Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos


Extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti (1).

I

Não basta que as coisas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os ditos que alegamos se chamam autoridades, porque o autor é o que lhes dá o crédito e lhes concilia o respeito. As proposições filosóficas, para serem axiomas, hão de ser de Aristóteles; as médicas, para serem aforismos, hão de ser de Hipócrates; as geométricas, para serem teoremas, hão de ser de Euclides. Tanto depende o que se diz da autoridade de quem o diz. Dizer-se que a pintura é de Apeles, ou a estátua de Fídias, basta para que a estátua seja imortal e a pintura não tenha preço. Mas esse valor e essa imortalidade a quem se deve? Mais ao nome que ao pincel de Apeles, mais à fama que à lima de Fídias. E o mesmo que sucede ao pincel e à lima, é o que experimentam igualmente a voz e a pena. Se o que diz é Demóstenes, tudo é eloqüência; se o que escreve é Tácito, tudo é política; se o que discorre é Sêneca, tudo é sentença. Talvez acertou a dizer o rústico o que tinha dito Salomão; mas no rústico não merece ouvidos, em Salomão é oráculo. De sorte, como dizia, que não basta que as coisas que se dizem sejam grandes, se quem as diz é pequeno. Elas hão de ser grandes, e o autor também grande. E isto é o que temos no Evangelho, com uma e outra diferença, ambas notáveis.

O mais alto pregão com que se publicaram jamais os louvores de Cristo e sua Mãe, foi aquela animosa sentença: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti. – E é coisa digna de admiração o muito caso e o pouco caso que então e depois se fez destas mesmas palavras. Ouviram-nas os escribas e fariseus, de quem o Senhor estava cercado; e nem como êmulos se indignaram, nem como inimigos as repreenderam, nem como zeladores da lei as castigaram. Pois, assim se sofre às portas de Jerusalém, e diante dos mesmos ministros eclesiásticos, que uma mulherzinha canonize publicamente um homem, e um homem, criminado naquela mesma ação de que tinha trato com o demônio? Sim, e por isso mesmo. Porque era uma mulherzinha sem nome a que isto disse: mulier quaedam. – Se fora Nicodemos ou Gamaliel o que dissesse o mesmo, ou muito menos, então se puxaria logo pela proposição; mas como a proferente era um sujeito tão humilde, nenhum caso se fez daquela voz. Quanto a voz se levantou no que disse, tanto se abateu na boca de quem a disse. Era muito pequena boca para palavras tão grandes.

Pelo contrário, fez tanto caso delas o evangelista S. Lucas, que não só as notou e escreveu com as mesmas cláusulas, mas, como parte gloriosa do seu Evangelho, as consagrou à eternidade nele. E a Igreja Católica as celebra com tanto aplauso, que com elas não uma só vez, senão repetidamente, nas maiores solenidades da Mãe de Deus, nos ensina a levantar do mesmo modo a voz, e cantar ao mesma compasso o inefável de seus louvores. Mais fez a Igreja, porque, comentando e declarando o mesmo texto, o torna a cantar e por inculcar comentado, e, seguindo com o seu contraponto os assentos da mesma voz, entoa em outra mais alta: Beata viscera Mariae Virginis quae portaverunt aeterni Patris Filium, et beata ubera quae lactaverunt Christum Dominum (2). Pois, se estas palavras foram ditas por uma mulher sem nome, ou com o nome só de mulher, que ainda é menos – mulier quaedam – se o sujeito que pronunciou tal sentença era tão humilde e rasteiro, e de tão pouca ou nenhuma autoridade, como a Igreja, mestra da fé e da doutrina cristã, como os Evangelhos, que são os livros sagrados por onde ela nos ensina a mesma doutrina, como fazem tanto caso e estimação, e veneram e reverenciam tanto este mesmo dito? Porque nem o evangelista nem a Igreja olharam nele para quem pronunciou as palavras, senão para quem as disse. Quem as pronunciou foi uma mulher sem nome: quem as ditou a essa mulher; e as disse por sua boca, foi o Espírito Santo. É o que tinha prometido Cristo aos defensores de sua fé, para semelhantes conflitos: Non enim vos estis qui loquimini sed Spiritus Patris vestri, qui loquitur in vobis (3). De maneira que na boca da mesma mulher que levantou aquela voz, a voz era uma e as falas eram duas: uma que falava nela, que era a do Espírito Santo, e outra com que ela falava, que era a sua. A sua, de pouca ou nenhuma autoridade, e por isso desprezada dos ministros da sinagoga; a do Espírito Santo, de suma e infinita autoridade, e por isso tão estimada e venerada dos evangelistas e da Igreja. Assim que a grandeza das coisas que se dizem ou cresce ou diminui segundo a dignidade de quem as diz.

Isto suposto, qual vos parece, senhores, que será a dignidade do Rosário, do qual até agora falei sem a nomear? Muitas vezes, e por muitos modos tenho mostrado nas orações de que se compõe o Rosário, quão grandes são as coisas que nelas se dizem. Hoje veremos que, se são grandes pelo que dizem, ainda são maiores por quem as disse; e não maiores de qualquer modo, senão infinitamente maiores. Tão grande e tão alto como isto é o assunto: Extollens vocem. Para que a mesma Senhora da Rosário me ajude com sua graça a o saber declarar, digamos: Ave Maria.
 
 

II

Salviano, aquele forte e zelosíssimo espírito, tão grande defensor da Cristandade como perseguidor dos abusos introduzidos nela, queixava-se em seu tempo de que tinham chegado a tal corrupção os juízos dos homens, ou que os homens de tal modo tinham perdido o juízo, que na lição dos livros importantes à salvação, em vez de considerarem o que liam, só consideravam cujo era o que liam: Tam imbecilla sunt judicia hujus temporis, et penejam nulla, ut hi, qui legunt, non tam considerent quid legant, sed cujus legant.(4) – E sendo a lição e oração duas irmãs e companheiras inseparáveis, a maior queixa, pelo contrário, que eu tenho dos juízos do nosso tempo, é que na eleição das orações com que se encomendam a Deus, não considerem nem atendam a cujas são, e, nas que ensinou e ditou o mesmo Deus, não lhes valha o serem suas, para que as não deixem por outras. Este é o abuso ou ignorância que no presente discurso determino convencer. E se Deus me ajudar em um ponto tão importante, espero que do verdadeiro conhecimento dele resulte hoje uma tal mudança nas devoções e orações que cada um costuma rezar – não por obrigação, mas por eleição própria – que todas se troquem e se convertam em Rosários.

III

Para inteligência desta verdade e fundamento de tudo o que hei de dizer, se deve supor como certo e de fé que o autor das orações de que se compõe o Rosário é Deus. Deus é o autor, do Padre-nosso, e Deus o autor da Ave-Maria. E como a obra era tão grande – posto que aos ignorantes o não pareça – de tal maneira se empenhou nela todo Deus, que todas as pessoas da Santíssima Trindade a repartiram entre si. A Pessoa do Filho fez inteiramente o Padre-nosso, pronunciado por sua própria boca; a Pessoa do Padre começou a Ave-Maria, pronunciada por boca do Anjo; e a Pessoa do Espírito Santo a continuou por boca de Santa Isabel, e a acabou por boca da Igreja. Assim foi, e assim havia de ser, para que não fossem menos privilegiadas nesta parte as orações que se rezam no Rosário que os mistérios que nele se meditam. Os mistérios que se meditam no Rosário, todos pertencem à vida, morte e ressurreição de Cristo; e contudo, os Gozosos particularmente se atribuem ao Padre, que pela Encarnação nos deu a seu Filho: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret (5);os Dolorosos particularmente se atribuem ao Filho, que pela Paixão nos deu seu sangue, e com ele nos remiu: Et tradidit semetipsum pro nobis (6); – e os Gloriosos particularmente se atribuem ao Espírito Santo, que para nossa justificação se nos deu a si mesmo, descendo do céu: Spiritu Sancto misso de caelo (7). E como em todas as obras da providência e sabedoria divina, o que mais resplandece e manifesta a soberania de seu autor é a admirável proporção com que se correspondem, justo era, e não só conveniente mas ainda necessário, que assim como toda a Trindade se tinha empenhado na parte mental do Rosário, assim se empregasse também toda na parte vocal.

Daqui se entenderão duas notáveis revelações ou visões, uma da mesma Santíssima Trindade, outra de Cristo, ambas a Santa Gertrudes. Em dia da Assunção da Virgem, Senhora nossa, foi levada ao céu Santa Gertrudes, para ver como lá se celebrava aquela grande solenidade. E que viu? Viu que toda a corte do céu, os anjos e os santos, prostrados diante do trono da sua Rainha, cantavam aquele responsório tirado das palavras do nosso tema: Beata es Virgo Maria, quae omnium portasti Creatorem – e logo que toda a Santíssima Trindade, a três vozes unidas em uma, dizia à mesma Senhora: Ave Maria gratia plena, Dominus tecum: Benedicta tu in mulieribus (8). – Pode haver ou imaginar-se coisa mais digna de assombro e pasmo? Não pode. Mas assim se lê no livro quarto das revelações da mesma santa, capítulo quarenta e nove, para que ninguém duvide de tão irrefragável testemunho. De sorte que, assim como a Santíssima Trindade foi a autora das orações do Rosário, assim as repete no céu como obra sua, louvando Deus a sua Mãe uma e muitas vezes com elas. E, se me perguntais por que repetiu a Santíssima Trindade estas palavras somente, e não as demais, a razão é muito clara, porque as outras foram feitas somente para nós, e não têm lugar em Deus. Havia de dizer a Santíssima Trindade: Ora pro nobis peccatoribus? Havia de dizer: Dimitte nobis debita nostra? Havia de dizer: Panem nostrum quotidianum da nobis, ou libera nos a malo? As palavras em que pedimos são só para nós: as que louvam a Virgem, Senhora nossa, são para nós e também para Deus, que como Filho louva a sua Mãe com elas. E por isso deixou também as que pertencem ao mesmo Filho. Vede agora quanto se comprazerá de que nós o acompanhemos nos mesmos louvores, e que responda o coro dos devotos do Rosário ao que canta no céu a mesma Trindade.

A visão de Cristo, foi que apareceu de gala com um colar de pedras de inestimável valor, dizendo que nunca jamais o apartaria do peito por ser prendado amor de Gertrudes: In signum amoris, quo sponsam meam Gertrudem prosequor; continuo hoc monile gestabo. – E qual era o artifício deste colar? Monile hoc erat triangulum instar trifolii: era de forma triangular composto de rosas de três folhas. – Não se pudera melhor pintar ou entalhar o Rosário, nem escrever ou esculpir melhor o nome de seu autor. Era composto de rosas de três folhas engrazadas ou encadeadas entre si, porque o Rosário consta de três partes, como de três folhas, cada uma de diferentes pedras e diferentes cores, correspondentes aos três mistérios: os Gozosos de esmeraldas, os Dolorosos de rubis, os Gloriosos de diamantes. E toda a forma era triangular: Monile hoc erat triangulum – porque era obra, não de outro artífice, senão da mesma Trindade.

Notam todos os teólogos, com S. Dionísio Areopagita e Santo Agostinho, que assim como os famosos artífices em todas as suas obras escrevem o seu nome, assim Deus em todas as suas imprimiu o caráter da sua trindade. Da maior obra de Deus, que foi o composto inefável de Cristo, diz S. João que o mesmo Deus o sigilou com o seu caráter: Hunc enim Pater signavit Deus (9). – E este caráter, como altamente notou S. Bernardo, é o corpo, a alma e a divindade do mesmo composto, com que Deus o fez trino e uno: Summa illa Trinitas hanc nobis exhibuit Trinitatem, opus singulare inter omnia, et super omnia opera sua: Verbum enim, anima, et caro in unam convenere personam, et haec tria unum, et hoc unum tria(10). O mesmo caráter da trindade imprimiu Deus nos anjos, distinguindo-os em três jerarquias, e cada jerarquia em três coros.O mesmo na alma do homem, com as três potências de memória, entendimento e vontade, e, por isso, feito à sua imagem e semelhança. O mesmo em todos os viventes do mundo, uns vegetativos, outros sensitivos, outros racionais. Finalmente, a todas as criaturas, ou a todos os entes – sem exceção de algum – marcou Deus com a mesma divisa nas três propriedades universais de unum, verum, bonum: que são unidade, verdade e bondade, respondendo, como diz Santo Agostinho, a unidade ao Padre, a verdade ao Filho, e a bondade ao Espírito Santo. E até na mesma bondade ou no mesmo bem, que se divide em honesto, útil e deleitável, não faltou a expressão do mesmo caráter. E como a figura da trindade é a firma e selo real com que Deus assinala por suas todas as suas obras, para que ninguém pudesse pôr dúvida a ser obra sua, o colar do Rosário, com que Cristo apareceu, e prometeu trazer sempre sobre o peito, por isso estava formado em figura triangular: Monile hoc erat triangulum. Em suma, que as rosas que o compunham eram de três folhas: Instar trifolii – para denotar o Rosário e seus mistérios, e a forma era triangular: triangulum para declarar que o autor da obra, com o caráter particular de todas as suas, era a mesma Trindade.

IV

Tendo, pois, o Rosário por autor a Deus e a todo Deus, em todas as pessoas divinas que o ditaram, que devoção, que fé ou que entendimento cristão haverá de tão errado juízo, que anteponha quaisquer outras orações às do Rosário, por mais aprovadas e qualificadas que pareçam debaixo de qualquer outro nome? Os autores de essoutras orações, todas e todos – que a nenhuma excetuo – não nego que seriam e foram muito pios e muito santos; mas, que comparação tem ou pode ter o que eles ensinaram com o que ensinou o mesmo Deus? Ouvi a mais admirável coisa que disse Cristo: Mea doctrina non est mea, sed ejus qui misit me (Jo. 7,16): A minha doutrina não é minha, senão do Eterno Padre que me mandou ao mundo. Senhor, reparai no que dizeis – e perdoai-me – reparai no que dizeis, e a quem o dizeis. Aos homens, que tanto crêem, veneram e adoram a vossa doutrina, dizeis vós que não é vossa? A vossa doutrina não é a mais alta, a mais pura, a mais verdadeira, a mais santa? Não a tendes confirmado e confirmais cada dia com a saúde dos enfermos, com a fala dos mudos, com a vista dos cegos, com a ressurreição dos mortos, com o terror e obediência dos demônios, e infinitos outros milagres? Pois, porque dizeis que essa doutrina tão qualificada não é vossa, senão do Padre: Sed ejus qui misit me? – Porque Cristo – responde mais literalmente que todos S. Cirilo – naquele tempo ainda não estava conhecido por Deus, senão por homem santo somente; e por mais santos, por mais milagrosos, por mais canonizados que sejam os homens, vai tanto do que eles ensinam ao que ensina Deus, quanto vai de Deus aos mesmos homens. A autoridade dos homens, por maior que seja, sempre é humana e limitada; a de Deus é divina, e de dignidade infinita, e porque esta, na opinião do mundo, ainda faltava à doutrina de Cristo, por isso o Senhor a nega de sua, e diz que é do Padre: Non est mea, sed ejus qui misit me. – Coisa maravilhosa é que, para Cristo acreditar a sua doutrina, diga que não é sua, sendo que bastava ser sua, ainda que não fora Deus, para exceder com dignidade incomparável a de todos os homens e de todos os anjos. Mas a diferença de ser ditada e ensinada por Deus levantava a tal excesso de autoridade infinita essa mesma doutrina, que, contanto que fosse de Deus, ganhava infinito crédito em não ser sua. Tanto importa à dignidade do que se diz ser Deus o que o diz!

E agora entendereis quanto é mais o que hoje digo de quanto tenho dito até agora. Tenho dito que as orações do Rosário, pelos louvores que nelas damos a Deus e a sua Mãe, são as mais altas; tenho dito que, pela exaltação e glória que nelas desejamos ao mesmo Deus, são as mais santas; tenho dito que, pelos bens, ou temporais ou eternos, que nelas pedimos para nós, são as mais espirituais e mais puras; tenho dito que, pelas extraordinárias e portentosas mercês sobre todas as leis da natureza e da graça que por seu meto alcançamos, são as mais milagrosas. Mas toda esta alteza, toda esta santidade, toda esta pureza e perfeição, e todos estes efeitos tão prodigiosos e estupendos, comparados com o autor das mesmas orações, ou com as mesmas orações enquanto obra sua, são de tão inferior e desigual dignidade quanto vai do ser a não ser, como doctrina mea non est mea: e isto é o que hoje digo. Oh! se os homens nestas mesmas palavras sacros-santas, que tão indignamente trocam por outras, conhecessem o imenso da autoridade e o infinito do valor que lhes acresce só pela divina origem de seu nascimento! Como é certo que não só se arrependeriam da indignidade de tal eleição, mas infinitamente se envergonhariam de ter aparecido diante de Deus com outras petições e lhe ter falado com outra linguagem! Se todos os profetas em seus oráculos, para lhes conciliar autoridade, lhes cortam o fio e os interrompem a cada passo com repetir: Dicit Domnius, dicit Dominus: isto diz Deus, isto diz Deus – e se o mesmo Deus, enquanto homem e não conhecido por Deus, para crédito de sua doutrina, dizia que não era sua, senão do Padre: Non mea, sed ejus qui misit me – que orações pode haver ditadas de qualquer outro entendimento, e debaixo de qualquer outro nome, que possam, não digo antepor-se nem comparar-se, mas escrever-se nem ouvir-se onde estão e se pronunciam as do Rosário, feitas em cada uma de suas partes por alguma pessoa divina, e em todas por toda a Trindade?

V

Digo que nem escrever-se nem ouvir-se, e vede se o provo. Conta o evangelista S. Lucas que saindo Cristo um dia da oração, lhe pediram os discípulos que lhe ensinassem a orar, dizendo: – Domine doce nos orare, sicut docuit et Joannes discipulos suos (Lo. 11,1): Senhor ensinai-nos a orar, como também o Batista ensinou a orar a seus discípulos. – Satisfez o Divino Mestre a este piedoso desejo, posto que parecia mais nascido da emulação das escolas que de verdadeiro espírito de devoção; e a oração que lhes ensinou foi o Padre-nosso, acrescentando que o haviam de rezar, não só uma, senão muitas vezes. Mas o que na relação deste caso fez reparar muito, e com muita razão, a Tertuliano, é que o mesmo S. Lucas, e também S. Mateus, escreveram por extenso a oração que ensinou Cristo, e nenhum deles, nem algum outro evangelista ou memória sagrada, dá notícia de qual fosse a oração ou modo de orar que o Batista ensinava. Pois, se a oração do Batista foi a que deu ocasião dos discípulos de Cristo a que a alegassem a seu Mestre, e lhe pedissem outra semelhante postila, e a oração que Cristo ensinou a referem os evangelistas uma e outra vez tão acuradamente e com todas as suas cláusulas, a do Batista, porque a calam e passam totalmente em silêncio? Para se conhecer a diferença de um e outro modo do orar era necessário que se escrevesse uma e outra oração. Pois, porque se escreve só a de Cristo, e a do Batista não? Porque a oração de Cristo era feita e ensinada por Deus, e onde há oração feita por Deus, nenhuma outra é digna de se escrever; ainda que a fizesse um santo tão grande como S. João Batista. Altamente como sempre o mesmo Tertuliano: Ideo nec extat in quae verba docuerit Joannes orare, quod terrena caelestibus cesserint? (11) – Sabeis por que se cala e passa em silêncio a oração que ensinou o Batista a seus discípulos, quando se escreve a que ensinou Cristo aos seus? A razão é porque a oração de Cristo era divina, a do Batista humana; a de Cristo era do céu, a do Batista da terra; e era justo que a oração da terra cedesse e não tivesse lugar onde se escrevia a do céu: Quod terrena caelestibus cesserint.

Isto é o que responde aquele grande autor, e aprova com um texto do mesmo Batista: Qui est de terra, de terra est, et de terra loquitur Qui de caelo venit, super omnes est. Et quod vidit, et audivit, hoc testatur(12) – Sentiam muito os discípulos do Batista que a fama de Cristo crescesse e a de seu mestre diminuísse, e como lhe significassem este seu sentimento, que respondeu o grande Batista? Não fora grande se não respondera ingenuamente o que era. Como mestre que estimava mais a verdade da doutrina que a opinião de quem ensinava, respondeu que ele era da terra, e falava como quem era da terra: Qui est de terra, de terra est, et de terra loquitur – porém, Cristo, que viera do céu, era sobre todos, e por isso falava do céu como quem de lá viera: Qui de caelo venit, super omnes est. Et quod vidit et audivit, hoc testatur – Logo, justo é – conclui Tertuliano, como testemunho da mesma parte – que quando se escreve a oração de Cristo, que é da céu, se cale e se sepulte em silêncio a oração do Batista, que é da terra: Nec extat in quae verba docuerit Joannes orare, quod terrena caelestibus cesserint.

Eis aqui quanto excedem Padre-nossos, e Ave-Marias, e as orações do Rosário a quaisquer outras orações, e de quem quer que sejam: quanto vai do céu à terra, e do celestial ao terreno. Mas porque não cuide alguém que dissimulo a réplica que pode ter esta suposição, eu mesmo quero instar contra ela. A oração do Batista era como de seu autor, e o seu autor era mandado do céu por Deus: Fuit homo missus a Deo, cui nomen erat Joannes(13): – logo, a oração do Batista também era do céu, e tudo o que nela dizia era celestial? Assim é. Quanto dizia a oração que ensinava o Batista, qualquer que ela fosse, não há dúvida que era celestial e santo. E, contudo, o mesmo Batista não só diz que ele era da terra, senão que também era da terra quanto dizia: Qui est de terra, de terra est, et de terra loquitur – Pois, se tudo o que ensinava o Batista era celestial e do céu, com afirma e ensina ele mesmo que tudo era da terra? Porque falava de si em comparação de Cristo; e quanto dizem os filhos de Adão comparado com o que diz o Filho de Deus, por mais santo, e mais alto, e mais celestial que seja, tudo é terra e da terra: Qui de terra est, de terra loquitur.

Sendo, pois, nesta comparação, o que ensinava a orar o Batista, oração da terra e de terra, bem fizeram os evangelistas em a sepultar e lhe lançar terra em cima, para que não aparecesse nem se lesse quando escreviam a que ensinou Cristo. E se não, levantemos ao mesmo Batista da terra, e ponhamo-lo no céu. Assim como o Batista na terra era o precursor de Cristo, assim no céu era o luzeiro do sol, que sai diante dele. E assim como o luzeiro é maior que todas as estrelas, assim o Batista é maior que todos os nascidos. Mas, assim como a luz do luzeiro, em aparecendo a luz do sol, desaparece e se esconde, assim os evangelistas esconderam a oração do Batista, e não quiseram que aparecesse, porque escreviam e saiam à luz com a oração de Cristo. E se à vista da oração de Cristo não tem lugar a da maior de todos os santos, como o terão as de outros, por pias e devotas que sejam, em comparação das orações do Rosário, ditadas pelo mesmo Filho de Deus, e pelo Padre, e pelo Espírito Santo? Eu não condeno nem posso condenar os que isto fazem, mas não pode deixar de me parecer melhor Cristandade a que segue o exemplo dos evangelistas.

VI

Os evangelistas julgaram que se deviam escrever outras orações: vejamos agora – como dizia – os que entenderam que se não devem ouvir. E de silêncio a silêncio, este segundo, por todas suas circunstâncias, é mais admirável. Os serafins, que entre todas as jerarquias e coros dos anjos excedem aos que mais sabem, e são os que mais amam e tem o supremo lugar junto ao trono da Majestade divina, o que fazem continuamente é estar louvando a Deus, cantando e repetindo sem jamais cessar: Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6,3). – Assim os viu e ouviu Isaías, assim Ezequiel e assim S. João no seu Apocalipse, onde conta uma coisa muito particular e de não fácil inteligência. Diz que esta única música dos serafins parou e fez pausa, ficando todo o céu em silêncio por espaço de meia hora: Et factum est silentium in caelo, quasi media hora (Apc. 8,1) – e que neste tempo apareceu um anjo, o qual trazia nas mãos um turíbulo de ouro, e lhe foram dados muitos incensos, para que das orações dos santos oferecesse no altar que está diante do trono de Deus, e assim se fez. Et alius angelus venit, habens thuribulum aureum: et data sunt illi incensa multa, ut daret de orationibus sanctorum omnium super altare aureum, quod est ante thronum Dei. Et ascendit fumus incensorum, etc(14) Até aqui a visão, em que há muito que reparar.

Primeiramente, por que cessam as músicas dos serafins quando se oferecem as orações dos homens? Não se podiam ouvir umas enquanto se ofereciam outras, principalmente oferecendo-se em turíbulo e em exalações de fumo e incenso? O que pede a Igreja por grande favor a Deus é que as nossas orações sejam admitidas entre as vozes dos anjos: Cum quibus et nostras voces, ut admitti jubeas, deprecamur (15). – Qual é logo a razão porque cessam as vozes dos anjos quando as nossas se oferecem a Deus? Respondem muitos expositores, principalmente modernos (16), que são tão agradáveis a Deus as orações que os homens lhe fazem na terra que, para as ouvir só a elas, manda calar a música do céu: boa resposta, e de grande consolação para os devotos, mas, por ser muito geral, não satisfaz a todas as circunstâncias do texto. O texto não fala geralmente de todas as orações, senão de algumas; isso quer dizer: Ut daret de orationibus. – E se este favor e privilégio se concede, não a todas as orações, senão a algumas somente, que orações são estas? Digo que são as orações do Rosário, e o provo do mesmo texto e de suas circunstâncias. Primeira, porque são orações multiplicadas, e da mesma espécie:Incensa multa – o que só nas do Rosário se acha. Segunda, porque o silêncio do céu foi de meia hora: Silentium quasi media hora – e esse é o tempo que comumente se gasta no Rosário: donde se segue que se não pode entender de outras orações mais dilatadas, nem das mais breves. Terceira, e maior de todas, porque um respeito e reverência tão notável só a podem guardar os serafins às orações do Rosário, por serem feitas pela Santíssima Trindade.

Tudo o que cantam os serafins no céu é em louvor unicamente da Santíssima Trindade, que por isso, sem mudar ou alterar a letra, repetem sempre, e três vezes: Sanctus, Sanctus, Sanctus. Assim o confessam concordemente ambas as Igrejas, a Latina, com Agostinho, e a Grega, com Nazianzeno. Mas como as orações do Rosário são obra e composição da mesma Trindade, com muita razão emudecem as vozes dos anjos quando no céu se ouvem as do Rosário, entendendo os espíritos seráficos que muito mais louvam a mesma Trindade emudecendo, que cantando: porquê? Porque o que dizem cantando é seu, e o que ouvem emudecendo é de Deus; e com o mesmo humilde e reverente silêncio, assim como adoram a alteza infinita das palavras divinas, assim reconhecem a desigualdade das suas. E, se quando se escrevem ou se ouvem as vozes do Rosário, no céu emudecem as dos serafins, e na terra as do Batista, a que outras orações não porão silêncio estes dois tão notáveis silêncios? Se as outras orações, de qualquer espírito e de qualquer santidade que sejam, querem agradar e louvem-no emudecendo e convertendo-se em Rosários.

Eu bem sei que os que são afeiçoados a outras orações, ou cuidam que há nelas maior energia de palavras, ou maior expressão de afetos ou maior empenho de oferecimentos e finezas com Deus. Sendo mais ordinário e mais certo nestas eleições que o apetite da novidade, o fastio de repetir muitas vezes o mesmo, e a imaginação de que falando pouco não podem dizer muito, é o que desafeiçoa do Rosário aos que querem ser ou parecer mais devotos. Mas com que se convence e pode emendar este engano? Com o mesmo que temos dito e nada mais. Considerem que o autor do Rosário é Deus, e logo conhecerão seu engano. Pergunto: sobre o que disse e ensinou Deus pode alguém acrescentar e dizer melhor? Claro está que não pode. E porque razão? Uma e outra coisa disse Tertuliano, forte e doutamente: Porro non amplius invenire licet quam quod a Deo discitur: quod autem a Deo discitur totum est (17): Onde o que ensina é Deus ninguém pode inventar ou dizer mais, porque quando Deus ensina diz tudo. Notai muito aquele totum e aquele invenire. Por mais que os homens queiram inventar sobre o que Deus ensinou não podem; e a razão é porque quando Deus ensina diz tudo, e sobre o tudo não há nada. Depois que Deus inventou o Padre-nosso e a Ave-Maria, invetem novas orações os Ambrósios, os Anselmos, os Boaventuras, as Brígidas, e quaisquer outros santos e santas, que, por mais pias e devotas que sejam, não podem os inventos ou invenções humanas ter semelhança com as divinas. Vede se aconselha Davi o que eu prego: Confitemini Domino, et invocate nomen ejus: notas facite in populis adinventiones ejus (1 Par. 16,8): Louvai a Deus e invocai seu nome na oração, e pregai ao povo as invenções de Deus. – Pois, quando Davi exorta a que oremos a Deus manda juntamente que preguemos as suas invenções? Sim, porque há orações que são inventadas pelos homens, e orações que são inventadas por Deus, e estas são as que se hão de pregar.

VII

E para que a pregação não seja estéril e sem fruto, de tudo o que fica dito tiro duas conseqüências. Fica dito que as orações do Rosário, por serem inventadas e ensinadas por Deus, tem infinita dignidade sobre todas as dos homens e anjos. E daqui se seguem dois privilégios singulares e próprios das mesmas orações, os quais se não acham nem podem achar em alguma outra. E que privilégios são estes? O primeiro, que nem os que rezam o Rosário podem errar no que pedem a Deus; o segundo que nem Deus lhes pode negar o que pedem. Ora, reparai bem em uma e outra parte desta conclusão, e se qualquer delas for verdadeira, e muito mais ambas, ninguém haverá, se espera em Deus e espera dele, que se queira privar de uma graça que dois tão grandes bens encerra em si. Mas vamos à prova.

S. Paulo, cujas palavras são de Fé, diz absolutamente que nenhum homem quando ora sabe o que lhe convém pedir a Deus: Quid oremus, sicut oportet, nescimus(18) – É sentença notável; mas, como bem advertiu sobre ela Santo Agostinho, o que é útil ao doente melhor o sabe o médico que o enfermo. Quid enim infirmo utile sit, magis novit medicus, quam aegrotus(19) – E como os homens não sabem o que lhes convém pedir quando oram, daqui vem que oram e erram. Assim erraram os filhos de Israel no deserto quando pediram carne, e no povoado quando pediram rei, e Deus os castigou com lhes dar o que pediam. A razão fundamental deste erro é a essência da mesma oração, a qual define S. João Damasceno: Est petitio decentium a Deo (20): que é petição feita a Deus de coisas decentes. – Oh! se ouvíssemos as orações que assim homens como mulheres fazem a Deus em secreto, quantas indecências ouviríamos? Discorrei por todos os estados e por todos os desejos, e não é necessário que eu o diga, porque também seria indecência. Até os gentios, sendo tão falsas as suas orações como os seus deuses, conheceram este erro. Atenodoro dizia: Tunc scito esse te omnibus cupiditatibus solutum, cum eo perveneris, ut nihil Deum roges, nisi quod rogare possis pallam (21): Então entendei que tendes compostos e bem ordenados vossos desejos, quando chegardes a não pedir a Deus em secreto senão o que podereis pedir em público. – Na mesma seita do Epicuro, que era o menos espiritual ou o mais carnal de todos os filósofos, havia preceito que ninguém pudesse orar a Deus senão em voz alta. E por quê, ou para quê? Para que os professores dela, como refere Clemente Alexandrino, pedissem a Deus tais coisas que nenhum se envergonhasse de se saber o que pedia. E daqui tirou Sêneca aquela sua famosa sentença: Sic vive cum hominibus, tanquam Deus videat; sic loquere cum Deo, tanquam homines audiant (22): De tal maneira vivei com os homens, como se vos vira Deus, e de tal maneira falai com Deus, como se vos ouviram os homens. – Tão certo é, ainda sem lume da fé, e só por razão natural, que a oração que se faz a Deus só deve ser de coisas decentes: petitio decentium.

Mas porque esta decência ou se pode considerar da parte de Deus ou da nossa, digo que há de ser de ambas. Assim o resolve o doutíssimo Salmeirão, comentando a mesma definição de Damasceno: Est autem orare, ut Damascenus ait, petere a Deo quae illum decet dare, et nos accipere (23): Orar é pedir tais coisas a Deus, que a ele seja decente o dá-las e a nós o recebê-las. – Ouvi um exemplo que excelentemente declara estas duas decências. A el-rei Antígono pediu um filósofo cínico que lhe fizesse mercê de lhe mandar dar um talento, que da nossa moeda são dois mil cruzados; respondeu o rei que a um filósofo que professava pobreza não era decente ter tanto. – Pois, senhor, replicou o filósofo, manda-me Vossa Majestade dar um dinheiro – que são dois reales de prata. – E respondeu outra vez Antígono: A um rei não é decente dar tão pouco. Assim refere todo o caso, ainda com mais breves palavras, Sêneca: Ab Antigono Cinicus petiit talentum. Respondit plus esse quam Cinicus petere deberet. Repulsus, petit denarium. Respondit minus esse quam regem deceret dare(24). – De maneira que o filósofo uma vez pediu muito, e outra vez pediu pouco, e nem o muito nem o pouco alcançou do rei, por que nem ao filósofo era decente receber tanto, nem ao rei dar pouco. Uma vez perdeu o que pedia, por que pediu mais, outra vez porque pediu menos, e ambas indecentemente. O mesmo nos sucede com Deus no que lhe pedimos, e ainda mais na indecência das matérias que das quantidades. Erramos no que devemos pedir, e por isso não alcançamos o que pedimos.

Pediram os filhos de Zebedeu as duas cadeiras do reino a Cristo, e por que lhas não concedeu o Senhor, sendo os mais parentes e os mais validos? Porque de uma e de outra parte, assim da sua como da de Cristo, era a petição indecente. Que maior indecência da parte deles, que pedirem dois pescadores as primeiras cadeiras do reino? E que maior indecência da parte de Cristo, que haver de dar cadeiras temporais a dois Apóstolos, a quem tinha prometido as do reino eterno? Nem a Cristo era decente o dar, nem a eles era decente o receber o que pediam; e por isso a negativa da petição a fundou o Senhor neles e mais em si: neles: Nescitis quid petatis(25) – em si: Non est meum dare vobis (26). – E porque erraram tanto estes dois discípulos no que pediram, sendo eles, de três que eram os mais sábios, os dois? Porque não pediram o que o Mestre divino lhes tinha ensinado a pedir. Quando toda a escola de Cristo lhe pediu que os ensinasse a orar, respondeu o Senhor: Sic ergo orabitis: Pater noster qui es ni caelis (Mt. 6,9): O modo com que haveis de orar é dizer a Deus: Padre nosso que estais em o céu etc. – E nas sete petições do Padre-nosso há alguma em que se peçam cadeiras, em que se peçam dignidades e mandos, em que se peçam pompas, grandezas e ambições do mundo, ou alguma temporalidade mais que o sustento necessário à vida? Não. Pois, porque eles pediram fora do Padre-nosso erraram como néscios, e por isso nem souberam pedir nem alcançaram o que pediram. A prova que agora darei desta verdade nem pode ser mais natural nem mais fina, mas o pensamento não é meu, senão de Santo Agostinho.

Repara a doutíssima e agudíssimo padre em dizer S. Paulo, como já referimos, que nenhum homem quando ora a Deus sabe pedira que lhe convém, metendo-se a mesma apóstolo nesta canta: Qui oremus, sicut oportet, nescimus(27) – e argúi assim Agostinho: Adhuc quaeras cur Apostolus dixerit: quid enim oremus, sicut oportet, nescimus: neque enim ullo modo credendum est, vel quibus ista dicebat Dominicam nescisse orationem (28). Nem de S. Paulo, nem daqueles a quem ele escrevia, que eram os cristãos de Roma, se pode crer ou imaginar que não soubessem a oração do Padre-nosso – pois, se na oração do Padre-nosso nos ensina a mesma Deusa que nos convém e lhe devemos pedir, como diz S. Paulo que nem ele nem nós sabemos o que nos convém pedir a Deus? Responde o grande padre que falou S. Paulo de todos como de si, e que se meteu na conta dos que ignoram o que hão de pedir a Deus como convém, porque ele também caiu nesta ignorância: Ab hac ignorantia nec se ipsum Apostolus ostendit alienum. – E quando caiu nesta ignorância o apóstolo, ou donde consta? Consta das três vezes que pediu a Cristo que o livrasse das moléstias do demônio, o que o Senhor lhe não quis conceder, porque era mais conveniente à sua perfeição que as padecesse, como ele mesmo lhe revelou (29). E porque então pediu o apóstolo o que cuidava que lhe convinha, sendo verdadeiramente o contrário, este foi o caso – conclui Agostinho – em que a sua oração errou, e ele não soube o que pedia: Utique sicut oporter, nesciens quid oraret. – E verdade que por outra via bem sabia S. Paulo na oração do Padre-nosso o que lhe convinha pedir; mas como esta vez orou fora dela, e pediu por seu parecer outra coisa, por isso, sendo S. Paulo, errou no que pediu, e sendo a S. Paulo, lhe negou Deus o que pedia.

E poderá suceder o mesmo aos que rezam o Rosário? De nenhum modo. Porque estes são os dois privilégios singulares concedidos unicamente às suas orações, e a nenhuma outra. Nem podem errar no que pedem o que lhes ensinou Deus, nem Deus lhes pode negar o que pedirem, porque pedem o que o mesmo Deus lhes prometeu. Pedi, e recebereis – diz Cristo – empenhando nesta promessa não só sua palavra, mas sua palavra e mais sua pessoa: Et ego dico vobis: petite, et accipietis (Jó. 16,24; Lc. 11,9). – E, estendendo a mesma promessa universalmente a todos, acrescenta o mesmo Senhor: Omnis enim qui petit, accipit (ibid. 10): Porque todos os que pedem, recebem. – Mas com muita razão parece se pode aqui instar e dizer que as palavras são mais largas, e a promessa mais clara que a experiência, porque muitos pedem a Deus muitas coisas e muitas vezes, e experimentam que não recebem o que pediram. Pois, se pedem, e não recebem, como promete Cristo que, se pedirem, receberão: Petite et accipietis? – E como afirma-o que é mais – que todos os que pedem recebem: Omnis enim qui petit, accipit? – O reparo desta que parece contradição, não é totalmente nova; mas o que muito me admira é que ninguém a desfizesse até agora, com a limitação literal que traz consigo a universalidade do mesmo texto. Leia-se todo o texto – que é o capítulo onze de S. Lucas – e ver-se-á claramente que Cristo, Senhor nosso, não fez esta promessa a toda a oração e petições que se lhe fizessem, senão àquela oração e àquelas petições de que atualmente falava. E quais eram estas? Tinha acabado o Senhor de ensinar a oração do Padre-nosso, e de exortar a freqüência dela com vários exemplos e aos que pedissem o que se pede na oração do Padre-nosso, e a pedissem, não só uma vez, senão muitas, e como importunando a Deus – que é o que se faz no Rosário – a esse prometeu somente que receberiam o que pedissem. Tinha dito com particular advertência: Sic autem orabitis: Orareis assim – e aos que oram assim, e não de outra maneira, a esses prometeu somente que alcançariam sem dúvida o que pedissem, e não a outros. Que muito logo, que o que se pede em outras orações se não alcance, se à do Padre-nosso somente foi concedido este privilégio? Logo, assim como não pode errar quem pede, porque pede o que Deus ensinou, assim Deus lhe não pode negar o que pedir, porque pede o que Deus lhe prometeu. E conseqüência do mesmo Santo Agostinho em outro lugar: Si enim id postulat quodDeus praecepit et promittit, fiet ommino quod poscit (30): Quem pede o que Deus manda e o que Deus promete, impossível é que não alcance o que pede.

VIII

Mas quando Deus não tivera empenhado sua palavra, e não se tivera obrigado a nos conceder o que lhe pedíssemos, nós o obrigaríamos a isso infalivelmente, só com lhe fazermos as nossas petições pelas mesmas palavras que ele nos ditou por sua própria boca, e com que ele nos fez o memorial. Pergunta: se requerendo diante de um rei, e pedindo-lhe mercês, ele mesmo nos ditasse e fizesse a petição, com tudo o que havíamos de alegar e pedir, podia deixar o rei de nos despachar? Claro está que de nenhum modo. Pois, isso é o que fez o Filho de Deus quando nos ensinou a oração do Padre-Nosso, e isso é o que fez o Padre e o Espírito Santo quando nos ensinaram a da Ave-Maria. Pelo contrário – voltai agora – e se esse que pede mercês ao rei, fosse tão ignorante e descomedido que, lendo a petição que o mesmo rei lhe tinha ditado, se não contentasse dela, e se fosse ter com um letrado, para que lhe fizesse outra mais larga, e ao seu parecer mais elegante, com outras alegações, e outro pede, quando o rei a lesse, e visse que não era a sua, parece-vos que a despacharia bem? Vós o julgai. Pois, isso é o que sucede e sucederá aos que deixam de fazer a Deus as orações que ele mesmo nos fez, e lhe falam e o querem persuadir com outras que fizeram os homens, por mais sábios, por mais pios, e por mais santos que sejam.

E se esta razão tão natural e tão evidente não basta para que todas as outras orações e devoções se convertam em Rosários, como eu prometi, porque assim o esperava, ouçamos a resolução da mesma Senhora do Rosário sobre esta mesma questão e neste mesmo caso. Pregava em Roma o grande patriarca S. Domingos, sendo o principal assunto dos seus sermões, em qualquer dia que fosse – que assim pregam os santos – a devoção do Rosário. E, posto que não só no povo e nobreza, mas também nos príncipes eclesiásticos e seculares fosse recebida com igual piedade e aplauso, houve contudo uma matrona romana de vida exemplar, tão empenhada em outras, que nunca o santo a pôde persuadir a que se afeiçoasse a esta. Até nas matérias da virtude há espíritos teimosos, que não querem ir ao céu senão pelo seu caminho, nem fazer a vontade de Deus, senão pelos ditames ou apetites da sua. E como esta Senhora era de tanta autoridade que podia fazer opinião entre as de sua esfera, desconsolado o santo de a não poder reduzir ao seu partido, a quem se iria queixar? Prostrou-se por terra diante de uma imagem da Virgem, e banhada em lágrimas lhe disse desta maneira: – Enfim, Virgem Santíssima, que já o vosso Rosário é tido em pouca conta. A culpa é toda minha, pois não tenho talento nem eficácia para o saber persuadir; nem podia suceder menos, pois escolhestes por ministro e pregador dele um sujeito de tão pouco espírito. Pesa-me muito de vos servir tão mal e tão inutilmente no que me mandastes: vós Senhora, o remediai, que só podeis. – Assim orou Domingos desconsolado, mas não tardou muito a consolação e o remédio. Saiu a dizer Missa o santo, depois de ter pregado, e no mesmo tempo a matrona romana, que se achava presente, arrebatada e fora de si, foi levada a juízo ante o tribunal divino. Viu-a Deus com aspecto irado e tremendo: repreendeu-a severamente da sua indevoção e contumácia, e mandou aos demônios que logo a castigassem como merecia.

Verdadeiramente que se não pudera recear tão rigorosa sentença a uma mulher, não só de boa vida, mas tão exemplar como já disse, e agora veremos. As razões ou pretextos com que ela se escusava de rezar o Rosário, era dizer que jejuava muitos dias, que vestia lã à raiz da carne, e andava cingida de cadeias de ferro, que visitava freqüentemente as sete igrejas, e corria as Estações para ganhar as Indulgências, e que as orações muitas e largas que rezava, posto que fossem outras, também eram pias, devotas e santas, com que lhe parecia que não agradava menos a Deus. Vejam agora lá, os que não rezam o Rosário, se terão semelhantes escusas com que se desculpar. Mas, se esta matrona sendo grande senhora, era tão alheia de todas as vaidades e regalos do mundo tão penitente, tão austera e tão dada a todas as obras de piedade e devoção, como no juízo divino é repreendida tão asperamente, e entregue aos mesmos demônios para que a castiguem? Porque o demônio, não só tenta com os vícios, senão também com as virtudes; e talvez não é menor tentação deixar o bem pelo mal, que por não deixar o bom, desprezar o melhor. Por isso dizia S. Paulo: Aemulamini charismata meliora (31). Boas eram todas aquelas penitências e todas aquelas devoções, mas era contumácia digna de grave repreensão e de grave castigo, antepô-las ao Rosário, e deixá-lo por elas.

Vendo-se em tão grande aperto a pobre mulher, e não menos que entregue aos demônios para a castigarem, desenganada já e reconhecida de seu erro, deu um grande grito, dizendo: – Vaiei-me, Virgem do Rosário! – Suspenderam-se os demônios, ouvindo o soberano nome, e a Senhora como Mãe de misericórdia, que faria? Posto que tão ofendida, apareceu logo no mesmo juízo, com rosto, não de rigor, mas de benignidade e agrado, e não só lhe alcançou perdão do castigo, mas, para que acabasse de conhecer a diferença que faz o Rosário meditado e rezado como convém a todas as outras devoções, passando-a daquele lugar temeroso a outro cheio de luz, de alegria e de glória, que era o Paraíso, ali lhe mostrou dois coros de almas bem-aventuradas, que coroadas de rosas, com alegres e suavíssimas vozes estavam cantando o Rosário. Pasmada, pois, a boa mulher do que via, e nunca imaginara, e muito mais mudada e arrependida que dantes, então lhe disse a Senhora estas palavras: – Vês, filha, todos estes que com coroas de tanta formosura e glória estão cantando louvores à Santíssima Trindade, a meu Filho e a mim? Pois, estes são os que na vida foram devotos do meu Rosário. E para que acabes de entender o merecimento que tiveram na terra, e o lugar que têm no céu, sabe que assim como eu na glória excedo a todos os santos, assim a devoção do meu Rosário excede a todas. – Disse a Senhora, e eu também tenho dito. Levai nos ouvidos e no coração estas palavras da Rainha dos Anjos, pois nenhuma pode haver, nem de mais consolação para os devotos do Rosário, nem de melhor exortação para os que o não forem.

(1) Uma mulher, levantando a voz do meio do povo, lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Lc. 11,27).

(2) Bem-aventurado o ventre de Maria Virgem, que trouxe o Filho do Eterno Padre, e bem-aventurados os peitos que alimentaram a Cristo Senhor.

(3) Porque não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é o que fala em vós (Mt. 10,20).

(4) Salvian. lib. 2 ad Eccles.

(5) Assim amou Deus ao mundo, que lhe deu seu Filho unigênito (Jo. 3, 16).

(6) E se entregou a si mesmo por nós outros (Ef. 5,2).

(7) Havendo sido enviado do céu o Espírito Santo (1 Pdr. 1 ,12).

(8) Revel. S. Gertrudis. lib. 4, cap. 49. et lib. I, cap. 4.

(9) Em quem Deus pai imprimiu o seu selo (Jo. 6,27).

(10) Bern. Serm. 5 de Vigilia Nativ.

(11) Tertul. lib. 6 de Orat. cap I.

(12) O que é da terra, é da terra, e fala da terra. O que vem dos céus é sobre todos. E o que viu e ouviu, isso testifica (Jo. 3,31s).

(13) Houve um homem enviado por Deus, que se chamava João (Jo. 1, 6).

(14) E veio outro anjo, tendo um turíbulo de ouro, e lhe foram dadas muitos perfumes das orações de todos os santos, para que os pusesse sobre o altar de ouro, que estava ante o trono de Deus. E subiu o fumo dos perfumes, etc. (Apc. 8,3 s.)

(15) Com as quais pedimos que também as nossas vozes sejam admitidas (Praefat. Missae).

(16) Baeça, Celada, Silveir.

(17) Tertul. de Anima, c. 2.

(18) Não sabemos o que havemos de pedir como convém (Rom. 8,26).

(19) Aug. in sentent. sent. 212.