Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud. (1)

I

Se Adão perdeu o Paraíso porque ouviu a serpente e não guardou o preceito de Deus, Cristo promete-nos o Paraíso se ouvirmos as palavras de Deus e guardamos seus preceitos. Dificuldades que encontram em nós a observância dos preceitos divinos. Razões da diferença total entre Eva e Maria. A devoção do Rosário é o meio mais eficaz para guardarmos os preceitos de Deus.

Aquele supremo Senhor que quando pôs o homem no Paraíso, pôs ao homem o preceito, esse mesmo nos diz hoje que, se guardarmos seus preceitos, nos dará a bem-aventurança do Paraíso. O fim para que Deus pôs a Adão no Paraíso foi para que o guardasse: Ut operatur et custodiret illum. (2) – E por que não guardou Adão? Não guardou o Paraíso porque não guardou o preceito. Essa foi a astúcia da serpente: Cur praecepit vobis Deus(3) Fez o tiro ao preceito para abrir a brecha no Paraíso. Se o preceito, que era o muro do Paraíso, se não rompera; nem o demônio entrara, nem Adão saíra. Mas porque ele não guardou o preceito, nem se guardou de o quebrar, o mesmo foi quebrar o preceito que perder o Paraíso. Grande e lastimosa desgraça em um homem tão venturoso, e não sei se maior ainda em tantos homens que antes de ter ser, tiveram parte na mesma desgraça e nela continuaram quatro mil anos. Hoje, porém, depois que a segunda Eva, com o bendito fruto de seu ventre, desfez a maldição daquele primeiro fruto: Beatus venter quite portavit(4) – as mesmas portas do Paraíso, que fechou a justiça à culpa, abriu a misericórdia à graça, mas debaixo das mesmas condições e da mesma lei. Se Adão perdeu o Paraíso da terra porque ouviu a serpente e não guardou o preceito de Deus, eu, diz Cristo, vos prometo o Paraíso e bem-aventurança do céu, se ouvirdes as palavras de Deus e guardardes seus preceitos: Beati qui audiunt verbum Dei, et custodiunt illud.

Esta foi a segunda lei, e lei de graça, com que a benignidade e misericórdia divina reparou as desgraças daquela primeira, e as quebras dela. Mas não sei se é menos perigosa e dificultosa hoje, e tanto mais arriscada a se quebrar muitas vezes, quantos mais são os preceitos e mais os homens. Se o primeiro homem criado em justiça original, e com os apetites sujeitos ao império da razão, não guardou um só preceito, como guardaremos nós tantos e tão repugnantes à natureza corrupta que dele herdamos tão viciada? Se Adão caiu no Paraíso, em um mundo tão cheio de laços, de ocasiões, de tropeços, quem se sustentará em pé? Se ele não resistiu a uma tentação tão leve, como resistiremos nós a tantas e tão pesadas? Se o demônio, ainda bisonho, o venceu na primeiro combate, depois de tão exercitado na guerra, quem escapará de suas astúcias? Se na maior abundância de tudo não pôde sofrer um homem que lhe fosse vedada uma fruta, quem haverá que respeite a proibição das leis na falta de tudo, contra a duríssima lei da necessidade? Se onde não havia meu e teu e ambos eram meeiros nos mesmos bens, sem pleito, sem emulação, sem discórdia, ambos se privaram deles, quem se poderá conservar na sua fortuna contra a inveja, contra o poder, contra a injustiça? E se de todos estes males foi causa o amor, e amor lícito, que fará o ilícito, o profano, o cego: ou o ódio, a ira, a impaciência, a vingança? Se a companheira que Deus deu ao homem para o ajudar, o ajudou a perder, das que são maior incentivo da perdição, quem viverá seguro? Se ela o ensinou a quebrar o preceito, e não obedecer a Deus a quem viam e com quem falavam, nós, que não vemos a Deus, e só temos diante dos olhos os exemplos dos homens, tão perniciosos como infinitos, qual se não deixará levar do ímpeto da multidão, correndo com os demais ao precipício? Finalmente, no estado da natureza corrupta, de que nos não isentou a lei da graça, sendo fracos, miseráveis, inconstantes, e combatidos de dentro com a rebeldia das próprias paixões, como poderemos guardar tantos preceitos, e em toda a vida, quando Adão em tão poucas horas não teve forças nem valor para guardar um só?

Tais são as dificuldades muitas e grandes que poderosamente encontram em nós a observância dos preceitos divinos. E, posto que outros pregadores trabalham em vão, ou pelas dissimular, sendo tão manifestas, ou pelas enfraquecer, sendo tão fortes, eu, porém, as suponho, confesso e concedo facilmente, porque vos venho inculcar o pronto remédio delas. Tudo o que fez ou desfez Eva, restituiu e refez a sempre Virgem Maria, Mãe de Deus e Senhora nossa: Materqeneris nostri poenam intulit mundo, genetrix Domini nostri salutem attulit mundo Autrix peccati Eva, autrix meriti Maria: Eva occidendo obfuit, Maria vivificando profuit: illa percussit, ista senavit; pro inobedientia enim obedientia commutatur(5) – A mãe do gênero humano meteu no mundo a pena e o pecado: a Mãe do Redentor do mundo trouxe a ele o merecimento e a graça. Eva feriu, Maria sarou; Eva foi causa da enfermidade, Maria da saúde; Eva da morte, Maria da vida. E a razão total desta diferença é – diz Santo Agostinho – porque Eva inventou a desobediência dos preceitos divinas, e Maria ensinou a obediência: Pro inobedientia enim obedientia commutatur – Que fez Eva pela desobediência? Fez que a terra maldita produzisse espinhas. E que fez Maria pela obediência? Fez que dessas mesmas espinhas nascessem rosas. Tais são, e provados com muitos exemplos, os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição do Filho de Deus, que, se essas espinhas não foram, não seria Filho de Maria. Destas rosas, pois, como flor sempre medicinal, inventou a Senhora uma composição de tal virtude para fortalecer a nossa que, assim como Adão sem este remédio, ou não pôde ou não soube guardar um só preceito de Deus, assim os filhos de Adão, por meio dele, cobram tais forças, que podem sustentar toda o peso de sua lei e guardar todos seus preceitos.

Este é – devotos e não devotos desta solenidade – o novo argumento que pretenda provar hoje, e não só um dos mais ilustres efeitos do Rosário, senão o mais importante de todos. Cristo, Senhor nosso, diz: – Será bem-aventurado quem guardar os preceitos de Deus – E a Mãe do mesmo Cristo acrescenta: Guardará os preceitos de Deus quem rezar o meu Rosário. – De sorte que a devoção do Rosário é o meio eficaz para guardarmos os preceitos de Deus e para conseguirmos a bem-aventurança prometida aos que os guardam: Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud. – Só quem não desejar ser bem-aventurado não ouvirá com grande alvoroço e atenção os fundamentos desta proposta. À mesma Senhora, cuja é, peçamos a graça: Ave Maria.

II

Porque Davi dá por causa da sua freqüente oração o desejo que tinha de guardar os mandamentos de Deus? Viver e orar. A oração é a respiração. Adão, homem totalmente sem oração, comparado aos brutos sem razão nem entendimento.

Bene novit vivere, qui bene novit orare. – É provérbio nascido na língua de S. Crisóstomo, e confirmado na pena de Santo Agostinho, a língua e a pena ambas de ouro. Quer dizer: Quem sabe bem orar, sabe bem viver. – Nem poderá viver bem quem não orar bem. E qual é a razão de uma sentença tão universal e tão absoluta? A razão, e a razão da razão, tudo deu Davi, a quem com maior propriedade podemos chamar o profeta orador que o profeta rei. Fala, pois, Davi da oração, como comumente o entendem os santos padres, e diz assim: Os meum aperui, et attraxi spiritum, quia mandata tua desiderabam (Sl. 118,131): Abri a boca para tomar respiração, porque desejei guardar os mandamentos de Deus. – Notável conseqüência! Primeiramente compara a oração à respiração. E porquê? Porque assim como ninguém pode viver sem respirar, assim não pode viver bem sem orar. A vida e a boa vida ambas dependem do espírito que se atrai pela boca: a vida respirando, a boa vida orando. Esta é a razão. E a razão da razão, qual é? Quia mandata tua desiderabam: Porque desejei guardar os mandamentos de Deus. – Pois, porque Davi deseja guardar os mandamentos de Deus, por isso julga que lhe é tão necessária a oração como a respiração? Sim. Porque o viver bem consiste em guardar os mandamentos de Deus. Logo, se para viver bem é tão necessário o orar, como para viver a respirar, ninguém pode guardar os mandamentos de Deus, em que consiste o viver bem, senão por meio da oração. A oração é a respiração do viver bem. Logo, tão impossível será guardar os mandamentos de Deus sem orar, como viver sem respirar. E esta é a conseqüência formalíssima com que Davi dá por causa da sua freqüente oração o desejo que tinha de guardar os mandamentos de Deus: Os meum aperui, et attraxi spiritum, quia mandata tua desiderabam.

A fonte donde Davi bebeu profeticamente esta doutrina foi a divindade de Cristo, como o mesmo Senhor declarou depois, por boca de sua sagrada humanidade: Oportet sem per orare et non deficere (Lc. 18,1): É necessário orar sempre, e não faltar. – Sempre, e não faltar? Parece apertado preceito. Mas não é muito que pareça apertado um preceito do qual depende a observância de todos. É necessário orar sempre: Oportet semper orare – porque assim como para viver sempre é necessário respirar sempre, assim para viver bem sempre é necessário orar sempre. E é necessário não faltar: Et non deficere – porque, assim como, faltando a respiração, não pode continuar a vida assim, faltando a oração, não pode perseverar a boa vida. Não quero o comento de S. Crisóstomo nem de Santo Agostinho, porque tenho o de S. Paulo: Sine intermissione orate (Tes. 5,17): Orai sem intermissão. – Declara o apóstolo, e chama ao orar sempre orar sem intermissão, porque o orar com intermissão ou oração intermitente é como a respiração intermitente. Vede-o em Lázaro. Enquanto Lázaro respirava, vivia; quando tornou a respirar, tornou a viver, porque ressuscitou. E enquanto a respiração esteve intermitente, como esteve Lázaro? Esteve morto. Pois, assim como a vida não admite intermissão no respirar, assim a boa vida não consente intermissão no orar. E este é o porquê da doutrina de Cristo em nos mandar que oremos sempre. E o porquê deste porquê, qual é? É porque a boa vida, ou o viver bem, como dizíamos, consiste em guardar os mandamentos de Deus; e como os mandamentos de Deus obrigam sempre, para guardar os mandamentos de Deus sempre é necessário orar sempre: Oportet semper orare. Tanta é a conexão que têm entre si a oração e os mandamentos, e tanta é a dependência que tem a guarda dos mandamentos do exercício da oração.

E se quem houver de guardar os mandamentos de Deus há de orar e orar sempre, quem não orar sempre, ou nunca orar, que lhe acontecerá com os mandamentos? O que lhe aconteceu a Adão, para que o vejamos, não em outro, senão no mesmo exemplo. Estupendo caso é que um homem, criado no Paraíso, tão entendido, tão sábio e tão obrigado não guardasse um só preceito que Deus lhe pôs. E qual foi naquele entendimento e naquela vontade o defeito original de uma desgraça tão cega? Não sei se o tendes já advertido; mas verdadeiramente é notável, e tão digno de admiração como de temor. Nenhum homem houve que mais ocasiões tivesse, nem mais apertadas e urgentes de orar a Deus que Adão. E, contudo, em toda a sua história, em tantos casos tão notáveis dela, nem uma só vez se lê que fizesse algum modo de oração. Criou-o Deus, e formou-o com suas próprias mãos, deu-lhe o domínio dos animais e o império do mundo, deu-lhe a companhia de Eva, que era o que só lhe faltava, e o que ele estimou sobretudo; mas, por tantos, e tão repetidos, e tão portentosos benefícios, nunca lhe ocorreu a Adão dar graças a Deus. Pecou, e não se compungiu nem bateu nos peitos; estranhou-lhe Deus pessoalmente o pecado, e não se lançou a seus pés nem lhe pediu perdão; sentenciou-o, executou-o, lançou-o do Paraíso, e em tantos atos lastimosos, em que se pudera valer como réu e como infeliz, da sua própria miséria não soube interpor uma súplica nem apelar da divina justiça para sua misericórdia. E homem tão alheio de todos os modos de orar a Deus, como havia de guardar o preceito de Deus? Em o não guardar fez como que era, e em não orar; nem antes, nem depois, nem em um, nem em outro estado, mostrou o que era. Era um homem totalmente sem oração, e por isso já então semelhante aos brutos, sem uso de razão nem entendimento: Homo, cum in honore esset – eis aqui o já então – non intellexit. Comparatus est jumentis, et similis factus est illis (6). – E um bruto que não sabia orar, como havia de saber viver? Por isso ouviu a palavra de Deus, e não a guardou; e porque a ouviu, e a não guardou, por isso perdeu a felicidade, de que só gozam os que a ouvem e a guardam: Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud.

III

A virtude universal da oração aperfeiçoada pela Virgem no Rosário. A graça de Deus e o alvedrio humano. Visão de S. Filipe Benisi em Roma. O Rosário, freio para domar o alvedrio, e roda para atrair a graça.

Esta foi sempre a virtude universal da oração, provada com todas as Escrituras, inculcada por todos os santos, e confirmada com infinitos exemplos. Porém, depois que a Virgem Santíssima, no instituto e forma do seu Rosário, lhe ajuntou todas as outras propriedades especiais de que se compõe a oração perfeitíssima, então foi muito maior a eficácia, energia e proporção conatural que tem a mesma oração para influir e conservar nos corações e ações humanas o respeito, o temor; a obediência e a perfeita e inviolável guarda dos preceitos divinos. Este é o nosso ponto, e esta a mais gloriosa excelência do Rosário. Para inteiro e radical entendimento dela, havemos de supor não só como teologia certa, mas como princípio de fé, definido em muitas concílios, que, para guardar qualquer preceito divino grave – e muito mais todos – são necessários dois concursos, um da parte de Deus, outro da parte do homem: da parte de Deus, o concurso e influxo da sua graça, e da parte do homem o concurso e consenso do nosso livre alvedrio. De sorte que nem a graça de Deus em nós sem a nossa alvedrio, nem o nosso alvedrio sem a graça de Deus é poderoso, ainda que quiséssemos, para guardar os seus preceitos. Ouvi o que dizia Davi, falando com Deus: Justificationes tuas custodiam: non me derelinquas usquequaque (Sl. 118,8): Eu, Senhor, quero guardar os vossos mandamentos, e o que vos peço para o poder fazer é que vós me não deixeis por nenhum modo. Falou como mestre de Santo Agostinho e de Santo Tomás. Porque, se Deus de qualquer modo nos deixar e nos não assistir, com sua graça, ainda que nós quiséssemos guardar seus mandamentos, de nenhum modo os poderemos guardar. E a razão é porque a guarda dos mandamentos de Deus, e meritória da vida eterna, é obra sobrenatural. E, ainda que o alvedrio concorra com todas as forças da natureza, é necessário que a sobrenaturalidade venha de cima, e lha dê a graça.

Agora entendereis a propriedade com que Cristo, Senhor nosso, chamou à sua lei jugo: Jugum meum suave est(7) – diz que é suave, mas jugo. Porém, se esta lei a há de tomar cada um de nós sobre si, e cada um há de guardar os preceitos e mandamentos dela, como pode ser jugo? O jugo chama-se assim porque o levam dois juntamente; pois, se eu só levo a lei, como pode ser jugo para comigo? Porque ajunta Deus em mim a sua graça como meu alvedrio, e o alvedrio e a graça juntos são os que levam o jugo da lei. O melhor exemplo, que nenhum teólogo jamais achou para declarar esta teologia, foi uma famosa representação com que a Virgem, Senhora nossa, não só a ensinou mas a fez visível. Cantava-se em Roma aquela epístola, em que se contém a história do apóstolo S. Filipe quando converteu o eunuco da rainha Candaces, e assistia à missa outro Filipe, que depois foi também apostólico, e hoje se chama S. Filipe Benisi. Chegando, pois, a história àquelas palavras que o anjo disse ao apóstolo: Accede, et adjunge te ad currum istum (Act. 8,29): Filipe, chega e ajunta-te a esta carroça – que era a em que caminhava o eunuco – arrebatado em espírito o segundo Filipe, viu a Virgem, Senhora nossa, cama triunfante, em uma carraça dauratla, pela qual tiravam uma ovelha e um leão: In aureo curru, quem ovis et leo trahebant, sanctissimam Dei Genitricem insidentem vidit – O intento e significado da visão era que Filipe se fizesse servo da Senhora na religião daquela mesma Igreja, que se intitula dos Servos da Virgem Maria.

Mas a circunstância, que faz mais admirável e misterioso o aparato da representação, são os tiradores da carroça triunfante da Mãe de Deus. Admirável por serem só dois, admirável por serem de diferente espécie, e mais admirável, por ser uma ovelha e um leão: ovis et leo – Ao menos não seria a ovelha cordeiro, ou o leão leoa, para que a semelhança do sexo os sujeitasse mais facilmente, e os unisse ao jugo? Não. A carroça em que Deus e a Mãe de Deus triunfam dos homens, e os sujeitam a ser servos seus – como naquele caso – é a obediência de seus preceitos; e os que tiram por esta carroça e a levam não são mais que dois, e esses de diferente espécie: a ovelha, que é a graça, e o leão, que é o alvedrio humano. O leão, mais soberbo, mais fero, mais indômito e mais imperioso, criado e coroado entre os monstros da Líbia, é o alvedrio do homem: tão soberbo e tão senhor que até ao mesmo Deus como Faraó, pode dizer não quero; mas esta soberba, quem a humilha, esta fereza, quem a domestica, este senhorio, quem o sujeita? A companhia da graça. A graça, como ovelha mansa, lhe tempera a fúria; a graça, como ovelha humilde, lhe modera os brios; a graça, como ovelha sujeita, lhe abate os espíritos; a graça, como ovelha obediente, o faz obedecer e tomar o jugo. Que era Saulo, senão um leão desatado, colérico, furioso, que só com o seu bramido metia terror a todo o rebanho de Cristo: Saulus adhuc spirans minarum in discipulos Domini(8)? E este soberbíssimo leão, quem o rendeu, quem o sujeitou, quem lhe quebrantou a fúria, quem o trocou e fez tão outro; e atou ao jugo quando tanto resistia e recalcitrava? Ele mesmo o diz: Non ego, sed gratia Dei mecum (1 Cor. 15,10): Não eu só, senão a graça de Deus comigo. – E, tanto que a eficácia da graça se ajuntou com a liberdade do alvedrio, logo se domou o indômito, logo se sujeitou o rebelde, e da ovelha e do leão se fez uma parelha tão igual, qual a podia escolher a Mãe de Deus, para ela e seu Filho triunfarem dos homens.

Tomai agora o Rosário na mão, ou olhai para ele, e dizei-me a que se vos afigura? Davi dizia a Deus: In camo et freno maxillas eorum constringe, qui non approximant ad te (9): Aqueles, Senhor, que se afastam de vós, e não querem tomar o jugo de vossa lei, metei-lhes têm freio na boca, e apertai-lhes as rédeas, que, por mais que sejam rebeldes e de dura servidez logo a dobrarão. – E quem faz este efeito, senão o Rosário? O mesmo Deus o diz por boca de Isaías: Laude mea infrenabo te, ne intereas (10): Vejo que o teu alvedrio livre, rebelde e furioso, mais como leão, que como cavalo desbocado, te vai precipitando à perdição; mas eu te meterei um freio na boca, para que te não despenhes nem pereças, e este não será outro, senão o de meus louvores: Laude mea infrenabo te. – Verás o que fiz por ti, conhecerás as obrigações que me deves, louvar-me-ás uma e muitas vezes por tão soberano e divinos benefícios, e como trouxeres na boca estes meus louvores – que é o que fazemos no Rosário – eles te refrearão, para que me não ofendas, e para que encaminhes todos teus passos pela carreira de meus mandamentos: Frenum legis et religionis meae tibi injiciam, cogamque te ad mei cultum, ut more solito me laudes (11) comenta Santo Tomás. Assim que os louvores divinos entoados no Rosário são os que suave e fortemente dominam a liberdade, e domam a fereza do alvedrio, e a sujeitam à Lei de Deus.

E a graça, sem a qual ele não pode caminhar direito nem sofrer o jugo, donde lhe há de vir? Do mesmo Rosário. Chama-se a Virgem, Senhora nossa, nos Cantares: Puteus aquarum viventium (Cânt. 4,15): Poço das águas vivas – que são as da graça. Mas este poço é muito alto e muito profundo, e nós – dirá alguém – que não temos com que tirar a água, como dizia a Samaritana a Cristo: Neque in quo haurias habes, et puteus altus est (12). Assim disse ela enquanto não conhecia com quem falava, e em parte disse bem, porque o Rosário até então ainda era curto, e não tinha mais que o primeiro terço; porém, depois que o mesmo Cristo obrou todos os outros mistérios, e a Senhora compôs e aperfeiçoou de todos o seu Rosário – vede se é muito própria a figura – o mesmo Rosário, assim como ides dando volta às contas, e dizendo Ave gratia plena, elas são os alcatruzes com que do poço altíssimo se vai tirando acima a água da graça. No Egito se conserva ainda hoje uma fonte, a qual se chama a fonte de Jesus, porque dela bebiam, quando lá estiveram desterrados, o Menino Jesus, a Senhora e S. José; e diz Andricômio, com outros autores desta tradição, que, por estar a água muito funda, se tira com uma roda: Aquam extrahunt per rotam (13). O mesmo fazemos nós por meio do Rosário, com que ele vem a ser um instrumento artificiosíssimo de dois usos os mais importantes: para domar o alvedrio, freio; e para atrair a graça, roda.

IV

A oração vocal e mental, dois meios eficacíssimos que a Virgem, Senhora nossa, uniu no seu Rosário para a observância dos mandamentos de Deus. Porque razão são quinze, e não mais nem menos, os mistérios do Rosário? O Rosário, Saltério da Virgem, composto à semelhança do Saltério de Davi, com as dez cordas do Decálogo e mais as cinco do Quincálogo. Proposta de Davi a Deus: Levantai-vos, Senhor de vosso trono, e resolvei-vos a fazer por vossa própria pessoa os preceitos que impondes aos homens. – O Rosário, espelho dos exemplos e mandamentos de Deus.

Tornando, pois, ao fundamento do que significam ou declaram estas duas semelhanças exteriores, como para os homens se sujeitarem a Deus, e a seu serviço, e à observância de seus mandamentos são precisamente necessários aqueles dois concursos que dizíamos – da parte de Deus, o da graça divina, e da parte do homem, o do alvedrio humano – este foi o altíssimo e sapientíssimo conselho com que a Virgem, Senhora nossa, ordenou que a oração do seu Rosário fosse vocal e mental, e não só oração de qualquer modo, senão oração e meditação juntamente, para que, orando e pedindo, impetrássemos de Deus a graça, e, meditando e considerando, nos persuadíssemos e convencêssemos a nós, e conseguíssemos de nós mesmos a sujeição do nosso próprio alvedrio. Os hereges, como em nossos tempos, o ímpio Calvino, porque não querem guardar os mandamentos de Deus dizem que são impossíveis. Mas já antigamente os convenceu Santo Agostinho, com as mesmas palavras com que depois os anatematizou o Concílio Tridentino: Deus impossibilia non jubet, sed jubendo monet et facere quod possis et petere quod non possis: Deus, em seus preceitos, não manda coisas impossíveis; mas, quando manda as que são ou parecem dificultosas, também nos ensina os meios com que as havemos de facilitar e guardar. – E quais são: Et facere quod possis, et patere quod non possis: Fazer o que podeis e pedir o que não podeis. – Fazer o que podeis, obrando com as forças naturais, que são as do alvedrio; e pedindo o que não podeis, solicitando as forças sobrenaturais, que são as da graça. E estes são os dois meios eficacíssimos que a Virgem, Senhora nossa, uniu no seu Rosário, ajuntando às preces da oração vocal as meditações da mental.

A matéria das meditações do Rosário compõe-se de quinze mistérios. E por que razão de quinze, nem mais nem menos? Porque os mediu a Senhora pelo número dos mandamentos, a cuja observância se ordenam. Davi, falando com os justos, que são os que guardam os mandamentos, exorta-os a que louvem a Deus, e que o modo de o louvar seja cantando seus louvores ao som do saltério de dez cordas: Exultate, justi, in Domino; rectos decet collaudatio. In psalterio decem chordarum psallite illi (14). – Já dissemos que o Rosário, chamado desde seu princípio Saltério da Virgem, foi composto à semelhança do Saltério de Davi. Pois, se Davi fez o seu saltério de dez cordas, a Senhora porque acrescentou ao seu mais cinco, e fez o seu saltério de quinze? Porque, assim o de Davi como o da Senhora, foram ordenados à guarda dos mandamentos e os mandamentos no tempo de Davi eram só dez, no tempo em que a Virgem instituiu o Rosário já eram quinze. Eram dez do Decálogo, que são os dez mandamentos da Lei de Deus, e eram cinco do Quincálogo, que são os cinco mandamentos da Santa Madre Igreja. E como os mandamentos hoje são quinze, por isso a Senhora, proporcionando o número com o número e os mistérios com os mandamentos, compôs o seu Rosário em tal forma que a cada mandamento correspondesse um mistério. E para quê? Para que em cada um dos mesmos mistérios, como em um espelho claríssimo, se visse o homem, a si, e visse as suas obrigações, e nenhum houvesse tão cego, tão ingrato, tão atrevido, que ousasse quebrantar os mandamentos contrários.

Não é o pensamento meu, senão do mesmo Davi, falando do seu tempo como santo, e do futuro como profeta: Tu mandasti mandata tua custodiri nimis (Sl. 118, 4): Vós, Senhor, mandastes que os vossas mandamentos sejam guardadas com grande pontualidade, e tão grande e tão exato, que, pareça nímia: Utinam dirigantur viae meae ad custodiendas justificationes tuas (Ibid. 5)! – Oh! que ditoso seria eu, e quão singular mercê receberia de vossa divina mão, se todas as minhas intenções e ações fossem dirigidas à perfeita guarda de todos vossos mandamentos. – Porém, o meio eficaz com que isto se há de conseguir não é para agora: está reservado para outro tempo: Tunc non confundar cum perspexero in omnibus mandatis tuis (Ibid. 6): Eu agora – diz Davi – desejo guardar vossos mandamentos, mas muitas vezes tenho ocasião de me confundir; porque os não guardo. Porém quando vier aquele ditoso tempo – tunc – em que todos os vossos mandamentos tenham diante e defronte de si outros tantos espelhos, em que se veja quem os houver de guardar: Cum perspexero in omnibus mandatis tuis – então cessará essa confusão: Tunc non confundar – porque ninguém haverá tão descomedido, tão precipitado, tão cego, que, olhando para aqueles espelhos, vendo-se em cada um a si, e em todos a todos os vossos mandamentos, se atreva a quebrar o menor deles. E em que fundou Davi a esperança desta grande promessa, não menos dificultosa de executar que de entender? Fundou-a na eficácia de uma proposta que ele mesmo tinha feito a Deus, não sei se bem advertida, mas muita digna de se notar: Exurge, Domine, in praecepto quod mandasti, et synagoga populorum circumdabit te (Sl. 7, 8): Levantai-vos, Senhor, do trono de vossa majestade, onde estais assentado desde o princípio do mundo, e resolvei-vos a fazer e executar por vossa própria pessoa os preceitos que impondes aos homens: Exurge in praecepto quod mandasti – e logo os mesmos homens, à vista deste exemplo, não terão que replicar à pronta obediência de todos vossos mandamentos; antes, todos de tropel, e à porfia, vos seguirão e acompanharão neles: Et synagoga populorum circumdabit te.

Isto é o que Davi, profetizando, representava a Deus, isto é o que Deus executou fazendo-se homem e obedecendo a todos os preceitos divinos; e isto é o que a Mãe do mesmo Deus reduziu à prática na forma e disposição com que ordenou o seu Rosário. Antes de Deus se fazer homem, mandando somente, e não obedecendo, quase dava ocasião aos homens de murmurarem dentro em si e dizerem: – Deus manda tudo o que lhe parece, e, posto que tudo seja justo e muito bem mandado, mandar lá do céu, onde ele está, é muito fácil. Ele está em perpétuo descanso, e manda que nós trabalhemos; ele é impossível, e quer que nós padeçamos; ele sobeja-lhe tudo, e quer que nos abstenhamos na falta do que havemos mister; ele está ouvindo músicas de anjos, e quer que nós soframos as injúrias que nos dizem e fazem os homens; ele, enfim, escreve preceitos com o dedo, e quer que nós os executemos com todo o corpo e com toda a alma. E porque isto é tão dificultoso quanto vai de mandar a ser mandado, e de não fazer a fazer, por isso tem tão poucos que guardem seus mandamentos. – Assim diziam ou podiam dizer os homens antigamente; porém, depois que Deus se fez homem, e se sujeitou a padecer trabalhos, pobrezas, injúrias, e nenhuma coisa das que tinha mandado antes ou das que mandou depois deixou ele de obedecer e executar por sua própria pessoa, nem a razão, nem a sem-razão humana tem pretexto algum de se não sujeitar a todos os mandamentos de Deus. E isto é o que a Mãe do mesmo Deus nos põe diante dos olhos em tantos mistérios quantos são os mandamentos, e em tantos espelhos quantos são os mistérios: Cum perspexero in omnibus mandatis tuis (15).

No Monte Sinai escreveu Deus as tábuas da lei, e no mesmo monte delineou o modelo e exemplar do tabernáculo: Fac secundum exemplar quod tibi in monte monstratum est (16). Mas que sucesso teve uma e outra obra? O exemplar delineado no monte executou-se: as leis escritas no monte quebraram-se. Para lavrar e acomodar madeiros, que não têm sentimento nem alvedrio, bastam exemplares mortos pintados no monte: mas para amoldar e compor homens que têm entendimento e liberdade, não basta que as leis se pintem e se escrevam no monte: é necessário que o legislador desça do monte, e que os exemplares do que manda fazer sejam vivos e animados com as suas próprias ações. Assim o fez Deus. E porque experimentou que têm pouca força as leis para a obediência, onde faltam os exemplos para a imitação, por isso desceu do céu à terra, como o mesmo que tinha mandado, assim como nos exemplos fosse imitado, fosse também nos mandamentos obedecido. Pondo, pois, o Rosário os exemplos de Deus à vista dos mandamentos do mesmo Deus, não já como Senhor que os manda, senão como súdito e companheiro que os obedece, que alvedrio haverá tão livre, tão irracional e tão rebelde que, meditando neles, em Deus e em si, se não sujeite voluntário e agradecido à obediência dos mesmos mandamentos?

V

É próprio da liberalidade de Deus, sendo liberalíssimo, querer-se importunado. A parábola do amigo importunado e o Rosário. O que para os homens é importunação para Deus é oportunidade. São as contas do Rosário como as cifras: as que vão adiante acrescentam o valor das que ficam atrás. S. Gregório Papa e a perseverança na oração.

Mas, porque não basta que o alvedrio, convencido pela meditação, esteja rendido, se a graça sobrenaturalmente o não elevar aonde ele com as forças naturais não pode subir, aqui entra o petere quod non possis (17). – E para pedir e impetrar de Deus a mesma graça, se ordenam as orações tão repetidas e multiplicadas, de que igualmente se compõe o Rosário. Digo tão repetidas e multiplicadas, porque assim como a Senhora a cada mandamento contrapôs um mistério, assim parece que bastava ajuntar a cada mistério uma oração. Mas a cada mistério e a cada mandamento um Padre-nosso, e sobre ele uma década ou um decálogo de Ave-Marias? Reparo é este em que já no tempo de Lactâncio, há mais de mil e quatrocentos anos, toparam os gentios, chamando-lhe superstição dos cristãos, porque ou o seu Deus os ouve ou não: se os ouve, basta que digam uma vez o que pedem; e se os não ouve, supérflua e ociosa coisa é repetirem tantas vezes o mesmo. Quem isto cuida não sabe que o vigor da oração é a perseverança, e que gosta Deus de que lhe peçam muitas vezes, porque quer dar muito. Pedir e tornar a pedir uma vez e muitas chama-se entre os homens importunação; mas é próprio da liberalidade de Deus, sendo liberalíssimo, querer-se importunado.

Pediram os discípulos a Cristo que os ensinasse a orar, e fê-lo o Senhor com uma notável parábola. Veio, diz, um homem à meia-noite bater à porta de um seu amigo, e pediu-lhe que lhe emprestasse três pães, porque àquela hora lhe tinha chegado a casa um hóspede, e não tinha com que o agasalhar. O amigo parece que era mais amigo do seu descanso e da sua comodidade, e respondeu que estava já recolhido com toda sua família, que não eram aquilo horas de a inquietar, que se fosse embora. Bastante ocasião era esta, para que o que pedia os pães desconfiasse e se fosse, e se acabasse também a amizade; mas não o fez assim, sinal de que eram verdadeiramente amigos. Tornou a bater e instar uma e outra vez, até que o de dentro, diz Cristo, não tanto por amigo, quanto por importunado, lhe deu o que pedia: e assim haveis de fazer vós quando orardes e pedirdes o que vos for necessário a Deus: Et ego dico vobis: Petite, et dabitur vobis: quaerite, et invenietis: pulsa-te, et aperietur vobis (18). – Se esta parábola não fora da Sabedoria divina, havíamos de dizer que não era acomodada. Para Deus não há noite: Sicut tenebrae ejus, ita et lumen ejus (19); – Deus não dorme: Non dormitabit neque dormiet qui custodit Israel (20); as portas de Deus sempre estão abertas: Aperientur portae tuae jugiter: die ac nocte non claudentur (21); na casa de Deus não pode haver inquietação:Factus est in pace locus ejus et habitatio ejus (22). – Pois, se todas as dificuldades que se supõem nesta parábola não têm lugar em Deus, e Deus é o amigo que nela se introduz, a quem se pediu o socorro como diz o mesmo Cristo que, finalmente, o veio a dar depois de tanto bater, depois de tanto pedir, depois de tanto instar, e que ainda então o não fez tanto por amigo, quanto por importunado: Si mon tabu illi surgens, eo quod amicus ejus sit, propter improbitatem tamen ejus surget, et dabit (23)?Aqui vereis como Deus gosta de ser importunado, e quão bem lhe sabia a condição quem instituiu o Rosário, como quem o tinha criado a seus peitos. Pode haver maior importunação que pedir a mesma coisa e pelas mesmas palavras todos os dias, e cento e cinqüenta vezes no dia? Pois, isso é o que fazemos no Rosário, isso é o que nos mandou fazer a Mãe de Deus, e isso é o de que sobretudo gosta seu Filho, não por pouco liberal, senão por muito desejoso de não dar pouco.

Este é o sentido literal da parábola, como a entendem todos os padres: fale por todos S. Jerônimo: Hujus amici ostium incessanter pulsare debemus, et horis eum inquietare nocturnis, et usque adeo molesti esse, ut importuni etiam videamur: A este amigo – que é Deus – devemos-lhe bater às portas sem cessar, e inquietá-lo a todas as horas, não de dia só, senão também de noite, e ser-lhe por este modo tão molestos, que cheguemos a ser julgados por importunos: Sed non hujus importunitatis vereamur offensam, quia haec apud Dominum importunitas opportuna est – Não receemos, porém, que nesta nossa importunarão Deus se haja de ofender, porque o que entre os homens se chama importunação para com Deus é oportunidade. – Oportunidade de pedir, oportunidade de alcançar, oportunidade de ser melhor e mais gratamente ouvido. E a razão por que Deus se agrada tanto de ser assim importunado, é porque a importunação no pedir é perseverança no orar; e na oração, como em todas as outras virtudes, nenhuma coisa mais agrada a Deus que a perseverança. E se não vede-o – diz Jerônimo – nesta mesma parábola, em que a perseverança foi mais amiga que o amigo, porque o que a amizade não alcançou a perseverança o conseguiu, e o que o amigo não deu por amigo, deu por importunado: Magna perseverantia, quae quamdiu importuna est, plus amica est quam amicus. Ecce enim quod amico negatur, perseverantia promeretur – E daqui se segue – infere o santo – que se deve continuar e repetir muitas vezes a mesma oração, como nós fazemos no Rosário. Por quê? Porque a oração que vai diante tem a sua perseverança na oração que se segue atrás; e se esta se não seguir nem se fizer, perde todo o seu preço e valor aquejá está feita: Semper igitur petendum est, ne precatio ante acta nihil prosit si non ad finem eodem, quo coepit, tenore porvenerit.

Altíssimo pensamento! De maneira que a segunda Ave-Maria é a que dá o valor à primeira, e a terceira à segunda, e assim as demais sucessivamente, porque ainda que qualquer delas por si mesma seja oração, não por si só, senão pela que se segue depois, é oração perseverante. São as contas do Rosário como as cifras, que as que vão adiante acrescentam o valor das que ficam atrás; ou são as Ave-Marias que por elas se rezam como as ondas do mar, que o peso das que vêm atrás acrescenta maior impulso às que vão adiante. E este foi o divino conselho com que a Senhora ordenou que as mesmas orações se repetissem tantas vezes no seu Rosário, e que, sendo quinze os mistérios, o número das orações fosse dez e onze vezes quinze. Para que na multiplicação das mesmas orações umas sobre outras se segurasse a perseverança delas, e Deus, tantas vezes importunado, nos não pudesse negar, o concurso e assistência de sua graça, tão necessária à guarda dos seus mandamentos.

Também isto disse Davi, e o comentou com os mesmos termos S. Gregório Papa. Clamavi ad te: salvum me fac, ut custodiam mandata tua (Sl. 118, 146): Eu, Senhor, clamei a vós – diz Davi – e pedi-vos que me deis vossa graça, para guardar vossos mandamentos. – Notandum quod non ait, clamo, sed clamavi: Notai – diz S. Gregório – que não diz o profeta eu clamo, senão eu clamei; nem diz, eu peço, senão, eu pedi. – Pois se Davi atualmente estava clamando e pedindo, porque não alega o clamor e oração presente, senão os clamores e orações passadas? Porque sabia que a oração, para ser eficaz, há de ser perseverante, e que Deus, para conceder o que se lhe pede, quer ser importunado; e como a perseverança e a importunação não consiste em um só clamor e uma só oração, senão em muitas, umas sobre as outras, por isso quando pede alega que tem pedido, e quando clama alega que tem clamado: Clamavi ad te. – Em próprios termos o grande pontífice: Habes in hoc perseverantiae documentum, ut ab oratione non deficias, sed precibus et clamori insistas. Vult enim Deus rogari, vult quadam importunitate vinci. – Consistindo, pois, a perseverança da oração em se repetirem muitas vezes as mesmas preces, e consistindo o importunar a Deus em se lhe tornar a pedir muitas vezes o que já se lhe tem pedido, bem se segue que, sendo as orações que fazemos no Rosário tão perseverantes por multiplicadas, e tão importunas por repetidas, não poderá Deus negar aos que o rezam o que Davi lhe pedia e eles lhe pedem, que é a graça necessária para guardar seus mandamentos: Clamavi ad te, ut custodiam mandata tua. Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud.

VI

Provas universais e particulares da virtude e eficácia do Rosário. Visão de S. Domingos na igreja de S. Pedro em Roma. Frei Alano de Rupe, restaurador da devoção do Rosário. A milagrosa reforma de uma com unidade de religiosos. O perigo da tibieza na religião. S. Domingos e a pacificação de duas famílias inimigas. Os três terços em que foram divididas as gentes de Jacó contra Esaú, e os três terços do Rosário. A conversão de Dom Pedro de Saragoça.

Parece-me que tenho mostrado, com o testemunho das Escrituras, com a doutrina dos santos e com a evidência das razões, quão própria e singular virtude é a da devoção do Rosário para conseguirmos nesta vida a guarda e observância dos preceitos divinos, da qual precisamente depende a bem-aventurança da outra, para que fomos criados todos, e tantos perdem por sua culpa. Mas a prova mais legal e demonstrativa deste glorioso argumento não quis a Virgem Santíssima que ficasse ao discurso dos pregadores, nem à piedade dos seus devotos, nem à cortesia ou fé dos que o não fossem, senão que a mesma Senhora, como autora e fundadora de um instituto tão propriamente seu, a tomou por sua conta. E em quem mostrou a providência soberana da Mãe de Deus a verdade e eficácia destes poderosos efeitos do seu Rosário? É a prova tão universal e tão particular, que só poderá ser sua. Mostrou esta virtude do seu Rosário nas pessoas que o rezam, mostrou-a nas famílias, mostrou-a nas comunidades, e mostrou-a, finalmente, no mundo todo reformado, emendado e sujeito à obediência e observância das leis divinas por esta milagrosíssima devoção. Comecemos pelo mundo, para que acabemos por nós (24).

Fazendo oração S. Domingos na igreja de S. Pedro em Roma, viu a Cristo em trono de estranha e temerosa majestade, que com semblante severo e irado, e com três lanças de fogo, que tinha na mão direita, queria fulminar o mundo e abrasá-lo. Também entendeu o santo quais eram as causas, e claro está que haviam de ser aqueles três vícios entre os capitais capitalíssimos, soberba, cobiça, sensualidade: Ut uno eorom superbos, avaros altero, tertio libidinosos deleret, – Já antigamente parece que tinha Deus ensaiado este castigo em Absalão, tão soberbo que tirou a coroa da cabeça a seu pai, tão cobiçoso que lhe roubou o reino, e tão sensual, que lhe não perdoou ao tálamo, e por isso morto por mão de Joab, e traspassado pelo coração com três lanças. Mas quem acudiria e intercederia pelo mundo, e quem poria embargos a uma tão terrível sentença, senão aquela poderosíssima Senhora, por cujo respeito o mesmo mundo foi criado, e por cujas orações se conserva e se sustenta? Não quero alegar para isto santos ou autores católicos, que assim o dizem, senão a tradição dos rabinos, antes do Messias vir ao mundo. Ouvi a rabi Onkelos: Non solum amore Virginis cotiditus est mundus, sed etiam sustentatur. Ob scelera enim innumera, quae mundani committunt, nullo pacto consistere posset, nisi ipsum gloriosa Virgo cum sua misericordia et elementia pro nobis orando sustineret (25).

Prostrada, pois, a Mãe de misericórdia diante da majestade justissimamente irada de seu bendito Filho para que revogasse a sentença, lhe representou somente dois motivos: o primeiro, e mais enternecido, foi o do sangue que de suas entranhas tinha recebido, como se dissera: Projice tela manut sanguis meus. – O segundo, que, se as causas de tão merecido castigo eram os pecados e maldades do mundo e a ofensa e desprezo das leis divinas, que a mesma Senhora tomava por sua conta a reforma e emenda do mesmo mundo, porque tinha um servo fidelíssimo – apontando para S. Domingos – o qual com uma nova devoção que lhe ensinaria do seu Rosário, de tão vicioso e depravado como estava o mundo o faria cristão e religioso, de soberbo humilde, de cobiçoso esmoler, de libidinoso casto, e de rebelde e desobediente aos preceitos e mandamentos de Deus temeroso, sujeito e muito observante de todos. Acabou a Senhora de dizer. E não é necessário que nós digamos qual foi a resposta do benigníssimo Filho, sendo aquele bom Senhor que, ainda quando mais irado e ofendido, non vult mortem peccatoris, sed ut magis convertatur et vivat (26). – Diz S. Paulo que Cristo, Senhor nosso, assentado á destra do Padre, está purgando o mundo de seus pecados: Purgationem peccatorum faciens, sedet ad dexteram majestatis in excelsis (Hebr. 1,3). – Quando, pois, Cristo purga o mundo com castigos, purga-o como a prata com fogo: Argentum igne examinatum, purgatum septuplum(27) – e assim o queria agora purgar com os raios daquelas três lanças. Mas como a sua inclinação é de perdoar, quando ele queria purgar o mundo com fogo, vede se gostaria muito de que sua Mãe o purgasse com rosas? Aceitou de muito boa vontade o partido, e o efeito foi tão conforme e tão igual à promessa, como a mesma Virgem Maria o referiu.

Foi descaindo com o tempo, como acontece a todas as coisas boas, a devoção do Rosário, e, tomando a Senhora por restaurador e reformador dela ao santo frei Alano de Rupe, depais de lhe lançar ao pescoço um Rosário de pedras preciosas, e lhe fazer outros maiores favores, disse-lhe desta maneira: – Quando meu servo Domingos começou a pregar o meu Rosário em Itália, França, Espanha, e outras partes, foi tal a mudança do mundo que parecia haverem-se trocado os homens de carne em espíritos angélicos, ou que os anjos tinham descido do céu a morar na terra. Os hereges se convertiam a milhares, os católicos desejavam ardentissimamente o martírio em defesa da fé, os grandes pecadores confessaram com pública detestação suas culpas, e com entranhável dor e infinitas lágrimas se reduziam à vida reformada e santa; até os meninos e donzelas de tenra idade faziam rigorosíssimas penitências. Desprezava-se a riqueza, o regalo, a liberdade e povoavam-se as religiões; faziam-se muitas esmolas, levantavam-se templos, edificavam-se hospitais. A guarda da lei de Deus, a autoridade do pontífice, a justiça dos príncipes, a paz dos povos, o honesto trato das famílias, tudo florescia com tais exemplos de virtude e Cristandade, que se não pode encarecer o ponto em que esteve, não se tendo por cristão quem, em reverência minha e culto de meu sagrado Filho, não rezasse devotamente o Rosário, nem havendo lavrador que pegasse no arado, nem oficial que pusesse a mão no trabalho, de que sustentavam a vida, antes de me oferecer este tributo e a Deus este sacrifício, à sua divina majestade tão agradável.

Isto, e muito mais, é o que referiu a mesma Virgem Maria ao novo e grande restaurador de seu Rosário, Alano, como o mesmo santo deixou escrito e firmado de sua mão. Mas ainda o mesmo autor e outros muitos contam outra maravilha, que eu reputo por maior, e creio que também a terão por tal todos os que souberem o que são comunidades. Uma comunidade de religiosas – das quais só se diz que eram claustrais, sem se nomear a religião – estava tão relaxada e esquecida de seus institutos, que por nenhum meio, nem suave, nem violento puderam acabar os prelados que admitissem reformação. Viu, porém, um deles que de uma das celas do mesmo convento saíam grandes resplendores, dos quais fugiam muitos demônios, e sem resistência entravam pelas outras. Morava nesta cela uma freira de poucos anos, a quem as demais chamavam hipócrita, e como tal a desprezavam e perseguiam; e as suas hipocrisias eram rezar todos os dias o Rosário da Virgem Santíssima com muita devoção, e conservar, quanto lhe era possível, a observância do instituto. Informado, pois, o prelado da causa dos resplendores que vira, mandou vir grande quantidade de rosários curiosamente guarnecidos, meteu-os na manga, e, estando junta a Comunidade, disse a todas as religiosas que ele, com consulta e conselho dos padres da província, tinha resoluto de não tratar mais da reforma daquele convento, pois elas tanto a repugnavam; e que somente em lugar dos antigos institutos da ordem, a que se não queriam sujeitar, lhes rogava quisessem aceitar, como por concerto, uma pensão tão leve como rezar todos os dias o Rosário da Senhora. Aceitaram elas facilmente a condição, muito satisfeitas de se verem aliviadas para sempre das instâncias ou perseguição da reforma; e então tirou o prelado os rosários, que, pela curiosidade do asseio, mais que pela devoção, foram muito bem vistos, e, repartidos entre todas, se despediu. Mas, ó potência, ó virtude, ó graça do Santíssimo Rosário, mais admirável no que aqui sucedeu que na conversão de todo o mundo! Poucos meses havia que se rezava o Rosário no convento, quando todas as freiras, já verdadeiramente religiosas, de comum consentimento, sem haver alguma que discrepasse, com grande submissão e humildade mandaram pedir ao prelado que logo quisesse vir fazer a reforma porque todas estavam, não só dispostas, senão muito desejosas de se conformar com o primitivo espírito da ordem, e observar pontualmente todas suas regras e institutos.

Assim se fez, com grande edificação e aplauso. E eu torno a dizer que foi maior maravilha do Rosário a reforma desta comunidade que a do mundo tão perdido, porque da perdição à conversão, como afirma S. Gregório, não é muito dificultosa a passagem; porém, da relaxação à perfeição é totalmente desesperada, e quase impossível: Frigus ante teporem sub spe est: tepor autem post frigus in desperatione (28). – Alude o grande pontífice ao recado que Cristo, Senhor nosso, no Apocalipse mandou ao bispo de Laodicéia, dizendo-lhe que, porque não era frio nem quente, senão tíbio, o lançaria ou vomitaria de si: Utinam frigidus esses, aut calidos: sed quia tepidus es, incipiam te evomere (29). Nesta sentença da suma verdade é mais fácil topar com a experiência que achar a razão. Porque, estando o tíbio mais perto do quente, e o frio mais longe, parece que passar do tíbio ao quente há de ser mais fácil que o frio. E, contudo, na virtude mostra a experiência o contrário, porque mais facilmente se passa de um extremo ao outro, que do meio ao extremo. É o meio nas matérias da perfeição, como nas da política, em que as resoluções meias são as piores, porque não atam nem desatam. Também a neutralidade é meio: e pior é a profissão de neutral que a de inimigo declarado, como disse o mesmo Cristo: Qui non est mecum, contra me est (30). – Tal vem a ser o estado da religião relaxada, que nem totalmente é mundo nem totalmente religião, e, professando o serviço de Deus e o desprezo do mundo, mais é do mundo que de Deus. Ouçamos a Cassiano, o maior e mais experimentado mestre dos bens e males das religiões: Frequenter videmus de saecularibus ac paganis ad spiritualem pervenire fervorem: de tepidis atque animalibus omnino non videmus (31): Freqüentemente vemos que homens seculares, e ainda gentios, passam a ser perfeitos religiosos; mas que religiosos tíbios e imperfeitos passem a ser perfeitos, nunca tal vimos. – Logo, maior milagre foi do Rosário reformar uma comunidade relaxada, que converter e emendar o mundo quando estava tão perdido.

Na reformação das famílias, reduzindo a economia delas à observância da lei de Deus, não mostra menos nos seus grandes poderes a devoção do Rosário. Em França, onde os ânimos são tão orgulhosos e bravos – e por isso parece que quis a Senhora que nascesse o seu Rosário naquela terra – havia duas famílias das mais principais, cujas cabeças se perseguiam e infestavam com imortais ódios, sendo gravíssimos os danos que se tinham feito, e maior ainda o perigo dos que se temiam. Por esta causa trabalhou muito a caridade de S. Domingos por reconciliar estes dois inimigos; mas como eram ilustres, poderosos e ofendidos, nunca houve remédio. Finalmente, determinou-se o santo aos render por força, recorrendo às suas armas, e sem falar a um no outro, nem trazer à memória a questão, afeiçoou e persuadiu a cada um em particular que fossem devotas do Rosário.

Nos ódios de Esaú com Jacó, como Esaú era mais poderoso, diz o texto sagrado que Jacó dividiu o seu poder e a sua gente em três terços. Porém, S. Domingos, como os dois inimigos que queria sujeitar com as suas armas eram igualmente fortes, e ambos resistiam tão obstinadamente que nenhum se queria render, contra ambos ordenou também e dispôs os seus terços que eram os do Rosário, e não pouco parecidos aos de Jacó. No primeiro ia Bala e Zelfa, uma e outra escrava, e representava o primeiro terço do Rosário, que é o dos mistérios da Encarnação, em que a Senhora concebeu o Verbo Eterno, dizendo: Ecce ancilla Domini (32). No segundo seguia-se Lia, singular na fecundidade, e representava o segundo terço do Rosário, que é o dos mistérios da Paixão, em que a Senhora ao pé da cruz, debaixo do nome de João, foi constituída Mãe de todo o gênero humano: Mulier, ecce filius tuus (33). – O terceiro, por fim, rematava-se na formosa e sobre todas amada Raquel, e representava o terceiro terço do Rosário, que é o dos mistérios da Ressurreição e da glória, em que a Senhora foi preferida na graça e no amor com excesso infinito a todas as criaturas, e como tal colocada junto à pessoa do mesmo Cristo, como Raquel à de Jacó: Astitit regina a dextris tuis (34): – Estes eram os terços com que de uma e outra parte invisivelmente, e sem entender o que faziam nem o pretender fazer, se combatiam com armas iguais os dois inimigos, observando o fim da batalha só quem os tinha metido em tão nova e oculta guerra. E qual foi o sucesso? A batalha era oculta, mas o sucesso foi muito público, e caso verdadeiramente prodigioso.

Depois que um e outro inimigo continuaram em rezar o Rosário, sucedeu que, vindo de partes apostas, se encontraram ambos em uma rua, e quando os que os viram e conheceram tiveram por certo que naquele encontro se acabavam de destruir e matar, eis que ambos, levados do mesmo impulso interior; não com as espadas nas mãos, senão com os braços abertos, se foram um para o outro, e se abraçaram estreitissimamente, mais como irmãos que como amigos, e se deram e imprimiram no rosto os mais amorosos sinais da paz, bem assim como Esaú a Jacó, de quem diz a Escritura: Currens itaque Esau obviam fratri sua, amplexatus est eum: stringensque collum ejus, et osculans, flevit (35). – As palavras formais com que S. Domingos os tinha exortado a rezara Rasaria foram que aquela tão fácil devoção, e que tão pouco tempo ocupava, lhes aproveitaria grandemente para cumprir com as leis de Deus e de cavaleiros cristãos. E esta foi a razão que eles mesmos se deram, dizendo que era bem se acabassem entre ambos os ódios, pois a lei ele Cristo mandava que se amassem os inimigos. Logo, não só se perdoaram de parte a parte os agravos, mas sem pleito nem controvérsia se restituíram os danos de uma e outra família, nas quais se perpetuou igualmente a amizade e a devoção a que a deviam.

Nas pessoas particulares, assim como são mais freqüentes as quebras dos preceitos divinos, assim o são também os efeitos maravilhosos do Rosário na emenda e mudança das vidas. Um só exemplo referirei, sucedido não muito longe da nossa terra. Havia na cidade de Saragoça um fidalgo poderoso, chamado Dom Pedro, de costumes tão escandalosamente depravados, como o costumam ser aqueles em que o vício se ajunta com o poder. Ainda não tinha perdido a fé, porque cria que havia inferno, nem tinha perdido o entendimento, porque conhecia o estado de sua vida, mas totalmente tinha perdido a esperança, porque estava resoluto e tinha assentado consigo que sem dúvida se havia de condenar, e por isso enquanto não vinha a morte, era daqueles que dizem a seus apetites: Coronemus nos rosis antequam marcescant (36). – Mas contra estas rosas, que verdadeiramente são espinhas, tem Deus outras espinhas que produzem rosas. Entrou Dom Pedro em uma igreja, levado, não da devoção, mas da curiosidade, pela fama com que ali pregava S. Domingos. Tratava o santo astralmente, e ponderava com grande energia e força de espírito aquele texto do Evangelho: Qui facit peccatum servus est peccati (Jo. 8,34): Quem comete o pecado é escravo do pecado – e como eram tantos os pecados deste novo ouvinte, outras tantas foram as cadeias com que o Santo em feiíssima figura o viu atado, tiradas todas por demônios, que em grande multidão o cercavam. Sucedeu isto duas vezes; e para que o miserável homem se conhecesse, e os demais cobrassem horror ao pecado, pediu o zelosíssimo pregador a Deus que vissem todos o que ele via.

Oh! se sucedesse o mesmo neste auditório, quantos escravos e escravas do pecado, quantas cadeias forjadas no inferno, e quantos demônios se veriam? Foi tal o assombro, a confusão, o tumulto, com a vista daquele horrendo espetáculo, que todos, não cabendo pelas portas, fugiam da igreja dando gritos. Fugiam do miserável os estranhos, fugiam os amigos, fugiam os criados, e até a triste mulher, que também se achava presente, fugiu. Só ele, que não se via, atônito e pasmado, quisera também fugir de si mesmo, mas queria Deus que entrasse em si, e para isso lhe mandou S. Domingos, por seu companheiro, um Rosário, com o qual lançado ao pescoço se foi lançar aos pés do santo, chorando e confessando seus pecados com a dor, contrição e lágrimas que pedia o caso. Consultada a Virgem, Senhora nossa, sobre a penitência que se lhe havia de dar, ordenou que rezasse o Rosário por toda a sua vida, e que para satisfazer ao escândalo público, fizesse na mesma igreja outras penitências também públicas, as quais ele aceitou e executou com grande submissão e humildade, pedindo perdão a toda a cidade do mau exemplo que lhe tinha dado. Continuou a rezar, e meditara todos os dias o Rosário, com grande atenção e devoção, e foi tal a mudança de sua vida com esta nova cadeia, a que se atou, e tal o fervor de espírito e perfeição de santidade que a Senhora lhe continuou por meio dela, que aquele mesmo Dom Pedro, que tão grande pecador tinha sido, obrava depois coisas milagrosas. E em testemunho da graça a que Deus o tinha sublimado naquela mesma igreja em que o tinham visto preso pelos demônios, estando em oração um dia solene, viu todo o mesmo povo que desciam anjos do céu, e lhe punham uma coroa de rosas sobre a cabeça. Tais são, Virgem Santíssima, as mudanças que faz, ainda nos maiores desprezadores das leis divinas, a devoção e virtude do vosso santíssimo Rosário.

VII

Razões da promessa do profeta Samuel a Saul: – Serás mudado em outro homem. Por que razão se deteve Moisés quarenta dias no Monte Sinai, sendo o decálogo tão breve? Razões da ineficácia do Rosário nos que o não rezam com a atenção que devem.

A mesma mudança, cristãos – se queremos acabar de o ser – obrará em nós este soberano remédio, tão poderoso, e tão provado. Prometeu o profeta Samuel a Saul, que o espírito de Deus entraria nele, e ele seria mudado em outro homem: Insiliet in te Spiritus Domini, et motaberis in virum alium (1 Rs. 10,6). – Não pode haver maior mudança que aquela em que o mesmo homem é mudado e trocado em outro. E quando, ou por que meios havia de suceder a Saul e em Saul esta tão prodigiosa mudança? O mesmo profeta o diz, e não são menos prodigiosas para o nosso caso as circunstâncias com que ele o refere e os sinais que lhe dá para isso: Venies in collem Dei, obvium habebis gregem prophetarum descendentium de excelso, et ante eos psalterium, et tympanum, et tibiam, et citharam, ipsosque prophetantes. Et insiliet in te Spiritus Domini, et mutaberis in virum alium (1 Rs. 10,5): Ireis ao monte de Deus, encontrareis os profetas que vêm de fazer oração no mesmo monte, cantando ao som do saltério, que trarão diante de si, acompanhado de uma cítara, de um tambor, e de uma flauta, e então entrará em vós o Espírito do Senhor, e sereis trocado em outro homem. – Que monte de Deus, que oração, que profetas, que saltério e que três instrumentos são estes de que se compõe a sua harmonia, e com que se há de seguir em Saul uma tão notável mudança? Caso raro! O monte de Deus, como declara o Caldeu, era naquele tempo o lugar onde estava e era venerada a Arca do Testamento, bem conhecida imagem da Virgem, Senhora nossa: In collem, in quo erat Arca Domini. – Os profetas eram os religiosos do mesmo tempo, em que foram significados os da lei da graça, e particularmente os do espírito dominicano, que este é o que se prometeu a Saul: Insiliet in te spiritus Domini. – A oração que tinham feito, e vinham continuando, bem se segue que era o Rosário da Senhora, que desde o seu princípio se chamou Saltério da Virgem: Et ante eos psalterium. – Os três instrumentos que acompanhavam e compunham a harmonia, eram as três diferenças dos mistérios do Rosário: os Gozosos significados na suavidade da cítara; os Dolorosos nos golpes e bater do tímpano, os Gloriosos na tíbia, que é um trombeta flautada, dizendo Davi: Ascendit Deus in jubilatione, et dominus in voce tubae (37). E, finalmente, a razão porque se seguiu em Saul uma tão notável mudança, o mesmo texto o diz expressamente, e não foi outra a razão ou a causa, senão parque Saul se ajuntou a rezar ou cantar com os demais a mesma devoção e orações que eles vinham cantando: Insiluit super eum Spiritus Domini, et prophetavit in medio eorum (38).

Sabeis, senhores, porque se experimenta tão pouca mudança nas vidas, e se vê entre os católicos tão pouca observância da lei e mandamentos de Deus? É porque falta a devoção do Rosário. A mesma Senhora – para que ninguém duvide desta conclusão – se dignou de o manifestar assim, acudindo pelo crédito de um instituto tão propriamente seu. Quando o Rosário se começou a propagar pelo mundo, com tanta fama e honra de seus milagrosos efeitos, como vimos, houve, contudo, uma mulher – que sempre as Evas foram instrumentos do demônio – a qual, sendo afeiçoada a outras devoções, não só não recebia nem estimava esta, antes lhe fazia pública guerra, persuadindo, como dogmatista, o mesmo erro a outras de tão leve juízo como o seu. Castigou-a a Virgem Santíssima com uma larga e perigosa enfermidade; mas, como este açoite não bastasse para desistir ou sarar de tamanha loucura, a Senhora, como Mãe de misericórdia, depois de lhe mostrar em uma visão a glória que gozam no céu os devotos do Rosário, e os males que incorrem nesta vida os que o não são, para mais a desenganar e confundir, com a própria experiência, discorrendo pelos mandamentos, lhe foi mostrando particularmente todos os pecados que tinha cometido por não rezar o Rosário. Tão certa é a virtude desta soberana devoção, e tão própria a eficácia que Deus lhe deu para a guarda de sua divina lei e observância de seus mandamentos?

Quando Moisés recebeu a lei de Deus no Monte Sinai, deteve-se ali quarenta dias. E por que razão tão largo tempo, sendo a lei tão breve? S. Metódio supõe como coisa certa, recebida ou por tradição ou por revelação, que a causa de tão larga detença foi porque naqueles dias esteve Deus declarando a Moisés as figuras dificultosas de entender, que pertenciam à Virgem Maria: Nonne Moyses ille magnus propter figuras intellectu difficiles, quae te, Virgo, tangebant, diutius in monte comororatus? – A principal figura, pois, que consta da Escritura foi revelada a Moisés naquele monte, é a Arca do Testamento, chamada assim porque nela se guardavam as tábuas da lei. E como nesta Arca se encerravam todos os mistérios, e nesta figura todas as figuras da vida da Mãe de Deus e de seu Filho feito homem, por isso Deus se deteve tantos dias em declarar as mesmas figuras a Moisés. E chamam-se estas figuras que pertenciam à Virgem dificultosas de entender: Figuras intellecut difficiles – porque tais eram em comum e em particular. Em comum, porque aquelas figuras representavam os mistérios da Encarnação, Vida, Morte, Ressurreição e Ascensão do Filho de Deus, que, feito homem, havia de vir remir o mundo, e de uma Virgem, que havia de ser sua Mãe – que são os mesmos mistérios do Rosário – todos altíssimos, profundíssimos, e nunca até aquele tempo imaginados dos homens. E em particular, porque o que Deus particularmente fazia no Monte Sinai era dar leis aos homens, e desenhar a traça da Arca, em que as mesmas leis se haviam de guardar com suma veneração. E posto que facilmente entendia como as leis materiais se podiam guardar em uma Arca, era porém, muito dificultoso de entender que as figuras dos mistérios representados na mesma Arca houvessem de ter virtude para que moralmente se guardassem as mesmas leis. Isto foi, pois, o que Deus declarou a Moisés no monte, e não só com palavras, senão com a experiência e com o sucesso das mesmas leis e da mesma Arca. As leis fê-las Deus e escreveu-as duas vezes por sua própria mão naquele mesmo lugar; e que sucesso tiveram umas e outras também em figura? As primeiras quebrou-as Moisés, as segundas conservou-as a Arca. E então se acabou de entender a virtude que tinha a Arca e os mistérios nela figurados, para por meio dela e deles se guardarem as leis de Deus e seus mandamentos.

Só resta contra tudo o que fica dito uma dúvida, e não pequena. A experiência mostra que muitos rezam o Rosário, e nem por isso guardam as leis de Deus; antes, vemos que assim como todos os dias o rezam, assim todos os dias as quebram, e muito gravemente; logo, não tem o Rosário a virtude que dele pregamos? Sim, tem. E quem nos há de responder a este argumento não é menos autor que a mesma Virgem Santíssima, que melhor que todos conhece a virtude do seu Rosário e os defeitos dos que o rezam. Quando a Senhora referiu ao santo frei Alano a grande reformação que tinha feito no mundo a devoção do Rosário, acrescentou que eram tão reformados na vida e costumes todos os que o rezavam que, se acaso se via algum católico menos observante das obrigações de Cristo, e distraído em vícios, logo se dizia como em provérbio: Aquele ou não reza o Rosário, ou o não reza com a atenção que deve. – Rezar o Rosário não é passar contas: é orar com atenção aos mistérios que nele se consideram, e com advertência ao que se diz, e com afeto ao que se pede a Deus e à sua Mãe. Um religioso cartuxo rezava o Rosário muito apressadamente e muito divertido, porque tinha um ofício de grande ocupação; e ouviu uma voz do céu que dizia: – Essas rosas são muito secas e murchas: não se aceitam cá. – E se a pouca advertência de um monge, ocupado por obediência, impedia o fruto do Rosário, que serão os divertimentos vãos, os pensamentos ociosos, e os cuidados, afetos e intenções, não só diferentes e alheios da graça de Deus, que se pede, senão totalmente contrários?

Não mostramos no primeiro fundamento deste discurso que os mistérios do Rosário foram instituídos para nos vermos neles como em espelhos, e, com a consideração de tão altos e poderosos exemplos, moderarmos nossas paixões e refrearmos a rebeldia do alvedrio livre e depravado? Não mostramos que as orações vocais, com que se acompanha a meditação dos mistérios, tão multiplicadas e repetidas, são para pedir, rogar e importunar a Deus, que por intercessão de sua Santíssima Mãe nos conceda a graça, sem a qual não podemos guardar seus mandamentos? Pois, se os mistérios se não meditam, e nas orações não oramos, nem ainda falamos, porque o pensamento e o afeto está noutra parte; se a chamada devoção da Senhora não é devoção, nem o Rosário Rosário; e se os mandamentos de Deus, que por meio dele havemos de guardar, nós mesmos – e muitas vezes no mesmo tempo em que passamos as contas – estamos cuidando o modo com que os havemos de quebrar, como queremos que faça o Rosário em nós os efeitos que nós mesmos estamos encontrando e não querendo? Reze-se o Rosário como a Virgem Santíssima ordenou que se rezasse, e se somos pecadores, seja com desejo de o não ser, pedindo com verdadeira confusão de nossa miséria e detestação dos mesmos pecados, que Deus nos livre deles como de todo o mal, e nos dê forças e espírito para resistir às tentações; e deste modo, sendo o Rosário Rosário, os seus defeitos serão também os seus, e se verá em nós tal mudança de vida que, por meio da observância dos preceitos de Deus, gozemos a bem-aventurança prometida aos que os guardam: Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud (39).

(1) Bem- aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus, e a põem por obra (Lc. 11,28).

(2) Para ele o hortar e guardar (Gên. 2,15).

(3) Por que vos mandou Deus (Gên. 3,1).

(4) Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11,27).

(5) August. Serm. 2, de Annuntiatione.

(6) O homem, quando estava na honra, não entendeu: foi comparado aos brutos, e se fez semelhante a eles (Sl. 48,21).

(7) O meu jugo é suave (Mt. 11,30).

(8) Saulo, respirando ameaças contra os discípulos do Senhor (At. 9,1).

(9) Com o bocado e com a brida aperta as queixadas de aqueles que não se chegam a ti (Sl. 31,9).

(10) Enfrear-te-ei com o meu louvor, para que não pereças (Is. 48,9).

(11) D. Thomas ibi, apud Cornel.

(12) Não tens com que a tirar, e o poço é fundo (Jo. 4,11).

(13) Audrichom. verbo Engadi.