Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Semen est verbum Dei. (S. Lucas, VIII, 11.)

I

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o Pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit, qui seminat, seminare. Diz Cristo, que saiu o Pregador Evangélico a semear a palavra Divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair; Exiit; porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah dia do Juízo! Ah Pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.

Mas daqui mesmo vejo que notais, (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os Pregadores Evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles Animais de Ezequiel, que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus, e significavam os Pregadores do Evangelho, que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: Uma vez que iam, não tornavam. As rédeas porque se governavam, era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão; e eu também assim o digo. Mas pergunto. E se esse semeador Evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos; que havia de fazer? Todos estes contrários, que digo, e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo) mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as Aves: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede, como todas as criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas, quantas há no mundo, se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas, que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras; a vegetativa nos espinhos; a sensitiva nas aves; a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no, e os homens pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae. Ide, e pregai a toda a criatura. Como assim, Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não são criaturas? As pedras não são criaturas? Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras? Hão de pregar aos troncos? Hão de pregar aos animais? Sim, diz S. Gregório depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas; haviam de achar homens; haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores Evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido, e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores Evangélicos da Missão do Maranhão, de doze anos a esta parte. Houve Missionários afogados; porque uns se afogaram na boca do grande Rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na lha dos Aroãs; houve Missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome, e da doença: onde tal houve, que andando vinte, e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede, se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem? E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados, e perseguidos dos homens: Conculcatum est? Não me queixo, nem o digo, Senhor, pelos semeadores: só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados, e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos, e pisados.

Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador Evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não; Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos, com que alimpar a terra das pedras, e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel, com que arguistes, temos a prova. Já vimos, como dizia o texto, que aqueles Animais da carroça de Deus, quando iam, não tornavam: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto, que aqueles Animais tornavam à semelhança de um raio ou corisco: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os Animais iam, e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai, e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou, nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta, e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira; porque ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos: dá-me grande exemplo o semeador; porque, depois de perder a primeira, a segunda, e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta, e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos; esta quarta e última parte, este último quartel da vida, por que se perderá também? Por que não dará fruto? Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores, e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu outono a vida? As flores umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento: aquelas poucas, que se pegam ao tronco, e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as discretas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo. Será bem que o mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o Sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos Sermões, que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

II

Semen est verbum Dei.

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das cousas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? — Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um Sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três cousas: olhos, espelho, e luz. Se tem espelho, e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho; e olhos, e é de noite; não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do Pregador e do ouvinte; por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus não falta, nem pode faltar. Esta proposição é de Fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo, que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou, e três se perderam. E por que se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos: a segunda, porque a secaram as pedras: a terceira, porque a pisaram os homens, e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz, que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do Sol ou, da chuva. A causa, porque ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade, e pela intemperança dos tempos: ou porque falta, ou sobeja a chuva, ou porque falta, ou sobeja o Sol. Pois por que não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo, que se perdesse por causa do sol, ou da chuva? Porque o sol, e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é, nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar, e com a chuva para regar: com o Sol para alumiar, e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu Sol, e a sua chuva aos bons, e aos maus: aos maus, que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro, que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? Disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus; segue-se, que ou é por falta do pregador, ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes; mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto, e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes, ou são maus, ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus: se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo, que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo, que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo, que caiu na terra boa, nasceu, e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira, que o trigo, que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito fruto; e é tão eficaz, que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes, que há na Igreja de Deus são as pedras, e os espinhos. E por quê?  Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos, e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele: o mesmo sucede cá. Cuidais que o Sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o Sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores; porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma cousa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos, e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes; é tanta a força da Divina palavra, que apesar da agudeza nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho, de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras, e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da Divina palavra, que sem cortar, nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da Divina palavra, que sem arrancar, nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações secos, e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus, e tende confiança: tomai exemplo nessas mesmas pedras, e nesses espinhos. Esses espinhos, e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo, em que essas mesmas pedras o aclamem, e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos, e das pedras triunfa: se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

Supostas estas duas demonstrações: suposto que o fruto, e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes; segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

IV

Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas; em qual consistirá esta culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a Pessoa, a Ciência, a Matéria, o Estilo, a Voz. A pessoa que é: a ciência que tem: a matéria que trata: o estilo que segue; a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma, e buscando esta causa.

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram Santos, eram Varões Apostólicos, e exemplares, e hoje os pregadores são eu, e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida, e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador, e o que semeia há muita diferença: Uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeador, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador, e o pregador é nome; o que semeia, e o que prega é ação, e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada: as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito, que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito, que de sua vida têm os ouvintes.

Antigamente convertia-se o mundo; hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras, e pensamentos: antigamente pregavam-se palavras, e obras. Palavras sem obra, são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o Gigante; mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os Demônios do corpo de Saul; mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar, que é falar, faz-se com a boca: o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras: para falar ao coração, são necessárias obras: Diz o Evangelho, que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer, que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras, que frutificam obras, vede se podem ser só palavras? Quis Deus converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus, e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo Divino, é palavra Divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é; porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se: as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos: e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há, que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu, como na terra? Pois como no Céu obriga, e necessita a todos ao amarem, e na terra não? A razão é; porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se: o que entra pelos olhos, necessita. Viram os ouvintes em nós, o que nos ouvem a nós, e o abalo, e os efeitos do Sermão seriam muito outros.

Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao Pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram Rei de zombaria; diz que tomaram uma púrpura, e lha puseram aos ombros: ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos, e que lha pregaram na cabeça: ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos, e lhe meteram nela uma cana por cetro: continua o mesmo silêncio, e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a imagem do Ecce Homo: eis todos prostrados por terra, eis todos a bater nos peitos, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas: que é isto? Que apareceu de novo nesta Igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa, e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro, e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto: a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem Padres pregadores por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Por que convertia o Baptista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam: Homens fazei penitência, e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência, e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula, e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos, e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição, e modéstia, e condenavam a soberba, e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas, e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos, e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem, que deixou as cortes, e as Cidades, e vive num deserto, e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma cousa e veem outra, como se hão de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas, quando concebiam, e daqui procedia, que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas; como hão de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina: se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador, e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?

Muito boa, e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo, e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e ainda depois de engolido, e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso, e amigo da própria estimação, que da honra de Deus, e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive, e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes: contudo este mesmo homem com um Sermão converteu o maior Rei, a maior Corte, e o maior Reino do mundo, e não de homens fiéis, senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa, que buscamos. Qual será?

V

Será porventura o estilo, que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte, e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil, e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Comparou Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte, que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na Música tudo se faz por compasso: na Arquitetura tudo se faz por regra: na Aritmética tudo se faz por conta: na Geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte: caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caía o trigo nos espinhos, e nascia: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae. Caía o trigo nas pedras, e nascia: Aliud cecidit super petram, et ortum. Caía o trigo na terra boa, e nascia: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo, e ia nascendo.

Assim há de ser o pregar. Hão de cair as cousas, hão de nascer: tão naturais, que vão caindo, tão próprias, que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento, e tirânico, que hoje se usa! Ver vir os tristes Passos da Escritura, como quem vem ao martírio: uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados, só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto: que bem levantado está aquilo! Não está a causa no levantar: está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu para o Sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as cousas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as cousas; porque hão de vir bem trazidas, e em seu lugar; hão de ter queda: a cadência é para as palavras; porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes; hão de ter cadência; o caso é para a disposição; porque há de ser tão natural, e tão desafetada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo Pregador, que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo Pregador, que houve no mundo, foi o Céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum; diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David: tem palavras e tem sermões, e mais muito bem ouvidos: Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões, e estas palavras do Céu? As palavras são as estrelas: os sermões são a composição, a ordem, a harmonia, e o curso delas. Vede, como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que, Cristo ensinou na terra? Um, e outro é semear: a terra semeada de trigo: o Céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro: se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra: se de uma parte dizem, desceu, da outra hão de dizer, subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas, e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto, e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo: as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro, e muito alto: tão claro, que o entendam os que não sabem, e tão alto, que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura, e o mareante para sua navegação, e o matemático para as suas observações, e para os seus juízos. De maneira, que o rústico e o mareante, que não sabem ler, nem escrever, entendem as estrelas, e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as veem, e muito poucos as medem.

Sim, Padre: porém esse estilo de pregar, não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo, que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto; os que o condenam, chamam-lhe escuro; mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal, e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em Português, e não havemos de entender o que diz? Assim como há Lexicon para o Grego; e Calepino para o Latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios; porque os cultos têm desbatizados os santos, e cada Autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente: assim o disse o Evangelista Apeles: assim o disse a Águia de África; o Favo de Claraval; a Púrpura de Belém; a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Cetro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência. O Evangelista Apeles, que é São Lucas: O Favo de Claraval, São Bernardo: a Águia de África, Santo Agostinho: a Púrpura de Belém, São Jerónimo: a Boca de Ouro, São Crisóstomo. E quem quitaria ao outro, cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes; que a Águia de África é Cipião; e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo, e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem, que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo polido, e estudado, se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão; e pelo escuro, e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense, e outros; não podemos negar a reverência a tamanhos Autores: posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?

VI

Será pela matéria, ou matérias, que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo, que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos: e quem levanta muita caça, e não segue nenhuma, não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O Sermão há de ter um só assunto, e uma só matéria. Por isso Cristo disse, que o lavrador do Evangelho, não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas; porque o Sermão há de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeará primeiro trigo; e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso, e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos Sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o Norte, outro para o Sul, outro para Leste, outro para Oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto, e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há de colher, senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a Preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la; para que se conheça: há de dividi-la; para que se distinga: há de prová-la com a Escritura: há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar, e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários: e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.

Não nego, nem quero dizer, que o sermão não haja de ter variedade de discursos; mas esses hão de nascer todos da mesma matéria, e continuar, e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes, e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria: Deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria, e continuados nela: Estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas; porque os discursos hão de ser vestidos, e ornados de palavras: Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios: há de ter flores, que são as sentenças: e por remate de tudo há de ter frutos, que é o fruto, e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira, que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido, e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos; não é sermão, é madeira: Se tudo são ramos; não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores; não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta Árvore, a que podemos chamar Árvore da vida, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido, e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito, que se não faça fruto com eles.

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos; mas com a prática observada do Príncipe dos Oradores Evangélicos, São João Crisóstomo, de São Basílio Magno, São Bernardo, São Cipriano, e com as famosíssimas orações de São Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, São Gregório, e muitos outros se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermões, e homilias; uma cousa é expor, e outra pregar: uma ensinar, e outra persuadir. E desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antônio de Pádua, e São Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa, que busco.

VII

Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há, que vivem do que não colheram, e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo, que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio; porque o alheio, e o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa Mãe, já que comeu o pomo, porque lhe não guardou as pevides. Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso: não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui porque muitos pregadores não fazem fruto, porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o Gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David: e mais aproveita um cajado, e uma funda própria, que a espada, e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo, que derrube gigante.

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores: e que faziam os Apóstolos? Diz o Texto, que estavam: Reficientes retia sua. Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam: não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas: e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores, que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes; homens não se podem pescar. A razão disto é; porque nesta pesca de entendimentos, só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio, e do nó se compõe a malha: quem não enfia, nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar, nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada, que vai ao fundo, e tem cortiça, que nada em cima da água. A pregação tem umas cousas de mais peso, e de mais fundo; e tem outras mais superficiais, e mais leves: e governar o leve, e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.

As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória: e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.

Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos: e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca: mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça, e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, para nos ouvidos: o que nasce do juízo penetra, e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o Texto, que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis; seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André: outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe: outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos Escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os Doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela Pomba Divina; mas o estilo, tão diverso, tão particular, e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime: e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco, S. Lucas, e S. Marcos, que também ali estavam; e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam, e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas: suas, e não alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez cousa boa.

Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou, o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta; mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho, que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados, que dá razão.

Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto. Eu sou uma voz, que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: Voz que arrazoa; e não Voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar: não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados, que a razão; e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações, que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto. Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o Povo, e os Escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados, que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores nuvens: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão, e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre, e faça tremer o mundo.

Mas que diremos à Oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum. Desça minha doutrina como chuva do Céu, e a minha voz, e as minhas palavras como orvalho, que se destila brandamente, e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada, que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido, que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente, e sem força se insinua, entra, penetra, e se mete na alma.

Em conclusão, que a causa de não fazerem hoje fruto os Pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do Estilo: Seminare; nem a da matéria, Semen; nem a da Ciência, Suum; nem a da Voz, Clamabat. Moisés tinha fraca voz: Amós tinha grosseiro estilo: Salamão multiplicava, e variava os assuntos: Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam, e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal, nem bastante do pouco fruto, que hoje faz a palavra de Deus; qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

IX

As palavras que tomei por Tema o dizem: Semen est verbum Dei. Sabeis (Cristãos) a causa, por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa, e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia, e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo, quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus; como não há a Igreja de Deus de colher tormenta em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis, Padre; os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio. Tentou o Demônio a Cristo, a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demônio, que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do Salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis. Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras, que os Anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal. De sorte, que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo; como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é; porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio, e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa; tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação, com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto tentou-o com a gula; no monte tentou-o com a ambição; no templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas; e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome) dizei-me: esses assuntos inúteis, que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos, e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo, que não; porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal cousa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis; e o que pregais; como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma Gramática das palavras? Não por certo: porque muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus; segue-se, que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus; que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer, o que elas dizem! E então ver cabecear o auditório a estas cousas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh que bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso testemunho ao Texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento, e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista São Mateus, que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram, que ouviram dizer a Cristo; que se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista São João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito, que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo São João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte, e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico, e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer, que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer, que são palavras vossas, o que são imaginações minhas: que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz Sao Paulo, em que os homens não sofrerão a doutrina sã: Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão, e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas: A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas. Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento, e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas, e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade: são comédia, porque os ouvintes vêm a pregação, como a comédia; e há pregadores, que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades, que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se: passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida, e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!

Pouco disse São Paulo em lhe chamar comédia; porque muitos sermões há, que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido, ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas) a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro, que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos, e em tal lugar, cuidaria, que havia de ouvir uma trombeta do Céu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo, e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações havia de fazer em pó, e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada, e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? a motivar desvelos; a acreditar empenhos; a requintar finezas; a lisonjear precipícios; a brilhar auroras; a derreter cristais; a desmaiar jasmins, a toucar primaveras; e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o Rei veste como Rei, e fala como Rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso, e falar, como; não o quero dizer por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comé