Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA 
Textos literários em meio eletrônico

Poemas e canções, de Vicente de Carvalho


Edição de referência:

CARVALHO, Vicente de. Poemas e canções, São Paulo: Cardoso, Filho & Cia., 1908.

ÍNDICE

Antes dos versos

Velho tema

Fantasias do luar

A invenção do Diabo

Fugindo ao cativeiro

Cantigas praianas

Pequenino morto

Palavras ao mar

Sonho póstumo

Carta a V. S.

Sugestões do crepúsculo

Folha solta

A partida da monção

Uma impressão de D. Juan

A ternura do mar

Rosa, rosa de amor...

Olhos verdes

Manhã de sol

Horas de amor

Primeira sombra

Cair das folhas

Desiludida

Saudade

Serenata

O dia seguinte do amor

Última confidência

Notas

 

ANTES DOS VERSOS

Aos que se surpreenderem de ver a prosa do engenheiro antes dos versos do poeta, direi que nem tudo é golpeantemente decisivo nesta profissão de números e diagramas. É ilusório o rigorismo matemático imposto pelo critério vulgar às formas irredutíveis da verdade. Baste atender-se em que o objetivo das nossas vistas teóricas está no descobrir uma simplicidade que não existe na natureza; e que desta nos abeiramos, sempre indecisos, já tateantes, por meio de aproximações sucessivas, já precipitadamente, fascinados pela miragem das hipóteses. A própria unidade das nossas mais abstratas construções é engana­dora. Nos últimos trinta anos — nesta matemática tão, ao parecer, definitiva — idearam-se não sei quantas álgebras, através de complicados simbolismos; e o número de geometrias elementares, como no-lo mostra H. Poincaré, é hoje, logicamente, incalculável. Ainda mais: na mesma geometria clássica sabe-se como se definem pontos, retas e planos, que não existem, ou se reduzem a conceitos preestabelecidos sobre que se for­mulam postulados arbitrários. Continuando: vemos a mecânica basear-se, paradoxalmente, no princípio da inércia universal, e instituir a noção idealista do espaço absoluto, em contradição com tudo quanto vemos e sentimos.

Destarte se constrói uma natureza ideal sobre a natureza tangível. Ilude-se a nossa incompetência para abranger a simultaneidade do que aparece, por meio de processos vários nos nomes pretensiosos, mas na essência perfeitamente artísticos, porque consistem em exagerar os ca­racteres dominantes dos fatos, de modo a facultar-nos uma síntese, mostrando-no-los menos como eles são do que como deveram ser. Assim nós vamos — idealizando, conjecturando, devaneando. Na astronomia resumem-se as leis conhecidas menos imperfeitas; no entanto à medida que ela encadeia os mundos, vai libertando-nos a imaginação. Os mais duros experimentadores sonham neste momento aos clarões indecisos das nebulosas, vendo abrir-se em cada estrela incandescente um vasto laboratório onde trabalham os químicos da terra descobrindo surpreendentes aspectos da matéria... Prosseguimos, idealizando flagrantemente a Física, com a estrutura subjetiva de sólidos e fluidos perfeitos, e sistemas isolados, e até singularíssimos fios inextensíveis, de todo em todo inexistentes; e romanceando a Química, definida pelo simbolismo imagi­noso da arquitetura atômica de seus corpos simples, irreais.

Até que na Físico-química, recém instituída e já intensamente iluminada pela percepção transubstancial dos raios X, admitíamos todas as utopias do misticismo transcendental dos alquimistas, e não nos maravilhemos de que os pensadores mais robustos estonteiem e delirem como faquires esmaniados, vendo, improvisamente, resplandecer no radium a alma misteriosa da matéria...

Assim nos andamos nós — do realismo para o sonho, e deste para aquele, na oscilação perpétua das dúvidas, sem que se possa diferençar na obscura zona neutral alongada à beira do desconhecido, o poeta que espiritualiza a realidade, do naturalista que tateia o mistério.

Apeamo-nos então, acobardados, dessas presuntuosas cogitações. Encouchamo-nos, tímidos, no esconderijo de uma especialidade. Constringimos a alma. Moralizamos rasamente a vida, evitando a grande embriaguez dionisíaca da Vida. Renuímos as fantasias perigosas: utilitarizamo-nos... E ao cabo de tamanho esforço, para descermos até ao fastígio do maciço senso comum conservador e timorato — vemos com espanto, que mesmo no terra-a-terra da atividade profissional, todas as asperezas das nossas fórmulas empíricas e os traços rigorosos dos tira-linhas ainda se nos sobredoiram de um recalcitrante idealismo.

No pedaço de carvão de pedra, que acendemos na fornalha de uma locomotiva, reacendemos muitos raios de sol extintos há milênios. A locomotiva parte, e não concretiza apenas o mito poético de Faetonte. O que mais nos encanta é a imagem fulgurante da Força, renascendo e restaurando ao mesmo passo os esplendores de trintas auroras apagadas...

Pelas vigas metálicas de nossas pontes, friamente calculadas, estiram-se as “curvas dos momentos”, que nos embridam as fragilidades traiçoeiras do ferro. E ninguém as vê, porque são ideais. Calculamo-las; medimo-las; desenhamo-las — e não existem...

E assim por diante — indefinidamente, em tudo o que fazemos e em tudo o que pensamos, ainda quando lançados na trilha heroica da profissão vamos pulsear no deserto as dificuldades e os perigos... Porque quando nos vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados; olhos postos nos céus, contrafazendo a lira, que eles já não usam, com o sextante, que nos transmite a harmonia silenciosa das esferas, e seguindo no deserto, como os poetas seguem na existência,

... a ouvir estrelas!

Vede quanto é falso o prejuízo da esterilidade das cousas positivas. Em pleno critério determinista somos talvez mais sonhadores do que nos tempos em que ao ingênuo finalismo teológico bastavam duas sílabas para descrever as maravilhas da Criação. Numa intimidade mais profunda com o mundo exterior, a nossa idealização aumenta de um modo quase mecânico. Estira-se-nos na visão deslumbrada. Alarga-se-nos nos novos quadros reveladores das imagens infinitas da na­tureza. E à medida que se nos torna mais claro o sentimento das energias criadoras que nos circulam, e vai eliminando-se do nosso espírito o velho espantalho da discórdia dos elementos, de que tanto se apraziam os deuses vagabundos, e nos sentimos mais equilibrados, mais fortes, mais solidários com a harmonia natural — maior se torna a fonte inspiradora do nosso idealismo fortalecido por impressões mais dignas da majestade da vida.

Se tivéssemos dúvidas a este respeito, no-las dissiparia o próprio espetáculo da última fase revolucionária da poesia contemporânea, caracterizada pelo contraste entre a decadência dos que a falseiam e a expansão crescente do sentimento estético da humanidade. Realmente, o que se afigura a tantos profetas agourentos a morte próxima da poesia, é a demonstração ad absurdum da sua vitalidade mais ampla. Troca-se o efeito pela causa. Nas várias escolas esporádicas — que vão do Parnasianismo, com a idiotice de seu culto fetichista da forma, ao Simbolismo, com a loucura de suas ideias exageradamente subjetivas — o que parece a decadência da poesia é apenas o desequilíbrio e as emo­ções falsificadas dos que não podem mais compreendê-la na altitude a que chegou o nosso pensamento. Considerando-se, de relance, apenas um dos extremos dessa longa cadeia de agitados — não seria difícil mostrar no desvio ideativo de Mallarmé, ou Verlaine, como outrora no satanismo de Baudelaire, os gritos desfalecidos de todos os fracos irritáveis, re­conhecendo-se inaptos para entenderem a vida numa quadra em que o progresso das ciências naturais, interpretadas pelo Evolucionismo, reage sobre tudo e tudo transfigura, desde a ordem política, onde se instaura o predomínio econômico dos povos mais ativos, glorificados na inspira­ção prodigiosa de Rudyard Kipling, até à filosofia moral, onde se alevanta a aristocracia definitiva do homem forte, lobrigado pela visão estonteadora do gênio de Frederico Nietzsche. Então veríamos, malgrado as blasfêmias de tanto verso convulsivo, como um falso ceticismo pode significar a última tentativa da retrógrada explicação deísta do universo. Os “poetas malditos”, que nos fazem rir com o truanesco de suas visagens, são apenas ignorantes. A descrença nasce-lhes da inviabi­lidade da crença. São almas velhas onde se acumulam as influências ancestrais mantidas pela hereditariedade; e ainda quando se fingem de demônios agitam-nos aos olhos o espectro da antiga fé agonizante. E fa­lam-nos naturalmente numa língua morta, de retardatários, em estrofes onde os traços de degenerescência resultam sobretudo da incompatibilidade com os novos ideais.

Baudelaire, entre os desconchavos de seu bárbaro misticismo, teve, certa vez, um lance genial, ao definir-se

                                                                            ...un cimetière,

Où, comme des remords, se traînent des longs vers...

Símbolo perfeito dessas organizações retrogradas, de revenants, a ressuscitarem num período avantajado da existência humana e para logo invadidos do desespero de já não sentirem o amparo das antigas verdades absolutas, que os alentavam outrora, nos remotos tempos de onde saltam por atavismo — claudicantes no ritmo dos versos — para nos entristecerem com as suas queixas de almas doentes da nostalgia do sobrenatural. Porque o quadro que defrontam é outro. Encontram os céus mais azuis, depois das induções de Tyndall; a terra mais vivaz, depois das generalizações de Lyell, evolvendo e transfigurando-se como um maravilhoso organismo. Para abarcar a vida, ou realizar a síntese de seus aspectos, já não basta o êxtase, ou a genuflexão admirativa, senão a solidariedade de suas leis com a nossa harmonia moral, de modo que, submetidos à unidade do universo, sejamos cada vez mais a própria miniatura dele, e possamos traduzi-lo sem falsificá-lo, embora o envolvamos nos véus simbólicos da mais ardente fantasia. “Nesta altura todas as perspectivas particulares se fundem. O homem não é — isoladamente — artista, poeta, sábio ou filósofo. Deve ser de algum modo tudo isto a um tempo, porque a natureza é integra”[1].

A frase é de um naturalista. Mas vê-se que ela reproduz, hoje, transcorrido um século de atividade intelectual, quase literalmente, o idealismo filosófico de Fichte. É compreensível. E dela se deduz que nessa aproximação crescente entre a realidade tangível e a fantasia criadora, o poeta, continuadamente mais próximo do pensador, vai cada vez mais refletindo no ritmo de seus versos a vibração da vida universal, cada vez mais fortalecido por um largo sentimento da natureza.

* *

Ora, o que para logo se destaca nos Poemas e canções, alen­tando o subjetivismo equilibrado de um verdadeiro poeta, é um grande sentimento da natureza. O amor, considera-o Vicente de Carvalho como ele é, positivamente: um caso particular da simpatia universal. E tal como no-lo apresenta

                                                     ... risonho e sem cuidados,

Muito de altivo, um tanto de insolente

diz-nos bem que na sua forma comum, fisiológica e rudimentar, de um egoísmo a dois, ele não lhe traduz uma condição primaria do sen­timento, escravo de uma preocupação mórbida e humilhante, senão um belo pretexto para resumir num objeto, em harmonioso sincretismo, os atributos encantadores da vida. O poeta diviniza a mulher, como o estatuário diviniza um pedaço de mármore: pela necessidade ansiosíssima de uma síntese do maior número possível de belezas infinitas que lhe tumultuam em torno. Neste lance poderíamos aplicar-lhe a frase pinturesca de Stanchwith: “Não podendo apertar a mão desse gigante que se chama Universo, nem dar um beijo apaixonado na Na­tureza, resume-os num exemplar da humanidade.”

Por isto mesmo não se apouca limitando-se a essa redução graciosa. Para aformosear o seu símbolo, dá largas à expansão centri­fuga da individualidade transbordante. E em tanta maneira se lhe im­põem as escapadas para a amplitude do mundo objetivo, onde se lhe deparam as melhores imagens e as mais radiosas alegorias, que nos diz em alexandrinos correntios o que hoje lemos em páginas austeras de gravíssimos psicofisiologistas, quando atribui todo o seu culto

À doce Religião da Natureza amiga,

a uma alma remota que as energias profundas do atavismo lhe despertam, predispondo-o ao nomadismo aventureiro de algum avô selvagem

Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado

Mantinha a liberdade inata da nudez.

Ao contrário, eu penso que alma antiga não sentiria esta atração da grande natureza, que domina a poesia moderna. Entre a con­cepção estreitamente clássica da vida rústica, das Geórgicas, e o nosso esplêndido lirismo naturalista há diferenças tão flagrantes que fora inútil indicá-las. O movimento atual para os grandes quadros objetivos, à parte outras causas mais profundas, desponta-nos como uma reação do nosso sentimento, a crescer, paralelamente, com o próprio rigorismo prático da vida. Esse fugir ao racionalismo seco das cidades, que até geometricamente se nos desenha nas ruas retangulares, nos quadrados das praças, nos ângulos diedros das esquinas, nas pirâmides dos tetos, nos poliedros das casas, nos paralelepípedos dos calçamentos e nas elipses dos canteiros, onde é tudo claro, matemático, compreensível, e as inteligências se nivelam na evidencia de tudo, e as vistas se fatigam na re­petição das formas e das cores, e os ouvidos se fatigam no martelar monótono dos sons, e a alma se fatiga na invariabilidade das impressões e dos motivos — vai se tornando a mais e mais imperioso, à medida que a civilização progride. O povo mais prático e mais lúcido do mundo, é o que por ele mais irradia à caça do pinturesco. Não há neste momento em Chamonix ou num rincão qualquer da África Central, nenhuma página vigorosa da natureza onde se não veja, rijamente empertigado, um ponto de admiração: o inglês!

Além disto, só o pensamento atual pode animar a alma miste­riosa das cousas, num consorcio, que é a definição da verdadeira arte. O nosso selvagem

Que dormia tranquilo um sono descuidado,

Passivo, indiferente, enfarado talvez

Sob o mistério azul do céu todo estrelado,

passaria mil anos sobre a Serra do Mar

Negra, imensa, disforme,

Enegrecendo a noite...

indiferente e inútil.

Para no-la definir, e no-la agitar sem abandonar a realidade, mostrando-no-la vivamente monstruosa, a arrepiar-se, a torcer-se nas anticlinais, encolhendo-se nos vales, tombando nos grotões, ou escalando as alturas nos arrancos dos píncaros arremessados, requer-se a intuição superior de um poeta capaz de ampliar, sem a deformar, uma verdade rijamente geológica, refletindo num minuto a marcha milenária das causas geotectônicas que a explicam. Vemo-la na escultura destes versos:

Na sombra em confusão do mato farfalhante

Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.

Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,

Erriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;

Mais repousado, além, levemente se enruga

Na crespa ondulação de cômoros macios;

Resvala num declive; e logo, como em fuga

Precípite, através da escuridão noturna,

Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.

Do fundo dos grotões outra vez se subleva,

Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente,

Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva

Despedaçadamente e indefinidamente.

É a realidade maior — vibrando numa emoção. Este chão que tumultua, e corre, e foge, e se crispa, e cai, e se alevanta, é o mesmo chão que o geólogo denomina “solo perturbado” e inspira a rasa, a modesta, a chaníssima topografia, a metáfora garbosa dos “movimentos do terreno.”

A mesma harmonia de sua visão interior com o mundo externo rebrilha, quando o poeta observa que o mar

... brutal e impuro,

Branco de espuma, ébrio de amor,

Tenta despir o seio duro

E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito

De lhe escapar, se esconde, e anseia

Atrás de cômoros de areia

E de penhascos de granito.

No encalço dessa esquiva amante

Que se lhe furta, segue o mar;

Segue, e as maretas solta adiante

Como matilha, a farejar

E, achado o rastro, vai com as suas

Ondas e a sua espumarada

Lamber, na terra devastada.

Barrancos nus e rochas nuas...

Idealização... Mas, evidentemente quem quer que se alarme ante este mar perseguidor e esta terra prófuga, riscará os melhores capítulos da geologia dinâmica. E os que fecharem as vistas à esplêndida imagem daquela matilha de maretas, certo, não poderão contemplar a “artilharia” de seixos e graieiros, do ilustre Playfair, a bombardear arribas, desmontando-as, disjungindo-as, solapando-as, derruindo-as, e esfarelando-as — seguida logo da “cavalaria das vagas” de Granville Cole, a curvetear nos rolos das ondulações banzeiras, a empinar-se nas ondas desbridadas, a entrechocar-se nas arrebentações, a torvelinhar no entrevero dos redemoinhos; e de súbito disparando — longos penachos brancos dos elmos rebrilhantes distendidos na diluição das espumas — numa carga, em linha, violentíssima, sobre os litorais desmantelados ; de modo que o litoral desmantelado se nos apresente,

like a regiment overwhelmed by cavalry.[2]

Considerai: esta frase, que se desentranha da árida prosa de um livro didático, ressoa, refulge, canta. É um verso. Prende o sonhador e o cientista diante da idealização tangível de um expressivo gesto da natureza.

Mais longe, quando o poeta escuta a grande voz do mar, “que­brada de onda em onda”, fazendo à Lua uma declaração de amor, que seria apenas um ridículo exagero panteísta, se não fosse um pouco desse infinito amor que se chama gravitação universal; quando o mar exclama:

“Lua! Eu sou a paixão, eu sou a vida, eu te amo!

Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha,..

Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que eu reclamo,

Um dia serás minha...

Há mil anos que vivo a terra suprimindo.

Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas

Dentro de vagalhões penhascos submergindo,

Submergindo montanhas...

esta voz monstruosamente romântica, do mar, é a mesma voz de Geike, ou de Lapparent, e diz uma alta verdade de ciência, diante do agente físico cujo destino lógico, pelo curso indefinido dos tempos, é o nivelamento da terra.

Também ao descrever-nos um recanto labiríntico de nossas matas,

Cem espécies formando a trama de uma sebe,

Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe

Da floresta, oprimida e em perpétuo levante,

e mostrando-nos que

Acesa num furor de seiva transbordante

Toda essa multidão desgrenhada — fundida

Como a conflagração de cem tribos selvagens

Em batalha — a agitar cem formas de folhagens

Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida,

e atentando-se no quanto à pletora tropical, ou uma sorte de con­gestão da seiva, alenta e ao mesmo passo sacrifica em nossa terra o desenvolvimento vegetativo, criando-se o tremendo paradoxo da floresta que mata a árvore, ou redu-la ao arbúsculo que foge à compressão dos troncos escapando-se na distensão esquiva do cipó, a desfibrar-se e a estirar-se, angustiosamente, na procura ansiosíssima da luz — avalia-se bem o brilho daquela síntese comovente, embora seja ela rigoro­samente positiva em todos os elementos de sua estrutura artística.

Digamos, porém, desde logo, que em todo este lucido panteísmo não é a floresta e a montanha que mais atraem o poeta. É o mar. A Vicente de Carvalho não lhe basta o pintar-nos

...O mar criado à s soltas

Na solidão, e cuja vida

Corre, agitada e desabrida,

Em turbilhões de ondas revoltas...

ou quando ele, tempesteando,

A uivar, a uivar dentro da sombra

Nas fundas, noites da procela

braceja com os ventos desabalados, e, recebendo de instante em ins­tante a

cutilada de um corisco,

rebela-se, e

impando de ousadia

Pragueja, insulta, desafia

O céu, cuspindo-lhe a salsugem...

Apraz-se antes de no-lo mostrar, nas “Sugestões do Crepúsculo”, com a melancolia soberana que por vezes o invade e lhe torna mais compreensível a grandeza, no vasto nivelamento das grandes águas tranquilas, onde se nos dilata de algum modo a impressão visual da impressão interior e vaga do Infinito...

Porque

Ao pôr do sol, pela tristeza

Da meia luz crepuscular,

Tem a toada de uma reza

A voz do mar.

Aumenta, alastra e desce pelas

Rampas dos morros, pouco a pouco,

O ermo de sombra, vago e oco,

Do céu sem sol e sem estrelas.

Tudo amortece, e a tudo invade

Uma fadiga, um desconforto,

Como a infeliz serenidade

Do embaciado olhar de um morto.

Domado então por um instante

Da singular melancolia

De entorno, apenas balbucia

A voz piedosa do gigante.

Toda se abranda a vaga hirsuta,

Toda se humilha, a murmurar...

Que pede ao céu que não a escuta

A voz do mar?

Escutem bem...Quando entardece,

Na meia luz crepuscular,

Tem a toada de uma prece

A voz tristíssima do mar...

Fora impossível citar tudo prolongando a tortura do contraste entre estas frases duras e a flexibilidade desses versos, nos quais o metro parece nascer ao compasso da sístole e da diástole do coração de quem os recita.

Além disto, alguns deles, mercê da unidade perfeita, não se po­dem mutilar em extratos. Nas “Palavras ao Mar”, aquela identidade” anteriormente aludida, da nossa harmonia moral com a do Universo refulge num dos mais breves e maiores poemas que ainda se escreveram na língua portuguesa, para se definir o perpetuo anseio do ideal diante das magias crescentes da existência.

Em “Fugindo ao Cativeiro” — epopeia que se lê num quarto d’hora — a mesma estrutura inteiriça torna inviolável a concepção artística

Digamos, entretanto, de passagem, que aquela miniatura shakespeareana da última fase da escravidão em nosso país, absolverá com­pletamente, diante da posteridade, a nossa geração, das culpas ou pecados que acaso lhe adviriam de uma dolorosa fatalidade social. Ver-se-á, pelo menos, que as emoções estéticas, tão essenciais a todas as trans­formações verdadeiramente políticas, não as fomos buscar somente, já elaboradas, na alma da geração anterior, decorando, e recitando, exaustivamente, as estrofes eternas das “Vozes d’África e do “Navio Negreiro.” Sentimo-las, bem nossas, a irromperem dos quadros envolventes, à imensa desventura do africano abatido pelo traficante, contrapusemos a rebentina do crioulo revoltado. Vicente de Carvalho agarrou, num lance magnífico, a única situação heroica e fugaz — durando o que durou o relâmpago da foice coruscante brandida por um hércules negro — de uma raça humilhada e sucumbida.

E ainda nesse trecho, com a amplitude e o desafogo da sua visão admirável, associou ao dramático itinerário do êxodo da turba miseranda e divinizada pelo sonho da liberdade, a natureza inteira — do oceano longínquo, apenas adivinhado dos píncaros da serra, à montanha abrupta abrolhando em estrepes e calhaus, às colinas que se idealizam azulan­do-se com as distancias, e à floresta, referta de rumores e gorjeios, onde

Os velhos troncos, plácidos ermitas,

Os próprios troncos velhos, remoçados,

Riem no riso em flor dos parasitas.

... imagem, encantadora na sua belíssima simplicidade, que se emparelha com as mais radiosas engenhadas por toda a poesia humana.

* * *

Quero cerrar com ela todos os conceitos vacilantemente expostos. Que outros definam o lírico gentilíssimo da “Rosa, rosa de Amor”, a inspiração piedosa e casta do “Pequenino Morto”, ou os sonetos, onde, tão antigos temas se remoçam.

De mim, satisfaço-me com haver tentado definir o grande poeta naturalista, que nobilita o meu tempo e a minha terra.

Euclides da Cunha

Rio — 30 de Setembro de 1908.

 

VELHO TEMA

Só a leve esperança, em toda a vida,

Disfarça a pena de viver, mais nada;

Nem é mais a existência, resumida,

Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,

Sonho que a traz ansiosa e embevecida,

É uma hora feliz, sempre adiada

E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,

Arvore milagrosa que sonhamos

Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não n’a alcançamos

Porque está sempre apenas onde a pomos

E nunca a pomos onde nós estamos.

Eu cantarei de amor tão fortemente

Com tal celeuma e com tamanhos brados

Que afinal teus ouvidos, dominados,

Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente

— Não andrajoso e mendigando agrados,

Mas tal como é: risonho e sem cuidados,

Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve

Do que merece: eu te amo, e o meu desejo

Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;

E vou de olhos enxutos e alma leve

À galharda conquista do teu beijo.

Belas, airosas, pálidas, altivas,

Como tu mesma, outras mulheres vejo:

São rainhas, e segue-as num cortejo

Extensa multidão de almas cativas.

Tem a alvura do mármore: lascivas

Formas; os lábios feitos para o beijo;

E indiferente e desdenhoso as vejo

Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,

Mesmo às que são mais puras e mais belas,

Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta

E entre os encantos de que brilham, falta

O vago encanto da mulher amada.

Eu não espero o bem que mais desejo:

Sou condenado, e disso convencido;

Vossas palavras, com que sou punido,

São penas e verdades de sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,

Pois nem se esconde nem procura ensejo,

E anda à vista naquilo que mais vejo:

Em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:

Ao meu amor desamparado e triste

Toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;

Conto-lhe o mal que vejo, e ele que é cego

Põe-se a sonhar o bem que não existe.

“Alma serena e casta, que eu persigo

Com o meu sonho de amor e de pecado,

Abençoado seja, abençoado

O rigor que te salva e é meu castigo.

Assim desvies sempre do meu lado

Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;

E assim possa morrer, morrer comigo,

Este amor criminoso e condenado.

Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito

Uma ventura obtida com teu dano,

Bem meu que de teus males fosse feito.”

Assim penso, assim quero, assim me engano.

Como se não sentisse que em meu peito

Pulsa o covarde coração humano.

“Lembra”! diz-me o passado: “Eu sou a aurora

E a primavera, o olhar que se enamora

De quanto vê pelo caminho em flor;

Para o teu coração cansado e triste

É recordar-me — o único bem que existe...

Eu sou a mocidade, eu sou o amor.”

“Vive!” diz-me o presente. “Alma suicida,

Louca, não peças à árvore da vida

Mais que os amargos frutos que ela tem;

Deixa a saudade e foge da esperança,

Faze do pouco que teu braço alcança

O teu mesquinho, o teu único bem.”

“Sonha!” diz-me o futuro: “o sonho é tudo,

Eu sobre as tuas pálpebras sacudo

A poeira da ilusão!... sonha, e bendiz!

Eu sou o único bem por que te engano,

E o desgraçado coração humano

Só com o que não possui é que é feliz.”

Eu ouço os três, e calo-me: desisto

De quanto me prometem, porque nisto

Todos se enganam, todos, menos eu:

Beijo dos lábios da mulher amada,

O único bem és tu! Nem há mais nada...

E tu és de outro, e nunca serás meu!

 

FANTASIAS DO LUAR

Entre nuvens esgarçadas

No céu pedrento flutua

A triste, a pálida Lua

Das baladas.

Frouxo luar sugestivo

Contagia a natureza

Como de um ar de tristeza

Sem motivo

Tem vagos tons de miragem,

De um desenho sem sentido,

O conjunto descosido

Da paisagem.

A apagada fantasia

Do colorido — parece

De um pintor que padecesse

De miopia.

Tudo, tudo quanto existe

Extravaga, e se afigura

Tomado de uma loucura

Mansa e triste.

O longo perfil do Monte —

Como um rio de água verde —

Corre ondulando, e se perde

No horizonte.

E sobre essa imaginária

Turva corrente, projeta

A alva igreja a sua seta

Solitária.

Assim, de um ermo barranco

A garça alonga no rio

O seu vulto, muito branco,

Muito esguio.

Sonha, imóvel... E acredito

Que de súbito desperte

Aquele fantasma inerte

De granito.

Dorme talvez... Qualquer cousa

No seu sono se disfarça

De asa encolhida de garça

Que repousa;

E eu cuido vê-la, a cada hora,

Animar-se; e de repente

Subir sossegadamente

Céu afora...

*

Há um lirismo disperso

Nos ares... O próprio vento

Esse bronco, esse praguento,

Fala em verso;

Voz forte, bruscas maneiras,

Pela boca pondo os bofes,

O vento improvisa estrofes

Condoreiras.

Beijam-se as frondes, arrulam,

Trocam afagos, promessas...

E as árvores secas, essas

Gesticulam.

Gesticulam, como espectros,

No vácuo, tentando abraços

Com seus descarnados braços

De dez metros.

Algum trovador de esquina

Canta a paixão que o devora;

E a sua voz geme, chora,

Desafina.

Ao longe um eco repete

O canto, frase por frase,

Em tom abrandado, quase

Sem falsete.

Tem o aspecto apalaçado

Da pedra cara e maciça

O muro, em simples caliça,

De um sobrado.

Nem castelã falta a esse

Castelo: na luz da Lua,

Branca, airosa, seminua,

Resplandece,

Numa pose pitoresca

De romance ou de aquarela,

A burguesa que à janela

Goza a fresca.

*

O olhar, o ouvido, a alma inteira

Vê, ouve, acredita, sente

Quanto sonhe, quanto invente,

Quanto queira,

Quando, oh lua das baladas,

Forjas visões indistintas

Com esse aguado das tintas

Estragadas.

 

A INVENÇÃO DO DIABO

Deus entregando ao Diabo a metade do mundo,

Deu-lhe a parte pior, como era de razão;

E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo

Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.

Tomando para si todo o imenso tesouro

Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,

Pôde o Senhor fazer esbanjamentos de ouro

Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.

Pôde esparzir na areia as pérolas do orvalho,

Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,

Fazer a primavera — e pôr em cada galho

O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...

A Satanás, porém, coube em partilha a treva,

O ódio como prazer, como covil um poço;

E ele lá no seu reino escuro a vida leva

De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.

E: enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia

Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,

Satanás, furioso, a mão sacode, cheia

De lepra e maldição como o punho de Job.

Só uma vez Satã respirou satisfeito,

E arregaçou-lhe o beiço um pérfido sorriso,

Quando um dia, ao sair do seu covil estreito,

De repente se achou dentro do paraíso.

A primeira impressão que teve foi de inveja:

Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor

Só lhe pôde arrancar à boca malfazeja

Uivos de cão ferido, imprecações de dor.

Mas de repente, como o corisco clareia

O tenebroso céu nas borrascas de agosto,

Uma ideia triunfante, uma sinistra ideia

Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.

Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,

Eva, formosa e nua, adormecera ao luar.

E sobre a alva nudez dessas formas graciosas

Satã deixou cair um desdenhoso olhar...

Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,

Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,

Eva os lábios abriu, — e abriram-se, orvalhadas

De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.

Espantado, Satã viu que esse mármore era

Animado e gentil, ardente e encantador;

Como um resumo viu de toda a primavera

Na frescura sem par daquela boca em flor.

E foi somente então que o Príncipe da Treva

Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,

E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva

O cálix consagrado às missas do Pecado.

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,

De céu do amanhecer franjado em rosicler...

Entreabriu-os Satã; e enchendo-os de veneno,

Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.

 

FUGINDO AO CATIVEIRO

I

Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena

Serra do Mar.

Em cima, ao longe, alta e serena,

A ampla curva do céu das noites de geada:

Como a palpitação vagamente azulada

De uma poeira de estrelas...

Negra, imensa, disforme,

Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas

Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.

Como um sonho febril no seu sono ofegante,

Na sombra em confusão do mato farfalhante,

Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo:

Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,

Erriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;

Mais repousado, além levemente se enruga

Na crespa ondulação de cômoros macios;

Resvala num declive; e logo, como em fuga

Precípite, através da escuridão noturna,

Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.

Do fundo dos grotões outra vez se subleva,

Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente

Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva

Despedaçadamente e indefinidamente.

Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.

Rajadas sorrateiras

De um vento preguiçoso arfam de quando em quando

Como um vasto motim que passa sussurrando:

E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,

Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.

A mata é tropical: basta, quase maciça

De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,

Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça

Sob a rija galhada o torso de gigante,

— Uma vegetação turbulenta e bravia

Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:

Moitas de craguatás agressivos; rasteiras

Trapoerabas tramando o chão todo; touceiras

De brejaúva, em riste as flechas ouriçadas

De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,

As trepadeiras, em redouças balouçando

Hastes vergadas, galho a galho acorrentando

Arvores, afogando arbustos, brutalmente

Enlaçando à jiçara o talhe adolescente.

Cem espécies formando a trama de uma sebe,

Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe

Da floresta, oprimida e em perpétuo levante...

Acesa num furor de seiva transbordante,

Toda essa multidão desgrenhada — fundida

Como a conflagração de cem tribos selvagens

Em batalha — a agitar cem formas de folhagens

Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.

Na confusão da noite, a confusão do mato

Gera alucinações de um pavor insensato,

Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:

Lembra — e talvez abafe — urros de onça faminta

A mal ouvida voz da trêmula cascata

Que salta e foge e vai rolando águas de prata.

Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.

Acoutam-se traições de abismo numa alfombra.

Penedos traçam no ar figuras de gigantes.

Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.

Uns tardos caminhantes

Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,

Passam, como visões vagas de um pesadelo.

São cativos fugindo ao cativeiro. O bando

É numeroso. Vêm de longe, no atropelo

Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,

Em recuos de susto e avançadas afoitas,

Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,

Improvisam o rumo ao acaso das moitas.

Vão arrastando os pés chagados de frieiras...

De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra;

De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;

E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,

A longa fila ondula e serpenteia, e a longa

Marcha através da noite e das furnas avança...

Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.

Incita-os o terror, alenta-os a esperança:

Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo

Cativeiro... E através desses grotões por onde

Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde,

Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,

Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,

Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara

— A Canaã dos cativos.

Vão calados, poupando o fôlego. De quando

Em quando — fio d’água humilde murmurando

As tristezas de um lago imenso — algum gemido,

Um grito de mulher, um choro de criança,

Conta uma nova dor em corpo já dorido,

Um bruxuleio mais mortiço da esperança,

A rajada mais fria arrepiando a floresta

E a pele nua; o espinho entrando à carne; a aresta

De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue;

Uma exacerbação nova da fome velha,

A tortura da marcha imposta ao corpo exangue,

O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...

E a longa fila segue: a passo, vagarosa,

Galga, de fraga em fraga, a montanha fragosa,

Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...

Um, tropeçando, arrima o pai octogenário;

Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;

E mães, a agonizar de fome e de cansaço,

Levam com o coração mais do que com o braço

Os filhos pequeninos.

II

Ei-lo, por fim, o termo desejado

Da subida: a montanha avulta e cresce

De um vale escuro ao céu todo estrelado;

E o seu cume de súbito aparece

De um resplendor de estrelas aureolado.

Mas ai! Tão longe ainda!... E de permeio

A vastidão da sombra sem caminhos,

Um fundo vale, tenebroso e feio,

E o mato, o mato das barrocas, cheio

De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.

Tão longe ainda!... E os peitos arquejantes,

E as forças e a coragem sucumbindo...

Estacando, aterrados, por instantes

Pensam que a morte hão de encontrar bem antes

Do termo desse itinerário infindo...

Tiritando, a chorar, uma criança

Diz com voz débil: “Mãe, faz tanto frio!...”

E a mãe os olhos desvairados lança

Em torno, e vê apenas o sombrio

Manto de folhas que o tufão balança...

“Mãe, tenho fome!” a criancinha geme;

E ela, dos trapos arrancando o seio,

Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...

Árido e seco!... E do caminho em meio,

Ela, aterrada e muda, estaca e treme.

Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,

Morrer de fome, o filho bem querido;

E ela, arrastando para longe os passos,

O amado corpo deixará, perdido

Para os seus beijos, para os seus abraços...

Esse cadáver pequenino, e o riso

Murcho no lábio, e os olhos apagados,

Toda essa vida morta de improviso,

Hão de ficar no chão, abandonados

À inclemência dos sóis e do granizo;

Esse entezinho débil e medroso,

Que ao mais leve rumor se assusta e busca

O asilo de seu seio carinhoso,

Há de ficar sozinho; e, em torno, a brusca

Voz do vento ululante e cavernoso.

E, em torno, a vasta noite solitária,

Cheia de sombras, cheia de pavores,

Onde passa a visão errante e vária

Dos lobisomens ameaçadores

Em desfilada solta e tumultuária...

Desde a cabeça aos pés, toda estremece;

Falta-lhe a força, a vista se lhe turva,

Toda a coragem na alma lhe esmorece.

E, afastando-se, ao longe, numa curva

O bando esgueira-se, e desaparece...

Ficam sós, ela e o filho, agonizando,

Ele a morrer de fome, ela de medo.

Ulula o furacão de quando em quando,

E sacudindo os ramos e o folhedo

Movem-se as árvores gesticulando.

Ela ergue os olhos para o céu distante

E pede ao céu que descortine a aurora:

Dorme embuçado em sombras o levante,

Mal bruxuleia pela noite fora

Das estrelas o brilho palpitante.

Tenta erguer-se, e recai; soluça e brada,

E apenas o eco lhe responde ao grito;

Os olhos fecha para não ver nada,

E tudo vê com o coração aflito,

E tudo vê com a alma alucinada.

Dentro se lhe revolta a carne; explode

O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:

Mães, vosso grande amor, que tanto pode,

Pôde menos que a indômita ansiedade

Em que o terror os músculos sacode!

Ela, apertando o filho estreitamente,

Beija-lhe os olhos úmidos, a boca.

E desvairada, em pranto, ébria e tremente,

Arrancando-o do seio, de repente

Larga-o no chão e foge como louca.

III

Aponta a madrugada:

Da turva noite esgarça o úmido véu,

E espraia-se risonha, alvoroçada,

Rosando os morros e dourando o céu.

A caravana trôpega e ansiosa

Chega ao tope da Serra...

O olhar dos fugitivos

Descansa enfim na terra milagrosa

Na abençoada terra

Onde não há cativos.

Em baixo da montanha, logo adiante,

Quase a seus pés, uma planície imensa,

Clara, risonha, aberta, verdejante:

E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa

Macia várzea que se lhes depara

Ali, próxima, em frente,

Esfumadas na luz do sol nascente

As colinas azuis do Jabaquara...

O dia de ser livre, tão sonhado

Lá do fundo do escuro cativeiro,

Amanhece por fim, leve e dourado.

Enchendo o céu inteiro.

Uma explosão de jubilo rebenta

Desses peitos que arquejam, dessas bocas

Famintas, dessa turba macilenta:

Um burburinho de palavras loucas,

De frases soltas que ninguém escuta

Na vasta solidão se ergue e se espalha,

E em pleno seio da floresta bruta

Canta vitória a meio da batalha.

Seguindo a turba gárrula e travessa

Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,

Um coitado, com a trêmula cabeça

Toda a alvejar das neves da velhice,

Tardo, trôpego, só, desamparado,

Chega afinal, exsurge à superfície

Do alto cimo; repousa, consolado,

Longamente, nos longes da planície

O olhar quase apagado;

Distingue-a mal; duvida; resmungando,

Fita-a... Compreende-a pouco a pouco: vê-a

Anunciando próxima, esboçando

— No chão que brilha de um fulgor de areia,

Num verde claro de ervaçal que ondeia —

A aparição da Terra Prometida...

Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,

De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,

Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,

Adora o Céu nessa visão terrena...

E de mãos postas sempre, extasiado,

Murmura, reza esta oração serena

Como um tosco resumo do Evangelho:

“Foi Deus Nosso Senhor que teve pena

De um pobre negro velho...”

Seguem. Começa a íngreme descida.

Descem. E recomeça

A peregrinação entontecida

No labirinto da floresta espessa.

Sob o orvalho das folhas gotejantes,

Entre as moitas cerradas de espinheiros,

Andrajosos, famintos, triunfantes,

Descem barrancos e despenhadeiros.

Descem rindo, a cantar. Seguem felizes

Sem reparar que os pés lhes vão sangrando

Pelos espinhos e pelas raízes;

Sem reparar que atrás, pelo caminho

Por onde fogem como alegre bando

De passarinhos da gaiola escapo

— Fica um pouco de trapo em cada espinho

E uma gota de sangue em cada trapo.

Descem rindo e cantando, em vozeria

E em confusão. Toda a floresta, cheia

Do murmúrio das fontes, da alegria

Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.

Tudo é festa. Severos e calados,

Os velhos troncos, plácidos ermitas,

Os próprios troncos velhos, remoçados,

Riem no riso em flor das parasitas.

Varando acaso às árvores a sombra

Da folhagem que à brisa arfa e revoa,

Na verde ondulação da úmida alfombra

O ouro leve do sol bubuia à toa;

A água das cachoeiras, clara e pura,

Salta de pedra em pedra, aos solavancos;

E a flor de S. João se dependura

Festivamente à beira dos barrancos.

Vão alegres, ruidosos. Mas no meio

Dessa alegria palpitante e louca,

Que transborda do seio

E transbordada canta e ri na boca,

Uma mulher, absorta, acabrunhada,

Segue parando a cada passo, e a cada

Instante os olhos para traz volvendo:

De além, do fundo dessas selvas brutas,

Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,

Uma vozinha ansiosa e suplicante...

Mãe, onde geme que tão bem o escutas

Teu filho agonizante?

IV

De repente, como um agouro e uma ameaça,

Um alarido de vozes estranhas passa

Na rajada do vento...

Estacam.

Como um bando

De ariscos caititus farejando a matilha,

Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,

Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha

Os dentes, dilatada a narina, cheirando

A aragem, escutando o silêncio, espreitando

A solidão; assim, num alarma instintivo,

Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.

Nova rajada vem, novo alarido passa...

Como, topando o rastro inda fresco da caça,

Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,

E de repente, em fúria, alvoroçada investe

E vai correndo e vai latindo de mistura;

Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,

E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.

Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.

E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,

Alcateia usurpando a forma e a face humana,

Almas em desespero arfando em corpos gastos,

Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,

Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos

Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;

Toda essa aluvião de caça perseguida

Por um clamor de fúria e um tropel de batida,

Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,

Foge... E, moitas a dentro e barrocais afora,

Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,

Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...

Param.

Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.

Os fugitivos, nesse aproximar da escolta

Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:

A gargalheira, a algema, as angústias da volta...

Além, fulge na luz da manhã leve e clara,

O contorno ondulante e azul do Jabaquara.

Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado

De ser livre! É preciso acordar, e acordado

Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,

E voltar, para longe e para o cativeiro.

Sobre eles, novamente, uma funérea noite

Cai, para sempre...

Como a trôpega boiada,

Que, abrasada de sede e tangida do açoite,

Se arrasta pela areia adusta de uma estrada;

Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,

Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,

Pelo deserto areal desse caminho estreito;

A vida partilhada entre a senzala e o eito...

      Agrupam-se, vencidos,

A tremer, escutando o tropel e os rugidos

Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.

Nesse magote vil de negros maltrapilhos

Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,

Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...

Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança

Em torno um longo olhar tranquilo, de esperança,

E diz aos companheiros:

“Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;

A várzea está lá embaixo, o Jabaquara é perto...

Deixai-me aqui sozinho.

Eu vou morrer, decerto...

Vou morrer combatendo e trancando o caminho.

A morte assim me agrada:

Eu tinha de voltar p’ra conservar-me vivo...

E é melhor acabar na ponta de uma espada

Do que viver cativo.”

E enquanto a caravana

Desanda pelo morro atropeladamente,

Ele, torvo, figura humilde e soberana,

Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.

Hercules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias

Sangue de algum heroico africano selvagem,

Acostumado à guerra, a devastar aldeias,

A cantar e a sorrir no meio da carnagem,

A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...

Não pôde a escravidão domar-lhe a índole forte,

E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante

Do carrasco e da algema:

Sorri para o suplício e a fito encara a morte

Sem que lhe o braço trema,

Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,

E rola sobre a terra uma cabeça solta.

Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...

“Ah, prendê-lo, jamais!” respondem as foiçadas

Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

De lado a lado o sangue espirra a jorros...

Ele, ágil, possante, ousado, heroico, formidando,

Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.

E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.

Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:

O braço luta, o olhar ameaça e desafia,

A coragem resiste, a agilidade vence.

E, coriscando no ar, a foice rodopia.

Afinal um soldado, ébrio de covardia,

Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:

Fora da luta, sente o gosto da chacina;

E vagarosamente alçando a carabina,

Visa, desfecha.

O negro abrira um passo à frente,

Erguera a foice, armava um golpe...

De repente

Estremece-lhe todo o corpo fulminado.

Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,

Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso,

Ilumina-lhe ainda a face decomposta

Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.

Como enxame em furor de vespas assanhadas,

Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,

E retalham-no à solta os gumes das espadas...

E retalhado, exausto, o lutador vencido

Todo flameja em sangue e expira num rugido.

 

CANTIGAS PRAIANAS

É tão pouco o que desejo,

Mas é tudo o que me falta,

Só porque a flor do teu beijo

Pende de rama tão alta.

Ninguém sabe o que suporta

O mar que chora na areia

Por essa tristeza morta

Das noites de Lua cheia.

Em baixo, o pranto das águas,

Em cima, a Lua serena.

E eu, pensando em minhas mágoas,

Ouço o mar, e tenho pena.

Meu amor é todo feito

De neblina tão cerrada,

Que por mais que em roda espreito

Só te vejo a ti, mais nada.

Ai, minha sina está lida,

Meu destino está traçado:

Amar, amar toda a vida,

Morrer de não ser amado.

Vai, branca e fugidia,

A nuvem pelo ar:

Roça de leve a Lua,

Embebe-se em luar.

E toda resplandece

No brilho do luar,

Mas pouco a pouco passa

E perde-se no ar.

Minha alma na tua alma

— Nuvem que trouxe o vento —

Passou por um instante,

Roçou por um momento.

E toda luminosa

Brilhou. Foi um momento:

Passou como uma nuvem

Levada pelo vento.

Eu refleti apenas

Um brilho que era teu;

Passei, e tu ficaste,

Ficou contigo o céu.

Sonhei. Que belo sonho

Vivido em pleno céu!

Mas, ai! sonhei apenas

Um sonho todo teu.

A vida era uma aurora,

E a tua voz suave

Cantava em meu ouvido

Com um gorjeio de ave.

Mentias. E a mentira

Era um gorjeio de ave.

Morresse eu enganado

De engano tão suave!

Que angústias na lembrança

De tudo que perdi!

Ai, beijos desse lábio

Que hoje nem me sorri!

Vestígio derradeiro

Que me ficou de ti,

Bendita esta saudade

De tudo que perdi!

Sim, eu bendigo em pranto

O amor abandonado

Que foi um dia o sonho

De amar e ser amado.

Quem ama sempre, um dia

Deixa de ser amado:

Somente o amor que foge

Não é abandonado.

Que resta em nós agora

Da primavera em flor?

Em ti, o esquecimento,

Em mim, o meu amor.

Amor desfeito em mágoa

Mas abençoado amor,

Que foi, um dia ao menos,

A primavera em flor.

Maria!. Nome tão doce,

Nome de santa. Parece

Que o digo como se fosse

O resumo de uma prece.

Tem tão mística doçura.

Abre asas à fantasia:

“Maria!” — o lábio murmura,

E a alma ecoa: “Ave, Maria!”

Mal sabes tu que desprezas

Os olhos com que te sigo

Que meus olhares são rezas

Ditas baixinho, comigo.

Mal sabes, santa Maria,

Que em tudo que sonho e penso

Teu nome paira e irradia

Como entre nuvens de incenso.

Maria, nome tão doce.

É o teu nome. Parece

Que o digo como se fosse

O resumo de uma prece.

Murmuro-o devotamente:

E a essa oração, se levanta

No meu êxtase de crente

A tua imagem de santa.

E então, alma e olhar submersos

Num clarão de alampadário,

Vou desfiando estes versos

Como as contas de um rosário.

Nem só o olhar dos olhos de quem ama

Revela o amor que se supõe discreto,

E o mais oculto, o mais medroso afeto

Ingenuamente à luz do sol proclama.

Também a voz, indiscrição bendita,

Trai o amor sob a frase indiferente,

E debalde a palavra finge e mente:

Na voz que treme o coração palpita.

Desvias dos meus olhos infelizes

O teu olhar; dizes que não. Loucura!

Em tua voz que trêmula murmura

Ouço tudo que sentes e não dizes.

Do que sofro sem queixar-me

Sois causa sem o supor:

Matais-me, e sois inocente,

Que eu expio unicamente

O crime do meu amor.

Crime, sim, e grave crime,

Crime, e crime sem perdão:

Ai, eu sou como um suicida

Que em sonhos esbanja a vida

Sabendo que sonha em vão.

 

PEQUENINO MORTO

Tange o sino, tange, numa vez de choro,

Numa voz de choro, tão desconsolado.

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino, levam-te dormindo. Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro.

Pequenino, acorda!

Como o sono apaga o teu olhar inerte

Sob a luz da tarde tão macia e grata!

Pequenino, é pena que não possas ver-te.

Como vais bonito, de vestido novo

Todo azul celeste com debruns de prata!

Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te

De vestido novo.

Como aquela imagem de Jesus, tão lindo

Que até vai levado em cima dos andores,

Sobre a fronte loura um resplendor fulgindo,

— Com a grinalda feita de botões de rosas

Trazes na cabeça um resplendor de flores.

Pequenino, acorda! E te acharás tão lindo

Florescido em rosas!

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro, tão desconsolado.

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino levam-te dormindo. Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro.

Pequenino, acorda!

Que caminho triste, e que viagem! Alas

De ciprestes negros a gemer no vento;

Tanta boca aberta de famintas valas

A pedir que as fartem, a esperar que as encham.

Pequenino, acorda! Recupera o alento,

Foge da cobiça dessas fundas valas

A pedir que as encham.

Vai chegando a hora, vai chegando a hora

Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,

Badalando, o sino diz adeus, e chora

Na melancolia do cair da noite;

Por aqui, só cruzes com seus magros braços

Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora

Do cair da noite.

Pela Ave Maria, como procuravas

Tua mãe! Num eco de sua voz piedosa,

Que suaves cousas que tu murmuravas,

De mãozinhas postas, a rezar com ela.

Pequenino, em casa, tua mãe saudosa

Reza a sós. É a hora quando a procuravas.

Vai rezar com ela!

E depois. Teu quarto era tão lindo! Havia

Na janela jarras onde abriam rosas;

E no meio a cama, toda alvor, macia,

De lençóis de linho no colchão de penas.

Que acordar alegre nas manhãs cheirosas!

Que dormir suave, pela noite fria,

No colchão de penas.

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro, tão desconsolado.

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino, levam-te dormindo. Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro.

Pequenino, acorda!

Porque estacam todos dessa cova à beira?

Que é que diz o padre numa língua estranha?

Porque assim te entregam a essa mão grosseira

Que te agarra e leva para a cova funda?

Porque assim cada homem um punhado apanha

De caliça e espalha-a, debruçado à beira

Dessa cova funda?

Vais ficar sozinho no caixão fechado.

Não será bastante para que te guarde?

Para que essa terra que jazia ao lado

Pouco a pouco rola, vai desmoronando?

Pequenino, acorda! — Pequenino! É tarde!

Sobre ti cai todo esse montão que ao lado

Vai desmoronando.

Eis fechada a cova. Lá ficaste. A enorme

Noite sem aurora todo amortalhou-te.

Nem caminho deixam para quem lá dorme,

Para quem lá fica e que não volta nunca.

Tão sozinho sempre por tamanha noite!

Pequenino, dorme! Pequenino, dorme.

Nem acordes nunca!

 

PALAVRAS AO MAR

Mar, belo mar selvagem

Das nossas praias solitárias! Tigre

A que as brisas da terra o sono embalam,

A que o vento do largo erriça o pelo!

Junto da espuma com que as praias bordas,

Pelo marulho acalentada, à sombra

Das palmeiras que arfando se debruçam

Na beirada das ondas — a minha alma

Abriu-se para a vida como se abre

A flor da murta para o sol do estio.

Quando eu nasci, raiava

O claro mês das garças forasteiras:

Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,

Nadando em luz na oscilação das ondas,

Desenrolava a primavera de ouro;

E as leves garças, como folhas soltas

Num leve sopro de aura dispersadas,

Vinham do azul do céu turbilhonando

Pousar o voo à tona das espumas.

É o tempo em que adormeces

Ao sol que abrasa: a cólera espumante,

Que estoura e brame sacudindo os ares,

Não os sacode mais, nem brame e estoura;

Apenas se ouve, tímido e plangente,

O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,

Langue, numa carícia de amoroso,

As largas ondas marulhando estendes.

Ah! vem daí por certo

A voz que escuto em mim, trêmula e triste,

Este marulho que me canta na alma,

E que a alma jorra desmaiado em versos;

De ti, de ti unicamente, aquela

Canção de amor sentida e murmurante

Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,

Pela manhã de sol dos meus vinte anos.

Oh velho condenado

Ao cárcere das rochas que te cingem!

Em vão levantas para o céu distante

Os borrifos das ondas desgrenhadas.

Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,

Palpitante de estrelas quando é noite,

Paira, longínquo e indiferente, acima

Da tua solidão, dos teus clamores.

Condenado e insubmisso

Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo

Uma alma sobre a qual o céu resplende

— Longínquo céu — de um esplendor distante.

Debalde, oh mar que em ondas te arrepelas,

Meu tumultuoso coração revolto

Levanta para o céu, como borrifos,

Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.

Sei que a ventura existe,

Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa,

Como dentro da noite amortalhado

Vês longe o claro bando das estrelas;

Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas

Da alma entreabrindo, subo por instantes.

Oh mar! A minha vida é como as praias,

E o sonho morre como as ondas voltam!

*

Mar, belo mar selvagem

Das nossas praias solitárias! Tigre

A que as brisas da terra o sono embalam,

A que o vento do largo erriça o pelo!

Ouço-te às vezes revoltado e brusco,

Escondido, fantástico, atirando

Pela sombra das noites sem estrelas

A blasfêmia colérica das ondas...

Também eu ergo às vezes

Imprecações, clamores e blasfêmias

Contra essa mão desconhecida e vaga

Que traçou meu destino. Crime absurdo

O crime de nascer! Foi o meu crime.

E eu expio-o vivendo, devorado

Por essa angústia do meu sonho inútil.

Maldita a vida que promete e falta,

Que mostra o céu prendendo-nos à terra,

E, dando as asas, não permite o voo!

*

Ah! cavassem-te embora

O túmulo em que vives — entre as mesmas

Rochas nuas que os flancos te espedaçam,

Entre as nuas areias que te cingem.

Mas fosses morto, morto para o sonho,

Morto para o desejo de ar e espaço,

E não pairasse, corno um bem ausente,

Todo o infinito em cima de teu túmulo!

Fosses tu como um lago,

Como um lago perdido entre montanhas:

Por só paisagem — áridas escarpas,

Uma nesga de céu como horizonte.

E nada mais! Nem visses nem sentisses

Aberto sobre ti de lado a lado

Todo o universo deslumbrante — perto

Do teu desejo e além do teu alcance!

Nem visses nem sentisses

A tua solidão, sentindo e vendo

A larga terra engalanada em pompas

Que te provocam para repelir-te;

Nem buscando a ventura que arfa em roda,

A onda elevasses para a ver tombando,

— Beijo que se desfaz sem ter vivido,

Triste flor que já brota desfolhada.

*

Mar, belo mar selvagem!

O olhar que te olha só te vê rolando

A esmeralda das ondas, debruada

Da leve fímbria de irisada espuma.

Eu adivinho mais: eu sinto, ou sonho

Um coração chagado de desejos

Latejando, batendo, restrugindo

Pelos fundos abismos do teu peito.

Ah, se o olhar descobrisse

Quanto esse lençol de águas e de espumas

Cobre, oculta, amortalha! A alma dos homens

Apiedada entendera os teus rugidos,

Os teus gritos de cólera insubmissa,

Os bramidos de angústia e de revolta

De tanto brilho condenado à sombra,

De tanta vida condenada à morte!

*

Ninguém entenda, embora,

Esse vago clamor, marulho ou versos,

Que sai da tua solidão nas praias,

Que sai da minha solidão na vida.

Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos

E embale-nos a nós que o murmuramos.

Versos, marulho! amargos confidentes

Do mesmo sonho que sonhamos ambos!

 

SONHO PÓSTUMO

I

Poupem-me, quando morto, à sepultura: odeio

A cova, escura e fria.

Ah! deixem-me acabar alegremente, em meio

Da luz, em pleno dia.

O meu último sono eu quero assim dormi-lo:

— Num largo descampado,

Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo.

E a primavera ao lado.

Bailem sobre o meu corpo asas trêmulas, asas

Palpitando de leve,

De insetos de ouro e azul, ou rubros como brasas,

Ou claros como neve.

De entre moitas em flor, oscilantes na aragem,

Úmidas e cheirosas,

Espalhando em redor frescuras de folhagem,

E perfume de rosas,

Subam, jovializando o ar, canções suaves

— A música sonora

Em que parece rir a alegria das aves,

Encantadas da aurora.

E cada flor que um galho acaso dependura

À beira dos caminhos

Entreabra o seio ao sol, às brisas, à doçura

De todos os carinhos.

Passe em redor de mim um frêmito de gozo

E um calor de desejo,

E soe o farfalhar das árvores, moroso

Como o rumor de um beijo.

Palpite a natureza inteira, bela e amante,

Voluptuosa e festiva,

E tudo vibre e esplenda, e tudo fulja e cante,

E tudo sonhe e viva.

A sepultura é noite onde rasteja o verme.

Oh luz que eu tanto adoro,

Amortalha-me tu! E possa eu desfazer-me

No ar claro e sonoro!

II

A lousa tumular o corpo fecha e cobre

De sombra e de abandono,

E paira, horrível como um pesadelo, sobre

O derradeiro sono.

É, decerto, pior que a morte; desconforto

É, por certo, mais triste:

A morte mata só — e não separa o morto

De tudo mais que existe.

Que é a morte, afinal, que tanto horror merece?

— Mais um degrau da escada

Por onde eternamente a vida sobe e desce

Do nada para o nada.

Pelo agitado mar sem praias do universo

O homem surge e deriva

Ao acaso, como um floco de espuma, emerso

De uma onda fugitiva.

Quando a morte o devolve ao seio que o gerara,

Sem que o extinga e consuma,

Funde-o na onda que vai rolando, e que não para

De erguer flocos de espuma.

O morto volve ao chão da terra benfeitora

Desfeito em mil destroços,

E restitui-lhe assim tudo que em vida fora:

— Carne vestindo uns ossos.

Só perde um sonho: o sonho apenas esboçado

No rápido transporte

Que o trouxe bruscamente impelido, empurrado

Do berço para a morte.

Sonho belo talvez, confuso com certeza,

Feito de riso e pranto,

Feito de sombra e luz, de alegria e tristeza,

De encanto e desencanto.

Sonho que surge como um turbilhão, e passa

E acaba num momento

Como um rumor sem eco, um pouco de fumaça

Espalhada no vento.

Tudo mais volta ao seio infinito desse horto

Que gera eternamente

A vida, e espera só que a morte, em cada morto

Lhe atire uma semente.

III

Porque se arroja, pois, ao túmulo, fechado

— Como um cárcere escuro —

A tudo quanto é belo e esplende ao sol dourado

Sob o céu claro e puro,

Porque se larga à sombra, e se condena à lama,

E se abandona ao verme,

Porque assim se castiga, e se repele, e infama

Um pobre corpo inerme?

Corpo que veio de uma explosão de desejo,

Encantado produto

De uma noite de amor — e que saiu de um beijo

Como, da flor, o fruto;

Corpo onde o olhar viveu para tudo que brilha,

Para as cousas mais belas:

— A terra em flor, o mar ao sol, a maravilha

Do céu cheio de estrelas;

Onde cada rumor em que a noite transborda

Sob o luar tristonho

Foi despertar um eco e vibrar uma corda,

E acalentar um sonho;

Corpo que tanta vez o aroma — essa carícia

Em que a flor se consome —

Encantou de um prazer sutil, de uma delícia

Sem igual e sem nome;

Onde o lábio se abriu, úmido como as rosas

Quando amanhece o dia,

Para o sorriso, o beijo, e as cousas deliciosas

Que o amor pronuncia.

Condenado por fim à dispersão da morte,

O universo o reclama.

Entre tudo quanto há, porque lhe dar por sorte

O desfazer-se em lama?

IV

Oh! Deixai que o disperse o vento, asa ligeira

Em que sobe do chão,

Em que se eleva no ar tudo quanto é poeira

E decomposição.

Sim, deixai que o fecunde o sol, esse batismo,

Essa ablução de luz

De que surgem sorrindo em flor — bordas de abismo

E lamas de pauis.

Sim, deixai que o redima o orvalho, em que, de rastros,

No chão dos areais,

A argila, recebendo a comunhão dos astros

Estrela-se em rosais.

Da matéria imortal que ao acaso reunida

Pairou nesse apogeu:

A vida humana; e após, de tão alto abatida,

Caiu e apodreceu,

Possa cada fragmento, e cada átomo possa

Obter o jubileu

Em que, para o que é vil, se arrepende e se adoça

O mau humor do céu;

Mau humor de que surge o verme, esse enjeitado,

Esse erro, o caracol;

Que condena, que humilha o pó que é pó, ao lado

Do pó que é luz do sol;

E que afinal se abranda e se penitencia

Naquela redenção

De que a noite ressurge e se desmancha em dia,

E o castigo em perdão.

A poeira se dispersa; o charco se evapora;

Perde-se o fumo no ar:

São feitos desse nada ouros fulvos de aurora.

Brancuras de luar.

V

Implacável rancor do espírito à matéria,

Da ilusão à verdade,

Do que sonha ao que vive. Oh miséria, miséria!

Oh vaidade, vaidade!

A alma insubmissa e vã supõe-se encarcerada

No corpo, essa prisão,

— Ilha de um rude mar, princesa desterrada,

Flor caída no chão;

Considera-se como a fina essência, presa

Num vaso desprezado;

Vê no corpo um montão de infâmia e de torpeza,

De vício e de pecado.

A morte — como um fim de cativeiro encara

— Um romper de manhã,

A hora da partida ansiosa e livre para

As terras de Canaã.

Alma, é louco o desejo altivo, em que te abrasas,

De céus nunca atingidos;

Ai, que serias tu, pássaro, sem as asas,

Alma, sem os sentidos?

Nos olhos se esvazie o olhar, que te revela,

Que descobre, ou que faz

Tanta extensão de azul, tanto fulgor de estrela.

Alma, que sonharás?

Alma, que sonharás, na silenciosa ausência

Do som — emudecida

Para o teu devaneio a vaga confidência

Dos subsolos da vida?

Em vão levantas no ar as tuas fantasias

E as tuas ambições;

Arquitetas em vão tantas filosofias,

Tantas religiões.

Para mais desterrar na morte a carne, morta

Por fim, enfim vencida,

Inventaste o pavor de um cárcere sem porta,

De um antro sem saída.

Inventaste-o debalde. O túmulo condena

O corpo à podridão,

Mas não te exime a ti da mesma escura pena

De apodrecer no chão:

Sangue que o coração alvoroça e amotina,

Vibração provocada

Dos nervos, e depois, um sonho da retina.

És tudo isso, e mais nada.

VI

O derradeiro sono, eu quero assim dormi-lo:

Num largo descampado,

Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo

E a primavera ao lado.

Amortalhe-me a noite estrelada; arda o dia

Depois, claro e risonho;

E seja a dispersão na luz e na alegria

O meu último sonho.

 

CARTA A V. S.

Artista, amigo, irmão, sê generoso e pio,

Perdoa a um pescador seus pecados mortais!

Eu, alma em turbilhão, corpo em cacos, expio

Com remorsos cruéis e cólicas, fatais

— Faltas em que reincido, erros em que porfio.

Ai, no fundo, não sou mais do que um bugre, eis tudo.

Corre abundante em mim sangue de guaianás.

Veste-me a pele branca o espírito desnudo,

Simples, rudimentar, insubmisso, incapaz,

Que porventura herdei de algum avô beiçudo.

Imagina que sou neto de algum cacique

Cuja vida feliz de nômade sem lar

Tinha a alegre feição de um grande piquenique;

E em cuja fronte altiva as plumas de um cocar

Eram como a expressão ritual do último chic.

Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado

Mantinha a liberdade inata da nudez;

Que dormia tranquilo um sono descuidado

— Passivo, indiferente, enfarado talvez —

Sob o mistério azul do céu todo estrelado.

Ignorando o pavor da vida extraterrena,

Tinha para o Futuro um olhar de imbecil;

E, passando na Terra, inútil, em pequena

Viagem através da natureza hostil,

Vivia sem cuidado e morria sem pena.

Vegetava feliz, sem lei, sem rei nem roque.

Sua única ambição era a fome vivaz,

Sua única riqueza, uma flecha e um bodoque;

E abria-se num riso eterno e contumaz

O seu lábio — fendido ao peso do batoque.

Imagina tu, pois, a alma do avô selvagem

Comprimida, esmagada, atônita, infeliz,

Metida numa vasta e complexa engrenagem

De deveres morais e tramoias subtis,

De apuros de dinheiro e apuros de linguagem;

Imagina esse filho inculto da floresta,

Que ama o céu porque é belo, e ama o sol porque luz,

— Perdido na Cidade ignóbil e funesta,

Cheia de sombra e pó, caiada e desonesta,

Velha Aspásia, garrida, e a desfazer-se em pus;

Vê se esse humilde e tosco espírito imaginas,

Ao sabor de uma turba em grita e em confusão,

Pela prédica e o livro, os jornais e as mofinas,

Arrastado em tropel — disputado em leilão

Em nome de três mil Sistemas e Doutrinas;

Imagina cativa, entregue, submetida

Aos caprichos da Moda e à exigência das Leis,

Entre o encanto do Mal e a ideia da Outra Vida,

Entre o culto de Deus e o culto do Mil-réis,

Entre o padre e o vendeiro, entre o Verso e a Comida;

Ai, imagina assim a alma do bugre bravo,

Meu avô — que, no mato, era o dono feliz

Do seu tempo vazio e do seu gosto ignavo,

Que era, em suma, o senhor do seu próprio nariz.

— Alma livre que em mim reviveu num escravo!

Alma apenas capaz de adejar, fugidiça,

Em voos leves de uma asa de beija-flor;

E obrigada a pairar nas regiões da Justiça

Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor

Para, do alto, melhor lobrigar a carniça.

Ai, a alma do tupi, bem mal domesticada

À macaqueação cabocla do europeu,

Conserva, forte e viva, a angústia de exilada,

A saudade fiel de tudo que perdeu,

Da floresta nativa, ausente e devastada.

Assim, de quando em quando assalta-me a cachola

Um furioso desejo — ou do mato, ou do mar,

Das vastas solidões onde ninguém me amola.

E, pássaro cativo, eu fujo, a me escapar

Da Civilização — como de uma gaiola.

Fujo, escapo, disparo através das vielas

Plenas de agitação, de atritos e de pó;

Salvo-me, aos esbarrões, dando sebo às canelas,

A ouvir a voz de algum descendente de Job

Que apregoa Moral — coberto de mazelas.

Liberto, a salvo enfim, penetro na floresta

Como num templo augusto habitado por Deus;

E ante o vasto esplendor da natureza em festa,

Sob a auréola em que a cinge a abóbada dos céus

— Rendo-lhe a adoração que o meu olhar lhe presta.

Nem padres, nem altar, nem liturgia. Um coro

De aves canta a alegria ingênua de viver;

De longe em longe reza e resmunga um besouro,

E sobe, como incenso, o perfume, a se erguer

Da sombra em flor do chão que o sol polvilha de ouro.

E, por um dia ou dois, eis-me entregue, alma antiga

De bugre ressurreto, o olhar vago, os pés nus,

À doce Religião da Natureza amiga.

Erro à toa; o primeiro atalho me conduz,

Ver o céu me contenta; uma árvore me abriga.

Estendo-me na relva; e, na delícia absorto

De sentir a alma leve, oca, vazia, assim

Gozo a beatitude inteira do conforto

De me deixar levar pelo tempo sem fim

Como um toco sem vida a boiar num mar morto.

Não pensar, não querer. A ambição e a saudade

Adormecidas; morta essa ilusão pueril

De fazer intervir no Destino a Vontade.

Ignorar o Minuto, inseto odioso e vil

Que rói a vida e vai tecendo a eternidade.

Na solidão do mato, esqueço, ignoro, em suma:

Sou feliz. Dou sueto a esta alma de aluguel

Que vive, de auto em auto, a desfazer-se em espuma;

E, livre do canudo atroz de bacharel,

Passo orgulhosamente a ser cousa nenhuma.

E o mar então. O mar, o velho confidente

De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar,

Atrai-me; a sua voz chama-me docemente,

Dá-me uma embriaguez como feita de luar.

O mar é para mim como o Céu para um crente.

Vê tu lá, Valdomiro, o bugre apenas manso

Que eu sou. Sob o verniz que me disfarça, está

O tapuia boçal, bravio como um ganso,

Devoto da Preguiça, amigo do descanso,

— Um neto do remoto avô Tibiriçá.

Ímpetos de voltar, fugido, para o mato,

De me fazer ao mar numa casca de noz:

Eis o vício do bugre, eis o meu vício inato,

Eis o que eu em remorso e em cólicas resgato,

Eis o crime de ser neto de meus avós.

E agora, conhecendo a verdade inteiriça,

Perdoa a um pescador seus pecados mortais,

Perdoa a um preguiçoso os crimes da Preguiça,

E a um bugre como eu sou, não ter na alma insubmissa

O culto da Visita e dos Cartões Postais!

Falando agora a sério — e envergonhado o digo:

Não, desculpa não há que ouse em prosa valer

Às mil faltas em que eu estou para contigo.

O verso diz o que não há para dizer:

Pague, pois, o poeta as dívidas do amigo.

Paga-as; paga-as à vista, em rima numerosa;

Paga-as de rosto alegre e coração feliz,

Porque, na mesma estrofe exata e afetuosa,

Pode, na mesma voz que o mesmo verso diz,

Saudar a um tempo o amigo e o príncipe da prosa.

Lida a defesa, que é tão extensa e tão crua,

Outorga ao réu confesso um perdão liberal.

Pai do céu! ainda aqui fiz uma falcatrua:

Sendo a defesa assim tão comprida — afinal

Os pecados são meus — e a penitencia é tua.

 

SUGESTÕES DO CREPÚSCULO

Ao pôr do sol, pela tristeza

Da meia luz crepuscular,

Tem a toada de uma reza

A voz do mar.

Aumenta, alastra e desce pelas

Rampas dos morros, pouco a pouco,

O ermo de sombra, vago e oco,

Do céu sem sol e sem estrelas

Tudo amortece, e a tudo invade

Uma fadiga, um desconforto.

Como a infeliz serenidade

Do embaciado olhar de um morto.

Domada então por um instante

Da singular melancolia

De entorno — apenas balbucia

A voz piedosa do gigante.

Toda se abranda a vaga hirsuta,

Toda se humilha, a murmurar,

Que pede ao céu que não a escuta

A voz do mar?

II

Estranha voz, estranha prece

Aquela prece e aquela voz,

Cuja humildade nem parece

Provir do mar bruto e feroz.

Do mar, pagão criado às soltas

Na solidão, e cuja vida

Corre, agitada e desabrida,

Em turbilhões de ondas revoltas;

Cuja ternura assustadora

Agride a tudo que ama e quer,

E vai, nas praias onde estoura

Tanto beijar como morder.

Torvo gigante repelido

Numa paixão lasciva e louca,

É toda fúria: em sua boca

Blasfema a dor, mora o rugido.

Sonha a nudez; brutal e impuro

Branco de espuma, ébrio de amor,

Tenta despir o seio duro

E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito

De lhe escapar, se esconde, — e anseia

Atrás de Cômoros de areia

E de penhascos de granito:

No encalço dessa esquiva amante

Que se lhe furta, segue o mar;

Segue, e as maretas solta adiante

Como matilha, a farejar.

E, achado o rastro, vai com as suas

Ondas e a sua espumarada

Lamber, na terra devastada,

Barrancos nus e rochas nuas.

III

Mais formidável se revela,

E mais ameaça e mais assombra

A uivar, a uivar dentro da sombra

Nas fundas noites de procela.

Tremendo e próximo se escuta,

Varrendo a noite, enchendo o ar,

Como o fragor de uma disputa

Entre o tufão, o céu e o mar.

Em cada ríspida rajada

O vento agride o mar sanhudo:

Roça-lhe a face, com o agudo

Sibilo de uma chicotada.

De entre a celeuma, um estampido

Avulta e estoura, alto e maior,

Quando, tirano enfurecido,

Troveja o céu ameaçador.

De quando em quando, um tênue risco

De chama vem, da sombra em meio.

E o mar recebe em pleno seio

A cutilada de um corisco.

Mas a batalha é sua, vence-a:

Cansa-se o vento, afrouxa, e assim

Como uma vaga sonolência

O luar invade o céu sem fim.

Donas do campo, as ondas rugem;

E o monstro impando de ousadia,

Pragueja, insulta, desafia

O céu, cuspindo-lhe a salsugem.

IV

A alma raivosa e libertina

Desse tenaz batalhador

Que faz do escombro e da ruína

Como os troféus do seu amor;

A alma rebelde e mal composta

Desse pagão e desse ateu

Que retalia e dá resposta

À mesma cólera do céu;

A alma arrogante, a alma bravia

Do mar, que vive a combater,

Comove-se à melancolia

Conventual do entardecer

No seu clamor esmorecido

Vibra, indistinta e espiritual,

Alguma cousa do gemido

De um órgão numa catedral.

E pelas praias aonde descem

Do firmamento — a sombra e a paz;

E pelas várzeas que emudecem

Com os derradeiros sabiás;

Ouvem os ermos espantados

Do mar contrito no clamor

A confidência dos pecados

Daquele eterno pecador.

V

Escutem bem. Quando entardece,

Na meia luz crepuscular

Tem a toada de uma prece

A voz tristíssima do mar

 

FOLHA SOLTA

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,

Mas a vós mesma e à vossa formosura,

Pois se vos aborrece, me tortura

Ver-me cativo assim do vosso encanto.

Enfadais-vos; parece-vos que, enquanto

Meu amor se lastima, vos censura;

Mas sendo vós comigo áspera e dura,

Que eu por mim brade aos céus não causa espanto.

Se me quereis diverso do que agora

Eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois

Ido o rigor que em vosso peito mora,

A mudança será para nós dois:

E então podereis ver, minha senhora,

Que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.

 

A PARTIDA DA MONÇÃO

I

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

Nem o porte arrogante, o sobranceiro aprumo

— Altivo no descanso e ousado nos tufões —

Dessas águias que vão bordejando sem rumo

Pelo acaso do mar, feito de turbilhões;

Nem a airosa altivez de velas desfraldadas

Fulgindo ao sol, ao vento abroquelando o bojo;

Nem proas a romper ondas e espumaradas,

Pelos parcéis em fúria arroteando o rebojo;

Nada disso que faz o petulante orgulho

De afoitos bergantins e galeras reais:

Calcar a onda, rompê-la, ouvindo no marulho

A comemoração de seus passos triunfais;

Nem adiante, acirrando o desejo atrevido

De aventura e perigo, ânsias de glória, em suma,

— A infinita extensão do mar ermo, perdido

Nos confins do horizonte amortalhado em bruma;

Nem o arroubo, a poesia, a esperança fogosa

De ir ao longe, através das ondas, conquistar

A nudeza pagã e a virgindade ociosa

De ermas ilhas em flor nas solidões do mar

II

Humildes, toscas naus de borda rastejante

À tona d’água, naus de estreitos rios quietos,

Vão apenas abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

Levadas no pendor macio da corrente,

Irão seguindo, irão seguindo sem rumor

E sem vontade, mole e resignadamente,

Por um rumo servil, forçado e encantador.

A raiva dos tufões (como a grita afastada

De eco em eco se adoça em suspiro de mágoas)

Esvaída, a morrer de quebrada em quebrada,

Mal roçará de leve a face azul das águas.

Em todo o curso, a terra ao lado, seio amigo,

Companheira constante e proteção fiel,

Pondo o socorro à mão nas ânsias do perigo,

Dando ao gozo do olhar delícias de um vergel.

E o rio, manso, manso, a ondular, murmurando

O seu murmúrio igual, monótono estribilho,

Morosa cantilena, em voz baixa e em tom brando,

De mãe que embala o berço onde repousa o filho.

E o rio, manso, manso, a embalá-las, descendo,

No balanço sutil da mole ondulação,

E a arrastá-las, de leve, assim, para o tremendo,

Para o longínquo, vago, infinito sertão.

III

Hão de em breve surgir, pelas margens sinuosas

Florestas virgens de onde um confuso rumor

Sobe de solidões profundas, misteriosas,

Como um uivo agourento, um uivo ameaçador.

Voz sem eco, a não ser na alma de quem a escuta,

Surdo resfolegar de monstro provocado

Que de repente acorda e, prestes para a luta,

Abre a goela de sombra, e espera, sossegado.

Sossegado, seguro, apercebido, espera,

Os que lhe vêm trazer, fanática oblação,

Corações para a flecha e sangue para a fera,

Carniça para o abutre e ossadas para o chão.

A oculta sucuri, das ervas no disfarce,

Ergue a cabeça, afirma o olhar esconso e fusco,

E vagarosamente, e como a espreguiçar-se,

Desenrodilha o corpo e apresta o salto brusco.

Na sombra eternamente apagada, noturna,

De fundos socavões virgens da luz solar,

Em cada gruta, em cada escuro, em cada furna,

Relampejam fuzis nos olhos de um jaguar

IV

Depois da mata escura, o campo undoso e verde,

Banhado em sol, fechado em céu ao longe; e assim

Tão vasto e nu, que o olhar se fatiga e se perde

Num esplendor sem sombra e num ermo sem fim.

Paira, grassa em redor, toda a melancolia

De uma paisagem morta, igual, deserta e imensa,

Pondo nos olhos e nas almas que enfastia

Um peso ainda maior que a dor, a indiferença.

Desanimado, absorto, ante essa indefinida

Solidão que se espraia além, além, o olhar

Tem a impressão que faz a tristeza da vida:

De ir seguindo, seguindo, e nunca mais voltar.

Sobre os dias irão caindo as noites. Vastas

Noites de um céu que é todo azul de lado a lado,

Quando, oh triste luar das planícies, afastas

Ainda mais, ainda mais, o horizonte afastado.

V

De repente, uma flecha alígera sibila.

De onde veio? Da sombra. E a sombra, de repente,

— Traição da cascavel numa alfombra tranquila —

Principia a silvar com silvos de serpente.

Por toda parte a larga escuridão se anima

Desse leve rumor que espalha a morte, e sai

Do chão e voa, ou vem rastejante, ou, de cima,

Salpicado, vivaz, como um granizo, cai.

Bruscamente borbulha em fantasmas a margem

Agitada do rio. O clarão da metralha

Responde à sombra. E de eco em eco a imensa vargem

Reboa de um fragor de guerra e de batalha.

Eis o caminho aberto ao triunfo e à conquista.

— Como a corça ferida escapa e foge em vão,

Deixando atrás, deixando, úmida e fresca, a pista

De seu flanco rasgado e sangrando no chão;

Fugitiva e dispersa, a turba dos vencidos

Atrai, guia, conduz para a tribo distante,

Para a perdida paz de seus lares traídos,

A guerra, o cativeiro, a morte: o bandeirante.

Ferve a luta. De serra a serra voa o rouco

Som da inúbia, acordando ecos e legiões;

Ouriço monstruoso, o sertão, pouco a pouco

Todo se erriça das flechas de cem nações.

VI

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante,

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante,

Para assombros de glória, o seu voo de insetos.

Apinhem-se na praia os velhos, derramando

De encarquilhadas mãos inúteis para mais

A bênção dos que já se sentem bruxuleando

Aos que lhes vão tornar os nomes imortais.

Mães, deixai que, sonhando, a vista embevecida

De vossos filhos pouse, e se ilumine, e aprenda

Nessa formosa folha em que o livro da vida

Tem estrofes de poema e proporções de lenda.

Noivas, com os corações envoltos na penumbra

Indecisa do amor que se orgulha e se doe,

Vinde trazer-lhes vosso olhar de que ressumbra

Saudade pelo amante e enlevo pelo herói.

Ao largo, enfim! Clarins e buzinas atroam.

E as canoas, na luz da manhã cor de rosa,

Pairam por um momento em pleno rio; aproam

Para o sertão. E rompe a marcha vagarosa.

Nos barrancos, até rente d’água investidos

De filhos a sorrir e de mães a chorar,

Lancem as frouxas mãos e os olhos comovidos

O derradeiro adeus e o derradeiro olhar

VII

Longe, na solidão do campo undoso e verde,

O rio serpenteia. Em cada contorção

Mais se afasta. E a fugir, pouco a pouco se perde

No majestoso, vago, infinito sertão.

 

UMA IMPRESSÃO DE D. JUAN

Gastei no amor vinte anos, os melhores

Da minha vida pródiga: esbanjei-os

Sem remorso nem pena, em galanteios,

Colhendo beijos, desfolhando flores.

Quentes olhares de olhos tentadores,

Suspiros de paixão, arfar de seios,

Conheci-os, buscaram-me, gozei-os.

Li folha a folha o livro dos amores.

Quanta lembrança de mulher amada,

Quanta ternura de alma carinhosa,

Sim, quanto amor que me passou na vida!

E nada sei do amor. Não, não sei nada,

E cada rosto de mulher formosa

Dá-me a impressão de folha inda não lida.

 

A TERNURA DO MAR

No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro

Ia boiando a Lua indiferente e fria.

De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,

Em baixo, o mar dizia:

“Lua, só meu amor é fiel tempo em fora.

Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas

Sombras do entardecer todo entristece, e chora

Marejado de estrelas;

Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua

— Como a folha que vai arrastada na brisa —

Aos caprichos do tempo inconstante flutua

Indecisa, indecisa.

Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores

Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,

A árvore que viçou toda folhas e flores,

Toda aromas e ninhos;

Cóleras de tufão, pompas de primavera,

Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,

A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...

— Só meu amor não muda!

Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:

Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,

Dentro de vagalhões penhascos submergindo.

Submergindo montanhas.

Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa

A largura da terra e o fraguedo dos montes.

Hei de chegar aí de onde vens nua e clara

Subindo os horizontes.

Um passo para ti cada dia entesouro,

Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...

Dona do céu azul e das estrelas de ouro,

Um dia serás minha!

E serei teu escravo, à noite, pela calma

Rendilharei de espuma o teu berço de areias,

E há de embalar teu sono e acalentar tua alma

O canto das sereias.

Quando a aurora romper no céu despovoado,

Tesouros a teus pés estenderei, de rastros.

Ser amante do mar vale mais, sonho amado,

Que ser dona dos astros.

Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,

Todo me tingirei de mil cores cambiantes,

E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista

Das ondas arquejantes.

Levar-te-ei de onda em onda a vagar de ilha em ilha,

Tranquilas solidões, ermas como atalaias,

Onde o marulho canta e a salsugem polvilha

A alva nudez das praias.

Ao longe, de repente assomando e fugindo,

Alguma vela, ao sol, verás, alva de neve:

Teus olhos sonharão enlevados, seguindo

Seu voo claro e leve;

Sonharão, na delícia indefinida e vaga

De sentir-se levar sem destino, um momento,

Para além, para além, nos balanços da vaga,

Nos acasos do vento.

Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,

Onde cascos de naus arrombadas, a espaços

Dormem o último sono estendidos na alfombra

De algas e de sargaços.

Opulentos galeões, pelas junturas rotas,

Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,

Que foram conquistar às praias mais remotas,

Pelos parcéis mais duros.

Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas

Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,

Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,

Sombra, fuzis, bramidos,

Todo o estranho pavor das águas afrontando,

Altivos como reis e leves como plumas,

Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando

Uma esteira de espumas.

Ei-los, carcaças vis d’onde o ouro em vão supura,

Esqueletos de heróis, dei-os em pasto à fome

Silenciosa e sutil da multidão obscura,

Dos moluscos sem nome.

Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,

Onde, numa bizarra exuberância, a flora

Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela

E conchas cor de aurora;

Onde o humilde infusório aspira às maravilhas

Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos

De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,

Arquipélagos, mundos.

Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida. Eu te amo,

Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!

Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!

Um dia serás minha!

Embalde nos afastai, embalde nos separa

A largura da terra e o fraguedo dos montes:

Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara

Subindo os horizontes.”

Na quietação da noite apenas tumultua

Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar

Corta o silêncio, agita o sossego, flutua,

E espalha-se no luar.

 

ROSA, ROSA DE AMOR...

Rosa, rosa de amor purpúrea e bela,

Quem entre os goivos te esfolhou da campa?

GARRET. OLHOS VERDES

 

I

OLHOS VERDES

Olhos encantados, olhos cor do mar

Olhos pensativos que fazeis solhar!

Que formosas cousas, quantas maravilhas

Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo

Cortes pitorescos de afastadas ilhas

Abanando no ar seus coqueirais em flor,

Solidões tranquilas feitas para o beijo,

Ninhos verdejantes feitos para o amor.

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noite, vai subindo a Lua.

O horizonte, como para recebê-las,

De uma fimbria de ouro todo se debrua;

Afla a brisa, cheia de ternura ousada,

Esfrolando as ondas, provocando nelas

Bruscos arrepios de mulher beijada.

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, toda alvor, se afasta

Balançando na onda, palpitando ao vento

Ei-la que mergulha pela noite vasta,

Pela vasta noite feita de luar;

Ei-la que mergulha pelo firmamento

Desdobrada ao longe nos confins do mar.

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,

Como a noite é clara! como o céu é lindo!

Leva-me contigo pelo mar. Adiante!

Leva-me contigo até mais longe, a essa

Fimbria do horizonte onde te vais sumindo

E onde acaba o mar e de onde o céu começa.

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,

Olhos cor do mar!

 

II

MANHÃ DE SOL

Na sombra do murtal, cujas flores a leve

Aragem desgrinalda em turbilhões de neve,

Ela vagueia a sós. E como vai formosa!

Tem como uma frescura orvalhada de rosa

Na face... Em seu sorriso amanhece.

É tão brando O seu pisar, que o chão o acolhe suspirando.

— Eis o sol! — canta uma ave ao fitar-lhe a retina...

E por onde ela passa a sombra se ilumina.

Descuidada e feliz, entre as árvores ela

Erra à toa. Sorrindo, as aves interpela.

Corre de flor em flor, salta de moita em moita.

Ora entre a ramaria o olhar travesso afoita

E tenta surpreender o segredo de um ninho;

Ora cisma, fitando o vago desalinho

Em que toda palpita, em que se entrega toda,

A folhagem que o vento acaricia. Em roda,

Em tudo, vê um ar festivo de noivado.

Cada flor abre ao sol o cálice orvalhado,

Úmido como um lábio em que pousasse um beijo...

E o seu passo é sutil, e erra como um adejo.

Surpreendo-a. Ela estaca, assustada, indecisa;

Mal com os pezinhos nus o chão musgoso pisa

Num ar de juriti prestes a abrir o voo.

Tomo-lhe as mãos; baixinho, ao seu ouvido, entoo

A atrevida canção do amor que tudo pede,

Do amor que não é mais do que um furor de sede,

Que é o amor afinal.

Toda a sua alma escuta,

Todo o seu corpo treme. Amante e irresoluta,

Quer ceder, e resiste; abrasa, e não se atreve.

E de súbito, como a corça arisca e leve

Que sente o caçador e ouve silvar a bala,

Ela das minhas mãos bruscamente resvala,

Salta, foge-me.

Em vão. Salto-lhe empós; não tomba

Mais faminto um abutre em cima de uma pomba.

Ela, sem rumo, vai e erra ao acaso, numa

Vaga trepidação, como ao vento uma pluma.

E o seu passo recorta o chão, que abaixa e alteia

Aqui um charco, adiante um cômoro de areia.

Aos poucos, a carreira afrouxa. Em cada passo

Mais e mais ela mostra a angústia do cansaço,

Arfa-lhe o seio; perde o folego; tropeça;

Para.

Alcança-a meu beijo. O noivado começa.

 

III

HORAS DE AMOR

Só vivo as horas que passo

Junto de ti, meu amor,

Tua cintura em meu braço,

Meu beijo em tua boca em flor.

Só assim vivo, querida,

Pois tudo mais não é vida.

———

Ventura que mal goteja,

Triste do amor que se esconde,

E só acha de onde em onde

Um acaso que o proteja;

Só alcanço o teu carinho

Nesta sombra de folhagem,

Onde, como ave selvagem,

Nosso amor tem o seu ninho.

Por entre as moitas vagueio,

Caminho, paro, indeciso.

Virás ou não? E agonizo

Entre a esperança e o receio.

Por toda a floresta, cheia

De um rumor vago e perdido,

Cuido escutar o ruído

Dos teus pezinhos na areia.

Volto-me sobressaltado

Só porque uma ave deteve

O voo, e um ramo, de leve,

Estremeceu ao meu lado.

E enquanto na sombra curto

Essa impaciência hesitante

Por ternuras de um instante,

Por beijos dados a furto,

Cheio de inveja reparo

Nas borboletas que em bando

Passam felizes, amando

Na plena luz do sol claro.

Ventura que mal goteja,

Triste do amor que se esconde,

E só acha de onde em onde

Um acaso que o proteja.

Amor que a sombra encarcera,

E foge ao sol e às estradas

Fossemos nós de mãos dadas

Pela vida e a primavera!

De súbito, ouço teus passos:

De entre folhagens de arbusto

Olhas, trêmula de susto,

Cais palpitante em meus braços.

E como a cansada abelha

Que suga a flor, e adormece,

Meu beijo pousa, e se esquece

Em tua boca vermelha.

Logro só de espaço a espaço

Algum momento de amor,

Tua cintura em meu braço,

Meu beijo em tua boca em flor.

— Ai, eu só vivo querida,

Pedaços da minha vida.

 

IV

PRIMEIRA SOMBRA

— Mal me quer bem me quer.

— Será preciso

Que uma flor assegure o que digo e tu vês?

O meu olhar, pousando em teu sorriso,

Mostra-te que és amada e adivinha que o crês.

— Mal me quer bem me quer.

— E, comovida,

Tremes, como esperando uma sentença atroz.

— Supões que espalhe a noite em nossa vida

A sombra de uma flor perpassando entre nós?

Mal me quer... Mal me quer... Desde ontem, quando

Faltaste, adivinhei tudo que a flor me diz.

Tenho-te junto a mim e fito-te chorando;

Beijas-me ainda, e já não sou feliz.

Dize que estou sonhando, que estou louca!

Jura que sou feliz, que os teus dias são meus,

E que o beijo que ainda orvalha minha boca

Não é tua alma que me diz adeus.

A amorosa doçura do teu verso

Ecoou em minha alma; em teu verso aprendi

A soletrar o amor, o Amor — esse universo

Radioso, imenso, e resumido em ti.

A tua voz chamou-me; eu escutei-a

E segui-a, ditosa, a sorrir e a sonhar

Fala-me ainda de amor! Não te cales, sereia

Que me atraíste para o azul do mar!

Minha alma, envolta em trapos de mendiga,

Vai seguindo, no chão, do teu passo o rumor.

Não me deixes! Serei a sombra que te siga,

Sem indagar onde me leva o amor.

Não me abandones! Ama-me! A risonha

Aurora inunda o céu todo afogado em luz.

Sou formosa, sou moça, amo-te... Ama-me! Sonha,

Pousada a fronte nos meus seios nus!

Que alegre madrugada cor de rosa,

Ser amada por ti, claro sol que tu és!

Eu dei-te a minha vida. É tua. Esbanja-a, goza

Toda esta primavera estendida a teus pés.

Bem amado que, como um pássaro num ramo,

Vieste acaso pousar o voo no meu seio,

Não me deixes! Eu quero ouvir ainda o gorjeio

Em que teu beijo é que dizia: “Eu te amo!”

 

V

CAIR DAS FOLHAS

“Deixa-me, fonte!” Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria,

Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!”

Dizia a flor a chorar:

“Eu fui nascida no monte.

“Não me leves para o mar.”

E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria,

Corria levando a flor.

“Ai, balanços do meu galho,

“Balanços do berço meu;

“Ai, claras gotas de orvalho

“Caídas do azul do céu!”

Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte sonora e fria,

Rolava, levando a flor.

“Adeus, sombra das ramadas,

“Cantigas do rouxinol;

“Ai, festa das madrugadas,

“Doçuras do pôr do sol;

“Carícia das brisas leves

“Que abrem rasgões de luar

“Fonte, fonte, não me leves,

“Não me leves para o mar!”

As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor.

 

VI

DESILUDIDA

Sou como a corça ferida

Que vai, sedenta e arquejante,

Gastando uns restos de vida

Em busca da água distante.

Bem sei que já me não ama,

E sigo, amorosa e aflita,

Essa voz que não me chama,

Esse olhar que não me fita.

Bem reconheço a loucura

Deste amor abandonado

Que se abre em flor, e procura

Viver de um sonho acabado;

E é como a corça ferida

Que vai, sedenta e arquejante,

Gastando uns restos de vida

Em busca da água distante:

Só, perdido no deserto,

Segue empós do seu carinho;

Vai-se arrastando e vai certo

Que morre pelo caminho.

 

VII

SAUDADE

Belos amores perdidos,

Muito fiz eu com perder-vos;

Deixar-vos, sim: esquecer-vos

Fora de mais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio,

— Amor, desejo, esperança.

Só não se arranca a lembrança

De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas,

Roseira cheia de espinhos,

Que eu deixei pelos caminhos,

Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te;

Mas mal posso assegurar-me

Com te perder e ganhar-me

Se ganhei, ou se perdi.

 

VIII

SERENATA

Pela vasta noite indolente

Voga um perfume estranho.

Eu sonho. E aspiro o vago aroma ausente

Do teu cabelo castanho.

Pela vasta noite tranquila

Pairam, longe, as estrelas.

Eu sonho. O teu olhar também cintila

Assim, tão longe como elas.

Pela vasta noite povoada

De rumores e arquejos

Eu sonho. É tua voz, entrecortada

De suspiros e de beijos.

Pela vasta noite sem termo,

Que deserto sombrio!

Eu sonho. Inda é mais triste, inda é mais ermo

O nosso leito vazio.

Pela vasta noite que finda

Sobe o dia risonho.

E eu cerro os olhos para ver-te ainda,

Ainda e sempre, em meu sonho.

 

IX

O DIA SEGUINTE DO AMOR

Aves fugidias que passais em bando

Pelo azul da tarde sobre o azul do mar,

Aves fugidias que passais cantando,

Que fazeis? Passar.

De repente surgis. No vasto céu

Um turbilhão de alvura de repente cresce;

Passa, afasta-se, e ao longe, e como apareceu

Desaparece.

Brancura macia de plumas, rumor leve

De asas que ruflam devagar,

Passais como flocos de neve

Que sussurram no vento e se desfazem no ar.

De tudo isso que resta? Um quase nada: apenas

Em meu olhar distraído

A vaga impressão de uma alvura de penas,

E o eco de um rumor cantando em meu ouvido.

———

Sonhos de amor, perfumados

Do aroma da flor da laranjeira,

Botões de rosa desabrochados

Em goivos, desfeitos na lama e na poeira;

Sonhos do olhar namorado

Ao descobrir, como um triunfador,

Todo enlevado, todo enlevado,

Que uns seios de mármore arquejam de amor;

Sonhos do ouvido, escutando

O ingênuo amor que se revela enfim

Involuntariamente, quando

Em frases que negam a voz diz que sim

Sabor do primeiro beijo

Que mal pousa, medroso, leve, leve,

Num rosto virgem onde o pejo

Semeia de rosas brancuras de neve;

Sonhos de amor, sois como a rosa

Que, nem bem colhida,

Perde a frescura que a tornou formosa,

Perde o perfume que a tornou querida.

———

Primavera vivida

De amar e ser amado aos vinte anos em flor,

Entrada triunfal do coração na vida,

Amor, amor, amor!

Rápida travessia

De um mar azul, rasgado entre rochedos nus

Nos quais se ignora o amor, ou a alma se enfastia...

Região lavada em luz

Entre esses dois extremos

Tão próximos — o olhar que ainda não sabe ver

E o que vê — triste fim dos encantos supremos! —

O que vale a mulher;

Miragens do desejo, enlevos da esperança,

Só é feliz o amor que espera e não alcança.

———

Infinita doçura, inigualável cousa,

Contato delicioso, inefável pressão

Da mão amada quando encontra a nossa mão

E, brandamente, e como achando um ninho, pousa;

Oh lábios da mulher palpitantes de amor,

Oh lábios que umedece o orvalho do desejo,

Doces lábios servis onde abotoa o beijo,

Prestes a se deixar colher como uma flor;

Oh seios brancos onde a paixão, a ofegar,

Chama a paixão, atrai a carne, acena ao gozo;

Oh seios brancos onde uns olhos de amoroso

Veem reflexos do céu na ondulação do mar;

Encantos da mulher amada; comovidos

Deslumbramentos; gosto indizível, sabor

Da única hora feliz de toda a vida; amor,

Sonho em que a alma é que sente o gozo dos sentidos;

No coração que de vós se alvoroça

Resplandeceis, miragens, enganos,

De uma luz que não é vossa.

Que é só dos nossos vinte anos.

———

Trêmulas maretas que passais boiando

Pela flor das ondas nos parcéis do mar;

Trêmulas maretas que alvejais cantando,

Que fazeis? Passar.

De repente surgis... No mar sem fim

Um turbilhão de alvura de repente cresce;

Passa; afasta-se; e como apareceu, assim

Desaparece.

Brancura brilhante de espumas, sons velados

Da água no açude de um pomar,

Passais, desfeitos, desmanchados

Na tristeza sonora das ondas do mar.

De tudo isso que resta? Ai! Quase cousa alguma:

Em meu olhar distraído

A vaga impressão de alguns flocos de espuma

E o eco de um rumor cantando em meu ouvido...

 

X

ÚLTIMA CONFIDÊNCIA

E se acaso voltar? Que hei de dizer-lhe, quando

Me perguntar por ti?

Dize-lhe que me viste, uma tarde, chorando.

Nessa tarde parti.

Se arrependido e ansioso ele indagar: “Para onde?

Por onde a buscarei?”

Dize-lhe: “Para além... para longe...” Responde

Como eu mesma: “Não sei.”

Ai, é tão vasta a noite! A meia luz do ocaso

Desmaia. Anoiteceu.

Onde vou? Nem eu sei... Irei seguindo ao acaso

Até achar o céu.

Eu cheguei a supor que possível me fosse

Ser amada — e viver.

É tão fácil a morte. Ai, seria tão doce

Ser amada e morrer!

Ouve; conta-lhe tu que eu chorava, partindo,

As lágrimas que vês.

Só conheci do amor que imaginei tão lindo,

O mal que ele me fez.

Narra-lhe transe a transe a dor que me consome...

Nem houve nunca igual!

Conta-lhe que eu morri murmurando o seu nome

No soluço final!

Dizei-lhe que o seu nome ensanguentava a boca

Que o seu beijo não quis:

Golfa-me em sangue, vês? E eu, murmurando-o, louca

Sinto-me tão feliz!

Nada lhe contes, não... Poupa-o... Eu quase o odeio,

Oculta-lho! Senhor,

Eu morro!... Amava-o tanto... Amei-o sempre... Amei-o

Até morrer de amor.

 

NOTAS

(A)

Incluiu-se neste livro o poemeto Rosa, rosa de amor... de que a Livraria Laemmert deu em 1902 uma edição, hoje esgotada. O mais do presente volume compõe-se de poesias esparsas, escritas em dife­rentes épocas, às vezes com largos intervalos; nele enfeixou o autor o que, no ponto de vista puramente estético, lhe pareceu menos mal em sua resumida produção poética dos últimos vinte anos. Os Poemas e Canções não são, pois, um livro que o autor tivesse feito com intenção de o fazer, mas que, a bem dizer, se fez por si, de certo modo ao acaso. Na escolha das peças aqui reunidas, adotou o autor, como critério, preferir as que lhe pareceram exprimir menos mal, isto é, em frase simples e corredia, com imagens sóbrias e mais ou menos claras e fiéis, ideias concebidas com lógica, sentimentos sinceros, impressões recebidas. A poesia, como sempre ambicionou o autor deste livro realizá-la nos limites ao seu alcance, deve ser, antes de tudo, cousa que se entenda. Se neste livro há extravagâncias aparatosas, quer de ideias abstrusas, quer de sentimentos artificiais, ou de frases complicadas, ou de palavras meramente decorativas, a elas resvalou o autor sem o perceber e a contragosto; e disso se penitencia humildemente.

(B)

Adotaram-se neste livro, com relação à ortografia, algumas das regras formuladas em 1907 pela Academia Brasileira de Letras[1]. Algu­mas, não todas; porque, sendo sem dúvida oportuno encaminhar para uma inteligente simplificação a ortografia portuguesa, complicada de pretensões etnológicas sem grande nexo, pareceram, entretanto, pre­maturas ou incompletas algumas das inovações propostas pela Academia. Entre essas, repugnou ao autor a supressão sistemática das consoantes mudas: porque, não dispondo de fonte a que recorra com segurança para apren­der quando uma consoante é realmente muda, ou não, segundo a boa pronúncia; suprimir cada um as consoantes que entenda sem valor — pro­vavelmente redundaria em empregar cada um, para seu uso, uma ortografia pessoal, ou, quando muito, regional. É, por exemplo, sabido que nós brasileiros pronunciamos recê p ção, frisando levemente o p; e os portugueses dizem recessão. Como decidir-se, com tal divergência na pronúncia do mesmo vocábulo, por uma ortografia fonética desse vocábulo? Há, sem dúvida, inúmeras palavras em que o uso tem tornado mudas consoantes que na ortografia de tais palavras apenas figuram por tradição etimológica. Mas, a adotar o uso como árbitro, arriscava-se muitíssimo um autor provinciano, como é o deste livro, a empregar com relação a boa parte de tais palavras uma detestável orto­grafia provinciana. A referida regra só poderá ser aplicada com segu­rança depois de contemplada em dicionário da língua, cuja autoridade faça fé.

Também recalcitrou o autor em aceitar a substituição de ch, com o som duro de q, por qu, antes das vogais e e i, como em quelônio, por chelonio, e química, por chimica. Equivaleria isso a trocar uma complicação por outra, sem ganhar cousa que se veja, e perdendo assim sem vantagem o que o uso conquistou. No sentido de uma aproximação fonética, se à grafia chimica devia corresponder a pronúncia xímica, a grafia química deve corresponder à pronuncia q-u-ímica. Entre as duas complicações, não há razão de escolha; ou antes, é preferível ficarmos com o uso tradicional, que sempre é ficar com alguma cousa. Era sem dúvida preferível, como simplificação, adotar ke e ki por che ou chi com som duro. Depreende-se do que aí fica — que o autor não aceitou também a eliminação absoluta da letra k, condenada pela Academia; e que prefere continuar a escrever kilo, e seus derivados, a mudar para quilo, quilômetro etc.

Outra regra, que se não impõe como de fácil aceitação, é a que prescreve a substituição de g por j antes de e e i no meio das palavras; conservando-se, entretanto, o uso corrente, quando o g é inicial. De tal feitio, prescreve a Academia que se escreva, como até aqui, genealogia, e se passe a escrever ajir, legislativo, cojitar. O que parece curial é que, concedendo-se em certos casos ao g antes de e e i a representação do som je, ji, não se o desaproprie arbitrariamente, em outros casos, dessa representação que o uso lhe tem consagrado; e que, a tirar-lha, como não seria mal entendido, se lha cortasse cerce, simplesmente, para todos os efeitos. Nesse ponto, e com a devida vênia, a regra da Academia é apenas meia regra. E não é aplicável à hipótese o clássico La parfaite raison fuit toute extremité.

Nem sempre deixou o autor de empregar o s entre duas vogais, com som de z. Pensa ele que é a Academia quem aí tem inteira razão; e que o uso do s com som de z mantém na ortografia da nossa língua uma complicação bem grande e bem inútil. Mas o hábito é uma força a que dificilmente se resiste; e as palavras em que o s tem aquela função exorbitante, mas tradicional, são tão comuns, por numerosas e frequentes, que, no emprego de tais palavras, o autor sentiu quase sempre a sua vontade arrastada pelo instinto. Instinto da pena, ou instinto dos olhos, ou ambos ajustados. E não lhe pareceu tão importante o caso que merecesse uma atenção determinada. Nesse particular, sem impugnar a regra formulada pela Academia, regra que julga excelente, e que acre­dita acabará vingando com a colaboração do tempo, não a seguiu com fidelidade o autor deste livro; mas apenas em raras sortidas, aqui e ali, algum tanto ao acaso. É claro que isso não tem desculpa que valha; nem o autor se defende com outra que não seja a sua fraqueza confessa.

Quanto ao mais, foram em geral aplicadas na ortografia deste livro as prescrições da Academia. Brasileira — muitas das quais não se distinguem por inovações, mas eram já adotadas de escritores da língua e recomendadas de gramáticos dela, uns e outros de nota. No que sobretudo o autor se autorizou com a autoridade da Academia foi:

— em abolir o uso das consoantes geminadas, com exceção de ss e rr, e de quando, com relação a estas, a primeira soa com som próprio, como em sucção. Nesse ponto, o autor tomou a liberdade de ir um pouquinho além do que prescreve a Academia, a qual conservou os ll nas palavras ele, ela, aquele, aquela, aquilo; sem que a exceção feita a tais vocábulos se justifique por algum fundamento plausível;

— em eliminar o h no meio das palavras, escrevendo tesouro, e não thesouro, filosofia, e não philosophia, póstumo, e não posthumo, exceto; quando se trata dos grupos ch, lh, nh, nos quais o h exerce unia função; ou no caso de palavra composta de outra que tenha o h inicial, como deshonra, deshabitado.

— em suprimir de todo as letras y e w nas palavras da língua;

— em empregar sistematicamente a grafia ai e ãi, e seus plurais, para os finais de palavras nas quais geralmente se usa ae e ãe e seus plurais, como cai, pai, mãe, ideais, quais, normais, em vez de: cae, pae, mãe, ideaes, quaes, normais; bem assim em preferir sempre o i inicial para as palavras que é costume escrever indiferentemente com i ou e, como igreja, idade.

O que fora de tais regras for encontrado no presente livro deve ser levado à conta de erro de revisão. E de erros desses está o livro inçado, seja dito por demais.

(C)

Pag. 9 — Eu cantarei de amor tão fortemente...

Este primeiro verso de um dos sonetos do livro é quase repeti­ção do primeiro verso no II soneto de Camões; mas nisso se resume a semelhança entre as duas composições, como se verificará relendo aqui a do grandíssimo poeta:

Eu cantarei de amor tão docemente

Por uns termos em si tão concertados,

Que dois mil acidentes namorados

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente

Pintando mil segredos delicados,

Brandas iras, suspiros magoados,

Temerosa ousadia, e pena, ausente.

Também, senhora, do desprezo honesto

De vossa vista branda e rigorosa

Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém para cantar de vosso gesto

A composição alta e milagrosa,

Aqui falta saber, engenho, e arte.

D)

Pag. 35 — 57 — Fugindo ao cativeiro.

Por volta de 1887, às vésperas da Abolição, despenhavam-se, em bandos cerrados, verdadeiras avalanches de escravos fugitivos, das fazendas de café no planalto paulista para o quilombo do Jabaquara, à beira do porto de Santos. No Jabaquara estava concentrada e organizada a proteção que toda a cidade, entusiasticamente abolicionista, lhes dispensava. Ali chegadas, eram livres, e estavam em segurança: alguns estabeleciam-se cultivando a terra e vivendo em choças que im­provisavam; outros irradiavam pela cidade a ganhar a vida; outros ainda, à custa de subscrições que corriam facilmente, repatriavam-se por mar para a terra natal, quase sempre em longínquas províncias do Norte, de onde tinham anteriormente vindo vendidos.

Mas era difícil chegar à Terra da Promissão do Jabaquara; inú­meras tentativas, as mais delas talvez, foram mal sucedidas, frustradas pela diligência dos senhores, a quem a força pública dava mão forte, e pelos embaraços naturais do caminho — através de sertões, da Serra do Mar, que era preciso vencer evitando as estradas, as habitações, todo o socorro humano. Os bandos, miseráveis e famintos, tinham de marchar à noite e esconder-se de dia. O que às vezes chegava afinal ao Jabaquara era uma procissão de espectros; e contaram-se por milhares os espectros que lá conseguiram chegar, homens, mulheres, crianças...

Num desses bandos que fugia perseguido, uma negra, exausta e desesperada, atirou ao rio Atibaia o filhinho que trazia nos braços. É a esse episódio, noticiado comovidamente pela imprensa do tempo, que a segunda parte da poesia se refere — mudando-lhe apenas o cenário e algumas minúcias. O outro episódio, com que termina a mesma poesia, é rigorosamente histórico. Passou-se na terra de Paranapiacaba também conhecida por Serra de Santos — trecho conhecidíssimo da Serra do Mar. Um magote de escravos fugitivos foi alcançado pela escolta que o per­seguia. Era num desfiladeiro. Enquanto os companheiros se salvavam dispersando-se na floresta virgem, um do bando, moço e atlético, arma­do de foice, fez frente aos soldados vedando-lhes a passagem, matou um deles, feriu outros, e morreu combatendo. A autópsia revelou que ele não ingerira alimento algum havia três dias. Chamava-se Pio esse Leônidas maltrapilho e esquecido de uma obscura raça que não teve historiadores nem poetas.

(E)

Pag. 50. — O ouro leve do sol bubuia à toa...

No seu Dicionário de Vocábulos Brasileiros, o Visconde de Beaurepaire Rohan, citando Couto de Magalhães e José Veríssimo, dá o verbo bubuiar, de origem tupi-guarani, como significando — flutuar no sentido da corrente. Tem, como se vê, significação mais complexa do que o comum boiar; e ao autor pareceu mais expressivo do que seria este último para indicar o movimento das manchas do Sol mosqueando a ondulação da relva — pelas abertas da floresta sacudida da aragem.

(F)

Pag. 52. — Alcateia usurpando a forma e a face humana...

Apesar de ser de uso vulgaríssimo em clássicos da língua, e liber­dade aceita de boa cara pelos mais carrancudos gramáticos, não ousaria talvez o autor fazer, como nesse verso fez, concordar com um só o adjetivo que qualifica dois substantivos, se não se sentisse apoiado nisso pelo exemplo de Camões no Cant. I estrofe LXXVII dos Lusíadas:

Onde vestindo a forma e gesto humano.

(G)

Pag. 91. — Sonho póstumo.

O autor não está bem certo de que a um poeta corra obrigação rigorosa de justificar as concepções da sua fantasia. Seja como for, apraz-lhe citar em abono da concepção geral da poesia Sonho Póstumo — que a alguns talvez pareça extravagante — palavras de um dos gran­des mestres da ciência contemporânea. Na sua obra Lettres d’un voyageur dans l’Inde, (trad. francesa de Ch. Letourneau, 1883) tra­tando dos ritos funerários dos Pársis de Bombaim — que entregam os cadáveres dos seus à decomposição no ar livre, “sobre um dos pontos mais elevados e mais lindos da crista rochosa de Malabar-Hill, diante de um panorama esplêndido, num jardim coalhado de esbeltas palmeiras e luxuriantes plantas tropicais em flor” — escreve Ernesto Hackel, à pag. 68:

Ce mode de sépulture semble révoltant à la plupart des Européens, et, dès l’antiquité classique, on considérait comme le plus grand des outrages de livrer un cadavre en pâture aux vautours. Mais, aux yeux du zoologiste, habitué à scruter les phénomènes, il semble plus poétique, plus conforme même à l‘esthétique, de voir un corps bien aimé dépecé en quelques instants par le bec puissant des oiseaux de proie que de le voir abandonné à ce lent phénomène de décomposition, à ces rebutantes morsures de vers, qui font du mode de sépulture de nos peuples civilisés quelque chose de si terrible, de si dégoûtant, et de si contraire aux lois de l’hygiène... Mais que ne peut faire adopter le doux effort de l’habitude, ce levier si puissant de l’adaptation !

(H)

Pag. 112.

Alma apenas capaz de adejar fugidiça

Em voos leves de uma asa de beija-flor,

E obrigada a pairar nas regiões da Justiça,

Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor

Para do alto melhor lobrigar a carniça...

Estes versos foram escritos em 1904 ou 1905, antes de o autor ser magistrado, que hoje é, e quando exercia a profissão de advogado. A observação convém talvez, ainda que menos necessariamente, à estrofe que na mesma poesia figura à pag. 114:

Na solidão do mato, esqueço, ignoro — em suma;

Sou feliz. Dou sueto a esta alma de aluguel

Que vive de auto em auto a desfazer-se em espuma;

E, livre do canudo atroz de bacharel,

Passo orgulhosamente a ser cousa nenhuma.


 

[1] P. Van Thiegen. Le sentiment de la nature.


 

[2] Granville Cole — Geology out-of-door.



[1] Adotou-se nesta edição digital a atual grafia do Português.