LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Dríade e os dardos, de Maura de Senna
Textos-fonte:
Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos, Org. de Lauro Junkes,
Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2004.
Maura de Senna Pereira, A Dríade e os dardos,
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1978.
ÍNDICE
Carta do poeta Francisco Carvalho sobre A Dríade e os dardos
Para Almeida Cousin
meu amor
Prefácio
Maura de Senna Pereira é poetisa que vive à procura de si mesma, embora contente com o dia de hoje; o que a transfigura é a busca do ontem, para ela um presente perene. "Buscar-me em flor" é um de seus poemas-mote, em que ela esquadrinha, para usar suas próprias palavras, os esconderijos maternos, e se indaga sobre a garganta juvenil de que a dotara a natureza, o adolescente cabelo, o ímpeto dos pés pequenos e a carne amanhecendo.
É mulher, é companheira, sensível às lutas entre o velho e o novo e define magistralmente o amor ao dizer ao amado tê-lo compreendido: "Quando conhecestes as minhas derrotas / e disseste que eram triunfos."
A natureza também a empolga, a natureza que está na terra e que está no ser humano. É uma namorada do vento, a quem pede que a leve também consigo, para longe dela própria.
Maura, ardorosa, desafia o sol, declara ser sua alma um fogaréu que não sabe quem acendeu.
Pagã e mística, sensual e genuflexa, proclama que nesse ardor singular a alma da poetisa poderia aquecer todas as almas polares. Há aqui um desejo de libertar-se do ser que constrange todas as criaturas de Deus. Nessa ânsia de libertação, ela diz o desejo de sair de si mesma, de cortar todos os mares e chegar a todas as praias sem fadiga.
A dicção espontânea, correntia, leva-a a verdadeiros achados de originalidade como em "VERANEIO" quando nos fala em "leves peixes".
Essa descendente altaneira dos navegadores lusos ainda traz, conforme canta, desatados os cabelos das refregas no mar alto.
No fundo o que ela é quer é "a vida, a simples vida."
Não está alheia à angústia destes nossos tempos apocalípticos de guerra e de campos de concentração.
Afirma a certa altura: "Tive a pele arrancada para ornar a lâmpada da Besta."
Sabe que estes tempos tremendos, mas não as palavras, passarão.
A mulher fraterna volta da refrega e não cora em chorar a filha que não teve, a filha com quem sonhou. Justamente é por isso que o poeta é poeta, porque lhe faltam coisas.
Maura oceânica, Maura fluvial, Maura de Senna, Maura portuguesa, Maura Pereira, Maura telúrica de tanto Brasil no sangue, Maura sabedora desta nossa língua tão rica de segredo e de aventura, onde ela se revela como uma das vozes encantadas de nossa poesia.
Rio, 22 de setembro de 1977
Manoel Caetano Bandeira de Mello
Da primavera
Buscar-me em flor
Para Sylvia Amélia
Buscar-me solta amanhecendo
dentro da tarde na solidão selvagem.
Solta na mata cortada pelo arroio
edênico e tão próximo
do rio Biguaçu ainda longe do mar.
Em verdes e pardos bosques
embrenhada buscar-me
passando cercas de vinhas e framboesas
galgando árvores com esconderijos maternos
para os ninhos fecundados dormindo.
Lábios vaiando os irisados insetos
— lábios roxos das frutas devoradas —
cintura ornada de boninas
cabelos misturados de aragem.
Buscar-me nos mesmos sítios de
aromas afrodisíacos e águas índias
(restos do Éden, sítios intocados)
e, no entanto, onde
a garganta juvenil? o adolescente cabelo?
o ímpeto dos pés pequenos?
onde a carne amanhecendo?
Canto da companheira
Sairei pela manhã clara em busca do pensamento do mundo.
Irei até as searas e as trepidantes fábricas
e surpreenderei o operário em seu labor.
Vê-lo-ei mover êmbolos e turbinas, hélices e tratores
e, comovida e atenta, lhe farei perguntas.
Entrarei nos barcos, descerei às minas,
estarei nas mansões e rios cortiços
nas igrejas e nas tascas
pois nenhum lugar me há de ser vedado.
Escutarei as ânsias do povo, as pedras da rua
e verei as lutas entre o velho e o novo.
Escreverei então
com suor e sangue e o húmus da terra
o que houver captado
assim unida, colada ao fundo da vida
e filtradas pela minha emoção
mensagens novas chegarão aos homens.
Voltarei pelo fim da tarde
com ligeiros passos
para pôr, antes da noite,
flores vivas no grande jarro.
Cortarei rosas no jardim em tua honra
rosas e dálias para te saudarem.
Voltarei com ligeiros passos
e quando chegares trazendo teu dia
áspero, participante, lúcido
e cachos de begônias rubras para mim
já estarão soltos meus cabelos
e acesa a lâmpada.
Amor
Em verdade te digo que não foi naquela hora
que te pertenci:
quando me tomaste nos teus braços poderosos
e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.
Em verdade te digo que não foi naquela hora
mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo
de rebento inquieto deste século
e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.
Quando conheceste as minhas derrotas
e disseste que eram triunfos.
Quando viste pulsar meu coração nu
e o festejaste.
Quando soubeste que nem sempre
os teus pensamentos são os meus pensamentos
nem os teus caminhos são os meus caminhos.
Mas o amor brilhou como nunca em tua face
e me surpreendeste com a cascata de palavras
de que eu tinha sede
desde a minha primeira hora consciente.
Foi quando te pertenci.
Salmo para o bem-amado
Sustentai-me com passas,
confortai-me com maçãs,
porque desfaleço de amor.
Cântico dos Cânticos — 2:5
Imprecações não ergo e sim ditirambos
e sim aleluias
e sim hosanas
às pedras e às dores do caminho.
Onde está a harpa do rei David
onde estão as cítaras hebreias
onde está Sulamita
e onde as virgens loucas?
A todas essas cordas e bocas eu conclamo
a todas ao meu lado quero
para ajudarem a bendizer a tormenta
que me arrebatou a primavera,
as geenas que padeci,
as pedras e as dores, as lutas e as revoltas,
a bendizê-las
porque foram elas que me aproximaram de ti.
Maternidade
Arrepender-te-ás talvez
como de uma suprema profanação
de teres um dia me vestido
de bagos e de gomos
e para eles depois te atirado
como um fauno sem lei.
Oh, não te arrependas não
que me deste glória e honra
pois eu só via o milagre da árvore estéril
carregada de frutos
e o sumo das uvas escorrendo
dos seios que nunca amamentaram.
Consubstanciação
Para Therezinha e Celestino Sachet
Quando me deito nos teus canteiros mornos,
Jurerê-mirim, Isla de los Patos, Santa Catarina,
não me basta a alegria telúrica
de ter nascido em ti
nem o pensamento quase bíblico
de que sou feita do teu barro.
Meu corpo é o teu imenso corpo de ilha
e meu sangue o rasgão líquido dos teus rios
a linfa nervosa das tuas cachoeiras
a água matuta das tuas lagoas.
Plantas rebentam de tuas carnes, de meus chãos
e sinto-me carregada da tua seiva e do teu pólen
em todas as idades
desde tua própria pré-história
até mesmo o teu porvir.
Quando me levanto
a sacudir a tua poeira morena
e ungida com o perfume de vinte lírios novos
e mulher e ilha deixam de ser uma unidade pagã
ainda sinto me prender e me abraçar
e envolver, implacável, a tua existência cósmica
e abraço varonil do mar.
Balada para o vento sul
Para Silveira de Souza
O vento sul chegou
desfolhando papoulas
vergando caules
sacudindo polens
agitando palmeiras.
As águas se levantaram em cóleras plebeias
as aves tremeram.
Tremeram
as pencas leves das glicínias
e os gerânios duros dos balcões.
No meio do jardim convulsionado
toda entregue ao seu desvario
fico de pé como uma árvore flexível
— as ânsias e os cabelos em desordem
as mangas largas voando —
a parecer uma alegoria do vendaval.
O vento sul chegou
abanando possesso
a minha velha cidade menina
roçando casas
virando esquinas
levando folhas, areias, conchas.
Sou tua namorada, vento!
Leva-me também
leva-me contigo
para longe de mim.
Lagoa da Conceição
Esta é a hora da gênese
pois que se ergue sobre as águas.
Cada um dos seus átomos resplandece mais
que os tesouros da rainha de Sabá
e todo ele é como
mil estrelas tombadas.
Eis que se ergue como um arcanjo
bradando mudas parábolas.
Com suas fúlgidas espadas
golpeia as últimas trevas.
Esta é a hora da gênese
pois que se ergue todo-poderoso
derramando seu sêmen de fogo.
Este é o primeiro dia da criação
pois estou vendo o sol
o sol ilhéu nascer
nas tuas águas bíblicas.
Repto ao sol
Estirada na areia mais branca da Praia de Fora
banho-me no grande sol bruxo da minha terra.
Sol, peço que me tornes dourada e forte.
Sol, aquece minha pele, penetra em meus poros,
mas não tentes nunca
aquecer minha alma.
Minha alma é um fogaréu que não sei quem acendeu:
ódios que ardem como balões no céu
sonhos ígneos clareando longas noites insones
ternuras iluminadas
tochas de esperança geenas de revolta
sóis em zênite mesmo dentro da noite.
Sol sádico
meu amante sol
fica certo de que, no seu ardor
singular, minha alma poderia
aquecer todas as almas polares
e a ti próprio
desafiar.
Insular
Às vezes interrogo, amigo:
Será porque venho de uma terra
que não se integrou em outra
(embora esta por mim também amada)
— num gesto potente de rebeldia cósmica
ou talvez liberta no furor de um cataclismo —
que me pareço com ela ou ela comigo
e me toma esta euforia desvairada
quando vejo qualquer povo
ou qualquer consciência
querer ser livre?
Será a ilha, amigo?
A antevéspera
Quero ajudar
Para Alcides Buss
Quero ajudar a construir o mundo futuro
e colocar a minha pedra
no lugar exato e na hora certa.
Quero conter a pressa de ajudar
deter os passos vãos e as mãos sôfregas
ser vigilante, compreensiva, tenaz.
Deixar no grandioso edifício a minha pedra
com a mão segura para que ela não vacile
e role nos espaços
feita escombro antes de ser coluna.
Quero deixar segura a minha pedra.
Altos frisos a revestirão
esculpidos por sábias mãos alheias
mas — pequena e anônima, direita e firme —
ela estará lá dentro ajudando.
Quero ajudar a construir o mundo futuro
— o mundo sem opressão e sem miséria —
luminoso, rasgado, justo.
Quero permanecer alerta
e colocar a minha pedra
no lugar exato e na hora certa.
Libertação
A Teresinka Pereira
Que eu saia de mim
e corte com ânsia todos os mares
e chegue a todas as praias sem fadiga.
Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas,
no lodo
e no tumulto, na orla dos lagos e dos abismos.
Que eu saia de mim
e fique nos caminhos o meu hálito.
Que todos os clamores e todos os risos
e também todos os silêncios repercutam em minha
orelha
e a minha língua se torne clara e ardente como o sol
e todos me entendam, os meninos, os pobres.
Que eu saia de mim
e com a soma de minhas libertações
e a massa de minhas vitórias sobre mim
me volte leve e humana
para as angústias e os problemas dos homens.
Que eu saia de mim
e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim,
mas sempre diante do universo
meu espírito agnóstico seja um olho comovido.
Que eu saia para sempre de mim
e seja uma nova criatura
em que as coisas e os seres fiquem grudados.
Que eu não volte para mim
que para sempre me perca
da criatura salva
todos sejam impregnados.
Escolha
Para Leatrice Moellmann
Não grito e calo? Não calo e grito?
Grito e estarei perdida.
Grito e tomam-me o sol.
A redondilha do meu nome
será jogada no chão.
Grito e terei apóstrofes
terei coroa de espinhos
terei a língua cortada.
Calo e virão belos sonhos.
Não grito e serei poupada.
Presságios de belos sonhos
falharam, não se cumpriram.
Pelas pálpebras cerradas
como visão dorida entrou?
Aos ouvidos adormidos
como chegou este som?
Visão de chagas abertas
e que podem ser fechadas.
Som patético de choro,
de choro e ranger de dentes,
que não são inexoráveis,
que o homem pode sustar.
E eu não gritei, não gritei, ai de mim!
Não gritei... Quero acordar.
Acordo. Salve a manhã
alegre como as anêmonas!
Vou colher as minhas rosas.
Vou coser os meus vestidos.
Vou colher as minhas rosas
e ferem-me os espinhos.
Vou coser os meus vestidos
e ferem-me as agulhas.
(É o pranto lá de fora
e a lembrança das feridas
que vêm sempre atormentar.)
Em coisas muito distantes
de todas essas angústias
vou, pois, me refugiar.
Pensar em búzios, tesouros,
sereias, lendas, nenúfares,
num céu riscado de cores.
Passar a outras galáxias
e compor, talvez, um canto,
um canto de casuarina,
e dirigi-lo à amplidão.
Com que palavras compô-lo?
As sós palavras que tenho
são estas que me sufocam
ansiosas de irromper:
não para serem um canto
dirigido ao infinito;
sim para serem denúncia,
súbita brasa lançada
às injustiças da terra.
Não grito e calo? Não calo: grito!
Caminho
Para Glauco Rodrigues Corrêa
Porque há passos errados
— não deixo o caminho certo
não trai os órfãos da terra
não largo a estrela no chão.
Porque há passos que voltam
— não vou cortejar a noite
não vou negar que a sufocam
as lentas faixas da aurora
Recuso jade no colo
pedras raras nos cabelos:
caminho de pés descalços
e vestida de agapantos
Porque há passos errados
— meus passos sejam mais firmes
mais alto seja o meu canto
mais alta a estrela na mão.
Veraneio
A Lori e Clóvis Assumpção
Alegria de ter logo à porta o rio caboclo
e sobre fundos peraus e leves peixes
e entre coroas de aguapés em flor
tomar, ainda cedo, o banho bugre.
Alegria de comer a carne dos ingás maduros
e do carneiro novo imolado
e dormir depois na rede mansa
tendo cravos do mato nos cabelos.
Alegria de ler debaixo dos salgueiros úmidos,
de saudar os patos brancos nadando
e ver o plátano grande todo dourado
do crepúsculo.
— Boa tarde, vizinha.
(E o piá que lá vai
— pequeno servo nos pastos crioulos —
cuidar das reses, lidar nos tambos.)
Alegria de ouvir as odes soltas do vento
na tarde longa
e ver os pássaros sem dono
chegados do Éden
vadiando, felizes, nos banhados do campo.
A lua crescente
como uma joia moura
já está enfeitando a noite nova. Alegria!
Alegria, alumbramento, comunhão.
Alegria
em que ternamente se mistura
a tristeza de olhar o menino peão.
Bailado
Eras estrela, eras ave, eras
grande flor aberta
sobre o peito do homem?
Em verdade parecias
em teu bailado, Raissa,
um pássaro
pousando sobre aquele tronco
pousando e, no entanto, pronto
para voar.
Em verdade eras um símbolo
em teu bailado, Raissa,
pois no mesmo dia
surgia uma era nova
e da tua terra voava
uma nova lua
para no céu bailar.
Canto da terra firme
A Francisco Carvalho
De cabelos desatados
canto:
eis que ancorei no homem.
Era nada
e já salmos aguardavam a minha vinda.
Era embrião
e já me embalavam cantos sagrados.
Mal nasci
e mergulharam-me nas águas do Jordão
para me lavarem de culpas teologais.
Mal cresci
e fizeram-me navegar em dogmas e artigos de fé.
Não mais hoje. Ainda trago
desatados os cabelos
das refregas no mar alto.
Não mais hoje
pois ancorei no homem.
Estou nua
mas ele me vestirá de esmeraldas.
Desola-me a paisagem
mas ele cobrirá a terra de pâmpanos
e camélias.
Sonho espaços e estrelas
e ele que já violou a imensidão
(rodou como lua em torno da Terra
jogou medalha no peito de Vênus
sentiu nos seus pés a terra da Lua)
fará todo poderosos barcos
e neles cortarei os caminhos do céu.
De cabelos desatados
canto:
eis que ancorei no homem.
Tudo faltaria
A Nina Costa Dantas
Ainda que no meu minuto de poesia eu praticasse
o nudismo completo da alma
e as gentes se curvassem diante da minha pureza;
embora eu possuísse a graça dos lírios do campo
e a minha palavra fosse como água clara
rolando da montanha
e eu me sentasse ao lado dos sábios da terra;
e ainda que eu tivesse a beleza de Paulina Bonaparte
e os homens me chamassem divina
e a doçura das úmidas bergamotas
meu amado sempre achasse em minha boca;
ainda assim, tudo faltaria
se eu não tivesse o humano em todos os meus gestos.
Se o rosto de todas as crianças
eu não quisesse banhado de ventura
como se elas tivessem brotado de minha carne
e devorado meu sangue antes de nascer.
Tudo faltaria
se eu não fosse capaz de querer
para todo ser humano
o pão, a rosa e a paz.
Canto das mães
As mulheres levavam os filhos pequenos pela mão
e, a seu lado, os que já tinham sonhos e namoradas.
Levavam até mesmo os recém-nascidos
que haviam arrancado dos berços
e erguiam nos braços como bandeiras.
Filhas de todos os povos, milhões de mães unidas,
pararam diante da face lívida
dos que estavam preparando a destruição
da carne de sua carne.
Pararam para cantar.
Apertando os filhos ao peito
elas diziam com suas vozes límpidas
que não os dariam para a matança.
(Esperavam pedras e pragas, dardos e maldições
os donos das fábricas da morte?)
No entanto, o que tiveram pela frente foi mais forte,
pois o verbo simples do amor, o salmo indefeso da paz
os derrotou.
Naquele encontro face a face,
enquanto as mães cantavam, os monstros compreendiam
que era a própria fonte da vida que cantava,
que eles nada mais podiam.
Forças cósmicas se haviam desencadeado
contra os seus desígnios
e os brotos da terra, que eles pretendiam cortar,
queriam crescer e amar.
Olharam, por fim, com vergonha e desolação
as suas grandes fábricas inúteis.
Os meninos estavam salvos.
E começou então
uma nova terra e um novo céu
com flores e frutos e trigais e risos
e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos.
Determinismo
Para Bayard Demaria Boiteux
Eu tenho de ter um caminho.
Melhor seria que, leve e livre, andasse em todos os caminhos
e só nutrisse meu espírito, meu espírito faminto,
com os frutos maduros do ecletismo.
Mas tenho de ter um caminho.
Um caminho onde, talvez, encontre
pedras angulosas e curvas insolentes
e por onde tenha de levar, incompreendida e desamparada,
um facho aceso entre meus frágeis dedos apertados.
Mas tenho de ter um caminho.
A dura marcha por um só caminho,
embora me leve ao reino do amor,
magoará, por vezes, minha organização exuberante
de netas de filhos inquietos do mar.
E de meu lábio saltará o verbo doloroso o obstinado.
E castigarão minha rebeldia.
Mas tenho de ter um caminho.
Pedra para o templo
Não tenho deuses, mar.
Terra
céu
homem
pedra selva
não tenho deuses.
Tenho, porém, uma alma ardente
de Teresa de Jesus
e me prosterno diante do templo
que lentamente se ergue
sem muros no universo
para proclamar
a vida, a simples vida,
sagrada como os tabernáculos.
Não tenho deuses, mar.
Entanto, sobre o ombro, como um cântaro,
eu trago a minha pedra para o templo.
Santa Catarina de Alexandria, preclara virgem e mártir cristã filha de nobres irmã de escravos rosa do Nilo estrela da manhã! deixa que meus lábios — mesmo descrentes — te venham hoje saudar: minha terra tem teu nome e de coração alto quero te louvar.
Louvação para Santa Catarina
a dos longos cabelos
pelo seu martírio.
Poemas e sinos
a venham exaltar.
Cantem e vibrem para ela,
que padeceu o açoite e a roda
a tortura e a morte
sem abjurar.
Louvação para Santa Catarina
a clara pastora
pela sua grandeza.
Que ela represente nesta hora todos os sacrificados: os indefesos os oprimidos os humilhados. Os que padeceram por ter visto em sonhos o trigo dourado crescer para todos e para todos se abrirem as flores azuis do linho.Os que souberam morrer sem negar a sua fé e sem trair o seu irmão. Os que sofrem ainda hoje e os que ainda vão sofrer.
Em teu dia porém no depois de amanhã:
nem mártires nem monstros
nem povos em luta
mas a paz entre os homens
certa como o tempo
Nesse dia novo
mais bela ainda será
a terra onde eu nasci
e que o teu nome
sempre terá.
Podem tombar ídolos e valores
mas a tua cabeça decepada
estará firme e alta
sobre teus ombros de
jambo e flor
Da estampa antiga da tua história brotará uma nova inspiração e muitos dos que ainda vão nascer te verão sorrir para as colheitas e para os teares e os teus cabelos jovens se espalharem como um manto nos campos em flor e pelos mares. E as aves descerem e os peixes subirem as plantas crescerem para te aclamar. (Aclamar o mito e o mundo). A terra inteira manará leite e mel e abrirá rosas para todos. Para todos.
(descerem as aves do céu
subirem os peixes do mar
e com papoulas nos cabelos
papoulas da minha terra
pela sala das escolas
pelo jardim dos recreios
e teu vulto radioso passar)
em toda a tua glória passar
refluir
pairar
pois eterno será o teu nome
e louvado sempre o teu dia
Santa Catarina de Alexandria!
Recado ao porvir
"Cuando la tierra sea nuestra, de todos...
Y estén libres los caminos, seré romero"
E eu serei tão somente carne morta desfeita.
Mesmo assim chegarei até às raízes
subirei pelos troncos molhada de seiva
irromperei pelos caules
atingirei folhas flores frutos
para espiar, vingada, o mundo diferente
e ainda fitar, Delgado Fito,
teu pouso lindo de romeiro:
"Y sólo descansaré en casa del hermano
para decir mi verso siempre nuevo".
Poemas em vários tons
............ : qui son gli eresiarche
Co' lor seguaci d'ogni setta, e molto
Più che non credi son le tombe carche.
Simile qui con simile è sepolto
E i monimenti son più e men caldi.
Dante — Inferno (Canto IX-43 e 44)
Na cidade de Dite
Não será no limbo o meu lugar
nem ao lado de Francesca da Rimini.
Terei de descer ainda
de passar por mais três círculos
até ser arremessada na cidade de Dite.
Ao cair na capital dos infernos, saudarei meus irmãos
e perguntarei logo por todos os hereges que chegaram
depois de Farinata degli Uberti.
Gritarei com fervor o nome de Spinoza
e, se lá estiver, o gênio amado falará
à nova sombra maldita.
Toda a sabedoria portentosa
que habitou o seu sótão holandês
ele me transmitirá do seu sepulcro ardente
e mais o seu pensamento de trezentos anos.
O enxotado das sinagogas enxotará meus erros, minhas superficialidades;
o polidor de lentes polirá meu turvo e mesquinho conhecimento;
o mestre dar-lhe-á expressão, unidade, volume
e serei profunda e grande
no meu pequeno canteiro de fogo.
Bendirei, então, meu pecado e minha pena
através de um canto novo, liberto e universal
que abalará os infernos
enraivecerá os demônios
e fará meus companheiros da cidade de Dite
estremecerem, deliciados, nos seus túmulos.
Ad immortalitatem
Havia um homem que morreu nédio e velho em seu leito e foi enterrado com honras de rei levando faixas e medalhas no peito. Carpideiras de todas as línguas choraram o passamento do ser imenso cujo nome ficara em luxuosas lombadas (palavras vãs) pois veio uma nova geração e abriu ávida seus grossos livros mas nada encontrando neles fechou-os de novo oh para sempre.
Outro homem havia que se voltara para as verdades existenciais que era simples e profundo perseguido e amado e queria apenas deixar a seus irmãos um legado semelhante ao parto de um mundo que fosse não um tratado mas um verso um versículo tão breve tão curto que pôde caber numa concha: uma síntese de tudo. Embora os inimigos o tivessem ocultado (ou empalado?) e jogassem com raiva a concha no mar os mares todos não molharão o texto que será um dia pescado enxuto para ser comido pelos séculos dos séculos.
Parábola
Era outro o vestido que eu queria
— leve e novo —
e não aquele que me haviam dado:
comprido
afogado
que me comprimia.
Mas só me compreendiam umas pessoas raras
que traziam as testas claras
marcadas de pedras
e as tochas morenas dos olhos ardendo.
Comecei mesmo assim a lutar
e eis que logrei desprender
— em vários dos meus arrojos elétricos
de grande tímida —
a solene gola, os atavios decrépitos,
os rendões amarelados que revestiam
aqueles panos caducos e pesados.
No sentido da minha libertação
foi quase nada
mas o bastante para enfurecer
os velhos vestidos virgens.
E fui apupada na tarde sombria
coberta de anátemas
pelos donos das vestes intactas.
Pelos mesmos que as repudiaram
na aurora do outro dia
sem pressa, sem angústia.
Do meu sítio anônimo
a muitos vi passar
coroados de folhas de carvalho
sobre os ombros da turba.
Discurso do demente
Para todos os torturados
Vós me ressuscitastes. Festejai, irmãos.
Ai, como pôde Robert Browning dizer
Deus está no céu
tudo está bem
se eles me crucificaram na Judeia?
Ai, se me atiraram às feras na arena de Roma?
Outras mortes me deram
e uma das mais atrozes
foi quando demônios me chamaram bruxo
e meu corpo ardeu
para aumentar a treva.
Fui chacinado ainda na noite de São Bartolomeu
e ainda mutilado na Alemanha medieva
após a derrota dos camponeses sem pão
(Ó Joss Fritz, Joss Fritz,
ver a dor dos teus olhos
foi mais triste
do que ser retalhado).
Mas vós me destes de novo o corpo emendado.
Antes (e depois)
morri de fome
apodreci de peste
penei nas galés
nas inúteis batalhas
nas prisões cruéis.
Tive os olhos vazados
arrebentadas as virilhas
as costas cortadas
humilhadas pelo látego.
Certa vez fui para a morte bradando
que em nome da Liberdade se cometem crimes
e mais tarde, muito mais tarde,
o crime desceu do céu
quando fui calcinado
com a minha cidade: Nagasaki.
Cordeiro fui no holocausto dos progrons,
esmagado líder, abatido refém,
(todavia eu era como
a figura branca do Mahatma)
e ainda profanado quando
tive a pele arrancada
para ornar a lâmpada da Besta.
Mas vós me destes a vida e o verbo
a paz e o mel
em vosso horto da ressurreição.
Festejai, irmãos. Onde
estão os poetas? Robert Browning
onde está para consertar
seu canto? Chamai-o.
Desafio
...assim inexorável
ao menos venha ela
após caminho longo
depois de longa vida bela
com pão, maçãs e vinho
e a paz e o amor grudados
na flor azul da Terra.
Venha como um sono, uma carência
de parar, uma exaustão, um orgasmo.
Assim venha
porquanto — incréus ou crentes -
desse sono vamos
despertar no Nada fatalmente.
Antevisão
Inspirado numa gravura da Segunda Guerra Mundial
Meu canto
meu pranto não vem
de tão cedo estar próxima do fim
após ter visto a aldeia toda perecer.
Vem de ter sido a mulher só
e saber que em mim os corvos em breve pousarão
e meus cabelos perdidos
com suas asas lúgubres se confundirão.
Eles abrirão as minhas veias com avidez
deixarão meus membros descarnados
e servirá apenas de frio e minguado alimento
e cérebro que ardeu em sonhos e visões
e meus olhos abertos e parados.
O coração — que viveu milênios de ternura —
será rapidamente consumido.
Mas quando chegar a vez de devorar meu ventre
os bicos sangrando pararão.
Cheios de um novo apetite,
darão início a outro lauto festim.
E sobre meu ventre imolado e morto
— morto e jorrando vida —
sobre meu ventre os corvos procriarão.
Se eu disser...
À memória de Hélio Régis, jovem gênio ilhéu, que guardou este poema
Se eu disser a verdade que está no coração dos homens
todos me banirão do seu convívio
e dirão a seus meninos que se afastem de mim.
O direito ao trabalho nervoso ou ao labor muscular
me será negado
e antes de os sinos anunciarem o meu fim
mastigarei o pão negro e dormirei na laje fria.
Rasgarão meus vestidos
inventarão mil tormentos
para que eu conheça mil mortes
antes da morte.
Matar-me-ão na manhã sem sol
e minha língua será dada aos corvos.
Todos amaldiçoarão meu nome
Se eu disser a verdade que está no coração dos homens.
Morte e eternidade
Falas para uma assembleia de futuros cadáveres
e também os que nascerem de nós perecerão
e perecerão os filhos de nossos filhos.
Mas a tua palavra subsistirá.
A tua palavra, âncora e roteiro,
pura e sábia
vertendo seiva como um talo novo
clareando caminhos como o velho sol.
Também a garganta ungida pelo grande verbo
um dia secará.
Secarão as mãos mortais que semeiam e guiam
e constroem a paz.
E os lábios que se abrem cada dia
para edificar
se transformarão em pó.
Mas a tua palavra subsistirá.
Estórias antes de ninar
Menininha, estás sem sono
e eu queria te ninar.
Segura, pois, minha mão:
vamos longe passear
vamos ver todas as terras
e ver o fundo do mar.
Vamos achar a raposa
que o príncipe cativou
e também Gato de Botas
do marquês de Carabás.
Ver a lua tomar banho
na lagoa com as estrelas,
flores com rosto de fada
e fadas boas e más.
Anda anda menininha
que muito temos de andar.
Vamos ver os cavalinhos
mais as estrelas do mar.
Vamos galopar nas nuvens
que parecem ovelhinhas
colher lírios com as pastoras
e voar com as andorinhas.
Vamos ver o sol nascer
com o seu manto carmesim
e correr para o outro lado
para ver na mesma hora
este mesmo sol morrer.
Vamos passar na ilha verde
para ver boi-de-mamão
rendas brancas das rendeiras
e as das espumas do mar.
Anda anda menininha
que muito temos de andar.
Vamos ver a flor de pedra,
encontrar a salamandra,
visitar Branca de Neve
na casa dos sete anões
e, dando outra meia-volta,
ver o menino amarelo
comendo pudim de arroz
na margem do rio azul.
Anda anda, menininha
que muito temos de andar.
Temos de passar na frente
do Pequeno Polegar.
Vamos conhecer a iara
vamos pegar o saci.
Vamos ver as quedas d'água
os moinhos e os teares
os pintos furando a casca
as cigarras a nascer
e trigo verde crescer
e virar farinha e pão.
Oh, alguém aqui passou
com uma vara de condão
a alva lã dos cordeirinhos
os bichos dos pés de amora
e os capulhos do algodão
vestiram todos os meninos!
Meninos da terra inteira
formando uma roda estão.
Estão formando uma roda
e nela vamos entrar.
Ó ciranda cirandinha
vamos todos cirandar.
Eis que o sono vem chegando
e agora temos de voltar.
Vou prender-te nos meus braços
inventar muitas cantigas
docemente te embalar.
Meus companheiros
Eis-me de novo professora
não em nenhum colégio padrão da capital
mas apenas professorinha
numa escola quase rural.
Os alunos são mil, humildes quase todos.
Tantos andam descalços
alguns desmaiam de fome
outros tiritam de frio.
(Lembrarei sempre Zilá em minha classe
e a seus irmãos.
Como é possível ter essa luminosa face,
parecer filha de rei
e não ter pão?)
Para chegar à minha escola
passo ponte, ruas, roças.
Por um quartel e uma escola
de marujos também passo.
A rota é longa
e meus companheiros quase sempre são
meninos, soldados, marinheiros.
A todos observo, a muitos amo.
Amo sobretudo a rapariguinha de tranças
parecida com a filha que sonhei.
Gosto quando vem sentar-se no meu banco
sorrindo para o meu amor — e o vento do mar
mexe nos seus cabelos enquanto
a ilusão da mãe estéril cresce.
Soldadinho enamorado olhando
o rosto quase triste
do retrato (e eu também).
Mas ontem quem ficou ao meu lado
foi uma mulher louca:
saia larga de cigana, figura iniludível de pária,
entrou no ônibus sacudida de risos
e pagou a passagem com a moeda única
que trouxera guardada na mão.
Ao ver meu rosto comovido
cuspiu para o lado
e jamais esquecerei sua careta de raiva,
e o olhar de nojo com que me olhou.
Rosa da feira
Moça desceu lá do morro
que a feira vai acabar.
Veio buscar o refugo?
Fruta estragada no chão
o pé de couve final
caixa vazia de figo
varredura de feijão?
Moça sorriu de contente
os olhos arregalou...
Se havia alfaces não viu
viu uma rosa tombada.
Moça levantou a flor
pegou a rosa pisada.
Madame lá da janela
abanou muito a cabeça
os olhos arregalou.
Diabo de negra é essa!
Vejam só o que ela achou.
Comida até que eu entendo
que ela procure no chão
pois a gente dessa raça
não quer mesmo nada não.
Mas gostar assim de rosa
fazer aqueles dengues todos
para uma flor murcha de feira...
isso onde é que já se viu?
Moça sorriu de contente:
flor é flor embora murcha
flor faz parte da beleza.
Adorou aquele achado
endireitou a coroa
cuidou bem do seu tesouro
a rosa ressuscitou.
Moça que mora no morro
que vai fazer dessa flor?
Vai botá-la no vestido
vai enfeitar os cabelos
para o namorado olhar?
Vai mergulhá-la na jarra
de lata do seu barraco?
— Vou jogar a minha rosa
nas espumas de Iemanjá.
Marujo em três tempos
Marujo ali está parado.
Tem um ar quase bravio.
Vejo-lhe o cenho fechado,
ombro largo, olhar sombrio,
e lembro (tão sem querer)
negra cena do passado
lida em Adolfo Caminha
e contendo a cerimônia
da chibata na marinha.
Fecho os olhos. Onde estamos?
Mil novecentos e dez.
Grão-marinheiro João Cândido
já tem mais um companheiro
para a revolta ajudar.
Arde em fúria o marinheiro:
aprisiona comandante
subjuga oficiais
fica senhor do convés
vibra toques de almirante
manda no "Minas Gerais"
volta os canhões para terra
torna-se o dono do mar.
Abro os olhos. Onde está
marujo forte parado?
Ei-lo que ali vai andando
e mais alguém ao seu lado
com frutas firmes no peito
com ancas rijas bailando.
Conserva o jeito sombrio,
vestígios do lutador?
Nada! De riso no lábio
marujo é homem dobrado
à bruta força do amor.
Canção
Quero ninar o meu menino
acender o meu fogão
esperar o meu amado
com o pão branco na mesa
e jasmins frescos na mão.
Agora olho lá fora.
Será que todos têm pão
e rubras maçãs no prato?
Quero que toda mulher
possa entoar minha canção.
Que haja paz em toda a terra.
Não somente em Rosamor
e irmão não mate o irmão.
Que haja paz em toda a terra
e enfeite cada rincão.
Quero toda igreja aberta
com seus pastores a pregar
com seus fiéis que vêm e vão.
Quero toda igreja aberta
e em nenhuma quero entrar.
Meu menino vai para a escola
os outros todos também vão.
Saber e amor para eles
e não se indague se vêm
de desposadas ou não.
Quero criar o meu menino
varrer cantando o meu chão
esperar o meu amado
com o pão branco na mesa
e jasmins frescos na mão.
Retrato de Anita
É filha de rei
esta que vamos celebrar?
Vestiu-se de ouro e prata
teve pérolas nos dedos
colar de água-marinha
axorcas e tiaras
teve manto de rainha?
Não é filha de rei
nem mulher de grão-senhor.
Não cintilou de pedrarias
e não nasceram em castelo
os frutos do seu amor.
É uma filha do povo
e mulher de espadachim.
Usou vestido singelo
e cinto de couro cru.
Escandalizou o seu burgo:
fugiu com um louro guerreiro
os pés morenos afoitos
no peito uma rosa brava.
Não teve filho em castelo
mas foi mãe de generais.
Não teve reis a seus pés
mas tem o culto dos povos.
É a Heroína de Dois Mundos
que vamos celebrar.
Lutou no convés dos navios
pela República Juliana.
Lutou de espada na mão
pela unidade italiana.
Passou fome passou frio
dormiu noites ao relento.
Na própria terra natal
caiu um dia prisioneira
e julgou morto seu amado.
Ah, figura de tragédia:
face bela transtornada
um archote na mão pálida
espiando rostos mortos.
Mas o amado não achou
esperança renasceu
toda épica fugiu
sobre o dorso de um cavalo
cabelos soltos ao vento.
Vinte léguas até Lages
a heroína percorreu.
(Ao vê-la surgir da noite
galopando em seu corcel
os guardas fogem de espanto:
Era centauro? aparição?)
O coração ardente batia
sob a lua fria da serra
e com o primeiro filho no ventre
moça guerreira corria
para seu amor encontrar.
É a Musa da Liberdade
que vamos celebrar.
Eis então que o seu rosto
não mais o vemos contido em nenhum quadro
e sim transfigurado, repartido pelo universo.
Os cabelos parecendo faíscas
presos ao solo europeu.
O queixo fincado na barra da Laguna.
Profundos olhos, rasgados mundos
brilhando como estrelas
pousados sobre os povos.
Oh, e os lábios se abrirem como outrora
para invectivar
aquele que oprime o seu semelhante
e aquele que se esconde na hora de lutar.
É Anita Garibaldi
que vamos celebrar.
(Declamado pela autora por ocasião da inauguração do monumento de Anita Garibaldi, na cidade de Laguna, a 20 de setembro de 1964).
Elegia para minha mãe
Comecei a ver com dor a beleza
quando, viva e a vida
amando, não mais pudeste ver.
Dor tão funda, tão diária, lembro-a
como ventura, ventura perdida,
desde que vi — ai de mim — a suma beleza:
e ter na heroína dormindo
as primeiras horas do nunca-mais
a mocidade voltando ao rosto
em estendidos lírios, o quase mistério
no sorriso doce, os pretos cílios como
se sonhassem, o fascínio, a paz.
País de Rosamor
Dia primeiro
No momento em que cheguei
era aurora em Rosamor.
Primeiro passo que dei:
ir ao rio me lavar
das nódoas vis das moedas.
Rio encarnado da aurora
logo tão negro ficou.
(Rio, carrega essas manchas
bem para o fundo ao mar.)
Depois de purificada
vieram todas as gentes
veio pastor veio rei
vieram mães e meninos
os mineiros os astrônomos
saudar a recém-chegada.
Em honra da nova irmã
beberam rubra groselha
e dançaram na manhã.
Deram-me casa com flores
trepadeiras de jasmim
vestidos claros de linho
leves túnicas de tule
alpercatas de cetim.
Também esmeralda e pérola
também pães ázimos e vinho
as frutas da primavera
e favos sabendo a rosas
e vozes sabendo a mel.
Mostraram os cem meninos
que amanhã vou ensinar.
Mostraram ruas e rosas
que só em sonhos eu vi.
E à noite vi a lua
— grande e perto como o mar.
Os meninos
Delícia de ver agora
meus meninos — quanta cor:
pretos brancos amarelos
cor de pitanga e de amora
cor de luar e trigueiros
uns com os olhos dourados
outros de verdes cabelos.
Delícia de ver agora
meus meninos — quanto amor:
diferentes mas tão belos
e sonhando tão unidos
tão alegres companheiros
como se fossem rebentos
da mesma planta saídos.
Delícia de ver agora
cem meninos e pensar
em ascender às estrelas
e no recreio — tão puros
diferentes mas tão belos —
vê-los todos cirandar
com os pombos e as serpentes.
A boda
Nos casamentos
a boda é simples:
em torno — rosas
em nós — amor.
As estações
Primavera tem cem anos
no País de Rosamor.
E só depois de — mui lautos —
verão e outono passarem
é que vem o lento inverno
marcar o fim docemente.
As comemorações
I
Eis que passam os nascidos entre cânticos
eles que jamais viram
nenhuma das faces do Dragão
eles que montam em leopardos
e têm um halo sobre a franja.
seu sono é como o dos pássaros
nos ares altos da montanha
despojado de qualquer sonho
que ponha sombras no dia branco.
Eis que passam os nascidos entre cânticos.
II
Roseiras todas, despetalemo-nos
para celebrar o evento.
Despetalemo-nos, despetalai
corolas de todas as cores
sobre o cortejo. Arcoirisai
o caminho dos nascidos
e quando passarem aos pares
epitalâmios de pétalas derramai
sobre seus nimbos. Seus nimbos.
E glorificai-os a todos com aromas
que ungidos são
eles que nasceram sob
o signo da Rosa, nossa mãe.
Passeio
Pelas aleias de jacintos
passearei
que a tarde começa
e o labor é findo.
Ou irei à encosta das grandes luzes
ouvir os sábios?
ou ao palácio dos poetas
buscar a última canção?
Pelas aleias de jacintos
Passearei.
Ou subirei à montanha
à hora de rosazul descer as pétalas
devagar?
ou irei ao portossol
ver a nave das estrelas
regressar?
Pelas aleias de jacintos
passearei.
Ou irei encher as mãos
Com os lilases líricos
Do crepúsculo
Que logo mais terei?
Pelas aleias de jacintos
passearei.
Canto da amante amada
Ainda trazendo sol e sal
além do ímpeto e da esperança
chegou o Amado.
É alvo o leito e o instante é alvo
porque desatado
de tudo o que antes
turvava o amor.
Nada conspurca
incompleta ou ensombra
meu festim de entrega
e o total carinho pela noite alta
me faz tão sagrada
que me julgo a terra.
Ah, eu sei que — um dia — estarei derramada
em cinzas pelas companheiras rosas
mas — antes — rosas brotarão de mim.
A festa
Vou botar flor no cabelo
para ver posse do rei.
Levo cinto de camélias?
Levo xale de papoulas?
Tragam flores tragam flores
para a festa de irmão rei
Reinar aqui é rodízio
e agora chegou a vez
daquele que traça e planta
os nossos jardins ovais.
Tragam flores tragam flores.
Nós e flores para a festa
no jardim das cariátides
e da fonte verdemar.
Veremos os autos novos
dos maduros dramaturgos
e sobre um tapete vivo
de violetas vermelhas
a salamandra dançar.
Chegarão depois em bando
as juvenis isadoras
com seus fluidos véus azuis
véus ou asas pelo ar
pés de pétala no chão.
Entre flores, sobre flores
— banquetes de rosamel.
Entre flores — cantos, rondas,
até uma ponta da lua
já descer sobre o jardim
e as garças brancas chegarem
para o sono sobre a fonte.
Grão-sacerdote
Grão-sacerdote, de barbas brancas,
trazia Bíblia preta na mão.
(Veio de longe por nossa fama:
termos forjado reino do amor.)
Em nossos braços o acolhemos.
Demos-lhe igreja pesada de anjos
─ anjos azuis, pretos e róseos,
brancos e roxos, cor de marfim ─
e altar para
a toda bela ─ mais do que Vênus ─
Nossa Senhora de Rosamor.
Também lhe demos tratos de terra
e com seus doze bispos amáveis
planta as espigas, uvas e rosas:
dá-nos o pão, o vinho e o mel.
Chega domingo: grão-sacerdote
fala do púlpito ao templo cheio.
Todos amamos esse homem santo
que — tantas vezes — com santa
ira nos apostrofa:
— Cristãos sem fé!
Penso que lembra naquele instante
horrores todos que viu outrora
e ao mesmo tempo nossas mãos dadas
e anelo nosso de cada dia:
paz sobre a Terra
que ela é Azul.
Pois olhos claros se umedecem
pousa no púlpito a Bíblia preta
as longas mãos se põem em prece
e num momento — tão nosso pai —
grão-sacerdote nos galardoa:
— Continuai! Continuai!
Bailenda
É certo, mineiros,
que mora uma fada
no fundo da mina?
E os mineiros riem
É certo que a fada
que mora na mina
— hetera encantada
de verdes cabelos —
vos leva, mineiros,
a magos castelos?
E os mineiros riem,
É certo que os beijos
nos magos castelos
vos põem a sonhar
e os filhos que tendes
— por isso, mineiros —
têm verdes cabelos?
E os mineiros riem.
A bela acordada
no fundo da mina
protege os tesouros
que temos na terra?
Mineiro, é certo?
E os mineiros riem.
De modo que um dia
se alguém atacar
— ou fica fraterno
(só lírios abertos
teremos na mão)
ou volta marcado
de flores e paz?
Mineiros, é certo?
E os mineiros riem.
Colheita
Fui ontem colher na lua
antúrios que lá plantei.
Tomei o meu barco alado
e logo à lua cheguei.
O canteiro preparado
por minhas mãos encontrei.
Mas nas hastes dos antúrios
somente estrelas achei.
Fui ontem colher na lua
antúrios que lá plantei.
Fui ontem colher antúrios
e com estrelas voltei.
Louvação de Jupira
Senhora, Nossa Senhora,
Senhora de Rosamor,
fui prostituta e mendiga:
sou agora tecelã.
Com meus filhos macilentos
a este país cheguei.
São hoje dois curumins
que têm faces de romã.
Já tive lençóis de trapo
em leito de duro chão.
Agora tenho-os de linho
tecido por minha mão.
Teço teço para as outras
teço para mim também.
Tenho roupas (e adereços)
com que não sonhou cunhã.
No meu, no nosso tear,
teço com as companheiras
o linho, brocado e lã
para todas as mulheres.
Venho, pois, à tua igreja
neobarroca, heptagonal,
com seus sinos de ouro e prata
e Rosamor no vitral
com seus anjos multicores
e toalha branca no altar
(mas eis — repleta — em cada mesa
branca toalha também).
Senhora, Nossa Senhora,
Senhora de Rosamor,
que assim seja todo dia
para todo o sempre. Amém.
Vozes no pomar
Por que vos planto
meus belos frutos
por que vos planto?
Para colheres
tantos e tantos
para colheres.
Para que tantos
meus belos frutos
para que tantos?
Para nos dares
a teu irmão
para nos dares.
Por que vos dar
meus belos frutos
por que vos dar?
Para nos teres
e ao pomar
para nos teres.
A nau
Selvagens filhos do mar
descem de uma nau preta.
São mercadores? corsários?
Trazem dádivas amigas
nas rudes mãos tatuadas?
Ai, trazem trinta moedas
para comprar esmeraldas.
Mas nosso rei jardineiro
assim lhes veio falar
"Guardai o vosso dinheiro
que não podemos tocar.
Esmeraldas são beleza
em nossa comunidade.
Brilham nos dedos, no colo,
nos cabelos das amadas.
Olhai as nossas varandas
abertas de par em par
já estão elas guardadas.
Temos ainda os sobejos
em volta desta roseira
— a das rosas irisadas.
Se para o bem — poderíeis
as que quisésseis levar.
Mas iriam gerar lutas
nossas pedras não ocupadas.
Por isso não tirareis
nem uma só do lugar".
Foi quando, de rosto mau,
desembainhando as adagas
cercaram a grã-roseira
para colher esmeraldas.
Colhê-las? Mesmo as menores
eram todas pedras magas
eram rochas eram bruxas
— intactas sob as adagas.
Então eles se renderam
E — após lavarem no rio
as suas mãos maculadas —
apertaram a mão do rei.
Nosso reino caminharam
até as grutas azuis.
Pavanarrosa dançamos
sal e vinho lhes servimos.
(Lua desmisteriosa
roçando mesa enfeitada
de narcisos e maçãs).
Selvagens filhos do mar
voltaram para a nau preta
vazia das esmeraldas
mas de sonhos carregada.
De tantos sonhos que um dia
vai chegar uma nau branca
trazendo gestos amigos
nas mesmas mãos tatuadas.
Os arcanjos
Com o leite das ovelhas
por leão apascentadas
doze filhos vou criar.
Não subirão às estrelas
não descerão às jazidas
que já lhes tenho missão.
Em doze corcéis alados
(para eles vão nascer
com rubros sóis sobre as asas
em doces pastos de flor)
nosso reino deixarão.
E com rosas simplesmente
— nem espadas nem punhais —
com doze rosas sagradas
farão por terra tombar
a cabeça do Dragão.
Amor então se erguerá
e rosas rebentarão
na terra no céu no mar.
Em doze corcéis alados
com rubros sóis sobre as asas
os doze cavalgarão.
(O lábaro com a Rosa
suspensa sobre o Dragão).
Em doze corcéis alados
nosso reino deixarão.
E só depois de plantarem
Rosamor em toda a terra
os doze regressarão.
Carta do poeta Francisco Carvalho sobre A Dríade e os dardos
Francisco Carvalho, da UFC, grande poeta do Ceará e do Brasil, autor de mais de uma dezena de livros consagrados, um dos quais, "Quadrante Solar", obteve o 1o. Premio da 1a. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 82, o que lhe deu justo e definitivo renome nacional, transmitiu à autora a sua valiosa opinião sobre A DRÍADE E OS DARDOS. Eis alguns tópicos da primorosa página:
Seu livro A DRÍADE E OS DARDOS veio confirmar a extraordinária força de sua poesia. Uma poesia como a sua nos reconcilia com as fontes mais puras da canção. Um sopro de juventude e de sensualidade primaveril permeia a maioria desses poemas. Respira-se neles o cheiro selvagem da terra fecundada. Cheiro de chuva bíblica ressoando na alma dos pântanos. Seus poemas estão profundamente impregnados da natureza e do perfume das coisas. "De cabelos desatados / canto: / eis que ancorei no homem". Qualquer das filhas de Sião celebrada pelo bardo dos bardos poderia subscrever esses versos. São versos fortes, palavras rituais, semelhantes àquelas que as mulheres da antiguidade remota dirigiam aos deuses da fecundação. Esse "Canto da Companheira" é uma das mais belas canções de amor que tenho conhecido: "Só voltarei pelo fim da tarde / com ligeiros passos / para pôr, antes da noite / flores vivas no grande jarro. / Cortarei rosas no jardim em tua honra. / Voltarei com ligeiros passos / e quando chegares trazendo o teu dia / áspero, os participante, igual ao meu / e cachos de begônias rubras para mim / já estarão soltos meus cabelos / e acesa a lâmpada". Não há mais o que dizer. Um poema assim pede silêncio. Recolhimento metafísico. Um poema assim já é o começo da liberdade, a fronteira de alegria para o mistério da música.
Sua poesia caminha em muitas direções. É uma poesia que seguramente contempla os valores universais. Uma poesia voltada para o amor e ao mesmo tempo comprometida com a dimensão social do homem. Uma poesia que não se enclausura em recintos de vidro. Uma poesia solidária, terna, compassiva, jubilosa, participante. Sua poesia não se compraz em cultivar o autismo estático dos elitistas da chamada "torre de marfim". "Os meninos estavam salvos. / E começou então / uma nova terra e um novo céu / com flores e frutos e trigais e risos / e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos". Em "Determinismo", estariam expressas as linhas mestras do seu comportamento filosófico diante da vida: "Eu tenho de ter um caminho. / Um caminho onde, talvez, encontre / pedras angulosas e curvas insolentes / e por onde tenha de levar, incompreendida e desamparada / um facho aceso entre os meus frágeis dedos apertados".
Quem ler os seus poemas com espírito atento e em completo estado de graça, certamente não deixará de reparar no seu indiscutível parentesco bíblico. A cada passo se encontram, na sua escritura poética, ressonâncias profundas e misteriosas dos grandes vates do Antigo Testamento e do Novo também. Basta ler versos como estes, para se verificar que não estou fazendo afirmação gratuita: "E fui apupada na tarde sombria / coberta de anátemas / pelos donos das vestes intactas" (p. 90). "Bendirei, então, meu pecado e minha pena / através de um canto novo / que abalará infernos / enraivecerá os demônios / e fará meus companheiros da cidade de Dite / estremecerem, deliciados, nos seus túmulos" (p. 86). Impossível ficar indiferente à força dramática de alguns de seus poemas. Em "Discurso do Demente", certas passagens evocam ressonâncias poéticas do Livro de Jó, um clássico só comparado às grandes tragédias da antiguidade grega: "Tive os olhos vazados / arrebentadas as virilhas / as costas cortadas / humilhadas : pelo látego" (p. 92).
Estou convencido de que as suas virtudes literárias vão muito além do completo domínio do instrumento verbal. Seus poemas se impõem pela beleza e pelo sereno equilíbrio da linguagem. Sua poesia é ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca. Sua arte poética tem uma dignidade impressionante. Essa dignidade nascida da convicção de que a palavra é o fundamento do Ser. Sua palavra poética nos comunica aquele sopro de vida e eternidade que está na origem de todos os mitos. Sua poesia é do presente e do futuro, mas é também de um passado remoto, embalado pelos sonhos e atavismos do homem primitivo. Sua é também a certeza de que a palavra continuará existindo pelos tempos afora, ("pura e sábia / âncora e roteiro / vertendo seiva como um talo novo / clareando caminhos como o velho sol" (p. 99).