Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cromos, de B. Lopes

Obra de referência:

Poesias completas de B. Lopes. Rio de Janeiro:

Livraria Editora Zélio Valverde, 1945.

À MEMÓRIA DE ALCÍDIA,

A MINHA DOCE E INFELIZ IRMÃ.

 

ÍNDICE

A minha musa, a minha pobre musa

O sol, príncipe aéreo

FIGURAS

DONGA

NINA

ANJINHA

COTINHA

XANDOCA

NENEZINHA

VOVÓ

CAROLA

VIOLETA

ANA

NHÃNHÃ

SINHÁ

MADAME

BABY

LULU

ZIZINHA

FACEIRA

NENÊ

DUDU

ANTONICA

MANA

FESTAS ÍNTIMAS

O CANÁRIO

 

A minha musa, a minha pobre musa,

De riso à boca e flores na cabeça,

Morena virgem, rústica e travessa,

Que um vestidinho dos mais simples usa.

A noiva alegre de um rapaz de blusa,

Que talvez muita gente não conheça,

De riso à boca e flores na cabeça

Vem visitar-vos, tímida e confusa.

Não lhe aumenteis o rúbido embaraço,

Levando-a ao vosso lado e pelo braço

Com requintes fidalgos de condessa;

Filha do campo, distinções recusa

A minha musa, a minha pobre musa

De riso à boca e flores na cabeça!

 

                 O sol, príncipe aéreo

De olhar de fogo, o ensanguentado mouro,

Descansa por detrás daqueles montes,

Que recortam violáceos horizontes,

E dorme entre o lençol de nuvens de ouro

                 No seu leito sidéreo:

                 São horas... descansemos.

Conhece-me, senhora? Conversemos

                 Neste quieto recinto,

Em que um perfume delicado sinto...

Eu sou o filho agreste das montanhas,

Pastor, talvez, de solidões estranhas!

O camponês que habita a serra oblonga,

                 Louçã e prazenteira,

Onde, pousada ao ramo da fruteira,

                 Em horas de verão,

Como ferro a bater grita a araponga,

Repercutindo os ecos no sertão,

                 E o buriti serrano

Aos ventos do deserto enlaça as franças

Quando, estrídulo, clama algum tucano

Em sanguíneas manhãs, frescas e puras

Como o riso argentino das crianças

                 Que brincam pela estrada...

                 Terra que, nas planuras,

— Quando não há notívago planeta,

Silente a aldeia, e longe, pelos campos,

                 Não passeia a toada

De uma amorosa e linda cançoneta —

                 Bruxuleia, às escuras,

A lamparina azul dos pirilampos.

                 Nos virentes cafés

De alguma encantadora e mansa plaga

— quando o coqueiro inclina o loiro cacho —

                 Nas águas do riacho

Que marulha na grota e o campo alaga,

Banho-me todo da cabeça aos pés.

E como o marinheiro, o bom grumete,

                 Saudoso ou descuidado,

Encordoa a guitarra e canta à lua

                 Os olhos da menina,

Ao deslizar sereno da falua,

                 Eu, ao pino, deitado

                 Sobre o fofo tapete

Da emurchecida relva da campina,

Sob a copa amarela dos ipês

Faço chorar as cordas do machete!

Sento-me, às vezes, no alcantil quebrado

                 À margem de algum rio,

Fugindo à calma, à sombra pitoresca

                 De um festão debruçado

Que entre flores se deita em desvario

No leito mole da corrente fresca!

Aí me assento triste e solitário

                 Ouvindo o murmúrio

Da corrente que desce em curso vário:

                 Aqui, as claras águas

        Estendem-se dormentes

Como o sonho gentil dos inocentes!

Mais abaixo, despenham-se nas fráguas

                 Em grandes borbotões;

Furtam-se mais além... e ronca, e ronca

Quando esbate, o cachão, na pedra bronca,

                 Quebrando as solidões...

                 E deixa após a espuma,

Que mais parece cerração de bruma!

                 Senhora, em forte estio

Amo, enlevado, o marulhar do rio.

                 Dias de primavera

Eu deixo-me ficar no campo, à espera

                 Que o astro-rei se esconda

Entre as cortinas rubras do poente,

A confundir um raio moribundo

                 No suspiro profundo

Que solta o mar; nas súplicas da onda

                 Que se estorce na praia,

Qual em mole coxim de alva cambraia

                 A odalisca gemente

Saudosa do Sultão, que foge ao mundo!

                 Espero o sabiá

Que venha despedir-se em voz saudosa

                 Dessa tarde formosa,

No verde ramo da cheirosa ingá.

Todo o meu ser nesta hora se extasia

Mergulhado, tristonho, em cisma funda!

                 E, cheio de ternura,

Vejo a obra de Deus que me circunda.

Contemplo o encanto da ridente Flora

Neste céu de suavíssima poesia,

Onde passa de rosa a nuvem pura.

                 Minha alma se enamora

Até da flor singela das campinas

                 Que o encanto seu resume

                 No célico perfume

Derramado nas auras vespertinas.

E mais ao longe a juriti suspira...

                 Bem vejo: um flébil rogo

De viúva na dor, que o companheiro

Carpe, e o filhinho que se foi primeiro

Na solitária e triste sucupira.

                 Lavrada pelo fogo.

                 E cá, se a noite é bela,

                 Eu ponho-me a cismar

Debruço ao peitoril de uma janela

De guarida qualquer amiga e franca...

Que eu nada tenho: minha casa branca,

Onde vivem meus pais, eu deixei-a,

Dentro de um bosque, na pequena aldeia!

                 É bem pobre o meu lar:

O chão — socalco, e telha vã — o teto;

Roseiras nos moirões, flóreos matizes

Alastrando o cercado, um campo lindo,

Onde, a rir, meus irmãos brincam felizes;

Ao fundo — um laranjal em flor se abrindo!...

                 Eis o quadro completo.

... Envolve-me o luar na frouxidão

                 De sua luz bacenta,

E a minha fronte um raio acaricia,

                 Talvez que de poesia,

Que a comoção minha alma experimenta.

Então, senhora, eu sinto que é preciso

                 Ao menos um sorriso

De mulher, que dê vida à inspiração

Do cantor infeliz, que mal suporta

A dor de ver, tão cedo, a noiva morta!

              

                          I

Sou rapariga da aldeia;

Cercam-me os moços da moda,

— Zangões que giram à roda

De impenetrável colmeia.

Sou loira, simplória e — creia!

Luva ou chapéu me incomoda:

Corro nos campo, a toda,

De chinelinhos sem meia.

Ando de flor ao cabelo,

Cruz e verônica ao seio,

E de vestido singelo;

Sou namorada de um moço,

Que anda na rua — ele é feio!

De cache-nez ao pescoço.

              

                          II

Caíra o sol no horizonte!

A rapariga travessa,

Vai, de cântaro à cabeça,

Pelo caminho da fonte.

Fumega o rancho. Defronte

Azula-se a mata espessa...

Antes, pois, que a noite desça,

Voam as aves ao monte.

Aponta Vésper, brilhante;

E o largo silêncio corta

Uma toada distante...

Irado, enxotando o galo,

Está um homem na porta

Dando ração ao cavalo.

              

                          III

Ontem, à porta sombria

De uma casinha fechada,

Bateu ligeira pancada

Mão que tremer parecia...

Ouvi... Dentro alguém gemia:

Era mulher desgraçada,

Uma visão desbotada

Quem no tugúrio vivia.

Transpus a porta, assustado...

Virgem Maria! De um lado

Onde essa mãe tresloucava,

Plácida, magra, amarela

Pelo reflexo da vela,

Uma criança expirava.

                          IV

Põe-se a merenda na mesa:

Um tosco móvel de pinho

Quer esconder a pobreza

Num guardanapo de linho.

Pouco pão, muita limpeza,

Um só talher; não há vinho!

Há de achar, porém, franqueza

Quem tiver fome em caminho.

“Sem cerimônia, patrício;

“Não repare na choupana,

Disse-me o tio Simplício;

E a boa dona da casa

Trouxe-me um gole de cana

Em canequinha sem asa!

                          V

Entra o luar na varanda,

Iluminando lá dentro

Um grupo, que tem no centro

Uma anciã veneranda;

Três rapazitos, em torno,

Vestidos de camisolo,

Loira menina no colo

Fazem do catre um adorno.

E, para entreter os netos,

Conta a avozinha uma história,

Que ouvem atentos e quietos;

Perto, a filha — o olhar caído,

Numa atitude simplória

Dá cafunés no marido.

                          VI

Foi à hora solene da alvorada

Quando o pálido amante, sonolento,

Resistindo às cadeias de um lamento,

Deixou a alcova da mulher amada.

Insinua-se, vago, pela estrada,

Pensativo, calado e a passo lento...

Leva etérea visão no pensamento,

Nem ele sente o frio da orvalhada!

E cantam, cantam lindos passarinhos

À débil sombra, em selva buliçosa,

Sobre a beirada rústica dos ninhos!

Ergue-se tudo... E a dama voluptuosa

Estende-se outra vez nos alvos linhos,

E dorme, dorme, dorme, a preguiçosa!

VII

Quando o pai transpõe a entrada,

De guarda-sol e de embrulho,

Vem recebê-lo a criançada

Com grande festa e barulho.

E nas bocas impolutas

Daqueles sonhos corpóreos

O malandrim dos cartórios

Coloca beijos e frutas.

E à mesa, em nuvens de fumo,

Enquanto faz-se o resumo

Das novidades, assombros!

Aquelas boas crianças,

— Bando gazil de aves mansas —

Trepam-lhe em cima dos ombros!

VIII

São três gárrulas meninas,

Aves do ninho saltando

Para soltarem num bando

Doces canções peregrinas...

Alam-se às plantas divinas

Risadas, de quando em quando,

Daquelas bocas, lembrando

Três breves, rubras boninas.

Eu, que, matando esperanças,

Da mocidade nos trilhos

Perdi os risos joviais,

Sigo invejoso as crianças!

Que as alegrias dos filhos

São o tesouro dos pais!

IX

Amanhecera. O tropeiro

Passa, cantando, na estrada;

No seu casebre o roceiro

Prepara as foices e a enxada.

Ao rumor a luz casada

Enche de vida o terreiro

Parecem bruma cerrada

As flores, lá! do espinheiro...

Aspira-se o olor suave

Do bom café... Alto e grave

Bate o pilão nas cozinhas.

Há junto à horta uns barrancos,

Onde a mulher, de tamancos,

Distribui milho às galinhas.

X

Conversam ambos na sala

Juntos, sentados, em paz;

A moça, a rir quando fala

Diz querer bem ao rapaz.

Replica o noivo, a mira-la:

Dê-me um beijo, se é capaz...

Grave, de luto e sem gala

Olha-os a mãe por detrás.

E treme a luz, que não presta!

A sala, pobre e modesta,

Quase que lôbrega está...

Boca aberta, mão no queixo,

Em caprichoso desleixo

Dorme Nhonhô no sofá.

XI

O sol raios de oiro espalha

Como um fidalgo vadio!

Perto do rancho de palha

Fechado, há pouco; e vazio

Uma mulher com a toalha

De linho branco, alvadio,

Sobre a cabeça grisalha,

Lava na beira do rio.

Fareja o cão; e ali perto,

Livre do sol, nos verdores,

Por umas frondes coberto,

Gordo, risonho e despido,

Com borboletas e flores

Anda o filhinho entretido!

XII

No rancho a lenha se inflama;

Ao lado — posta uma esteira,

Onde crianças sem cama

Atiçam fogo à chaleira.

A rubra luz se derrama

Como um fuzil, de maneira

A deixar ver desse drama

A cena íntima inteira!

Chega-se a mãe aos pequenos

Com certo dó:

"... quando menos

Temos a graça de Deus..."

Ia o fogo amortecendo...

Deu-lhes a bênção, dizendo:

— Vamos dormir, filhos meus!

XIII

Na estaca de uma parede

Dá pouca luz a candeia;

Um homem, depois da ceia,

Fuma, deitado na rede.

Do camponês rude, vede!

O pensamento vagueia...

Chora num berço de aldeia

O pequerrucho, com sede.

"Maria! chama o pai, alto.

(Ergue-se a filha, de um salto)

"Anda ninar teu irmão...

E enquanto a moçoila canta,

A mãe, trigueira, de manta,

Debulha guandos, no chão.

XIV

Eis o casebre antigo dos dois velhos,

Esposos camponeses, onde a filha

De noite sobre a mesa abre a cartilha,

Ouvindo ao ancião veros conselhos.

Lança os olhos à mãe — castos espelhos,

Morno raio do amor que em sua alma brilha;

Envolvendo-lhe o busto na mantilha,

Adormecia a moça em seus joelhos.

Que de vezes, oh! filha destes lares!

Eu consolei-te os frívolos pesares,

Nessa ternura múltipla de irmão!...

Eras cercada, enfim, de um zelo terno,

Quando estávamos todos, pelo inverno,

Ao brasido cordial do teu fogão!

XV

Caiu a noite, erma e fria.

E aquela saleta, agora,

Caiada por dentro e fora,

A vela acesa alumia:

No antigo móvel de braços

Acha-se o pai recostado,

Para o filhinho pasmado

Lendo da Bíblia os pedaços;

Na mesa, logo à direita,

Onde uma rosa desfeita

Perde o vigor na caneca,

De joelhos na cadeira,

Loira, branca, feiticeira

Brinca Nenê com a boneca.

XVI

A filha, pálida e loura,

Faz seu serão de costura:

Às vezes pensa... ou procura

Dentro do cesto a tesoura.

Vive numa dobadoura

A singular criatura!

Ralha-lhe o pai com doçura,

Ao regressar da lavoura.

Dá na varanda oito e meia...

Levanta-se logo a moça,

Pondo os morins no baú;

Traz os preparos da ceia;

E, nas tigelas de louça,

Tomam café com beiju.

XVII

A criação satisfeita

Vai-se chegando ao poleiro;

Volta, suado e trigueiro,

O lavrador da colheita.

De cesto e trajo roceiro,

Aquela mulher mal feita

Que o xale aos ombros ajeita,

Junta o café no terreiro;

E uma menina rosada

Recolhe a roupa lavada

De beira d’água... Entra o sol!

Pelo rafeiro seguido,

O campônio aborrecido

Desce ao riacho, de anzol.

XVIII

Naquela casa do morro

Mora a viúva com as filhas,

Três singelas maravilhas,

Pupilas de um preto forro.

Quando eu passo, ele, de gorro,

Colhendo à horta as ervilhas

Trepadas pelas forquilhas,

Faz sossegar o cachorro...

Elas vendo da ladeira

Com quem o Patusco ladra,

Vão me esperar na tronqueira;

E após um colóquio extenso,

Pedem-me versos em quadra

Para marcarem-me um lenço.

XIX

A casinha — o sol dobrando,

Projeta sombra na frente,

Onde o casal inocente

Está sorrindo e brincando.

Vai a menina cantando,

Medita o irmão... de repente

Safa-se aos pulos, contente

Como graúna de um bando.

Chega ao portal pequenino

A mãe, que a olhar, quase cai,

Soltando, pálida, um grito...

É que o travesso menino

Com as chilenas do pai

Tenta montar no cabrito.

XX

As alegrias, desertas

Daquele lar, desde quando!

Hoje voltaram, entrando

Pelas janelas abertas.

E, como pombas em bando,

Rasteiras, brancas, espertas

As raparigas vão certas

Àquele sítio chegando.

Palmas lá dentro! E faz frio!

Tiranas e desafio...

Cá fora a lua descamba.

Aos rasgados da viola

Quebra-se o corpo pachola

Nos bamboleios do samba.

XXI

Homens e moças, crianças,

Todos vêm fora, ao terreiro.

Um deles, chamando às danças,

Põe-se a rufar no pandeiro...

Principia a cantarola...

Um camponês de unha adunca

Ponteia alegre a viola.

Faz um luar como nunca!

Salta um rapaz no fadinho;

Uma mulher, de corpinho,

Vem requebrando de lá;

E a meninada bizarra

Faz uma grande algazarra

Brincando o tempo-será.

XXII

Surge sereno e prazenteiro o dia,

Vai-se diluindo a transparência parda;

Entre os morros a luz, brincando, espia

Do camponês a rústica mansarda.

Freme o vergel, que plácido dormia,

E os jubilosos músicos aguarda...

Sacode a palma a trança úmida e fria

Dos suores da noite, e o sol não tarda!

Olhai para a cabana: uma donzela

Que as madeixas lustrais trança, de pé,

Do pequenino quarto abre a janela...

Nos braços leva a mãe o seu bebé

Ao jasmineiro em flor e, junto dela,

Uma menina ao velho traz café.

XXIII

Crepita a vela no quarto

Sobre uma cômoda antiga;

No leito — uma rapariga

Geme com as dores do parto.

Aos pés inclina-se o espelho,

Pende do teto uma rede,

E, no frontal da parede,

Há um crucifixo velho.

Assiste-lhe outra pessoa,

A avó de cabelos brancos,

Que a infeliz neta perdoa.

Mãe de Deus! E um maltrapilho

(Cedia a porta aos arrancos)

Toma nos braços o filho!

XXIV

A casa daquela gente

É branca como um jasmim!

Tem nas vidraças da frente

Forros azuis de metim.

Quando o sol tinge o poente,

Vai de bengala ao jardim

Um velhote impertinente,

De roupa clara, de brim.

Enxota os pintos e clama

Contra quem pisa na grama;

Xinga as crianças, cruel!

Por encontrá-las adiante

Pondo no lago ondulante

Embarcações de papel.

XXV

Na alcova sombria e quente,

Pobre de mais, se não erro,

Repousa um moço doente

Sobre uma cama de ferro.

Pede-lhe baixo, inclinada,

Sua mulher — que adormeça,

Em cuja perna curvada

Ele reclina a cabeça.

Vem uma loira figura

Com a colher da tintura,

Que ele recusa, num ai!

Mas o solícito anjinho

Diz-lhe com riso e carinho:

— Bebe que é doce, papai!

XXVI

O lampião sobre a mesa

Jorra o clarão na varanda;

Fora, o luar; meu pai anda

A apreciar-lhe a beleza...

Vede que é nua: a pobreza

Fez até lá propaganda;

É minha mãe veneranda

Quem se deitou na marquesa.

Dormem-lhe aos pés três crianças,

Meus irmãos, três esperanças;

Chilram os grilos por cima...

Riem-se os dois namorados!

Eu, atento para os lados,

Beijo uma flor, minha prima.

XXVII

Fria, a sala. A noite, fora,

Traja o cendal de viúva;

E o vento que à porta chora

Borrifa os vidros de chuva.

Estão no sofá sentadas

Três senhoras; mais adiante

Duas moças enlaçadas

Correm os livros da estante.

Espraia-se a luz, em onda,

De um castiçal dos antigos

Sobre uma mesa redonda,

Onde, de gorro e cachimbo,

Um velho com três amigos

Joga, em palestra, o marimbo.

XXVIII

Cheguei ao rancho, era tarde!

Disse ao dono, incontinente:

Careço que do sol quente

O vosso teto me guarde...

— Tire o selim do cavalo,

Que há de estar muito cansado...

Depois de tudo arrumado

Pus-me a fumar; que regalo!

Deram-me leite e farinha;

Mas ao guasca, antes do almoço,

Faz a mulata um cochicho...

Chegando-me a garrafinha,

Diz-me ela assim: antes, moço,

De petiscar, mate o bicho!

XXIX

Depois do jantar, pequena

Volve a família ao terraço;

Brinca um pimpolho no braço

De uma criada morena.

Ali, de verdura amena

Descortina-se um pedaço;

Sente-se o débil mormaço

Da tarde clara e serena.

Lê um rapaz, distraído;

Sentam-se esposa e marido

Saboreando o café...

A moça, a andar sem destino,

Faz para o irmão pequenino

Um babador de crochet.

XXX

Passeávamos cedo — eu, minha irmã

E a sua amiga, uma infeliz criança

Neta de um velho, ali, na vizinhança,

Órfã, talvez; chamavam-na Nhãnhã.

Quem mais sublime: a rosa da manhã

A se esfolhar no colo da bonança,

Ou ela, um silfo! a sua fronte mansa

Num lírio azul, a túnica de lã?

Foi numa dessas ocasiões que a ela

Eu me animei dizer — amo-te, és bela...

E minha irmã me interrompeu: Nhonhô,

Tu bem sabes que a órfã bem querida

Vive dos pais saudosa, e, agradecida,

Enxuga ainda as lágrimas do avô.

XXXI

Hera, musgo e parasita,

Desde o muro ao patamar,

Essa trindade esquisita

Faz o encanto do teu lar.

Das janelas vê-se o mar

Beijando a praia infinita...

De tua casa bonita

Veem-se — flores no pomar,

Caramanchões pitorescos

E os pombos nos arabescos

Da frente de teu chalet;

Uma ave mansa e travessa

Quase pousa-te à cabeça

Quando passeias a pé!

XXXII

Loiro galã — pelo lar

Entra o sol, sem dizer nada,

Alegre como a toada

De uma canção popular.

À janela brinca um par

Sob o dossel da latada;

Preso, de um prego na entrada,

Põe-se o coleiro a cantar...

Pombos, pombas batem asa

Sobre o telhado da casa;

Chamam de dentro — Iaiá...

Puxando-a pelas mãozinhas,

Diz-lhe o moço: Mariquinhas,

Vem temperar-nos o chá...

XXXIII

Já vem surgindo a manhã,

Tão bela manhã de agosto,

Pois que a alegria do rosto

É à dos ares irmã.

Na pradaria louçã

Cantam as aves por gosto;

Nenhum sinal de desgosto

Tem o lundu da aldeã!

Sobre a casinha de palha,

Que honrada gente agasalha,

Manda-me o sol um "bom dia”.

Abre a janela do quarto,

Que eu já de saudades farto

Trouxe-te um beijo, Maria!

XXXIV

Chega Lulu do colégio

Rubro do sol, como um cardo:

Calça e boné de brim pardo,

Blusa do mesmo protege-o.

Entra, e nuns braços se some,

Deixando os livros na mesa.

Voltara em fraldas, surpresa!

Senta-se e diz: ai que fome!

E janta. O velho rafeiro

Vem festejá-lo, com o cheiro;

Lambe-o na face o gatinho.

A mãe, que os pratos ajunta,

Aberto o livro, pergunta:

— Que lição trazes, filhinho?

XXXV

Eu vejo de passagem,

Daquela estrada à beira,

Debaixo da figueira

Vergando-se à ramagem,

A mãe, rústica imagem,

Sentada numa esteira.

Ao longo da soleira

De seu casai selvagem.

Ali — nada é desmancho:

Passai, gentes, e vede

Aquele pobre rancho:

Ao lado da parede

Um galho verde e um gancho

Sustêm do filho a rede.

XXXVI

Domingo. A casa de palha

Abre as janelas ao sol;

Na horta o dono trabalha

Desde que veio o arrebol;

E a companheira, de grampo

No cabelo em caracol,

Na erva enxuta do campo

Estende um claro lençol...

No ribeiro cristalino

Bebem as aves; o sino

Chama os cristãos à matriz;

Entra a mulher... mas da porta

Fala, meiga, para a horta:

— Vamos à missa, Luiz?

XXXVII

Ave Maria!... Alma, escuta

Os ecos dos campanários

Como gênios solitários

Alevantados da gruta.

Da laranjeira impoluta

Nos florescentes cenários,

O dueto dos canários

As horas tardas enluta;

Horas de paz e fragrância,

Em que releio a cartilha

Dos hinos sacros da infância!

Diz minha mãe, que a partilha

De bênçãos faz, a distância:

— Deus te abençoe, minha filha!

XXXVIII

O casebre esburacado

É pobre como senzala;

Tem mesmo o fogo na sala

E a picumã no telhado.

Habita-o o casal de pretos...

Vê-se no canto metido

Um oratório encardido

E atrás da porta uns gravetos.

Reina o silêncio. Anoitece.

Reza a mulher, de mãos postas

O dia a um santo oferece...

Entre as ingás bem dispostas

O proletário aparece

Com a ferramenta nas costas.

XXXIX

Levanta-se ela do leito

Logo ao romper da manhã,

Chegando aos ombros e ao peito

O chalezinho de lã...

Mas só a cama abandona

Depois do sinal da cruz,

Erguendo para a Madona

Os grandes olhos azuis!

Enfia o pé na chinela

E vai abrir a janela;

Solta os cabelos e sai...

Faz aos irmãos muita festa;

E por um beijo na testa

Recebe a bênção do pai.

XL

Há umas noites violentas,

De muita agrura e sem brilho,

Que passam, como tormentas,

Pela alma de um pobre filho.

Não sei que nuvens são essas...

Aves sinistras! no entanto

Há um milhão de promessas

Na primavera que eu canto.

Quero esta luz de setembro!

Mas eu, sombrio, me lembro...

Sombras de luto, passai!

Trazei-me, brisas de rosa,

A cantilena saudosa

Do belga exul de meu pai!

XLI

Nas noites de frio

Os astros chorando

E as folhas boiando

Nas águas do rio;

Da tépida aragem

O crebro farfalho

E o choro de orvalho

Que cai da ramagem;

A ave em conchego

Na riba que escora

Tão lânguida flor;

Do rancho o sossego

E as trovas lá fora

Me falam de amor!...

XLII

Ergue-se a lua do nevoeiro escuro

Como noiva infeliz — úmida rosa!

E a flor da noite se entreabriu cheirosa

Sobre as ameias pálidas do muro.

Vai doce ofego pelo campo fora,

Palor na praia, esmaios na lagoa;

Vago murmúrio perfumado voa...

Ou são queixumes e ais de alguém que chora.

É que o verso pueril de umas cantigas

Sai da boca de ternas raparigas,

Todas sentadas ao redor da choça;

Vai sentar-se um rapaz no tamborete

A temperar o trêmulo machete,

Em lindas noites de luar, na roça!

XLIII

É uma branca saleta

De tinhorões nas janelas;

Com o luar entram por elas

Auras de sonho e violeta;

Alta e pequena; repleta

De riso e sol, bagatelas!

Uma porção de aquarelas

Esse Eldorado completa.

Em meio da cantarola

Dos canários na gaiola,

Poeta sem saber como,

Metido em chambre de chita

Um moço à mesa da escrita

Rabisca, a lápis, um cromo.

XLIV

Vermelha, a alcova em que eu entro,

Com cortinados de cassa,

Cheia de prismas por dentro

Quando o sol bate à vidraça.

Tem murcho o bouquet num vaso

Do par que adorna o toilette;

E o espelho, neste caso,

Cena mais linda reflete:

Dorme na cama francesa

Com natural singeleza

Loira mulher da Suíça;

Abre um rapaz estouvado

As franjas do cortinado...

Ela, a acordar, se espreguiça

XLV

Entra do sol uma aresta

Pela janela fronteira,

Tendo a cortina modesta

De festões de trepadeira.

Sobre o banco de madeira

O camponês dorme a sesta;

De lenço branco na testa,

Cose a mulher numa esteira.

Um beija-flor esvoaça...

Sai do fogão moribundo

Uma espiral de fumaça...

De vestido ao tornozelo,

A moça que vem do fundo

Traz uma flor no cabelo!

XLVI

Naquele quarto forrado

Há duas redes e um leito,

Onde um moço está deitado

— Livro aberto sobre o peito —

Pobremente amortalhado

O estudante de direito

Num camisolo encarnado,

De ramos brancos e estreito

Apesar da vela acesa,

Uma sombria tristeza

Paira ali dentro... Qualquer

Sente, ao primeiro momento,

Naquele frio aposento

A falta de uma mulher.

XLVII

Desfruta por bom costume

Um rapaz, naquela casa,

A vida de uma ave implume

Sob o carinho de uma asa.

Panela a tempo no lume

Que de tão farta transvasa;

Envolve tudo o perfume

De umas resinas em brasa.

E que adorável pobreza!

Na tábua limpa da mesa

A louça enxuta e o talher...

Um quê de alegre e tranquilo;

Percebe-se em tudo aquilo

O dedo de uma mulher,

XLVIII

Quando vai sair da sala,

Para negócios, à rua,

Vê-se tonto o avo e sua...

Rancho de netos lhe fala.

E, ao pegar-lhe na bengala

Uma pequena alva e nua,

Promete (e nisto recua)

Trazer-lhe biscoito e bala.

Para safar-se com astúcia

Do meio daquela súcia

Ruidosa e loira, vê pancas!

Mas não vê, que cego é ele!

Os dedos sujos daquele

Mancharem-lhe as calças brancas!

XLIX

A sua casa de pinho

É clara, pequena e limpa;

Anda um tiê a fazer ninho

De um angelim pela grimpa.

Ela, gorducha e rosada,

Senta-se cedo ao trabalho,

Com a merenda temperada

Sobre o calor do borralho.

Somente o dedal faz bulha...

É um gosto, nesse instante,

Vê-la a puxar pela agulha.

Eu entro... ela ri-se e cora.

É que apanhei-a em flagrante

Com os tornozelos de fora.

L

Fui ao quarto: intermitente

Projetava a lamparina

Uma luz verde, mofina.

Sobre as feições do doente.

Como cintila divina.

O seu olhar de demente

Ia pousar frouxamente

Numa chorosa menina.

Depois, à imagem de Cristo

Volve a cabeça e diz isto

Com lentidão: "mundo, mundo...”

E o Cristo, nu, lacrimoso

Descia o olhar piedoso

Àquele pai moribundo.

LI

Abre-se ao romper do dia

A porta do novo templo,

E, num belíssimo exemplo,

A trabalhar principia

A classe bendita e honesta

Dos queimados proletários;

Às vezes, dos operários

Corre o suor pela testa...

Há pela fábrica o ar morno,

O tom violento, amarelo,

Da incandescência do forno...

Quem quiser entre e perlustre-a:

Parece a voz do martelo

Elevar hinos a Indústria.

LII

Curiosa, toda gente

Mira um par nestas alturas.

Que fazem pelo sol quente

Tão fidalgas criaturas?

Esbeltos, pela cintura

Enlaçados docemente,

Vão eles, de galgo à frente,

Entre o verdor das culturas;

O senhor, de trajo leve,

E a dona, toda de neve,

Incertos ante o riacho...

Viver assim como é belo!

Cabeças juntas, debaixo

De um para-sol amarelo!

LIII

"Dorme, dorme, meu filhinho,

"Não chores, oh! meu amor...

Macios como um arminho,

Fragrantes qual uma flor,

Eram os versos sem cor,

Cheios de mágoa e carinho,

Como o arrulho carpidor

Da pomba-rola sem ninho.

Ia-os a mãe entoando

Alta noite, acalentando

Seu alvo e loiro penhor...

E acabava semimorta:

"A faca que muito corta

"Dá fundo golpe sem dor!

LIV

Quando amanhece, a mucama

Traz-lhe o café na bandeja;

Ela inda rola e boceja

Sobre as alvuras da cama.

A lamparina derrama

Lácteo clarão, que branqueja

(Seja indiscreta ou não seja)

As formas nuas da dama.

O cachorrinho felpudo

Dorme-lhe aos pés, encolhido

Sobre um basquim de veludo;

Senta-se a loira Frineia...

E arqueia o dorso despido,

Pedindo um beijo à Teteia.

LV

O mesmo teto os abriga,

Casal de primos. O moço,

À mesa, depois do almoço,

Vê coser a rapariga.

E dá-se o mesmo alvoroço

Do sangue, na cena, antiga:

Um beijo na fronte amiga

E os braços sobre o pescoço,

Quando entra alguém na varanda!

Ele volta-se de banda,

Ela, corada, disfarça

E põe-se, com faceirice,

A bordar uma tolice

No pano de talagarça.

LVI

Neste chalé principesco

Velado de persianas,

Moram, há duas semanas,

Dois casadinhos de fresco.

Pelas ruas suburbanas,

Sozinho, madrigalesco,

Anda o casal romanesco

Como senhor de cabanas.

Encontro-o pelos caminhos

Tirando flores e ninhos,

A pé vagaroso e bambo...

E vão os dois não sei onde!

O moço parece um conde,

A moça parece um jambo!

                          LVII

Entremos nas oficinas,

O alegre lar do trabalho,

Onde até frágeis meninas

Encontram doce agasalho.

Esta, de um simples retalho,

Faz coisas linda e finas;

Outra ao papel, talho a talho,

Tira um pendão de boninas.

À mesa trabalham umas

Em palha, cabelo e plumas,

Com invejável afã;

Invade todo o recinto,

Que a largos traços eu pinto,

A grande luz da manhã!

LVIII

Cheguei ao lar, que alegria!

Que doudejante esperança!

Cá fora — a mesma bonança,

O mesmo sol de outro dia.

Mas quando entrei... que mudança!

Três anos... Quem tal diria?

Quase ninguém conhecia

A peregrina criança.

— Como estou velho! Estou morto!

Disse-me alguém, repetindo:

— Podia eu ser seu avô...

Ora vejam! Torna absorto.

Concluíam todos, rindo:

Como está grande o Nhonhô!

LIX

Lembro-me bem: certo dia

Fui por alguém convidado

Para um jantar de noivado

Em casa de minha tia.

Aceitei. Na mesa havia

Muitos convivas; ao lado

Da noiva, o noivo sentado

Todo feliz; eu dizia,

Erguendo o copo: "Senhores,

Sobre a noiva a Divindade

Derrame graças e flores...”

Mas eu te confesso, prima,

Que era só minha vontade

Deitar-te vinho por cima!

LX

Quando vou àquela casa

Fazem-me entrar na varanda;

A filha, a quem arrasto a asa,

O lampião trazer manda.

A mãe, mulher veneranda,

Para uma bisca me empraza,

E em gargalhadas desanda

Quando me corta uma vasa.

O pai, um calvo jarreta,

De suspensório e jaqueta,

Ri-se também da proeza...

De disfarçada maneira,

Vão meus pés e os da parceira

Falando em baixo da mesa...

LXI

Em torno à mesa: eu, a viúva

E as duas filhas de luto.

São nove da noite; a chuva

Rufar nos vidros escuto.

Elas puxando da agulha,

Pelo temor de um sequestro;

Eu, fazendo muita bulha,

Corro os jornais e palestro.

A escandalosa notícia

De dois noivos na polícia

Encontro e leio-a, solene...

Olha-me a viúva, de esguelha...

E aumenta a flama vermelha

No globo de querosene.

LXII

Retirada, esconsa e morta

A casa de minha prima;

Floresce de baixo a cima

O jasmineiro da porta.

Mas os canários exorta

O viço de um pé de lima,

Que, de pesado, se arrima

Aos moirões secos da horta.

De tarde cose à janela

Para, às horas do costume,

Ver-me apontar na cancela...

Guarda-me figos, ameixas;

E, trescalando a perfume,

O bogari das madeixas.

LXIII

Arde na frente da casa

Uma animada fogueira;

Levanta-se ígnea poeira

Dos grossos toros em brasa.

É noite de Santo Antônio

Naquele lar festejado;

As raparigas no fado

São tentações do demônio!

Palmas, vivas e foguetes.

De madrugada a folia

Põe-se, ruidosa, a cavalo...

Pelo caminho os machetes

Largam saudosa harmonia...

Além, além, canta o galo!

LXIV

Na cadeira de balanço

Da sala morna e sombria,

Em posição de descanso

Senhora a ler passa o dia.

Tudo ali dentro é tão manso,

Tão tranquilo! que dir-se-ia

Pairar em torno o remanso

De uma choupana vazia...

Frisam-lhe a paz preguiçosa

Um tênue rumor infindo,

Como o de asas de um besouro,

E essa figura arminosa

Do angorá branco, dormindo

Sobre a poltrona de couro...

LXV

— Pois é aqui nosso rancho,

Disse, mandando sentar-me;

E depois, com grande alarme,

Botando a rede no gancho,

Gritou, lá para a cozinha,

Que o café do meio-dia

A sua boa Maria

Mandado à sala não tinha...

E o trouxe em duas tigelas,

Das três filhas uma delas,

De ar faceiroso e pretenso...

"Deus salve, moço..." mais nada!

E rindo, toda corada,

Mordia a ponta do lenço!

LXVI

"Viola, minha viola,

"Viola do coração,

Cantava um cabra pachola,

Tocando numa função.

Puxam fieira à castanhola,

Batendo com os pés no chão...

E o fado se desenrola

Na noite de S. João.

Pra pá pá... Cresce a alegria

Depois das palmas... Agora,

Com pausada entonação,

O trovador concluía

"Viola que geme e chora

"Debaixo da minha mão!

 

FIGURAS

 

DONGA

A sombra de uma palmeira

No fundo claro de um rio

Tem a aparência ligeira

Daquele todo sombrio.

Possui o peito vazio

Das afeições, de maneira

A ter no olhar vago e frio

Umas tristezas de freira.

Pálida, magra e tão débil

Que parece uma doente,

Exausta, chorosa, flébil...

Pálpebras fundas, escuras,

Coando a lágrima quente

De umas perdidas venturas!

 

NINA

Tão bela pode que exista,

Mais provocante não há!

O sonho de um panteísta,

A perdição de um paxá.

Luze-lhe o raio da vista

Como o alfanje de um rajá,

E vibra a nota de artista,

Em toda parte onde está.

É branca, mais que o luar,

Cabelos fartos, castanhos,

Olhos que lembram o mar...

Raio travesso de luz

Irradiando um rebanho

De fantasias azuis!

 

ANJINHA

Há um mistério travesso

Naquelas negras pupilas;

Delicadezas de gesso

Nas suas feições tranquilas.

É sempre o olhar que nos lança

Moroso, súplice e bambo;

Tem vaga-lumes na trança,

Na pele coisas do jambo.

Desse ideal que ainda encanta,

Como a imagem de unia santa

Cercada de um resplendor.

Daquele corpo tressua

Um certo vago de lua,

Com um leve aroma de flor...

 

COTINHA

Muito triste e delicada!

Suponham, para ideá-la,

Uma camélia dobrada

Sobre uma jarra da sala.

Vive cismando e, por nada,

Toda estremece e não fala!

Anda aquela alma de Atala

De funda mágoa ralada.

Adora o piano, que as notas,

Como saudosas gaivotas,

Alam-se às plagas marinhas...

Ah! Deus queira a nau que sondas

No plaino glauco das ondas

Traga-te o riso que tinhas!

 

XANDOCA

Corpo delgado e franzino

Como o lírio do caminho

Que vergasse, de tão fino,

Ao peso de um passarinho.

Canário que solta um trino

Entre as pelúcias do ninho...

Olhar manso e cristalino,

Alvuras frescas de linho.

Rosetas vivas na face,

Lábios fechados, vermelhos

Como cravina que nasce...

Mãos finas, unhas rosadas,

Pequenos pés sem artelhos,

Tranças ao ombro atiradas!

 

NENEZINHA

Moçoila de saia curta

Com ares de senhorita;

Borboleta que volita

Por sobre flores de murta.

É de uma graça infinita,

Quando os seus voos encurta:

De cada rosa então furta

O encanto que nela habita.

Olhar de boa malícia;

Como que um sonho navega

Naquele mar de delícia...

Ave medindo o caminho,

Mas que nas plumas carrega

Ainda o aroma do ninho.

 

VOVÓ

Dorme, infeliz criatura!

Depois da luta é bem doce...

Talvez a vida te fosse

Uma perene amargura.

Não é longe a sepultura,

Nem foi teu sono precoce;

Se o teu olhar apagou-se,

Uma lembrança perdura...

E lá, na Presença Augusta,

A mim a bênção renova,

Que a tua bênção não custa...

Tenho lágrimas na trova,

Depois que a imagem vetusta

Tombou de um século à cova!

 

CAROLA

Coração de favo e nardo,

Alma de estrela e neblina,

Rócio em cálix de bonina,

Onda azul que amaina o cardo.

Luar sonâmbulo e tardo,

Íris de luz peregrina,

Nascida em plaga divina,

Aureola a fronte do bardo!

Ave, que ao éter se exalça,

Beijando o ninho da balsa

Onde pipila... Jesus!

Vive de aromas e orvalhos;

Oscila o corpo nos galhos,

Suspende as plumas à luz.

 

VIOLETA

A sua linda pessoa

Ressumbra lírio e virtude;

Tem nos olhos a quietude

De uma profunda lagoa.

Calma, simpática e boa

Como os sons de um alaúde;

Dois mirtos da juventude

A mesta fronte coroa

Das paisagens pitorescas,

Um belo e fiel modelo

De castelãs romanescas,

Pintando-a de cesta ao braço

Madressilvas no cabelo,

Bordando no seu terraço.

 

ANA

Um sonho vago, brilhante,

Um devaneio qualquer,

Não falam bem do semblante,

Da graça desta mulher.

É fragrância inebriante,

Num íris de rosicler;

Qualquer coisa deslumbrante

Com o coração de mulher.

Eu bebi, raio sedento,

Os teus aljofres, oh! flor!

Numa ilusão de momento...

Como lágrimas de amor,

Gotejam no meu tormento

Os teus aljofres, oh! flor!

 

NHÃNHÃ

Cabelos com lantejoulas,

Como uma noite estrelada;

A bela fronte banhada

Na dúbia luz das papoulas.

Tem semelhança com as rolas

De pelúcia acaboclada,

Que bebem, de madrugada,

O róseo mel das caçoulas.

Traçando a curva opulenta,

O seio, que, preso, estua,

Quase o corpinho rebenta...

De carnação florescente;

Ama as janelas da rua

E um rapazola doente.

 

SINHÁ

Fria estátua do abandono!

Inspiras trovas e pena;

Nasceste, moça morena,

Para os veludos de um trono.

Tens, vaporosa e serena,

As nostalgias do outono;

Nesse olhar, que pede e ordena,

Boia o fantasma do Sono!

Cismando, tuas mãos frias

São duas asas esguias

Entorpecidas no queixo...

Ao vago som que proferes

Solto o meu beijo, e não queres!

Quando quiseres, não deixo!

 

MADAME

É o teu sorriso uma aurora

De cristalino sonido;

A boca — figo partido,

Que mel e aroma dessora.

São teus olhares assombros

De incandescente Vesúvio:

Desatam sobre meus ombros

Lúcido e quente dilúvio.

São teus pezinhos o metro

Dos bazares do meu plectro,

Para medir sonetilhos;

E hás de calçar muitas vezes

Nesses dois mignons franceses

O borzeguim de teus filhos.

 

BABY

Fina e loira como um talo

Do melhor trigo maduro;

Do azul celeste mais puro

São os olhos de quem falo.

Quero prismáticas bolhas

Para ideá-la, e não acho;

Titilações de riacho

Com rumorejo de folhas...

"Miss" delicada, e tão alva

Como um botão de limeira

Sobre uma folha de malva;

Risos francos de alvorada,

Presos à graça ligeira

De uma menina estouvada!

 

LULU

Da coma brilhante e fina

Descem-lhe cachos à testa;

Muito delgada e franzina,

Mais senhoril que modesta.

Ruidosa, alegre e traquina

Nas expansões de uma festa

Há sempre um quê de menina

Numa mulher como esta.

Paixão por flores e fitas;

Vem ao salão de visitas

Com um malmequer no decote.

E, para mostrar esse anjo

Que não dá corda a marmanjo,

Pregou ao noivo calote!

 

ZIZINHA

Lembra uma flor indiana

De emanação capitosa;

Estranha e brava liana,

Bela, porém venenosa.

Ares e olhos de cigana,

Cor verde-mar sulfurosa,

De cujo foco espadana

Certa luz tempestuosa...

Polpuda e quase escarlate,

A boca — ninho de estrelas —

Realça em moreno mate;

É de, quando ao gênio ardente

Fulge o raio das procelas,

Fazer tremer toda gente!

 

FACEIRA

Não sei que magia existe

No rosto desta menina,

Pois tem no olhar meigo e triste

Uma expressão que fascina.

Nas suas faces persiste

A palidez da bonina,

Que, se a enchente resiste,

Torna-se branca e mofina.

Sacra beleza de um cântico;

Ar pensativo e romântico

E um certo quê de senhora...

Corpo mimoso, e trabalha!

Sorriso manso, e retalha!

Sofre, talvez, e não chora!

 

NENÊ

Dia, em rosadas quermesses,

Rompendo no áureo horizonte,

Com cigarras pelas fontes

E passarinhos nas messes,

Dá que a boca virgem conte

Os bons conselhos e as preces

Com que, rezando, adormeces

A um beijo de mãe na fronte.

E não, oh! pomba travessa!

Histórias de namorados

Que te andam pela cabeça...

Mas és criança e não pecas:

— Vamos lá ver teus bordados,

Mostra-me as tuas bonecas!...

 

DUDU

Silfo que voa e revoa

Por cima das açucenas,

Iria-lhe as áureas penas

A luz do sol que se escoa...

São quatorze anos à toa!

Travessos — como falenas,

Viçosos — como verbenas,

Tranquilos — como lagoa.

Os olhos — de fogo e lua,

O corpo — de lírio branco,

A boca — de romã crua;

E ela sorrindo — ora, bravo!

Atira a bala no flanco

Do rei das flores, o cravo!

 

ANTONICA

Na palidez doentia

Daquela face morena

Vê-se que o mal de um só dia

Toda uma vida condena.

Fronte elegante e serena,

Sem expressões de alegria:

Traços doces de Maria,

Com erros de Madalena.

Ilude. Se a noite tomba,

Tem essa pálida rosa

Retraimentos de pomba;

Quebrou o leque das asas

Numa queda dolorosa

Sobre um terreno de brasas!

 

MANA

Pálido rosto, acusado

Na cabeleira opulenta,

Como um astro que rebenta

No firmamento nublado.

Olhar manso e sossegado,

— Voo de pomba que assenta...

Boca trêmula e sedenta

Aberta ao riso engraçado.

Esguio tronco, elegante,

De palmeira triunfante

Nos arrebóis da manhã...

Salgueiro do teu jazigo,

Aqui plantei-me, e, comigo,

Muitas saudades, irmã!

 

FESTAS ÍNTIMAS[1]

I

Vamos! entremos no ágape, famintos,

Que o anfitrião sou eu; mando por isso

Que se esgotem os copos de Chamiço,

O mais alegre e bom dos vinhos tintos.

E vós, senhoras, afrouxai os cintos,

Abrindo os lábios, que a mirar cobiço,

E metei os dentinhos no chouriço,

Que bom Porto-wine eu mandei vir, aos quintos.

Solte a nota festiva algum marmanjo,

Que há leitoa de forno, patriotismo

Com feijão preto... Olha o peru, quem trincha?

Já que sobre a cabeça de meu anjo

Jorraram hoje as águas do batismo,

Corra o vinho à saúde do Pechincha!

II

A sobremesa o pavilhão desfralda,

Desafiando o cerco, de gargantas;

Grite o heroísmo na explosão de tantas

Bocas vermelhas escorrendo calda!

Fulge o cidrão em lascas de esmeralda

Cristalizadas; quantas balas, quantas !

Venham doces em penca, em lata, em mantas,

Que já na língua o roxo trava e escalda.

Beba syphon quem já estiver um pouco...

Mas entre o creme de ovos e o de coco,

Para um brinde, nem frívolo, nem longo,

Todos de pé, todos de taça no alto,

Ao moscatel n'um temerário assalto:

Hips e urras e vivas ao Mundongo!

III

Neste festim, oh! flores de espartilho!

Que encareceis com a resplendência vossa,

Alguma cousa mais o alegra e adoça:

— E' o sorriso inocente de meu filho.

Rapazes! vamos nós pelo áureo trilho

Do bom convívio e da risonha troça:

Eia! o Villar o espírito remoça,

Aos olhos dando um desusado brilho.

Vinho no copo e pão-de-ló na unha;

Longe tudo o que as almas acabrunha,

E haja um riso e uma graça em cada boca;

Como um rancho de gárrulas crianças,

Para o prazer da música e das danças

Vamos da mesa levantar... de touca!

 

O CANÁRIO

I

Na choupana de um velho proletário,

Entre a ramagem múrmure e sombria

De virente pomar,

Apresentando um rústico cenário:

Às vezes em fragrante eflorescência,

Vistoso e a balouçar,

Outras — de fruto

Os ramos a pender no solo bruto,

Como quem cai em lânguida dormência,

Cantava todo o dia.

Um aflautado e trêmulo canário.

II

Quem toma, acaso, a travessia curta

Daquele sitio, esmeraldino prado

De rescendente murta

E bananeira agreste, que a fragrância

Percebe-se a distância

Do cachopo escarlate e azul-ferrete,

Na ribanceira hirsuta, entre gungis,

Que marchetam selvático tapete,

Escuta-o, embevecido,

Sentado ao cepo do indaiá partido

Do ribeirão ao lado,

E mais, mais retirado,

O barulho de ariscas juritis.

III

No caminho há festões de escura sombra,

Com mil flores em cacho;

E a água do riacho,

Que à superfície é como um claro espelho,

Atravessando o leito do caminho

Vai se esconder nos côncavos da alfombra

Da chácara do velho.

Tão mole escorre e rumoreja a fonte

Por debaixo da ponte,

Que a descansar convida-nos baixinho...

IV

Tão fresca que ela é! Tons anilados

Na profundeza escura e transparente

Da múrmure corrente;

Uma pétala curva, a flor de lima,

A folha verde e limpa do arvoredo

Em delíquio e brinquedo

Escorregando vai...

É um barquinho frágil que se anima...

Some-se! a gente espera:

Dentre a sombra fantástica dos matos

A veia d’água sai,

A deslizar-se-lhe, outra vez, por cima,

Talvez... uma quimera!

Talvez que a pluma branca, alva dos patos,

Como uma nuvem na azulada esfera!

V

E é tempo. O caminheiro o ponche enrola,

Depois que, o sol medindo, se levanta

                 Para seguir viagem.

                  Mas o canário canta

No grubapê flexível da gaiola

Ao lado do oitão

Da Sombria choupana, alegre, entanto,

Por trás dos ramos da limeira — oculta,

Ao dote requebrar daquele canto,

— Silvestre idílio de uma letra inculta —

Mas filho e pai entendem-lhe a linguagem,

Como a bradar — coragem!!

VI

Tinha um filho pequeno o proletário.

Era o gentil e trêfego Joãozinho,

Fruto do seu amor. No seu caminho

Da vida transitória

Achara uma consorte e, solitário,

Deitava luto em si, dela em memória.

Agora viúvo e pobre,

E triste como um funerário dobre,

Ama o pequeno e dá-lhe bons conselhos,

Quando assentado o tem sobre os joelhos.

VII

Mandava o filho de manhã à escola.

VIII

O que a este entretinha era a gaiola,

De grubapê e cana,

Dependurada ao caibro da choupana,

Onde cantava alegre o seu canário.

Era um pássaro belo,

Pequenino, gentil todo amarelo!

IX

Quando voltava do arraial, sozinho,

Com o cajado ao ombro,

Sem mostras de temor, sequer de assombro,

Pelo deserto e rústico caminho;

Na bolsa os livros, o calçado à mão,

Calça ao joelho, em desafio ao chão,

Despida a jaquetinha, o peito aberto,

Cantando uma cantiga

De sertanejo e antiga

E do velho casebre já bem perto,

Conhecia o canário a voz do amigo

E punha-se a cantar, cantar, cantar,

Com a cabacinha junto do postigo...

O menino corria pressuroso,

Mal chegava no lar,

Do seu canário à rústica prisão...

Nadava em pranto o carinhoso olhar!

De júbilo, coitado!

E acariciava-o tanto,

Que o passarinho transformava o canto

Em torrente de célere trinado!

 Quando voltava do arraial, sozinho,

Com o cajado ao ombro,

Sem mostras de temor, sequer de assombro,

Pelo deserto e rústico caminho;

Na bolsa os livros, o calçado à mão,

Calça ao joelho, em desafio ao chão,

Despida a jaquetinha, o peito aberto,

Cantando uma cantiga

De sertanejo e antiga

E do velho casebre já bem perto,

Conhecia o canário a voz do amigo

E punha-se a cantar, cantar, cantar,

Com a cabecinha junto do postigo...

O menino corria pressuroso,

Mal chegava no lar,

Do seu canário à rústica prisão...

Nadava em pranto o carinhoso olhar!

De júbilo, coitado!

E acariciava-o tanto,

Que o passarinho transformava o canto

Em torrente de célere trinado!

                          X

Embora fronte branca e veneranda

Do trêmulo ancião

Pousasse, acabrunhada, sobre a mão

Trigueira e descarnada,

Assim como quem anda

A imaginar a morte muito perto,

Ele sorria sempre, — rir incerto!

Dando ao semblante uma expressão, um brilho,

Como luz de relâmpago em sudário,

Ao infantil espírito do filho,

Ao requebro mavioso do canário!

Tanto que, se achava na gaiola

Mudo e arrepiado,

Quando voltava do labor diário,

Ia chorar o velho na viola

Um lânguido estribilho...

E o bom cantor erguia o bico aberto!

Melancólico, então, era o concerto!

                          ________

Depois de uma orfandade,

De álgida e lutulenta viuvez,

Estava a f'licidade,

A alegria do albergue solitário,

Do bom filho, do honrado proletário,

Em rústica prisão de grubapês.


[1]  Este poema foi inserido na segunda edição, de 1896.