LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Círculo sexto, de Maura de Senna
Edição de base:
Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos,
Org. de Lauro Junkes. Florianópolis: ACL, 2004.
ÍNDICE
Para Almeida Cousin
Canto da companheira
Canto Primeiro
Ainda que no meu minuto de poesia eu praticasse
o nudismo completo da alma
e as gentes se curvassem diante da minha pureza;
embora eu possuísse a graça dos lírios do campo
e a minha palavra fosse como água clara
rolando da montanha
e eu me sentasse ao lado dos grandes
em sabedoria;
e ainda que eu tivesse a beleza de Paulina Bonaparte
e os homens me chamassem divina
e a doçura das úmidas bergamotas
meu amado sempre achasse em minha boca;
ainda assim, tudo faltaria
se eu não tivesse o humano em todos os meus gestos.
Se o rosto de todas as crianças
eu não quisesse banhado de ventura
como se elas tivessem brotado de minha carne
e devorado meu sangue antes de nascer.
Se eu não tivesse o humano em todos os meus gestos
e não fosse capaz de querer
para todo ser humano
o pão, a rosa e a paz.
Que eu saia de mim
Que eu saia de mim
e corte com ânsia todos os mares
e chegue a todas as praias sem fadiga.
Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas, no lodo
e no tumulto, na orla dos lagos e dos abismos.
Que eu saia de mim
e fique nos caminhos o meu hálito.
Que todos os clamores e todos os risos
e também todos os silêncios repercutam em minha orelha
e a minha língua se torne clara e ardente como o sol
e todos me entendam, os meninos, os pobres.
Que eu saia de mim
e com a soma de minhas libertações
e a massa de minhas vitórias sobre mim
me volte leve e humana
para as angústias e os problemas dos homens.
Que eu saia de mim
e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim,
mas sempre diante do universo
meu espírito agnóstico seja um olho comovido.
Que eu saia para sempre de mim
e seja uma nova criatura
em que as cousas e os seres fiquem grudados.
Que eu não volte para mim
que para sempre me perca
e da criatura salva
todos sejam impregnados.
Amor
Em verdade te digo que não foi naquela hora
que te pertenci:
quando me tomaste nos tens braços poderosos
e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.
Em verdade te digo que não foi naquela hora
mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo
de rebento inquieto deste século
e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.
Quando conheceste as minhas derrotas
e disseste que eram triunfos.
Quando viste pulsar meu coração nu
e o festejaste.
Quando soubeste que nem sempre
os teus pensamentos são os meus pensamentos
nem os teus caminhos são os meus caminhos.
Mas o amor brilhou como nunca em tua face
e me surpreendeste com a cascata de palavras
de que eu tinha sede
desde a minha primeira hora consciente.
Foi quando te pertenci.
Maternidade
Arrepender-te-ás talvez
como de uma suprema profanação
de teres um dia me vestido
de bagos e de gomos
e para eles depois te atirado
como um fauno sem lei.
Oh, não te arrependas não
que me deste glória e honra
pois eu só via o milagre da árvore estéril
carregada de frutos
e o sumo das uvas escorrendo
dos seios que nunca amamentaram.
Canto da companheira
Sairei pela manhã clara em busca do pensamento do mundo.
Irei até as searas e as trepidantes fábricas
e surpreenderei o operário em seu labor.
Vê-lo-ei mover êmbolos e turbinas, hélices e tratores
e, comovida e atenta, lhe farei perguntas.
Entrarei nos barcos, descerei às minas,
estarei nas mansões e rios cortiços
nas igrejas e nas tascas
pois nenhum lugar me há de ser vedado.
Escutarei as ânsias do povo, as pedras da rua
e verei as lutas entre o velho e o novo.
Escreverei então
com suor e sangue e o húmus da terra
o que houver captado
assim unida, colada ao fundo da vida
e filtradas pela minha emoção
mensagens novas chegarão aos homens.
Voltarei pelo fim da tarde
com ligeiros passos
para pôr, antes da noite,
flores vivas no grande jarro.
Cortarei rosas no jardim em tua honra
rosas e dálias para te saudarem.
Voltarei com ligeiros passos
e quando chegares trazendo teu dia
áspero, participante, lúcido
e cachos de begônias rubras para mim
já estarão soltos meus cabelos
e acesa a lâmpada.
Bailado
Eras estrela, eras ave, eras
grande flor aberta
sobre o peito do homem?
Em verdade parecias
em teu bailado, Raissa,
um pássaro
pousando sobre aquele tronco
pousando e, no entanto, pronto
para voar.
Em verdade eras um símbolo
em teu bailado, Raissa,
pois no mesmo dia
surgia uma era nova
e da tua terra voava
uma nova lua
para no céu bailar.
Veraneio
Alegria de ter logo à porta o rio caboclo
e sobre fundos peraus e leves peixes
e entre coroas de aguapés em flor
tomar, ainda cedo, o banho bugre.
Alegria de comer a carne dos ingás maduros
e do carneiro novo imolado
e dormir depois na rede mansa
tendo cravos do mato nos cabelos.
Alegria de ler debaixo dos salgueiros úmidos,
de saudar os patos brancos nadando
e ver o plátano grande todo dourado
do crepúsculo.
— Boa tarde, vizinha.
(É o piá que lá vai
— pequeno servo nos pastos crioulos –
cuidar das rezes, lidar nos tambos.)
Alegria de ouvir as odes soltas do vento
na tarde longa
e ver os pássaros sem dono
chegados do Éden
vadiando, felizes, nos banhados do campo.
A lua crescente
como uma joia moura
já está enfeitando a noite nova. Alegria!
Alegria, alumbramento, comunhão.
Alegria
em que ternamente se mistura
a tristeza de olhar o menino peão.
Canto das mães
As mulheres levavam os filhos pequenos pela mão
e, a seu lado, os que já tinham sonhos e namoradas.
Levavam até mesmo os recém-nascidos
que haviam arrancado dos berços
e erguiam nos braços como bandeiras.
Filhas de todos os povos, milhões de mães unidas,
pararam diante da face lívida
dos que estavam preparando a destruição
da carne de sua carne.
Pararam para cantar.
Apertando os filhos ao peito
elas diziam com suas vozes límpidas
que não os dariam para a matança.
(Esperavam pedras e pragas, dardos e maldições
os donos das fábricas da morte?)
No entanto, o que tiveram pela frente foi mais forte,
pois o verbo simples do amor, o salmo indefeso da paz
os derrotou.
Naquele encontro face a face,
enquanto as mães cantavam, os monstros compreendiam
que era a própria fonte da vida que cantava,
que eles nada mais podiam.
Forças cósmicas se haviam desencadeado
contra os seus desígnios
e os brotos da terra, que eles pretendiam cortar,
queriam crescer e amar.
Olharam, por fim, com vergonha e desolação
as suas grandes fábricas inúteis.
Os meninos estavam salvos.
E começou então
uma nova terra e um novo céu
com flores e frutos e trigais e risos
e pombos brancos voando sobre a cabeça dos povos.
Salmo para o Bem-Amado
Sustentai-me com passas,confortai-me
com maçãs, porque desfaleço de amor.
Cântico dos Cânticos — 2:5
Imprecações não ergo e sim ditirambos
e sim aleluias
e sim hosanas
às pedras e às dores do caminho.
Onde está a harpa do rei David
onde estão as cítaras hebreias
onde está Sulamita
e onde as virgens loucas?
A todas essas cordas e bocas eu conclamo
a todas ao meu lado quero
para ajudarem a bendizer a tormenta
que me arrebatou a primavera,
as geenas que padeci,
as pedras e as dores, as lutas e as revoltas,
a bendizê-las
porque foram elas que me aproximaram de ti.
Círculo sexto
.........................: qui son gli eresiarche
Co' lor seguaci d'ogni setta, e molto
Più che non credi son le tombe carche.
Simile qui con simile è sepolto
E i monimenti son più e men caldi.
Dante – Inferno (Canto IX — 43 e 44)
Círculo sexto
Não será no limbo o meu lugar
nem ao lado de Francesca da Rimini.
Terei de descer ainda
de passar por mais três círculos
até ser arremessada na cidade de Dite.
Ao cair na capital dos infernos, saudarei meus irmãos
e perguntarei logo por todos os hereges que chegaram
depois de Farinata degli Uberti.
Gritarei com fervor o nome de Spinoza
e, se lá estiver, o gênio amado falará
à nova sombra maldita.
Toda a sabedoria portentosa
que habitou o seu sótão holandês
ele me transmitirá do seu sepulcro ardente
e mais o seu pensamento de trezentos anos.
O enxotado das sinagogas enxotará meus erros,minhas superficialidades;
o polidor de lentes polirá meu turvo e mesquinho conhecimento;
o mestre dar-lhe-á expressão, unidade, volume
e serei profunda e grande
no meu pequeno canteiro de fogo.
Bendirei, então, meu pecado e minha pena
através de um canto novo, liberto e universal
que abalará os infernos
enraivecerá os demônios
e fará meus companheiros da cidade de Dite
estremecerem, deliciados, nos seus túmulos.
Escolha
Não grito e calo? Não calo e grito?
Grito e estarei perdida.
Grito e tomam-me o sol.
A redondilha do meu nome
será jogada no chão.
Grito e terei apóstrofes
terei coroa de espinhos
terei a língua cortada.
Calo e virão belos sonhos.
Não grito e serei poupada.
Presságios de belos sonhos
falharam, não se cumpriram.
Pelas pálpebras cerradas
como visão dorida entrou?
Aos ouvidos adormidos
como chegou este som?
Visão de chagas abertas
e que podem ser fechadas.
Som patético de choro,
de choro e ranger de dentes,
que não são inexoráveis,
que o homem pode sustar.
E eu não gritei, não gritei, ai de mim!
Não gritei... Quero acordar.
Acordo. Salve a manhã
alegre como as anêmonas!
Vou colher as minhas rosas.
Vou coser os meus vestidos.
Vou colher as minhas rosas
e ferem-me os espinhos.
Vou coser os meus vestidos
e ferem-me as agulhas.
(É o pranto lá de fora
e a lembrança das feridas
que vêm sempre atormentar.)
Em cousas muito distantes
de todas essas angústias
vou, pois, me refugiar.
Pensar em búzios, tesouros,
sereias, lendas, nenúfares,
num céu riscado de cores.
Passar a outras galáxias
e compor, talvez, um canto,
um canto de casuarina,
e dirigi-lo à amplidão.
Com que palavras compô-lo?
As sós palavras que tenho
são estas que me sufocam
ansiosas de irromper:
não para serem um canto
dirigido ao infinito;
sim para serem denúncia,
súbita brasa lançada
às injustiças da terra.
Não grito e calo? Não calo: grito!
Poesia negra
Com um pano branco na cabeça,
o vestido cerzido, o avental encharcado,
lava que lava, bate que bate
o linho custoso das casas ricas
as roupas belas dos corpos fartos.
Lavandeira negra negra negrinha
como a negra e doce camarinha.
Lavandeira negra, não sentes às vezes
uma saudade imprecisa e um estranho arrepio?
Ai! teus avós foram laçados num largo continente distante
e choraram de raiva no porão dos navios.
Lavandeira negra, tu vens do beijo dos negros lanhados
do beijo fecundo dos castigados no tronco.
E da tua raça, flor crioula,
saiu a linhagem sombria e forte dos zumbis:
os negros varonis que abandonaram a senzala
os grandes negros que construíram os quilombos
os negros danados que morreram lutando.
Hoje, tua raça é toda criatura
que trabalha e sofre como tu.
Não tens o corpo negro marcado
pela chibata, ao mando da sinhá,
mas flagela a tua vida sem cessar
a miséria que mora no teu barracão.
(Negra como a camarinha
lava que lava
cantarolando em surdina
cantigas do carnaval.)
Agora, ó fornecedora irracional
de carne para trabalho e carne para canhão,
uma vida em gestação
palpita em ti:
teu ventre inchado pela fecundidade
anuncia
que mais um pária vai nascer.
Será que a alma do teu pretinho traz
alguma faúlha encarnada de vovô Zumbi?
Queimada
Hastes estalam
ramos e troncos se acabam
nas chamas vandálicas.
É a queimada
são árvores mortas desaparecendo
no meio da beleza perversa
das línguas vermelhas do fogo.
Ossos estalam
músculos e vísceras se acabam
nas labaredas cínicas.
E o castigo incandescente
são heróis e santos
cristãos e bruxos
mártires moços e velhos paladinos
é Joana d'Arc, Giordano Bruno, Savonarola
que ardem na fogueira.
Não posso ver chamas assim altas:
me lembro logo dos condenados
que tiveram os corpos vivos transformados
em lanternas loucas, disformes.
Não são árvores, não, que ardem na queimada:
são crânios, peles, entranhas,
seiva escarlate a fumegar...
Em lugar de árvores, o que vejo são homens
são todos os namorados da liberdade
acabando-se num brilho mau.
E esta visão bárbara
ai! emana do meu medo
meu medo atrevido
de uma nova noite medieval.
Poema para Ziró
Quando começaste a tua faina diária
no ateliê da cidade
e tua mãe vivia
e passava o dia
a passar a linda roupa alheia
com o seu velho ferro cheio de carvão
e ainda havia
trabalho na fábrica
para teu pai tecelão,
teu corpo moreno
de moça e menina
neta de cafuzas
Ziró em botão
atraía desejos
por todo o caminho
e os teus dedos
alugadinhos
lidavam ligeiros
no ateliê.
Depois, ao fim do dia,
quando chegavas ao tugúrio do bairro
soltando risadas
cantando cantigas
rodopiando
com os guris pela mão,
tu eras a alegria boa
que chegava
e teus irmãos em delírio
iam logo gritando
para dentro de casa:
— Taí a Ziró! Taí a Ziró!
Ziró, onde estão hoje aquelas pobres migalhas
de festa?
Tua mãe está na cova
e teu pai sem trabalho
dá medo aos pequenos:
passa o dia todo
à beira do fogão apagado
e com os olhos acesos
e os punhos fechados
berrando
praguejando
gargalhando
ameaça
um alguém invisível.
Mas quando tu chegas
amargurada
por te haverem cortado o salário
(Ziró, por que deste agora
em trabalhar
tão devagar?)
quando tu chegas
quase sem forças
tossindo
olhando tudo
com teus olhos de grumixama
redondos e retintos,
o coração dos pequenos logo se anima
e eles comem ainda
a sua única migalha de alegria:
— Taí a Ziró! Taí a Ziró!
Ziró em flor, flor moribunda
para quem
ninguém
mais olha na rua,
que será dos teus meninos
— irmãos e filhos -
quando a doença que te consome
te houver levado
também para a cova
e chegar o fim do dia
e eles perguntarem
aconchegados um ao outro
chorando de fome
tremendo de medo:
— Cadê a Ziró? Cadê a Ziró?
Parábola
Era outro o vestido que eu queria
— leve e novo -
e não aquele que me haviam dado:
comprido
afogado
que me comprimia.
Mas só me compreendiam umas pessoas raras
que traziam as testas claras
marcadas de pedras
e as tochas morenas dos olhos ardendo.
Comecei mesmo assim a lutar
e eis que logrei desprender
— em vários dos meus arrojos elétricos
de grande tímida -
a solene gola, os atavios decrépitos,
os rendões amarelados que revestiam
aqueles panos caducos e pesados.
No sentido da minha libertação
foi quase nada
mas o bastante para enfurecer
os velhos vestidos virgens.
E fui apupada na tarde sombria
coberta de anátemas
pelos donos das vestes intactas.
Pelos mesmos que as repudiaram
na aurora do outro dia
sem pressa, sem angústia.
Do meu sítio anônimo
a muitos vi passar
coroados de folhas de carvalho
sobre os ombros da turba.
Morte e Eternidade
Falas para uma assembleia de futuros cadáveres
e também os que nascerem de nós perecerão
e perecerão os filhos de nossos filhos.
Mas a tua palavra subsistirá.
A tua palavra, âncora e roteiro,
pura e sábia
vertendo seiva como um talo novo
clareando caminhos como o velho sol.
Também a garganta ungida pelo grande verbo
um dia secará.
Secarão as mãos mortais que semeiam e guiam
e constroem a paz.
E os lábios que se abrem cada dia
para edificar
se transformarão em pó.
Mas a tua palavra subsistirá.
Pedra para o templo
Não tenho deuses, mar.
Terra
céu
homem
pedra
selva
não tenho deuses.
Tenho, porém, uma alma ardente
de Teresa de Jesus
e me prosterno diante do templo
que lentamente se ergue
sem muros no universo
para proclamar
a vida, a simples vida,
sagrada como os tabernáculos.
Não tenho deuses, mar.
Entanto, sobre o ombro, como um cântaro,
eu trago a minha pedra para o templo.
Rosa no caminho
Histórias para a menininha
Menininha, estás sem sono
e eu queria te ninar.
Segura, pois, minha mão:
vamos longe passear
vamos ver todas as terras
e ver o fundo do mar.
Vamos achar a raposa
que o príncipe cativou
e também Gato de Botas
do marquês de Carabás.
Ver a lua tomar banho
na lagoa com as estrelas,
flores com rosto de fada
e fadas boas e más.
Anda anda, menininha
que muito temos de andar.
Vamos ver os cavalinhos
mais as estrelas do mar.
Vamos galopar nas nuvens
que parecem ovelhinhas
colher lírios com as pastoras
e voar com as andorinhas.
Vamos ver o sol nascer
com o seu manto carmesim
e correr para o outro lado
para ver na mesma hora
este mesmo sol morrer.
Vamos passar na ilha verde
para ver boi-de-mamão
rendas brancas das rendeiras
e as das espumas do mar.
Anda anda, menininha
que muito temos de andar.
Vamos ver a flor de pedra,
encontrar a salamandra,
visitar Branca de Neve
na casa dos sete anões
e, dando outra meia-volta,
ver o menino amarelo
comendo pudim de arroz
na margem do rio azul.
Anda anda, menininha
que muito temos de andar.
Temos de passar na frente
do Pequeno Polegar.
Vamos conhecer a iara
vamos pegar o saci.
Vamos ver as quedas d'água
os moinhos e os teares
os pintos furando a casca
as cigarras a nascer
e trigo verde crescer
e virar farinha e pão.
Oh, alguém aqui passou
com uma vara de condão:
a alva lã dos cordeirinhos
os bichos dos pés de amora
e os capulhos do algodão
vestiram todos os meninos!
Meninos da terra inteira
formando uma roda estão.
Estão formando uma roda
e nela vamos entrar.
Ó ciranda cirandinha
vamos todos cirandar.
Eis que o sono vem chegando
e agora temos de voltar.
Vou prender-te nos meus braços
inventar muitas cantigas
docemente te embalar.
Rosa da feira
Numa das crônicas "Nós e o Mundo", explicou Maura: Escrevi, certa vez, nesta coluna, (que já foi diária) algumas crônicas sobre a semanal feita instalada em frete da minha janela: sobre os preços, o tumulto, o colorido das barracas, os meninos que nos ajudam nas compras, os feirantes; sobre a chega dos moradores da favela para apanhar os sobejos da feira; sobre a moça que salvou a rosa encontrada no chão. A respeito do último episódio, a crônica foi escrita e publicada, mas a jovem e a flor continuaram a me perseguir poeticamente. Nasceu, então, "Rosa da Feira", poema que incluí no meu livro Círculo Sexto e sobre o qual mestre Agripino Grieco escreveu: "Pela riqueza de conteúdo, avivada na agilidade do ritmo, parece-me digno de figurar nos florilégios mais escrupulosos". Verdade é que, "meninos, eu vi" o que descrevo em "Rosa da Feira". (Nota do organizador)
Moça desceu lá do morro
que a feira vai acabar.
Veio buscar o refugo?
Fruta estragada no chão
o pé de couve final
caixa vazia de figo
varredura de feijão?
Moça sorriu de contente
os olhos arregalou.
Se havia alfaces não viu
viu uma rosa tombada.
Moça levantou a flor
pegou a rosa pisada.
Madame lá da janela
abanou muito a cabeça
os olhos arregalou.
Diabo de negra é essa!
Vejam só o que ela achou.
Comida até que eu entendo
que ela procure no chão
pois a gente dessa raça
não quer mesmo nada não.
Mas gostar assim de rosa
fazer aqueles dengues todos
para uma flor murcha de feira...
Isso onde é que já se viu?
Moça sorriu de contente:
flor é flor embora murcha
flor faz parte da beleza.
Adorou aquele achado
endireitou a corola
cuidou bem do seu tesouro
a rosa ressuscitou.
Moça que mora no morro
que vai fazer dessa flor?
Vai botá-la no vestido
vai enfeitar os cabelos
para o namorado olhar?
Vai mergulhá-la na jarra
de lata do seu barraco
ou simplesmente jogá-la
no regaço de lemanjá?
Marujo em três tempos
Marujo ali está parado.
Tem um ar quase bravio.
Vejo-lhe o cenho fechado,
ombro largo, olhar sombrio,
e lembro (tão sem querer)
negra cena do passado
lida em Adolfo Caminha
e contendo a cerimônia
da chibata na marinha.
Fecho os olhos. Onde estamos?
Mil novecentos e dez.
Grão-marinheiro João Cândido
já tem mais um companheiro
para a revolta ajudar.
Arde em fúria o marinheiro:
aprisiona comandante
subjuga oficiais
fica senhor do convés
vibra toques de almirante
manda no "Minas Gerais"
volta os canhões para terra
torna-se o dono do mar.
Abro os olhos. Onde está
marujo forte parado?
Ei-lo que ali vai andando
e mais alguém ao seu lado
com frutas firmes no peito
com ancas rijas bailando.
Conserva o jeito sombrio,
vestígios do lutador?
Nada! De riso no lábio
marujo é homem dobrado
à bruta força do amor.
Canção em Rosamor
Quero ninar o meu menino
acender o meu fogão
esperar o meu amado
com o pão branco na mesa
e jasmins frescos na mão.
Agora olho lá fora.
Será que todos têm pão
e rubras maçãs no prato?
Quero que toda mulher
possa entoar minha canção.
Que haja paz em toda a terra.
Não somente em Rosamor
e irmão não mate o irmão.
Que haja paz em toda a terra
e enfeite cada rincão.
Quero toda igreja aberta
com seus pastores a pregar
com seus fiéis que vêm e vão.
Quero toda igreja aberta
e em nenhuma quero entrar.
Meu menino vai para a escola
os outros todos também vão.
Saber e amor para eles
e não se indague se vêm
de desposadas ou não.
Quero criar o meu menino
varrer cantando o meu chão
esperar o meu amado
com o pão branco na mesa
e jasmins frescos na mão.
Terra catarinense
Abraçada ao Universo
tendo as raízes em ti
Ilha e Mulher
Quando me deito nos teus canteiros mornos,
Jurerê-mirim, Isla de los Patos, Santa Catarina,
não me basta a alegria telúrica
de ter nascido em ti
nem o pensamento quase bíblico
de que sou feita do teu barro.
Meu corpo é o teu imenso corpo de ilha
e minha alma invade as tuas entranhas
participando da tua febre criadora.
Meu sangue é o rasgão líquido dos teus rios
a linfa nervosa das tuas cachoeiras
a água matuta das tuas lagoas.
Plantas rebentam de tuas carnes, de meus chãos,
(em mim agora nascem grumixamas,
cachos de uva, brincos de princesa)
e sinto-me carregada da tua seiva e do teu pólen,
da glória dos rebentos
e do teu halo de conchas.
Quando me levanto
a sacudir a tua poeira morena
e ungida com o perfume de vinte lírios novos
e mulher e terra deixam de ser uma unidade pagã,
ainda sinto me prender e me abraçar
e envolver, implacável, a tua existência cósmica
e abraço varonil do mar.
Balada para o vento sul
O vento sul chegou
desfolhando papoulas
vergando caules
sacudindo polens
agitando palmeiras.
Passou pelo mar
erguendo as ondas em cóleras plebeias.
Chegou uivando
dobraram-se as frondes
as aves tremeram.
Tremeram
as pencas leves das glicínias
e os gerânios duros dos balcões.
No meio do jardim convulsionado
toda entregue ao seu desvario
fico de pé como uma árvore flexível
— as ânsias e os cabelos em desordem
as mangas largas voando -
a parecer uma alegoria do vendaval.
O vento sul chegou
abanando possesso
a minha velha cidade menina
roçando casas
virando esquinas
levando folhas, areias, conchas.
Sou tua namorada, vento!
Leva-me também
leva-me contigo
para longe de mim.
Lagoa da Conceição
Esta é a hora da gênese
pois que se ergue sobre as águas.
Cada um dos seus átomos resplandece mais
que os tesouros da rainha de Sabá
e todo ele é como
mil estrelas tombadas.
Eis que se ergue como um arcanjo
bradando mudas parábolas.
Com suas fúlgidas espadas
golpeia as últimas trevas.
Ei-lo todo de ouro ofuscante
suspenso no colo das águas.
Esta é a hora da gênese
pois que se ergue todo-poderoso
e pleno de vida e amor
derramando seu pólen de fogo.
Este é o primeiro dia da criação
pois estou vendo o sol
o sol ilhéu nascer
nas tuas águas bíblicas.
Louvação para Santa Catarina
Santa Catarina de Alexandria,
preclara virgem e mártir cristã,
filha de nobres, irmã de escravos,
rosa do Nilo, estrela da manhã,
deixa que meus lábios
mesmo descrentes
te venham hoje saudar:
minha terra tem teu nome
e de coração alto quero te louvar.
Louvação para Santa Catarina
a dos longos cabelos
pelo seu martírio.
Poemas e sinos
a venham exaltar.
Cantem e vibrem para ela,
que padeceu o açoite e a roda
a tortura e a morte
sem abjurar.
Louvação para Santa Catarina
a clara pastora
pela sua grandeza.
Que ela represente nesta hora
todos os sacrificados
os indefesos
os oprimidos
os humilhados.
Os que padeceram por ter visto em sonhos
e trigo dourado crescer para todos
e para todos se abrirem as flores azuis do linho.
Os que souberam morrer
sem negar a sua fé
e sem trair o seu irmão.
Os que sofrem ainda hoje
e os que ainda vão sofrer.
Virá, porém, um dia,
Santa Catarina de Alexandria,
em que o sol da justiça há de brilhar na terra inteira
e sob esse grande sol bruxo:
nem mártires nem monstros
nem povos em luta
mas a paz entre os homens
certa como o tempo.
Nesse dia novo
mais bela ainda será
a terra onde eu nasci
e que o teu nome sempre terá.
Podem tombar ídolos e valores
mas a tua cabeça decepada
estará firme e alta
sobre teus ombros de leite e flor.
Da estampa antiga da tua história
brotará uma nova inspiração
e muitos dos que ainda vão nascer
te verão sorrir
para as colheitas e para os teares
e os teus cabelos jovens se espalharem
como um manto
nos campos em flor e pelos mares.
E as aves descerem
os peixes subirem
as plantas crescerem
para te aclamar.
Descerem as aves do céu
subirem os peixes do mar
e com papoulas nos cabelos
— papoulas da minha terra -
pela sala das escolas
pelo jardim dos recreios
e teu vulto radioso passar.
(A terra inteira manará leite e mel
e abrirá rosas para todos.)
E quando a data que lembra a tua morte chegar
a vida irromperá dos sinos e das ruas
pois eterno será o teu nome
e louvado sempre o teu dia,
Santa Catarina de Alexandria!
Retrato de Anita
É filha de rei
esta que vamos celebrar?
Vestiu-se de ouro e prata
teve pérolas nos dedos
colar de água-marinha
axorcas e tiaras
glória de santa ou de rainha?
Não é filha de rei
nem mulher de grão-senhor.
Não cintilou de pedrarias
e não nasceram em castelo
os frutos do seu amor.
É uma filha do povo
e mulher de espadachim.
Usou vestido singelo
e cinto de couro cru.
Escandalizou o seu burgo
fugiu com um belo guerreiro
e lutou nos mares do sul
e nas terras do seu amor.
Não teve filho em castelo
mas foi mãe de generais.
Não teve reis a seus pés
mas tem o culto dos povos.
É a Heroína dos Dois Mundos
que vamos celebrar.
Não andou de carruagem
não se vestiu de ouro e prata.
Lutou no convés dos navios
pela República Juliana.
Lutou de espada na mão
pela unidade italiana.
Passou fome, passou frio,
dormiu noites ao relento.
Na própria terra natal
caiu um dia prisioneira
e fugiu pela noite negra
sobre o dorso de um cavalo,
os cabelos soltos ao vento.
Vinte léguas até Lajes
a heroína percorreu.
Atravessou densas florestas
passou a nado o rio Canoas.
(Ao vê-la surgir da noite
galopando em seu corcel
os guardas fogem de espanto:
Era centauro? Aparição?)
O coração ardente batia
sob alua fria da serra
e com o primeiro filho no ventre
a moça guerreira corria
para o seu amor encontrar.
É a Musa da Liberdade
Que vamos celebrar.
Eis então que o seu rosto
não mais o vemos contido em nenhum quadro
e sim transfigurado, crescido, ligado
ao universo.
Os cabelos parecendo faíscas
presos ao solo europeu.
O queixo fincado na barra da Laguna.
Os olhos imensos
brilhando como estrelas
rasgados como mundos
pousados sobre os povos.
Oh, e os lábios se abrirem como outrora
para invectivar
aquele que oprime o seu semelhante
e aquele que se esconde na hora de lutar.
É Anita Garibaldi
que vamos celebrar.