Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Fonte Castália, de Arthur Azevedo

________________________________________

Obra de Referência

Biblioteca Virtual de Literatura

PERSONAGENS

Frumencio » Sr. Ferreira de Sousa.

Machucho  » Olympio Nogueira.

Apollo        » Alfredo Silva.

Cupido       » D. Aurélia Delorme.

Cleonte      » Sr. Marzulo.

Andronico  » Barbosa.

Poeta    » Bragança.

2° Poeta    » Ramos.

3° Poeta    » João Silva.

4° Poeta    » Pedro Nunes.

5° Poeta    » Mendonça.

Amélia       » D. Lucilia Peres.

Rhéa        » Helena Cavalier.

Thalia               » Maria de Oliveira.

Clio           » Estepliania Louro.

Euterpe     » Pepa Delgado.

Terpscore  » Maria Fornazari.

Polymnia   » Maria da Piedade.

Erato        » Sophia Galini.

Melpomene » Leonor Lima.

Urania       » Anna Graça.

Caliope      » Maria Angélica.

Amores, Poetas, Comitiva de Andronico.

O 1° e o 3° ato passam-se num país de fantasia; o 2° no cimo do monte Parnaso. Época indeterminada.

ATO I

Sala em casa de Frumencio. A estátua de Vênus. Mesa com preparos para escrever. Cadeiras.

CENA PRIMEIRA

(AZELIA, depois CLEONTE.)

DUETO

AZELIA (entrando.)

                         Na extrema do horizonte

                         A aurora despontou:

                         Vou ver o meu Cleonte,

                         Beijar-lhe os lábios vou!

(A VOZ DE CLEONTE.)

                         Nós paramos risonhos

                         A purpurina aurora

Doura

                         A pudibunda flor...

                         Aos olhos meus te guardas!

Tardas,

                         Oh! meu querido amor!

AZELIA.

                         É ele! é ele!...

                         O coração me impele

                         E fala-me a razão;

  Mas a razão sucumbe e vence o coração!

(Vai abrir uma janela e acena para a rua. O palco iludiu-se. Cleonte entra pelas janelas.)

AZELIA.

                         Oh! meu Cleonte!

CLEONTE.

                         Oh! minha doce amada!

                         Oh! que hora afortunada!

Juntos.

                         Vivamos juntos,

                         Sempre juntinhos

                         Quase dois pombinhos

                         Meigos e sós!

                         E, a não gozarmos

                         Tão bela sorte,

                         Antes a morte

                         Nos leve a nós!

CLEONTE.

                         Eu quero um beijo!

                         Um beijo só!

                         Do meu desejo

                         Meu bem, tem dó!

AZELIA.

                          Não tens um beijo!

                          Nem mesmo um só!

                          Do teu desejo

                          Não tenho dó!

(Com faceirice.)

                          Quando eu for sua mulher,

                          Dar-lhes-ei quantos quiser...

CLEONTE.

                          Tenho ou não tenho?

                          Dá ou não dá?

AZELIA.

                          Fazes empenho?

                          Pois toma-o lá!

                          (Beijam-se.)

CLEONTE.

Deste-me um beijo!

Deste-me um só!

Do meu desejo!

Tiveste dó!

AZELIA

Que tem um beijo

Quando é um só?

Do teu desejo

Eu tive dó!

CLEONTE

Podemos conversar sem receio? Teu pai, o sr. Frumencio, ainda está nos braços de Morpheu?

AZELIA.

Não! a estas horas já deve estar nos braços das musas! Não há nada que o arranque a esse prazer!

CLEONTE.

Azelia, minha Azelia! como sou feliz quando me deslumbra a luz dos teus olhos e me embriaga o perfume dos teus cabelos!

AZELIA

Deixa-te de pieguices, e vamos ao que serve. Se te concedi mais esta entrevista, foi porque tinha que te fazer um pedido. E preciso acabar com estes encontros!

CLEONTE.

Isso é!

AZELIA.

Eu exponho-me a cólera paterna...

CLEONTE.

E eu a uma carga de pão, que é pior! Não facilitemos!

AZELIA.

E muito fácil dizer: «Não facilitemos!» Mas quem pode sopitar os arroubos de um coração de dezessete anos?

CLEONTE.

Quem pode resistir a uma janela de um metro e cinquenta centímetros de altura?

AZELIA.

       

Há um único meio de acabar com isto: o hymineu!

CLEONTE.

Do hymineu tenho-te eu falado um milhão de vezes e, se até hoje ainda não pedi a tua mão, não te deves queixar senão de ti mesma. A culpa tem sido tua.

AZELIA.

É verdade que te tenho aconselhado que o não faças; hoje, porém, penso o contrário.

CLEONTE.

O contrário? Ainda bem! Mas que motivos te levaram a aconselhar-me que te não pedisse ao velho?

AZELIA.

Pois não t’os disse?

CLEONTE.

Nunca!

AZELIA.

       

O papá tem a mania de fazer versos sem que para isso fosse fadado pela natureza.

CLEONTE.

Invicta Minerva!

AZELIA.

Não fala noutra coisa: é poesia para cá, poesia para lá! Tem até um criado que faz versos, e mesmo os improvisa!

CLEONTE.

O Machucho?

AZELIA.

O Machucho. Não sabes que é obrigado a não falar senão em verso?

CLEONTE.

Deveras?

AZELIA.

Foi essa uma das condições da sua admissão nesta casa.

CLEONTE.

Foi por isso que o outro dia, estando teu pai a tomar fresco ali na praça, aproximou-se dele o Machucho, e disse-lhe:

                        «Meu amo, está posta a mesa;

                         Vá para casa jantar;

                         A menina com certeza

                         Não pode mais esperar!»

AZELIA.

Vê tu que desaforo! O metro e a rima obrigaram-no a pregar uma mentira:

                         «A menina com certeza

                         Não pôde mais esperar! »

CLEONTE.

Julguei que estivesse maluco!

AZELIA

Malucos me parecem ambos! O papai, quando quer fazer versos, bate na testa, olha para o teto, conta as sílabas nos dedos, faz trinta mil caretas, e...

CLEONTE.

E não consegue nada!

AZELIA.

Nada! — Afinal, chama pelo Machucho e...

CLEONTE.

É original!

AZELIA.

Mas vamos ao que importa: acho que o papá não será capaz de dar-me em casamento a um homem que não seja poeta. Todos os dias me diz: — Minha filha, a prosa é terrena e vil, a poesia é celeste e nobre! Não te engraces de algum pingapulha que não conheça as nove filhas de Apollo!

(CLEONTE, resolutamente.)

       Ora! hoje mesmo venho pedir-te! — Teu pai

  Provavelmente perguntará se sou poeta.

                         Nada mais simples: dir-lhe-ei que sim...

AZELIA.

E depois?

CLEONTE.

Depois, não me custará ter também, como ele, o meu álter ego. Quando estivermos casados, confessar-lhe-ei a verdade, e ele nada poderá fazer.

AZELIA.

Bravo, és decidido!...

CLEONTE.

Virei hoje mesmo.

AZELIA.

Não te acanhes. Apresenta-te com todo o desembaraço.

CLEONTE.

Tranquiliza-te! (Ouve-se Frumencio tossir.)

AZELIA.

Ai vem o papai! foge!

CLEONTE.

Ora! no melhor da festa! (Beija-a e salta pela janela. Frumencio entra a ler um papel.)

AZELIA, (consigo, enquanto Frumencio desce ao proscênio.)

Ora! Ele podia ter ficado... O papai, quando está com a musa, não dá pela presença de ninguém!

CENA II

AZELIA, FRUMENCIO.

FRUMENCIO, (lendo o papel que traz na mão.)

                         No seu carro dourado o dino Phebo

                         Vem dando ao horizonte rubra cor...

                        (Pensa e repete pausadamente.)

                         Vem dando ao horizonte rubra cor...

AZELIA.

Bom dia, papai. Como passou a noite?

FRUMENCIO, (sem lhe dar ouvidos.)

                         Vem dando ao horizonte rubra cor...

AZELIA, à parte.

É sempre assim!(Alto) Papai, como passou a noite?

FRUMENCIO.

Adeus.

                        «No seu carro dourado o dino Phebo...

(sem olhar para Azelia.)

Ô menina?

AZELIA

Papá?

FRUMENCIO.

Da cá uma rima para Phebo.

AZELIA.

Cego.

FRUMENCIO.

Cega estás tu, minha tonta!

                        «No seu carro dourado o dino Phebo

Vem dando ao horizonte rubra cor...»

Não fica bem! Este «dino Phebo» é o diabo! (compondo.)

«No seu carro dourado o Phebo dino... »

«Phebo dino» ainda é pior que «dino Phebo!» Parece que se trata de alguém que se chama Phebo dino.

«No seu carro dourado Phebo... divino...»

Já não sei a quantas ando! (chamando) Ô Machucho! (limpa o suor e continua.)

     «No seu carro dourado... Phebo... Phebo...»

COPLAS

I

                         Oh, que inferno! Fico tonto!

                         Tenho as fontes a estalar!

                         Pronto há muito, ou quase pronto,

                         Isto aqui devia estar!

                         Perco a bola! perco o juízo!

                         Doido a musa me ha de pôr!

                         Nunca faço um improviso

                         Sem três dias de labor!...

II

                         Por meu estro embalde puxo!

                         Que terrível situação!

                         Já chamei pelo Machucho.

                         Para dar-me uma demão...

                         De um auxiliar preciso!

                         Ai! como isto é massador!

                         Nunca faço um improviso

                         Sem um colaborador!

CENA III

AZELIA, FRUMENCIO, MACHUCHO.

FRUMENCIO (a Machucho que entra.)

Ah vem cá, Machucho; tira-me deste embaraço métrico. Quero dizer em verso a coisa mais natural deste mundo, quando é em proza. Amanhã faz anos o comendador Andronico, meu velho amigo. É meu costume felicita-lo todos os anos com um improviso. O comendador faz cinquenta anos. Principiei assim:

                        «No seu carro dourado o dino Phebo

Vem dando ao horizonte rubra cor...»

MACHUCHO. (tirando um lápis.)

Cá vai o fórceps!

(Toma o papel com ares de importância, escreve e lê o que escreveu depois de concertar a garganta e bater na testa.)

                         No carro seu doirado a roxa aurora...

FRUMENCIO (satisfeito)

Sim, senhor! não me lembrei da roxa aurora.

MACHUCHO.

                        «Vem dando aos horizontes rubra cor...

FRUMENCIO

.

Esse «rubra cor» não está duro, Machucho?

MACHUCHO.

                         Duro? Não, senhor meu amo

                         É mesmo frase elegante!

                         Se rubra em vogal termina,

                         Cor principia em consoante.

FRUMENCIO, (a Azelia, que se tem conservado afastada)

- Que cabeça!...

MACHUCHO, (lendo)

                        «No carro seu doirado a roxa aurora

                         Vem dando aos horizontes rubra cor;

                         Em dia tão gentil comemora

                         O aniversário do comendador! »

FRUMENCIO (entusiasmado.)

Dá-me um abraço, vate!...

MACHUCHO, (modestamente)

                         Uma honra assim tamanha

                         Eu não mereço de certo;

                         Mas, enfim, como o deseja,

                         Nos meus braços o aperto.

(Abraça-o.)

FRUMENCIO.

Agora, vou para a quietude do meu gabinete improvisar as outras estrofes. Em eu precisando de ti...

MACHUCHO.

                         É só gritar por meu nome!

                         Lá irei ter às carreiras,

                         Dar-lhe uma demão ao estro...

                         (Procurando a conclusão.)

                         Dar-lhe uma de mão ao estro...

FRUMENCIO (fechando a cara.)

Conclua a quadrinha! Conclua a quadrinha, ou vai multa!...

MACHUCHO (vivamente)

Com meia dúzia de asneiras!

FRUMENCIO (satisfeito)

Amm... (saindo)

                         No carro seu doirado a roxa aurora etc.

(Perde-se a voz no bastidor.)

CENA IV

AZELIA, MACHUCHO.

AZELIA.

Forte mania!

MACHUCHO

Que quer a menina? Aquilo anda-lhe na massa do sangue! Nunca me hei de esquecer daquele dia em que li no jornal um anúncio concebido nos seguintes termos: «Precisa-se de um poeta, que faça e improvise versos. Quem se achar nas condições, dirija-se a rua tal número tantos. Paga-se bem, agradando.» A menina quer saber quem eu era? Ouça:

(Recita ao som da música.)

                         Eu era um pobre trovador de esquina;

                         Sempre mofina a minha sorte foi;

                         Desenvolvia inteligência e arte

                         Pra minha parte conquistar do boi.

                         Passava as belas noites ao relento,

                         Á chuva, ao vento, e era o meu leito o chão,

                         E nisso achava singular delicia,

                         Quando a polícia não me punha a mão.

                         

                         Mas não vi nunca no xadrez infame

                         Negro vexame, ríspido lábio;

                         Olhava o povo a passear na rua,

                         Olhava a lua a passear no céu.

                         Ai! quantas vezes célicas venturas

                         Lá nas escuras estações gozei!

                         Mesmo entre ferros negros e medonhos,

                         Sonhava sonhos que não sonha um rei!

                         Nisto, menina, do seu pai o anuncio

                         Foi o prenuncio de um viver melhor!

                         Abençoadas essas quatro linhas!

                         Emprego tinhas, vagabundo mor!

                         Vim para casa de seu pai, menina...

                         Fome canina não padeço já!

                         Levo de perna alçada o dia inteiro;

                         Ganho dinheiro e não me canso, — ai está!

Todas essas regalias sob a condição de só falar em verso quando estiver em presença de seu pai. Nas respostas devo empregar redondilhas em quadras, rimando a segunda com a quarta. Nos recados, quadras também, rimando o primeiro verso com o quarto e o segundo com o terceiro. Todas as vezes que me faltar a rima, pagarei uma multa, que será descontada no fim da vez, salvo o caso do verso solto, em hendecassílabos, admissível nas longas narrações.

AZELIA.

Não sabia desse regulamento.

MACHUCHO.

Aceitei resignado e contente o meu difícil papel, e desde então...

(a voz de Frumencio)

MACHUCHO!

Lá está, ele a chamar-me!

(a voz de Frumencio)

Machucho!

MACHUCHO.

Lá vai quadra! (gritando)

                         Eu aí vou, senhor meu amo,

                         Sem me fazer esperar...

(sai a correr. Não se ouve o resto.)

CENA V

AZELIA

(Vai à janela e volta tristemente ao proscênio)

Se o papai se lembra de pôr a prova a veia poética do meu amado, aqui, antes de lhe conceder a minha mão e sem que ele tenha tido tempo de se preparar, está tudo perdido... Oh, Cleonte, Cleonte do meu coração! porque não és tu poeta? Porque não te aqueceu no berço o bafejo ardente das musas? Ingratas musas! O meu Cleonte, com tudo, faz poemas. Falo no coração, mas não os escreve: sente-os.

ROMANCE

I

                         Infelizmente o meu amor

                         Versos fazer não sabe...

                         Meu belo sonho, encantador,

                         Receio que desabe!

                         Mas, diga o velho o que disser,

                         Dele serei somente!

                         Meu coração deseja e quer

                         Ser dele eternamente!

(Dirigindo-se a estátua.)

                         Vênus, deusa do amor, de mim tem dó!

                         Vê que o meu coração é dele só!

II

                         Não quero mais viver assim,

                         Longe do meu amado,

                         E ele viver longe de mim

                         Também não quer, coitado!

                         Se ele comigo não casar,

                         Eu perderei a vida,

                         E a imprensa toda ha de falar

                         De mais uma suicida!

                         Vênus, deusa do amor de mim tem dó!

                         Vê que o meu coração é dele só!

CENA VI

AZELIA, MACHUCHO.

MACHUCHO (falando para dentro)

                         Para agradar ao meu amo,

                         As minhas ideias puxo;

                         Em precisando outra estrofe,

                         É só chamar o Machucho!

(Ouve-se tocar uma campainha)

Tocaram. Quem será tão cedo? (vai espreitará porta)

AZELIA (aparte)

Será ele? (A machucho) Quem é?

MACHUCHO.

Um moço.

AZELIA.

Louro?

MACHUCHO

Sim, senhora.

AZELIA

Estatura regular?

MACHUCHO

Sim, senhora.

AZELIA

Bonito?

MACHUCHO

Sim, senhora.

AZELIA

É ele!

MACHUCHO

Sim, com certeza não é ela.

AZELIA.

Sabes quem é?

MACHUCHO

Sei, é ele.

AZELIA.

Ele quem?

MACHUCHO.

Não sei.

AZELIA.

Sei eu.

MACHUCHO

Quem é?

AZELIA.

Mais tarde saberás. (vai espreitar e volta muito contente.) É ele! é ele!

Tralálálá!... Coitado, está tão impaciente que veio antes do almoço! falo entrar: vem procurar o papai! (saindo a dançar) Tra lá lá lá! (sai)

CENA VII

MACHUCHO, depois CLEONTE.

MACHUCHO

É ele, não é ela, quem é, não sei, sei eu, é ele, tra lá lá lá! Um... Aqui anda coisa... Meu amo, em vez de se ocupar da família, anda às voltas com a musa... Ha de dar bons burros ao dizimo! Isto de fazer versos não leva um homem a boa coisa... Eu que o diga! (novo toque de campainha.) Lá vai lá vai!

(Abre a porta entra Cleonte).

CLEONTE.

O Sr. Frumencio?

MACHUCHO.

Está com a musa.

CLEONTE.

Com a... (Compreendendo.) Ah, sim, já sei, faz versos. A fama poética do Sr. Frumencio chegou aos meus ouvidos. Faz bem, faz muito bem! A prosa é terrena e vil, a poesia celeste e nobre.

MACHUCHO.

O cavalheiro é poeta?

CLEONTE.

Porque me faz essa pergunta?

MACHUCHO

É que talvez viesse por causa decerto anúncio... Previno-o, porém, do que o lugar está ocupado.

CLEONTE.

Tranquilize-se: não alugo o meu talento. — Posso falar ao Sr. Frumencio, ou ele, quando está com a tal musa, não quer que o interrompam?

MACHUCHO

Não sei..., mas creio que lhe dará audiência.

CLEONTE

Nesse caso, vá preveni-lo da minha visita. Não declino o meu nome; seria ocioso: o Sr. Frumencio não me conhece. (Senta-se) ...

MACHUCHO (saindo a gritar)

                         Está cá fora um cavalheiro

                         Que lhe deseja falar...

(Perde-se o resto no bastidor. Cleonte ergue-se assustado).

CLEONTE (tranquilizando-se)

Ah! sim, não me lembrava... aquilo é por obrigação.

CENA VIII

CLEONTE, depois FRUMENCIO.

CLEONTE.

A minha coragem vai pouco a pouco afrouxando. Nunca me senti tão pouco poeta, nem tão apaixonado! Se antes do pai, me aparecesse a filha, ela me daria animo... Vem alguém... É ele, é o Sr. Frumencio...

FRUMENCIO (entrando a ler um papel, como na outra cena.)

                         Nove lustros ha já que veio ao mundo

                         Para a ventura fazer do povo...

CLEONTE.

Sr. Frumencio...

FRUMENCIO (sem se distrair, olhando para o teto)

                         Nove lustros já há...

                         Nove lustros ha já...

                         Ha já lustros nove...

                         Já há nove... já nove ha...

(De mal humor.)

Sebolorio!

CLEONTE (à parte.)

Mal! (Alto) Sr. Frumencio...

FRUMENCIO

                         Lustros nove ha já...

                         Já há nove lustros...

(De mal humor.)

Pílulas!

CLEONTE.

Sr. Frumencio... ( À parte.) O melhor e voltar em outra ocasião!

FRUMENCIO

.

                         Já lustros nove ha...

                         Ha nove lustros já... 

(Agrada-lhe o princípio do verso.) Hein? Ora graças!

                         Ha nove lustros já que veio ao mundo,

                         Para a ventura deste povo fazer...

                         Está comprido!

CLEONTE.

Sr. Frumencio...

FRUMENCIO (sem desviar os olhos do papel.)

Viva! (Contando as sílabas nos dedos.)

Pa-ra a ven-tu-ra des-te po-vo fa-zer.

Tem uma sílaba de mais!

(Compondo.)

                            Para a ventura...

(Contando as sílabas como acima.)

Pa-ra a ven-tu-ra fa-zer do po-vo.

Tem uma sílaba de menos!

CLEONTE.

Sr Frumencio...

FRUMENCIO (como acima)

Viva!

(Compondo.)

                           Para a ventura realizado povo...

(Agrada-lhe o verso e fala muito depressa, sem desviar os olhos do espaço.)

Depressa! Depressa! Uma rima para povo!

(Estende o braço a Cleonte, como para receber a rima e estala os dedos com impaciência.)

CLEONTE (atarantado)

Hein?

FRUMENCIO

Uma rima para povo!

CLEONTE.

Ovo!

FRUMENCIO.

Ovo! (olha admirado para Cleonte, e cai em si, guarda 03 versos cumprimenta-lo.) Senhor...

CLEONTE

Sr. Frumencio...

FRUMENCIO

Desculpe se o fiz esperar. A musa deu-me uma esfrega que me deixou a suar. (Reconhece que fez dois versos sem querer, e repete.)

                         A musa deu-me uma esfrega,

                         Que me deixou a suar

CLEONTE (À parte.)

Está doido!

FRUMENCIO

Como são as coisas! Batalho o dia inteiro para arranjar um verso, ao passo que agora, involuntariamente, sem me sentir, improvisei dois! Sente-se, meu caro senhor, sente-se; mas, antes de dizer o que o trouxe, permita que eu tome nota deste improviso Esporádico e adventício... (Vai a mesa escrever)

CLEONTE.

Pois não! á vontade! (Senta-se)

FRUMENCIO (escrevendo.)

A Musa... em... em... em... em... a suar. Muito bem. (Guarda o que escreveu e vem sentar-se perto de Cleonte.) nós, os poetas, devemos ter sempre bem presente o adagio: Guarda o que não queres...

CLEONTE.

...e acharás o que precisas.

FRUMENCIO.

Quem sabe se estes dois versos não me poderão servir em alguma oportunidade? (Outro tom.) Estou às suas ordens.

CLEONTE (À parte)

É agora! (Alto, tossindo.) Hum! hum!

FRUMENCIO (tossindo.)

Hum! hum!... (À parte.) Vem pedir-me versos...

CLEONTE

Sr. Frumencio...

FRUMENCIO (à parte)

Versos ou dinheiro.

CLEONTE

Como?

FRUMENCIO (à parte.)

Prefiro que sejam versos.

CLEONTE

Dizia?

FRUMENCIO.

Cá falo. Sou todos ouvidos.

CLEONTE

Sr. Frumencio, eu sou um homem independente.

FRUMENCIO ( à parte.)

Não é dinheiro que me vem pedir... 

CLEONTE.

Autorizado por sua filha, a minha adorada Azelia, venho pedi-la em casamento.

FRUMENCIO

Quer casar-se com minha filha! Homem! por esta não esperava eu!

CLEONTE

Sou de boa família, tenho bons costumes e gozo de perfeita saúde.

FRUMENCIO

Tudo isso é muito bom, mas para mim não é o essencial... Diga-me cá uma coisa: é poeta?

CLEONTE

Hem?

FRUMENCIO

Pergunto se é poeta, se sabe fazer versos...

CLEONTE

Sou... sei... (Gesto de satisfação de Frumencio.) Isto e... (Frumencio encara-o muito sério com resolução.) Sou

FRUMENCIO.

É?

CLEONTE

Sou.

FRUMENCIO.

Ainda bem!

CLEONTE

Não sou, talvez, um poeta da força do Sr. Frumencio... não componho nem improviso com tanta facilidade..., mas, enfim... dou o meu recado, (inflamando-se) A prosa é terrena e vil, a poesia é celeste e nobre!

FRUMENCIO

Isso mesmo costumo eu dizer cá em casa.

CLEONTE

Pois sua filha, a filha de um poeta, era lá capaz de gostar de um homem que não soubesse cultivar as sete filhas de Apollo!

FRUMENCIO

Sete?

CLEONTE

Pois não são sete? (à parte.) Ai! ai!

FRUMENCIO

As musas são nove, meu caro senhor.

CLEONTE

Nove?

FRUMENCIO

Não me consta que alguma houvesse morrido.

CLEONTE

Não quero teimar, mas contemos... (conta nos dedos.) Dó, ré, mi, fá....

FRUMENCIO

Isso são notas de música!

CLEONTE

Ah! tem razão! tem razão! Onde tenho eu a cabeça? é o amor que me desorienta!

FRUMENCIO (naturalmente)

Uma vez que o senhor é poeta, peça-me a mão da pequena em verso.

CLEONTE (à parte)

Oh! diabo!

FRUMENCIO

Vamos! Ande! Improvise! Não esteja a pensar!

CLEONTE

Mas...

FRUMENCIO

Não há mas nem meio mais! É poeta ou não é poeta?

CLEONTE

Dou o meu recado...

FRUMENCIO

Pois bem! venha o pedido! Se o não fizer, grogotó...

CLEONTE

Grogotó?

FRUMENCIO.

Galhetas Grogotó galhetas, que é o legitima grogotó (Levanta-se.)

CLEONTE (à parte)

E eu que nunca fiz um verso! (Levanta-se)

FRUMENCIO

Então? Em que ficamos?

CLEONTE (à parte.)

Ora! Saia o que sair! (Balbuciando)

                         Eu venho pedir-lhe a mão

                         Da senhora sua filha,

                         Porque por ela bate o meu peito...

FRUMENCIO

Está duro!

CLEONTE

O meu peito?

FUMENCIO

O verso. Diga outra vez do princípio.

CLEONTE

.

                         Eu venho pedir-lhe a mão

                         Da senhora sua filha,

                         Porque por ela bate o meu peito...

FRUMENCIO

Aposto que vai concluir assim: E ela é uma maravilha?

(De mal humor.)

                         Pois, meu senhor, não minha filha!

CLEONTE

Perdão! eu não ia concluir assim...

                         Eu venho pedir-lhe a mão

                         Da senhora sua filha,

                         Porque por ela bate o meu peito

                         E quero pertencer à família.

FRUMENCIO

Isso não é verso.

CLEONTE.

Mas é verdade.

FRUMENCIO

Pois bem, vai ver como sou razoável e condescendente. Faço-lhe uma concessão. Vou fechá-lo durante um quarto de hora nesta sala

CLEONTE

Fechar-me?

FRUMENCIO

Durante esse tempo há de escrever uma ode em que me peça a mão da pequena com todos os ff e rr. Se ao cabo desse quarto de hora não tiver feito nada, jamais será meu genro!

CLEONTE.

Mas...

FRUMENCIO.

Jamais! (Depois, de fecharas portas e janelas.) Tomo estas precauções, porque tenho um fâmulo que é poeta, e pode vir dar-lhe cola. Aqui tem papel e tinta. Até logo! São sete horas e um quarto; voltarei às sete e meia.

CLEONTE

Mas, Sr. Frumencio. . .

FRUMENCIO

Olhe... deixo-o em companhia de Vênus. Ela que o inspire! (sai e fecha a porta)

CENA IX

CLEONTE.

Que situação! Enfim... (Senta-se à mesa e escreve) Sr. Frumencio... Ora Sr. Frumencio! “Sr. Frumencio” é o começo de uma carta, e não de uma ode! (depois de pensar alguns instantes, ergue-se e atira fora a pena.) Não arranjo nada!...

COPLAS

I

                         Qual! o que! não é possível!

                         Nenhuma ideia me acode!

                         Pois se até — que coisa horrível!

                         Não sei o que seja ode!

                         Nem uma pobre quadrinha

                         Engendra o cérebro meu!

                         Azelia, não serás minha!

                         Azelia, não serei teu!

II

                         Estou frito, porque, em suma,

                         Confesso que, até esta data,

                         Jamais pedi coisa alguma

                         Que não fosse em prosa chata!

                         Se a deusa não me apadrinha,

                         Se não ouve o rogo meu,

                         Azelia, não serás minha!

                         Azelia, não serei teu!

(Dirigindo-se à estatua.) Oh Vênus! tu que és a deusa do amor, tira-me deste embaraço!

A ESTÁTUA.

Não posso!

CLEONTE (recuando)

A estátua fala!

A ESTÁTUA.

Sou a deusa do amor, não a deusa da poesia. Só Apollo, meu irmão, te pode dar o condão que invocas!

CLEONTE.

Apollo?

A ESTÁTUA.

Sim! Vou te mandar Cupido! Ele te levará, no meu carro, ao monte Parnaso, onde Apollo te fará beber a água da fonte Castália.

(Forte na orquestra. Desaparece a estátua, aparecendo no seu lugar uma gruta de flores, deslumbrantemente iluminada, por onde entra Cupido, acompanhado de uma dúzia de amores.)

CENA X

CLEONTE, CUPIDO, AMORES.

CLEONTE (estupefato)

Oh!...

CORO DOS AMORES.

                         Eis o estado maior de Cupido,

                         A brilhante falange do Amor,

                         Sempre às ordens do deus atrevido,

                         Que é de todos os homens senhor!

(Os Amores percorrem a cena fazendo várias evoluções e alinham-se- no proscênio.)

CUPIDO

COPLAS

I

                         Sou bastante conhecido,

                         Conhecido em toda parte,

                         O maroto do Cupido,

                         Filho de Vênus e Marte.

                         O meu pai não era esse,

                         Pois Vulcano ser devia...

                         Antes mesmo que eu nascesse

                         Travessuras já fazia.

                         Na terra em tudo há mudança,

                         Mas eu cá, por ser divino,

                         Hei de ser sempre criança,

                         Hei de ser sempre menino!

CORO

                         Ha de ser sempre criança.

                         Ha de ser sempre menino!

CUPIDO

II

                         Julgam todos nesta bola

                         (Isso até me causa riso!)

                         Que eu, por ser um criançola,

                         Não tenha muito juízo...

                         Outros dizem que sou cego,

                         Mas esta é a verdade crua:

                         Sou capaz de ver um prego

                         Espetado lá na lua!

                         Na terra em tudo há mudança, etc.

CLEONTE

Cupido!... Pois tu és Cupido?...

CUPIDO.

Vênus, minha mãe, ouviu a tua invocação... e mandou-me a tua presença, para tratar dos teus interesses amorosos.

CLEONTE.

Deverás?... Não sei como agradeça!...

CUPIDO

Senta-te aquela mesa e escreve o que te vou ditar. (Cleonte obedece.) «Sr. Frumencio »...

CLEONTE.

«Sr. Frumencio» já está. Era o princípio da minha ode.

CUPIDO (ditando.)

«O estro não aceita imposições. Dentro de quinze dias voltarei a sua casa, e submeter-me-ei a todas as provas.» Assina.

CLEONTE.

Pronto!

CUPIDO

Agora, vem comigo!

CLEONTE

Aonde me levas?

CUPIDO

À presença de Apollo;

CLEONTE

Era então certo o que dizia a estátua?

CUPIDO

Só Apollo te poderá conceder o que o pai da tua namorada exige. Estás pronto a acompanhar-me?

CLEONTE

Estou! vamos!

CUPIDO

Vamos Mar... r... cha ... (A orquestra executa uma marcha. Cleonte e Cúpido saem pela gruta, acompanhados por todos os Amores. A gruta desaparece; a cena retoma o seu aspecto primitivo.)

CENA XI

FRUMENCIO, depois AZELIA e MACHUCHO.

FRUMENCIO.

Passou o quarto de hora, (vendo a cena vazia) Hein? Já cá não está! Por onde saiu ele? Querem ver que foi procurar inspiração em baixo da mesa? (levanta o pano da mesa.) Não! E esta? (vendo o papel) Ah (lendo) «-Sr. Frumencio... O estro não aceita imposições...» bem, bem, este primeiro verso não está mal

                         O estro não aceita imposições...

                        Dentro de quinze dias voltarei...

Também não é mal... (continuando a leitura.) «voltarei à sua casa, e submeter-me-ei...» (Declamando.) Mas isto não são versos! (continuando a leitura) »e submeter-me-ei a todas as provas!» É uma carta, uma desculpa! Fugiu! Mas por onde? Quem vai dar o cavaco é a pequena, a quem disse tudo. Ela ai vem!

(AZELIA, entrando, acompanhada por Machucho)

Então, papai?

FRUMENCIO

Menina, esquece-te dele! Não é poeta! Fugiu covardemente, e, ao que parece, pelo buraco da fechadura! Aquele nunca mais cá põe os pés!

AZELIA

Ah! (Cai desmaiada nos braços de Machucho)

FRUMENCIO.

Azelia! minha filha! Desmaiada!...

MACHUCHO.

Isto passa... É um faniquito à toa!...

FRUMENCIO

Não me fales em prosa, Machucho!

MACHUCHO.

Mesmo nestas circunstancias?

FRUMUNCIO.

Em quaisquer circunstancias!

MACHUCHO

                         Pobre menina, coitada!

                         Muito padece quem ama!

                         Ajude-me a carregá-la;

                         Vamos levá-la para cama,

(Levam Azelia desmaiada.)

(Mutação apoteose. Cupido e Cleonte atravessam o espaço, levadas no carro de Vênus, puxado per pombo e acompanhado por uma revoada de Amores.)

ATO II

O cimo do monte Parnaso. A direita, ao fundo, a fachada de um rico palácio de mármore de cores variegadas, todo embutido de pedras preciosas. A esquerda a fonte Castália e um trono, o trono de Apollo, ornado de relva e flores, muitas flores. Paisagem grega ao fundo, em perspectiva. Sol ardente.

CENA PRIMEIRA

RHÉA

(Ao levantar o pano a cena está vazia. Ouve-se o coro dos poetas, cantado nos bastidores.)

CORO INTERNO

                         Nós todos que subimos

                         Ao apolíneo monte,

                         E na Castália fonte bebemos uma vez,

                         Sentimos, sim, sentimos

                         O sacro fogo ardente

                         Que nos escalda a mente

                         E tanto bem nos fez.

                         Um dom não ha mais nobre

                         Que a cândida poesia;

                         As almas enebria

                         Da poesia a voz;

                         É pobre, é mais que pobre

                         Quem, desgraçadamente,

                         No cérebro não sente

                         O que sentimos nós.

(Aos últimos compassos do coro, Rhéa sabe do palácio e fecha a porta à chave. Traz algumas liras de ouro debaixo do braço e um espanador; da cinta pende-lhe um molho de chaves.)

RHÉA.

                         Eu sou, senhores, a famosa Rhéa,

                         Quase uma semideusa,

                         Que Apollo outrora amou e hoje desdenha,

                         Sem que saudades do passado tenha.

                         Os deuses são assim... Apollo, ao menos,

                         Para que os dias meus corram serenos,

                         E, depois de ter sido sua amiga,

                         Eu não vire mendiga,

                         Guarda me fez do hospício dos poetas,

                         E assim vou suportando

                         Minhas magoas secretas,

                         Suspiros a soltar de vez em quando.

                         Este país, da natureza um mimo,

                         Chama-se Fócida. Isto aqui é o cimo

                         Do Parnaso, a montanha alta e famosa

                         Onde ninguém pode falar em prosa.

(Apontando para o palácio.)

                         É dos poetas o hospício

                         Aquele imenso e fulgido edifício

                         De esmeraldas, topázios e safiras,

Onde exerço as funções de limpa-liras.

(Apontando para a fonte.)

                         É curiosa a história

                         Desta fonte marmórea:

                         Apollo é das A rabias;

                         Mais que ninguém tem lábias, 

                         E se alguma coitada lhe respinga,

                         Bem cruelmente o bárbaro se vinga.

                         Era uma vez certa mulher bonita,

                         Que pôs muita alma aflita,

                         Muita cabeça fez andar a roda,

                         Deu que falar, enfim, e andou na moda.

                         Apollo um dia a ver, e, de repente,

                         O coração lhe abrasa amor ardente.

                         Ela, a princípio, finge que concorda,

                         Mas, passado algum tempo, rói a corda.

                         Ele manda trazê-la para o monte,

                         E zás! transforma a pobrezinha em fonte!

                         Que vingança do bruxo!

                         Ser mulher e passar a ser repuxo!

                         Para tornar pungente a represália,

                         O nome dela, o nome de Castália

                         Ficou a fonte. Singular virtude                            

                         Têm estas águas; não é da saúde,

                         Porém quem delas bebe

                         O dom das musas logo ali recebe,

                         Fala em verso quer queira quer não queira!

                         Eu poetisa me fiz dessa maneira!

                         Confesso: não queria,

                         Porque sempre embirrei com a tal poesia;

                         Mas quando aqui cheguei, quiz beber água.

                         Não bebi; abrasei-me em dura frágua!...

                         Mas, no dia seguinte,

                         Apollo, por acidente,

                         Me pôs a língua seca,

                         E tive uma enxaqueca... ai! que enxaqueca!

                         O meu suplício vede:

                         Ou dizer versos ou morrer de sede!

                         Preferi dizer versos... Que castigo!... 

                         Desde então não consigo

                         Falar em prosa vil, parque, sem rima,

                         Não pôde haver ninguém que aqui se exprima,

                         Mesmo quando no sono se acha imerso,

                         Porque, se sonhar alto, sonha em verso!

(Musica.)

                         Apollo, o meu senhor, aí vem de volta,

                         Trazendo as novas musas por escolta,

                         Que sair o não deixam sem que o sigam.

                         Boas pequenas, cada qual mais viva.

                         Elas querem (duvido que o consigam)

                         Que eu volte da reserva para o ativa.

CENA II

RHÉA, APOLLO, AS MUSAS

.

(Apollo e as Musas entram alegremente, trazendo cada qual um guarda-sol aberto.)

COPLAS

APOLLO.

I

                         Se bem que Apollo eu seja,

                         Um deus sadio e forte,

                         E como deus, esteja

                         Livre da morte,

                         Dou cotidianamente

                         Um matinal passeio,

                         Pois se ficasse doente

                         Seria feio.

                         Eis o deus da poesia,

                         Deus da égloga e da ode!

                         Com tamanha galhardia

                         Outro deus haver não pode!

AS MUSAS.

                          Eis o deus da poesia, etc.

APOLLO.

II

                         Não saio sem comigo

                         Levar as musas minhas...

                         Pois correriam perigo

                         Aqui sozinhas...

                         Talvez que escorregassem...

                         Eis todo o meu receio.

                         As musas, se pintassem,

                         Seria feio.

                         Eis o deus da poesia, etc...

APOLLO.

Cessem os cantos! (A Rhéa.) Olá!

RHÉA

Que desejas?

APOLLO.

O serviço está feito?

RHÉA

Não penses nisso: Ha muito que feito está.

       

APOLLO.

Já deste almoço aos poetas?

RHÉA...

Nenhum de almoço precisa quando aspira a doce brisa das madrugadas quietas.

APOLLO.

Manda lavar o cavalo; quero o Pégaso bem limpo; tenho que ir logo ao Olympio

RHÉA

                            Bom. Eu vou mandar lava-lo.

(Saindo, aparte.)

                         Outrora tanta zumbaia!

                         Hoje tanta grosseria!

                         Sorte cruel, sorte ímpia!...

                         Passei de amante a lacaia!...

(sai)

CENA III

APOLLO, as MUSAS.

THALIA.

Coitadinha!

TODAS.

Coitadinha!

APOLLO

.

Que têm vocês, minhas filhas?

THALIA.

Porque desse modo a humilhas?

EUTERPE.

Sorte não há mais mesquinha!

APOLLO.

                         Então querem que eu a deixe?

                         Que a ponha no olho da rua?

                         Ela tem fome? Anda nua?

                         Não! Pois então não se queixe!

ERATO.

RHÉA nunca se lastima

THALIA.

Porém a gente deplora que ande tão por baixo agora quem andou já tão por cima.

APOLLO.

Apanha tais ladainhas porque comigo ficou; nunca ninguém lamentou as outras amantes minhas! e tive muitas! Erbea, Chione, Cleobula, Climene, Corícia, Clizia, Melene, Aria, Coronide, Urea, e quantas, e quantas mais Foram de Apollo esquecidas, sem que as musas condoídas o censurassem jamais! mas basta de lhes dar trela! vou barbear-me, que tenho de ir ao Olympio. Já venho.

(Sai cantarolando.)

CENA IV

As MUSAS, depois RHÉA.

THALIA.

Rhéa, onde estás?

TERPSICORE, vendo entrar Rhéa.

Cá está ela.

RHÉA.

                         Tudo ouvi. Muito obrigada.

                         Mas perdem tempo, meninas:

                         Tenho a mais negra das sinas;

                         Hei de morrer desprezada.

(Suspirando.)

                         Quem já eu fui, e quem sou!

THALIA.

                         Quem já tu foste e quem és!

RHÉA

                         Anda agora aos pontapés

                         Quem já aos beijos andou

                         Ah! se eu soubesse, faria

                         Como fez a bela Isse

                         Que não caiu na tolice

                         De dar-lhe o que ele pedia

                         De pastor sob o disfarce;

                         Ou teria a mesma sina

                         Que teve a ninfa bolina...

POLYMMIA.

Qual foi?

RHÉA.

Preferiu matar-se a dar-lhe ouvidos.

THALIA.

Pateta!

RHEA.

Pateta, não! antes morta...

EUTERPE.

Porém vamos ao que importa: Tens carta do meu poeta?

UMAS.

E do meu?

 OUTRAS.

Do meu?

RHÉA.

Cuidado!

                         Prudência, muita prudência,

                         Porque esta correspondência

                         É contrabando arriscado!

(tirando um maço de cartas da algibeira.)

Todas têm carta.

(distribuindo as cartas a proporção que nomeia as Musas.)

THALIA

Melpomene, Urania, Erato, Caliope...

CALIOPE (que recebe duas cartas)

Duas?

RHÉA.

Exato. Amam-te deusa porfia. Terpsicore, Euterpe, Clio, Polymmia. Pronto! Mais nada!

(à parte.)

Há muita musa assanhada e muito poeta vadio!

THALIA.

Rhéa, muito agradecida!

TODAS.

Muito agradecida, Rhéa

THALIA.

                         Não podes fazer ideia

                         Da vida (se aquilo é vida)

                         Que aqui passávamos, antes

                         Que Apollo te desse o ofício

                         De guarda daquele hospício,

                         Porque, a melhor das amantes

                         Lhe foras.

EUTERPE.

                         Não faças caso,

                         Se, por causar-te vexame,

                         Alguém houver que te chame

                         Onze letras do Paruazo...

CALIOPE

.

                         Mercúrio, filho de Jove,

                         Deus altivo e sobranceiro,

                         É de amores medianeiro...

ERATO.

                         E ninguém há que o reprove!

RHÉA.

                         Pois sim, mas vocês, em paga

                         Do serviço que lhes presto

                        (Seja honesto ou desonesto:

                         Disto agora não se indaga),

                         Prometeram-me que Apollo

                         Brevemente voltaria

                         A ser, como foi um dia,

                         Da minha vida o consolo,

                         E entanto, até agora

                         Estou a chuchar no dedo,

                         Nem parece que tão cedo

                         Torne a ser quem fui outrora.

ERATO

.

Tem um pouco de paciência!

THALIA.

Leiamos, ó companheiras, as costumadas asneiras Da nossa correspondência.

CANTO

As MUSAS.

                         Leiamos! leiamos!

                         Porque só assim

                         A vida levamos

                         Risonha por fim!

I

THALIA (lendo)

«Minha pomba».

ERATO, id.

«Meu benzinho.»

CRIO, id.

«Deusa»

MELPOMENE, id.

«Estrela»

EUTERPE, id.

«Doce Amor»

POLYMNlA, id.

«Meu melindre».

TERPSCORE, id.

«Meu carinho.»

CALIOPE, id

«Meu feitiço.»

URANJA. id.

«Minha flor.»

TODAS

.

I

                         Oh! que grandes beldroegas!

                         Que estupenda coleção!

                         Cada qual é ornais piegas,

                         Cada qual o mais ratão!

II

THALIA (lendo)

«Estou preso!»

ERATO, id.

«Estou cativo!»

CLIO, id.

«Sofro»

MELPOMENE, id.

«Matas-me!»

EUTERPE, id.

«Tem dó!»

POLYMNIA, id.

«Por ti morro! »

TERPSICORE, id.

«Por ti vivo!»

CALIOPE, id.

«Um olhar!»

URANIA, id.

«Um beijo só!»

TODAS.

                         Oh, que grandes beldroegas!

                         Que estupenda coleção!

                         Cada qual é o mais piegas,

                         Cada qual o mais ratão!

THALIA (declamando)

Mas, na forma costumada. Uma entrevista me pede!

EUTERPE.

Da mesma fôrma procede o meu!

TODAS.

E o meu!

RHÉA.

                         Que cambada!

                         Nas entrevistas só pensam!

                         Vocês são flores e estrelas,

                 Mas de falar-lhes, e vê-las,

                          Etecétera e tal... não dispensam!...

(durante esta fala, Apollo tem entrado sem ser pressentido, e apanha as Musas a ler. Furioso, arranca-lhes duas ou três cartas.)

CENA V

RHÉA, AS MUSAS, APOLLO.

APOLLO.

                         Que papeluchos são estes?!...

(depois de examinar.)

                         Por Zeus! cartas de namoro!...

                         Ai! quem teve o desaforo

                         De...? pelos deuses celestes!

(A Rhéa)

Foste tu...

(Tomando a pelo braço.)

                         Infame! Abusas,

                         E comigo te divertes!

                         O Parnaso me pervertes

                         E me debochas as Musas!...

THALIA.

Apollo, não a condenes!

TODAS.

Não a condenes!

APOLLO.

Calada!

(Deixa o braço de Rhéa e empurra-a. Ela fica a um canto da cena)

                         Para punir esta abelhuda,

                         Vou tomar ares solenes!

(Majestoso)

                         Ouve!  Eu, Phebo, vulgo Apollo,

                         Também chamado Tirseu,

                         Salganeo, Epazio, Letreu,

                         E muitos nomes, que engrolo,

                         Como Branchidio, Carino,

                         Clario, Amazonio, Epitropio,

                         Ulio, Telchinio, Parnopio,

                         Astipaleo, Mãrmarino,

                         Dioniosodoto, — o diabo!

                         Tembrio, Ácesio... Não prossigo...

                         Pois, se todos eles, digo

                         Não é tão cedo que acabo!... 

                         Eu, Apollo, cujos feitos

                         Andam por aí contados

                         Em versos aprimorados,

                         Em livros muito bem feitos,

                         Sem perda de um só momento

                         Vou te mostrar, serigaita,

                         Que birimbau não é gaita,

                         E eu sou raivoso e violento!

THALIA (suplicante)

Não a punas!

TODAS

Não a punas!

APOLLO.

        Foi patifaria grossa!

ERATO.

É nossa a culpa!

TODAS.

Só nossa!

APOLLO.

Oh, que Musas importunas! (Enérgico.) Nem Minerva a salvaria!

EUTERPE.

Apollo, sê generoso!

TERPSICORE

.

Sê magnânimo e piedoso!

THALIA.

Lembra-te, Apollo, que um dia...

APOLLO.

Não! não! não! mil vezes não!...

THALIA.

Choremos, ó companheiras, E com as nossas choradeiras armemos ao seu perdão!

(Todas as musas choram)

CANTO

.

As MUSAS.

                         Papai Apollo, perdoa!

                         Não sejas um deus feroz!

                         A culpa dela é ser boa...

                         A culpa temo-la nós.

                         Ai! ai! Ai!

                         Perdão, papai, papai!...

APOLLO

                         Não chorem senão eu choro,

                         E o choro quero evitar;

                         Da divindade o decoro

                         Não me permite chorar.

AS MUSAS.

                          Ai! ai! ai!

                          Perdão, papai! papai!...

APOLLO.

                          Diz um ditado de fama,

                          Que eu ouço há muito citar,

                          Que quem não chora não mama,

                          Mas eu não quero mamar.

As MUSAS.

                          Papai Apollo, perdoa! etc.

APOLLO (declamando)

                          Bom! Bom! bom! está perdoada!

                          Mas da minha vista saia!

(Rhéa afasta-se.)

                       E ela que em outra não caia, Senão, temo-la travada!

RHÉA (saindo)

                          Oh, tirania do fado!

                          Agora não vejo furo

                          De vir a ser do futuro

                          Quem já eu fui no passado!

(sai)

CENA VI

APOLLO, as MUSAS, depois RHÉA.

APOLLO.

Ela não toma juízo,

faço o que um dia já fiz: Transformo-a num chafariz!

THALIA.

Tens falta d’agua?

APOLLO.

        Preciso de uma fonte desse lado, que faça pendente aquela, mas, notem; não terá ela este liquido sagrado: Será unia fonte gasosa, com certas propriedades...

THALIA

Fora a maior das maldades

APOLLO.

Será uma fonte de prosa.

(RHÉA, entrando, entusiasmada e contente)

                         Ele! É ele!... Vi-o! Vi-o,

                         E de alegria estou cheia!

                         A tua raiva, olvidei-a!

                         O meu vexame, esqueci-o!

APOLLO

Viste-o? Quem?

As MUSAS

Quem?

RHÉA.

                         Como é lindo!

                         Como encanta vê-lo! a gente

       Nem mesmo sabe o que sente quando o vê!

(Correndo ao fundo e olhando para dentro)

Lá vem subindo!

APOLLO

Mas quem?

THALIA (que também tem subido e olhado)

Quem? Não imaginas!

TODAS.

Cupido!

APOLLO (depois de se certificar)

                         É certo!

                         Meninas, não estejam perto!

                         Já para dentro, meninas!

TODAS.

Vamos embora?

APOLLO.

E depressa

                         Nada! que ele é bem capaz

                         De querer brincar e... zás!

(Gesto de quem arremessa uma seta.)

                         Só me faltava mais essa!

(Empurra as Musas que saem.)

RHÉA (durante esse movimento)

                         Cupido!... oh, ventura!... oh, dita!...

                         Se ele quisesse, o gaiato,

                         Fazer com que aquele ingrato...

APOLLO (voltando)

Vamos! Some-te, maldita!

(Rhéa sai, enlevada diante de cupido que entra sem olhar para ela vai direito a Apollo.)

CENA VII

APOLLO, CUPIDO.

CUPIDO.

Viva o seu Apollo!

APOLLO.

Olá! que grande ausência, Cupido! Sejas bem aparecido! há muito não vinhas cá!

CUPIDO.

As minhas ocupações não me permitem.

APOLLO.

Brejeiro, que levas o dia inteiro A maltratar corações!

CUPIDO.

Enganas-te!

APOLLO.

Ainda bem!

CUPIDO.

Eu tornei-me um deus pacato: Já corações não maltrato, Já não maltrato ninguém.

APOLLO.

                         Não esperava eu por esta!

                         Tu, outrora tão ferino,

                         Tornares-te um bom menino

                         E divindade modesta!

                         Quem operou tal milagre?

                         Deixaste de ser cruel?

                         O fel transformou-se em mel

                         E em xaropada o vinagre!

CUPIDO.

                         Eu bem quisera, e não posso

                         Recuperar a maldade...

                         O desalento me invade!

                         O mundo já não é nosso...

                         Ha lá na terra mesquinha

                        (De todos aos olhos salta!)

                         Uma potência mais alta

                         Do que a tua e do que a minha!

APOLLO.

                         Amor! que dizes? Blasfemas!

                         Que enorme potência é essa?

                         Vamos! dize-me depressa,

                         Com setecentos mil poemas!

CUPIDO

.

                         Ele é o deus mais adorado:

                         Todo o mundo lhe obedece...

APOLLO.

Por Jove! que deus é esse?

CUPIDO.

É o dinheiro.

APOLLO

Estou calado!

CUPIDO.

COPLAS

I

                         Meu bom Apollo, isto vai mal!

                         Hoje não há no mundo inteiro

                         Força maior que a do dinheiro,

                         Pois ele é o deus universal!

                         Isto nos causa dissabor,

                         Isto deveras arrelia

                         A ti, que és deus da poesia,

                         E a mim, que dizem deus do amor!

II

                         Já ninguém quer saber de mim,

                         Já também tu não vales nada!

                         Ser deus assim só dá massada!

                         Não dá prazer ser deus assim!

                         O que faremos de melhor,

                         Caro colega, é um belo dia

                         Pôr para o lado a poesia

                         E nunca mais cuidar do amor!

(Declamando.)

                         Sim o dinheiro! por ele

                         Perdi minha força imensa!

                         Não tenho seta que o vença,

                         Nem sopro que o esfacele!

APOLLO.

                         Pois comigo é o mesmo caso...

                         Disseste, e Apollo o confirma;

                         É só por honra da firma

                         Que não liquido o Parnaso!

                         Como a fortuna negaças

                         Faz a quem versos escreve,

                         Raro é o tipo que se atreve

                         A pedir as minhas graças!

CUPIDO

                         Tu, afinal, tens razão,

                         Pois na sociedade abjeta

                         Não consta que houvesse um poeta

                         Morrido de indigestão.

                         Mas não falemos em tal;

                         Assunto melhor eu tenho

                         E vou dizer-te ao que venho.

                         Um desgraçado mortal,

                         Que habita certa cidade,

                         Sente no peito um afeto

                         Sagrado, puro, discreto,

                         Por uma doce beldade.

                         Quer esposá-la.

APOLLO.

E depois?

                                               CUPIDO.

                         Mas o pai da rapariga

                         (É sempre a mesma cantiga!)

                         Não quer casados os dois.

APOLLO.

Porque?

CUPIDO.

                         Talvez tu te rias:

                         Não é pra menos o caso...

                         Porque o moço, por acaso,

                         Não sabe fazer poesias.

APOLLO.

                         O pai quer genro poeta,

                         E essa exigência percebo:

                         Faz questão de que o mancebo

                         Tenha a educação completa.

CUPIDO

.

                         O apaixonado galã

                         Teve a lembrança excelente

                         De pedir ardentemente

                         A proteção da mamãe.

APOLLO.

Deverás?

CUPIDO.

                         E Vênus bela

                         Ficou muito satisfeita.

                         Porque viu que dessa feita

                         Alguém se lembrava dela;

                         Quiz ao mancebo agradar

                         E recomenda-lo a ti;

                         Ora aí tens tu porque aqui

                         Vim hoje te incomodar.

APOLLO.

                         Pois não ponhas mais na carta:

                         Tu queres, já se adivinha,

                         Um pouco daquela aguinha. . .

                         Espera aí que vou dar-te.

(Dá dois passos para o fundo.)

CUPIDO (retendo-o)

                         Não! não! não! Comigo veio

                         O protegido de Vênus;

                         De sucia com os meus pequenos

                         Lá mais abaixo deixei-o.

APOLLO.

Pois vai buscá-lo.

CUPIDO

Não nada!

APOLLO.

                         Que venha e não se amedronte

(Apontando para a fonte.)

                         Bebida na própria fonte

                         É melhor que engarrafada!

CUPIDO.

De certo.

APOLLO.

                         E como aqui tenho

                         Um candidato a poeta,

                         Quero que seja completa

                         A patacoada!

CUPIDO.

Já venho.

(Sai.)

CENA VIII

APOLLO, depois as MUSAS, RHÉA, depois CUPIDO

CLEONTE, OS POETAS

APOLLO.

Façamos deste caso o caso mais solene!

(Chamando.)

Terpsicore! Thalia! Erato! Melpomene! Caliope, Euterpe, Clio, Urania!

(Consigo.)

Falta algum?

(Chamando.)

Polynnia! Venham cá! E o Pégazo também!

(Entram Rhéa e as Musas.)

CORO.

                         Porque tanta algazarra?

                         Que foi?... que sucedeu?

                         Ha novidade na barra?

                         Alguém morreu?

                         Que sucedeu?

                         Que aconteceu?

(Continua a música em surdina na orquestra.)

RHÉA

(vindo ao proscênio, confidencialmente, ao público)

O Pégaso também devia estar presente

E a peça o chamariz daria mais cem casas; O empresário, porém, não ponde, infelizmente, encontrar no mercado um cavalo com azas.

APOLLO.

(Subindo ao trono.)

                         Meninas, todo o recato!

                         E não se ponham a rir!

                         Vai ao Parnaso subir

                         Neste instante um candidato.

(Entra Cupido. trazendo Cleonte pela mão, acompanhado pelos amores, que ficam ao fundo, enquanto os dois dão uma volta pela cena, cumprimentando Apollo e as musas.)

CUPIDO.

Tu dás licença?

APOLLO.

Tens toda.

THALIA.

Ah! é Cupido que o traz!

TERPISCORE.

É bem bonito rapaz!

ERATO.

Vou namorá-lo!

CLIO.

Estás doida!

APOLLO.

                         Mancebo, quem quer que sejas

                         Que ao monte Parnaso ascendes,

                         Explica-me o que pretendes

                         E dize-me o que desejas.

CLEONTE.

Meu caro Sr. Apollo, eu. . .

(As Musas e Apollo, ouvindo prosa, dão um grito e fecham os ouvidos.)

APOLLO.

Nem mais uma palavra! A prosa é proibida!

CLEONTE.

Perdão, mas eu...

APOLLO

Silencio! ou já te arranco a vida, ou cem vidas, vê bem! se tiveres cem vidas, ou faço-te o que fiz um dia ao tal rei Midas: Ponho-te orelhas de asno! ou não me chame Apollo, se de Marsias não tens a sorte, e não te esfolo!

As nove Musas—vê! —os seus ouvidos fecham!

AS MUSAS.

Apollo, compaixão!

APOLLO.

Ouve como se queixam!

CUPIDO.

Grande Phebo, consente eu diga o que pretende o pobre quedas leis do verso nada entende.

APOLLO.

Cupido, o que ele quer sei eu, sabem-no as Musas. Portanto, ó Deus do Amor, de ti explicar escusas.

CLEONTE ( À parte.)

Se sabia, porque perguntou?

APOLLO.

Rhéa, ligeira vai dar liberdade; os poetas, e que tragam consigo as liras irrequietas!

(Rhéa vai abrir o edifício do fundo. Entrada de uma multidão de poetes, cantando o coro com que principia o acro.)

1º POETA

(Destaca-se do grupo, que fica ao fundo, vem ao proscênio e declama, apontando para a cúpula do ponto)

                         Eis ali o lugar onde eclipsou-se

                         O meteoro fatal ás regias frontes.

2º POETA

(destacando-se do grupo, arrebatadamente)

                         Eu amo a noite, quando deixa os montes,

                         Bela, mas bela de um horror sublimei

3º POETA.

                         Perdoa, ó virgem, se te amar é crime!

1º POETA

                         Dormes? Eu velo, sedutora imagem,

                         Grata miragem que em um ermo vi.

                         Quem pode ver-te sem querer amar-te?

                         Quem pode amar-te sem morrer por ti?

4º POETA.

                         Eu, Marilia, não sou nenhum vaqueiro.

5º POETA.

                         Luz divina, astro fagueiro.

                         Luz que morre, luz que mata,

                         Luz, mais luz. mais luz que mata...

                         Luz que mata! luz que mata!...

RHÉA (ao público)

Aquele é nefelibata.

2º POETA.

                         Coração, porque te agitas,

                         Coração, porque palpitas,

                         Porque palpitas em vão?

                         Lembras-te. Inah, dessas noites?

1º POETA.

                         É Gonsaga! Maldição!

4º POETA

.

                         Se eu morresse amanhã, viria ao menos

                         Fechar-me os olhos minha irmã com o dedo...

3º POETA.

                         Se de ti fujo é que te adoro, e muito.

                         És bela, eu moço, tens amor, eu medo!

1º POETA.

                         Vai, Colombo, abre a cortina

                         Da minha eterna oficina:

                         Tira a América de lá!

5º POETA

.

                         Minha terra tem palmeiras

                         Onde canta o sabiá.

APOLLO.

                         Basta de dizer asneiras!

                         Ponham-se em linha acolá!

5º POETA.

                         As aves que aqui gorjeiam.

                         Não gorjeiam como lá.

APOLLO.

                         Ah pois vocês não receiam

                         Que eu...? Ora esperem!... Vou já!

(Ergue-se ameaçador. Os poetas correm para os seus lugares)

                         Silencio! cesse a desordem!

                         A meus pés, Clio, te deita!

                         Thalia, fica à direita. . .

                         Ponham-se todos em ordem.

                         Vou fazer poeta este jovem.

                         Ajoelha-te, cidadão!

(Cleonte ajoelha-se aos pés do trono.)

                         A minha resolução

                         Conto que todos aprovem.

                         Musas e poetas que approvam

                         Queiram sentar-se.

(As Musas e os Poetas caem sentados no chão.)

                                    Aprovado.

CUPIDO.

Bravo! está tudo sentado!

RHÉA.

As Musas nada reprovam.

APOLLO (interpondo-se e tomando-lhe a lira)

                         Basta, meu caro senhor!

                         Deixe agora o bem amado

                         Lá onde está descansado.

                         Quero fazer-te um favor

                         Em prova de simpatia.

CLEONTE

A tua bondade é imensa.

APOLLO (a Rhéa)

Vai buscar lá na dispensa uma garrafa vazia.

(Rhéa sai.)

                         Queres consigo levar

                         Uma garrafa desta água?

(Cleonte sorri.)

                         Queres ou não queres?

CLEONTE.

Pago-a

APOLLO.

Não é preciso pagar.

CLEONTE.

                         Apollo enriqueceria

                        (Que esta ideia não afronte)

                         Se, para explorar a fonte,

                         Formasse uma companhia.

                         Se quisesse ser meu socio. . .

(Apollo sorri, encolhe os ombros e dirige-se à fonte.)

CUPIDO

                         Cala-te! que fantasia!

                         Ele é o deus da poesia,

                         Não é homem de negócio.

RHÉA

(entrando com uma enorme garrafa, que entrega a Apollo.)

Pronto, senhor!

APOLLO

(depois de encher a garrafa, entregando-a Cleonte.)

Aqui tens.

CLEONTE

                         Muito obrigado, senhor,

                         Por tão precioso favor!

APOLLO.

Não há de que.

CUPIDO (a Cleonte)

Parabéns.

RHEA (baixo a Cleonte)

                         Se não basta a que aí tens,

                         Levas mais uma garrafa,

                         Ou mesmo um garrafão!

CLEONTE.

Safa!

RHÉA.

Cuidado, que Apollo aí vem

APOLLO

                         Agora, que haja festança!

                         Entre estas musas divinas

                         Temos a musa da dança

                         E as demais são dançarinas.

                         Formem um grupo, meninas!

                         Fiquem quatro deste lado

                         E deste lado outras quatro,

                         Como se faz no teatro...

(Depois de subir ao trono.)

Terpsycore, anda, um bailado! 

CORO GERAL.

                         Um bailado!

                         Bem lembrado!

                         Que boa lembrança!

                         Não há que dizer!

                         Dancemos, que a dança

                         Nos causa prazer!

(Bailado. Mutação. Apoteose à Poesia)

ATO XII

O jardim de Frumencio. Á esquerda, a entrada da casa. Dons bancos da relva. É meio dia.

CENA PRIMEIRA

(AZELIA, sentada, pensativa, em um dos bancos de relva, à direita; depois, FRUMENCIO, MACHUCHO.)

AZELIA.

«Dentro de quinze dias voltarei», disse ele... Termina hoje esse prazo, e... e não voltou ainda voltará?... Como estou ansiosa!... com que violência me bate o coração!... que frêmito me percorre o corpo inteiro!... Ao menor rumor, parece-me vê-lo chegar, dizendo-me:— Azelia, aqui me tens; sou teu, és minha!...

COPLAS

I

                         É hoje o derradeiro dia...

                         Cleonte ainda não voltou!

                         Com ele o riso da alegria

                         Dos lábios meus se afugentou.

                         Mas ainda estou bem confiante:

                         De novo a Vênus invoquei,

                         E espero, enfim, que a todo instante

                         O meu amante aqui verei.

II

                         Bem significa esta demora

                         Que o dono do meu coração

                         Não pôde conseguir lá fora

                         De fazer versos o condão;

                         Porém seria uma desgraça

                         Se não me aparecesse mais...,

                         Faça ele versos ou não faça,

                         Eu de outro não serei jamais!

(Frumencio sai de casa, acompanhado por Machucho)

FRUMENCIO.

Ali a tens mais triste do que a rola aflita!

MACHUCHO.

                         Pobre moça! tem chorado

                         Como ainda ninguém chorou!

                         Hoje o prazo finaliza

                         Que o namorado marcou...

FRUMENCIO.

Achas que ele volte?

MACHUCHO.

                         Neste mundo só não volta

                         Quem a canela esticou;

                         Para sempre, eternamente,

                         Nada na terra passou.

                         Tive um dia um reumatismo

                         Que muito me apoquentou,

                         E no fundo de uma cama

                         Quatro meses me atirou.

                         Um curandeiro famoso

                         Finalmente me curou;

                         Durante cinco ou seis anos

                         A doença me deixou; 

                         E um dia, quando completamente

                         Esquecido ficou,

                         Eis que inopinadamente

                         O reumatismo voltou!

FRUMENCIO.

Tu não tens outra rima senão em ou?

MACHUCHO

                         E, se volta um reumatismo

                         Que não se fez esperar,

                         É mais natural que deva

                         Um namorado voltar.

FRUMENCIO.

Sei lá!

MACHUCHO

.

                         Coisas mais extraordinárias

                         Não nos fartamos de ver;

                         Pode ser que o moço volte,

                         Tudo pode acontecer.

FRUMENCIO.

        À parte, enquanto se encaminha para Azelia.

Tem muito talento este diabo! (Alto a Azelia.) Então, menina?

AZELIA (estremecendo)

Ah! (Erguendo-se) Papai!

FRUMENCIO.

Ainda não te desenganaste? Duvido que o teu Cleonte apareça, assim como sempre duvidei que desaparecesse, estando as portas fechadas!

AZELIA.

       

O papai está enganado: se as portas estivessem fechadas, ele não sairia sem as abrir.

FRUMENCIO.

Pode ser. Eu naquele dia estava com a musa, e quando estou com a musa, não respondo por mim Uma das portas ficou talvez mal fechada (Tirando um papel no bolso.) Por falar em musa: queres ouvir uma quadra que fiz esta noite?

AZELIA (indiferentemente)

                           Sim, senhor.   

FRUMENCIO.

É o princípio de um soneto oferecido a mim mesmo. (Lê)

                        «Honra a poesia, a deusa altiva e augusta,

                         Que do infeliz a melancolia consola

                         Cercando a vida de uma auréola.»

MACHUCHO (emendando)

Auréola.

FRUMENCIO.

Auréola é liberdade poética. (Lendo.)

                        «Cercando a vida de uma auréola,

                         E dando-lhe uma fé muito robusta»

Estes foram feitos sem o adjutório do Machucho.

MACHUCHO (à parte)

Está se vendo!

FRUMENCIO (a Machucho)

Que dizes deste quarteto?

MACHUCHO

                         Tem um dos versos comprido

                         Que nem um dia sem pão;

                         Mas como outro verso é curto,

                         Ha certa compensação.

FRUMENCIO.

Minha filha, isto de fazer versos fia fino, não é para quem quer, mas para quem pode! A poesia não é coisa que se aprenda assim sem mais nem menos! Enfim, se o rapaz prometeu voltar, lá tinha as suas razões...

AZELIA.

Ah, papai, se soubesse quanto sofro!

(Machucho suspira ruidosamente.)

FRUMENCIO.

Também tu suspiras?

MACHUCHO.

                         Eu acho bem razoável

                         De sua filha a quizília:

                         Não é preciso ser poeta

                         Para ser pai e de família!

FRUMENCIO.

Temos outra!

MACHUCHO.

                         Sonetos, décimas quadras

                      —Concorde, ó flor dos patrões! —

                         Não dão a ninguém aquilo

                         Com que se compram melões.

FRUMENCIO.

Pois tu de que vives?

MACHUCHO.

                         De fazer versos, é exato!

                         Que descoberta, ora bolas!

                         Mas, se não fosse o patrão,

                         Eu estava a pedir esmolas!

FRUMENCIO.

Péssima quadra, Sr. Machucho! Aquele “ora bolas” é uma muleta! Uma muleta e uma insolência!

AZELIA.

É escusado, Machucho! Por mais muletas que ponhas nos teus versos, o papai não nos atende! Ninguém o demove! quer um genro poeta!... (Chora.)

MACHUCHO.

                         Daquele pranto sincero

                         Piedade o patrão não tem!

                         A menina chora tanto,

                         Que me faz chorar também!

FRUMENCIO.

Pois chora, chorem ambos, mas deixem-me em paz! Vou ver se componho o segundo quarteto.

(Senta no banco em que Azelia esteve sentada, tira um lápis do bolso e começa a compor, sem dar atenção ao que se passa.)

AZELIA

(chamando Machucho à parte, comum gesto)

Salva-me! Vê se te lembras de um estratagema qualquer!

MACHUCHO.

                         Estratagema não vejo,

                         Estratagema não há!

AZELIA.

Podes falar em prosa!

MACHUCHO

.

                         Que quer, menina? o costume...

                         Eu não vejo estratagema...

                         Estratagema não vejo!

AZELIA.

Fala em prosa, teimoso!

MACHUCHO.

Desculpe: é o ritmo que me persegue!...—Não ha estratagema possível; o patrão, quando embirra numa coisa, é pior que um sendeiro velho!

AZELIA.

Isso agora e prosa de mais! Experimenta! Tens tanta influência sobre ele...

MACHUCHO.

Distingamos: tenho alguma influência sobre o poeta, não sobre o pai de família...

AZELIA.

É que não te interessas...

MACHUCHO.

Não me interesso? Permitam os deuses que o marido da menina não saiba fazer versos

AZELIA.

Porque?

MACHUCHO.

Em havendo um versejador na família, seu pai dispensa os meus serviços. (contemplando Frumencio, que procura uma rima olhando para o céu.) Olhe para aquilo! ... A rima não sai... Está aqui, está reclamando o fórceps!

AZELIA.

Ainda se Cleonte me houvesse escrito uma carta!

MACHUCHO (com um pulo)

Ah! por falar em carta! Que cabeça a minha!... 

(Tirando uma carta do bolso.) Recebi ontem está para o patrão, e me esqueci de lhe entregar! Fiquei com ela na algibeira! Se a menina não fala...

AZELIA (tomando-lhe a carta)

Deixa ver! (Examinando a letra.) Não é de Cleonte... (Restitui-la)

MACHUCHO.

Vou pregar uma peta inocente...

(Aproximando-se de Frumencio.)

                         O patrão, neste instantinho

                         Um portador aqui entrou,

                         Que, depois de três mesuras,

                         Esta carta me entregou,

                         Dizendo que no seu bolso

                         Esquecida ontem ficou.

FRUMENCIO.

Temos outro chorrilho de rimas em ou?

MACHUCHO

.

                         De traze-la ao seu destino

                         Só agora se lembrou.

FRUMENCIO.

Não vá ser coisa urgente! (Erguendo-se e abrindo a carta.) É do comendador Andronico! (Lendo). Que vejo! o comendador avisa-me de que hoje, ao meio dia, vem agradecer-me pessoalmente a ode que improvisei para comemorar o seu aniversário natalício!

MACHUCHO.

Ao meio dia? Estamos na hora!

FRUMENCIO.

E eu que não me preparei para recebe-lo, a ele, o homem mais rico desta cidade, um homem que não sai de casa senão em palanque de ouro e acompanhado por numeroso séquito!...—Minha filha, peço-te que o não recebas com essa cara de tudo me fede... Sorri... faze-te bela...

AZELIA.

Porque?

FRUMENCIO.

Ele é solteiro e não é velho... Se te quisesse para esposa, serias a mulher mais venturosa do mundo!...

AZELIA.

Oh! não me consta que o comendador Andronico faça versos...

FRUMENCIO.

Não os faz, é verdade, mas tem tanto dinheiro que uma coisa compensa a outra...

AZELIA.

Ora!

FRUMENCIO.

E, de mais, quem possui uma fortuna daquelas, pode ser tudo quanto quiser, inclusive poeta!

AZELIA.

Não, papai! não há riquezas no mundo que me façam esquecer o meu Cleonte!

FRUMENCIO.

O teu Cleonte! Por onde a estas horas andará o teu Cleonte!

(Musica. Rumor fora)

MACHUCHO (olhando para fora)

É ele!...

AZELIA (alegre)

Quem Cleonte?

MACHUCHO.

Não; o comendador Andrônico.

AZELIA.

Ora!

FRUMENCIO

Cara alegre, menina!

AZELIA.

É impossível, papai! Quer saber de uma coisa?

O melhor é meter-me no meu quarto! (entra em casa)

FRUMENCIO.

Azelia! menina! ouve!... — Foi-se!

MACHUCHO.

                         Deixe-a ir, senhor meu amo!

                         Quem tem triste o coração

                         Precisa, como é sabido,

                         De silêncio e solidão.

FRUMENCIO.

Do que ela precisava sei eu!

CENA II

FRUMENCIO, MACHUCHO, ANDRONICO.

HOMENSE MULHERES DA COMITIVA DE ANDRONICO.

(Andrônico entra sentado num palanquem, carregado por quatro homens, e precedido dos coros.)

CORO.

                         O comendador Andrônico

                         Aqui está num palanquem

                         De ouro, prata, madrepérola,

                         E almofadas de cetim.

FRUMENCIO

(indo ao encontro de Andrônico e dando-lhe a mão para sair do palanquem)

                         Caro senhor

                         Comendador,

                         Sinto-me honrado!

                         O vê-lo cá

                         Prazer me dá!

                         Muito obrigado!

ANDRONICO (no proscênio)

                         Eu sou muito rico!

CORO.

                         Ele é muito rico!

ANDRONICO.

                         Muitíssimo rico!

CORO.

                         Muitíssimo rico!

ANDRONICO.

                         Outro como eu não pode haver!

CORO.

                         Não pôde haver!

ANDRONICO.

                         Mas nada tem que agradecer,

                         Porque ...

CORO.

                         Porque . . .

ANDRONICO.

                         Eu superior não fico

                         Ao senhor em posição:

                         O senhor também é rico

                         De talento e inspiração!

CORO.

                         Apoiado! é muito rico

                         De talento e inspiração!

                         O comendador Andrônico

                         Aqui veio em palanquem

                         De ouro, prata, madrepérola

                         E almofadas de cetim!

ANDRONICO.

Meu caro Sr. Frumencio, venho expressamente agradecer-lhe os magníficos versos que me ofereceu no dia dos meus anos. (à parte, procurando com os olhos.) Não a vejo!

                                          FRUMENCIO.

                                                 

Ora, comendador, um simples improviso...

ANDRONICO.

Pois sim, mas improvisos daqueles não se fazem com facilidade: exigem muitos dias de trabalho! ( à parte.) Onde estará ela?... (alto.) Ha cinco anos consecutivos que o senhor me felicita em verso, infalivelmente, no dia do meu aniversário natalício; mas com franqueza: os seus versos deste anuo são muito superiores aos dos anos passados... tanto assim que é esta a primeira vez que lhes venho agradecer... (à parte.) Estou roubado!...

FRUMENCIO.

Quanta honra, comendador!

ANDRONICO.

Oh! aquela primeira estrofe:

No carro seu doirado a roxa aurora...

(Que beleza! que colorido! parece ver-se o carro da aurora rolando entre nuvens!)

Vem dando aos horizontes rubra cor...

(O pior é que na manhã do dia dos meus anos choveu a cântaros!)

Em dia tão gentil se comemora...

TODOS (recitando)

O aniversário do comendador!

ANDRONICO.

Ora ai tem! eu, um homem rico, riquíssimo, podre de rico, um homem que é proprietário da quinta das Rosas, que vale um milhão a olhos fechados, um homem que não tem absolutamente tempo de pensar em outra coisa que não seja a mobilização do seu dinheiro, eu... decorei os seus versos, e a minha comitiva também os decorou!

FRUMENCIO.

É uma glória para mim!

MACHUCHO (À parte)

Sic vos non vebis...

ANDRONICO.

Mas... como se explica, meu caro Sr. Frumencio, que os seus versos de antes fossem de pé-quebrado, e agora sejam tão perfeitos, obedecendo a todas as regras da arte? (Frumencio troca um olhar com Machucho.) Já sei... O senhor estudou... aperfeiçoou-se... completou o que lhe faltava... (Aparte.) E ela sem aparecer!

FRUMENCIO.

Fiz o que pude... puxei pelo estro...

ANDRONICO

.

Entretanto, como nesta boa terra abundam as más línguas, dizem —ora de que se haviam de lembrar! dizem por aí que o senhor chamou para o seu serviço um poeta, e este o socorre todas as vezes que...

FRUMENCIO (atalhando)

É falso, comendador, é falso! Verdade seja que tenho em casa aquele homem que, segundo me consta, faz versos..., mas nunca os vi nem ouvi... (Passando) não é assim, Machucho?

MACHUCHO

                         Sim! o meu estro mesquinho

                         O alado Pégaso monta...

FRUMENCIO, baixo

Fala em prosa, diabo!...

MACHUCHO.

                         Mas eu não vendo os meus versos:

                         Eu faço-os por minha conta.

ANDRONICO

Bravo!...

FRUMENCIO (apoiando)

É Só os faz por conta própria. Quiz um dia que ele me cedesse uma estrofezinha: não houve meio de fazer negócio comigo! Não é assim, Machucho?

(Machucho vai responder; Frumencio tapa-lhe a boca.) Bom! Cala-te e vai chamar minha filha!

ANDRONICO, à parte.

Sua filha! Finalmente... (Alto.) Onde está ela?

FRUMENCIO.

No seu quarto, (A Machucho.) Dize-lhe que venha cumprimentar o Sr. comendador Andronico.

ANDRONICO.

Perdão, o contrário: que venha para ser cumprimentada. (Machucho vai falar; Frumencio tapa-lhe a boca e empurra-o para dentro de casa.)

FRUMENCIO.

Cala-te! Vai buscar a menina! (Machucho sai.)

CENA III

Os mesmos, menos MACHUCHO, depois AZELIA, MACHUCHO.

ANDRONICO

Dizem-me que sua filha é uma beleza excepcional... Conheci-a pequena... deste tamanho... depois, nunca mais a vi...

FRUMENCIO.

Oh! uma beleza excepcional!... É moça... é como as outras...

ANDRONICO.

Não é o que me dizem todos! Ouço falar dela cora um entusiasmo fora do comum... Entretanto, o senhor... não se pode dizer que seja um bonito homem.

FRUMENCIO.

Limito-me a ser um homem simpático.

ANDRONICO.

Tem cara de desmamar crianças... (Á comitiva.) Não acham?

TODOS.

Achamos.

ANDRONICO.

E a filha é de uma beleza rara! A natureza tem destes caprichos inexplicáveis!

FRUMENCIO.

A pequena saiu à mãe: a minha defunta era um pancadão. —Ela aí vem: o Sr. comendador- vai julgar por seus próprios olhos! (indo buscar pela mão Azelia, que entra, acompanhada por Machucho.) Vem, minha filha; O Sr, comendador Andronico deseja conhecer-te.

ANDRONICO (que se aproxima de Azelia e fica extasiado)

Ah!...

AZELIA, admirada.

Que é?

ANDRONICO

Oh!...

CONCERTANTE

ANDRONICO

                         Oh. que prodígio! oh, que surpresa!

                         É, na verdade, um mago encanto!

                         Eu esperava uma beleza,

                         Porém não esperava tanto!

                         Que formosura deslumbrante!

                         Quem já viu rosto mais formoso?

                         Eu quero já, no mesmo instante,

                         Ser seu marido venturoso!... 

JUNTOS

ANDRONICO E os COROS

                         Que formosura deslumbrante!

                         Quem já viu rosto mais formoso?

                         Eu quero já! (no mesmo instante) Ele quer já!

                         Ser seu marido venturoso!

AZELIA

                         Céus! ele achou-me deslumbrante!

                         Achou o meu rosto o mais formoso!

                         E quer já, já, no mesmo instante,

                         Ser meu marido venturoso!

FRUMENCÍO E MACHUCHO

                         Bravos! achou-a deslumbrante!

                         Achou o seu rosto o mais formoso,

                         E quer já, já, no mesmo instante,

                         Ser seu marido venturoso!

ANDRONICO (baixo a Frumencio)

O senhor tem em casa alguma coisa que se beba?

FRUMENCIO

A minha adega está bem guarnecida.

ANDRONICO.

Então mande dar de beber a toda aquela gente... É um pretexto para ficarmos sós, o senhor, sua filha e eu.

FRUMENCÍO, à parte.

Este homem é o zas-trás-nó-cego! (Alto.) Machucho, leva lá para dentro estas senhoras e estes senhores da comitiva do comendador... Oferece-lhes alguma coisa que se beba. (Machucho vae para responder: Frumencio tapa-lhe a boca.) Cala a boca! (Alto) queiram acompanhar o Machucho!

MACHUCHO

                         Venham comigo, senhores,

                         E creiam que a pinga é boa!

FRUMENCIO (à parte)

Ele a dar-lhe!

MACHUCHO

                         Não tem espinhas nem ossos,

                         E como um néctar escoa

                         Pelos esôfagos nossos!

TODOS

Bravo! Bravo!...

ANDRONICO

                         Vão! Vão! (saem Machucho e os coros, repetindo:)

                         O comendador Andronico

                         Aqui veio em palanquem

                         De ouro, e prata, madrepérola,

                         E almofadas de cetim!

CENA IV

FRUMENCIO, ANDRONICO, AZELIA.

FRUMENCIO

Vão limpar-me a adega! (A Andronico, que está contemplando Azelia, estagiado) Então? quer ficai no jardim?

ANDRONICO

Quero. Estou bem aqui, gozando a frescura destas sombras.

FRUMENCIO

Nesse caso, sentemo-nos.

ANDRONICO

Pois sentemo-nos.

FRUMENCIO

Senta-te, menina! (dentam-se os três. Pausa.) Peço-lhe mil desculpas, comendador, por não o haver recebido com uma festa. O seu aviso só me foi entregue no momento da sua chegada. Por sinal que ainda aqui está.

ANDRONICO.

Foi melhor assim; não se meteu em despesas.

FRUMENCIO.

Isso era o menos.

ANDRONICO

Mas vamos ao que importa, e não parcamos tempo, que o tempo é dinheiro. (pausa.) Sr. Frumencio... minha senhora... eu sou um homem franco.

FRUMENCIO.

Vê-se! (À parte) Até me chamou cara de desmamar crianças!

ANDRONICO

Franco e resoluto! Quando resolvo qualquer coisa, é anda mão enfia dedo!

FRUMENCIO

.

Zás trás nó cego!

ANDRONICO.

É a tal sistema que devo ser o homem mais rico desta cidade, e proprietário da celebre quinta das Rosas. Arrependi-me todas as vezes, muito poucas, em que refleti dez minutos antes de fazer qualquer coisa... Por isso, declaro, sem o menor circunlóquio nem a mais ligeira hesitação, que está senhora me deslumbrou e que me sinto apaixonado por ela!

AZELIA.

Apaixonado?! Já?!

ANDRONICO.

Já, sim Senhora! Oh! eu vim preparado para esta impressão violenta! Tinham-me pintado e não me enganaram como a realização perfeita do meu ideal. Esta visita foi motivada apenas pela curiosidade febril, pela ansiedade de vê-la.

FRUMENCIO

Então os meus versos...?

ANDRONICO

Os seus versos foram um mero pretexto. São muito bonitos, não nego, principalmente aquele do carro...

FRUMENCIO

No carro seu doirado a roxa aurora...

ANDRONICO

São muito bonitos, mas eu poderia agradece-los por um simples bilhete de visita.

FRUMENCIO

E eu a pensar que ...

ANDRONICO

Minha senhora, se quiser ser minha esposa, é sua a mão do homem mais rico desta cidade, e é sua a quinta das Rosas!

(longa pausa.)

FRUMENCIO

Que dizes, minha filha?

AZELIA

O papai bem sabe que o meu coração já está dado.

ANDRONICO

Dado?! Dado a quem?...

FRUMENCIO

Dado é um modo de dizer.... Está, quando muito, emprestado...

       

AZELIA

Está dado e muito bem dado.

FRUMENCIO

Não poderias dá-lo sem o consentimento de teu pai. — Comendador, a coisa é esta: Ha dias apareceu-me um rapaz, que vinha, autorizado por ela, pedi-la em casamento. Eu disse-lhe que só daria minha filha a um poeta.

ANDRONICO

E ainda está nesse propósito?

FRUMENCIO

Abro uma exceção para o comendador.

ANDRONICO

Bom! Continue...

FRUMENCIO

Ele respondeu-me... 

ANDRONÍCO (interrompendo)

Sim, porque eu confesso que para poeta nunca tive o menor jeito.

FRUMENCIO

Já sei. Ele respondeu-me que estava no caso, mas eu vi logo que não estava, e impus-lhe a condição de me fazer o pedido em verso.

ANDRONÍCO

Aí está uma condição que eu não aceitaria.

FRUMENCIO.

Já sei. Fechei-o numa sitia, dando-lhe um quarto de hora para cumprir essa exigência; mas quando o procurei, tinha desaparecido, deixando-me uma carta...

ANDRONÍCO

Em verso?

       

FRUMENCIO

Qual verso! Em prosa chilra! —... na qual prometia estar de volta no fim de quinze dias, e pronto para sujeitar-se a todas as provas.

ANDRONÍCO

E esses quinze dias não se passaram ainda?

AZELIA (prontamente)

Ainda não senhor; é hoje o décimo quinto.

ANDRONÍCO (animado)

Ah ! é o décimo quinto? Nesse caso esperarei também... esperarei até à meia noite... A senhora não sentirá demasiado a troca, lembrando-se...

AZELIA.

De que o senhor é o homem mais rico desta cidade, e dono da quinta das Rosas, já sei.

ANDRONICO

Não é isso... lembrando-se de que cheguei solteiro aos quarenta e cinco anos, por não haver encontrado até hoje mulher nenhuma que me produzisse o efeito que a senhora me causou quando transpôs aquela porta... Trago-lhe-um coração virgem, que nunca foi dado, nem emprestado...

COPLAS

I

                         Eu tenho já quarenta e cinco invernos

                         E nunca o amor comigo se ocupou;

                         Porém o fogo desses olhos ternos

                         Meu coração agora despertou.

                         Premeie esta paixão doce e discreta,

                         Aceite o noivo que do céu lhe cai!

                         Não queira ser esposa de um poeta...

                         Que poeta em casa basta o Sr. seu pai

II

                         Meu coração é um capital intacto,

                         Que jamais, felizmente, desfalquei;

                         Embora estranho lhe pareça o facto,

                         Todos os juros capitalizei!

                         Portanto, preso nesses olhos puros,

                         Nesse belo sorriso divina!

                         Eu lhe ofereço capita! e juros

                         E não lhe peço mais que o capital...

AZELIA.

Diz o Sr. comendador que esperará até à meia noite. Bom. Se até à meia noite Cleonte não aparecer, tomarei amanhã uma resolução...

ANDRONICO.

No meu vocabulário não existe a palavra «amanhã.»

AZELIA.

O meu é mais completo.

FRUMENCIO, à parte.

Esta pequena dá um pontapé na fortuna!

CENA V

Os mesmos, MACHUCHO, depois CLEONTE.

MACHUCHO, entrando a correr.

                         Da menina o namorado

                         Perdeu de certo a razão:

                         Vem correndo azafamado,

                         Com uma garrafa na mão!...

Os TRÊS (erguendo-se)

Com uma garrafa?

CLEONTE (fora)

                         Onde está?... onde está ela?...

                         Quero ver a minha bela...

(Entra acorrer. Para ao ver Azelia, que lhe sorri; solta um suspiro de alívio e dirige-se a Frumencio)

                         Qual saudoso passarinho

                         Que do abandonado ninho

                         Busca, no espaço, o caminho,

                         Senhor Frumencio, aqui estou!

                         Um genro poeta queria?

                         Pois bem, senhor! hoje em dia

                         Já tenho o dom da poesia

                         Com que Apollo me dotou!

(Olham-se todos boquiabertos, sem saber o que pensar) 

                         Eu trago um estro luzente!

                         Eu trago um estro potente!

                         Eu trago um estro esplendente!

                         Eu trago um estro titã!

MACHUCHO (Frumencio)

                         Traz muitos estros na mente

                         E uma garrafa na mão!

FRUMENCIO

(muito interessado, arredando Machucho com um gesto)

Espera, homem!

CLEONTE

                         Quando os meus versos vomito.

                         Quando despeço o meu grito,

                          Abalo todo o infinito,

                          Comovo toda a amplidão!

MACHUCHO

                          Ele é poeta, tenho dito,

                          E hiperbólico, patrão!

FRUMENCIO (repreensivo)

Oh!...

ANDRONICO (à parte)

Cai numa casa de doidos!

CLEONTE (com lirismo)

                         Cupido levou-me ao colo

                         Aos pés do divino Apollo,

                          E eu pedi-lhe a inspiração!

                          Por um mágico processo

                          Fiquei poeta!

(Correndo para Azelia)

                          Outra vez peço

                          Esta alva e mimosa mão!

(Beija-lhe a mão e fala-lhe baixo, Frumeneio sai pouco a pouco de sua estupefacção.)

MACHUCHO (baixo a Frumencio)

                          Senhor meu amo, uma ideia

                          De repente me ocorreu...

FRUMENCIO.

Dize qual foi... em prosa.

MACHUCHO. Id

                          Em prosa, senhor meu amo!

                          A prosa é terrena e vil!

FRUMENCIO.

Em prosa, sim! Pois hei de estai sempre a ouvir versos? Tomei agora uma barrigada deles, que me empanturrou!

MACHUCHO, id.

É que pode muito bem ser que aquilo viesse estudado de casa... Em quinze dias decora-se a Ilíada!...

FRUMENCIO, id.

Sim, senhor! bem lembrado! foi pena não ser em verso! (Alto, a Cleonte.) Pscio! ó amiguinho! Mais devagar! Faça favor de fazer já um improviso!

CLEONTE (com volubilidade)

                         Oh!  pois não! é o que exigir!

                         Rimo com facilidade,

                         Metrifico sem vontade,

                         Versejo sem me sentir!

                         É o que quiser! Redondilhas,

                         Quadras, tercetos, quintilhas...

                         É só por boca pedir!

AZELIA

Mas não te podes exprimir senão em verso?

CLEONTE

                         Não posso! Nem me recorda

                         Como em prosa já falei!

                         Meu doce amor, tenho corda

                         Por quanto tempo não sei!

FRUMENCIO (a Andronico)

Parece-me que o rapaz é poeta e poeta às direitas!

ANDRONICO.

Estou abismado... e resignado: é um rival invencível!

FRUMENCIO.

Façamos uma experiência decisiva. Oh, seu Cleonte, faça favor de glosar um mote! (A Andronico.) Dê-lhe um mote, comendador! Quero ver como se sai!

ANDRONICO

O mote aí está: “Quero ver como se sai’’

CLEONTE (repetindo)

                         Quero ver como se sai!

(Depois de uma ligeira pausa, bate na testa)

                         O amor é uma cidadela

                         Onde eu entrei facilmente,

                         E fiquei, preso e contente,

                         Nos braços da minha bela;

                         Mas como, se me quer ela,

                         Não me deseja seu pai,

                         Em fugir do que me atrai

                         Meu empenho se concentra;

                         Eu já sei como se entra,

                         Quero ver como se sai!

FRUMENCIO (entusiasmado)

Bravo! Bravo! Lança-te nos meus braços, meu genro! (Abraçado a Cleonte.) Desculpe, comendador, mas aquela décima vale mais que a sua quinta! (Consigo.) E lembrar-me de que eu quiz vender minha filha! Azelia, dá-me a tua mão! (Pega, por engano, na mão de Machucho,) Então! Temos brincadeira, seu poetastro! (Toma a mão de Azelia) Cleonte, dá-me a tua mão! (pega, por engano na mão de Andronico.) Adeus, viola! (Toma a mão de Cleonte e une à filha) Casem-se e sejam muito felizes. Tenho pena de não lhes dizer isto em bonitos versos...

MACHUCHO, (insinuando-se)

Se o patrão quiser...

FRUMENCIO (secamente)

Não. (Continuando) tenho pena de não poder empregar aqui essa linguagem maviosa como os sons de longínqua flauta, que suspira uma endeixa repassada de amor e melancolia, branda como o sopro da brisa que cicia por entre os arbustos orvalhados pelo crepúsculo matutino... Vai em prosa, meus filhos... Vai em prosa poética.

MACHUCHO (à parte)

À vista disto e dos autos, vou tratar de arrumai a trouxa! (Sai)

CENA VI

FRUMENCIO, ANDRONICO, AZELIA, CLEONTE

.

FRUMENCIO (apontando para a garrafa)

Que traz você aí?

CLEONTE.

                         Adivinhe, se é capaz,

                         O que esta garrafa traz!

FRUMENCIO (tomando a garrafa)

Parece água pura...

ANDRONICO, id.

Deixe ver. Nisto de bebidas brancas posso falar de cadeira. (Depois de cheirar) É. Cheira a água.

CLEONTE (tomando a garrafa das mãos das mãos de Andronco)

                         Água da Castália fonte!

                         Trouxe-a do apolíneo monte!

                         Sogro e amigo, um gole beba,

                         E o dom das musas receba!

FRUMENCIO (hesitando)

Olhe não vá fazer mal...

CLEONTE.

                         Beba um gole bem taludo,

                         E me dirá se o iludo!

FRUMENCIO

(Toma a garrafa, hesita ainda, bebe afinal, e fica inspirado, andando a passos largos de um lado para outro)

                         No meu cérebro se opera

                         Singular transformação!

                         É meu miolo cratera,

                         Minha cabeça vulcão!...

AZELIA (assustada)

O papai ficou maluco!

(Cleonte tranquiliza-a com um gesto)

FRUMENCIO

                         Será isto uma quimera?

                         Será isto uma ilusão?

                         Minha filha, bebe um gole...

AZELIA

Eu?

FRUMENCIO.

                         Não tenhas medo! Vai!

(Azelia bebe e põe a garrafa sobre um dos bancos.)

                         Muito bem! Agora engole.

                         Tal qual engoliu teu pai!

AZELIA.

(com os mesmos sintomas do pai, porém com lirismo)

                         Ah! meu pai, que estranho gosto!

                         Que suave sensação!

                         Que sonho delicioso!

                         Que encantadora visão!

FRUMENCIO (abraçando Cleonte e Azelia)

                          Filhos, por este sistema

                          Poderão dar-me vocês

                          De vez em quando um poema...

CLEONTE.

                          E um poeta de quando em vez...

ANDRONICO (à parte)

Sou muito curioso... Sempre quero ver se realmente... (Bebe pela garrafa, sem que os outros vejam)

CLEONTE

(enquanto Andronico bebe e tem os sintomas característicos)

                          A garrafinha guardada

                          Com mil cuidados vae Ser:

                          Toda a nossa filharada

                          Versinhos lia de fazer

ANDRONICO

(explodindo, como se enlouquecesse de repente)

                          Que é isto? que sinto? que coisa esquisita!

                          Que delicioso, que estranho calor!

                          Nos estos da febre meu peito palpita!

                          Sou mais um poeta que morre de amor!

CLEONTE.

                          Bebeu!...

AZELIA

                          Bebeu!...

ANDRONICO

.

                          Fui tentado...

                          Que é isto? não me dirá?...

FRUMENCIO

                          Um poeta mais abonado

                          (Sinal de dinheiro.)

                          No mundo inteiro não há!

ANDRONICO

                           Este liquido me afoga!

                           Tenho cá dentro uma brasa!

                           Onde se vende esta droga?

                           Eu quero ter delia em casa!...

CENA VII

FRUMENCIO, ANDRONICO, AZELIA, CLEONTE, MACHUCHO,

depois a COMITIVA DE ANDRONICO.

AZELIA

(a Machucho que entra com uma trouxa na mão.)

                           Não sabes? eu sou poetiza...

                           Sei a linguagem da brisa,

                           Do passarinho, da flor...

                           Meu Cleonte, de ora avante

                           Serei muito mais amante,

                           Amar-te-ei com mais fervor!

MACHUCHO (pasmado)

Hein?

FRUMENCIO, a Machucho

                           Faço versos de improviso!

                           Não posso em prosa falar!

                           De álter-ego não preciso!

                           Machucho, podes rodar!

MACHUCHO, id

Deuses imortais!

ANDRONICO (a Machucho)

                           Também eu, por abelhudo,

                           Da tal garrafa provei!

                           Agora lá se vai tudo

                           Quanto na praça ganhei!

MACHUCHO (a Cleonte)

                           Mas que é isto! De que meios

                           Se serviu, senhor Cleonte,

                           Para inspirai-os?

CLEONTE.

                           Man dei-os

                           A todos beber da fonte!

ANDRONICO.

                           Quer o destino que eu viva

                           De hoje em diante a versejar!

(Gritando para dentro)

                           Olá! ó da comitiva!

                           São horas! Toca a marchar!

(Entram os da comitiva, trazendo cada um uma garrafa ou um copo na mão. Vêm todos embriagados.)

CORO.

                           Aqui vimos ligeiros e prontos!

                           Aqui vimos depressa a correr!

                           Mas nós todos estamos tão tontos,

                           Que já não nos podemos lamber!

(continua a música em surdina até o final)

                           Também beberam!

ANDRONICO.

                           Por Baccho!

                           Que respeitável broega!

FRUMENCIO.

                           Isto é pra dar o cavaco!

                           Deram-me cabo da adega!

ANDRONICO, (apertando a mão a Cleonte e Azelia)

                           Sejam felizes.

CLEONTE

                           Querendo,

                           Venha buscar nova dose!

ANDRONICO

                            É um liquido estupendo!

(Vai apertara mão a Frumencio.)

FRUMENCIO

                            Fique para a apoteose!

ANDRONICO

                            Apoteose!

CLEONTE

                            O povo a exige.

AZELIA.

                             A apoteose é de rigor!

FRUMENCIO.

                             De certo. No blesse eblige.

TODOS (apontando para o fundo)

                             Aquele é o reino do Amor!

(Mutação Apotheos)

Typ. Moraes, rua da Assembleia n. 49

ERRATA

Entre as páginas 70 e 71 escapou à revisão o seguinte trecho:

APOLLO

                         Bom. Eu, Phebo, vulgo Apollo,

                         Que tem nomeiem fartura,

                         Com cuja nomenclatura

                         A assistência não amolo,

                         Vou dar a este mancebo

                         O dom, um nada terrestre,

                         De fazer versos sem mestre.

(A um sinal de Apollo, Rhéa traz da fonte tuna amphora cheia de água e apresenta-a a Cleonte.)

Bebe!

(Vendo que Cleonte hesita.)

Bebes ou não?

CLEONTE (Resoluto)

Bebo!

Bebe, e no mesmo instante fica inspirado, correndo de um lado para outro, olhando para o céu, esbugalhando os olhos e apartando os cabelos com os dedos.

                         Sim! o sol da inspiração

                         Sobre o meu cérebro atua!

RHÉA (à parte)

                         Será o sol ou a lua?

CUPIDO

                         Foi muito rápida a ação!

CLEONTE

                         Quero uma lira também!

                         Vou cantar a minha amada

                         De saudades torturada!

                         Quero uma lira!

RHÉA (dando-lhe unia Lira)

                         Aqui tem.