PÓSTUMA
ALBERTO DE OLIVEIRA
(DA ACADEMIA BRASILEIRA)
Publicações da
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
RIO DE JANEIRO
1944
No travesseiro de leves plumas
Entre os papéis deixados por Alberto de Oliveira encontraram-se as poesias que agora vêm a público, nesta coleção póstuma. Poucas trazem data; mas é certo que, na maioria, são dos últimos tempos do poeta. Seria vão tentar comparações, pondo em paralelo versos de vário tempo, mocidade, madureza e velhice. Neste volume, que não destoa na unidade da sua obra, se encontra o mesmo admirável Alberto de Oliveira, o que lavrou o seu monumento nas quatro séries de “Poesias”, que publicou.
Aqui se sentirá o mesmo frescor do lirismo, que sempre o animou, aquele dom de amar por toda a vida, que é o dos poetas. E a imagem movediça dos amores põe-lhe, às vezes, no verso um tom de céu e morte, entre místico e romântico.
Dele se disse parnasiano, e é certo não se pode separar Alberto de Oliveira de Olavo Bilac e de Raimundo Correia. Mas a verdade é que não poetou para servir a escolas ou grupos. Fez a poesia que sabia fazer — a alta poesia —, sentimento, razão e forma, na majestade de uma língua de ouro.
Poeta, viveu de poesia e para a poesia, sem teorizar sobre o que ela seja, mas sabendo descobrir, em meio às realidades deste mundo de todos, a essência do belo e o sentido poético das coisas. E tendo vivido muito, fez-se exemplo do verdadeiro poeta: porque até o fim viveu contente com a poesia.
Abre o presente volume uma página de prosa, em que Alberto de Oliveira chistosamente conta como veio a poesia, nos tempos de moço, com o exemplo de José Mariano de Oliveira, seu irmão mais velho, a quem sempre teve por modelo. "Começo de vida”, mostrando Alberto grande prosador, confirma o conceito de Taine: “Rien de tel que les vers pour enseigner la bonne prose”.
Publicando este volume por homenagem, a Academia evoca Alberto de Oliveira, que distanciado na morte deixou vida na saudade. Todos aqui o tínhamos por Mestre e o vimos, como no voto de Horácio, tocar as estrelas com a fronte.
Aloysio de Castro.
Nasci de pais remediados de haveres em um dos mais pobres dos municípios do Estado do Rio, Saquarema, entre Cabo-Frio, Ponta-Negra e o mar. O distrito em que assentava a nossa casa e de onde é também filho Oliveira Viana, ufania do torrão e lustre dos maiores de nossas letras, — era o do Palmital. Em frente à casa, estendido e verde, o campo, a fenecer nas vertentes da serra; aos fundos, a mata virgem. Na vila, depois cidade, a mais de légua daí, aprendi a ler e escrever, tudo rudimentarmente, embora o professor Eduardo Augusto de Almeida, declino-lhe o nome, fosse dos mais provectos de então.
Ao matricular-me e comigo outros meninos, perguntou-nos o mestre, — e assim procedia sempre à admissão de novos alunos, — a qual dos partidos que- ríamos pertencer, grego ou troiano. Para inclinação de nossa simpatia, fazia um resumo da guerra havida entre estes dois povos. Escolhi o grego. A aula se achava par- tida entre as duas bandeiras. Fui sentar-me sob a dos comandados de Aquiles, a qual havia cinco meses murchava a um lado, enrolada e vencida. As armas de peleja eram os prêmios correspondentes a boas notas, alcançadas pelos partidos; o que no último dia do mês somasse maior número seria o vencedor. Esforcei-me junto aos meus e esforcei-me eu próprio. Decorrido o terceiro ou quarto prazo, acesos os ânimos, fere-se renhida batalha e para nós com tão bons resultados que, terçando por minha gente, desafio o chefe troiano a bater-se comigo, e derroto-o, o mesmo fazendo alguns dos nossos capitães a capitães adversos. Vencemos. Des- fralda-se ovante, em meio ao alarido da vitória, a bandeira grega. A outra é arriada, enrolada, apupada.
Fui pouco depois aclamado chefe de meu partido. Durante os três anos de meu curso escolar nenhuma derrota experimentaram os pequeninos helenos por mim dirigidos. Podiam daí me vir entonos de orgulho; não os tive, porque atribuía não só aos meus esforços mas aos de todos os meus companheiros o bom êxito daquelas campanhas. Sentia-me feliz e só uma coisa me aguava a satisfação: a saudade que tinha de minha casa com o seu largo campo estendido e verde e a mata perto, rumorejando. . .
De minha infância, na preparação de meu espírito é talvez esta a recordação principal. Outra que me ficou, prende-se ao estudo de português na quarta classe ou a do último ano. 0 compêndio de gramática elementar adotado era o de Coruja e os de leitura e análise um Tesouro de meninos não sei de quem, o Simão de Nântua e — pasmai, pedagogos! — os Lusíadas de Luiz de Camões. Várias vezes não lhes pude apanhar o sentido de alguns versos; em uma delas o chefe troiano (lembra-me que se chamava Saldanha, José Saldanha) atinou com a embrulhada interpretação e deu-me um quinau. Criei tal aversão ao livro que uma ocasião pego da pena e vaso ao poeta, ao caolho, como lhe chamávamos, o outro olho no seu retrato. Com o andar do tempo vingou-se da ofensa Luiz de Camões, tornando- se o escritor português que mais vim a ler e admirar.
Decorrem dois anos depois de eu deixar a escola e minha família muda-se para Itaboraí. Foi na biblioteca pública do município de Joaquim Manuel de Ma- cedo que começou de formar-se em mim o gosto da leitura, principalmente da leitura de versos. Aí suspirava saudades da infância deixada no Palmital, lendo Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, acendia-se-me a imaginação folheando Álvares de Azevedo e Varela, corria os olhos por Magalhães e Porto-alegre... Castro Alves creio não estava ainda publicado ou não o possuía a biblioteca.
Urgia, porém, que eu me encarreirasse na vida, tivesse um emprego, uma ocupação séria. Éramos dezessete irmãos, dos quais três, os mais velhos, se achavam na Corte, perfazendo os preparatórios. Meu pai, arruinado em seus negócios, não podia arcar com o dispêndio de manter mais um filho em estudos longos e onerosos; encaminhou-me, pois, à prática de um ofício; deixei em pouco o aprendizado; pôs-me a feitorizar oito ou dez escravos que ainda lhe restavam, no agricultar de um pedaço de terra. Em breve pareceu-lhe melhor inclinar-me ao comércio. Contra a minha vontade e por mais de um ano exercitei-me neste serviço em grande armazém de localidade vizinha.
Publicava-se por esse tempo no Rio de Janeiro o jornal “O Globo” de Q. Bocaiuva. Fui um de seus assinantes; lia-o, não durante o dia, que o tempo para isso não me chegava, mas quando as portas se cerravam, às dez da noite, roubando ao descanso do corpo as horas, daí às doze. Lia o jornal e também um ou outro livro, principalmente de versos, que encomendava me comprassem em Niterói ou na Corte.
Desistiu em meu favor da mesada que recebia, meu irmão José Mariano e pude, com assentimento de meu pai, vir para a capital da Província, a habilitar-me na Escola Normal para o exercício do magistério. Fiquei residindo com esse irmão que, tão generoso fora comigo e que se viu forçado, para manter-se, a ir trabalhar à noite como auxiliar de revisor do “Jornal do Comércio", lugar que também por algum tempo ocupei mais tarde.
Foi por essa época que o autor dos Lusíadas, por mim outrora brutalmente ofendido, começou a agradar- me e a sorrir-me. Era meu professor de preparatórios — a conselho dele desistira da ideia de cursar a Escola Normal — um dos homens melhores de que guardo memória, o sábio educacionista fluminense Felisberto de Carvalho. Foi ele que aos poucos me fez cair no conhecimento das belezas do grande poema. Fiz as pazes com Luiz de Camões.
Era a nossa república frequentada por alguns colegas de José Mariano, estudantes, como ele, de matemática ou de medicina, e como ele — que sempre foi um grande, um genuíno poeta — amigos de poetas ou seus admiradores.
Um dia, depois de aplaudirem umas estrofes republicanas de meu irmão, indagou um dos rapazes, voltando-se para mim, se eu também não fazia versos; respondeu José Mariano que me ensaiava para isso; e começou desde então a instar comigo para que os escrevesse; como eu alegasse desconhecimento das regras de metrificação, atalhava que tal conhecimento viria pouco a pouco; que eu lesse os poetas em voz alta, que iria assim educando o ouvido, etc., etc.
Esbocei, por comprazer, durante alguns meses várias composições; nenhuma logrou sair sem defeitos; mostrava-mos meu mestre e guia, corrigia-os, animando-me sempre. — Teima, aconselhava-me; é preciso errar para aprender e acertar. Eu zangava-me, aborrecia-me, não dou para isto! bradava, estracinhando a versalhada escrita.
Uma tarde em que ficara sozinho em casa, salteou- me a curiosidade de saber o que encerrava uma velha caixa de pau, que o nosso locador pedira deixássemos ficar onde estava — um recanto junto da escada, até que a mandasse remover. Abri-a com um ferro, despregando-lhe duas das tábuas. Dentro, entre velhos almanaques, folhinhas, impressos de anúncios e mapas roídos, havia um livro de versos, Flores entre espinhos de Joaquim Norberto de Sousa e Silva; li-lhe algumas folhas e súbito, tomado de ideia má, arranquei uma delas, repus o volume em seu leito de pó e polilhas, repreguei as tábuas à caixa e entrando onde tinha a mesa, papel e pena, copiei da folha um soneto que me pareceu magnífico. Na cópia feita simulei emendas ou correções, para dar ao trabalho caráter de autenticidade. Quando meu irmão entrou, indo ao encontro de seu desejo de ler-me produções novas, mostrei-lhe o soneto. — Um soneto! exclamou, olha que é dificílimo! Vejamos... — Leu o primeiro verso — Primeiro verso, certo. Leu o segundo — Segundo, certo. Leu o terceiro — Terceiro, igualmente certo. — Igualmente o quarto. Passou ao segundo quarteto. Tudo certo E ia dizendo — bonito! bonito! Foi aos tercetos. Primeiro — admirável! Segundo e conclusão: admirável! nenhum defeito! Deu-me entusiástico abraço e declarou que o soneto era de tal ordem que ele mesmo não o faria melhor.
Noite horrível foi a desse dia! revolvia me a todo momento na cama, arrependido do que havia feito, apropriando-me do que era de outro, pondo-lhe em- baixo o meu nome, e mentindo, mentindo! Resolvi a, de manhã, penitenciar-me e desfazer o embuste. De manhã mudei de resolução: o soneto, assentei, continuaria provisoriamente a ser meu até que eu conseguisse fazer um outro igual, — e porque não o conseguiria? Igual e até melhor. Então despiria o alheio, daria o seu ao seu dono, alegando que a apropriação feita não passara de brincadeira.
Chegaram os companheiros de José Mariano. Este apressou-se em comunicar-lhes o meu trabalho. Foi uma apoteose! Banhou-me a glória com o seu sorriso, sorriso que me incomodava, porque a ele não tinha eu direito e chegava até a parecer-me de troça, escarninho ou irônico. Protestei então em minha consciência que dentro em pouco tempo faria soneto que àquele excedesse. Haviam de ver. E lia desesperadamente o que me interessava, e desesperadamente escrevia.
Mostrando todas as manhãs a José Mariano novos sonetos, resultados de luta travada em mim mesmo, ele para não arrefecer-me o estro, nunca os reprovou, encomiava-os, estimulando-me, mas nunca também deixava de referir-se ao primeiro, que continuava, dizia, a ser o melhor. Quantas vezes, ao passar por ti, velha caixa de pau, não te olhei de esguelha... mas resistia à tentação; era agora um capricho. Tinha de vencer.
Decorreu um ano, quase dois anos. O soneto de Joaquim Norberto continuava a ser o melhor de meus sonetos. Um dia enfim, sobre um que lhe apresentara (denominava-se “O mártir do Gólgota”, título tomado a um romance de Escrich) lavrou meu irmão a seguinte confortadora sentença: este, sim, é o melhor de teus sonetos inclusive o primeiro. Respirei desopresso e vitorioso, e comovido e quase em lágrimas contei-lhe então o furto que havia praticado.
Esse esforço continuado criou em mim o hábito e o gosto de versejar. A poesia acredito não terá vindo daí, porque forçada deixa de ser poesia. Veio talvez de um reflexo que em mim bateu de outra poesia, a poesia máxima, a poesia de nossa terra, a qual na adolescência me ficou misturada com a saudade do meu Palmital e do mar forte que atroa nas praias de Saquarema e cuja ressonância de quebros influiu de algum modo no ritmo de alguns de meus versos. Veio embalada pela música dos cantos dos poetas nacionais, os primeiros que conheci, ao desabrochar-se-me o espírito com a leitura de seus versos. Essa poesia, acredito, eu a trazia em mim; faltavam-lhe, porém os elementos de expressão e estes, bem ou mal, vim a adquiri-los por um capricho ou força de vontade.
Dezembro, 1929.
Melhor cantei quando, cativo, outrora,
Os carmes modulava acompanhado
Do som dos elos do grilhão dourado
Que me impôs quem se foi tão cedo embora.
Eu era qual a ver o espaço fora
É o pássaro, que súbito apanhado,
Em cárcere de arame empoleirado,
Suspira e melhor canta ou melhor chora.
Tornando agora à antiga liberdade,
Como essa ave, que solta acaso um dia,
Mal sabe onde se vai no voar ligeiro:
Sinto que nos meus versos se há poesia,
É toda essa poesia a da saudade
Do tempo em que vivia prisioneiro.
No mês de Fevereiro
Borda a flor do espinheiro
Seu véu de núpcias; mostram os angicos
Como são ricos
Do ouro que guardam; neles ouro é tudo!
A ramosa quaresma é púrpura e veludo,
E a serra, assim florida,
Desde a baixada,
Toda enfeitada,
É um hino a Deus, é um hino ao sol, é um hino à vida.
E o leve cheiro
Que se derrama
De rama em rama!
E a lufa-lufa das abelhas, indo e vindo
Murmurinhando: — Oh! Fevereiro
Festoado e lindo!
Foi em ti meu noivado!
Florescia o espinheiro,
Florescia a quaresma, alto e dourado
O angico florescia.
Vai tão longe esse dia!
Tudo é passado.
Tornam a estas plantas suas flores
Com as mesmas cores
E o mesmo cheiro...
Tornasse-me também aquele Fevereiro
Do meu noivado!
1930
Ave-Maria, na montanha! Ave, Maria!
Rodeada de anjos, tu resplandeces,
Ouvindo as preces
Do fim do dia.
À alma que sofre, em sua ignorada agonia,
Ó doce Virgem piedosa, desces
E ao seio a aqueces;
Ave, Maria!
Ave, Maria! Talvez teu nome diga-o baixinho,
Entre folhagens agasalhando-se, o passarinho;
Talvez o diga no Céu a estrela do anoitecer.
Ave, Maria, cheia de graça! Que bom seria
Fechar os olhos, e repetindo-o: Ave, Maria!
Aqui morrer!
Foi a um sol sem raios, junto a um mar sem vida.
Eu quedara acaso, cismativo e absorto,
Junto a extenso campo, onde à oração convida
Uma grande cruz, e onde, qual vai a um porto
Nau desarvorada descansar da viagem,
— Nau de rotas velas, jaz meu sonho morto.
Da que amei vinte anos invocando a imagem,
Penetrei desse ermo na soidão silente.
Era toda sombras a feral paragem.
Sentinelas mudas, sob o céu dormente,
Os ciprestes altos cabeceando estavam,
Sonolentamente, sonolentamente.
Anjos de alvacento mármore rezavam
De mãos postas onde alto moimento havia,
Sobre o qual debruços os chorões choravam.
Foi daí que, estranha, quase à Ave-Maria,
Esta voz ouvi de extraterreno acento:
— Vem dormir! é tarde! já lá vai teu dia!
Quem assim falava? No arredor atento,
Ninguém vi, senão num banco, a enxada ao lado,
O sepultureiro que, em torpor, suarento,
Cochilava. Sono, que na terra é dado,
Do infinito sono, ali baixara a tudo,
Parecia tudo inerte ali, parado.
Oh! disse eu então comigo, não me iludo,
É a voz dela! E um nome de mulher, saudoso,
Pronuncio em meio àquele ambiente mudo;
Nome caro aos anjos, lá no Céu glorioso
Qual na terra, nome que dizê-lo basta,
A alma é toda enlevo e indefinível gozo.
Já descia a noite, já seu véu se arrasta
Por ali em tudo onde os meus olhos ponho.
Ressorri-me a estrela peregrina e casta.
Cheio o pensamento da que só em sonho
Ora posso ver, e de sua alma pura,
Afastei-me aos poucos do lugar tristonho.
Vinha a sós cismando pela semiescura
Pedregosa rampa que à saída guia,
Quando a mesma voz de celestial doçura
E no mesmo apelo, dentre a ramaria
Dos chorões piedosos, lá nas sombras do ermo:
— Vem dormir! repete; já se foi teu dia!
Sobrestive. O ouvido, creio-o zonzo ou enfermo.
Olho exagitado, retrocedo uns passos,
Olho em vão... Avultam da alameda ao termo
Da alta cruz de pedra os distendidos braços
E espectrais, em fila, sob o céu dormente,
Os ciprestes negros cabeceando a espaços,
Sonolentamente, sonolentamente...
Quando (ó tu, cuja voz um cântico resume
E que vagas nos sons das músicas sagradas,
Como vagam à lua em nuvens de perfume
As almas dos jardins e as noites consteladas),
Quando às ervas do chão, as vis necessitadas,
Fores servir de pasto e perfumado estrume,
Eu não irei verter os prantos do costume
Na pedra que cobrir-te as carnes delicadas.
Preferirei, mulher, que, amante sei guardar-t’as,
Reler na minha dor as tuas pobres cartas
Onde um zelo infernal teu íntimo consome;
E, ó meu negro suplício, aí talvez mais doce
Hei de te ouvir a voz, como se viva fosse,
Ainda assim como agora, a maldizer meu nome.
Para ser recitado pelo menino Meton de Alencar (bisneto).
Outrora um poeta, — alma de crente,
Feita da alvura de um jasmim,
Subiu ao Céu. (Antigamente
Alma de poetas era assim.)
Errou na altura, entre a luzente
Coorte de anjos, té que, enfim,
Lhe disse um dia o Onipotente:
— “Vais-me deixar, meu Querubim!
Vais ver a terra novamente;
Esta morada transparente,
Meus pagos de ouro e azul cetim
Deixa. "Num voo, de repente
Cumprindo o mando, a alma inocente
Desceu do Céu. E existe em mim.
1929.
(Em Araxá)
Aqui, fora do Rio, não me ensina
Versos a musa, nem trovar intento,
Que nada faço, longe da oficina
Em que acho distração ao meu tormento.
Tudo o que vejo, observo e me fascina
Por sua formosura o pensamento,
Este verde ondulado de colina,
Águas, flores, montanhas, firmamento:
Tudo na alma sensível me ressoa
E vibra, mas aqui tanta beleza
Cantar não posso, pois que só trabalho
Com a minha pena, em casa, à minha mesa,
Como, deixando os ares onde voa,
O passarinho canta no seu galho.
1921.
“Leva-me — suplicava em alta serra
Nuvem cansada
De muito errar — leva-me, vento amigo,
Em teu voo contigo
Pela esfera do céu mais desejada
Do que a da terra,
Pelo azul onde estrelas cento e cento
Brilham e brilha o luar,
Leva-me, leva-me.”
E levou-a o vento.
Fosse eu a nuvem que pousou na serra,
Cansada de viajar:
Levou-a o vento. Dissipou-se no ar.
Gozo maior de minha vida
Foi o de ser e haver amado;
De tua morte a dor, querida,
Foi de todas a maior dor.
Que mais posso querer na vida?
Deu-me o que em si tinha melhor
E pior, e assim quis a sorte
Fosse vivida:
Amor e morte...
Morte e amor.
A ALOYSIO DE CASTRO
Aqui, deixando o mar pela montanha,
O azul de Guanabara
Pelo verde da serra, companhia
Me é nesta solidão a egrégia e rara
Musa que os Carmes teus, de alma poesia,
Como o sol a um cristal, traspassa e banha.
Leio-te e dou-te a ouvir às coisas várias
Que me cercam, às flores,
À água do rio, ao morro, às araucárias,
— Harpas do vento, que os sutis rumores,
Pela manhã e ao pôr do sol dispersos,
Casam com o doce quebro de teus versos.
De quem tudo isto fez e a Natureza
Toda encheu de beleza,
Sinto nas tuas páginas palpita
Um raio da arte com que o chão recama
De lírios, veste o céu de azul e chama,
Ala o pássaro e o inseto... Arte infinita,
Arte de Deus, enfim. A humana, a tua
Dela vem refletida,
Dela o modelo tem, se inspira nela.
Dá a terra o ouro, o diamante, o céu, a estrela.
A alma sonha e sorri, ou sofre e estua,
Abre num verso, — e dá no verso a Vida.
Petrópolis — 1929.
Coração, para! ou morre, ou te refreia.
Olha os anos que tens, o que hás vivido.
Não era este carvalho inda nascido
Quando nasceste, e já pesado arreia.
Amaste, quando aqui, em vez de aldeia,
Ermo apenas se via. Em Pafo ou Cnido
Culto não teve Amor como o rendido
Nestes campos de Arcádia à minha Alfeia.
Das últimas ovelhas que guardadas
Foram por nós, as crias já têm crias;
Cobrem-me a testa lisas cãs prateadas.
Ah! velho estás! Aglae não te socorre,
Nem presta ouvido às queixas que lhe envias.
Coração, para! ou te refreia, ou morre!
1912.
Faz mal ao que envelhece ou já envelheceu,
Recordar o passado, olhando um quadro assim;
Foi minha esta mulher, aquele homem fui eu,
Dela já não sei mais, nem sabe ela de mim.
1915.
Estás no que há melhor em mim e se condensa
Em Fé, Piedade, Amor e me faz ajoelhar.
Só uma grande dor gera uma grande crença,
Só é capaz de crer quem é capaz de amar.
Sorriso com que sorria,
Há pouco feliz, agora
Veio a tristeza apagar;
Mudou-se em dor a alegria;
O seu rosto é o de quem chora
Ou acabou de chorar.
Mas ir-se-á tristeza embora
Como se foi a alegria,
E o sorriso há-de tornar,
Qual depois da chuva a aurora
Pelo horizonte irradia
E abre, inda molhado, o olhar.
E de novo há-de ir-se embora,
E de novo há-de sombria
Ida a tristeza tornar,
Que assim, quase de hora em hora,
Em sua vida, à porfia,
Se alternam rir e chorar.
1919.
APENAS fumo. Deixa-me que fume
E te contemple e sinta o teu perfume;
Beber, não: não me tenta esse licor.
Para embriagar-me, para que me aqueça
Dos pés ao coração, deste à cabeça,
Basta-me o teu amor.
Meu vinho és tu. Bebo-te o olor que exalas,
Bebo-te os olhos, bebo-te, se falas,
A voz, bebo das roupas através
As tuas formas, bebo-te, querida!
Ah! não poder ficar por toda a vida
Embriagado aos teus pés!
1921.
Bela, embora o ar triste, a aparência doentia,
Uma prece na boca, uma prece no olhar,
Era pálida e fria,
Como vela de altar.
A alma semi-infantil toda a céu rescendia,
Céu e rosas, se estava ajoelhada a rezar
A sua Ave-Maria
Junto do altar.
Aí vão-na encontrar
(Ouvi-lhe em casa um dia)
Hirta, tendo à cabeça uma luz aureolar
Que serena irradia.
Tocaram-na: caiu morta — pálida e esguia
Vela de altar.
Fevereiro, 1930.
Dás-me teu nome, e estremeço...
Tu, de todas a querida
De outrora, joia sem preço,
Minha vida,
Meu sonho febricitante
E meu devanear sem fim...
Mas que diverso o semblante!
Tu, assim!
Amei-te as madeixas de ouro,
— Manto a encobrir, com receio
De o tocarem, o tesouro
De teu seio.
Quem a cor que me sorria,
Lhes trocou por essa cor
De prata oxidada e fria,
Meu amor?
Amei-te os olhos, — serenos
Glaucos abismos risonhos,
Plenos de ternura, plenos
De meus sonhos,
Quer ao céu se erguendo em preces,
Quer faulando de paixão...
Esses não me enlevam, esses
Outros são...
Amei-te a boca, — partida
Rubra fruta, onde guloso
Provei do amor e da vida
Todo o gozo;
Tão doce com o seu sorriso
E os claros jaspes iguais!
Meu clarão de paraíso,
Onde vais!
Amei-te o colo sem mancha,
Como a alvura peregrina
Em que se enrola ou desmancha
A neblina;
Que lasciva mão impura
Os lírios de sua tez
Ímpia tocou e a brancura
Lhe desfez?
Amei-te... Mas não, senhora,
Iludis-me: essa encantada
Visão dos dias de outrora,
Anjo ou fada,
— Guardo-lhe inda na alma impressa
A imagem, o olhar, a voz,
A meiguice, as graças... Essa
Não sois vós.
Essa longe está... E é bela!
Ficou-me na mocidade
E é sempre a mesma. Vai vê-la
A saudade
E sobre as bênçãos que, tantas!
Lhe chovia o meu amor,
Com um beijo lhe esfolha às plantas
Uma flor.
De Murat e Amadeu foram-se as Musas
Uma após outra, dentro em breve tempo,
Ondas uma no oceano turbulento
Atrás deixando, outra deixando Espumas.
Encontram-se no espaço, errando, as duas;
— Horas felizes — dizem — recordemos.
E são lembrados, claros e serenos,
Os dias de triunfos e venturas.
Acode-lhes a Casa de que sócias
Foram, e os nomes de outras Musas nossas
Cantar! idas também... — Ah! glória assim
— Comentam com tristeza — pouco vale!
Essa acadêmica Imortalidade
É coisa vã... Morre-se muito ali.
Quando tu dormes — vê que atrevimento!
Entra em teu aposento
Meu pensamento.
Ele me põe ao pé de ti.
Beijo-te as mãos, beijo-te os braços, beijo
— Febre, fogo e desejo,
O rosto, em pejo,
Que se me oculta, e me sorri.
Quando tu dormes, toda a tua vida
Pertence-me, querida.
Que doce lida
Estar-te a ver, e estar-te a amar!
Estar, sem testemunha impertinente,
Contigo ali somente,
O olhar ardente
Fito, embebido em teu olhar.
Quando tu dormes... que na sala, em meio
Dos que nos veem, refreio
Dentro do seio
Este agitado coração,
E só no olhar, que o teu olhar procura,
Relampeia e fulgura,
— Sonho e loucura,
Mal disfarçada esta paixão.
De novo aqui tornando,
A casa torno a ver em que moramos.
Torno a ver-lhe, alto e agudo,
O teto, e em torno o esbranquiçado muro;
Torno a ver-lhe a alameda,
O chalé do jardim, entre roseiras.
E as ruas, os caminhos
Por onde andamos braço a braço unidos,
Veem acaso estas coisas?
Não, que somente a mim, em dolorosa
Saudade, alma querida,
Cabe isto ver, e crer-te viva ainda.
Maria e “filha de Maria”
Para a Virgem viveu.
Estar-lhe aos pés do altar era o enlevo seu.
Tinha uma voz! Ouvi-a,
E quem como eu lh'a ouviu cantar a “Ave-Maria”
Nunca mais a esqueceu.
Vinha essa voz de além, ia-se além... Um dia
Convidou-a o seu anjo, a filha de Maria,
Para cantar no Céu. E foi cantar no Céu.
Ouvi este queixume
Evolar-se de um frasco de perfume:
— Senhora minha, toda rosa e pérolas,
Dona da alcova, fugaz visão,
Abre-me as portas ao vítreo cárcere,
Leva-me, tira-me
Desta prisão.
Ouvi outro queixume
Exalar-se também, como ao perfume,
Em amiudados ais, por entre lágrimas
Vinha de uma alma: — Penar! penar!
Morte, piedosa Morte, liberta-me!
Ala-me, solta-me!
Que eu quero voar!
Vim todo a rescender ao cheiro daquela serra,
Como o inseto que deixa a corola em que há pousado,
Vem cheio de seu perfume.
Aquele cheiro ali sai do coração da terra,
Sai do chão virgem, sai das árvores misturado
Com o seu brando murmúrio;
Sai dos troncos que vês, ou tortos e desconformes,
Ou retilíneos no ar — equilibradas e verdes
Colunas; sai lá do fundo
Dos grotões negros; sai dentre os barrancos enormes,
Sai das montanhas, sai do azul onde os olhos perdes,
Sai do Céu, sai de tudo.
Inda o respiro aqui, ao chegar a esta baixada
Na água que de lá vem ou em cada planta nova,
E pedras verdes de musgos;
Como alguém que ao sair de ao pé de mulher amada,
Inda o cheiro lhe traz dos vestidos e da alcova,
Onde estiveram juntos.
Das flores roxas, das amarelas,
Das brancas e outras de azul cetim,
Quais balouçando-se em sua frança,
Quais em gramados, de todas elas
Trouxe a lembrança
Dentro de mim;
Trouxe-a tão viva que matizada
Tenho a minh’alma, tão cheio vim
De seu encanto, da perfumada
Imagem delas, de suas cores...
Tudo são flores
Dentro de mim.
A ALOYSIO DE CASTRO
Longe de nossa terra e em nossa terra,
Pois é tudo Brasil, São Paulo e Rio,
Aqui, fugindo do queimoso estio
Ou dos raios do sol à acesa guerra:
Por largo espaço entre saudades erra
Meu pensamento quando, no sombrio
“Terminus”, de meu quarto ao longe espio
E o perfil vejo à alcantilada serra.
Lembram-me os nossos morros — sentinelas
Da cidade, de dia conversando
Com o mar vizinho, e à noite com as estrelas;
E ao pé de um deles tua casa, amigo,
Onde os olhos de louça entrecerrando,
“Liliana” está como a sonhar contigo...
Lá se vão névoas para aquela serra,
Lá se vão asas;
Soprando velas,
Lá se vão auras;
Tudo o que pode voar, vai para a serra.
Vai também a minh’alma,
É a saudade que a leva,
Vai como as névoas,
Vai como as auras.
E eu fico-me a chorar, olhando a serra.
Da ventania nas revoadas
Vão desfolhadas
Rosa e mais rosa, todas as rosas do meu jardim.
Vento mais forte
Ah! quem me dera meus pobres poemas arrebatasse
E além da morte
M’os desfolhasse
Verso por verso sobre teu colo também assim.
Ó essência fina que te evaporaste,
Que te dispersaste no Desconhecido!
Minha “amada imóvel”! ó meu Bem perdido,
Aqui estou lembrando-te, e com que saudade!
Só, nesta cidade em que te vi um dia,
Já baixava a noite, já o luar nascia.
Era à entrada do ano. Festival janeiro.
Dos jasmins o cheiro na atmosfera branda
Circulava a espaços, vinha até à varanda.
Refulgia Vésper, como condoída
Lágrima caída sobre o dia morto.
Tinhas nela os olhos; eu te olhava absorto,
Todo em ti absorto. Evocações! saudades!
Desse fim de tarde sinto na alma ainda
De teu longo olhar a irradiação infinda
E o fulgor da estrela, — duas claridades...
1918.
Em vez de num livro aberto,
No Céu deves ter o olhar.
Pensa, e o Céu verás mais perto.
Melhor que ter — é pensar.
Se a Fé te arrebata e inflama,
Vai aonde ela te levar.
Em nada mais penses. Ama.
Melhor que pensar — é amar.
Pela noite escura, escura,
Pia uma ave na espessura,
Canta, não sabe aonde vá;
Pia, no medo que a assombra,
Pia, investindo com a sombra...
Quem a ouvirá?
Pela noite escura implora:
“Valei-me, Nossa Senhora!”
No mar um náufrago. Já
Se lhe afundam lenho e vela
Com a desatada procela...
Quem o ouvirá?
Pelo Céu escuro, escuro,
Uma alma: — “Bem que eu procuro,
— Suspira — é no Céu que está?
Fui a todas as estrelas,
Não me ouviu nenhuma delas.
Quem me ouvirá?
(TRADUÇÃO)
Zagala ou bom pastor, quem quer que sejas,
Detém-te com o rebanho e uma lembrança
Deixa ficar a estas sagradas cinzas;
Violetas esparze neste túmulo
E derrame teu cântaro
Tépido leite que umedeça a terra,
Depois dize entre lágrimas:
Doces despojos que me são tão caros,
Ora cinzas somente, mas outrora
Formosa Hiela, adeus!
1932.
Qual é teu coração não é, Mimi, teu rosto;
Este é todo alegria, aquele é só desgosto,
— Segundo dizes — dor, luto, desolação;
Difícil de explicar essa contradição.
Não somos como o Céu, onde sobre o negrume
De noite procelosa arde o sereno lume
Das estrelas; o Céu, somente ele, domina
Tempestades, se as tem, com a irradiação divina
Ou do Céu participa o teu claro sorriso
Ou não te entendo. O que é mister, o que é preciso
É que seja, qual é teu rosto o coração.
Expele a dor que o punge, entre nele o clarão
Que as faces te ilumina e as repassa de encanto.
Um santo triste, alguém o disse, é um triste santo,
E das santas a que mais alto está, Maria,
Toda é plena de graça e plena de alegria.
Eva, sim, é que é triste; em seu ventre gerado
Foi o homem. Pecou. Triste é por seu pecado.
Ledo na Virgem-mãe é o rosto e é o coração,
Pois dando-nos Jesus, deu-nos a redenção.
Também outra Maria houve — e ainda, suponho,
Existe para nós em teu sonho e em meu sonho —
Cujo rosto era em tudo igual ao coração.
Imita-a, não te seja esse sorriso vão;
Faze venha ele da alma; enche a alma de alegria,
Lembrando ao mesmo tempo uma e outra Maria,
Ambas filhas do Céu, ambas dor ou desgosto
Vencendo e ambas iguais no coração e rosto.
1925.
N0 TRAVESSEIRO DE LEVES PLUMAS...
No travesseiro de leves plumas desta ilusão
Pousei minha cabeça fatigada
E adormeci.
Por que me chamam? por que me acordam, Eu nada, nada,
Nada quero do mundo fátuo e vão.
Deixem-me aqui...
... “Fui num monte convertido.
Hoje pedra é minha frágua,
São ecos — o meu gemido,
Pranto — a água deste olho d’água”.
VOLTAS
Assim aquela montanha
Sua história me dizia
E metamorfose estranha,
Perto, em natural bacia
Feita na concavidade
Da rocha, — talvez a mágoa
A diluir-lhe ou a saudade —
Borbotava um olho de água.
Dela bebi, e acredito
Veio daí crescimento
Ao mal que me traz aflito,
Ao aflito pensamento,
E de tal maneira e tanto
Que também saudade ou mágoa
Rola de envolta com o pranto
Em meus olhos cheios de água.
De rocha curva sobre o mar,
Embebido no azul o olhar,
Um homem cisma: Que há além do fim
Do Céu que está acima de mim?
Sob o homem, a rocha, o olhar
Preso à profundeza do mar,
Cisma também: Que há além do fim
Do Céu que está abaixo de mim?
Há nomes — ninguém o ignora —
Que a ideia exata nos dão
Dos que os têm. Lembra Teodora
Gorda, pesada senhora
Com a antiga saia-balão.
Aurora há de ser aurora,
Loura, alegre e com um clarão!
Creio que, em Byron, Medora
É toda amor e paixão.
Passemos a ver agora
Elora... É nome ou canção?
Não, é mais do que isso, — Elora
É poesia e coração.
Fala a freira Teresa de Jesus.
Benedita, sê bendita.
VOLTAS
Madre de nosso convento,
Fundado na mesma casa,
Onde inda há um frêmito da asa
Que me aqueceu um momento:
Bálsamo foste ao tormento
Em que andava enferma e aflita,
Ó Benedita bendita!
Deus, cujo poder encerra
Os Céus e tudo o que existe,
Vendo-me órfã, só e triste,
Tornou minha mãe à terra;
O meu coração não erra,
Vendo-a em ti, onde hoje habita,
Doce Madre Benedita!
Quanto minh’alma te inveja,
Na perfeição a que assumes,
Santa feita dos perfumes
Do nardo e incenso da igreja!
Teu nome bendito seja,
Tu para sempre bendita,
Mãe, minha mãe Benedita.
(HORÁCIO, L. IV, ODE III)
Ó Melpómene, àquele em que pousarem,
Vindo à existência, os teus serenos olhos.
Não lhe darão renome
De atleta lutador os jogos do Istmo,
Nem fogoso corcel há de levá-lo,
Vitorioso na pompa
De um carro grego, nem mavórcia glória,
— Das folhas da apolínea
Delos coroada a fonte —
O subirá um dia ao Capitólio,
Por haver abatido aos reis soberbos
As ameaças. Mas as frescas águas
Que serpeiam em Tibur,
E as nemorosas, as espessas ramas
Afamado o farão no verso eólio!
Alistam-me os de Roma
Cidade das cidades, caros filhos,
Entre o coro dos poetas, e já menos
Sinto o colmilho à inveja...
Ó Musa, a Ti, que em doce melodia
Do dourado alaúde os sons acordas,
A Ti, que aos mudos peixes
Podes dar, se te apraz, a voz do cisne,
Eu devo, é alto favor que me dispensas,
Ser notado com o dedo
Entre os que passam, como
Destro em tanger a citara romana;
Por ti é que respiro
E agrado, Musa, se em verdade agrado.
Sob um velho chapéu de sol, já remendado,
Um vestido de chita, ao pescoço enrolado
Um lenço de xadrez, os pés desnus, ao braço
De Antônio, essa mulher em vagaroso passo
Tinha entrado na vila iluminada e bela.
Muita gente sorria ao ver Antônio com ela.
Antônio era da vila o moço mais galante,
Mais amado. Um perfil correto, um cintilante
Olhar, cabeça altiva, ancho peito. Vestia
Seu todo ar de nobreza e ar de valentia.
Nesta ou naquela sala onde o prendia a dança,
Em mais de um coração fez mais de uma esperança
Nascer. Muita mulher das mais distantes, teve
Nele um sonho a pairar, embora incerto e breve
Como, sem lhe subir o pejo à face, agora
Ia portas adentro à vila, naquela hora,
Com essa mulher mostrando os pés nus, o vestido
Roto, e sob um chapéu de chita recosido?!
— Olhem que cara tem a tal mulher, diziam;
Muita moça sorriu, muitos homens sorriam...
Vinha o povo à janela a vê-los, à direita
Ele dela, e ela a andar pela calçada estreita
Ferindo os grossos pés nas pedras, levantando
O cabo do chapéu de sol de quando em quando.
O rosto da mulher era triste de vê-lo:
Magro, ossudo, brutal, rompia entre o cabelo
Caído, empoado, sujo. Um sorriso, um sorriso
Porém o iluminava a espaços, indeciso.
Andava, e o seu olhar estava fixo, preso
No companheiro, em água e em fogo estranho aceso.
— Olhem que harpia leva o Antônio hoje, diziam...
Muita moça sorriu, muitos homens sorriam.
E os dois seguiam sempre, ele ao braço prendendo
O braço da mulher, ela o encarando e o vendo
Sempre, curva, a tremer, em seu passo, tardia,
Sob o velho chapéu de sol que suspendia.
Entraram afinal em casa. Era sol posto.
Ela tinha um luar nas ruínas do rosto;
Ele apertava-a ao peito, e entre alegria e mágoa,
Volvendo-lhe de em roda os olhos rasos d água,
Dizia-lhe com a voz de prantos impedida:
— Ó mãe, conte-me agora a sua triste vida!
A MEDEIROS E ALBUQUERQUE
Entrei em meu hotel em ti pensando.
És feliz. Eu também o fui outrora...
Que bela é a tua casa! Ancho, lá fora,
Na larga praia ouve-se o mar bramando.
O Paulo e a Vera, — quais de aéreo bando
Dois colibris, — revoam hora e hora
Ao pé de ti e ao pé de tua nora.
Vejo-os, meu lar extinto relembrando.
Abençoemos a Vida que a ventura
Da família nos dá, serena e pura
Tu que a tens e és feliz, eu que a perdi.
Abençoemo-la, amigo, tu no gozo
Desse teu dia de anos, eu saudoso...
Tu que envelheces, eu que envelheci.
E se, alcançado o Além que anseia e pede,
A alma iludida foi, se lá perdura
A mesma sede
De eterno bem?
— É que ainda não basta aquela altura,
É que é preciso ainda ir além!
Além! além! tanto mais pura
Quanto mais alto! até que revertida
Seja à origem da Vida,
Ao infinito seio
Do Todo imenso, de onde tudo veio,
Tudo provém.
Além! além!