosário. Aquele cordão era composto de três ramais: Funiculus triplex – e esta mesma composição é a do Rosário, repartido em três terços: gozosos, dolorosos, gloriosos. Aquele cordão era vermelho, não só pela cor, senão pela substância do sangue de Cristo: Funiculus coccineus – e com o mesmo sangue está rubricado o Rosário em todas as três diferenças dos mesmos mistérios: na primeira, com o sangue que Cristo tomou nas entranhas da Virgem; na segunda, como o que derramou na cruz; na terceira, com o que tornou a tomar na ressurreição. Aquele cordão estava na janela de Raab: in fenestra – e que outra coisa é o cordão na janela, senão o Rosário e a oração na boca, diz Teodoreto? Signum hoc sponsus in ore sponsae tanquam in fenestra collocatum intuetur sicut funiculus coccineus labia tua (29). Finalmente – e esta é a maior e principal semelhança – aquele cordão era uma divisa que distinguia a casa de Raab de todas as outras, para que no incêndio geral da cidade, em que todos morreram, pereceram e se abrasaram, só ela se salvasse; e o Rosário é um dos mais certos sinais da predestinação por meio do qual se livram dos incêndios eternos os pecadores, e muito particularmente os do pecado da sensualidade – como Raab – que é o que mais povoa e enche o inferno. Quando São João viu aquela infame mulher, em que era representada a sensualidade, disse um anjo que viesse ver a condenação da grande meretriz: Veni ostendam tibi damnationem meretricis magnae (30) - porque todas as filhas daquela mãe e que seguem seus passos, pelos mesmos passos caminham à condenação eterna. E sendo Raab uma destas pública e conhecida portal – Rahab meretrix – porque estava patrocinada e defendida da divisa do Rosário: funiculus coccineus, – ela só escapou e se salvou da condenação universal de todos os mais, e com exceção e declaração expressa do nome e vida de meretriz: Sola Rahab meretrix vivat.

Um dos mais notáveis portentos que se lêem nas Escrituras é mandar Deus ao profeta Oséias que se casasse com uma meretriz, e, sobre meretriz, adúltera: Vade, sume tibi uxorem fornicationum (31)– e depois, falando da mesma: Adhuc vade, et dilige mulierem dilectam amico, et adulteram (32). Obedeceu o profeta, assombrados todos, tanto do preceito como da obediência. Porém, a maior razão do assombro – a qual no exterior, se não entendia – era que Oséias neste caso significava e representava a Deus, como o mesmo Deus logo declara: Dilige mulierem dilectam amico, et adulteram, sicut diligit Dominus filios Israel, et ipsi respiciunt ad deos alienos (33). – Recebeu, enfim, o profeta por mulher a meretriz e adúltera, e porque naquele tempo e naquela nação costumavam os maridos comprar as mulheres, como Jacó a Raquel e Davi a Micol, diz Oséias que comprou esta sua por quinze dinheiros: Et emi eam mihi quindecim argenteis. – Aqui está o grande reparo. Não em Deus se desposar com uma tal pecadora – que esse é o seu amor e a sua bondade – mas em que a compre e faça sua, e não com maior ou menor preço, nem com maior ou menor número, senão com quinze dinheiros: quindecim argenteis (34)? – O preço da graça com que Deus chama, converte e une a si as almas alongadas de seu serviço, e, de escravas dos vícios feios e torpes, as faz amadas esposas suas, todos cremos e sabemos que são os merecimentos infinitos da vida, morte e sangue de Cristo. Pois, se este preço é infinito, porque se reduz a número, e não a outro número, senão a certo e determinado de quinze? Porque quinze são determinadamente os mistérios em que esse mesmo preço da vida, morte e sangue de Cristo está multiplicado no Rosário e repartido nele. E é virtude própria e particular do mesmo Rosário, de almas meretrizes e adúlteras, como a que comprou para si e recebeu por sua Oséias, fazer esposas muito prezadas e amadas de Deus. Assim explica e aplica este lugar um autor não muito antigo, mas muito douto e pio: Deus bone – exclama ele – quoties Christus Dominus, in Osea signficatus, perditissimas artimas medus quindecim sancassimi Rosani decadibus sibi arctissimo amoris vinculo copulavit (35)? – Quer dizer que por meio do Santíssimo Rosário, composto de quinze décadas e quinze mistérios, traz Cristo a si muitas almas, não só perdidas, mas perdidíssimas, e como esposas muito queridas as une e ata consigo com um estreitíssimo vínculo. – E este vínculo é o cordão misterioso de Raab, tão perdida na vida como no nome, por meio do qual não só a livrou e salvou Cristo, mas verdadeira e realmente aparentou com ela, desposando-a com Salmon, da tribo real de Judá, de que o mesmo Cristo nasceu: Salmon auntem genuit Booz de Rahab.

VIII

E para que vejais com os olhos o cumprimento destas antigas figuras, não em outra pessoa ou em outro vício, senão na de uma famosíssima meretriz, passemos de Jericó a outra maior e melhor cidade, não gentílica, nem só cristã, mas cabeça da Cristandade. Depois do grande fruto que o grande pregador da Virgem Senhora nossa tinha feito em França com o seu Rosário, passou S. Domingos à Itália, e fazendo os mesmos sermões em Roma, como em cidade santa e corte eclesiástica, foi ainda maior o fruto e maior a brevidade com que o colheu. Os monsenhores, os bispos, as cardeais, e até a mesmo Sumo Pontífice, todos se fizeram, não só devotos, mas servos do Rosário. Havia neste tempo na mesma Roma uma mulher moça, das que lá se chamam cortesãs, a mais famosa e celebrada de todas as daquela infeliz profissão, dotada por extremo de todos os ornatos da natureza, com que mais se costuma enlouquecer o amor profano. Chamava-se esta mulher Catarina, e não houve Catilina, nem tirano algum de Roma que tanta a destruísse e arruinasse, como esta tirana a arruinava e destruía. Nero pôs fogo a Roma, mas não lhe abrasou mais que os edifícios: esta tirana também punha fogo a Roma, mas abrasava-lhe as almas. Nera atormentava os mártires, mas mandava-os para o céu; esta tirana também atormentava os homens, mas mandava-os para o inferno. Nero fazia adorar os ídolos, e violentava os homens para que o fizessem: esta tirana ela mesma era o ídolo, e fazia-se adorar sem violência. De maneira que quem estivesse em Roma naquele tempo, e visse por uma parte o grande fruto que fazia nas almas S. Domingos com sua pregação, e por outra o grande estrago que fazia nelas esta tirana com seu pernicioso exemplo, poderia duvidar, com muita razão de qual das duas se havia de admirar mais: ou da astúcia do demônio, que meteu em Roma esta mulher para fazer oposição ao Rosário, ou da Providência particular de Deus, que meteu em Roma o Rosário para fazer guerra a esta mulher. Mas não foi esta a vez primeira em que as rosas tiraram sangue a Vênus.

No meio deste descuido da alma, no meio deste esquecimento do céu, no meio desta desbaratadíssima vida, com que aquela pobre mulher corria tanto à rédea solta pela estrada larga da perdição, no meio de tantos vícios e tantas misérias, tinha conhecido uma coisa boa, que era ser inclinada a ouvir sermões. Como S. Domingos pregava em Roma com tanto aplauso, achava-se ela sempre às suas pregações. E porque o santo muitas vezes, depois do sermão, repartia Rosários aos ouvintes, coube-lhe também à pública pecadora um dia a seu rosário. Já Raab leva na mão o cordão vermelho, e já eu começo a esperar melhor; e a não ter tanta desconfiança de sua salvação. Que vos parece que faria do seu Rosário uma tão perdida mulher? Porventura enfiá-lo-ia com grande curiosidade, enfitá-lo-ia e enfeitá-lo-ia com muitos listões de ouro e prata para o lançar ao pescoço por gala? Trá-lo-ia alguns dias dobrado nos dedos, como costumam as de devoção alentada, para depois o dar por prenda a algum dos que a galanteavam, e fazer mais um devoto, não do Rosário, mas seu? Ainda mal, porque há loucas tão ímpias e tão sacrílegas que até do Rosário da Virgem puríssima, de que fogem os demônios, fazem laços às almas? Não o fez assim esta mulher, posto que tão desgarrada e tão perdida; antes, fazia o que eu muitas vezes vos aconselho. Ainda que gastava as vinte e três horas e meia do dia com o mundo, com a vaidade, com seus gostas e apetites, todas os dias tomava meia hora para a sua alma, posto que tão pouco a amasse, e se retirava para o lugar mais escuso de sua casa, e ali se punha a rezar o seu Rosário. Os muros da casa ainda eram de Jericó, mas o cordão já pendia da janela.

Saiu pois Catarina um dia a espaço, como dizem em Itália, e indo passeando por uma daquelas formosas estradas que se estendem pelos arrabaldes de Roma, viu que ia juntamente pelo mesmo caminho o mais gentil homem, o mais airoso, o mais bizarro mancebo que vira em sua vida, e porventura que nunca se tinha visto no mundo tão grande gentileza. Travaram prática os dois, e quando Catarina mais via e ouvia, o companheiro tanto mais se lhe ia afeiçoando e rendendo-lhe a alma, Experimentava porém nesta afeição e neste amor muito diferentes efeitos que nos outros seus, porque era uma afeição cheia de respeito, e era um amor cheio de reverência, e se bem os afetos eram os maiores que podiam ser, todos se continham dentro das raias do coração, nenhum passava ao apetite. Enfim, pediu a cortesã ao mancebo que lhe fizesse favor de querer ir cear a sua casa aquela noite, o que ele aceitou e agradeceu, e apartaram-se. Não é indústria nova em Josué explorar primeiro por si mesmo a terra, e depois entrar à conquista. Estava a ceia preparada como para tão notável hóspede. Veio ele à hora assinalada, puseram-se à mesa, e a mulher, cada vez mais admirada da gentileza da pessoa, da discrição das palavras, da graça com que as dizia, e sobretudo da compostura, do recato e da majestade de todas suas ações, disse-lhe: – Senhor, se o amor que deveis ter conhecido em mim, merece convosco alguma coisa, peço-vos que me digais quem sois. – Respondeu a mancebo que como ficassem sós, então lho diria. Iam comendo, e tudo o que tocava o hóspede mudava a cor e ficava tinto em sangue. Já o cordão se começa a tingir de vermelho, Pareceu a Catarina que se teria cortada, e querendo acudir ao sangue e remediar o golpe, respondeu o que de outro bem diferente modo estava ferido, que não se cortara, mas que a razão do que via era porque tudo o que come o cristão deve ser malhado no sangue do seu Deus.

Levantou-se a mesa, apartaram-se os que serviam; eis que subitamente o mancebo se converteu em um Menino Jesus com uma coroa de espinhos na cabeça, com as mãos e os pés e a lado aberto, com uma cruz maior que os ombros às costas, inclinado todo, e como gemendo debaixo do peso dela. Com esta figura, por uma parte tão amorosa e por outra tão lastimosa, lhe disse assim: – Até quando, irmã minha, até quando hás de continuar em me ofender? Quando hás de acabar de me ser ingrata? Olha o que padeci por ti, olha o que me custas. Desde esta idade em que me vês, trouxe sempre por ti esta cruz às costas, até que depois de trinta e três anos me pregaram nela. – Dizendo isto, o que era menino se converteu em homem, e a cruz que trazia às costas a suspendeu nos braços. Estava com os pés e mãos encravadas, com o peito rasgado, com a cabeça inclinada, com o rosto pálido, com os olhos cerrados, com a boca emudecida. Se com a primeira visão ficou assombrada a mulher; com esta segunda ficou muito mais atônita e pasmada. As palavras que ouviu na primeira a magoaram e enterneceram muito, mas este silêncio agora lhe penetrava o mais interior da alma, e lha traspassava toda. Não dizia, não fazia nada, porque não sabia que dissesse nem que fizesse: só o coração lhe estava rebentando dentro no peito, de dor e de contrição dos seus pecados. Ia como outra Madalena para se abraçar com a cruz, quando o crucificado de repente ressuscitou, e passando a cruz das costas à mão direita, como em sinal de triunfo, apareceu revestido todo de glória e mais que humana majestade. As cinco chagas pareciam cinco sóis, o resplendor e formosura do rosto não parecia a nada, porque tudo o que há formoso na terra, tudo o que há resplandecente no céu era feio e escuro em sua comparação. Posto nesta representação tão gloriosa, tornou a falar à pecadora, e disse-lhe estas palavras: – Acaba já, acaba de ser cega. Olha para mim, e olha para ti; olha para mim, e olha para os teus amadores, e vê se é razão que pelos buscares a eles, me deixes a mim. Vê bem o que estás vendo, e acaba de conhecer se é maior a formosura do Criador ou das criaturas. – Deteve-se um pouco mais para que a mulher visse bem a diferença, e desapareceu.

Desapareceu Cristo, e ficou só Catarina, ou para o dizer melhor, não ficou, porque também desapareceu. Desapareceu porque a que estava ali, já não era a que fora, senão muito diferente do que dantes era. Em nada era parecida a si, em tudo semelhante à Madalena. Não falava palavra, porque não era tão pequena sua dor que lhe coubesse pela boca; parti a-se-lhe o coração de dor e de arrependimento da vida passada, e, assim despedaçado, lhe saia pelos olhos, chorando infinitas lágrimas. Sai como uma louca de casa que quem fez loucuras pelo mundo, razão é que as faça por Deus – lança-se aos pés de S. Domingos, confessa-se geralmente de todos os seus pecados, torna para casa com a resolução que o caso merecia, toma as galas e as jóias, reparte-as aos pobres, veste-se em um hábito de penitência – vede se lhe servia aqui bem o cordão – mete-se entre quatro paredes, sem admitir, nem outra vista, nem outra conversação, e ali, só por só com o seu novo amante, só consigo e com o seu Deus – tão seu – passou os dias que lhe restavam de vida, que foram muitos, sem outra companhia mais que a do seu Rosário, que como nele achara o remédio, assim nele tinha todo o alívio. Repassava-o conta por conta, e na memória de cada um lembrava-se do que viram seus olhos, e eram duas contínuas fontes. Desta maneira viveu santa muitos anos a que tantos tinha vivido tão pecadora, e, chegando-se-lhe enfim a hora da morte, assistiu-a nela em pessoa a Virgem Maria, que, recebendo-lhe a alma nos braços, a levou consigo ao céu. Ditosa mulher, e ditosissima alma, pela qual desceram do céu uma vez o Filho de Deus e outra vez a Mãe de Deus: o Filho de Deus, para a converter, a Mãe de Deus para a levar!

IX

Este foi o caso, cristãos, do qual eu pudera tirar muitos pontos de doutrina que vos advertir. Pudera-vos advertir de quão rebelde e obstinado pecado é o da sensualidade, pois, para converter uma mulher cativa deste vício, foi necessário que o mesmo Deus viesse do céu à terra. Pudera-vos advertir de quanto importa a ouvir a palavra de Deus, e não perder nenhuma ocasião de assistir a ela, pois não tendo esta mulher outra inclinação nem obra boa, dessa lançou mão Deus para a salvar. Pudera-vos advertir quão divina é a eficácia da devoção do Rosário, e quão bem empregada é a meia hora que se gasta em o rezar, pois a meia hora que esta mulher dedicava ao Rosário todos os dias, foi a que lhe granjeou a eternidade. Finalmente, pudera-vos advertir e encarecer a grande misericórdia de Deus, que tais modos e tais traças busca, e a tais transformações se sujeita para ganhar nossas almas. Para buscar a Madalena transformou-se em hortelão; para reduzir os discípulos de Emaús transformou-se em peregrino; para afeiçoar esta pecadora, transformou-se em amante humano, e tão humano, sem reparar nos primeiros disfarces, ou ainda quase indecências desta metáfora. Quando Cristo converteu a Samaritana, diz o texto que mirabantur discipuliquia cum muliere loquebatur (36). – Que admiração seria a sua se a vissem não na estrada, senão em casa; não na fonte pública, senão à mesa, não em hábito de profeta, senão com galas de amante? Oh! bendita sejais, amor de nossas almas, que tanto vos perdeis pelas ganhar!

Todas estas doutrinas pudéramos colher deste exemplo, mas eu só uma coisa quero perguntar-vos. Dizei-me, se Cristo vos aparecera na forma e nas formas em que apareceu a esta pecadora, por mais que estejais tão cativos dos vossos vícios, como ela estava, havíeis de vos converter ou não? Não há dúvida que todos estais dizendo que vos havíeis de converter. Pois, sabei, os que vindes aqui rezar o Rosário, que todos os três dias se vos representa Cristo interiormente nas mesmas transformações. Em três formas se representou Cristo àquela pecadora: a primeira foi de menino, e esses são os mistérios da Encarnação, os mistérios gozosos; a segunda foi de morto, e esses são os mistérios da Paixão, os mistérios dolorosos; a terceira foi de ressuscitado, e esses são os mistérios da Ressurreição, os mistérios gloriosos. Estas, estas, e tão verdadeiras como aquelas, são as transformações em que Cristo se nos mostra nos mistérios do Rosário, se nós abrimos os olhos da consideração para as ver. Nos mistérios gozosos representa-se-nos menino nas entranhas de sua Mãe, menino nascido em um presépio, e está dizendo a cada uma de nossas almas: – Irmã minha, até quando me hás de ofender? Quando hás de acabar de me ser ingrata? Olha o que me custas, olha o que por ti padeci. Esta lapa, esta manjedoura, esta pobreza, esta humildade, este frio, este desamparo. – Nos mistérios dolorosos mostra-se-nos morto e crucificado, e, posto que não fala palavra, aquele mesmo silêncio são os maiores brados com que está dando vozes a nossas almas. Deus morto, e morto por amor de mim? Deus crucificado, e crucificado por amor de mim? E que tenha eu vida para o ofender? Que gaste eu a vida em o não amor? Oh! cegueira! Oh! loucura! Finalmente, nos mistérios gloriosos, mostrando-nos aquela formosura imortal, celestial e divina, ainda confunde mais a loucura e cegueira dos nossos pensamentos. Vê, homem, a quem deixas, e por quem. Deixas a formosura divina pela vileza humana: deixas a formosura do céu pela miséria da terra; deixas a formosura imortal por aquelas aparências caducas, que o que são, descobre a morte. Olha para um corpo morto, e aí verás o que amas; aquela corrupção, aquela deformidade, aqueles horrores, aquele ferver de bichos, aqueles ossos meio descarnados, aquela caveira enorme, feia, medonha.

Ah! Senhor, abri os olhos aos homens cegos, para que vejam o que amam e o que deixam! E vós, Virgem puríssima, que tanta eficácia destes ao vosso Rosário para converter almas perdidas, e perdidas particularmente pelo vício da sensualidade, como a Catarina, que foi o Raab de Roma e o Raab que foi a Catarina de Jericó, vede, Senhora, quanto arde o mundo naquele infernal incêndio, que já começa e continua na terra para nunca se acabar nem extinguir no inferno. Ouvi, cristãos, o que reservei para estas últimas palavras, para que o leveis mais impresso na memória, e se não pode ouvir, sem tremer. S. Remígio, primeiro Apóstolo de França, e que a converteu à fé de Cristo, diz assim, falando do vício da sensualidade: Demptis parvulis, ex adultis pauci propter hoc vitium salvantur (37): Tirando os meninos inocentes, dos já adultos, e da maioridade, são muito poucos os que se salvam, e todos os mais se condenam por este vício. E S. Francisco Xavier, escrevendo da Índia, diz que bem-aventurados são lá os que morrem antes dos quatorze anos, porque os que chegam àquela idade quase todos geralmente se perdem e se condenam pelo vício da torpeza. Vejam agora os que nascem ou vivem na América se se podem ter por melhores que os da Ásia, e se pela qualidade do clima, pela facilidade das ocasiões, e pela dissolução geral dos costumes, estão no mesmo perigo e podem temer a mesma sentença. – Mas, tornando-me a vós, Virgem Santíssima, puríssima, poderosíssima, ponde, Senhora, vossos misericordiosos olhos em tão universal e perigosa cegueira. Chova do céu a graça de vosso divino Esposo, pelo sangue de vosso Filho, que apague este infernal incêndio. Ouvi as vozes dos pecadores, e também as destes inocentes, e comunicai-nos eficazmente os poderosos efeitos de vosso santíssimo Rosário, que uns e outros todos os dias vos oferecem. Em honra dos gozosos, dai-nos, Senhora, que nos gozemos só das coisas do céu, e desprezemos as da terra, em honra dos dolorosos, que nos doamos com grande e verdadeira contribuição de nossos pecados; em honra, finalmente, dos gloriosos, que vivamos com tal pureza de corpo e alma que, por meio da graça, nos disponhamos para a glória. Amem.

(1) E Salmon gerou de Raab a Booz (Mt. 1,5).

(2) Filho do homem, eu te dei por atalaia a casa de Israel (Ez. 3,17).

(3) Cresci com as plantas das rosas de Jericó (Eclo. 24,18).

(4) Da qual nasceu Jesus (Mt. 1,16).

(5) Ninguém é bom senão só Deus (Lc. 18,19).

(6) Entre os seus anjos achou crime (Jó 4,18).

(7) D. Hier. lib. I, Comment. in Matthaeum.

(8) Uma mulher pecadora que havia na cidade (Lc. 7,37).

(9) Da qual ele tinha expulsado sete demônios (Mc. 16,9; Lc. 8,2).

(10) D. Aug. ibi.

(11) Cercada de púrpura, e de ouro, e de pedras preciosas (Apc. 17,4).

(12) Com quem fornicaram os reis da terra, e que tem embebedado os habitantes da terra  com o vinho da sua prostituição (ibid. 2).

(13) Porque toda a carna tinha corrompido o seu caminho (Gên. 6,12).

(14) Vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas (ibid. 2).

(15) As mulheres fazem apostatar os próprios sábios (Eclo. 19,2).

(16) Vide Baronium.

(17) Acaso pode o homem andar por cima das brasas, sem que se queime a planta de seus pés? Assim o que se chega à mulher (Prov. 6,27 ss).

(18) E o que agora tens não é teu marido (Jo. 4,18).

(19) E Salmon gerou de Raab a Booz (Mt. 1,5).

(20) Coisas gloriosas se têm dito de ti, ó cidade de Deus (Sl. 86,3)!

(21) Lembra-me-ei de Raab e Babilônia, que me conhecem (ibid. 4).

(22) Ibid. de notra Rabah intelligunt S. Aug. S. Amb. Theodoret. et alii.

(23) Hiber. ep. 2 ad Nepotian; Aug. in Ps. 86; A