LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Poemas do meio-dia, de Maura de Senna Pereira
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Edição de base:
Poesia reunida e outros textos. Org. de Lauro Junkes.
Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2004.
Para Almeida Cousin
ÍNDICE
A marcha da alegria
Eu nasci para amar a vida
com uma intensa alegria:
com a alegria das águas rolando nas montanhas,
das chuvas desejadas e dos campos maduros;
com a alegria solta dos corumins descalços;
com a alegria dos vinhos e das colheitas,
com a alegria do amor e da primavera,
das vinhas em dezembro e das roseiras em flor.
Amanheci,
querendo amar a vida
furiosamente,
perdidamente...
Agora, que vai soando meio-dia,
lembro meu sonho fresco de alegria.
Lembro também, ó irmãos torturados de todas as raças,
o que conheci depois do amanhecer:
a sede dos desertos,
a beira dos abismos,
o abraço dos simuns,
o fragor das tempestades.
Mas, tocada pela dor, enxerguei meu semelhante
e ouvi os gemidos do mundo.
Então, aquela ânsia inflamada do meu coração
cresceu com o universo,
espalhou-se pela terra,
enlaçou a humanidade.
Com os óleos da ternura impulsionando meus sonhos,
penso, agora, no amanhã,
em que serei, apenas, carne morta
desfeita na terra brava
(Ah, chegarei até as raízes
subirei pelos troncos molhada de seiva
e, insinuando-me nos rebentos, nos botões,
nas flores tropicais ou nos frutos ácidos,
virei espiar, vingada, o mundo diferente.)
Penso no amanhã
e ardo nesta nova ânsia,
que me animará, eu sei,
até quando me envolverem
as sombras da noite:
que a humanidade toda possa conhecer,
na alma e na carne,
no peito e na boca
a humana alegria,
a alegria louca
que eu sonhei para mim,
quando o botão de minha vida abria,
no amanhecer.
Libertação
Que eu saia de mim
e corte com ânsia todos os mares
e chegue a todas as praias sem fadiga.
Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas, no lodo
e no tumulto, nos lagos e na orla das enseadas.
Que eu saia de mim
e fique nos caminhos o meu hálito.
Que todos os clamores e todos os risos
e também todos os silêncios repercutam em minha orelha
e a minha língua se torne clara e ardente como o sol
e todos me entendam, os meninos, os pobres.
Que eu saia de mim
e, com a soma de minhas libertações
e a massa de minhas vitórias sobre mim,
me volte leve e humana para as angústias e os problemas dos homens.
Que eu saia de mim
e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim
mas sempre diante do universo
meu espírito agnóstico seja um olho comovido.
Que eu saia para sempre de mim
e seja uma nova criatura, em que as coisas e os seres fiquem grudados.
Que eu não volte para mim,
que para sempre me perca
e da criatura salva
todos sejam impregnados.
Poema do fogo ardente
Hastes estalam,
ramos e troncos se acabam nas chamas vandálicas.
É a queimada,
são árvores mortas desaparecendo
no meio da beleza perversa
das línguas vermelhas do fogo.
Ossos estalam,
Músculos e vísceras se acabam nas labaredas cínicas.
É o castigo incandescente,
são heróis e santos,
cristãos e bruxos,
mártires moços e velhos paladinos,
é Joana d'Arc, Girolamo Bruno, Savonarola,
que ardem na fogueira.
Não posso ver chamas assim altas:
me lembro logo dos condenados
que tiveram os corpos vivos transformados
em lanternas loucas, disformes.
Não são árvores, não, que ardem na queimada:
são crânios, peles, entranhas,
seiva escarlate a fumegar...
Em lugar de árvores, o que vejo são homens,
são todo os namorados da liberdade
acabando-se num brilho mau.
E esta visão bárbara
derrama no meu ser
o medo atrevido
de uma nova noite medieval.
Campo-santo
Passei a manhã na cidade dos mortos
da minha cidade.
À beira da tumba dos meus mortos,
plantando, ali, com gratidão, a semente
da qual, na primavera, sairá
um cacho novo, uma flor esguia.
Passeando, depois, entre mausoléus faustosos e lápides humildes
olhando a terra remexida das tumbas frescas,
a água triste nos jarros abandonada,
Passei a manhã na cidade dos mortos e trouxe de lá uma homenagem maior
à vida.
Parece que meus pés andaram sugando seivas estranhas
naquelas terras em que os mortos se misturaram.
Haurindo apelos cáusticos das ossadas frias.
Seivas, apelos
que me subiram às células, às veias,
aos ramos vivos dos meus braços,
a fronde agitada dos meus pensamentos.
Parece que, pelas raízes móveis dos meus pés,
ganhei energias possantes
e, voltando, saudei as cachoeiras do caminho,
as avencas e os cedros.
Saudei a luta, o sol.
Mas eis que, nessa plena integração nos seres e nas cousas,
nessa ânsia de viver e de amar em todos os minutos,
começou a pulsar minha apóstrofe rebelada
contra tudo que não deixa a vida breve
ser uma deliciosa caminhada.
Jurerê-Mirim
Quando me deito nos teus canteiros mornos,
não me basta o pensamento quase bíblico
de que sou feita do teu barro.
Meu corpo é o teu imenso corpo de ilha
e minha alma invade as tuas entranhas,
participando da tua febre criadora.
Meu sangue é o rasgão líquido dos teus rios,
a linfa nervosa das tuas cachoeiras,
a água matuta das tuas lagoas.
Plantas rebentam de tuas carnes, de meus chãos,
e sinto-me carregada da tua seiva e do teu pólen.
Quando me levanto, a sacudir a tua poeira morena
e ungida com o perfume de vinte lírios novos,
e mulher e terra deixam de ser uma unidade pagã,
ainda sinto me prender e me abraçar
e envolver, implacável, a tua existência cósmica
o abraço varonil do mar.
O poema que eu não escrevi
Eu poderia escrever, hoje, um poema tumultuoso:
cheio dos meus sentidos, dos meus entusiasmos,
rescendendo a raízes e musgos,
lembrando resinas e brotos,
águas de rio e brilhos de sol.
Mas, quando eu voltava, hoje, para casa,
depois de um banho bugre
à beira das pedras e das areias possuídas pelo sol da manhã,
trazendo bagas do rio a brilhar nos anéis dos cabelos,
descalça como, outrora, vovó cunhã;
quando eu voltava,
pronta para escrever meu poema
ao dia, à terra e à vida,
encontrei aquele rebento mirrado da raça dos párias.
Aquela pequena criatura humana,
sem beleza e sem amor, apagada e faminta.
No meu poema de hoje correria, decerto,
a mais viva alegria de viver, animal e psíquica.
Mas encontrei no caminho a fraqueza, a miséria e a dor:
Onde está, agora, o gosto de cantar
meu canto panteísta, minha volúpia sã,
o gosto que eu trazia nos lábios e nos dedos
esta manhã?
Em verdade te digo
Em verdade te digo que não foi naquela hora
que te pertenci:
quando me tomaste nos teus braços poderosos
e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.
Em verdade te digo que não foi naquela hora,
mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo
de rebento inquieto deste século
e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.
Quando conheceste as minhas derrotas
e disseste que eram triunfos.
Quando viste pulsar meu coração nu
e o festejaste.
Quando soubeste que nem sempre
os teus pensamentos são os meus pensamentos
nem os teus caminhos são os meus caminhos.
Mas o amor brilhou como nunca em tua face
e me surpreendeste com a cascata de palavras de que eu tinha sede
desde a minha primeira hora consciente.
Foi quando te pertenci.
Quero ajudar
Quero ajudar a construir o mundo futuro
e colocar a minha pedra
no lugar exato e na hora certa:
Quero conter a pressa de ajudar,
deter os passos vãos e as mãos sôfregas,
ordenar minhas paixões de desajustes,
ser vigilante, compreensiva,tenaz.
Deixar no grandioso edifício a minha pedra
com a mão segura para que ela não vacile
e role nos espaços, tombando com um ruído soturno,
feita escombro, antes de ser coluna..
Quero deixar segura a minha pedra
Altos frisos a revestirão,
esculpidos por sábias mãos alheias.
Mas, pequena e anônima, direita e firme,
ela estará lá dentro ajudando.
Quero ajudar a construir o mundo futuro,
o mundo sem fascismo e sem miséria,
luminoso, rasgado, justo.
Quero permanecer aberta
e colocar a minha pedra
no lugar exato e na hora certa.