Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Dríade e os dardos, de Maura de Senna


 Textos-fonte:

Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos, Org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2004.

Maura de Senna Pereira, A Dríade e os dardos,

Rio de Janeiro: Livraria São José, 1978.

ÍNDICE

Prefácio

Da primavera

Buscar-me em flor

Canto da companheira

Amor

Salmo para o bem-amado

Maternidade

Consubstanciação

Balada para o Vento Sul

Lagoa da Conceição

Repto ao sol

Insular

A antevéspera

Quero ajudar

Libertação

Escolha

Caminho

Veraneio

Bailado

Canto da terra firme

Tudo faltaria

Canto das mães

Determinismo

Pedra para o templo

Louvação para Santa Catarina

Recado ao porvir

Poemas em vários tons

Na cidade de Dite

Ad immortalitatem

Parábola

Discurso do demente

Desafio

Antevisão

Se eu disser...

Morte e eternidade

Estórias antes de ninar

Meus companheiros

Rosa da feira

Marujo em três tempos

Canção

Retrato de Anita

Elegia para minha mãe

País de Rosamor

Dia primeiro

Os meninos

A boda

As estações

As comemorações

Passeio

Canto da amante amada

A festa

Grão-sacerdote

Bailenda

Colheita

Louvação de Jupira

Vozes no pomar

A nau

Os arcanjos

Carta do poeta Francisco Carvalho sobre A Dríade e os dardos

Para Almeida Cousin

meu amor

 

Prefácio

Maura de Senna Pereira é poetisa que vive à procura de si mesma, embora contente com o dia de hoje; o que a transfigura é a busca do ontem, para ela um presente perene. "Buscar-me em flor" é um de seus poemas-mote, em que ela esquadrinha, para usar suas próprias palavras, os esconderijos maternos, e se indaga sobre a garganta juvenil de que a dotara a natureza, o adolescente cabelo, o ímpeto dos pés pequenos e a carne amanhecendo.

É mulher, é companheira, sensível às lutas entre o velho e o novo e define magistralmente o amor ao dizer ao amado tê-lo compreendido: "Quando conhecestes as minhas derrotas / e disseste que eram triunfos."

A natureza também a empolga, a natureza que está na terra e que está no ser humano. É uma namorada do vento, a quem pede que a leve também consigo, para longe dela própria.

Maura, ardorosa, desafia o sol, declara ser sua alma um fogaréu que não sabe quem acendeu.

Pagã e mística, sensual e genuflexa, proclama que nesse ardor singular a alma da poetisa poderia aquecer todas as almas polares. Há aqui um desejo de libertar-se do ser que constrange todas as criaturas de Deus. Nessa ânsia de libertação, ela diz o desejo de sair de si mesma, de cortar todos os mares e chegar a todas as praias sem fadiga.

A dicção espontânea, correntia, leva-a a verdadeiros achados de originalidade como em "VERANEIO" quando nos fala em "leves peixes".

Essa descendente altaneira dos navegadores lusos ainda traz, conforme canta, desatados os cabelos das refregas no mar alto.

No fundo o que ela é quer é "a vida, a simples vida."

Não está alheia à angústia destes nossos tempos apocalípticos de guerra e de campos de concentração.

Afirma a certa altura: "Tive a pele arrancada para ornar a lâmpada da Besta."

Sabe que estes tempos tremendos, mas não as palavras, passarão.

A mulher fraterna volta da refrega e não cora em chorar a filha que não teve, a filha com quem sonhou. Justamente é por isso que o poeta é poeta, porque lhe faltam coisas.

Maura oceânica, Maura fluvial, Maura de Senna, Maura portuguesa, Maura Pereira, Maura telúrica de tanto Brasil no sangue, Maura sabedora desta nossa língua tão rica de segredo e de aventura, onde ela se revela como uma das vozes encantadas de nossa poesia.

Rio, 22 de setembro de 1977

Manoel Caetano Bandeira de Mello

 

Da primavera

 

Buscar-me em flor

Para Sylvia Amélia

Buscar-me solta amanhecendo

dentro da tarde na solidão selvagem.

Solta na mata cortada pelo arroio

edênico e tão próximo

do rio Biguaçu ainda longe do mar.

Em verdes e pardos bosques

embrenhada buscar-me

passando cercas de vinhas e framboesas

galgando árvores com esconderijos maternos

para os ninhos fecundados dormindo.

Lábios vaiando os irisados insetos

— lábios roxos das frutas devoradas —

cintura ornada de boninas

cabelos misturados de aragem.

Buscar-me nos mesmos sítios de

aromas afrodisíacos e águas índias

(restos do Éden, sítios intocados)

e, no entanto, onde

a garganta juvenil? o adolescente cabelo?

o ímpeto dos pés pequenos?

onde a carne amanhecendo?

 

Canto da companheira

Sairei pela manhã clara em busca do pensamento do mundo.

Irei até as searas e as trepidantes fábricas

e surpreenderei o operário em seu labor.

Vê-lo-ei mover êmbolos e turbinas, hélices e tratores

e, comovida e atenta, lhe farei perguntas.

Entrarei nos barcos, descerei às minas,

estarei nas mansões e rios cortiços

nas igrejas e nas tascas

pois nenhum lugar me há de ser vedado.

Escutarei as ânsias do povo, as pedras da rua

e verei as lutas entre o velho e o novo.

Escreverei então

com suor e sangue e o húmus da terra

o que houver captado

assim unida, colada ao fundo da vida

e filtradas pela minha emoção

mensagens novas chegarão aos homens.

Voltarei pelo fim da tarde

com ligeiros passos

para pôr, antes da noite,

flores vivas no grande jarro.

Cortarei rosas no jardim em tua honra

rosas e dálias para te saudarem.

Voltarei com ligeiros passos

e quando chegares trazendo teu dia

áspero, participante, lúcido

e cachos de begônias rubras para mim

já estarão soltos meus cabelos

e acesa a lâmpada.

 

Amor

Em verdade te digo que não foi naquela hora

que te pertenci:

quando me tomaste nos teus braços poderosos

e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.

Em verdade te digo que não foi naquela hora

mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo

de rebento inquieto deste século

e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.

Quando conheceste as minhas derrotas

e disseste que eram triunfos.

Quando viste pulsar meu coração nu

e o festejaste.

Quando soubeste que nem sempre

os teus pensamentos são os meus pensamentos

nem os teus caminhos são os meus caminhos.

Mas o amor brilhou como nunca em tua face

e me surpreendeste com a cascata de palavras

de que eu tinha sede

desde a minha primeira hora consciente.

Foi quando te pertenci.

 

Salmo para o bem-amado

Sustentai-me com passas,

confortai-me com maçãs,

porque desfaleço de amor.

Cântico dos Cânticos — 2:5

Imprecações não ergo e sim ditirambos

e sim aleluias

e sim hosanas

às pedras e às dores do caminho.

Onde está a harpa do rei David

onde estão as cítaras hebreias

onde está Sulamita

e onde as virgens loucas?

A todas essas cordas e bocas eu conclamo

a todas ao meu lado quero

para ajudarem a bendizer a tormenta

que me arrebatou a primavera,

as geenas que padeci,

as pedras e as dores, as lutas e as revoltas,

a bendizê-las

porque foram elas que me aproximaram de ti.

 

Maternidade

Arrepender-te-ás talvez

como de uma suprema profanação

de teres um dia me vestido

de bagos e de gomos

e para eles depois te atirado

como um fauno sem lei.

Oh, não te arrependas não

que me deste glória e honra

pois eu só via o milagre da árvore estéril

carregada de frutos

e o sumo das uvas escorrendo

dos seios que nunca amamentaram.

 

Consubstanciação

Para Therezinha e Celestino Sachet

Quando me deito nos teus canteiros mornos,

Jurerê-mirim, Isla de los Patos, Santa Catarina,

não me basta a alegria telúrica

de ter nascido em ti

nem o pensamento quase bíblico

de que sou feita do teu barro.

Meu corpo é o teu imenso corpo de ilha

e meu sangue o rasgão líquido dos teus rios

a linfa nervosa das tuas cachoeiras

a água matuta das tuas lagoas.

Plantas rebentam de tuas carnes, de meus chãos

e sinto-me carregada da tua seiva e do teu pólen

em todas as idades

desde tua própria pré-história

até mesmo o teu porvir.

Quando me levanto

a sacudir a tua poeira morena

e ungida com o perfume de vinte lírios novos

e mulher e ilha deixam de ser uma unidade pagã

ainda sinto me prender e me abraçar

e envolver, implacável, a tua existência cósmica

e abraço varonil do mar.

 

Balada para o vento sul

Para Silveira de Souza

O vento sul chegou

desfolhando papoulas

vergando caules

sacudindo polens

agitando palmeiras.

As águas se levantaram em cóleras plebeias

as aves tremeram.

Tremeram

as pencas leves das glicínias

e os gerânios duros dos balcões.

No meio do jardim convulsionado

toda entregue ao seu desvario

fico de pé como uma árvore flexível

— as ânsias e os cabelos em desordem

as mangas largas voando —

a parecer uma alegoria do vendaval.

O vento sul chegou

abanando possesso

a minha velha cidade menina

roçando casas

virando esquinas

levando folhas, areias, conchas.

Sou tua namorada, vento!

Leva-me também

leva-me contigo

para longe de mim.

 

Lagoa da Conceição

Esta é a hora da gênese

pois que se ergue sobre as águas.

Cada um dos seus átomos resplandece mais

que os tesouros da rainha de Sabá

e todo ele é como

mil estrelas tombadas.

Eis que se ergue como um arcanjo

bradando mudas parábolas.

Com suas fúlgidas espadas

golpeia as últimas trevas.

Esta é a hora da gênese

pois que se ergue todo-poderoso

derramando seu sêmen de fogo.

Este é o primeiro dia da criação

pois estou vendo o sol

o sol ilhéu nascer

nas tuas águas bíblicas.

 

Repto ao sol

Estirada na areia mais branca da Praia de Fora

banho-me no grande sol bruxo da minha terra.

Sol, peço que me tornes dourada e forte.

Sol, aquece minha pele, penetra em meus poros,

mas não tentes nunca

aquecer minha alma.

Minha alma é um fogaréu que não sei quem acendeu:

ódios que ardem como balões no céu

sonhos ígneos clareando longas noites insones

ternuras iluminadas

tochas de esperança geenas de revolta

sóis em zênite mesmo dentro da noite.

Sol sádico

meu amante sol

fica certo de que, no seu ardor

singular, minha alma poderia

aquecer todas as almas polares

e a ti próprio

desafiar.

 

Insular

Às vezes interrogo, amigo:

Será porque venho de uma terra

que não se integrou em outra

(embora esta por mim também amada)

— num gesto potente de rebeldia cósmica

ou talvez liberta no furor de um cataclismo —

que me pareço com ela ou ela comigo

e me toma esta euforia desvairada

quando vejo qualquer povo

ou qualquer consciência

querer ser livre?

Será a ilha, amigo?

 

A antevéspera

 

Quero ajudar

Para Alcides Buss

Quero ajudar a construir o mundo futuro

e colocar a minha pedra

no lugar exato e na hora certa.

Quero conter a pressa de ajudar

deter os passos vãos e as mãos sôfregas

ser vigilante, compreensiva, tenaz.

Deixar no grandioso edifício a minha pedra

com a mão segura para que ela não vacile

e role nos espaços

feita escombro antes de ser coluna.

Quero deixar segura a minha pedra.

Altos frisos a revestirão

esculpidos por sábias mãos alheias

mas — pequena e anônima, direita e firme —

ela estará lá dentro ajudando.

Quero ajudar a construir o mundo futuro

— o mundo sem opressão e sem miséria —

luminoso, rasgado, justo.

Quero permanecer alerta

e colocar a minha pedra

no lugar exato e na hora certa.

 

Libertação

A Teresinka Pereira

Que eu saia de mim

e corte com ânsia todos os mares

e chegue a todas as praias sem fadiga.

Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas,

no lodo

e no tumulto, na orla dos lagos e dos abismos.

Que eu saia de mim

e fique nos caminhos o meu hálito.

Que todos os clamores e todos os risos

e também todos os silêncios repercutam em minha

orelha

e a minha língua se torne clara e ardente como o sol

e todos me entendam, os meninos, os pobres.

Que eu saia de mim

e com a soma de minhas libertações

e a massa de minhas vitórias sobre mim

me volte leve e humana

para as angústias e os problemas dos homens.

Que eu saia de mim

e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim,

mas sempre diante do universo

meu espírito agnóstico seja um olho comovido.

Que eu saia para sempre de mim

e seja uma nova criatura

em que as coisas e os seres fiquem grudados.

Que eu não volte para mim

que para sempre me perca

da criatura salva

todos sejam impregnados.

 

Escolha

Para Leatrice Moellmann

Não grito e calo? Não calo e grito?

Grito e estarei perdida.

Grito e tomam-me o sol.

A redondilha do meu nome

será jogada no chão.

Grito e terei apóstrofes

terei coroa de espinhos

terei a língua cortada.

Calo e virão belos sonhos.

Não grito e serei poupada.

Presságios de belos sonhos

falharam, não se cumpriram.

Pelas pálpebras cerradas

como visão dorida entrou?

Aos ouvidos adormidos

como chegou este som?

Visão de chagas abertas

e que podem ser fechadas.

Som patético de choro,

de choro e ranger de dentes,

que não são inexoráveis,

que o homem pode sustar.

E eu não gritei, não gritei, ai de mim!

Não gritei... Quero acordar.

Acordo. Salve a manhã

alegre como as anêmonas!

Vou colher as minhas rosas.

Vou coser os meus vestidos.

Vou colher as minhas rosas

e ferem-me os espinhos.

Vou coser os meus vestidos

e ferem-me as agulhas.

(É o pranto lá de fora

e a lembrança das feridas

que vêm sempre atormentar.)

Em coisas muito distantes

de todas essas angústias

vou, pois, me refugiar.

Pensar em búzios, tesouros,

sereias, lendas, nenúfares,

num céu riscado de cores.

Passar a outras galáxias

e compor, talvez, um canto,

um canto de casuarina,

e dirigi-lo à amplidão.

Com que palavras compô-lo?

As sós palavras que tenho

são estas que me sufocam

ansiosas de irromper:

não para serem um canto

dirigido ao infinito;

sim para serem denúncia,

súbita brasa lançada

às injustiças da terra.

Não grito e calo? Não calo: grito!

 

Caminho

Para Glauco Rodrigues Corrêa

Porque há passos errados

— não deixo o caminho certo

não trai os órfãos da terra

não largo a estrela no chão.

Porque há passos que voltam

— não vou cortejar a noite

não vou negar que a sufocam

as lentas faixas da aurora

Recuso jade no colo

pedras raras nos cabelos:

caminho de pés descalços

e vestida de agapantos

Porque há passos errados

— meus passos sejam mais firmes

mais alto seja o meu canto

mais alta a estrela na mão.

 

Veraneio

A Lori e Clóvis Assumpção

Alegria de ter logo à porta o rio caboclo

e sobre fundos peraus e leves peixes

e entre coroas de aguapés em flor

tomar, ainda cedo, o banho bugre.

Alegria de comer a carne dos ingás maduros

e do carneiro novo imolado

e dormir depois na rede mansa

tendo cravos do mato nos cabelos.

Alegria de ler debaixo dos salgueiros úmidos,

de saudar os patos brancos nadando

e ver o plátano grande todo dourado

do crepúsculo.

— Boa tarde, vizinha.

(E o piá que lá vai

— pequeno servo nos pastos crioulos —

cuidar das reses, lidar nos tambos.)

Alegria de ouvir as odes soltas do vento

na tarde longa

e ver os pássaros sem dono

chegados do Éden

vadiando, felizes, nos banhados do campo.

A lua crescente

como uma joia moura

já está enfeitando a noite nova. Alegria!

Alegria, alumbramento, comunhão.

Alegria

em que ternamente se mistura

a tristeza de olhar o menino peão.

 

Bailado

Eras estrela, eras ave, eras

grande flor aberta

sobre o peito do homem?

Em verdade parecias

em teu bailado, Raissa,

um pássaro

pousando sobre aquele tronco

pousando e, no entanto, pronto

para voar.

Em verdade eras um símbolo

em teu bailado, Raissa,

pois no mesmo dia

surgia uma era nova

e da tua terra voava

uma nova lua

para no céu bailar.

 

Canto da terra firme

A Francisco Carvalho

De cabelos desatados

canto:

eis que ancorei no homem.

Era nada

e já salmos aguardavam a minha vinda.

Era embrião

e já me embalavam cantos sagrados.

Mal nasci

e mergulharam-me nas águas do Jordão

para me lavarem de culpas teologais.

Mal cresci

e fizeram-me navegar em dogmas e artigos de fé.

Não mais hoje. Ainda trago

desatados os cabelos

das refregas no mar alto.

Não mais hoje

pois ancorei no homem.

Estou nua

mas ele me vestirá de esmeraldas.

Desola-me a paisagem

mas ele cobrirá a terra de pâmpanos

e camélias.

Sonho espaços e estrelas

e ele que já violou a imensidão

(rodou como lua em torno da Terra

jogou medalha no peito de Vênus

sentiu nos seus pés a terra da Lua)

fará todo poderosos barcos

e neles cortarei os caminhos do céu.

De cabelos desatados

canto:

eis que ancorei no homem.

 

Tudo faltaria

A Nina Costa Dantas

Ainda que no meu minuto de poesia eu praticasse

o nudismo completo da alma

e as gentes se curvassem diante da minha pureza;

embora eu possuísse a graça dos lírios do campo

e a minha palavra fosse como água clara

rolando da montanha

e eu me sentasse ao lado dos sábios da terra;

e ainda que eu tivesse a beleza de Paulina Bonaparte

e os homens me chamassem divina

e a doçura das úmidas bergamotas

meu amado sempre achasse em minha boca;

ainda assim, tudo faltaria

se eu não tivesse o humano em todos os meus gestos.

Se o rosto de todas as crianças

eu não quisesse banhado de ventura

como se elas tivessem brotado de minha carne

e devorado meu sangue antes de nascer.

Tudo faltaria

se eu não fosse capaz de querer

para todo ser humano

o pão, a rosa e a paz.

 

Canto das mães

As mulheres levavam os filhos pequenos pela mão

e, a seu lado, os que já tinham sonhos e namoradas.

Levavam até mesmo os recém-nascidos

que haviam arrancado dos berços

e erguiam nos braços como bandeiras.

Filhas de todos os povos, milhões de mães unidas,

pararam diante da face lívida

dos que estavam preparando a destruição

da carne de sua carne.

Pararam para cantar.

Apertando os filhos ao peito

elas diziam com suas vozes límpidas

que não os dariam para a matança.

(Esperavam pedras e pragas, dardos e maldições

os donos das fábricas da morte?)

No entanto, o que tiveram pela frente foi mais forte,

pois o verbo simples do amor, o salmo indefeso da paz

os derrotou.

Naquele encontro face a face,

enquanto as mães cantavam, os monstros compreendiam

que era a própria fonte da vida que cantava,

que eles nada mais podiam.

Forças cósmicas se haviam desencadeado

contra os seus desígnios

e os brotos da terra, que eles pretendiam cortar,

queriam crescer e amar.

Olharam, por fim, com vergonha e desolação

as suas grandes fábricas inúteis.

Os meninos estavam salvos.

E começou então

uma nova terra e um novo céu

com flores e frutos e trigais e risos

e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos.

 

Determinismo

Para Bayard Demaria Boiteux

Eu tenho de ter um caminho.

Melhor seria que, leve e livre, andasse em todos os caminhos

e só nutrisse meu espírito, meu espírito faminto,

com os frutos maduros do ecletismo.

Mas tenho de ter um caminho.

Um caminho onde, talvez, encontre

pedras angulosas e curvas insolentes

e por onde tenha de levar, incompreendida e desamparada,

um facho aceso entre meus frágeis dedos apertados.

Mas tenho de ter um caminho.

A dura marcha por um só caminho,

embora me leve ao reino do amor,

magoará, por vezes, minha organização exuberante

de netas de filhos inquietos do mar.

E de meu lábio saltará o verbo doloroso o obstinado.

E castigarão minha rebeldia.

Mas tenho de ter um caminho.

 

Pedra para o templo

Não tenho deuses, mar.

Terra

céu

homem

pedra selva

não tenho deuses.

Tenho, porém, uma alma ardente

de Teresa de Jesus

e me prosterno diante do templo

que lentamente se ergue

sem muros no universo

para proclamar

a vida, a simples vida,

sagrada como os tabernáculos.

Não tenho deuses, mar.

Entanto, sobre o ombro, como um cântaro,

eu trago a minha pedra para o templo.

Louvação para Santa Catarina

Santa Catarina de Alexandria, preclara virgem e mártir cristã filha de nobres irmã de escravos rosa do Nilo estrela da manhã! deixa que meus lábios — mesmo descrentes — te venham hoje saudar: minha terra tem teu nome e de coração alto quero te louvar.

Louvação para Santa Catarina

a dos longos cabelos

pelo seu martírio.

Poemas e sinos

a venham exaltar.

Cantem e vibrem para ela,

que padeceu o açoite e a roda

a tortura e a morte

sem abjurar.

Louvação para Santa Catarina

a clara pastora

pela sua grandeza.

Que ela represente nesta hora todos os sacrificados: os indefesos os oprimidos os humilhados. Os que padeceram por ter visto em sonhos o trigo dourado crescer para todos e para todos se abrirem as flores azuis do linho.Os que souberam morrer sem negar a sua fé e sem trair o seu irmão. Os que sofrem ainda hoje e os que ainda vão sofrer.

Em teu dia porém no depois de amanhã:

nem mártires nem monstros

nem povos em luta

mas a paz entre os homens

certa como o tempo

Nesse dia novo

mais bela ainda será

a terra onde eu nasci

e que o teu nome

sempre terá.

Podem tombar ídolos e valores

mas a tua cabeça decepada

estará firme e alta

sobre teus ombros de

jambo e flor

Da estampa antiga da tua história brotará uma nova inspiração e muitos dos que ainda vão nascer te verão sorrir para as colheitas e para os teares e os teus cabelos jovens se espalharem como um manto nos  campos em flor e pelos mares. E as aves descerem e os peixes subirem as plantas crescerem para te aclamar. (Aclamar o mito e o mundo). A terra inteira manará leite e mel e abrirá rosas para todos. Para todos.

(descerem as aves do céu

subirem os peixes do mar

e com papoulas nos cabelos

papoulas da minha terra

pela sala das escolas

pelo jardim dos recreios

e teu vulto radioso passar)

em toda a tua glória passar

refluir

pairar

pois eterno será o teu nome

e louvado sempre o teu dia

Santa Catarina de Alexandria!

 

Recado ao porvir

"Cuando la tierra sea nuestra, de todos...

Y estén libres los caminos, seré romero"

E eu serei tão somente carne morta desfeita.

Mesmo assim chegarei até às raízes

subirei pelos troncos molhada de seiva

irromperei pelos caules

atingirei folhas flores frutos

para espiar, vingada, o mundo diferente

e ainda fitar, Delgado Fito,

teu pouso lindo de romeiro:

"Y sólo descansaré en casa del hermano

para decir mi verso siempre nuevo".

 

Poemas em vários tons

............ : qui son gli eresiarche

Co' lor seguaci d'ogni setta, e molto

Più che non credi son le tombe carche.

Simile qui con simile è sepolto

E i monimenti son più e men caldi.

Dante — Inferno (Canto IX-43 e 44)

 

Na cidade de Dite

Não será no limbo o meu lugar

nem ao lado de Francesca da Rimini.

Terei de descer ainda

de passar por mais três círculos

até ser arremessada na cidade de Dite.

Ao cair na capital dos infernos, saudarei meus irmãos

e perguntarei logo por todos os hereges que chegaram

depois de Farinata degli Uberti.

Gritarei com fervor o nome de Spinoza

e, se lá estiver, o gênio amado falará

à nova sombra maldita.

Toda a sabedoria portentosa

que habitou o seu sótão holandês

ele me transmitirá do seu sepulcro ardente

e mais o seu pensamento de trezentos anos.

O enxotado das sinagogas enxotará meus erros, minhas superficialidades;

o polidor de lentes polirá meu turvo e mesquinho conhecimento;

o mestre dar-lhe-á expressão, unidade, volume

e serei profunda e grande

no meu pequeno canteiro de fogo.

Bendirei, então, meu pecado e minha pena

através de um canto novo, liberto e universal

que abalará os infernos

enraivecerá os demônios

e fará meus companheiros da cidade de Dite

estremecerem, deliciados, nos seus túmulos.

 

Ad immortalitatem

Havia um homem que morreu nédio e velho em seu leito e foi enterrado com honras de rei levando faixas e medalhas no peito. Carpideiras de todas as línguas choraram o passamento do ser imenso cujo nome ficara em luxuosas lombadas (palavras vãs) pois veio uma nova geração e abriu ávida seus grossos livros mas nada encontrando neles fechou-os de novo oh para sempre.

Outro homem havia que se voltara para as verdades existenciais que era simples e profundo perseguido e amado e queria apenas deixar a seus irmãos um legado semelhante ao parto de um mundo que fosse não um tratado mas um verso um versículo tão breve tão curto que pôde caber numa concha: uma síntese de tudo. Embora os inimigos o tivessem ocultado (ou empalado?) e jogassem com raiva a concha no mar os mares todos não molharão o texto que será um dia pescado enxuto para ser comido pelos séculos dos séculos.

 

Parábola

Era outro o vestido que eu queria

— leve e novo —

e não aquele que me haviam dado:

comprido

afogado

que me comprimia.

Mas só me compreendiam umas pessoas raras

que traziam as testas claras

marcadas de pedras

e as tochas morenas dos olhos ardendo.

Comecei mesmo assim a lutar

e eis que logrei desprender

— em vários dos meus arrojos elétricos

de grande tímida —

a solene gola, os atavios decrépitos,

os rendões amarelados que revestiam

aqueles panos caducos e pesados.

No sentido da minha libertação

foi quase nada

mas o bastante para enfurecer

os velhos vestidos virgens.

E fui apupada na tarde sombria

coberta de anátemas

pelos donos das vestes intactas.

Pelos mesmos que as repudiaram

na aurora do outro dia

sem pressa, sem angústia.

Do meu sítio anônimo

a muitos vi passar

coroados de folhas de carvalho

sobre os ombros da turba.

 

Discurso do demente

Para todos os torturados

Vós me ressuscitastes. Festejai, irmãos.

Ai, como pôde Robert Browning dizer

Deus está no céu

tudo está bem

se eles me crucificaram na Judeia?

Ai, se me atiraram às feras na arena de Roma?

Outras mortes me deram

e uma das mais atrozes

foi quando demônios me chamaram bruxo

e meu corpo ardeu

para aumentar a treva.

Fui chacinado ainda na noite de São Bartolomeu

e ainda mutilado na Alemanha medieva

após a derrota dos camponeses sem pão

(Ó Joss Fritz, Joss Fritz,

ver a dor dos teus olhos

foi mais triste

do que ser retalhado).

Mas vós me destes de novo o corpo emendado.

Antes (e depois)

morri de fome

apodreci de peste

penei nas galés

nas inúteis batalhas

nas prisões cruéis.

Tive os olhos vazados

arrebentadas as virilhas

as costas cortadas

humilhadas pelo látego.

Certa vez fui para a morte bradando

que em nome da Liberdade se cometem crimes

e mais tarde, muito mais tarde,

o crime desceu do céu

quando fui calcinado

com a minha cidade: Nagasaki.

Cordeiro fui no holocausto dos progrons,

esmagado líder, abatido refém,

(todavia eu era como

a figura branca do Mahatma)

e ainda profanado quando

tive a pele arrancada

para ornar a lâmpada da Besta.

Mas vós me destes a vida e o verbo

a paz e o mel

em vosso horto da ressurreição.

Festejai, irmãos. Onde

estão os poetas? Robert Browning

onde está para consertar

seu canto? Chamai-o.

 

Desafio

...assim inexorável

ao menos venha ela

após caminho longo

depois de longa vida bela

com pão, maçãs e vinho

e a paz e o amor grudados

na flor azul da Terra.

Venha como um sono, uma carência

de parar, uma exaustão, um orgasmo.

Assim venha

porquanto — incréus ou crentes -

desse sono vamos

despertar no Nada fatalmente.

 

Antevisão

Inspirado numa gravura da Segunda Guerra Mundial

Meu canto

meu pranto não vem

de tão cedo estar próxima do fim

após ter visto a aldeia toda perecer.

Vem de ter sido a mulher só

e saber que em mim os corvos em breve pousarão

e meus cabelos perdidos

com suas asas lúgubres se confundirão.

Eles abrirão as minhas veias com avidez

deixarão meus membros descarnados

e servirá apenas de frio e minguado alimento

e cérebro que ardeu em sonhos e visões

e meus olhos abertos e parados.

O coração — que viveu milênios de ternura —

será rapidamente consumido.

Mas quando chegar a vez de devorar meu ventre

os bicos sangrando pararão.

Cheios de um novo apetite,

darão início a outro lauto festim.

E sobre meu ventre imolado e morto

— morto e jorrando vida —

sobre meu ventre os corvos procriarão.

 

Se eu disser...

À memória de Hélio Régis, jovem gênio ilhéu, que guardou este poema

Se eu disser a verdade que está no coração dos homens

todos me banirão do seu convívio

e dirão a seus meninos que se afastem de mim.

O direito ao trabalho nervoso ou ao labor muscular

me será negado

e antes de os sinos anunciarem o meu fim

mastigarei o pão negro e dormirei na laje fria.

Rasgarão meus vestidos

inventarão mil tormentos

para que eu conheça mil mortes

antes da morte.

Matar-me-ão na manhã sem sol

e minha língua será dada aos corvos.

Todos amaldiçoarão meu nome

Se eu disser a verdade que está no coração dos homens.

 

Morte e eternidade

Falas para uma assembleia de futuros cadáveres

e também os que nascerem de nós perecerão

e perecerão os filhos de nossos filhos.

Mas a tua palavra subsistirá.

A tua palavra, âncora e roteiro,

pura e sábia

vertendo seiva como um talo novo

clareando caminhos como o velho sol.

Também a garganta ungida pelo grande verbo

um dia secará.

Secarão as mãos mortais que semeiam e guiam

e constroem a paz.

E os lábios que se abrem cada dia

para edificar

se transformarão em pó.

Mas a tua palavra subsistirá.

 

Estórias antes de ninar

Menininha, estás sem sono

e eu queria te ninar.

Segura, pois, minha mão:

vamos longe passear

vamos ver todas as terras

e ver o fundo do mar.

Vamos achar a raposa

que o príncipe cativou

e também Gato de Botas

do marquês de Carabás.

Ver a lua tomar banho

na lagoa com as estrelas,

flores com rosto de fada

e fadas boas e más.

Anda anda menininha

que muito temos de andar.

Vamos ver os cavalinhos

mais as estrelas do mar.

Vamos galopar nas nuvens

que parecem ovelhinhas

colher lírios com as pastoras

e voar com as andorinhas.

Vamos ver o sol nascer

com o seu manto carmesim

e correr para o outro lado

para ver na mesma hora

este mesmo sol morrer.

Vamos passar na ilha verde

para ver boi-de-mamão

rendas brancas das rendeiras

e as das espumas do mar.

Anda anda menininha

que muito temos de andar.

Vamos ver a flor de pedra,

encontrar a salamandra,

visitar Branca de Neve

na casa dos sete anões

e, dando outra meia-volta,

ver o menino amarelo

comendo pudim de arroz

na margem do rio azul.

Anda anda, menininha

que muito temos de andar.

Temos de passar na frente

do Pequeno Polegar.

Vamos conhecer a iara

vamos pegar o saci.

Vamos ver as quedas d'água

os moinhos e os teares

os pintos furando a casca

as cigarras a nascer

e trigo verde crescer

e virar farinha e pão.

Oh, alguém aqui passou

com uma vara de condão

a alva lã dos cordeirinhos

os bichos dos pés de amora

e os capulhos do algodão

vestiram todos os meninos!

Meninos da terra inteira

formando uma roda estão.

Estão formando uma roda

e nela vamos entrar.

Ó ciranda cirandinha

vamos todos cirandar.

Eis que o sono vem chegando

e agora temos de voltar.

Vou prender-te nos meus braços

inventar muitas cantigas

docemente te embalar.

 

Meus companheiros

Eis-me de novo professora

não em nenhum colégio padrão da capital

mas apenas professorinha

numa escola quase rural.

Os alunos são mil, humildes quase todos.

Tantos andam descalços

alguns desmaiam de fome

outros tiritam de frio.

(Lembrarei sempre Zilá em minha classe

e a seus irmãos.

Como é possível ter essa luminosa face,

parecer filha de rei

e não ter pão?)

Para chegar à minha escola

passo ponte, ruas, roças.

Por um quartel e uma escola

de marujos também passo.

A rota é longa

e meus companheiros quase sempre são

meninos, soldados, marinheiros.

A todos observo, a muitos amo.

Amo sobretudo a rapariguinha de tranças

parecida com a filha que sonhei.

Gosto quando vem sentar-se no meu banco

sorrindo para o meu amor — e o vento do mar

mexe nos seus cabelos enquanto

a ilusão da mãe estéril cresce.

Soldadinho enamorado olhando

o rosto quase triste

do retrato (e eu também).

Mas ontem quem ficou ao meu lado

foi uma mulher louca:

saia larga de cigana, figura iniludível de pária,

entrou no ônibus sacudida de risos

e pagou a passagem com a moeda única

que trouxera guardada na mão.

Ao ver meu rosto comovido

cuspiu para o lado

e jamais esquecerei sua careta de raiva,

e o olhar de nojo com que me olhou.

 

Rosa da feira

Moça desceu lá do morro

que a feira vai acabar.

Veio buscar o refugo?

Fruta estragada no chão

o pé de couve final

caixa vazia de figo

varredura de feijão?

Moça sorriu de contente

os olhos arregalou...

Se havia alfaces não viu

viu uma rosa tombada.

Moça levantou a flor

pegou a rosa pisada.

Madame lá da janela

abanou muito a cabeça

os olhos arregalou.

Diabo de negra é essa!

Vejam só o que ela achou.

Comida até que eu entendo

que ela procure no chão

pois a gente dessa raça

não quer mesmo nada não.

Mas gostar assim de rosa

fazer aqueles dengues todos

para uma flor murcha de feira...

isso onde é que já se viu?

Moça sorriu de contente:

flor é flor embora murcha

flor faz parte da beleza.

Adorou aquele achado

endireitou a coroa

cuidou bem do seu tesouro

a rosa ressuscitou.

Moça que mora no morro

que vai fazer dessa flor?

Vai botá-la no vestido

vai enfeitar os cabelos

para o namorado olhar?

Vai mergulhá-la na jarra

de lata do seu barraco?

— Vou jogar a minha rosa

nas espumas de Iemanjá.

 

Marujo em três tempos

Marujo ali está parado.

Tem um ar quase bravio.

Vejo-lhe o cenho fechado,

ombro largo, olhar sombrio,

e lembro (tão sem querer)

negra cena do passado

lida em Adolfo Caminha

e contendo a cerimônia

da chibata na marinha.

Fecho os olhos. Onde estamos?

Mil novecentos e dez.

Grão-marinheiro João Cândido

já tem mais um companheiro

para a revolta ajudar.

Arde em fúria o marinheiro:

aprisiona comandante

subjuga oficiais

fica senhor do convés

vibra toques de almirante

manda no "Minas Gerais"

volta os canhões para terra

torna-se o dono do mar.

Abro os olhos. Onde está

marujo forte parado?

Ei-lo que ali vai andando

e mais alguém ao seu lado

com frutas firmes no peito

com ancas rijas bailando.

Conserva o jeito sombrio,

vestígios do lutador?

Nada! De riso no lábio

marujo é homem dobrado

à bruta força do amor.

 

Canção

Quero ninar o meu menino

acender o meu fogão

esperar o meu amado

com o pão branco na mesa

e jasmins frescos na mão.

Agora olho lá fora.

Será que todos têm pão

e rubras maçãs no prato?

Quero que toda mulher

possa entoar minha canção.

Que haja paz em toda a terra.

Não somente em Rosamor

e irmão não mate o irmão.

Que haja paz em toda a terra

e enfeite cada rincão.

Quero toda igreja aberta

com seus pastores a pregar

com seus fiéis que vêm e vão.

Quero toda igreja aberta

e em nenhuma quero entrar.

Meu menino vai para a escola

os outros todos também vão.

Saber e amor para eles

e não se indague se vêm

de desposadas ou não.

Quero criar o meu menino

varrer cantando o meu chão

esperar o meu amado

com o pão branco na mesa

e jasmins frescos na mão.

 

Retrato de Anita

É filha de rei

esta que vamos celebrar?

Vestiu-se de ouro e prata

teve pérolas nos dedos

colar de água-marinha

axorcas e tiaras

teve manto de rainha?

Não é filha de rei

nem mulher de grão-senhor.

Não cintilou de pedrarias

e não nasceram em castelo

os frutos do seu amor.

É uma filha do povo

e mulher de espadachim.

Usou vestido singelo

e cinto de couro cru.

Escandalizou o seu burgo:

fugiu com um louro guerreiro

os pés morenos afoitos

no peito uma rosa brava.

Não teve filho em castelo

mas foi mãe de generais.

Não teve reis a seus pés

mas tem o culto dos povos.

É a Heroína de Dois Mundos

que vamos celebrar.

Lutou no convés dos navios

pela República Juliana.

Lutou de espada na mão

pela unidade italiana.

Passou fome passou frio

dormiu noites ao relento.

Na própria terra natal

caiu um dia prisioneira

e julgou morto seu amado.

Ah, figura de tragédia:

face bela transtornada

um archote na mão pálida

espiando rostos mortos.

Mas o amado não achou

esperança renasceu

toda épica fugiu

sobre o dorso de um cavalo

cabelos soltos ao vento.

Vinte léguas até Lages

a heroína percorreu.

(Ao vê-la surgir da noite

galopando em seu corcel

os guardas fogem de espanto:

Era centauro? aparição?)

O coração ardente batia

sob a lua fria da serra

e com o primeiro filho no ventre

moça guerreira corria

para seu amor encontrar.

É a Musa da Liberdade

que vamos celebrar.

Eis então que o seu rosto

não mais o vemos contido em nenhum quadro

e sim transfigurado, repartido pelo universo.

Os cabelos parecendo faíscas

presos ao solo europeu.

O queixo fincado na barra da Laguna.

Profundos olhos, rasgados mundos

brilhando como estrelas

pousados sobre os povos.

Oh, e os lábios se abrirem como outrora

para invectivar

aquele que oprime o seu semelhante

e aquele que se esconde na hora de lutar.

É Anita Garibaldi

que vamos celebrar.

(Declamado pela autora por ocasião da inauguração do monumento de Anita Garibaldi, na cidade de Laguna, a 20 de setembro de 1964).

 

Elegia para minha mãe

Comecei a ver com dor a beleza

quando, viva e a vida

amando, não mais pudeste ver.

Dor tão funda, tão diária, lembro-a

como ventura, ventura perdida,

desde que vi — ai de mim — a suma beleza:

e ter na heroína dormindo

as primeiras horas do nunca-mais

a mocidade voltando ao rosto

em estendidos lírios, o quase mistério

no sorriso doce, os pretos cílios como

se sonhassem, o fascínio, a paz.

 

País de Rosamor

 

Dia primeiro

No momento em que cheguei

era aurora em Rosamor.

Primeiro passo que dei:

ir ao rio me lavar

das nódoas vis das moedas.

Rio encarnado da aurora

logo tão negro ficou.

(Rio, carrega essas manchas

bem para o fundo ao mar.)

Depois de purificada

vieram todas as gentes

veio pastor veio rei

vieram mães e meninos

os mineiros os astrônomos

saudar a recém-chegada.

Em honra da nova irmã

beberam rubra groselha

e dançaram na manhã.

Deram-me casa com flores

trepadeiras de jasmim

vestidos claros de linho

leves túnicas de tule

alpercatas de cetim.

Também esmeralda e pérola

também pães ázimos e vinho

as frutas da primavera

e favos sabendo a rosas

e vozes sabendo a mel.

Mostraram os cem meninos

que amanhã vou ensinar.

Mostraram ruas e rosas

que só em sonhos eu vi.

E à noite vi a lua

— grande e perto como o mar.

 

Os meninos

Delícia de ver agora

meus meninos — quanta cor:

pretos brancos amarelos

cor de pitanga e de amora

cor de luar e trigueiros

uns com os olhos dourados

outros de verdes cabelos.

Delícia de ver agora

meus meninos — quanto amor:

diferentes mas tão belos

e sonhando tão unidos

tão alegres companheiros

como se fossem rebentos

da mesma planta saídos.

Delícia de ver agora

cem meninos e pensar

em ascender às estrelas

e no recreio — tão puros

diferentes mas tão belos —

vê-los todos cirandar

com os pombos e as serpentes.

 

A boda

Nos casamentos

a boda é simples:

em torno — rosas

em nós — amor.

 

As estações

Primavera tem cem anos

no País de Rosamor.

E só depois de — mui lautos —

verão e outono passarem

é que vem o lento inverno

marcar o fim docemente.

 

As comemorações

I

Eis que passam os nascidos entre cânticos

eles que jamais viram

nenhuma das faces do Dragão

eles que montam em leopardos

e têm um halo sobre a franja.

seu sono é como o dos pássaros

nos ares altos da montanha

despojado de qualquer sonho

que ponha sombras no dia branco.

Eis que passam os nascidos entre cânticos.

II

Roseiras todas, despetalemo-nos

para celebrar o evento.

Despetalemo-nos, despetalai

corolas de todas as cores

sobre o cortejo. Arcoirisai

o caminho dos nascidos

e quando passarem aos pares

epitalâmios de pétalas derramai

sobre seus nimbos. Seus nimbos.

E glorificai-os a todos com aromas

que ungidos são

eles que nasceram sob

o signo da Rosa, nossa mãe.

 

Passeio

Pelas aleias de jacintos

passearei

que a tarde começa

e o labor é findo.

Ou irei à encosta das grandes luzes

ouvir os sábios?

ou ao palácio dos poetas

buscar a última canção?

Pelas aleias de jacintos

Passearei.

Ou subirei à montanha

à hora de rosazul descer as pétalas

devagar?

ou irei ao portossol

ver a nave das estrelas

regressar?

Pelas aleias de jacintos

passearei.

Ou irei encher as mãos

Com os lilases líricos

Do crepúsculo

Que logo mais terei?

Pelas aleias de jacintos

passearei.

 

Canto da amante amada

Ainda trazendo sol e sal

além do ímpeto e da esperança

chegou o Amado.

É alvo o leito e o instante é alvo

porque desatado

de tudo o que antes

turvava o amor.

Nada conspurca

incompleta ou ensombra

meu festim de entrega

e o total carinho pela noite alta

me faz tão sagrada

que me julgo a terra.

Ah, eu sei que — um dia — estarei derramada

em cinzas pelas companheiras rosas

mas — antes — rosas brotarão de mim.

 

A festa

Vou botar flor no cabelo

para ver posse do rei.

Levo cinto de camélias?

Levo xale de papoulas?

Tragam flores tragam flores

para a festa de irmão rei

Reinar aqui é rodízio

e agora chegou a vez

daquele que traça e planta

os nossos jardins ovais.

Tragam flores tragam flores.

Nós e flores para a festa

no jardim das cariátides

e da fonte verdemar.

Veremos os autos novos

dos maduros dramaturgos

e sobre um tapete vivo

de violetas vermelhas

a salamandra dançar.

Chegarão depois em bando

as juvenis isadoras

com seus fluidos véus azuis

véus ou asas pelo ar

pés de pétala no chão.

Entre flores, sobre flores

— banquetes de rosamel.

Entre flores — cantos, rondas,

até uma ponta da lua

já descer sobre o jardim

e as garças brancas chegarem

para o sono sobre a fonte.

 

Grão-sacerdote

Grão-sacerdote, de barbas brancas,

trazia Bíblia preta na mão.

(Veio de longe por nossa fama:

termos forjado reino do amor.)

Em nossos braços o acolhemos.

Demos-lhe igreja pesada de anjos

─ anjos azuis, pretos e róseos,

brancos e roxos, cor de marfim ─

e altar para

a toda bela ─ mais do que Vênus ─

Nossa Senhora de Rosamor.

Também lhe demos tratos de terra

e com seus doze bispos amáveis

planta as espigas, uvas e rosas:

dá-nos o pão, o vinho e o mel.

Chega domingo: grão-sacerdote

fala do púlpito ao templo cheio.

Todos amamos esse homem santo

que — tantas vezes — com santa

ira nos apostrofa:

— Cristãos sem fé!

Penso que lembra naquele instante

horrores todos que viu outrora

e ao mesmo tempo nossas mãos dadas

e anelo nosso de cada dia:

paz sobre a Terra

que ela é Azul.

Pois olhos claros se umedecem

pousa no púlpito a Bíblia preta

as longas mãos se põem em prece

e num momento — tão nosso pai —

grão-sacerdote nos galardoa:

— Continuai! Continuai!

 

Bailenda

É certo, mineiros,

que mora uma fada

no fundo da mina?

E os mineiros riem

É certo que a fada

que mora na mina

— hetera encantada

de verdes cabelos —

vos leva, mineiros,

a magos castelos?

E os mineiros riem,

É certo que os beijos

nos magos castelos

vos põem a sonhar

e os filhos que tendes

— por isso, mineiros —

têm verdes cabelos?

E os mineiros riem.

A bela acordada

no fundo da mina

protege os tesouros

que temos na terra?

Mineiro, é certo?

E os mineiros riem.

De modo que um dia

se alguém atacar

— ou fica fraterno

(só lírios abertos

teremos na mão)

ou volta marcado

de flores e paz?

Mineiros, é certo?

E os mineiros riem.

 

Colheita

Fui ontem colher na lua

antúrios que lá plantei.

Tomei o meu barco alado

e logo à lua cheguei.

O canteiro preparado

por minhas mãos encontrei.

Mas nas hastes dos antúrios

somente estrelas achei.

Fui ontem colher na lua

antúrios que lá plantei.

Fui ontem colher antúrios

e com estrelas voltei.

 

Louvação de Jupira

Senhora, Nossa Senhora,

Senhora de Rosamor,

fui prostituta e mendiga:

sou agora tecelã.

Com meus filhos macilentos

a este país cheguei.

São hoje dois curumins

que têm faces de romã.

Já tive lençóis de trapo

em leito de duro chão.

Agora tenho-os de linho

tecido por minha mão.

Teço teço para as outras

teço para mim também.

Tenho roupas (e adereços)

com que não sonhou cunhã.

No meu, no nosso tear,

teço com as companheiras

o linho, brocado e lã

para todas as mulheres.

Venho, pois, à tua igreja

neobarroca, heptagonal,

com seus sinos de ouro e prata

e Rosamor no vitral

com seus anjos multicores

e toalha branca no altar

(mas eis — repleta — em cada mesa

branca toalha também).

Senhora, Nossa Senhora,

Senhora de Rosamor,

que assim seja todo dia

para todo o sempre. Amém.

 

Vozes no pomar

Por que vos planto

meus belos frutos

por que vos planto?

Para colheres

tantos e tantos

para colheres.

Para que tantos

meus belos frutos

para que tantos?

Para nos dares

a teu irmão

para nos dares.

Por que vos dar

meus belos frutos

por que vos dar?

Para nos teres

e ao pomar

para nos teres.

 

A nau

Selvagens filhos do mar

descem de uma nau preta.

São mercadores? corsários?

Trazem dádivas amigas

nas rudes mãos tatuadas?

Ai, trazem trinta moedas

para comprar esmeraldas.

Mas nosso rei jardineiro

assim lhes veio falar

"Guardai o vosso dinheiro

que não podemos tocar.

Esmeraldas são beleza

em nossa comunidade.

Brilham nos dedos, no colo,

nos cabelos das amadas.

Olhai as nossas varandas

abertas de par em par

já estão elas guardadas.

Temos ainda os sobejos

em volta desta roseira

— a das rosas irisadas.

Se para o bem — poderíeis

as que quisésseis levar.

Mas iriam gerar lutas

nossas pedras não ocupadas.

Por isso não tirareis

nem uma só do lugar".

Foi quando, de rosto mau,

desembainhando as adagas

cercaram a grã-roseira

para colher esmeraldas.

Colhê-las? Mesmo as menores

eram todas pedras magas

eram rochas eram bruxas

— intactas sob as adagas.

Então eles se renderam

E — após lavarem no rio

as suas mãos maculadas —

apertaram a mão do rei.

Nosso reino caminharam

até as grutas azuis.

Pavanarrosa dançamos

sal e vinho lhes servimos.

(Lua desmisteriosa

roçando mesa enfeitada

de narcisos e maçãs).

Selvagens filhos do mar

voltaram para a nau preta

vazia das esmeraldas

mas de sonhos carregada.

De tantos sonhos que um dia

vai chegar uma nau branca

trazendo gestos amigos

nas mesmas mãos tatuadas.

 

Os arcanjos

Com o leite das ovelhas

por leão apascentadas

doze filhos vou criar.

Não subirão às estrelas

não descerão às jazidas

que já lhes tenho missão.

Em doze corcéis alados

(para eles vão nascer

com rubros sóis sobre as asas

em doces pastos de flor)

nosso reino deixarão.

E com rosas simplesmente

— nem espadas nem punhais —

com doze rosas sagradas

farão por terra tombar

a cabeça do Dragão.

Amor então se erguerá

e rosas rebentarão

na terra no céu no mar.

Em doze corcéis alados

com rubros sóis sobre as asas

os doze cavalgarão.

(O lábaro com a Rosa

suspensa sobre o Dragão).

Em doze corcéis alados

nosso reino deixarão.

E só depois de plantarem

Rosamor em toda a terra

os doze regressarão.

 

Carta do poeta Francisco Carvalho sobre A Dríade e os dardos

Francisco Carvalho, da UFC, grande poeta do Ceará e do Brasil, autor de mais de uma dezena de livros consagrados, um dos quais, "Quadrante Solar", obteve o 1o. Premio da 1a. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 82, o que lhe deu justo e definitivo renome nacional, transmitiu à autora a sua valiosa opinião sobre A DRÍADE E OS DARDOS. Eis alguns tópicos da primorosa página:

Seu livro A DRÍADE E OS DARDOS veio confirmar a extraordinária força de sua poesia. Uma poesia como a sua nos reconcilia com as fontes mais puras da canção. Um sopro de juventude e de sensualidade primaveril permeia a maioria desses poemas. Respira-se neles o cheiro selvagem da terra fecundada. Cheiro de chuva bíblica ressoando na alma dos pântanos. Seus poemas estão profundamente impregnados da natureza e do perfume das coisas. "De cabelos desatados / canto: / eis que ancorei no homem". Qualquer das filhas de Sião celebrada pelo bardo dos bardos poderia subscrever esses versos. São versos fortes, palavras rituais, semelhantes àquelas que as mulheres da antiguidade remota dirigiam aos deuses da fecundação. Esse "Canto da Companheira" é uma das mais belas canções de amor que tenho conhecido: "Só voltarei pelo fim da tarde / com ligeiros passos / para pôr, antes da noite / flores vivas no grande jarro. / Cortarei rosas no jardim em tua honra. / Voltarei com ligeiros passos / e quando chegares trazendo o teu dia / áspero, os participante, igual ao meu / e cachos de begônias rubras para mim / já estarão soltos meus cabelos / e acesa a lâmpada". Não há mais o que dizer. Um poema assim pede silêncio. Recolhimento metafísico. Um poema assim já é o começo da liberdade, a fronteira de alegria para o mistério da música.

Sua poesia caminha em muitas direções. É uma poesia que seguramente contempla os valores universais. Uma poesia voltada para o amor e ao mesmo tempo comprometida com a dimensão social do homem. Uma poesia que não se enclausura em recintos de vidro. Uma poesia solidária, terna, compassiva, jubilosa, participante. Sua poesia não se compraz em cultivar o autismo estático dos elitistas da chamada "torre de marfim". "Os meninos estavam salvos. / E começou então / uma nova terra e um novo céu / com flores e frutos e trigais e risos / e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos". Em "Determinismo", estariam expressas as linhas mestras do seu comportamento filosófico diante da vida: "Eu tenho de ter um caminho. / Um caminho onde, talvez, encontre / pedras angulosas e curvas insolentes / e por onde tenha de levar, incompreendida e desamparada / um facho aceso entre os meus frágeis dedos apertados".

Quem ler os seus poemas com espírito atento e em completo estado de graça, certamente não deixará de reparar no seu indiscutível parentesco bíblico. A cada passo se encontram, na sua escritura poética, ressonâncias profundas e misteriosas dos grandes vates do Antigo Testamento e do Novo também. Basta ler versos como estes, para se verificar que não estou fazendo afirmação gratuita: "E fui apupada na tarde sombria / coberta de anátemas / pelos donos das vestes intactas" (p. 90). "Bendirei, então, meu pecado e minha pena / através de um canto novo / que abalará infernos / enraivecerá os demônios / e fará meus companheiros da cidade de Dite / estremecerem, deliciados, nos seus túmulos" (p. 86). Impossível ficar indiferente à força dramática de alguns de seus poemas. Em "Discurso do Demente", certas passagens evocam ressonâncias poéticas do Livro de Jó, um clássico só comparado às grandes tragédias da antiguidade grega: "Tive os olhos vazados / arrebentadas as virilhas / as costas cortadas / humilhadas : pelo látego" (p. 92).

Estou convencido de que as suas virtudes literárias vão muito além do completo domínio do instrumento verbal. Seus poemas se impõem pela beleza e pelo sereno equilíbrio da linguagem. Sua poesia é ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca. Sua arte poética tem uma dignidade impressionante. Essa dignidade nascida da convicção de que a palavra é o fundamento do Ser. Sua palavra poética nos comunica aquele sopro de vida e eternidade que está na origem de todos os mitos. Sua poesia é do presente e do futuro, mas é também de um passado remoto, embalado pelos sonhos e atavismos do homem primitivo. Sua é também a certeza de que a palavra continuará existindo pelos tempos afora, ("pura e sábia / âncora e roteiro / vertendo seiva como um talo novo / clareando caminhos como o velho sol" (p. 99).