Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

... Aos espanhóis confinantes, de Othon d’Eça. Florianópolis: FCC: Ed. da UFSC, 1992. ... Aos Espanhóis ConfinantesOthon Gama d'Eça

Apresentação

Reunindo neste volume as “Notas de um Diário” de Othon d’Eça, os amigos de Adolfo Konder não só prestam uma homenagem ao intrépido presidente como, ainda, revelam à Nação, através da prosa sugestiva de um seu companheiro de “bandeira”, a obra de brasilidade mais empolgante desses últimos anos de República.

Mas nenhum comentário aditam eles a estas páginas onde vibra, impetuosa e sonora, a voz bárbara da terra brasileira, e arde, viva e alta, a chama clara da epopeia.

Florianópolis, 28/9/1929

I

Passo Bormann, 24/4/29

O dia amanheceu azul e doirado como um velho prato de faiança holandesa. Há uma doce tranquilidade em tudo, até mesmo nas bandeiras, que parecem repousar das agitações de ontem. Desejaria ficar hoje em Passo Bormann, descansando, embebendo-me de luz e de esplendidez, nalgum rancho à beira de um arroio claro e sussurrante. Mas temos que partir dentro de alguns momentos para Goio-En. Já o presidente anda lá embaixo a despertar os dorminhocos, com o seu habitual bom humor.

— Quem gosta de esquentar pelegos não viaja com o Dr. Adolfo – diz, no quarto, ao lado, uma voz que eu não conheço.

Passo Bormann, sob o rumor farfalhante das bandeiras, com arcos de flores e folhagens sombreando a sua rua principal, um céu azul e muito luminoso, e, em torno, uma bela mataria a que o outono já vai tocando de manchas amarelas – Passo Bormann me lembrou um grande quadro à espátula, à maneira de Zuloaga, batido a tintas vivas e brilhantes. Dominada por um ar festivo, sonorizada pela banda musical tocando num coreto embandeirado, cheia de um povo alegre e em movimento, a vilazinha tinha ontem uma forte expressão de vida, um poderoso prestígio de beleza que, por ser original e próprio, fascinava e prendia. Principalmente para mim, homem do litoral, Passo Bormann (como Xanxerê, Catanduvas ou qualquer outra povoação do planalto) terá sempre um sabor novo de uvaia, de resina de pinheiro e de chimarrão. Habituei-me a esses vilarejos cor de barro, tranquilos e românticos, aninhados em torno de uma velha capela, e cujas casas entre folhagens e sobre um chão batido, onde por vezes há café secando ao sol, cheiram a fumaça de mangue e a peixe salgado. Meus olhos estão impregnados da doçura doméstica dessas tiras de casuchas sobre tiras alvas de praias, que vivem apenas os momentos emocionais em que as redes, franjadas de algas, escorrendo água, puxadas por homens trigueiros que falam cantando, arrastam as multidões de peixes que faíscam ao sol como barras vivas de prata. De sorte que Passo Bormann, com as suas casas espalhadas pelas lombas das coxilhas; a sua paisagem larga, vigorosa, enchendo horizontes dilatados; toda esta expressão petulante de saúde e força que vem da sua gente, dos seus ares claros e lavados, das suas árvores ramalhudas e grandes, dava-me umas estranhas impressões de vitalidade e rudeza, que se feriam, vibravam e retiniam como as soalhas metálicas dos pandeiros.

9 horas, Goio-En. Pensei que fosse algum vilarejo novo, com as suas casas emergindo de coivaras ou dependuradas nas barrancas, a se espelharem todo o dia nas águas verdes do Uruguai. Apenas a casucha do Posto Fiscal, num socalco, quase afogada pelos tufos altos de ervas bravas. Mas tudo é belo. E isso é já alguma cousa. Aliás, desde Passo Bormann que o panorama se desnuda numa revelação maravilhosa de belezas. A estrada é sempre em descida. Há um trecho, porém, beirando umas rochas a pique, cilíndricas e polidas como se fossem colunas de um templo indígena; e umas pedras de feitios esquisitos, que pareciam crescer dentro da neblina fumarenta que apagava a paisagem em torno. As lanchas à gasolina – três, sendo que uma é esguia como um peixe-espada – estão encalhadas no cascalho barulhento, pacientemente à espera. Sob o sol que acende luminárias na ponta das folhas e nas macegas orvalhadas, o rio desliza numa doce preguiça de águas satisfeitas. E da outra margem, dentre a mata crespa e iluminada, vem o chiar resinoso de cigarras retardatárias. Quando as cigarras emudecem, do lado em que nos encontramos, começam os chopins a sua grulhada jovial. Será que eles estão em desafio?

10 horas. Chegaram os automóveis que se haviam demorado. O presidente Konder, que olhava continuamente, impacientemente, o relógio do pulso, ficou mais satisfeito. É que amanhã, 25, devemos estar em Iraí. E há muito rio a beber, ainda! Vou deixar estas minhas notas para ir à merenda: sanduíches, revirado de galinha e um rolo de matambre, divinos. Todos falam. Tanto barulho acabou por espantar os chopins. Também as cigarras se calaram. Só um remoto cincerro, não sei onde, pinga uns sons abafados na luz.

Enfim, as lanchas começaram a girar as suas hélices de metal amarelo. A banda musical do 8.º de Infantaria, de Passo Fundo, enche a solidão de notas vibrantes e marciais. A “bandeira” iniciou a sua “entrada” no sertão bruto, sob um signo propício. Vamos, é certo, para o desconhecido, rolando rio abaixo. De resto, estamos todos alegres. É que temos um guia amigo e destemeroso, e nos anima uma esperança forte como um pinheiro e uma fé sadia como um fruto maduro. Há perigos? Há desconfortos? Há escolhos a vencer? Que importa?

A única exclamação, o grito digno de nós, o que já andou, há 730 anos, na boca de Ricardo Coração de Leão, nas praias de Jaffa, é este: — Avante! avante! Deus o quer!

O timoneiro – um caboclo destorcido que se chama Areias – avisou-nos de que dentro de alguns instantes vamos passar a primeira corredeira. E disse um nome. Mas a mim não me importa o nome. Basta-me a corredeira. Continuo enlevado pela paisagem fluvial que nos ladeia: barrancas altas onde, de longe em longe, espiando as balsas lentas que descem para São Thomé, na Argentina, surgem telhados escuros, ou algum fio de fumo assinala uma tênue mancha humana naquelas matarias vastas e desertas. Às vezes, também, picada de fulgurações, uma praia cinzenta, áspera de seixos ou, então, a foz clara e verde de um afluente que se joga às grandes águas, espumarento e jovial. Chegamos às corredeiras. O motor parou. Há uma trepidação incômoda na lancha, um arrastar de casco que nos magoa os ouvidos. A pequena embarcação, porém, batida pela correnteza que reflui, represada no costado, e espuma, e escachoa, e atira grandes borrifos que nos molham, mete uma borda n’água, enviesa, e lá se vai arrastada como um tronco. Mas o Areias e o companheiro – que antes manobravam com uma grande vara de arrimo – lestos e corajosos pulam n’água e, à força de ombros, num retesamento de músculos que os verga entumesce-lhes as veias do pescoço e dilata-lhes os olhos, reconduzem a lanchinha ao minúsculo canal entre as pedras; e antes das “águas fundas”, com uma agilidade de felinos, sobem à embarcação e, novamente, cada qual retorna aos seus postos, encharcados e satisfeitos da proeza.

Experimento uma profunda sensação de alívio. À popa, segurando a cana do leme e vigiando o motor, o Areias conta um caso, com infinita naturalidade:

— Era uma família de negros. Quando a canoa passou na corredeira virou. E morreram todos, chupados por aquelas águas que redemoinham em funil. Até dizem que eles aparecem em noites de neblina, todos nus e de archotes acesos.

— Feia história, hein! murmurou o desembargador José Boiteux. – Feia história! – murmurei eu, acompanhando o voo raso de dois biguás, que acabaram por pousar numa ponta de pau.

O presidente, na previsão de que a nossa lanchinha tivesse de auxiliar as outras duas que vinham atrás, mandou voltar às proximidades da corredeira. Foi só, então, que pudemos avaliar, como espectadores, o perigo vencido.

Conheci hoje – e com que emoção! – a verdade de um velho ditado muito corrente no Amazonas e que eu li não me lembro em que livro de Gastão Cruls: “Todos os cachoeristas vão para o céu, pois eles já passaram pelo purgatório”. Verdadeiramente é preciso muita bravura, muito sangue-frio e muita força para vencer o tumulto, a correnteza dessas águas vertiginosas que se encrespam, fremem, giram sobre si e espumejam de encontro a lajes pontiagudas, arrastando a embarcação num ímpeto de enchente. Uma falsa manobra, um descuido e é o naufrágio com todas as suas consequências dolorosas e tristes.

Graças a Deus, navegamos agora em águas fundas. Mas, até Mondaí, teremos ainda várias corredeiras, cada qual pior.

O presidente resolveu visitar Caxambu, sede de uma colônia e onde há uma grande serraria, de Jerônimo Vargas. Vai-se lá a cavalo. Não tenho muita vontade de ir a Caxambu. Prefiro ficar para um chimarrão e ouvir o Areias contar mais umas histórias.

19 horas. Tudo foi aquela demora em Caxambu. Continuamos a viajar tarde, sem nenhuma probabilidade de chegarmos à Ilha Redonda, antes da noite. E agora estamos numa praia deserta, como Robisons Crusoés, sem barracas, sem churrasco, condenados a passar toda uma longa noite de frio em torno de uma fogueira! Começo a desconfiar da coragem do Areias. Há um luar límpido, fazendo o Uruguai lustroso e clareando desvãos. Não vejo o motivo por que ele não nos conduz a um bom hotel, com lumes civilizados e um jantarzinho fumegante e cheiroso. Fui forçado a interromper duas vezes estas minhas notas. A primeira, por falta de luz e a segunda para armar a minha cama de campanha na popa da lanchinha e chupar alguns roletos de cana – único alimento que encontramos nestas paragens solitárias. Interessante é que todos estão conformados, inclusive o presidente, que já está a arrumar o seu pouso. Em torno da fogueira, e mesmo mais afastados, junto a um mato rasteiro e denso, foram estendidos pelegos para camas. Felizmente o tempo está magnífico.

20 horas. Resolvi deitar-me. Fiz um travesseiro com o saco de viagem e cobri-me com o meu sobretudo. Mas o frio é rijo, e não sei o que será pela madrugada. Tenho por companheiros o Arthur Costa – que arranjou um leito sobre caixas de gasolina –, e o Selistre Campos – que armou uma cama de lona e transformou botas altas de montar em travesseiros. Na outra lancha, o Cid Gonzaga, beatificamente, como um justo, ronca sem cessar e, o desembargador Boiteux conta, não sei a quem, a queda do gabinete Zacarias.

23 horas. Despertei com um grande alarido, um estridente alvoroço: a lancha ao lado estava submergindo, com a água a entrar por todos os lados do casco. Reconheci o vozeirão do Cid, praguejando com solenidade. Sinto uma fome louca. E readormeço, ouvindo alguém falar em revólver e jacarés, pensando num revirado de galinha e num bom copo de vinho crioulo.

5h30min da madrugada. Torno a despertar. O desembargador José Boiteux, que fora forçado a abandonar a lancha, junto ao fogo continua os episódios da política do Império, citando fatos com detalhes miúdos, nomes e datas escrupulosamente exatos. Uma claridade de vidro fosco faz destacar vultos deitados pelo chão, esmaecendo a chama alta da fogueira. Mas, quase sem transição, inopinadamente, uma lenta, úmida neblina apaga todos os contornos, abafando vozes e rumores, dificultando até o acesso ao rio.

II

25/4/29

“Cerração baixa, sol que racha” é a sabedoria do povo. Ainda nos valha isso, pior seria se chovesse. Andamos na bruma embaciada, prudentemente, à procura do rio, cada qual com a sua toalha e a sua saboneteira, porque não se enxerga mais do que dois ou três passos à frente do nariz. Nunca vi neblina tão espessa e tão úmida! Deve ser assim o fog londrino. Deixei um instante este livro de notas junto à moita que me serve de divã. Encontrei-o orvalhado! O presidente já deixou a cama, queixando-se do vozeirão do Cid – a trombeta de Jericó que toda a madrugada, quando o desembargador Boiteux parava a sua dissertação histórica sobre a política do Império – ou trasladava, implacável, não consentindo a ninguém dormir.

São seis horas, e ainda uma larga cortina de névoa esconde rio e céu, torna muito maior este nosso isolamento. Sinto frio e fome. Nem ao menos temos um café quentinho, com bastante açúcar! Só chimarrão e assim mesmo muito medido, muito bem racionado!! E dizer-se que a lancha da nossa bagagem e que transporta os mantimentos, espera-nos desde ontem, em Ilha Redonda! Só num caixote eu me lembro de haver visto um grande queijo, presunto, salsichas e um pão de ló. Até em pensar nesse caixote me enterneço. O melhor é deixar estas notas e bater a arranjar uns roletos de cana, que tem sido a nossa alimentação nesta praia solitária.

8 horas. O sol começou a esfarrapar a neblina. Já se veem ramos de árvores e, ao fundo, como uma turquesa entre algodão, um retalho de céu. O presidente já embarcou e o Areias assumiu o seu posto de “almirante fluvial”.

— Que beleza!

Os ingleses diriam: glorious day! Dia glorioso! O Uruguai rebrilha como um grande manto azul, picado de vidrilhos de prata! Plumas de neblina, mais alvas que arminhos, flutuam ainda sobre o rio, esgarçam-se pelas ramarias que as trepadeiras floriram e pairam por cima das folhagens como cocares heráldicos! E mais longe, à nossa frente, onde as águas se dividem em dois grandes braços que faíscam, emerge a mancha verde de uma ilha, meio afogada, ainda, entre a névoa transparente. Acomodei-me o melhor possível no meu banco, e como escorrega pelo rio uma aragem fria, abotoei a gola do meu casaco. Mesmo, para estas notas, escritas minuto a minuto, é necessária uma posição confortável. E fico a ouvir o desembargador Boiteux falar sobre a data: 25 de abril de 1777:

— O capitão Cipriano Cardozo de Barros Leme, numa emboscada que fez, destroça os castelhanos que haviam desembarcado em Vila Nova.

— Numa emboscada! – comento eu para o Arthur Costa. – Preferiria que fosse lealmente, em campo raso.

Mas o desembargador Boiteux não me escutou.

— 1864 – Toma posse do governo da província o Dr. Alexandre Rodrigues da Silva Chaves.

Meio adormentado, através das pálpebras semicerradas, acompanho o voo de um grande pássaro preto, de longo bico chato. Mas chegamos à corredeira – uma das mais perigosas, informou o Areias. Por isso seria arriscado vará-la ontem à noite. É um largo lençol de águas baixas, tumultuosas e espumejantes, que vão e voltam, correm em direção a uma das margens e, de repente, se torcem e se precipitam num arco de círculo rebrilhante. De novo o Areias e o companheiro se jogam n’água; e de novo, a poder de músculos, a embarcação é desviada da cachoeira, empurrada para o canal, agora com os motores a rufarem, destramente conduzida para fora do fervedoiro. Grandes bolhas de espuma correm entre o costado da lanchinha, que parou para vigiar as outras e socorrê-las, se for preciso. O presidente não quer que se deixe companheiros à mercê da sorte. É um traço nobilante do seu caráter, esse espírito de solidariedade que se manifesta em todos os momentos oportunos.

Continuamos a navegar. O presidente visitará São Carlos, e de lá seguiremos para a Ilha Redonda, de automóvel. Creio que em São Carlos deve haver alguma cousa para se comer! Verdadeiramente, a fome é uma cousa muito séria!

O Arthur Costa examina, pela centésima vez, a carta do Estado e assinala acidentes mínimos de viagem. O sol, agora, perdulariamente, derrama o oiro de sua luz por sobre o Uruguai, barrando de prata polida os longes trêmulos, debruando de claridade os contornos das folhagens e acendendo cintilações nas poças d’água, que pontilham o dorso escuro das lajes. E do meio do mato, perdido na luminosidade magnífica, o canto longínquo de um galo vibra um momento e fica para trás, fundido na distância.

Olhando vagamente não sei para onde, o Areias canta em voz baixa uma canção qualquer. Mas eu não a escuto. O meu pensamento acompanha, naquele instante, uns episódios da revolução, que o José Maia vai contando ao presidente. Através da bruma leve em que ele mergulha, vejo as rudes figuras evocadas passarem e repassarem, de espadas nuas e um brilho quente nos olhos, no tumulto glorioso das refregas. E penso – de mim para mim – na beleza daquele heroísmo, que bem merecia um artista de gênio para fixar-lhe o instante magnífico. Como levado por uma doce força interior, vinda do coração, insensivelmente me volto para o Areias! O perfil agreste, incisivo, do valente caboclo se destaca na luz, como um baixo relevo bárbaro. O seu olhar penetrante, igual à ponta de um dardo, perscruta as águas insidiosas, fura os longes franjados de sol que reluzem, trêmulos e fervilhantes, como prata derretida. Calou-se, vivendo para a sua missão, desde que começaram a aparecer, em grandes manchas flutuantes, as espumas denunciadoras das corredeiras. O Areias também merecia um artista de gênio para o seu heroísmo obscuro. O Areias e os seus companheiros. Chegamos a São Carlos. A lanchinha encostou junto à balsa cheia de gente, afogando na areia encharcada a proa esguia. As outras fundearam lado a lado. Foguetes rabejam para os céus arqueados, pingam na grande luz uns fogos pálidos e estoiram, sacudindo a mataria, reboando numa repercussão estrondejante e arrastada de canhoneio. E uma charanga de amadores, onde há um rabecão cavernoso, enche os claros dos estampidos com as notas doces e incertas de um dobrado festivo. Um povo de vestes domingueiras aclama pelo caminho íngreme e enfeitado de bandeiras, o presidente que passa. Há uma grande alegria, uma lúcida impressão de regozijo, que parece tornar mais luminosa a paisagem circundante. Rumores ásperos de passos raspam a claridade imóvel, que a charanga sonoriza e agora os foguetes não perturbam. Uns minutos mais e cada qual toma o seu lugar nos autos e caminhões que nos aguardam desde cedo. A meu lado, com aquela maleta que tem sido a sua maior ternura em toda a viagem, o Haroldo Pederneiras indaga do chofer se em São Carlos nos espera algum cafezinho reconfortante. É um rapaz robusto, de olhos azuis e modos lentos. Sem voltar a cabeça, o chofer fala de um café com mistura e dum churrasco em Palmitos. No banco em frente estalam palmas alegres e o vozeirão do Cid Gonzaga estruge e reboa satisfeito.

Junto a uma igreja em construção, cercado pelos diretores da Companhia Colonizadora Sul-Brasil e por inúmeros colonos e suas famílias, o presidente agradece uma saudação de boas-vindas. São ensinamentos cívicos; apelos à energia dos colonos para o arroteio da gleba feracíssima. E, por sobre esses belos motivos, como um pálio aberto, a exaltação eternecida da terra brasileira, o amor pelo Brasil. Perto de mim, um grande velho escuta de olhos imóveis, as mãos pousadas no cabo do guarda-sol de chita, a carótida latejando doidamente. Um pouco adiante, de sobrecasaca e um ar de pastor protestante, um alemão alto, largo de ombros como uma espada goda, devora com o olhar as palavras que o presidente vai proferindo com entusiasmo. Um cheiro de húmus e de mato orvalhado nos envolve como uma carícia da terra. E por sobre as cercas e, mais longe, nos galhos altos dos pinheiros, os chopins cantam na glória da manhã que se estende. Quando o presidente terminou o seu discurso e o rumor das palmas se fundiu na luz do sol em torno, o alemão alto e de ombros de espada goda, acenou o seu chapéu e começou a falar na sua velha língua. Era uma saudação encachoeirada, trepidante, batida de interjeições e de gestos imensos de tribuno. E não sei porque, vieram-me à lembrança os convencionais da Revolução Francesa e aqueles idealistas doutrinários de Máximo Gorki! Retomamos os nossos lugares no caminhão. Porém o chofer, talvez por ser um rapaz de modos lentos, não tem pressa. O caminhão desliza sem desejos de velocidade, como se estivesse a fazer um giro vadio e sem cuidados pelas estradas esplêndidas. Verdade, que já não nos tonteia a fome nem os nossos olhos se fatigam da paisagem. Reconfortamos a alma com um café e bolos de farinha verdadeiramente seráficos. Mas temos ainda, antes da Ilha Redonda, duas colônias a visitar: Palmitos e Passarinho. E, após, Iraí. Como será Iraí?

Não sei desde quando o pastor luterano, sob um toldo de cará e num púlpito de rachões de pinho, está a pregar umas coisas em alemão! Penso que há muito tempo, pois, quando cheguei, vi logo uma expressão de fadiga nos olhos do Bley Netto e um ar mole e alheio na atitude dos ouvintes. Só o presidente escuta intrepidamente, com uma heroicidade evangélica. Enquanto o missionário ensina e prega aquelas doutrinas que se contradizem com rancor, recordo-me de um conto dinamarquês que eu li numa tradução cheia de erros tipográficos, num jornalzinho do interior de Minas Gerais. Era também um homem assim, afogado na intransigência do seu credo. Velho, de mais de séculos, ouvira o diabo desafiar as estrelas em noites sem lua, numa viela de aldeia medieval, tocando numa guitarra feita da tíbia de um bêbado e do crânio de um justo. E porque surpreendera o segredo das coisas, podia ver, através de um corpo, a alma que lá dentro se escondia. Mas, certa manhã, à beira de um fjord triste, quando pregava ao povo de uma aldeia de pescadores, descobriu, entre aquela gente, um homem cuja alma não despertara ao clangor luminoso da sua palavra. E se calou para sempre. Não haverá por aqui – murmurei eu – alguma alma benemérita, bem encolhidinha, bem adormecida entre ossos e vísceras amigas? O pastor, finalmente, cerrou a sua boca, que há mais de uma hora repetia, de envolta com palavras de saudação, as abjurações do frade rebelde que sujou de tinta a cabeça do diabo. E um novo espetáculo espalhou os circunstantes, retardou de alguns minutos a viagem para a Ilha Redonda e me fez prudentemente volver a cabeça, disfarçar, olhar uns escolares loiros que marchavam cantando o hino nacional, sob o rumor farfalhante de bandeirinhas de papel de seda. É que se abrira um sorvedoiro de espórtulas: um moirão de cedro onde cada qual devia pregar um cravo de cobre que valia dinheiro... Para quê?

— Deve ser para algum templo luterano.

Passarinho, como Palmitos, como São Carlos, são colmeias ativas, onde uma gente próvida e sadia vai construindo o seu favo de oiro. Vale a pena vê-las. Alimentam-nas uma gleba feraz; orientam-nas espíritos de elite, com a consciência lúcida e nítida dos destinos humanos.

— Bendita sejas tu, terra de Chapecó, que fazes germinar esses belos apiários!

Decididamente o chofer do nosso caminhão não tem o sentido do tempo nem da velocidade!

— Era uma vez um homem que possuía um cágado...

Parece que nos conduz a um passeio preguiçoso, através de árvores imóveis e de vivendas rurais, em cujos terreiros secam forros de cobertores e roupas de crianças, ou espera, ruminando com lentidão, alguma vaca leiteira. Certo, a beleza caleidoscópica do panorama fascina, faz esquecer todas as fealdades da vida; e eu gostaria de me deixar embeber de tanta luz, tanto azul e tanto perfume. Porém, cumpre fazer duas etapas: Ilha Redonda e Iraí; e o presidente Konder deve estar ainda hoje em Águas do Mel, onde já o espera o presidente Getúlio Vargas. Sinto um palpitante, incontido desejo de vencer todas as distâncias, de encurtar todos os caminhos. Preferiria, francamente, que o caminhão usasse, ao invés de um velho motor Ford, as botas de sete léguas do Sr. Marquês de Carabás...

Meio-dia! O caminhão, num esforço em que rangem todos os seus freios e engrenagens, parou num terreiro entre laranjeiras, à frente de uma grande casa em cuja varanda se enroscam trepadeiras e jasmineiros, pendem balões japoneses de papel. É a Ilha Redonda. Estou, enfim, num hotel onde há uma gente amável e nos espera um banquete.

Retomei estas minhas notas, após um lento, delicioso mergulho termal que me fez pensar no doce epicurismo dos romanos e nos seus banhos confortáveis. Os olhos me pesam, sonolentos. A minha ambição, neste momento, resume-se num prato de lentilhas e numa enxerga. Também, naquela praia deserta e desabrigada, quem poderia dormir com aquele barulho infernal, aquele naufrágio que despertava apetites oratórios, aquele frio e esta fome, a que uma xícara de café e alguns bolos, em São Carlos, açularam diabolicamente?

Se não fosse hábito meu agradecer ao céu o pão de cada dia, após este banquete (em que trocaria sem remorsos, e se o tivesse, o meu direito de primogênito), certo as minhas mãos se juntariam em ato de oração. Assinalo-o, neste “diário”, como um presente do Alto, um maná com temperos e vinho branco. Pensando nele, já com as pálpebras quase cerradas, arrependi-me de haver desejado, ainda há pouco, apenas um prato de lentilhas e uma enxerga! E se Deus me houvesse castigado? Restar-me-ia somente a delícia incompleta de um colchão macio e um travesseiro que não é saco de viagem. O presidente já partiu para Iraí. Creio que são quatorze horas. Antes do banquete, ao cruzar comigo os laranjais que afogam em sombra o balneário, avisou-me de que eu iria com ele a Iraí, mais o Arthur Costa, o desembargador Boiteux, o Manoel e o José Maia. Não sei se, nesse momento, meus olhos lhe disseram que eu desejaria ficar preguiçando na delícia luminosa e macia que envolvia o hotel, cessados aqueles rumores de recepção festiva. O fato é que, na hora de prosseguir a viagem para Águas do Mel, ao descer as escadas do dormitório, o presidente me falou que eu poderia ficar, se quisesse, com os outros companheiros, que já combinavam talhar um pôquer alegre. Fiquei. Vou, enfim, pôr em ordem as minhas notas últimas, desafivelar as perneiras, e, depois, deitar-me um pouco e atravessar, na barquinha ondulante do sono, para o outro lado da vida. Abro o meu almanaque de bolso e corro à página de abril: 25, quinta-feira, patrocínio de São José. Faz hoje sete dias que os meus olhos não veem um retalho de mar, uma vela boiando junto à sombra azul do Cambirela, esguia e branca como um risco de giz! Uma semana, apenas. E quanta cousa se passou nesses sete dias! Havíamos subido serras duras e furado túneis escuros, almoçando em Mafra e jantando em Valões; descido à noite, num vagão leito, o curso tortuoso do Rio do Peixe; saltado em estações apinhadas de povo e onde o presidente ouvia discursos, abraçava um mundo de gente, escutava o hino nacional e voltava à sua cabine para guardar mais um ramo de flores; havíamos corrido quatro dias sobre pneumáticos ingleses e americanos, através de serranias ásperas, campos vastos, lajeados cascalhudos e pinheirais rumorosos, vindos de Cruzeiro do Sul e Goio-En, amanhecendo num povoado e vendo o sol baixar em outro, fazendo e desfazendo quatorze vezes os sacos de viagens; tínhamos rolado Uruguai abaixo, varando corredeiras tumultuosas e espumejantes; e dormido numa praia deserta onde se alastrava o pó-de-mico – sem barraca, sem cobertas e tendo apenas uns roletos de cana para iludir a fome! E havíamos estado em cinco cidades, oito vilas, doze povoados, seis lugarejos e nove colônias; e contemplado, vibrando de emoção patriótica, em Irani, Xanxerê, Passo Bormann, cavaleiros às centenas, erguidos nos estribos dos seus cavalos, acenando alegremente os largos sombreros; e visto todo um povo, como nas eras históricas, que deixava as suas fazendas, os seus ranchos, a sua lida nos campos ou nos ervais, e corria às estradas, às povoações, às vilas cheias de folhagens, de arcos e de bandeiras, para aclamar o presidente que passava no rumo da fronteira! Eram sem conta os discursos ouvidos: e às dezenas os churrascos e banquetes devorados! E agora nos encontramos em Ilha Redonda, após uma semana desabalada, tomando água mineral e com dois dedos a mais de dispepsia. E dizer-se que ainda temos Mondaí e para chegar a Barracão – vinte e nove léguas de picada!

— Como é vasto este mundo. Santo Deus!

Ilha Redonda – que aliás não fica na ilha do seu nome – é um lugar de sombra e de repouso e em que as tristezas se espalham, adelgaçam-se e desaparecem. Se houvesse neste hotel um velho de imensas barbas esvoaçantes, grossa penca de chaves na cintura e uma túnica vaporosa ao invés de um paletó banal de brim cinzento; se em torno andassem sons de harpas substituindo o estrondejante trombone da orquestra, então seria perfeita a ilusão do Paraíso e das suas delícias. O próprio Mafoma – exigente glutão que ele fora – se conhecesse a Ilha Redonda após um dia de emoções trepidantes, de cansaços longos, de fome islâmica, de um camelo tão lento como o nosso caminhão e, ainda, de uma noite maldormida às margens de um rio deserto, certamente, com requintada volúpia e deliciosa perspicácia, colocaria o Grande Hotel entre as palmeiras e as huris do Sétimo Céu! Verdade das verdades, Cruzeiro e Chapecó têm sido um veio rico de surpresas agradáveis! Primeiro Catanduvas e a sua paisagem de aquarela; e Xanxerê e aquela topografia pitoresca que a embeleza; e Passo dos Índios cercada de lavouras e de pinheiros; e Passo Bormann com os seus ervais, os longes azuis, a sua expressão tranquila e repousada. Depois, as colônias à beira do Uruguai ubérrimo como o Nilo: Caxambu, São Carlos, Palmitos, Passarinho abrindo já, como a oferenda da terra núbile ao grande sol fecundador e bom, os primeiros frutos sápidos. E hoje, Ilha Redonda como um pomar, com o seu hotel, as suas águas milagrosas que saram as impurezas do corpo, bela e doce, toda envolta no perfume das laranjeiras e no voo inquieto das últimas andorinhas.

III

26/4/29

Dormi como um justo e despertei alegre como um pássaro. Abro a janela do meu quarto e olho o relógio. São seis horas mais dez minutos. Uma neblina leve, macia de pelúcia, flutua ainda por sobre as árvores como echarpe de tule branco. Num terreiro amplo, varrido, onde crescem varas esguias de pessegueiros e macieiras, um bando de canários acaba de pousar, numa revoada cinzenta e trêmula. E adiante, para além do balneário, há um rumor rechinante de roldanas. Às oito horas bateremos para Passarinho, a esperar o presidente já de volta de Iraí. Por que me deixei ficar em Ilha Redonda?

Convencemos o Cid Gonzaga e o Bley Netto que deveriam trepar para o outro caminhão, que o nosso, além de vagaroso, estava com os motores esfalfados. Mas de nada nos serviu aquele notável alívio de vinte arrobas. O caminhão nascera para fazer giros vagabundos, sem pressas e cuidados, através daquelas terras opulentas. O melhor é deixá-lo ir, à mercê do chofer, um bom rapaz sanguíneo, sem nervos e de modos graves e lentos.

Duas vezes descemos do caminhão para ajudá-lo, todo arfante nas suas engrenagens reumáticas, a subir um topezinho que trepava entre alambrados e samambaias ásperas e rijas. E já me preparava para reclamar pela décima vez, quando o chofer – excelente moço – nos avisou que havíamos chegado a Passarinho.

11 horas da manhã. Estou aqui sentado num velho tronco de cedro, a olhar o Uruguai, todo reluzindo de sol e de brilhos relampejantes, há mais de uma hora. Estou só. Os companheiros andam lá em cima, no alto de uma colina, vendo umas obras em construção e gastando inutilmente munição de revólver. Chega a ser mania, tanto tiro! Ao lado, do alto de um barranco em rampa vertiginosa, dois homens rolam e atiram ao rio grandes troncos serrados, que resvalam num rumor pesado, mergulham, levantando longos esguichos d’água. Depois os troncos flutuam, junto de outros; e correm pela superfície luminosa do Uruguai grandes arrepios em arco, que fazem oscilar os paus descendo à mercê da correnteza e morrem nas fulgurações prateadas da outra margem. É o trabalho da jangada, que a cheia levará para São Thomé, numa viagem lenta de vários dias. Inspeciono com o meu binóculo os longes afogados em luz, pontilhados de manchas de ilhas, de pontas verdejantes de barrancos, que parecem se erguer acima da linha espelhante das águas. Esperamos as lanchas, tanto as que partiram antes de nós de Ilha Redonda como a que deve vir de Águas do Mel – a “Adolfo Konder” –, conduzindo o presidente. Teria o desembargador Boiteux tomado os apontamentos que eu lhe pedi?

As nossas lanchas já chegaram, encalhando a proa na lama escura. Estamos todos ansiosos. O Wenceslau Breves – que nós aclamamos chefe da expedição até a chegada do presidente – acaba de descobrir, na curva distante, dois vultos que parecem duas embarcações. Todos os olhos se fixam naqueles pontos cinzentos que agora transpuseram o dorso verde-desmaiado de uma ilha à direita e crescem para nós. Mais uma hora de expectativa e duas lanchas encostam, entre a espuma e o barulho fundo das hélices dando atrás. O presidente Konder, atendendo ao convite do presidente Getúlio, ficava aquele dia em Iraí e mandava-nos buscar.

13 horas. Chegamos à foz das Águas do Mel, onde há um grande movimento de embarcações. É um lugar cheio de árvores e de sombras, íngreme, de um quase roxo e picado de touceiras de gramas. O moço que nos fora buscar nos avisa de que há automóveis à nossa disposição e que Iraí está distante ainda uns dois quilômetros. Todos saltam em terra, menos eu, que me preparo, com o coração apertado de mágoas e temores, para voltar a Passarinho – onde deixei a minha maleta.

— Encontrá-la-ei?

E há dentro dela objetos de uso, uma dúzia de filmes Agfa e o revólver do Passos Maia!

15 horas. Estou, enfim, em Iraí, achei a minha maleta e almocei homericamente. Que imensa sorte! Vou terminar estas minhas notas; bem mereço uns momentos de repouso, após tantas atribulações e tantos sustos. O desembargador José Boiteux – sob o entusiasmo de historiador – relata-me, com surpreendente minúcia, o encontro entre os dois presidentes brasileiros. A resolução patriótica de nossas dúvidas de fronteiras – e o desembargador Boiteux acentuava a palavra “dúvidas” – era já um fato em caminho propício.

— Então – berrei eu –, então abracemo-nos e gritemos: Viva o Brasil!

Diante do meu indiscreto e clarinante entusiasmo, o desembargador Boiteux recolheu-se à sua gravidade, lembrou-me que estávamos num hotel e o presidente se encontrava num aposento perto.

Voltamos do hotel-balneário onde se acha hospedado o presidente Getúlio. Fomos cumprimentá-lo e agradecer a honra da visita que ele nos mandou fazer momentos antes, pelo seu ajudante de ordens. Falou por nós o desembargador Boiteux, que fez um discurso excelente e grandioso. O presidente rio-grandense respondeu numa oração de nobre brasilidade, de fraternal simpatia e que ficou vibrando dentro dos nossos corações como a grande voz do mar nas espirais dos caramujos.

Iraí – Águas de Mel, na simbólica e harmoniosa língua tupi-guarani – é um lugarejo pictural, de paisagem calma e doce e que parece o cenário de uma novela bucólica. Além do hotel que nos abriga, há o grande balneário termal, enorme edifício onde se pode acomodar, sem atropelos e com singular conforto, uma centena de veranistas, porque Iraí é apenas uma estação de repouso, uma estancia veraniega, como dizem os argentinos. Ligada ao mundo por uma estrada de rodagem, que se junta ao caminho de ferro, Iraí não dá aos seus veranistas a impressão de isolamento, esse spleen sem nome e sem motivo que assalta o civilizado longe dos grandes centros urbanos. Todo o dia a estrada lhe traz o automóvel e o forasteiro novo e, se ainda lhe falta a linha telegráfica, destruída pelos “patriotas” de Leonel Rocha, tem, todavia, a gazeta e a revista ilustrada, por via das quais recebe a notícia, o artigo de fundo, o veneno do verso e, a blague. Mas Iraí, naquele instante, representava também o seu papel histórico nas relações entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. Ali se encontravam, sob aquele sol gaúcho que outrora aquecera os bravos de José Maria, no regimento heroico dos barrigas-verdes, os dois presidentes amigos, que haviam de assinalar, sem ruído e sem trombetas, uma nova era entre os dois Estados brasileiros.

São quinze horas menos um quarto. O presidente Konder, o desembargador Boiteux, o Arthur Costa e o Manoel Maia foram passear a cavalo, em companhia do presidente Getúlio. O desembargador Boiteux, antes de sair, me veio dizer que ia treinar para a viagem a Barracão. Não vá suceder que essa troteada dê resultados às avessas. Anda lá embaixo, no salão do hotel, um grande rumor de mesas arrastadas, de vozes que pedem objetos e de marteladas secas e rítmicas. Decerto são os preparativos para o banquete de logo mais, à noite. Estou ansioso por ouvir os discursos dos dois presidentes.

No quarto ao lado, alguém canta uma velha canção regional gaúcha. É a toada de uma história simples, que a minha avó rio-grandense contava para me adormecer, de um homem que deixou o seu pago e a sombra hospitaleira do seu umbu, para ir pelear numa terra distante. Passados anos, quando ele voltou, do seu rancho restavam apenas as forquilhas e a tiguera cheia de flores amarelas. Como estava sem forças e com a cabeça mais branca que um campo geado, o homem encostou-se ao tronco da árvore amiga e cerrou os olhos, para sempre, sem ódios e sem remorsos! Ferido pela dolência da música que outrora embalou a minha infância, sinto que os meus dedos estremecem. Devo encerrar estas minhas notas, para que elas se não umedeçam de lágrimas. Razão tens tu, gente da minha ilha, quando cantas:

“Saudade – dor meiguiceiraCarpida na solidão,Espinho de laranjeiraCravado no Coração!”

São 22 horas. Subi, por alguns momentos, ao meu quarto, para tomar estas notas ainda viridentes, ainda cheirando a musgo e a seiva rica. Que poderei dizer desse banquete terminado há pouco e das orações que o elevaram muito acima das delícias materiais do cardápio luxuoso e farto? O presidente Getúlio proferiu um belo discurso. Que esplêndida justiça a obra de governo realizada em Santa Catarina, e que magnífico florão de fraternidade agasalhadora! Parecia que uma claridade nova envolvia as suas palavras sinceras e fortes, e as tornava límpidas e altas como a luz de uma estrela! Depois, quando as palmas se fundiram no ambiente luminoso que fazia mais vivas as flores pelos vasos, o presidente Konder levantou-se. Companheiro seu em quase todas as suas viagens através do Estado e tendo-lhe, por isso, ouvido, por vezes sem conta, a frase disciplinada e incisiva, que uma sadia brasilidade aquece e faz ondular como um pendão, jamais senti, porém, como agora, através dela, a consciência da minha terra e do seu heroísmo sem igual; da sua bondade enternecedora de enfermeira e da sua riqueza sem alardes: do que foi no passado, do que é no presente e do que será no futuro, assim amada e servida por homens de bem e de boa vontade. O discurso do presidente Konder foi a exaltação consciente e comovida de Santa Catarina, no âmbito glorioso da Pátria brasileira. Assim, também a oração do desembargador Florêncio de Abreu, Chefe de Polícia rio-grandense, que destacou a obra política e administrativa que o presidente Washington vem criando, lucidamente, para a grandeza do Brasil.

IV

27/4/29

O presidente Getúlio acaba de chegar ao hotel. Dentro de poucos minutos deixaremos Iraí. Continuamos a ter um tempo admirável: sol claro, céu limpo de nuvens e uma temperatura de primavera.

Nove horas da manhã. Voltei ao meu lugar na lanchinha. O presidente Konder ainda está palestrando com o presidente Getúlio, num grupo de que também fazem parte alguns políticos locais. Os dois presidentes falam sem mesuras de protocolo. Em torno, a sombra enleia as ramagens vigorosas e se derrama em grandes manchas, escurecendo as folhas caídas pelo chão e ainda úmidas de orvalho. Só o rio do Mel, espelhante e reluzindo, tem claridades que fascinam os olhos e desvendam o mistério das areias, onde há pedras peludas de limo e, às vezes, faísca o dorso de uma piava.

Singramos novamente o Uruguai e nos encharcamos nas suas belezas sempre renovadas. À medida que o rio desce, muda de aspecto, vai se tornando mais largo, mais rumoroso. As margens já não têm aquelas barrancas abruptas, afogadas de troncos mortos e de lianas; aquele tumulto de galhos que lembram lanças cruzadas num entrevero entre selvagens. São mais baixas, e uma vegetação mais igual e luxuriosa, de contornos túmidos e regulares, mancha as águas ribeirinhas de um verde quieto, doce e claro. Ilhas esguias estendem os braços onde cresce um mato viridente, ou pequenos arquipélagos emergem as cabeças bárbaras, espiando o voo assustado de uma ave ou os grandes paus que a correnteza vai arrastando. E por sobre aqueles tufos de folhagens, muitas vezes, pode-se ver uma serrania ao longe, meio apagada na bruma lilás, ou a curva afastada de um telhado.

O presidente não dissimula o seu contentamento. Retoma a sua marcha para a fronteira com mais uma vitória e um grande serviço à sua terra. No seu mocho forrado de pelegos, o desembargador Boiteux vai escrevendo umas notas rápidas num caderninho de lembranças e adiante, no banco de proa, com uma fleuma de milionário, o Bley Netto esfarela, na palma da mão, fumo picado para o seu cigarro. Sente-se que todos nós estamos satisfeitos e que, pelo menos até Cascalho, o assunto será Iraí.

Cascalho

A lanchinha atracou, sob um rumor de festa, numa balsa onde há muita gente. Subimos um caminho talhado no barranco, que tiras de bandeiras ladeiam e riscam sombras que se movem. Adiante, onde há um grupo de pessoas de que se destacam crianças de branco e com ramos de flores nas mãos, o presidente para, a ouvir um discurso de boas-vindas. A paisagem que nos envolve é nova e curiosa. À frente um início de rua, com algumas casas de madeira; aos lados roças e matos baixos, de que rompem palanques de cercas ou troncos serrados, enegrecidos pelo fogo. E na retaguarda, faiscante como uma larga faixa de platina com turquesas engastadas, o Uruguai deslizando lentamente, como se estivesse enamorado do céu.

Esta gente compreendeu limpidamente o discurso do presidente! Sinto que todos se deixaram penetrar pelos seus altos conceitos, pela grande sinceridade em que suas palavras vieram envolvidas. Quando o Dr. Adolfo exclamou: “Colonizar não é vender terras!” e acentuou a necessidade de se fixar o homem à gleba, houve aclamações e aplausos por toda a parte. Por que aquele colono espadaúdo, de cabelos tão loiros que parecem brancos e que me fez lembrar os couraceiros do velho Guilherme, olhava, de soslaio, os diretores da colônia, batendo as mãos como matracas?

Verdadeiramente andamos a carregar a sorte às costas. O churrasco estava digno de um poema modernista, no qual se cantasse a alegria do fogo, as grossas peças de carne rechinantes, pingando sangue e gordura, afogadas no cheiro bom do moqueio. E, em volta, um povo que espera, cheio de gula nos olhos! E aquelas bananas? E a torta de frutas que enterneceu, até às lágrimas, o Cid Gonzaga? É muito bom se viajar... na companhia do presidente.

Visitamos o escritório da Companhia Sul-Brasil, que é também a residência do Dr. Kuhlmmann, engenheiro e um dos diretores da colônia. É uma bela residência naqueles ermos. Vi alguns vasos curiosos da mais velha cerâmica indígena e vários quadros a óleo com assinaturas de valor. Há, também, aquarelas e águas-fortes de motivos impressionistas. Sobre uma prateleira corrida ao longo das paredes, pousam objetos interessantes: algumas porcelanas de Saxe e de Sevres; um ou outro bibelô de bronze, de assunto bizarro, ao lado de potes de louça japonesa ou china.

Enquanto o presidente examinava o grande mapa da colônia, esmerilhei aquele ambiente confortável, que uns toques de arte seduziam e encantavam. E me deixei ficar embebido daquela penumbra que cheirava a verniz e a fumo de charuto e que fazia avultar pelas paredes o colorido vivo de uma tela ou o brilho pálido de um prato de metal. Foi com pesar que abandonei aquela sala, onde errava também um perfume de flor silvestre e de manjericão. Só agora vim a saber a espécie de construção que se vai erguendo no alto de um morro, em Passarinho. É a futura casa para a direção da colônia. Acastelada, com ameias e blockhaus, dominará uma vasta extensão do Uruguai e emprestará àquela paisagem um ar medieval. Assim também eu viveria em paragens remotas: uma boa casa, um rádio, uma vitrola, algumas revistas ilustradas, uns livros e, para poder gozar todos esses confortos nas máximas proporções – bicarbonato de sódio para os desvaneios do estômago... Será, por certo, uma agradável moradia, mormente no verão e nos dias claros de sol.

Temos que chegar a Mondaí à hora marcada. Aliás, segundo me afirmaram, de Cascalho a Mondaí é pouco mais de um tiro de carabina. Será mesmo, ou o Areias aplica à metragem fluvial a tal légua de beiço do caboclo? A lanchinha marcha mais devagar, mais confiadamente devagar, como se estivesse reconhecendo os seus pagos e o seu fundeadoiro. Dentro de alguns momentos chegaremos a Mondaí; já se veem sobre as águas verdes do Uruguai as malhas brancas de espumas, que lhe despeja o Rio das Antas. Todos nós estamos silenciosos e eu sinto, não sei porque, aquela sensação estranha que já me tomou o coração em Goio-En, no momento de partir. De Mondaí rumaremos para o sertão, para o desconhecido, a trilhar vinte e nove léguas de picada e de floresta bruta. Que nos espera além da densa cortina do futuro, nas encruzilhadas do Destino? Seja o que Deus quiser. Há um fim alto e nobre a cumprir e nós viemos para vencer.

Rio das Antas é um dos maiores afluentes do Uruguai em terras de Santa Catarina. A sua foz é larga, pouco abafada de matos e ponteada de cascalhos e galharias encalhadas. Não o registraria aqui se não fora a circunstância sinistra de haver sido, durante vários meses, uma sementeira de morte e desolação. Contaminaram as suas águas os cadáveres de cerca de duzentos cavalos sacrificados pela coluna Prestes, na sua incursão através de Chapecó e da ordem. Perseguido pelos bravos do coronel Claudino – de que a gente de José Maia foi ser a vanguarda intrépida – o general rebelde mandou matar todos os animais cansados das suas hordas – para que não os aproveitassem os gaúchos que o monteavam. E por espaço de seis meses, batida pela febre tifoide e pelo paratifo, toda a gente daquela imensa região sofreu rudemente, pagou a grande culpa de viver em terras por onde passaram – os “patriotas e humanitários soldados da revolução...” “Patriotas e humanitários!” Como blague, é excelente! Divisamos já um grande grupo de homens que nos espera num vão das águas, onde há um desembarcadoiro. É Mondaí. De ambas as margens do Uruguai raivejam as cabeleiras de fogo dos foguetes e rojões. Do lado rio-grandense, duma casa embandeirada em arco e com muita gente agitando os lenços da mangueira, arrebentam bombas que atroam a mataria, fazem os biguás, continuamente, bater o voo espantado, mal pousam na ponta escura de um pau ou no cocoruto negro de uma laje. Novelos cinzentos de fumo boiam por sobre as árvores; alguns, tocados pelo vento, deslizam para o meio do rio ou se espalham e se fundem, altos, na esplendidez da tarde, toda azul e doirada. Há um rumor de alegria sonorizando o ar. Agora, bem juntas e tão perto da nossa que lhes ouço os rufos isócronos dos motores, as duas lanchinhas – uma esguia como um peixe-espada e outra bojudinha como uma folha de figueira – navegam airosamente, adereçadas de bandeiras e entre grandes laçarotes brancos de espumas. Uma aragem doce, que arrepia as águas e dobra as folhas finas de um canavial, volta-me as páginas do meu caderno, com um cheiro forte de lezíria e de mato bravo.

Na lanchinha todos cuidam do que é seu, guardando coisas nas maletas, dobrando capas, olhando em volta, na pesquisa silenciosa para descobrir se há objetos esquecidos. Somente eu não me altero no meio de tanta azáfama; a não ser este meu caderno de notas, tudo o mais já está recolhido ao bojo da minha mala de mão.

Pisamos, enfim, terras de Mondaí, nome atual do antigo Porto Feliz. Vivas se alçam do meio do povo, entre o tiroteio dos foguetes e os compassos estridentes da banda musical. O mesmo alvoroço, a mesma efusão de simpatia com que, desde Rio Bonito, vem sendo recebido o presidente, culmina aqui, em Mondaí, que nos verá partir, dentro de poucos dias, para as asperezas e as incógnitas do sertão bravio. Faz um calor de trovoada, e algumas nuvens cor de laranja e franjadas de um branco luminoso, encarneiram-se no poente.

São 17 horas. Através de galhardetes e túneis de folhagens, subimos a ladeira que parte do porto e atravessa a vila, num coleio amplo. Cavalheiros munidos de máquinas fotográficas assestam objetivas e correm, de um lado para outro, sob o pasmo das crianças, esbaforidos e suarentos. O rumor dos passos abafa o murmúrio das conversações, mesmo a grulhada de um bando de chopins que acabou de pousar nos galhos retorcidos de uma árvore. De todas as casas drapejam bandeiras nacionais, ondulam flâmulas com as velhas cores alemãs. E dentre as alas compactas de cabeças descobertas, como cogumelos estranhos e monstruosos, despontam as manchas negras de guarda-sóis ou se abrem as flores bizarras de sombrinhas coloridas.

Mondaí tem uma vida latente, prodigiosa que se desvenda ao primeiro olhar de análise e que se sente ao primeiro contato com o seu povo. Levantada entre o Rio das Antas e uma curva do Uruguai, num torrão ubérrimo, é o núcleo colonial mais poderoso de quantos frutificam neste vale bíblico, que se estende do rio do Peixe ao Peperi-Guaçu. Mais de uma vez, porém, a sua vitalidade tem sofrido as consequências de invasões rebeldes, que dilaceraram a sua fortuna, subverteram o seu trabalho rural, talaram as suas messes e os seus campos, semeando a miséria por todos os seus casais. Primeiro, Carlos Prestes, que lhe deixou, ainda, como um tributo macabro, latejando nas águas do Rio das Antas – os germens contaminantes do tifo! Depois, Leonel Rocha e a sua horda vandálica e maltrapilha! Por espaço de longos meses de tristeza e luto, furando poços – que custavam economias de rudes anos – para não morrer de sede, a gente de Mondaí sentiu pesar-lhe em cima, como uma fatalidade, o guante sinistro da rebeldia desumana! E, através da vila florescente, com as vestes em farrapos e as carabinas carregadas, montados em cavalos esqueléticos – ávidos, hirsutos e em longas filas irregulares passaram e repassaram os revoltosos!

Foi impossível obter um quarto nos dois hotéis da vila regorgitante de forasteiros. É que se arrancharam à comitiva, em Limeira, Passo Bormann e Iraí, algumas pessoas que ultrapassaram os cômodos reservados. De sorte que, ao voltar do telégrafo onde estive a mandar notícias à “República”, fiquei de sobra... Mas o José Maia – que vela paternalmente sobre nós – alojou-me na casa do Curió, Subdelegado de Polícia e excelente camarada. Abri a minha cama de lona e, como os pelegos são fartos, o meu leito é tão macio e doce que faria inveja aos bem-aventurados que dormem sobre as nuvens do Paraíso. Para os rigores do frio o Curió arranjou, com o benemérito alemão que mora ao lado, um espesso cobertor de lã, de camelo, tecido para siberianos ou esquimós. Tenho também como companheiros de cubículo o Seara e o Félix Malburg; e como existe uma escrivaninha ampla e o conforto da luz elétrica (Mondaí é iluminada à luz elétrica), posso calmamente tomar as minhas notas.

Graças a Deus descansaremos aqui até 1.º, quando partiremos para Dionísio Cerqueira e as brenhas. O presidente resolveu internar-se no sertão, na próxima quarta-feira. Temos, portanto, uns três dias de repouso e sono até sol nado, se ele não resolver devassar a região em todos os quadrantes. Porque – como me observou há pouco o Breves – eu não creio que o presidente se deixe ficar em Mondaí, inativo, tranquilamente inativo, com tantas terras a percorrer, tanta cousa interessante e útil a esmerilhar.

Merece um opulento registro a recepção de hoje à tarde. Tive a impressão de uma cidade toda movimentada de gente, ruidosa de alegria e música! Até de Nova Würtenberg, do outro lado do Uruguai, no Rio Grande do Sul, vieram forasteiros tomar parte nos festejos. É uma gente bem vestida, de boas maneiras e que viaja de automóvel. Há um arco triunfal de grande efeito decorativo e que tem este dístico sincero: “Mondaí saúda o Dr. Konder com estusiasmo”. O salão do Clube em que fizemos lanche apresenta um aspecto agradável e fino. Além desse existe um outro salão (onde terá lugar o grande banquete) com lugares reservados e um palco. Como toda a vila de sangue alemão que se preza, Mondaí tem filarmônica, dois clubes recreativos, uma sociedade de canto, dois hotéis e uma fábrica de cerveja para alegrar tudo isso.

Acabo de ser apresentado aos Srs. Stangler e Kreisser, diretores de Mondaí, que me apertaram solenemente a mão e quase me esmagaram, com a mesma solenidade, os dedos frágeis. São dois cavalheiros de modos calmos, com uma noção inteligentemente prática do problema colonizador e muito radicados ao Brasil. Falaram-me longamente, com uma preocupação gramatical notável e aquele espírito de especialização que é o espelho mágico da raça. Fiquei tudo sabendo de Mondaí, do valor e riqueza das suas terras, da composição geológica da gleba, do preço das colônias, da área colonizável e até da sua fauna e flora. Tudo me foi revelado sem estridor, com escrupulosa exatidão, como de uma cátedra universitária. Quando lhes falei da viagem à fronteira, daqueles longos e lentos dias a cavalo, da estafante caminhada por serras e vales, o Sr. Kreisser sorriu e me afirmou que “peior seria si eu tivesse de ir ao Barracão... a pé!” Serei justo assinalando, de resto, nestas notas fragmentárias, que me deixaram uma bela e indelével impressão de tenacidade e cultura.

V

28/4/29

Domingo. O relógio ao lado bateu melancolicamente, num ruído mole de maquinismos velhos, sete horas. Através do vidro da janela, vejo a rua lavada de sol e o céu tão límpido, azul e macio como um manto de pelúcia. Faz um frio esperto e seco. Já tomei o meu café e volto às minhas notas. Parece até mania: não posso passar sem dois dedos de escrita! Mas é um crime deixar-se ficar respirando este ar saturado de cigarros, num quarto onde se ressona com estridência. Enquanto não se serve “a mistura”, vou apanhar um pouco de sol, junto àquela cerca onde cresce um gravatá e acaba de pousar um bando de canários amarelos. Hoje tivemos visitas à escola e à exposição rural. Mais tarde churrasco. Logo à noite provavelmente, haverá um baile para as delícias do desembargador Boiteux. Amanhã, Porto Novo, quase na fronteira com a Argentina, de automóvel. Depois, “descanso”, isto é: alguma inspeção a obras em andamento. À noite, banquete e após sarau e baile. E na quarta-feira, às nove horas, com sol ou chuva, lombo de burro e sertão. Não resta a menor dúvida que é um ótimo programa de repouso...

Desde ontem que ouço os alemães ao lado cantando aqueles doces e velhos lieds, que tão poderosamente, mais do que as baionetas dos coligados, contribuíram para a desforra de Leipzig. E lembro-me dos Mestres Cantores da Nova Teutônia. Fora a mais curiosa e singular das manifestações de apreço recebidas pelo presidente em toda esta longa, fértil viagem. Era um grupo de dez ou doze homens robustos, muito vermelhos, de cabelos muito loiros, que viera até Passo dos Índios trazer a sua homenagem. Ao invés de discursos, cantaram umas canções de ritmo brando, religioso, que fizeram lembrar a penumbra das velhas catedrais góticas e a tristeza, a melancolia litúrgica dos coros luteranos. Sinceros, quase ingênuos, gratos ao bom Deus que os arrancara da Europa faminta, sulcada de rancores e de misérias, para a fartura e a hospitalidade fraternal das terras brasileiras, esses colonos sentiam-se felizes na sua vida nova, entre homens que não os repeliam, numa gleba que se abria para eles em searas ricas e boas. E ali estavam, unindo à alma brasileira as suas almas, participando do nosso júbilo e nele florescendo como uma bela flor de ternura e gratidão.

VI

29/4/29

Ontem à noite, quando me sentei para escrever, senti-me tão fatigado e me fascinou tanto a macieza da minha cama, que me deixei vencer por aquela tentação! Aliás, essa espécie de tentação fora sempre a preferida pelo diabo para perder as almas dos eremitas. Já Santo Onofre a considerava “a maior malícia de Satanás” e, mal via aparecer em cima da sua dura esteira de taquaras a fofeza dos coxins, feria logo as costas magras com disciplinas de ferro; e aquele espantoso cenobita – Santo Aspar – que não se podia mover, de tão velho e encarquilhado, da boca lôbrega da sua toca e só sabia fazer caretas aos peregrinos, Santo Aspar tinha ainda ânimo e forças para rezar e repelir as peles macias que os mafarricos, para o tentar, punham sobre o leito de pedras em que ele dormia. Mas eu sou um pecador cosido às impurezas e às delícias da vida e não aspiro a santidade. Mergulhei, por isso, nos pelegos.

Vi na exposição rural, como numa écloga latina, o fruto saboroso da terra e o milagre surpreendente do húmus! És bem, Mondaí, uma terra de Promissão, onde há romãs de sementes de oiro e rios de leite e mel. E bem-aventurado também sejas tu, oh! trabalho da charrua, que estrias a gleba e, como na lenda etrusca, fazes surgir os homens fortes e as cidades muradas!

18 horas. Regressei de Itapiranga – nome com que o presidente, num belo nacionalismo, batizou Porto Novo. Corremos, primeiro, de automóvel, através de terras fartas e de colônias prósperas, até não sei que lugar no Uruguai; depois, por águas serenas, em cuja lisura espelhante os pares joviais de libélulas verdes, – que, às vezes, vinham pousar nas bordas da lanchinha – amavam inquietamente, ao porto Rodhe, onde o Sr. Carlos Rodhe – colecionador de igaçabas e um curioso da história autóctone do Brasil – ofereceu ao presidente um lanche civilizado; e daí novamente de automóvel, a Itapiranga – quase na fronteira argentina!

Itapiranga deixou-nos uma impressão das mais vigorosas. A recepção ao presidente foi uma confortadora prova do sadio nacionalismo da sua população. Bandeiras nacionais nas mãos das crianças; bandeiras nacionais no tope das casas e, no ambiente luminoso, o rumor de um povo que deixara, por uns momentos, as lides da terra, para vir aclamar o chefe do Estado, que ia integrar uma porção querida de Santa Catarina nos destinos comuns da Pátria brasileira.

O Sr. Albano Volkmer e Carlos Rodhe, diretores de Itapiranga, acompanharam-nos nessa excursão. O Sr. Albano Volkmer é brasileiro nato, do Rio Grande do Sul. Ambos, porém, já se radicaram à região e merecem bem o nome de pioneiros do trabalho nos remotos rincões de Chapecó.

Tivemos um churrasco suculento e um discurso do vigário, num bosque de laranjeiras plantadas, não se sabe quando, pelos índios que habitavam aquelas paragens. As árvores estavam carregadas de frutos e ao vê-las me lembrei de Mignon e dos versos célebres de Goethe:

—“Conheces o país onde floresce a laranjeira?O país de frutos de oiro e de rosas vermelhas?”

Assisti hoje a um espetáculo dos mais maravilhosos e singulares. No alto de uma colina, na estrada de rodagem que vai a Itapiranga e donde os olhos se embebedam no vinho quente do panorama, o automóvel parou a encher d’água o radiador fumegante. O sol se entornava aos jorros sobre o Uruguai, iluminando-o, doirando-lhe as areias do leito, destacando a mancha esverdeada das lajes submersas ou a silhueta escura de uma pedra pontiaguda. Então, como num aquário fantástico, eu vi cardumes de peixes, num brilho fuzilante de pedrarias, nadando sob as águas transparentes! Eles vinham, lentos e prateados, davam grandes voltas, e as suas barbatanas se agitavam como echarpes de tule ao vento. Depois, desapareciam adiante, onde as águas tremeluziam e latejavam numa palpitação incessante de vida. Mas o chofer, habituado àquelas maravilhas, arrancou-me da contemplação, atirando-me à realidade de umas almofadas de molas rijas e a um automóvel que raspava a terra cheia de poeira, de micróbios e de folhas outoniças.

Urge fechar este livro e ir ao Clube saudar o Cid Gonzaga, que hoje festeja mais uma arroba de unto. Resolvemos fazer-lhe uma ruidosa manifestação; já lhe tocamos alvorada à janela do quarto e já o Cid agradeceu, modesto, aquela barulhenta matinada. Já, mesmo, recebeu os cumprimentos e os abraços do presidente. Mas não pagou cerveja e nós devemos auxiliar a indústria de Mondaí.

VII

30/4/29

Chegaram os últimos animais para a viagem. Amanhã, a estas horas, devemos partir, após as despedidas oratórias do desembargador José Boiteux, aclamado orador oficial da comitiva. Já mudei toda a minha roupa branca da mala de couro para a de pano, que vai nos tentos. Estou pronto e à espera, apenas, do momento de montar e mergulhar na barbaria das selvas. O tempo está magnífico, e penso que o sol também será nosso companheiro de jornada.

Realizaram-se as derradeiras homenagens do programa de festejos: o banquete de que foram oradores o Curió e um filho do Dr. Guilherme Faulhaber – benemérito fundador de Mondaí e já falecido –, o sarau, que teve, como números brilhantes, quadros vivos representando cada estrofe do Luar do Sertão do nosso Catulo e o baile, que ainda rodopia, neste momento, e promete invadir a madrugada. É esta a minha última noite de Mondaí e de teto enxuto e agasalhado. Não sinto nenhum medo, nem me tirará o sono a aventura que se iniciará amanhã. Estou tranquilo, senhor de mim, confiado em Deus e na minha resistência física. Tenho como chefe da expedição um velho e caro amigo. Vim com ele e o hei de seguir através de todas as asperezas, através de todos os tropeços, naturais a uma viagem tão longa e tão acidentada. Há perigos? Que importa? Queremos chegar, e isso nos basta.

Ia-me esquecendo de assinalar: no final do banquete foi cantado, a várias vozes e com orquestração sinfônica, o Hino Nacional. A épica e bravia música de Francisco Manoel sacudiu fundamente a nossa emoção, talvez como nunca! Era um hino cheio de rumores quentes e de ressonâncias verdes, como uma floresta. Através dele escutei a palpitação extenuante da Pátria, todo um Brasil germinado e forte, cheirando a húmus e a seiva, envolto nos apitos brancos das usinas e nos silvos fumarentos das locomotivas.

VIII

01/5/29

Dentro de alguns fugitivos instantes sairão os cargueiros que devem vanguardear a “entrada”. Creio que são oito horas. Ao longo das grades da varanda do hotel ou na costa da cerca ao lado, os animais, já encilhados, esperam. Alguns, imóveis, cochilam pachorrentamente, com um ar filosofal; outros, inquietos, de orelhas espetadas, erguem as cabeças ou batem desesperadamente os flancos com as caudas ásperas, enxotando os moscardos teimosos e importunos. Há um rumor de vozes que reclamam ou que indagam; uma intensa, apressada circulação de pessoas que chegam a cavalo ou que procuram, entre as filas de animais, a sua montaria que alguém mudou de lugar. E por sobre tudo isso o céu azul e lustroso como esmalte e uma grande, derramada luz cheirando a folha verde e que a todas as cousas envolve e acaricia.

O nosso almoço foi frugal e rápido: ovos fritos com salame, carne fria e café com leite. Mas uma alegria abundante e demorada compensou, vantajosamente, a modéstia do cardápio.

O presidente deu já a ordem de partida. Todos estão montados. E no silêncio que, de repente, se abriu como uma caixa vazia, o desembargador Boiteux despede-se, em nosso nome, de Mondaí e, por alguns dias, da civilização. Vivas e aclamações. Chapéus que se erguem e um grande tropel, a que se misturam os ruídos metálicos de estribos que se chocam, de arreios que rechinam, avança pela estrada. Três crianças, que passam para a escola param e ficam um momento a olhar aqueles cavaleiros que, alegremente e entre nuvens de poeira, vão a caminho do desconhecido. Depois, correndo, desaparecem numa curva da rua. E por sobre a areia revolta ficou apenas a luz perene e eterna do sol.

Trouxeram o meu animal. É um burro retaco, cor de pinhão, de idade imprecisa e com um brilho de ironia nos olhos pestanudos. Parece que se conforma em ser burro e que não desejaria ser homem. Tenho a impressão de que ele acha muito natural andar com sujeitos às costas e que os não preferiria à dureza das albardas. Pelo menos, assim que o ataram ao plátano que se vai desfolhando em frente da janela, descansou o corpo numa das patas traseiras, procurando dar à fisionomia uma expressão resignada. Mas já o avisado Sancho Pança dizia que se deve desconfiar dos burros e das mulheres. Vou mandar examinar o freio e se o peitoral e o rabicho estão bem seguros.

IX

Acampamento no Vorá, 17 horas

Vencemos, enfim, e com galhardia, a primeira etapa da jornada. Fizemos hoje seis léguas e estamos acampados na floresta, num lugar cheio de germinações, de ressonâncias e de sombras verdes. Por todos os lados crescem ervas bravas e nos envolvem folhagens densas e altas, donde por vezes se desenrolam e balouçam fios de taquari, ou emergem troncos ásperos, peludos de musgo e de bolor, que sobem, alteiam-se e se afogam, muito lá em cima numa teia forte de galhos e ramarias viridentes. Nas alfombras da mata piam pássaros desconhecidos, e os grilos vão pingando, trêmulos e monótonos, a melopeia taciturna do seu canto. O Vorá – uma água límpida que foge por sobre seixos ou se empoça e adormece num leito de verduras – divide o nosso acampamento em duas partes: uma à esquerda, mais elevada; outra, à direita, em arco de círculo, donde, numa pequena elevação invadida pela ortiga, existe uma cruz assinalando um degolamento executado pela gente de Leonel Rocha. O presidente, e parte da comitiva, ficou do lado de cá; e como ninguém sabe se os correntinos que trazem as barracas chegarão a tempo, cada um vai estendendo a sua cama de pelegos no chão fofo de folhas secas e de grama, sob as árvores. Os cabos e os tropeiros cortaram a lenha para o fogo e o João Pinto – que foi do batalhão Bormann e se prestou gentilmente a servir agora de mestre da cozinha – começou o nosso jantar: arroz, feijão e charque.

Os companheiros que haviam ficado em Mondaí e partiram por último, trouxeram um filhote de tigre abatido na picada, não muito longe do Vorá. Pelas conversas, todos atiraram no bicho. Daqui donde estou, ouço o Iolare Guimarães fazer o resumo da caçada:

— A tigra deu um bufo e bateu para o meu lado...

— E o que fez você? – interrogou o Arthur Costa.

— Eu? Finquei as puas nas virilhas da mula...

Levantei-me para “pousar” num grupo em que figura, sobre um pelego branco, o pequeno tigre, como um troféu conquistado à mata virgem. O pior, porém, é que os tropeiros me afirmaram que a tigra pode vir ao acampamento, à noite, procurar o filho!

— Chegarão às nossas barracas?

Fiz a minha cama junto à do Barroso, bem ao pé de uma touceira de mato branco. É uma cama confortável: um pelego por cima da carona e o serigote, com a mala de garupa, à guisa de travesseiro. Tenho um ponche macanudo e, como comprei um grosso cobertor em Iraí, estou livre de “furar lechiguanas” pela madrugada, quando o frio apertar.

Caminhei sozinho pela estrada (ainda em construção de Mondaí a Dionísio Cerqueira), seguramente uns três quilômetros, quando me alcançaram o Breves, o Jerônimo Vargas e um seu camarada de nome José. Estava um calor de janeiro murchando os brotos das samambaias, chupando as leiras e levantando do chão uma névoa embaciada que ondula e treme. Como os Breves e o Jerônimo quisessem trotear, deixei-os seguir à frente e me pus a conversar com o José. Desejaria, porém que o José me contasse umas histórias interessantes de tropeiros e de viagens. Mas o homem parece que não tem espírito imaginoso. Só me atira detalhes apavorantes como num telegrama: “A picada é horrível e pior que um carreiro de anta. Até ao Vorá, há duas léguas sem água e mais secas que o coração de um usurário: só se encontra água para beber dentro de taquaras partidas. Os tropeiros que vieram com os animais de Barracão, passaram noites inteiras de winchester na mão: os tigres rondavam a tropa e a barraca”. E tudo isso, infelizmente, descobre a verdade em toda a sua radiosa nudez, como no dia em que ela caiu no poço e quebrou o seu espelho maravilhoso.

Adiante, onde a estrada se parte em forquilha, encontrei o Breves e o Jerônimo sentados na grama, à espera. O José também não conhecia a trilha. Porém, um grupo numeroso de homens, que regressava a Mondaí e havia acompanhado o presidente até o começo da picada, ensinou-nos o caminho. De novo montamos e nos pusemos em marcha. Para aviso aos companheiros retardatários, deixamos um bilhete espetado na ponta de uma vara! A estrada, agora, é quase toda rasgada nas fraldas de uma serra. À esquerda, o terreno sobe em barrancos ou vence a altura em degraus de pedras soltas, em cujas fendas crescem gravatás e cactos espinhosos. Às vezes, um mato fino e que se dobra ao vento, rijas touceiras de carqueja enchem os vãos dos gramados, onde também se abrem pequenas flores azuis e lilases, e saltam rangindo gafanhotos malhados. De resto, há trechos em que apenas se veem lisos e altos paredões de barro vermelho, manchado de roxo e branco. Mas, à direita, a paisagem é suave e doce: coxilhas macias e capões redondos, ou, então, a campina com uma quieta lagoa fuzilando ao sol e bois que pastam, ou ruminam metidos n’água até aos jarretes. De onde em onde uma casa de colono, com a mangueira e o forno ao lado, o pomar e a lavoura, toda envolta na luminosidade serena do dia. E além, denteando o céu, uma serrania muito azul e onde, por vezes, também branqueja um casal. Depois, a estrada se encurva e, de repente, mergulha no mato. E começa a “picada”. É um caminho estreito, entre rugosidades fundas de troncos e uma galharia tumultuosa que se expande, e se dobra, e se encurva, e se torce e se emaranha numa confusão alucinante de entrevero. O cavalo constantemente tropeça em grossos paus, em pedras lisas ou em ramos atravessados no chão como serpentes monstruosas; ou pula por sobre um tronco, ou galga, num esforço, um barranco que as águas encheram de sulcos largos e polidos. Num momento pende para a esquerda ou para a direita, fendendo uma folhagem áspera, varando uma ramagem estrincada e tão densa que impede o sol e espalha em volta uma sombra úmida e triste. Cipós e lianas rijas balançam por toda a parte, enroscam-se, dependuram-se, enlaçam-se, envolvem caules e folhas e atiram-se, serpenteantes, de árvore em árvore, de arbusto em arbusto, tornando ainda mais desordenado o trilho tumultuário. Até alguns quilômetros antes do Vorá, a picada sobe, trepa sempre, numa ascensão violenta que retesa o peitoral e esfalfa o cavalo, obrigando o cavaleiro a parar, a fim de que o animal possa respirar alguns instantes. E beira itaimbés abruptos, profundos como poços, e que resvalam através de troncos, dos emaranhados hirsutos de nhapindá e de unha-de-gato e se despenham, depois, de pedras agudas, de escarpas a pique, por sobre copas crespas e bravias. E, depois, coleando por lombas e cumeadas, onde não canta um fio d’água e a vegetação se enreda e se arqueia no alto, em abóboda, a picada rompe por um cerrado cheio de penumbra e de cheiros acres, e desce, e se afunda, e de novo se eleva, para, mais uma vez, baixar ao nível em que está o nosso acampamento. Em torno dela, até não sei onde, a brenha misteriosa, ecoante de rumores, transbordante de seiva e iluminada por uma luz merencória esverdeada como fogos-fátuos.

— Verdadeiramente, estas seis léguas que vencemos hoje valem pelo dobro!

Assim também o nosso esforço e o nosso cansaço. No entanto, todos nós estamos satisfeitos e ansiando por prosseguir a marcha. Escureceu. É impossível continuar estas minhas notas.

Acabamos de jantar, não há um quarto de hora. O João Pinto nos deu uma “boia” que faria inveja aos romanos pelo requinte dos temperos... O arroz estava digno de um consulado na Espanha, e o feijão com charque merecia uma província! Só não gostei do café e daquela mesa de caixa de gasolina.

Decididamente os correntinos se extraviaram na picada. São dezenove horas e deles, como me disse o serviçal Cardoso – um tipo magro e alto ao jeito de D. Quixote – nem “bulha de cincerros”.

Além da fogueira, temos também uma lanterna de querosene, a giorno, de uma corda, num tronco que existe quase no meio do acampamento. Porém, a lanterna, mal lhe acenderam o pavio, esticou logo uma chama amarela, que empreteceu a larga manga de vidro que círculos de arame resguardam. Apenas me permite ler escassamente o que vou escrevendo. Só a fogueira ilumina o acampamento, pondo claridade trêmula nas folhagens e atraindo mariposas cinzentas, de grandes olhos de brasa.

Do outro lado do Vorá, no acampamento do Curió, a que o Iolare Guimarães chama Argentina, fizeram uma ramada para suprir a falta da barraca. Vim de lá, neste momento. Estive a ouvir umas histórias de onças e de caçadas.

— Um homem de Passo Bormann – contou um tropeiro moreno e de maxilares de índio – andava caçando anta com dois camaradas. Era no inverno; e haviam pousado na costa de um lajeadinho. À noite, o tigre veio e pegou o cachorro, que dormia bem ao pé do fogo!

— Ao pé do fogo?

—“Disque. Tigre sem-vergonha!” Mas, para quem dorme no mato, o pior é o cateto. Uma vez, ele e mais um companheiro vieram na Campina a caçar veados. Fizeram uma ramadinha de cará e, por causa do tigre, acenderam na porta um fogo maior do que aquele, de nó de pinho. Pois antes do clarear do dia – barbaridade! – uma vara de catetos, estalando a dentuça, bateu no acampamento. E os bichos chegaram a apagar o fogo e a morder o brasido.

— E vocês?

—“Nós se trepemo numa erveira”.

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O bom Deus, com certeza, depois de modelar os caçadores, quebrou a fôrma milagrosa. E nunca mais se lembrou de fazer outra...

O presidente já havia escolhido o lugar para dormir, quando o Manoel Maia veio dizer que os tropeiros tinham uma barraca e que a cederiam por aquela noite. Fiquei mais animado com a notícia.

A um canto, ao lado um do outro, ressonam com estridor o Cid Gonzaga, o Haroldo Pederneiras e o Dr. Werner – um engenheiro alemão de Mondaí, que nos acompanha. Quase junto à fogueira, com um lenço amarrado na cabeça, o Arthur Costa vagueia nos caminhos do sonho e o Manoel Xavier, médico e prefeito de Mafra, conta um caso, em voz baixa, ao Teotônio Alves, que adormeceu de óculos. Mais adiante, o Barroso, que não jantou, de barriga para o ar e o chapéu nos olhos, ronca desde a tarde. O acampamento mergulha pouco a pouco, em silêncio e solidão.

O presidente convidou-me para dormir na barraca. Somos cinco, ao todo: ele, o desembargador Boiteux, o Bley Netto, o Savas e eu. Antes de se deitar, o presidente andou rondando o acampamento, a verificar se os companheiros estavam bem acomodados e se tudo se achava em ordem. Já determinou a hora de partida, amanhã: nove horas em ponto.

Coloquei o meu revólver e a minha lanterna elétrica ao alcance da minha mão. Assim poderei dormir mais sossegadamente. Da porta da barraca, onde fiz a minha cama, estou vendo os tropeiros sentados em torno da fogueira, tomando chimarrão. A chama clara e alta ilumina-lhes os rostos, sobe coroada por um cocar de fumo e risca no chão sombras agudas e vacilantes. Para lá do fogo é a treva absoluta, misteriosa e imponderável, da qual se espera ver surgir, a todo o momento, formas horrendas e moles, dorsos peludos e recurvados, que trazem a morte nas garras! E por cima, fundidos nas folhagens negras, e por todos os lados, diluídos na escuridão, rumores estranhos, pios sinistros, uivos longos, estalidos de quebrar que geram suposições incríveis! Ah! a primeira noite em plena floresta bravia! Como é ela povoada de medos, de vultos tétricos, de ruídos, de palpitações fortes do coração! E como despertam e dominam as escuras superstições, todos aqueles duendes de que as negras velhas nos falavam, na infância!

— Meu Deus! Cessai o chirrio daquela coruja, cujos olhos eu vi, ainda há pouco, fosforear na treva!

X

02/5/29

Acordei com a voz do presidente, já fora da barraca, despertando os dorminhocos, a exclamar que era tarde e que às nove horas partiríamos. Olhei o relógio: seis e um quarto. Ufa! que é cedo! Mas...

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Dentro do nevoeiro transparente que esfuma os contornos, embacia os vultos e faz desmaiar os tons fortes das folhagens, o brilho vivo da fogueira empalidece. Até mesmo o chiado da chaleira do chimarrão e o ruído de uma panela fervendo e refervendo, desde ontem, parece que se adelgaçam. Um frio picante, que dói à flor da pele, quase não me permite abrir a minha maleta, amarrar os cordões dos meus sapatos. Mas um grande bem-estar, uma grande satisfação que eu não sei donde vem, faz-me achar uma graça infinita nisso tudo.

Circula agora pelo acampamento um largo, estuante fluxo de vitalidade. Todos estão de pé, e, um bom humor domina e desanuvia os espíritos como um sol estival. Da outra banda do Vorá, esfregando uma toalha na cabeça encharcada, o Iolare Guimarães indaga se eu não ouvi miados de onça à noite; e junto à água, pacientemente, numa dedicação enternecida de avô, o desembargador Boiteux ensina o madrinheiro – um esperto garoto de dez anos – a escovar os dentes. Alguém ri, por trás de uma alta sebe, pilheriando. Pela floresta afogada na névoa e por onde reboam as nossas vozes e o som claro de um cincerro novo, vibra o grasnado estridente das gralhas, a que se juntam os gritos lentos dos tropeiros repontando os animais. E um murmúrio alegre de fonte foge por entre as ervas.

Nunca na minha vida, como nesta madrugada, tive tanta raiva de um cachorro! Recolhi-me à barraca pensando em tudo, principalmente no tigrito e no informe dos tropeiros: a tigra pode vir, à noite, procurar o filho. Os tropeiros são homens ensinados pela vida! Recordo-me que, deitado de costas, já meio adormecido, tive a impressão de ver um grande vulto mosqueado, silencioso, de olhos farolejantes, que ia e vinha pelo acampamento em busca de alguma cousa. Eu queria gritar: “Olhem, que é a tigra! escondam o tigrezinho!” Mas não podia: o meu burro cor de pinhão calcava-me o peito com as patas dianteiras e me olhava, com um gesto zombeteiro na boca. Adiante, o João Pinto, enorme, de barrete branco e avental, enchendo com o seu volume todo o acampamento, malhava a cabeça de um tropeiro com a concha do feijão. O tropeiro nem se mexia, como se fosse de pedra. E o João Pinto berrava: “Venha ver a tigra chorando, venha ver”. Virei-me de lado e tudo se desvaneceu. Adormeci profundamente. Altas horas, quando me achava aninhado no melhor cantinho do sono, despertei sentindo o rumor de um animal farejando junto a minha cabeça, do lado de fora da barraca. Sobressaltado, já com o coração numa disparada louca, sentei-me, perscrutando. Nisso ouvi o Barroso gritar, numa voz cava: “Sai bicho! sai bicho!” Não podia haver a menor dúvida: era a tigra! Agarrei nervosamente o revólver. Uma forma escura passou no momento em que o Savas, que acordara, levantava a cabeça.

— Que é isto? – indagou ele.

Firmei o senso e os olhos. E reconheci um jaguara dos caçadores alemães que se haviam arranchado à comitiva e que, certamente, fugido da coleira, andava catando restos de comida no acampamento! Então, com um ah! de imenso alívio, tornei a deitar-me e adormeci, pensando no tenente Geraldo e no prazer com que eu próprio daria àquele cachorro esfomeado: uma grama de estricnina!

São dois tipos de novela regional, de perfis agrestes, os tropeiros correntinos. Usam uma sobrecalça de lona branca e um pano de listas vivas na cabeça. Tisnados, de nariz aquilino e de cabelos negros, corridos e ásperos como crinas, acusam logo a raça guarani. Falam, porém, o português, tão correntemente como o espanhol, e creio que nem conhecem a língua da sua gente. Um deles, para beber água, ficou de bruços ao Vorá, com a winchester na mão. Ao vê-lo naquela postura e naquele cenário, lembrei-me de um grande quadro de Bernardelli – Os bandeirantes. Há também um homem bebendo assim deitado, com as pernas enfaixadas em trapos, um pano amarrado à cabeça e o mosquete preso à mão crispada. No fundo do extrincado de folhas e cipós, rompem vultos de índios com os pulsos amarrados e faces barbudas, enxovalhadas, que têm a cobiça fuzilando nos olhos. Em torno à floresta bravia: um tumulto de troncos hercúleos, de galhos duros e de folhagens traiçoeiras. E uma penumbra imprecisa, que se não sabe se é da madrugada ou do poente, tudo afoga em tristeza e solidão!

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Esses tropeiros correntinos! Meu burro pachorrento já está encilhado, a pensar sabe lá em quê.

Só agora descobri que é lunanco, tem um olho azul e não gosta muito de milho. Naturalmente é comedor de pinhão! O almoço foi servido britanicamente, às oito horas. Ontem, de bom grado, ofertaria um consulado ao arroz e uma província ao feijão com charque. Estou certo, porém, que hoje somente lhes daria uma subdelegacia de polícia e um terreno de marinha em Porto Belo. Também... feijão com charque e arroz de manhã cedo!

Notei que o Dr. Adolfo ficara, por alguns instantes, mudo e vacilando diante do seu prato de ágata. Depois, como quem se submete às duras imposições da fatalidade, mergulhou a sua rude colher de estanho naquela massa branca e negra, onde havia torresmos. Quando, de novo, voltei a olhá-lo e a encher o meu prato, tomava o seu café, alegremente, numa caneca de alumínio. E o prato estava vazio.

XI

Acampamento na Campina, 15 horas e meia

Fizemos hoje apenas quatro léguas. Só sairemos daqui depois de amanhã. Vou ajudar a armar a nossa barraca!

Hoje de manhã, no Vorá, antes de montar, estive a espargir umas folhas verdes por sobre a cova do degolado e a arrancar umas ervas daninhas que afogavam a sua cruz carunchosa e tosca. É que me comoveu fundamente a sua desgraça, enterrado e esquecido no seio da floresta virgem, naquele imenso silêncio e naquela imensa solidão! Um tropeiro dos nossos o conheceu: era um negro velho que mostrara à coluna Claudino o rastro da gente de Carlos Prestes: o Rio das Antas, cheio de cadáveres de cavalos. Quando Leonel Rocha, em novembro de 1927, passou por Mondaí, um facínora da sua horda o prendeu. E no Vorá, naquele mesmo lugar, um paraguaio zarolho, retaco e de cabelos vermelhos, meteu-lhe dois dedos da canhota no nariz e correu-lhe o ferro na garganta “de viage intera”. Foi em pura perda que o negro velho – que abrira antes a sua própria sepultura – suplicou que lhe poupassem a vida, que o deixassem viver pelo amor de Deus! O paraguaio retaco e de cabelos vermelhos não entendia o português...

Campina é um gramado vasto, com altas macegas de carqueja e guamirim, e cercado por um mato espesso, cerrado, donde sobem os perfis hieráticos dos pinheiros ou os troncos tufados das erveiras. Num dos seus extremos corre límpido, sussurrante, o ribeirão que adiante, por uma calha, faz mover um monjolo que range, escachoa e martela a solidão com as suas lentas e surdas pancadas. Do outro lado dessa água, num rancho de madeiras e com frestas por onde sai a fumaça da trempe, mora um patriarca de nome, Siebeneichler, natural do Rio Grande. É um homem de cinquenta anos, barbudo, com uma grenha ruiva de mujique e, por ora, pai de dezoito filhos! Ali vive em doce e calmo isolamento, a cortar erva, a pôr galinhas em choco e a criar uns guaipecas cinzentos, que os tigres vêm comer quase ao pé do rancho. Todos os anos, invariavelmente, bate-lhe à porta a cegonha com um cestinho no bico... Siebeneichler resmunga e tira do cestinho um rapaz ou uma menina. E a vida continua... Se precisa de dinheiro – disse ele ao presidente – vai ao Banco, que é a erveira. E corta as folhas abençoadas, e as leva ao sapeco e, após, as entrega ao monjolo paciente e infatigável. Mais uns dias e bate, com os cargueiros atochados, para Mondaí. E sempre são umas treze léguas e uma estrada ruim... Mas, tudo se arranja neste Mundo... Quando Siebeneichler soube que apertara a mão do presidente do Estado, emudeceu, descobriu-se e ficou a olhar o Dr. Adolfo num assombro que lhe escancarou a boca, mostrou uns dentes rijos cravados em gengivas fortes. E retirou-se, para voltar momentos depois, rebocando a mulher e a filharada. Creio que também trouxe aquele par de guaipecas cor de cinza, magros, que fareja as bruacas dos mantimentos.

Amanhã, data do descobrimento do Brasil, haverá uma comemoração cívica: alvorada com salvas de revólver e, às nove horas, hasteamento da bandeira nacional pelo presidente; depois: batismo do ribeirão que banha o acampamento e que passará a se chamar ribeirão 3 de Maio. Na primeira solenidade, falarei eu; na segunda, o desembargador José Boiteux. Às 18 horas, arreamento da bandeira e salvas de 21 tiros. Haverá melhoria de rancho, se os caçadores alemães nos trouxeram a anta prometida. Caso esses pândegos voltem, como ontem, com as mãos vazias e os cachorros cansados, inverteremos a ordem do cardápio: charque com arroz e feijão.

Parece que teremos muita chuva à noite. Para as bandas do sul há uma larga, alta parede de nuvens escuras, debruada de uma luz fosca e triste. Um vento áspero, que arrepia as folhagens e sacode o pano das barracas, faz dançar folhas mortas pelo chão. Às vezes, mais rijo, dobra as pontas das samambaias e, lá em cima derruba alguma grimpa que rodopia e cai por sobre os ramos finos das vassouras, assustando os chopins; ou enche a mata do ecoante estalido de galhos secos que se quebram. Pela primeira vez todos têm os rostos vincados por um fundo aborrecimento. Porém, que fazer, se a chuva vier?

A picada até a Campina é um pouco melhor. Há alguns trechos de terreno chato, limpo de galharias e troncos, e a água já não falta, graça ao bom Deus. Vê-se, por vezes, o céu através de largas fendas nas franças altas das árvores, e não é muito raro a gente atravessar uma clareira onde adormece um solzinho abençoado e quente. Já se pode ter olhos para admirar as rudes belezas circundantes e uma alma sossegada para recolher e sentir tudo isso. Não obstante estar garoando, há muita probabilidade de melhorar o tempo. Esfriou bastante; e veem-se manchas de céu limpo na plasta cinzenta de nuvens que já se desfiam e correm para o norte.

Jantamos sob o telheiro do monjolo. Tivemos galinha assada, batatas fritas, chucrute e aipim cozido. Foi um banquete que faria Lucullus arregalar um olho de inveja. É que tínhamos a imensa fortuna de viajar com o presidente – para quem foram preparadas aquelas delícias – e de acampar num lugar onde havia um patriarca benemérito.

XII

03/5/29

Levantei-me ainda escuro, às 6 da madrugada, com estrelas a luzirem e reluzirem no céu. Depois de uma lenta rica ablução n’água fria, fui tomar o meu chimarrão junto ao fogo e ouvir essas belas e fortes histórias que cheiram a húmus e a resina de pinheiro novo, e que só os tropeiros sabem contar. E quando, junto à barraca do presidente, começaram as salvas, eu já havia escutado vários “causos” e arranjado a driça para a bandeira nacional. Desde ontem que ela nos preocupava e nos enchia de azáfama. Enfim, posso meditar no meu discurso, que eu tenho um terror pânico do improviso.

O sol se desdobra por sobre a Campina como um grande céu impalpável de oiro. Um ar frio e doce parece arrepiar todas as cousas, numa carícia de beijo. Pinheiros e erveiras, capoeiras e folhagens palpitam, arfam sob a luz amorosa, que excita os insetos, aquece as borboletas catassoladas e faz abrir corolas túmidas. E muito altos, mergulhados na radiância e gritando desordenadamente, passam bandos de papagaios, numa grande trepidação verde.

Estou ainda sob a vibração de pura brasilidade que me deu a comemoração de há pouco. Foi simples, porém grandiosa. Todos nós sentimos a beleza daquele momento. Ao fincar no chão o mastro em cuja ponta, linda, magnífica, gloriosa como ela sempre foi na paz e na guerra, drapejava a bandeira da Pátria, o presidente estava dominado por uma profunda, empolgante emoção! O seu “Viva o Brasil”, erguido no surto de um entusiasmo eletrizante, deu-nos a impressão de que tornara mais viva, mais querida, mais radiosa a luz do sol brasileiro que nos envolvia. Não poderia haver cenário mais apropriado à comemoração de hoje. Cercava-nos a majestade da paisagem bravia, a floresta brasileira, com todo o seu esplendor e os seus mistérios! Os rumores das suas germinações, o perfume das suas flores e a sapidez estranha dos seus frutos! Os gritos estridentes, bárbaros dos seus pássaros e o murmúrio humano e doce das suas águas! E o que disse eu no meu discurso? Isto e outras cousas: “Há, Sr. Presidente, no gesto de V. Exa., um pouco de Pedro Eremita e de Fernão Dias Paes Leme. Porque, nesta avançada, através das asperezas da selva inculta, existe um misto de Cruzada e de Bandeira! Cruzada, pela fé profunda pelo religioso civismo que nos aquece e anima; Bandeira, pelo espírito de aventura, pela esplêndida brasilidade que nos atira, sob o comando intrépido de V. Exa., através de um tumulto de dificuldades, a tomar posse definitivamente e absolutamente, de uma grande porção de Santa Catarina, em nome da Pátria!” Depois, teve lugar o batismo do ribeirão 3 de Maio. O desembargador Boiteux estava comovido. A sua oração foi um esplêndido, alto florão de cultura e amor pátrio. Merece um único adjetivo: magnífica.

Ainda há pouco, quando o acampamento retomou a sua vida normal, um tropeiro começou a cantar uma canção. Mais uma vez eu vi como são profundos os limites emocionais que separam o ilhéu do serrano! Parecem homens de raças diferentes, de tradições alheias e apenas ligados por esses frágeis liames políticos que qualquer contingência desfia e arrebenta! Cantando, então, separam-se de vez e ficam tão distantes um do outro como se fossem antípodas na vida. Tanto os versos como a toada que os embala, espelham, sem artifícios e sem perucas ornamentais, a alma boa, embora bravia, do nosso patrício de terras-a-dentro. Mas faltam neles a vibração amorosa do ilhéu e aquela vaga saudade sem nome e sem cor, que lhe põe um som de pranto em cada rima. É verdade que as condições de vida do ilhéu e do seu irmão do planalto são diversas, como diversas são as influências sentimentais formadoras da alma de cada um. Entre a própria casucha ilhoa e o rancho serrano há uma diferença de séculos. Na Ilha o pescador, mesmo o rude amanhador da terra, planta em torno da sua casa folhagens e roseiras. Há sempre um canteiro com dálias ou rosas de todo o ano e, no peitoril de uma janela besuntada de azul, uma velha lata com manjericão. Na serra, numa lomba de coxilha ou na costa de um capão, o lidador bravio constrói a sua morada sem uma flor, sem um ornamento, apenas cercada pela mangueira de rachões de pinho, onde terneiros balam sobre um chão escuro e revolto. Quase não se ouvem pássaros cantar, nem no silêncio esbraseado do meio-dia, o resinoso chiar desesperado das cigarras. Só a curicaca ou os chopins, nas manhãs de chuva ou quando o sol desperta as gentes para as fainas de todo-o-dia, sarjam o silêncio do descampado, juntando uma nota mais viva ao doloroso e humilde mugido dos bois. A vida assim, para o serrano, corre áspera, sem sonhos, rasgando-lhe aos olhos a desolação de uma realidade muito crua. A imutável paisagem da campanha; a monotonia ondulante das coxilhas; o isolamento; o silêncio; o rigor dos invernos com seis graus abaixo de zero, todos esses enxertos tornam o serrano um tanto bravio: fazem-lhe a alma tão impermeável às emoções do mundo em que labuta como o chão em que finca o palanque de sua lida na mangueira. Diante da queimada alucinante do crepúsculo, dum pessegueiro todo em flor, da neve ou daquelas manhãs de geada, azuis e brancas, em que uma longa serenidade parece isolar a terra de todas as maldades e de todos os tumultos, ele não vibra! Olha e passa, indiferente! Não conhece esses momentos de êxtase, de contemplação enternecida e de melancolia doce, que têm criado santos e artistas perfeitos. Mesmo o amor, manancial de ternura que não farta, sente-o de outra forma, através de um boleio violento do seu pingo. O ilhéu, para conquistar a mulher amada, entrevista numa noite de novena ou numa tarde de procissão – canta de olhos postos na lua ou escondido entre os cafeeiros. O serrano, mais agreste, mais aventuroso, talvez mais sanguíneo, disputa-lhe o coração a golpes de proezas e a disparos de garrucha. Um suplica o beijo de joelhos, humilde diante da mulher como de um altar; o outro exige-o todo pachola, sorrindo, o largo ponche para os ombros, confiado na sua sedução de forte. É ainda o macho no esplendor da sua brutalidade e da sua força. E quando a desdita amorosa os punge: o ilhéu soluça, resignado e triste; o serrano lamenta o seu destino, a pensar, de vesto, na desforra que há de tirar, a estanho, ao rival vitorioso. Não sei se, com estas qualidades, o serrano é superior ao ilhéu. O que posso afirmar, no entanto, com os ouvidos no coração, é que ele não comove a ninguém.

Como almoçara regaladamente e o dia estava ganho com honradez, fui dar um passeio em torno do acampamento. Fui só, através do vassoural farfalhante que, em certos lugares, ia além da minha altura. Às vezes topava com um burro pastando, com a crina enroscada de carrapicho. Surpreendido, o burro erguia a cabeça, as orelhas duras e perscrutadoras, a boca atochada de capim; ou, então, disparava, numa carreira que derrubava as canas altas das painas, enchia o ar luminoso de uma esvoaçante multidão de flocos de seda. Depois o matagal voltava a imobilizar-se, áspero, quente e cheio de cheiros fortes. Uma fila de palanques que rompia dentre a trama das capoeiras, certamente noutros tempos, servia para segurar os rachões da mangueira. Adiante, ao pé das tranqueiras carunchosas, que lentamente apodreciam, avultava a tiguera, onde alguns pessegueiros, já quase sem folhas, estendiam as suas ramagens longas e finas como as pernas de uma aranha monstruosa. E além, na beira do mato, com um dos braços partidos, uma cruz emergia de um tufo de ervas bravas. Por certo, um infeliz abatido a tiros, de surpresa, nalgumas daquelas “esperas” tão comuns nestas paragens ou, quem sabe, o peão de José Rupp, degolado pela horda de Leonel Rocha, por haver servido de vaqueano da coluna Claudino? Diante do túmulo anônimo me descobri. Mas, no mesmo instante, um rumor estranho encheu a floresta. Pareceu-me o salto impetuoso de um grande animal. Então, prudentemente, voltei à minha barraca e à sua segurança. O fotógrafo e o professor Davidoff – que o presidente vai nomear para a escola de Dionísio Cerqueira – acabam de chegar. Haviam ficado ambos no Vorá, “de a pé”, que os animais em que vieram de Mondaí, acharam melhor regressar à querência. Também os caçadores alemães estão cozendo o seu jantar. Nem anta nem capivara: apenas uma jacutinga, que foi recebida com muita alegria por todos nós. Já a despiram das suas belas penas e o João Pinto a preparou com sabedoria. Neste momento deve estar mergulhada no arroz, entre torresmos.

Por uns homens de Dionísio Cerqueira e que se dirigem a Mondaí, tivemos notícia da picada: tem ainda cerca de duas léguas fechadas pelo taquaral!

XIII

Lajeado Liso, 04/5/29.

Acampamos às 17 horas. Aproveitamos muito bem o dia, avançando seis léguas! A picada tornou-se novamente um “inferno verde”. Constantemente se era obrigado a descer do animal para apertar a barrigueira, compor os arreios. Atravessamos túneis longos de taquara, que de repente estreitavam, dobravam-se, envolviam grandes silvas de amoreiras ou sarças de espinhos rijos e recurvos. Por vezes, fios ásperos, de folhas afiadas, nos roçavam o rosto, cortando-nos a pele, arrancando-nos violentamente o chapéu; ou se enrascavam nos estribos, enleiavam-se nas patas do animal que tropicava, planchava-se, obrigando-nos a ter as rédeas seguras e firmes, para não cair. Sobre o chão úmido e cheio de pontas agudas de taquaras partidas, alastrava-se uma palha escorregadia; atravancavam-se pedaços de taquaruçu que se partiam sob as patas das mulas, num ruído seco de gatilhos. E quando não era o estrincado turbulento dos taquarais, desdobravam-se as galhadas cruzadas, as rápidas abertas onde oscilavam, com degraus como as escadas de cordas, cipós pesados e mais grossos que punhos de homens; e ladeiras em pé; e corredores sombrios ao longo de um chão de barro vermelho, cortado por sulcos horizontais, que faziam lembrar um caminho estivado ou uma estreita e comprida linha de dormentes de via férrea. Por todas as bandas, de resto, fechavam-se os ramos e as folhagens, espalhando uma penumbra fria e da cor das podridões. Só o canto de um pássaro ou o grito rouco dos tucanos, punham uma nota mais viva à imensa e desconcertante beleza da floresta.

Aproveitando a oportunidade e no afã de identificar verdadeiramente a região percorrida, o presidente, o Breves, e o Dr. Werner fizeram retificações topográficas e hidrográficas, dando nomes a lajeados, a ribeirões, a acidentes naturais, que ainda nem se achavam assinalados nos mapas! Como é vasto e desconhecido este nosso querido Brasil! Mas, ao batizar essas águas novas, o presidente tem tido uma nobre preocupação nacionalista: dá-lhe sempre nomes brasileiros: – Lajeado do Saci, Ribeirão da Bracatinga. Nada de designações arrevesadas, que o caboclo não pode pronunciar e nada significam. Estamos no Brasil e o vocabulário brasileiro é farto e expressivo. E o manancial luso-guarani inesgotável e belo, como nenhum outro.

Numa das vezes em que varei sozinho largos trechos da picada, vi uma forma cinzenta que se mexia num oco de pau. Pareceu-me um porco-do-mato. Mas o Jerônimo Vargas me disse que talvez fosse uma cotia ou um filhote de graxaim. A espécie do animal me é absolutamente indiferente. O que me interessa assinalar é que o meu burro cor de pinhão despertou da sua sonolência e refugou miseravelmente.

O nosso acampamento foi levantado numa clareira, à margem esquerda do Lajeado Liso, que escorrega por sobre um leito escuro de lajes polidas e se empoça, aqui e ali, em buracos mais fundos. Ladeiam essas águas claras e largas, através das quais se veem longos fios de limo rabejando à força da corrente, grandes árvores umbrosas, de folhagens emaranhadas, donde pendem baraços de barbas-de-velho e fiapos ruivos de cipó-peba. Dum lado e de outro, porém, os olhos mal divisam, por entre as colunas verticais dos troncos, uma vegetação plebeia que vai crescendo sem viço e de um verde pálido, dominada pela majestade fria da imbuia e a senhorial altaneira do pinheiro! Armamos as barracas em arco de círculo num chão coberto por uma toalha de capim, donde irrompem, a esmo, molhos de mato áspero, cheirando a erva-de-santa-maria, e que decepamos a facão. É a hora melhor desta nossa vida de nômades – “desperta num rincão, adormece em outro” – a que passamos no acampamento! Há mais de duas semanas, desde Florianópolis, que os nossos dias se consomem dentro de vagões férreos; aos solavancos dos automóveis; na trepidação forte das lanchinhas e, através de caminhos estreitos e ínvios, arriscando a vida a todo o momento, aos trancos fundos e curtos das mulas! De sorte que só nos enchem de compensações estes momentos de repouso, sob o ângulo de pano das barracas, em que todos os cansaços, todas as agitações, todos os sacrifícios pairam, esfumam-se e se fundem como um retalho de neblina sob um sol de primavera.

O deputado Cid Gonzaga! E, talvez, a criatura mais curiosa da comitiva do presidente Konder. Não há fadigas, sol ardente, umidade doentia que penetrem os seus cento e dez quilos de unto e lhe mereçam um tênue reparo! Tudo está muito bom, mesmo ótimo, desde que ele não tenha de bater a pé até Dionísio Cerqueira e não lhe falte o feijão. Os primeiros e os últimos risos do acampamento lhe pertencem por direito de alegria e de saúde! Trilha o deserto como se estivesse no Congresso ou folgando nas ruas de Porto União: vestido de casemira azul, a gabardine para o frio ou para a chuva, sapatos de entrada baixa e... meias de seda! Nunca o sertão, desde que o bom Deus permitiu que o devassassem, viu um homem tão catita, com um tal apuro de indumentária! Talvez seja por isso que o admirem o nhapindá e a navalha das taquaras! Enquanto nos queixamos do culote dilacerado ou das botas e perneiras sulcadas de arranhões, ele sorri beatificamente e olha para as calças e as meias de seda, invulneráveis, sem um único pegão ou sinal leve de espinhos! Desde Mondaí, apertando apenas uma vez, quando encilha, pela manhã, a barrigueira da mula ruça em que fura esses carreiros de antas, dobrados de subidas e descidas quase a pique; continuamente na vanguarda, com o presidente, usando uma varinha débil quando nós todos lanhamos as ancas dos animais a rabo-de-tatu, emagrecendo a mula pelo esforço incrível de o carregar no lombo, desde há muito que ele enche a picada com o seu corpanzil e a sua verve! Afável, esplêndido companheiro, rindo de todas as pilhérias e reclamando contra todos os brecadores, registro-o com justiça nestas linhas em que vibram, misturados ao rumor comovido de uma velha e boa amizade – os guizos alegres do humorismo.

Recomeçaram as histórias de tigres e de varas de porco-do-mato. Dizem que, por aqui, não é muito raro aparecer esses “indesejáveis”. Porém, o Cardoso garantiu-me que não haveria perigo e que fora do Capitinga – onde os bichos até vinham caçar na picada do telégrafo – era a Derrubada, nosso pouso de amanhã, o “rodeio dos tigres”. Valha-nos isso, por hoje.

Estou convencido do perigo de se viajar sozinho pela picada. Hoje passei momentos de angústia, supondo que me havia perdido. Há um lugar em que a picada reflui e se abre em dois galhos apertados, junto duns pinheiros tombados e cujas raízes fortes e aduncas lembram garras de animais fabulosos. Também, caso a noite me surpreendesse, treparia a uma árvore bem alta e aí dormiria, como Robinson Crusoé, livre de tigres e catetos. Quanto ao meu burro cor de pinhão – o meu paciente burro de um olho azul – que se defendesse como pudesse, já que lhe era impossível reclamar e subir prudentemente para os galhos das árvores. Em torno da cozinha – uma vara sobre duas forquilhas e da qual pendem a panela ou a lata do feijão – aguardamos a hora do jantar, que não tarda, cada um com o seu prato de ágata e a sua colher de estanho. Não há privilégio. Só o presidente é servido em primeiro lugar; porém, recebe como os demais uma concha de arroz e duas de feijão com charque. É o regime. Certo, quem quiser – e quase todos sempre querem – pode repetir. Mas o João Pinto, absolutamente, não ultrapassa a medida.

Hoje teremos pinhão à sobremesa. Ajuntamos na picada mais de uma quarta. Quer dizer que amanhã, naturalmente, haverá uma “sapecada” como lanche.

XIV

05/5/29

Adormeci ontem um pouco mais tarde: 21 horas. Os tropeiros falaram largamente, fartamente, com umas demoras estafantes nas curvas dos detalhes, acerca das léguas que ainda temos pela frente, de rodeios, de ervais e, como era muito natural a veteranos, da revolução. Haviam todos servido no batalhão Bormann e feito, sob o comando de José Maia, a vanguarda da coluna Claudino. Lembro-me que adormeci no mais vivo do combate, naquele choque vitorioso com a retaguarda de Prestes, numa dobra violenta da picada, pensando também naquela outra refrega de 9 horas, em Campos Novos, com a gente de Leonel Rocha e que me trouxera os primeiros frios de velhice ao coração. Estivemos com tigres perto, esta noite. Alguns tropeiros acharam um rastro fresco em volta de uma aguinha.

— O chão está moído dos bichos – informa um deles.

O Cardoso – com aqueles modos lentos e esgalgados – veio-me convidar para ir ver as marcas: “ansim”, e unia os dez dedos das mãos, em peras. Creio que também contou o caso ao presidente. Porém, como a prudência é a irmã mais velha do caldo de galinha e não faz mal a ninguém, preferi ficar no acampamento, emalando o ponche. E se o tigre extraviou a tropa? – perguntei, por fim, ao Cardoso, que esperava.

— Fiquemo tudo de a pé.

— Toca! toca! É a expressão com que o presidente sublinha as suas consultas constantes ao relógio.

Se não for assim, ninguém tem pressa e todos têm cansaços.

Toca, toca! E já a cargueirada, chacoalhando as bruacas e num rumor d’água revolvida, varou o “passo” e se embrenhou na mataria. Ainda por alguns instantes escutamos o grito de um tropeiro e os sons monótonos do cincerro da “madrinha”. Depois, só as nossas vozes se dependuraram pelas galharias retrançadas e se abriram em ressonâncias pelos côncavos das ramagens.

Estive a encher o meu cantil. O Lajeado Liso faísca como se tivesse escamas de prata. A luz lhe vai polindo os remansos, enchendo de pedrarias as poças adormecidas no regaço das lajes. E na curva distante, onde existe um sussurrante degrau d’água, há um latejamento fulgurante debruando a larga mancha verde, que vem de uma densa fila de árvores às margens.

8h45min. Faltam apenas 15 minutos para deixarmos o acampamento. O desembargador Boiteux – que monta o melhor burro da tropa e costuma, por isso, lepidamente fazer a vanguarda com o presidente – “posa” para as máquinas conjugadas do Malburg e do Clovis Viegas, procurando uma atitude bem equestre e bem gaúcha. Já não é mais o “velhinho” das horas do café ou do chimarrão, a reclamar a preferência e a enternecer a gente. É o cavalheiro destorcido, pronto para disparar, de laço boleante, no couce da rês esquiva, através à ondulação dilatada das coxilhas. Está um dia lindo, com um claro e radioso sol a escorrer das folhas e dos troncos úmidos, a mosquear de oiro o chão cor de chumbo e que sugere uma imensa pele de pantera. Um silêncio largo e mole derrama-se, como um óleo, por sobre a grenha ríspida das árvores. Uns minutos mais e somente o crepitar da fogueira que ficou acesa, riscará de rumores a solidão verde da floresta. E quando a noite descer de novo sobre esta paragem e, daquela chama doirada restar apenas uma brasa que lentamente se apaga sob a cinza, o tigre voltará, então, a reinar dentro da treva, absoluto, sanguinário e egoísta como um homem.

A sesteada será hoje mais longa. Teremos, portanto, muito tempo para fazer um bom fogo de grimpas e uma sapecada mais farta. Pela primeira vez, desde o ribeirão 3 de Maio, o meu lápis não fica, até a hora do pouso, inútil e frio dentro do meu bolso. Estamos quase na metade do caminho para a Derrubada, num gramadinho ao pé dum alegre fio d’água que serpenteia, límpido e sussurrante entre umas ervas que parecem aspargos. Para um lado, rumorosas ao vento que sopra do norte, cerram-se macegas altas de painas e de tabocas, grandes capoeiras de carqueja e guamirim. Há também touceiras eriçadas de nhapindá e algumas sarças cheias de amoras maduras. Mas, para a frente e para além desse mar farfalhudo de folhas duras e de varas hirtas que estalam, fecha-se de novo a mataria, de um verde bronzeado e onde, por vezes, se veem alvejar as malhas brancas de umas flores de que eu não sei o nome. Alto, as grandes asas abertas, boiando placidamente na luz, um carancho espreita a grandeza do panorama. Chusmas de chopins, numa grulhada jovial, voam e revoam entre as bracatingas, e num pinheiro solitário, que emerge do macegal movediço, arranhando a luminosa tranquilidade em que a paisagem adormeceu, um bando assustado de tucanos grita roucamente, continuadamente, como louco.

Até aqui tem sido necessário abrir-se a picada a facão, romper-se o rijo tecido dos taquarais e cortar-se a cordoalha resistente dos cipós. Muito raramente encontramos uma passagem desafogada – a não ser nalgum rio ou lajeado – que não nos tolhesse a marcha! E, mais de uma vez, as longas guitas de taquari, com papelotes de folhas rijas, horizontais como nos rabos de pandorgas, ficavam dependuradas, as pontas trêmulas lambendo o chão coalhado de canudos de bambu, atraindo a fome das mulas. E era comum um animal, caminhando, voltar o pescoço e segurar entre os dentes aqueles barbantes acerados, puxando sobre nós uma rede de galhos cortadiços que nos desequilibravam e nos envolviam numa trama de folhas agudas, através das quais mal lobrigávamos o trilho rude. Vencida, porém, a juba verde do taquaral, tínhamos a galharia arrepiada das uvaias que nos fustigavam ou as sebes desgrenhadas dos espinheiros que nos dilaceravam os culotes ou as bombachas. Transido de horror, eu vi um homem dos cargueiros pular do animal que escorregara, quase o espremera entre os arreios e um tronco de cambará, caído em ângulo sobre a forquilha de um cedro. Eram um dos maiores perigos da picada esses troncos enviesados, escorados sobre outros e sob os quais temos que passar dobrados sobre o cabeço do serigote.

— Um escorregão da cavalgadura que arraste a gente para o lado mais baixo, será certo um emprensamento fatal.

— Quando nos livraremos dessa picada?

Encontramos, acampados num “passo”, dois camaradas que andam a roçar a picada: um grande velho, com a cara cheia de rugas como o caroço do pêssego, e um rapazola robusto, cor de cobre, de olhos zombeteiros e cabelos ásperos como o sedenho, já de winchester pela bandoleira. Por eles – enquanto os animais bebiam – tivemos notícias de Barracão e duns alemães que se perderam na mataria e haviam passado cinco dias a pinhão.

— Nós botemos eles na picada. Tavam muito lastimados dos espinhos.

— Não sei como os tigres não os devoraram – disse para mim o Xavier, que, desde o Vorá, não pensava senão em animais selvagens.

Ouvindo falar em tigres, o velho sorriu com superioridade:

— Tigre não pega home de prevenção. Há um par de noites que um bicho arrodeia a barraca, mas, sempre longito. E meu filho percisa arrumá um couro pra fazer uma pareia de guaiacas.

Diante da filáucia, do sereno desdém daquele velho pela fera, lembrei-me de uma charge que eu vi numa revista alemã de humorismo: “Era na África, e um leão entrara, de surpresa, na cubata onde se achava sozinho um caçador famoso.

— Quem foi que disse que o homem é o rei dos animais? – perguntou o leão, de grenha eriçada, as presas fortes à mostra.

— Eu não fui, não senhor! Eu não fui! – respondeu o famoso caçador todo encolhido a um canto, batendo o queixo de pavor vil”.

— Ah! se o tigre também entrasse na barraca do velho pimpão, que tem um filho pachola!

XV

Acampamento na Derrubada, 17 horas e 1/4.

Pela primeira vez as barracas ficam perto umas das outras, como ovelhas que sentiram, em torno, rondar o lobo. Bem junto da nossa, arde um fogo amigo, que vai cozendo o jantar e faz a tampa da chaleira tremer festivamente. E por todas as bandas, e até mesmo no meio do acampamento, cresce um bosque de aroeiras agasalhadoras, de grandes ramarias esbranquiçadas e folhagens viridentes.

— Boa tarde, aroeira.

Dizem que dá sorte se falar com as aroeiras.

É esta, na viagem para o Barracão, a nossa penúltima dormida no mato. No entanto, começo a me lembrar, com imensa doçura, dos acampamentos anteriores, do chimarrão chupado na pressa de uma curta sesteada. Vorá, Campina, Lajeado Liso surgem-me à memória com o prestígio de lugares queridos, onde a gente deixou um pouco da nossa vida. Mesmo a goela inçada de obstáculos que se abre no corpo da floresta bravia e que nós estávamos varando com sacrifícios, aparece-me revestida de um inédito e delicioso pitoresco! Para melhor me penetrar de tudo isso, vou terminar estas notas e, deitado sobre os meus pelegos, pensar longamente nessas vinte e uma léguas de brenhas rudes e de que sinto já as primeiras saudades.

— Arroz e feijão com charque todos os dias acabam por enervar a gente.

É verdade que a solicitude de Manoel Maia nos deu um pernil de presunto e alguns quilos de linguiça, que às vezes se misturam ao banalíssimo arroz. Mas isso é uma espécie de bonina ornamental na imensa e quotidiana mesmice do cardápio. “O grosso da boia”, como diz o Iolare Guimarães, é sempre: arroz e feijão com charque. Ontem, com todos os sigilos, vultos embuçados, senhas e contrassenhas, houve uma conspiração sob a presidência ruidosa do Cid Gonzaga. Ficou resolvida uma intimação ao João Pinto: a clássica e ameaçadora folha de papel pregada numa árvore, à faca, e contendo estas linhas fatais: “João Pinto amigo, ou você altera o menu ou morre!” Por debaixo uma caveira com duas tíbias em X. Hoje, ao almoço, com visível emoção, vimos o cardápio modificado: charque com arroz e feijão com linguiça. O desembargador Boiteux – que passou a comer no meu prato – aprovou a conspiração. Porém, o João Pinto vingou-se: raspamos o bicarbonato de sódio que o Dr. Xavier trazia na maleta.

Nhapindá é um espinho agressivo, rijo e forte, que medra por toda a parte e está sempre onde ninguém o espera. Não sei como não foi incluído entre as sete pragas do Egito. Agarrada por ele, é com estafante dificuldade que uma pessoa se livra das suas puas em forma de alfanje. Quando a gente consegue se desvencilhar de uma silva, longa e flexível como canutilho, já outras se prendem, enroscam-se raivosamente nas calças ou nas abas do casaco. O único, rápido recurso é decepá-las a facão. É o pesadelo de quem anda no mato; o saci-pererê da vegetação que assalta o viageiro nas picadas ou nas curvas dos trilhos. Pois o nhapindá, assim tão feio e tão ríspido, tem a sua história pitoresca e humorística. Soube-a de um tropeiro que me garantiu a sua veracidade de evangelho. Era um negociante muito bom, que não conhecia o quilo de oitocentas gramas e o metro de setenta centímetros. Como vendia fiado, ninguém lhe disputava a freguesia em vinte léguas em redor. Mas, um dia, já comidos pelos outros todos os seus teres e haveres, vieram-lhe os meirinhos à porta a cobrar letras e contas em atraso longo.

— O miserável, magro que nem jaguara – ajuntou o tropeiro – trepou num gaio de umbu, atou o laço na goela e pinchou-se.

O laço era fraco e arrebentou. O negociante caiu e morreu da queda. De noite vieram os graxains e carregaram-lhe pedaços nos dentes, para todos os ventos.

— Aquilo era carne de gente que morreu sem que Deus le mandasse.

Não a comeram, por isso, os graxains. Então, de cada febra espalhada, nasceu uma touceira de nhapindá.

— Sabe vancê, seu doutô, porque o nhapindá agarra ansim a gente?

— Não! não sei!

— É pra ver si topa com alguns dos velhacos.

Com certeza esta história foi feita por um negociante prudente e avisado. Quem sai da selva e entra na Derrubada, sente logo uma impressão alegre de liberdade, de desafogo e de vida ampla e ativa. Insensivelmente nos espicaça o desejo do galope; de expandir, por aquelas imensidades, o espírito comprimido pelos tentáculos formidáveis da floresta bravia. Os olhos se perdem na grandeza desses campos dilatados, que se fundem longe, muito longe, no risco azul da Prússia de umas serras pontiagudas. O sol inunda-os de claridade e o vento dispara sobre eles, vergando hastes e revolvendo folhas secas, como um potro selvagem. Todavia, uma infinita expressão de soledade e tristeza domina a esplendência do panorama. Outrora, em todo este rincão, floresciam fazendas e lavouras fartas. Pelo relvedo macio das canhadas pastavam pontas de gado gordo e em torno das lagoas azuis, debruadas de um capim muito verde e muito tenro, entre as manadas de éguas de cria, os carneiros roliços ruminavam, deitados, e as curicacas iam catando, pelo chão, insetos reluzentes. Às vezes, imóvel e majestoso, manchando o vermelhidão quente do crepúsculo, via-se, também, na lombada de uma coxilha, o perfil brônzeo de um touro. Mas, a revolução passou, e os rebeldes vieram, mais a sua rebeldia avassaladora. Quando eles se foram embora, acossados e enfurecidos, por ali quedaram apenas as taperas e os campos vazios e imensos. As ervas bravas cobriram canhadas e coxilhas e um ser único voltou a imperar em toda aquela redondeza: o tigre. Depois, nem mesmo as taperas tristes ficaram a desmantelar-se no abandono: Leonel Rocha, destroçado em São Joaquim, por ali passou no rumo de San Xavier, na Argentina. E o fogo consumiu as derradeiras traves, os últimos desvãos das alcovas onde os graxains se açoitavam e dormiam, dependurados pelos ganchos das asas, à hora do sol e da luz, os morcegos hediondos. Vimos hoje umas tranqueiras de cedro diferentes das que comumente se erguem na zona pastoril de Santa Catarina. Informaram-nos que eram “rastros” de uma tentativa de ocupação argentina, no tempo da “demanda missioneira”. Dois fazendeiros castelhanos –“castelhano” chamam por aqui todo o indivíduo que fala o espanhol – e mais uma peonagem macanuda, ali haviam chegado, com grandes tropas por diante. Primeiro armaram as suas “carpas” de lona vermelha e começaram a derrubar um matão em redor. Depois, passados uns pares de dias, já se alevantavam as mangueiras pras lidas, os chiqueiros pra terneirama e uma rancharia que nem uma cidade! Mas, por pouco: que a “caboclada fez muita bulha e andou marcando, a facão, alguns peões intimadores”.

— Mesmo — diz que – eles perderam a demanda com o Brasil. Barbaridade! Também aquelas gentes queriam um mundão de terras: do Chapecó ao Chopin!

E, após uma pausa, o pitoresco informador rematou, numa baforada de fumo do seu cigarro:

— Eta! Castelhano boleado! Era melhor se atar, por suas mãos, na cola de um cavalo chucro!

Só poderemos chegar a Barracão depois de amanhã! Temos ainda oito ou nove léguas de picada correndo à nossa frente, furando taquarais, subindo escarpas, vadeando rios e rompendo através da turbulência das galhadas, folhagens e cipós. Se fosse em caminho aberto, civilizado, ou se nós não estivéssemos chocalhados por cerca de 120 quilômetros em lombo de mula, certamente venceríamos essa distância com “sobras de fôlego nos bofes”, como se diz na minha Ilha bem amada. Já nos começam a escancelar a boca: os bocejos de tédio e de fadiga. A média tem sido, por dia, desde Mondaí: seis léguas. Montamos às 10 horas e às 17 acendemos a fogueira do pouso. É um esforço tremendo, que faz pasmar os homens acostumados a bater estradas e caminhos “tudavida e de vereda”. Mais de uma vez tenho ouvido os tropeiros, esfalfados, exclamarem, a descarregar a cargueirada:

— Barbaridade! Até se crê que andemo no rastro do Prestes!

O Curió e o Jerônimo Vargas sairão de madrugada para Barracão, com recados do Maia e para arranjar hospedagem para esse mundo de gente; cerca de trinta pessoas, fora os tropeiros. Com certeza, vou mandar por eles os meus telegramas para Florianópolis. Preciso me comunicar com o mundo, mesmo através dos fios de arame do telégrafo.

Após o jantar estive ouvindo contar a história da “casa branca”. Graças a Deus, nestes rincões inçados de cruzes e sepulturas, de ermos desolados, feitos para as esperas sinistras e onde cada recanto evoca um pescoço sangrando, floresce e entorna o seu doce aroma – o lírio de uma lenda! É a gesta bárbara de um amor infeliz, vagando através dos descampados das queimadas, loucamente, perdidamente em busca da casinha nupcial, toda branca e entre pessegueiros e macieiras em flor, fugindo sempre a sua frente.

— Então, a casucha branca fugia sempre?

— Fugia, como ainda hoje ela foge, quando a procuram viageiros mortos de cansaço e de frio.

Ela aparece ao crepúsculo, no fundo azul da distância, no suave pendor de um coxilhão. As janelas faíscam num brilho de pedrarias raras, e pelo fumo que sobe do seu telhado, o viageiro sente o agasalho do lume que arde lá dentro. E troteia, todavia, os olhos fincados naquele pouso fascinador, como um oásis aberto na imensa desolação dos campos mudos e cheios de sombras. E já a noite desceu, e ainda ao longe, no meio da treva, os olhos luminosos da casa branca espiam e chamam, com uma ternura maior. De repente, porém, o viageiro vê, já perto, as cabeças redondas das tranqueiras, a ramada, o grande vulto do umbu hospitaleiro e bom. Então, palpitante de alegria, na perspectiva de um fogo amigo, ele apeia e caminha; as suas esporas retinem no silêncio da noite e o seu coração se conforta na certeza do chimarrão próximo. Mas tudo se esfuma e se desvanece, e de novo, longe, muito longe, espiando e chamando, reluzem os dois olhos fascinadores da casa branca. Dentro da noite álgida e deserta, andam uivos de tigres. No cocoruto de algum cupinzeiro, chirriando, uma coruja sarja, agoirentamente, a escuridão imensa e côncava. E o viageiro tiritando, perdido e só entre as ocultas hostilidades da treva, com o seu cavalo arquejante pela mão, continua a vagar à toa até que rola exausto, por sobre as úmidas touceiras de capim.

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Graças te sejam dadas, tropeiro amigo, que me permitiste achar, na grandeza bravia dos teus pagos, a maravilha desta lenda – gema das tuas gestas e filão radioso do ignorado folclore da minha terra.

XVI

Acampamento em Separação, 06/5/29

Fizemos sete léguas em seis horas e meia. Estamos distantes de Barracão umas duas léguas, não mais. Foi um recorde. A picada mostrou-se menos hostil. Caminhamos hoje alguns quilômetros no regaço bravio da floresta, através de pinheiros altos e redondos como torres, tão grossos que dois homens não os abarcam; e dos torsos hercúleos e rugosos das imbuias, de copas largas e vastas, emaranhadas de gravatás e barbas-de-velho, e como feitas para abrigar o amor de todos os pássaros; e das colunas majestosas dos cedros, de cujas franças refolhudas pendem lianas frágeis e cipós rijos, pesados como cordas; e de cambarás felpudos de musgos e fungos vermelhos; e das hastes finas e esguias das bracatingas; e de troncos cor-de-rosa, manchados de branco e cheios de estrias verdes, que me fizeram lembrar uma pintura impressionista. E rompemos por entre uma vegetação ansiosa, porejante de seiva, que sobe pelos desvãos dos caules e das galhadas, contorcendo-se na incontida volúpia pela luz, entreverando-se na luta pela conquista do chão e do espaço, e afogando um tumulto de ervas altas, de madeiras apodrecidas, úmidas, tristes e em que se abrem orelhas-de-pau e cogumelos ressumantes, e, por vezes, purpureia a flor bizarra das parasitas. Espécies vegetais sem conta se agrupam em toda a parte e um cheiro de húmus e um sabor resinoso de seiva envolvem, numa carícia fecundante, a selva inteira! Entre Mondaí e cerca de meia légua antes de Separação, só o patriarca Siebeneichler ergueu o seu rancho de costaneiras e acendeu a sua trempe. Só ele retalha a carne virgem da terra e lhe recolhe, depois, nas concas das mãos ásperas, o sangue generoso que se transformou em milharais empenachados! E nesses cento e cinquenta quilômetros entre o Uruguai e os três caminhos, perto das cabeceiras do Peperi-Guaçu, Siebeneichler é o único morador: um Robinson Crusoé que só difere da aventurosa criatura de Foe porque é brasileiro, tem 18 filhos, vários papagaios e uns guaipecas cinzentos que os tigres comem, quase sempre em janeiro, quando os guamirinzais se enchem de flores e de aromas doces.

Há três dias que não ouvíamos o latir insistente de um cachorro ou o clarim doméstico de um galo. Só o rumor do vento nas folhagens, o grito metálico das gralhas ou o grasnar escuro dos tucanos, quebravam o silêncio côncavo e fofo da brenha imensa. A nossa vida, nessas últimas cento e setenta e duas horas, tem sido de absoluto, completo isolamento! E desde seis dias que não sabemos a mais leve notícia do mundo, nem se as searas amadurecem no sossego da Paz, ou se os campos se revolvem aos pampeiros da guerra! Toda a civilização trepidante, viva e poderosa em que nascemos e fomos criados, pouco a pouco se foi desfiando e, por fim, desapareceu na vastidão destas alfombras selvagens. Parece que trilhamos um mundo já morto há milênios, sem memória dos seus dias; ou percorremos uma terra em formação, ainda na sua gênese, e da qual somos, neste momento, apenas uns escuros pontos minúsculos que se movem lentamente.

Ainda há pouco, quando escutamos os miseráveis latidos de um cão, todos nós nos alegramos, sentimos que se nos aquecia o coração, a ideia de que em breve encontraríamos um teto amigo e alguém para nos agasalhar. E o alvoroço, a emoção que nos dominava, floresceu esplendidamente, humanamente, na ruidosa expansão com que recebemos, numa encruzilhada hesitante, o homem que viera de Barracão ao nosso encontro e que o Floriano de Moraes encontrara na ramadinha de um ervateiro, onde fora indagar dos quatro caminhos. Depois, até aqui, viemos parando em todos os ranchos, ora pedindo água pelo simples prazer de ouvir uma voz que nos fosse nova, ora indagando da estrada pelo pretexto de ver um rosto que nos fosse desconhecido. Até umas humildes galinhas escabichando um chão farfalhante de palhas de milho; até o gado que remoía, sonolentamente, ao pé de uma porteira carunchosa, nos deram um infinito contentamento! Não! Eu não posso crer na tal “ventura do isolamento”, de que tanto falam os doutores da Igreja. O homem nasceu para morrer entre os homens, e sentir todas as suas misérias, e beber, avidamente, até a última gota, pela taça amorável e efêmera da vida: “a delícia das cousas imperfeitas!”

Separação – vértice de dois caminhos – é o mais amplo, largo acampamento de quantos temos levantado na brabeza das brenhas, à beira desses arroios claros e resvalantes. É um terreno de várzea, chato, coberto por uma alfombra verde de capim e que, através das carquejas e do guamirim, funde-se num mato crespo, donde se empinam os vultos cônicos das erveiras e se erguem, acima de uma toalha de folhagens, como num brinde festivo da floresta, a taça de bronze dos pinheiros. A um canto à esquerda, correm as manchas horizontais de uma cerca em que há folhagens enroscadas e secam ao sol alguns atilhos de milho branco. Rente da mangueira, dando sombras e frescura no verão, pessegueiros deixam cair, uma a uma, as folhas oblongas e já amareladas. E uma porteira de varas longas e paralelas defende dos gados uma velha casa de moradia, construída sobre um terreiro vermelho, de barro batido, com estrias abertas pelo calor e onde se empilham cangalhas e bruacas vazias. Adiante, ao pé de uma ladeira íngreme e sulcada pelas chuvas, ziguezagueia e borbulha um lajeadinho todo arrepiado nas pontas luzidias dos seixos.

A tarde ainda se embebe de sol e de rumores claros. Em manchas verdes e palpitantes, numa gritaria louca, papagaios e baitacas mergulham na mata imóvel. Uma luz quente, imensa, debrua de oiro as copas das árvores, e da grenha alvoroçada das galhagens fogem chilreios e cantos de sabiás.

Já desencilhamos os animais, e pelo enorme chão macio e fofo desdobra-se a faina de todas as tardes. Mas, dentro de algumas horas, a “bandeira” atingirá o Peperi-Guaçu e por uns dois dias as barracas repousarão entre cordas e arreatas.

Anoiteceu. O Bley Netto, o Dr. Xavier – que está adoentado –, o desembargador Boiteux, o Arthur Costa, o Haroldo Pederneiras e eu nos alojamos na casa do Posto Fiscal, num alto que domina o acampamento. Da janela estreita, como uma reixa de torre, vejo luzir lá embaixo, na treva serena, o lume alto de duas fogueiras. Um rumor de vozes circula em torno das manchas escuras das barracas; e às vezes, também, vultos param, ou passam e repassam à frente do clarão ondulante do fogo.

Não sei porque penso nas futuras marchas imigratórias das gentes do sul – superpovoado – demandando as terras ferazes e desertas do norte. À minha imaginação, para logo, desfilam as longas caravanas, os carros apinhados de mulheres e crianças, as tropas de bois e os rebanhos de carneiros, envoltos em estrépito e poeira! Deverá ser assim o espetáculo noturno dos acampamentos espalhados na vastidão das nossas terras-a-dentro. Luzes fortes tremulam dentro da noite; e vozes, numa língua brasileira pela harmonia e pelo vocabulário, cantam a beleza da vida. E há por sobre essa grande palpitação de energias um céu em que brilha uma cruz viva de estrelas. Latidos de cães e mugidos de bois pontilham o vasto rumor que despertou a solidão e está impregnado de cheiros acres. É um povo – mescla de várias raças enxertadas no cerne rijo do caboclo – que retoma o ciclo heroico das bandeiras e reflui para as regiões ainda vazias do Brasil, a domar a bruteza das selvas, a semear as cidades pelos chapadões, a levar à gente intrépida, que tem lutado sozinha contra a imensidade da gleba e as deliquescências da sua mestiçagem, o concurso fraternal e amoroso dos seus braços e do sangue forte e novo. Levado na ondulação macia do meu pensamento, sinto e antevejo a vitalidade esplêndida e a glória porvindoira do meu Brasil, que, neste momento, a constância cívica e a energia do presidente Konder, integram na plenitude das suas fronteiras em Santa Catarina.

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Lá embaixo, afogada no silêncio em que adormeceu o acampamento, apenas uma fogueira arde num lume brilhante, como a nuvem milagrosa que deslizava à frente dos hebreus, no caminho da terra da Promissão.

Como é comum ao longo da picada, existe também aqui, em Separação, um cercado rude assinalando o sono infinito de uns nove ou dez bravos gaúchos da coluna do coronel Claudino que se havia “estranhado” com a vanguarda do general Paim Filho. Fora uma briga curta, de algumas horas: intrepidez contra intrepidez, heroísmo contra heroísmo! Pouco tempo antes, na picada, alguns quilômetros distantes de Separação, a gente de José Maia – que fazia a vanguarda – tiroteara cerradamente com a retaguarda de Carlos Prestes. Vimos as trincheiras numa curva do trilho áspero: um sulco na terra, em meia-lua, oculto na mataria, e um grosso tronco de pinheiro, à guisa de parapeito. Deveria ter sido épica, violenta, a luta naquele cerrado bravio! Ora, saindo em Separação – donde parte uma estrada de cargueiros para o Paraná – monteando o chefe rebelde, a coluna Claudino tinha que encontrar, fatalmente, a vanguarda de Paim Filho, que vinha de Pato Branco. E o general Paim Filho, que descia, com todas as precauções e a marcha forçada, ao encontro de Carlos Prestes, ignorava que os rebeldes acossados, batidos um dia antes, na picada, já se encontravam em Barracão, no rumo do Iguaçu. E as duas forças, apagados os distintivos pela treva da noite, “se estranharam”. Não houve nisso nenhuma estratégia... Carlos Prestes nem sabia da marcha de Paim Filho, e a sua preocupação era escapar à perseguição tenaz, insistente e irresistível do coronel Claudino. Mas para que avivar esses traços de sangue irmão?

XVII

Barracão, 07/5/29.

Vencemos! Dez e meia da manhã. Há um festivo clangor que me comove e entusiasma!

— Viva o Brasil! – gritou o presidente, acenando o seu chapéu, ladeado por uma grande multidão de cavaleiros.

Ao fim de capoeiras e de um mato eriçado de carrapichos, apareceram telhados esguios, bandeiras nacionais ondulando ao vento.

— Viva o Brasil! – gritamos todos, alçados nos estribos, galopando através de ramos ásperos e farfalhantes.

Fiquei alojado no sótão de uma casa que serve de depósito para erva-mate e tem, no rés do chão, um balcão manchado de sangue humano. Através da janela, como uma grande moldura, vejo uma terra íngreme, com filas de árvores e casas cinzentas e onde tremulam bandeiras argentinas. Um galo canta, perto, talvez na sombra quieta de algum quintal; e um ou outro foguete ainda estoura no ar. Mas, longínquas e delgadas, andam vozes de crianças brincando. Depois, um sino tange, lento e regular. E as vozes desaparecem no ar luminoso e azul.

Meia légua antes de Barracão – Dionísio de Cerqueira é um nome oficial – vimos alguns cavaleiros que se aproximavam ao galope largo dos cavalos. Tinham chapéus de abas moles e os palas claros atirados para as costas. Logo atrás, entre nuvens de pó, cerrava-se uma longa fila de homens a cavalo. E em torno a decoração rica dos pinheiros, das erveiras, toda uma vegetação iluminada pelo claro sol de maio, que amadurecia as uvaias sápidas e excitava os insetos de asas de mica e que revoavam ávidos de luz. Depois, a enorme e inquieta massa parou; e dentre ela romperam aclamações amplas e vivas. Alguns minutos para as apresentações e cumprimentos, e de novo o chão duro ressoou sob as patas de duzentos cavalos. Maracanãs gritavam no fundo das folhagens, e voando de palanque em palanque, leve e sem rumor, uma corujinha do campo fixava em nós os dois olhos redondos e amarelos como topázios.

Atravessei o Peperi-Guaçu, na sua modéstia de cabeceira. É um desses riachinhos domésticos que, entre latas velhas e ervas-de-santa-maria, correm no fundo ensolarado de quintais, mal cobrindo o bico de um pato. E quem o vê adiante, a alguns quilômetros ao sul, imponente, roendo barrancas, arrastando troncos e fuzilando ao sol o dorso largo e luzidio, nem pensa no humilde fio d’água que foge na dobra de uma canhada e mal reflete uma nuvem que passa ou as asas de renda das libélulas inquietas.

Senti, hoje, pela primeira vez, a emoção enternecida de ver, da terra estrangeira, a bandeira da Pátria! Nunca me pareceu tão bela e tão cara ao meu coração! Sobre a ardósia lustrosa do céu, altiva, dominadora e generosa, ela drapejava, palpitante de vida, aureolada pelo sol e pelo prestígio sem igual de um século de glórias! E daquele solo amigo – onde uma vez tremulara ao lado do pavilhão azul e branco, irmanada por um ideal de Justiça e de Liberdade Humanas – eu pedi a Deus para que sempre nos conservasse unidos à sua sombra maternal e a mantivesse sempre assim no alto, nobre, magnífica, hospitaleira – como a própria alma verde e oiro do meu Brasil.

O paradoxo da fronteira — seria o título de um largo ensaio se eu tivesse vagares para ensaios largos. Não pode haver maior paradoxo do que a linha divisória entre o Brasil e a Argentina, pelo Peperi-Guaçu. Virtualmente ela não existe. Barracão e Barracón são uma só e única povoação cortada por um fiapo de água abandonado e que a língua de um cão, bebendo, revolve e turva. Na parte argentina o “mil réis” tem o seu curso natural; fala-se o português como um idioma doméstico e são brasileiros os comerciantes mais fortes e destacados. Mas, apesar disso, o ambiente é absolutamente argentino pela ordem, pela organização política e administrativa e, sobretudo, pela escola! Prudente, conhecendo as fraquezas sentimentais dos corações que vivem ao lado um do outro, pulsando sob o mesmo ritmo de simpatia, o governo argentino não despacha para Barracão autoridades nadas e criadas em Barracón... Juiz de paz, Jefe de lo Resguardo, professores, comissários de polícia e até os severos policiais de grandes bigodes e espadagão à cinta, tudo isso vem de Buenos Aires ou das províncias, a “servicio de la frontera” e, portanto, a serviço da nação argentina. É verdade que recebem uma remuneração redonda e gorda; porém ao lado dessas vantagens superiores, que tornam a própria Cafraria um recanto amorável, domina um sentimento belo e forte: a obrigação cidadã para com a Pátria. Mantendo, assim, na sua banda, esse “estado de prazer político” de que nos fala Platão e que podemos traduzir, em linguagem cristã, como “um regime de Paz e decência nas cousas públicas”, os argentinos submetem, absorvem as populações brasileiras da zona fronteiriça e se não lhes impõem o espanhol, força-os, de resto, à dependência humilhante do asilo, da proteção legal – até aqui um farrapo vil de neblina na banda brasileira. Eu vi um certificado de nascimento de uma criança brasileira, mas que fora registrada na Argentina e uma escritura de venda de um imóvel situado no Brasil e lavrada, estampilhada em Barracón!! E sei, também, de brasileiros que estão servindo no Exército argentino!!! Mas tudo isso por quê? Pelo abandono, pelo impatriótico desdém, pelo anacrônico sectarismo que faziam os nossos homens públicos, até a pouco, se babarem diante da bojuda Humanidade, dando de ombros ao Brasil. Ao sótão, entre badulaques e outras cousas inúteis, jaziam os extremos da Pátria, no Peperi-Guaçu. É que ninguém se importava com o laudo do presidente Cleveland...

Quando voltava do meu primeiro passeio a Barracón, encontrei sobre a ponte de madeira – construída pelos argentinos para sobre ela passar o presidente Konder – algumas crianças brasileiras pasmadas para a bandeira nacional, que viera de Buenos Aires! Comovido, perguntei-lhes se não achavam bela a bandeira da Pátria.

— Sim – responderam-me. Mas, não é de seda.

Então um rapazinho trigueiro e de cabelos pretos, com uns olhos em que brilhavam a inteligência e a sagacidade de duas raças, apontando os companheiros, disse:

— Eles não conheciam a bandeira do Brasil!

E tirando do bolso um distintivo de celuloide, desses que se usam à lapela:

— Eu sim!

— Quem te deu isso?

— Um soldado do coronel Claudino. Ele tinha uma porção de bandeirinhas.

Barracão esplende de sol. Bandeirolas se agitam ao vento, num rumor contínuo e trepidante. Ao longo da rua que desce até ao Peperi cruzam homens a cavalo, lenços brancos ao pescoço e largos sombreros com barbicacho. Um velho passou tocando um cargueirinho por diante. Duas horas e um quarto, hora brasileira, porque do outro lado regula o fuso de Buenos Aires. Longe, da outra banda do Peperi-Guaçu, estão saindo crianças de uma escola!

— Como tem alunos aquela escola!

— São quase todos brasileiros e moram do lado de cá – exclamou um cavalheiro paraguaio criado em Corrientes, atualmente residindo no Brasil e que me vem servindo de cicerone desde meia légua antes de Barracão.

— E frequentam uma escola argentina?

— Que fazer? Não temos escolas brasileiras!

— Assista usted – falou-me o amável cavalheiro na sua língua luso-castelhano, passando-me o chimarrão. Assista usted um exame na “Escuela 49”.

— Quais os grandes vultos da história de nossa Pátria? – pergunta o professor argentino.

San Martín, Sarmiento, Rivadavia, Mitre... – responde, em castelhano, a criança brasileira!

— Entre todas as bandeiras, qual a mais bela e a mais gloriosa?

— A argentina, o sagrado pavilhão da minha Pátria! — continua a criança do Brasil.

— Sabes os nomes de algumas vitórias do Exército argentino?

—...... Ituzaingó, Monte Caseros, Tuyuty!

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Para que o comentário? Basta o doloroso registro.

XVIII

08/5/29

Conheci ontem, em Barracón, um comerciante sírio de nome Junes, casado com senhora argentina e com filhos argentinos. É um tipo baixote, sem medalha de brilhante e cabelos quase todos brancos, com o ar tranquilo de quem vai arredondando pés-de-meia e acha, por isso, a vida melhor que um cacho de tâmaras, ou uma tenda de pele de cabrito. Armou o seu negócio logo à boca da povoação; e como atirou às prateleiras um caos de cousas várias, desde os piedosos rosários de conta azul às ímpias e horríveis balas 44 – que aqui têm um consumo notável – conseguiu o truste da freguesia e gastar por semana uma caixa de pares de meias... Na casa, porém, o português é língua trivial, corrente como o “mil réis” no seu balcão! Perguntei-lhe se não falava o castelhano. Ele sorriu.

— A mulher e os filhos gostam mais do português.

— Mas são todos argentinos?

— Sim, sim! somos todos argentinos! – acudiu um rapaz moreno, com um langor oriental nos olhos pretos e que estava a embrulhar um lenço de seda verde. E mais vivamente: — muito argentinos.

— Este é meu filho.

E Junes tinha um grande sorriso sobre uma fila de dentes de oiro. Enquanto o velho sírio me contava, depois, uma complicada história de terras e casas no Brasil, eu fiquei a olhar aquele rapaz, filho de estrangeiro e que falava uma língua estrangeira, mas que sentia, fundamente, a sua nacionalidade! Que estranho poder, de resto, havia trabalhado o seu caráter, forjado a alma desta criança que vive no extremo da Pátria, numa região quase comum e num lugarejo inferior à povoação brasileira, que crescia no outro lado de um quieto risco de água? Naturalmente o ambiente de paz e de ordem em que está sendo criado e, acima de tudo, como um claro sol que se não apaga, a escola – onde aprendera a conhecer a sua nação e os homens fortes que a engrandeceram. O contraste brutal entre as duas vidas às margens do riacho humilde, talvez, fortalecera ainda mais o seu orgulho nacional. Porém, felizmente, uma aurora vivificante já vem listrando de luz a longa noite que envolve este belo rincão.

O Cônsul brasileiro em Corrientes, Sr. Müller dos Reis, contou-nos, ontem, um episódio curioso e que faz avultar o respeito das autoridades argentinas pela soberania do Brasil. Um malfeitor qualquer – homicida ou correntino ladrão de cavalo – que pretendia fugir, foi laçado numa perna por um daqueles policiais de brim cinzento, grandes bigodes e espadagão à cinta.

Robusto e ágil, conseguiu ele, porém, arrastar o policial ao canhadão em que foge e sussurra o Peperi-Guaçu. Num pulo fincou-se à margem brasileira, agarrando-se às touceiras de mato bravo que ali cresce com abundância e força. Vieram outros policiais, e veio também, o Comissário. Mas o malfeitor se prendera à terra como as raízes das imbuias. E era inútil toda a força que puxava o homem, retesando o laço como corda de violão. Certo, os policiais poderiam cutucar o preso com os seus espadagões ou, mesmo, curvar-se um pouco e agarrar o homem, ou, ainda, pular um momento na outra margem. Porém, naquela banda era o Brasil e eles não podiam violar o seu território. Sem largar a corda, todavia, sentaram-se. Nisso, de uma casa de Barracão acode um sujeito correndo, com uma faca na mão. E à vista dos policiais atônitos e desapontados, o sujeito dá um golpe no laço, como Alexandre diante do nó górdio. Era, talvez, a mão lavando a outra mão...

O presidente recebeu um convite para visitar Barracón, onde lhe serão prestadas homenagens. Ficou resolvido que hoje às dez horas, – hora argentina – iria até lá. Também o governador de Missiones, por intermédio do cônsul Müller dos Reis, que veio a Barracão, a convite do presidente, combinar negócios de mate, fez sentir ao Dr. Adolfo que muito desejaria tê-lo como hóspede do território.

O programa aqui em Barracão é diferente. Após a visita ao Barracón e aos 2 marcos fronteiriços, trabalho. Aliás tudo está por fazer: não há autoridades policiais, juízes de Paz, cartório, escola, a mais leve organização administrativa ou política! Barracão nem tem igreja! Creio que nunca viu um padre! Casas nas dobras das coxilhas e, num alto, um enorme, comprido barracão de madeira, para erva-mate. Em torno à planura, alguma rude mataria e uns cerritos esfumados na distância e como feitos de gaze. Por cima de tudo isso a curva do céu, muito azul e muito doce e onde voam, fartos e serenos, os grandes caranchos negros. Pouco a pouco vou apanhando pedaços da vida de Barracão: são retalhos cortados à faca, irregulares, alguns têm ainda manchas de sangue. Mas, justiça se faça, esta gente não tem culpa da barbaria que a desorienta e brutaliza. O mais belo jardim se afoga em erva hostil, e o abandonam. E a civilização mais forte e brilhante definha e escurece, se lhe tiram os elementos de ordem e a deixam entregue exclusivamente aos instintos das turbas. Já se disse – e com sábia e alegre razão – : tire a polícia do Mundo e o Mundo voltará a ser a flamejante nebulosa de Laplace.

As homenagens de Barracón deixaram-me uma viridente, clara impressão que não poderá morrer. Autoridades e altas personalidades locais; crianças da “Escuela 49”, ladeando os pavilhões argentino e brasileiro, vieram esperar o presidente Konder na outra margem do Peperi, sob um dossel de folhagens onde tremulam galhardetes e, voltadas para o Brasil, no cabeço argentino da ponte, panejam as bandeiras das duas nações. Foi um belo espetáculo de confraternização! Ouvimos um magnífico discurso do professor José Ortiz, que reviveu, sob o mesmo sol que iluminava e aquecia as duas Pátrias, os vínculos históricos que unem os dois povos. As crianças cantaram, findos os rumores de palmas e vivas, o hino à bandeira argentina. Eram quase todas brasileiras aquelas crianças e, através da harmonia vibrante da música, exclamavam: Salve! Salve pavilhão de minha Pátria! Aquela bandeira, de certo, não era a bandeira do seu berço. Mas, ao lado dela, “como um pálio de luz” drapejando no céu de uma nação amiga, florescia em verde e oiro a bandeira do Brasil. Ambas juntas, unidas como sempre, bem simbolizavam a Pátria americana, o grande lar continental, agasalhador e bom, onde a flor da lealdade espalha o seu doce aroma e a Concórdia abre os seus braços animosos para estreitar todos os homens da Terra! Por isso, todos nós, argentinos e brasileiros, podíamos cantar, como aquelas crianças, com os olhos nas duas bandeiras: — Salve! Salve pavilhão da minha Pátria!

Depois seguimos à “Escuela 49”. Das varandas enfeitadas, algumas com retratos de próceres argentinos, senhoras jogavam flores sobre o presidente Konder, aplaudiam o cortejo que passava! Os meus nervos retiniam como guizos de prata. Eu olhava para a frente e via duas bandeiras inquietas, cheias de vitalidade, palpitando como corações dentro do peito luminoso da manhã! E sentia um contentamento imenso, insopitável, em viver aqueles momentos, em me lembrar que Santa Catarina, através do seu presidente, pela primeira vez na vida internacional do meu país, numa longínqua vila fronteiriça, servia de fraternal traço de união entre o Brasil e a Argentina e dessa forma trabalhava para a maior glória da Pátria e da América.

“Doctor Adolfho Konder! Bienvenido seás, Mensagero de Paz e de Cultura”. Sob esta bela inscrição, transpusemos, comovidos, os umbrais da escola argentina. Por toda a parte galhardetes e folhagens, entre quadros escolares e estampas patrióticas. Ao fundo, retratos dos grandes patriotas argentinos, encimados pela figura maior de San Martín. E juntas, presas pelo mesmo nó: as bandeiras do Brasil e da Argentina. Primeiro falaram três crianças em português. Uma, em nome da “Escuela 49”, que ofereceu flores ao presidente; outras duas, pela infância brasileira. Confortou-me o discurso de uma delas: “Saúdo a V. Exa. por sentir em nosso caro Brasil, no rincão de Chapecó, desabrochar uma nova era de Ordem e de Progresso.” Aquele nosso “caro Brasil”, então, vibrou dentro de mim como um canto sagrado pelos intradorsos de um templo. Depois o diretor da Escola, Sr. Juan Russo, leu a sua empolgante saudação. Através dela senti a cultura, o civismo e o espírito brilhante do orador. Incontestavelmente, aqueles dois professores honravam o magistério argentino. Em seguida, o presidente Konder agradeceu o carinho daquele agasalho da terra amiga. E exaltou a obra de fraternidade e de trabalho fecundo realizada pelo Brasil e a Argentina na América – expressão de uma continuidade histórica sem igual no Mundo e reflexo dos altos sentimentos de justiça continental. Empolgado pelo ambiente, o desembargador Boiteux proferiu uma bela oração: evocou a grande figura de Moreno, emigrado no Brasil, fugido à tirania torva de Rosas e mestre-escola em Santa Catarina, educando uma geração catarinense das mais notáveis na História Pátria. Foi uma surpresa a revelação do velho e querido historiador. Surpresa para todos nós, brasileiros e argentinos. Compreendi porque o garotinho, quando lhe perguntei ontem se achava bela a bandeira brasileira, me respondeu: Sim. Mas, não é de seda. É que a bandeira argentina, da “Escuela 49”, que ele está habituado a ver todos os dias, na sala de aula, é toda da mais pura seda.

Depois do churrasco o presidente visitou os marcos fronteiriços. Primeiro, o do Paraná – Santa Catarina, alto e esguio, com uma placa de bronze, e depois, alguns passos ao lado, no canto de uma cerca, o brasileiro-argentino, pesado, baixo, apenas com letras nas duas faces: A e B. O quintal cercado da Coletoria paranaense está parte no Brasil e parte na Argentina. Não sei como a linha seca entre as cabeceiras do Peperi-Guaçu e as de Santo Antônio chegou até ali, num grande ângulo aberto e cujo vértice é aquele marco! Lá embaixo, existe um outro padrão, dividindo o cemitério. Como o lado brasileiro está cheio de covas rasas e túmulos de pedra, é necessária a licença das autoridades argentinas para se proceder a um enterramento.

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— Tudo nos une e nada nos separa! Até mesmo os cemitérios.

Barracão, enfim, está com a sua vida administrativa e política normalizada. Dentro de pouco tempo, sob o impulso milagroso do trabalho honesto e ao ritmo isócrono da ordem, toda esta região reverdecerá como os campos depois das lentas queimadas de agosto. O presidente Konder, dominando as dificuldades mais árduas, realizou, pela força ascensional do seu patriotismo, a maior obra de brasilidade desses quarenta anos de República. A vitória esplendente de Rio Branco mergulha, agora, as suas raízes no solo reconquistado para a Pátria. E foi – bela coincidência – o presidente Konder, amigo dos mais diletos do chanceler glorioso, que o destino reservou para incorporar definitivamente, absolutamente, à geografia humana e ao patrimônio cívico do Brasil, estas ubérrimas e abundantes terras de Santa Catarina – que o laudo Cleveland restituiu à bandeira nacional.

Se é verdade que, apertando um botão elétrico, é possível matar-se um mandarim nos confins da China, no instante em que empina o seu papagaio amarelo, pode-se também, com este simples movimento, arrancar um homem do seu isolamento e dar-lhe uma breve noção da vida que em torno dele fumega, tumultua e marcha irresistivelmente. O telégrafo teve este poder milagroso: levou a Barracão, sob a forma da notícia, o Brasil e o Mundo. E trouxe a Florianópolis a barbaria em que vivia Barracão! De resto, nem sempre a notícia se apresenta nua, sem medo da polícia, como a Verdade; quase todo o dia ela se mostra ao público com as roupagens rutilantes de retórica. Mas, de qualquer maneira é a informação – e isto basta. E é já alguma vantagem para o Barracão brasileiro ainda bravio e irrequieto, prender aos fios de arame do seu telégrafo o Barracón argentino, capinado e ordeiro, mas que não possui esse meio superior e humano de comunicar com o próximo. Deve a imensa região das duas margens do Peperi-Guaçu este serviço, dos mais brasileiros e meritórios, é de justiça se assinalar, ao atual governo da República, através do lúcido patriotismo do ministro Victor Konder.

O presidente esteve em casa da viúva Cabral, em Barracón. A infeliz senhora mandara pedir “o favor de ouvi-la”, já que lhe era impossível vir ao Brasil – sua Pátria interdita! É o capítulo mais doloroso da história de Barracão. Mataram-lhe o marido num dia; no outro, mais dois filhos! Vira os três cadáveres, riscados à bala, entrarem em sua casa, trazidos pelos próprios matadores! Depois, um a um: os genros. O último morrera, após um baile, aos olhos de toda a gente. (Era dele o sangue que ainda manchava o balcão da casa em que me alojara!) E ali estava agora, “tocada da sua querência”, exilada e passando miséria na terra estrangeira, reduzida àquele filho de vinte anos, que ela escondia com o último desespero do seu coração de mãe. Nem tinha certo o lugar do seu pouso, com receio de que, à noite, os Laras viessem correr o ferro no pescoço do seu rapaz adormecido. Os seus campos e ervais, a sua casa e o seu gado, tudo estava nas mãos dos seus inimigos rancorosos e solertes. Nada queria; apenas pedia justiça e que cessasse esse ódio de extermínio que abre, sobre a sua família, as asas sinistras e torvas.

— Mas o presidente já mandou o Dr. Chefe de Polícia apurar esses fatos – disse o desembargador Boiteux, consolando-a.

— Deus lhe pague – exclamou ela para o presidente – Deus lhe pague a esmola da Justiça.

— Esmola não, minha senhora! – respondeu o presidente comovido.

E naquele dia, confortada no seu coração, a pobre velhinha sentiu, talvez, depois de longos anos de lágrimas e angústias profundas, a esperança de cerrar os olhos sob o olhar do seu último filho!

O entrevero nem durara um pio de nhambu: os revólveres fuzilaram, logo. Caído junto ao balcão, com a carótida cortada a bala, o derradeiro genro do Cabral estrebuchava.

— Viste! chamei-te no estanho! – gritou da rua o matador, impando de alegria sanguinária.

— Onde há boi, há cornada!, bandido! – respondeu o ferido, afogado em sangue.

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— Raça de gente ruim – ajuntou o cavalheiro prestativo, que me sortia de detalhes.

Quando o velho Cabral estava derrubado, com duas balas de winchester no peito e o cavalo esperneando, o Lara chegou, de 44 na mão.

— Não me atire mais, primo, que já estou morto.

— Defunto não fala, compadre!

E despejou o 44.

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— Raça de gente ruim! Barbaridade!

XIX

09/5/29

Voltamos à faina dos arreios. A “animalada” já está “lista e guapa”. Estamos apenas à espera que o presidente faça o sinal de partida. Vamos desfalcados de dois esplêndidos companheiros: o tenente Honório Castro, ajudante de pessoa do presidente e que assumiu a Delegacia Especial de Barracão e o Theotônio Alves, incumbido de organizar os negócios do Tesouro estadual aqui. O sacrifício para eles não é dos menores. Mas é preciso: ambos estão muito contentes.

Separação. Meio-dia. Começou a garoar. Desde ontem à noite que o tempo se desconsertou como um velho relógio. Vejo, de novo, em todos os semblantes aquele risco de contrariedade que já se havia mostrado, uma tarde, na Campina 3 de Maio, quando o sol escureceu e um vento úmido encheu de arrepios as folhas das erveiras. Estamos num guamirinzal, em torno do fogo, almoçando com uma frugalidade espartana: pão com linguiça e um resto de vinho branco. Há umas latas de conservas, mas viajam nos cargueiros, adiante. Para a tarde teremos muita chuva; grossas nuvens pardas, túmidas de água, caminham lentamente tocadas pelo vento áspero do norte; e as gralhas e as saracuras no fundo do mato úmido e afogado em névoa, grasnam com estridor e gargarejam com melancolia.

— Agora é que nós vamos comer do ruim – disse eu ao Cardoso, que apertava a barrigueira do meu burro.

— É certo! – respondeu com lentidão o digno tropeiro, olhando o céu de banda.

— Imagine você: dormir a gente no chão encharcado e no mato frio!

— Quem não quer ouvir buia de purungo, não ata de dois – rematou ele, dobrando a ponta da sobrechincha.

— Você tem razão, respeitável Cardoso. Somente você devia me dizer isto em língua de dicionário: “Quem não quer passar maus pedaços em viagem, fica tranquilamente fumando em casa”.

— É certo, mesmo.

E o curioso tropeiro se afastou lentamente, com uma gravidade conselheiral, incompatível com o seu vulto magro e alto, que lembrava D. Quixote.

Barbaquá das Flores, 16 horas. A chuva agora é desabrida e quase oblíqua. Abrigamo-nos num nhoque abandonado e esticamos os nossos pelegos sobre um chão surdo, fofo de bostelas de gado. Porém a chuva penetra através das paredes de taquara trançada e do colmo ralo, borrifando tudo aqui dentro. Para livrar-se de uma goteira, o presidente teve que estender, como um toldo, por cima da sua cama, um lado de barraca. Na tapera do barbaquá, distante uns cinquenta metros, foi instalada a cozinha. Alguns companheiros se aboletaram num rancho de ervateiros, que se vai desfazendo e só tem uma coberta de palha. Em volta novamente nos assedia a floresta vasta, embebida de umidade, abafada numa penumbra fumarenta e triste, e por onde erra um cheiro de água e de folhas mortas. O vento ronda mais forte e mais rude. De vez em quando, um relâmpago, ainda pálido na meia luz da tarde, escancela a bocarra de fogo; e um trovão estala, trepida e reboa através das ramarias tumultuantes e desgrenhadas.

— Vamos ter muita água – exclama com melancolia o Dr. Xavier, que adoeceu seriamente e está com febre.

— E se os animais se extraviam com esse tempo!

Esta ideia me apavora como um fantasma na noite.

— Será que ficaremos amanhã, sob a chuva, neste ermo?

Nem tive tempo de tomar o meu café: o Xavier chamava-me com urgência. Pensei que ele houvesse piorado. Felizmente, não. Tratava-se de ir ver uma doente, a meia légua daqui, diziam. O Xavier não a podia atender, àquelas horas e com febre. Era uma obra de caridade. E eu sempre sei dar uma injeção...

A chuva continua. Regressei ao nhoque todo encharcado, tarde da noite, tiritando de frio. O presidente e alguns companheiros ainda estavam acordados. Contei-lhe, após um gole farto de cachaça, a minha simples aventura. Caminhei mais de légua e meia, de ida! A princípio no picadão do telégrafo; depois, através de uma brenha hirsuta, varando às vezes arroios e lajeadinhos inchados pela chuva, espumejantes e raivosos. Quando apeei num gramadinho, na porteira de um rancho, sob o latir desesperado dos cães, a treva era completa e absoluta como a fatalidade!

— Onde está a doente?

— Aqui, faça o favor de olhar.

Dentro do rancho, sobre o chão de barro negro, a água se empoçava. Numa cozinha, onde bacorinhos grunhiam em torno de uma criança que avidamente raspava um prato de folha, um lume esfumaçado tremeluzia com tristeza.

— Aqui, faça o favor de olhar.

A claridade indecisa, vacilante, de uma tira de pano mergulhada num pedaço de enxúndia, eu lobriguei sobre um catre em desalinho, um vulto de mulher moça.

— É um ataque, seu doutor.

O Xavier me havia recomendado óleo canforado com pantopon. Certamente é alguma crise nervosa.

— Preciso fazer uma injeção.

Levaram-me à cozinha, não havia bancos no rancho. Por duas vezes os porcos derrubaram a seringa que fervia sobre uma trave baixa. Um cão rosnava perto, olhando-me com desconfiança. E lá fora, violentando as galharias, uivando pelas frinchas, fazendo tremer a porta malsegura do rancho, o vento parecia um louco em delírio.

— Eta! ventaiada chucra! – falava para o outro um rapazelho tisnado, com um buço já forte e o revólver na cintura.

— Ai! meu senhor. Aqui estou, vai p’runs pares de mês desque tive a pontada.

A voz me veio de uma dobra de corredor, junto de uma parede que ressumava água.

— Desque tive a pontada!

Sobre uns trapos revoltos, cheirando a febre e a escarros, uma pobre mulher gemia, dando a uma criança esquálida e com a cabeça coberta de feridas, um seio ressequido como um pedaço de couro. Diante daquele quadro de miséria e de dor ignorada, emudeci. Então uma rapariga morena, de luto, com umas fundas olheiras de fadiga e um piazinho às saias rotas, pediu-me com humildade:

— Seu doutô! por que não dá também um remédio para a minha mãe?

Apliquei-lhe uma injeção de óleo canforado. Depois, tudo serenou. Só o vento e a chuva guaiavam e latejavam dentro da treva mole e imensa. Atirando para os ombros o ponche encharcado, tornei a montar.

— Muito obrigado. Fosse ontem lhe dava o pelo de um tigre, que baleei bem aí, na costa da porteira. Permutei com um tropeiro, por uma quarta de sal e uma carga de 38.

— Há tigres por aqui?

— Si há? Faz uns par de dias que um me comeu a porca de cria, no barbaquá onde vancês estão de pouso.

Acendi a minha lanterna elétrica. Mas lembrei-me de que me poderia perder na noite negra, através daqueles matos que eu não conhecia e que não desejava atravessar sozinho. E guiado pelo clarão curto e redondo da lâmpada que o homem levava a pé, voltei ao agasalho dos meus pelegos.

XX

10/5/29

Choveu toda a noite como se estivéssemos em pleno versículo XVII, Capítulo VII, do Gênese. Choveu e ventou. Mais de uma vez, despertei com a detonação trepidante de um corisco. Cheguei a temer que o nhoque não resistisse ao furor desesperado da tempestade ou que ele pudesse ser, de um momento para outro, esmagado pelo tombo irresistível de algum tronco. À luz fulgurante dos relâmpagos, eu via luzirem as gretas das paredes ou crescerem os vultos dos companheiros deitados pelo chão. A noite parecia mais longa e tumultuosa. De repente grandes látegos de água, vibrados por uma rajada, vergastavam o nhoque, batiam loucamente sobre o colmo, estalavam sobre as galhagens e escorriam das folhas num rumor de cachoeira. Depois, dentro do sossego sinistro que se abria, passava um ribombo de trovão ou o clamor surdo e reboante de um grande galho de pinheiro, caindo. Por vezes também vagava um som longínquo e triste de cincerro. Mas, logo, num salto brusco de jaguar, o vendaval uivava mais forte, enchia de contorções as galharias, redemoinhava, desfiando o colmo, sacudindo as paredes de taquaras do nhoque. Porém, vencido pela fadiga, eu readormecia, pensando no resto da viagem, que deverá ser horrível com mau tempo. Estamos todos aborrecidos e contrariados: o Xavier não melhorou. Continua a gemer, queixando-se de grandes dores nos joelhos. Parece incrível: foi o médico da “bandeira” o único que adoeceu!

O presidente, o desembargador Boiteux e mais alguns companheiros já seguiram. A tropa em que está amadrinhado o meu burro extraviou-se. Já o Cardoso esteve no mato, repontando, mas diz que o meu animal – que se chama Parecido – não foi encontrado.

— Fiquei com o freio na macega! Burro infeliz!

Que azar! Não sei, portanto, quando sairei hoje, daqui.

São 10 horas da manhã. De um céu baixo e cor de algodão sujo, esfarela-se uma chuvinha fria, impertinente, que satura de umidade o ar e espalha uma tristeza infinita em todas as coisas. À porta do nhoque – onde o Cid Gonzaga discute com o Savas – alguns companheiros tomam, melancolicamente, o chimarrão: único e lento consolo, neste ermo, para quem está “de a pé”. Uma luz fumarenta e esverdeada empana e esfuma os perfis das árvores; e pelo chão lamacento grandes poças, com um brilho baço, adormeceram de tédio.

Capitinga. Sete léguas e meia sob a garoa, sem descer do burro e esfomeado como um lobo no inverno – foi o meu dia hoje! Estou com o fígado estragado de raiva. Desde o barbaquá até aqui apenas tivemos alguns quilômetros de terreno chato; o mais é a serrania castigada, ou o matagal encharcado, ou são lajeados largos, correntosos, que vadeamos já noite cerrada. Felizmente vamos pelo picadão da linha telegráfica, aberto de nove ou dez metros. Não sei o que seria das nossas carcaças se o meu tempo nos segurasse na picada de Mondaí. Continuam as cruzes inçando o caminho, enchendo de maior tristeza estes desolados rincões que a chuva escurece e enfumaça, ora sobre sepulturas de revoltosos ou legalistas: algumas felpudas de musgos, outras com trapos vermelhos pelos braços, às mais, das vezes, porém, assinalando algum assassínio de tocaia, um pobre diabo que a barbaria alucinada desta gente varou à bala de winchester. Vi a cruz que marca, entre pedras agudas e na costa de umas taipas, o lugar em que tombou, malferido, o velho Cabral. Estava iluminada, merencoriamente, por três velas em triângulo maçônico. E me lembrei do que me dissera ontem, em Separação, um velho morador destas paragens.

— Não se entregue, seu doutô. São os Laras que se defendem, que o sangue começou na gente deles. Primeiro: bulha de mulher; depois: demandas de campos e de erveiras. O velho Cabral era mundeado no 44 e a filharada, lhe garanto, parecia colheras de veadeiros no rastro de um virá. Barbaridade!

— Mas por que mataram agora o Abílio?

— O Abílio Pedroso? Vancê nem conhece aquele caso... Ele veio na costa do rio chamar o primo, que estava no baile. Ele e mais três paraguaios maios, justados na Argentina. E ninguém viu o entrevero. Eta! barbaridade! Foi uma tiraiada de extraviar a tropa de mais costeio! Quando chegou gente, tava o Abílio baleado e o primo que nem boi sangrado.

— Então, você acha direito que os Laras mandem fazer esperas ao derradeiro filho do Cabral?

— Aquilo, seu doutô, é graxaim que dorme em toca de zorrilho; já tem chamado muitos Laras no estanho e no facão!

E pasmado, vim a saber da história daquele rapaz de vinte anos, que parecia tão bom e tanto me comovera. Comandara um “piquete de reponte”, há dois anos, quando o Fidêncio de Mello e o Leonel Rocha cruzaram pelo Barracão e o cartório foi incendiado. Fizera uma roça nos desafetos: até um negro velho, peão dos Laras, teve a sua facada nas virilhas. Um primo, que ele campeara durante vários dias, foi morto, com um só cotucaço no sangrador, dentro da casa.

— Vamos lá fora pelear, seu bandido!

— Não! Quero te sangrar ao pé dos teus filhos, para ficar quem vingue a tua morte.

No alto da serra da Conceição, os olhos se derramaram num horizonte dilatado. Mas não sei se era a névoa que entristecia o panorama, ou se as recordações lúgubres que esvoaçavam, como sombras agoureiras, na minha memória. Estas linhas, escritas rapidamente ao passo desigual do burro descendo, por sobre cascalhos ou escorregando no barro liso, dizem bem o meu pensamento: lugar feio, sinistro, como preparado para esperas e assaltos. Impressão desagradável e torva. Nunca vi paisagem tão ríspida, com um ar de abstração até nas próprias árvores verdes! Aquelas pedras lisas e brancas furando a carne vermelha dos barrancos, ou amontoadas aqui e ali, deram-me a impressão de um ossuário.

Hoje tivemos um banquete. Cheguei à casa do Fioravanti, que nos albergou nestas paragens, amarelo de fome. Nem falei com ninguém; creio até que mal sacudi a mão do dono da casa. Também, sobre a mesa, substituindo o “feijão com charque e arroz” – que novamente resumiam o nosso cardápio – havia um poema de iguarias: carne de porco, macarrão, bife à milanesa... E, sobre tudo isso, o belo corpo marrom-escuro a luzir entre folhas de alface, enfeitado com rodelas de limão: uma galinha cruzava as pernas sem pés e empinava o papo estourando de farofa! Não ceavam assim os romanos, mesmo Vitellius. Aliás, eu não ceei: devorei aquilo como um gato selvagem! Ao doce – uma compota de gila confortável - chegaram o Bley Netto, o Cid Gonzaga e o Haroldo Pederneiras. Haviam provado, sobre o lombo das mulas, o fel e a chuva das sete léguas e meia de viagem. Vinham escorrendo água. A mula que suportava galhardamente as dez arrobas de unto do Cid, num lajeado e já de noite, se planchara miseravelmente. Mas o Cid – ágil e guapo – pinchara-se em pesito, como o “João Paulino”, sem um salpico de lama na gabardine ou um pegão na calça de casemira azul-marinho com que afrontava a selva bruta. Já perto do Capitinga — e o Bley Netto estava excitado – ouviram miados longos de tigre, rumores suspeitos escorrendo na treva úmida. O Fioravanti informou:

— De certo é o bicho que me comeu uma cachorra, há um mês, não mais.

O Jerônimo Vargas também vira um vulto mosqueado escorregando de uma árvore: até escutara o barulho rascante das unhas. E todos achavam, enfim, justificações para ruídos estranhos, estalos de ramos sentidos na mata.

— Na volta de um capão, bem na costa de um lajeadinho, a minha mula refugou – contava o Floriano Moraes.

— Foi a catinga do bicho – explicava o Fioravanti, pondo um prato de arroz fumegante sobre a mesa.

XXI

Fazenda do Sargento, 11/5/29

Graças a Deus que o tempo consertou: sopra rijo o vento do sul e faz frio. Um ou outro rolo esfiapado de nuvem ainda desliza na curva doce do céu, de um azul de porcelana holandesa e lustroso como esmalte. Os campos e os pinheirais ondulam e se erguem, escorrendo luz. Entre as frestas prateadas de um banhado, gritando desesperadamente, os quero-queros voam e revoam, assustadiços e esguios. E, na ponta de um palanque, arrepiado de frio, numa atitude recolhida de sacerdote budista, um gavião-pombinha cochila, aquecendo-se ao sol.

Passaremos aqui o resto do dia. Já escolhi um cantinho propício para armar a minha cama de campanha. Penso que devem ser onze horas.

Éramos oito no galpão do Fioravanti, no Capitinga. O Savas, o Haroldo, o Cid, o Dr. Werner e eu, todos enfileirados, atravessados, de viés, aproveitando o espaço e o chão de terra negra e úmida. Num jirau, quase no teto dependuravam-se os dois cabos: o Espíndola e o Tancredo. E entre abóboras e espigas de milho, no fundo de uma tulha, o professor Lafayette Davidoff! Deitamo-nos cedo, na forma de cada dia, desde o Vorá. Porém ninguém conseguiu dormir senão tarde da noite. Primeiro veio o Breves reclamar os pelegos do presidente, que estavam faltando; depois o Maia, que rebuscou as nossas camas, indiferente a pragas e a protestos; e, por fim, o próprio presidente.

— Não, senhor; só temos os nossos pelegos.

— Quem teria sido?

— Talvez o Nenga, por engano – disse o Cid Gonzaga, rindo com ressonância.

E quando a história dos pelegos se diluiu no grande silêncio, e já o sono agarrava as minhas pálpebras com as suas mãos narcotizadas, o desembargador Boiteux, ao lado, começou a contar ao Fioravanti – que é de Caxias – a origem das “dúvidas” de limites com o Rio Grande, o curso do Mampituba e as belezas da furna do Sombrio.

A história dos pelegos e do seu misterioso sumiço, teve hoje um fecho inesperado: fora o Arthur Costa, chefe de Polícia, quem lhe gozara, furtivamente, a macieza e o calor!

Troteamos muito lindo, do Capitinga até aqui! Despertamos a quietude desses campos e dessas matas, sempre adormentados e silenciosos na sua vastidão. Cerca de cem cavaleiros vieram escoltar o presidente. E era belo, lombeando pelas coxilhas, varando um lajeado ou rompendo através do vassoural crespo e alto, ora uma linha ondulante de homens a cavalo, ora uma extensa fila de ombros emergindo de um mar verde de ramos. Ou então, envoltos numa penumbra que cheirava a húmus, enchendo de rumores um capão onde pássaros cantavam e luzia, entre folhas finas, um fio de água, ligeirinho e claro.

Passei um dia agradável, repousando, esticando as pernas em caminhadas longas por essas coxilhas ondulantes, que me sugerem um mar-alto que paralisasse de repente. Estive a ver, durante muito tempo, os caboclos bailando uns com os outros, numa dança bamboleante, sapateada, ruidosa e viva, misto de fandango e de ronda selvagem. Havia exemplares humanos curiosos! O gaiteiro – um tipo de largo dorso e umas barbas ruivas – espremia e puxava a sanfona, cadenciando os movimentos com a cabeça de grenha hirsuta, batendo furiosamente o compasso com o pé. Em torno dele, encostados à parede ou sentados sobre os calcanhares, alguns peões e tropeiros escutavam muito sérios, compenetrados, como se estivessem assistindo a um terço em louvor do monge João Maria. À porta do galpão, tampando o ar e a luz, um magote de homens, os palas atirados para as costas, os grandes sombreros quebrados na testa, escutava ou aplaudia aquela música de ritmos estranhos, entre espessas baforadas de fumo crioulo. E fora, no grande terreiro cheio de sol e de gente, onde uma ovelha, dependurada por uma perna, na trave de tosquia, estrebuchava com o pescoço sangrando, corria o chimarrão e um ou outro retardatário prendia com os dentes uma febra de churrasco e a cortava, bem rente à boca, com um golpe lento. Mas estas cenas de um realismo muito rude acabaram por me enervar. E o resto da tarde passei a ouvir um negro velho, de olhos raiados de sangue e dentes de antropoide, contar umas histórias, de baguais e seriemas, num linguajar monótono e bárbaro.

XXII

Fazenda Velha de Sant’Anna, 12/5/29

Saímos hoje da Fazenda do Sargento às 10 e meia e batemos folgadamente seis léguas de chão. Amanhã chegaremos, se Deus quiser, a Pato Branco, aos automóveis e à civilização. A viagem até aqui foi magnífica, seguida por um sol de seara madura e um ar fino e macio, impregnado de aromas claros. Pousamos na casa de um senhor de nome João Prestes, professor paranaense nestas ubérrimas terras que já foram nossas... A picada larga e limpa sobe e desce como a cumprir um torturado destino. A princípio, cruzamos um rancho de moradia, todo fechado, silencioso, esquecido entre cercas de rachões de pinho e chiqueiros de pedra solta, onde terneiros, estupidamente, sob o voo teimoso e sonoro das varejeiras, olham um chão escuro, revolto e semeado de bostelas. Às vezes, também cortamos através de invernadinhas, entre pontas de gado manso que pastavam com indiferença ou alguns lotes de novilhos que nos fitavam um momento espantados e batiam a correr, aos pinchos, de cola erguida, sumindo-se por detrás das coxilhas ondeantes e verdes. Depois, nem potreiros nem casas de moradia. Era um amplo coleio de coxilhões, de cerros ásperos e de lombas despenhadas, abruptas, espiando o fundo revolto dos itaimbés. E em torno solidão, o silêncio em que fundiam, como grãos de cera numa chapa muito quente, os assobios joviais dos chopins ou o grasnar torvo e rouco dos tucanos. No alto de uma serra, à vista de Sant’Anna, e mesmo ao longo da íngreme e coleante descida que morre num lajeado, encontramos inúmeras ossadas de cavalos. Era mais um vestígio da passagem dos rebeldes naqueles rumos: animais sacrificados à faca ou deixados ali, em abandono, por doença, ou excessiva fadiga. Mas, erguendo-se os olhos daqueles tristes memoriais, o espírito se alegra na beleza do panorama. São campos maduros, ponteados de capões e linhas de árvores coleando em curvas lentas e doces. Adiante, e longe, de um verde de azeitona, largas manchas de mato se derramam como plumas de cocares e além, por trás dos vultos senhoriais dos pinheiros, esfumado sobre o azul lavado do céu, o risco ondulante de uma serrania.

Tive, por alguns quilômetros, desde Campo Erê, um companheiro singular e amável, tocado por aquele pitoresco digestivo que Fradique Mendes preconizava para depois de cada almoço. Era um sujeito alto, tirante a cobre velho, com uns olhos de graxaim e um burro cor de rato molhado. Beirávamos, então, uma lagoa de um verde sujo de azinhavre, imóvel, baça, mal refletindo entre as largas manchas espumosas e as fendas abertas nos touços de capim, o azul de aço de um céu curvo e transbordante de sol.

— Água feia barbaridade! – disse ele a forçar o meu silêncio.

— É... água muito feia... – respondi sem o olhar.

O homem compreendeu que eu não estava para prosas. Cruzou uma perna sobre o cabeço do serigote e, tirando do bolso a xerenga reluzente, pôs-se a picar fumo, na palma da mão, vagarosamente, bamboleando o corpo ao ritmo da cavalgadura. Corria um vento morno, que dobrava as macegas altas e fazia tremelicar as folhas do guamirim. Eu estava moído por um cavalo ordinário e vagabundo, de passo trôpego e trote de chumbo, que me haviam fornecido na fazenda do Sargento. Preocupava-me, ainda, aquele tombo entre patas de mulas e que me poderia ter sido fatal. Não estava para conversas. Porém, o sujeito, por certo, tinha sangue inquieto e avô do Algarves. E desandou a contar-me os milagres de João Maria, as “sete pragas” que o monge profetizara: primeiro, o ronco das águas que incham; e sobre o ronco das águas: a chaquaiada dos cavalos... Correria tanto sangue que até a flor do araçá se tingiria de vermelho! E a terra ficaria “suvertida” como depois das pororocas.

— Tudo que o monge falou os oios viro, no santo nome de Deus Nosso Senhor. Veio uma aguaiada braba; e cruzaro as força do governo e da revolta; e os peludo ataro a peala nos mais...

— Mas esse João Maria não morreu no Taquaruçu?

— Não-se. O monge dos Curitibanos era outro.

—Aquela capelinha – perguntei já interessado – que tem pra cá de Campo Erê, quem a construiu?

— O povo, seu. Ali, antes da guerra do Floriano, o monge fez a pregação dele e fincou a cruz de cedro. Entonces a terra ficou benta.

— Há quanto tempo?

— Disque uns cinquenta anos. Quando a capelinha vai virando tapera, chega o povo e ergue outra, seu. E cura inchume de bala e inté bicheira no garrão.

Uma insistente, funda melancolia me penetrava, abria dentro do meu coração uma flor de tristeza sem nome. Mas, em torno, escorrendo luz, as árvores ramalhavam cheias de júbilo e calor.

Cada vez que ouço ou que vivo ao contato de um homem da serra, tenta-me o desejo de repisar um paralelo que, há vários anos, tomei para um ensaio que teve um voo de perdiz: curto e baixo. Creio que o devo relembrar neste momento, quando, justamente, os dois tipos representativos da gente catarinense – o serrano e o ilhéu – conjugaram-se sob a orientação intrépida de um homem de beira-mar.

O serrano é um homem alto, robusto, de linhas vigorosas, como feito à talhadeira. A bravura e a lealdade são-lhe virtudes ingênitas. Mais ibero que lusitano, tem do espanhol, o cavalheirismo maneiroso e o guizalhante entusiasmo da aventura. No dorso de um cavalo, alongando o vivo olhar pela imensidade ondejante das coxilhas, sob o sol que sarja o chão e excita os touros, não sente o desânimo que a distância cria na alma dos caminheiros. Infatigável fazedor de léguas, vive sempre espicaçado pelo desejo desmedido das marchas para frente. É quase um nômade, por ser um irrequieto. E ninguém dirá, porém, que esse homem impetuoso, que dorme ao tempo e dá a impressão de não ter lar, seja tão hospitaleiro e duma generosidade tão comovedora. Se encontra o adversário no caminho, porque não erre a sua mirada, abate-o de um tiro e segue. Mas, se o inimigo, por acaso, tombou malferido, volta, apeia e, depois de enxugar-lhe a sangueira borbulhante, que espalha no campo verde uma estranha floração de papoilas, leva-o até o seu rancho, atravessado na garupa do seu pingo, para completar, com desvelos, a obra de piedade iniciada. E enquanto não sara, o antigo adversário se aquece ao seu braseiro, come do seu pinhão, bebe da sua erva e dorme sobre os seus grandes, macios pelegos felpudos. Acompanhemo-lo por estas estradas vastas. O ar está sujo de poeira e o silêncio alastrado de ruídos em tropel. À sua frente os bois troteiam com a cabeça erguida, as guampas se entrechocando, os grandes ventres flácidos pulando, e a barbela larga batendo entre as pernas dianteiras. Ou, então, os bois caminham a passo, enormes e vagarosos, o olhar quieto, os focinhos baixos, donde a baba se dependura como fina e luzidia estalactite de platina. Agora o ar nem vibra e a calma estende por tudo o seu pálio de pelúcia. Das canhadas ou dos gramados que bordam as lagoas imóveis, metálicas, vêm os gritos estridentes e onomatopaicos das curicacas ou dos quero-queros. Perdigões assobiam dentre as altas touceiras de guamirim ou das moitas finas de barbas-de-bode. Por vezes se ouve o doce murmúrio de um arroio fugindo no fundo emaranhado dos capões. Chusmas de chopins batem o voo assustado para os galhos altos dos pinheiros, deixando a impressão de obreias negras sopradas pelo vento; enquanto muito lá em cima, flutuando na radiância, uma nuvenzinha, felpuda e branca, parece um anho espiando, desconfiadamente, os volteios longos e serenos de um carancho. É o momento em que o serrano dá de cantar, depois do pito. Mas a música desse canto dormente, ondulante como as coxilhas, tendo a melancolia do fado e um “quê” de habanera, é mais peninsular que portuguesa. Robinson Crusoé na sua terra, não sofreu as influências que se operam ao contato com outras gentes e que modificam, alteram caracteres primitivos. Por isso o ilhéu não evolveu. Reproduziu-se, conservando o tipo ancestral, como conservou as suas tradições, a sua língua – ainda do tempo dos troveiros e dos navegadores. Daí o viver mergulhado no solo natal e a ele se prender como as fortes raízes da aroeira. Fora da sua casa, do seu roçado, do seu rancho onde a canoa descansa – só existem arvoredos e mar! Nos tempos mortos, quando saía para as agruras das batalhas no seu épico regimento, batia-se como ninguém. Mas o seu pensamento não era para o seu rei, nem, depois, para o seu imperador. Era todo para a sua casucha, para o seu terreiro onde a rede secava e a mulher, saudosa e triste, ficara tecendo as rendas do enxoval do filho. Ao desejo de vencer, ascendia um desejo mais forte: voltar! VENCER E VOLTAR – podia ser a legenda da sua bandeira. Esse aferrado, comovido amor ao berço, fê-lo, então, um contemplativo, um eterno cantador embebido da beleza sugestiva da terra! As doçuras do seu lar, o perfume dos laranjais em flor, o ritmo isócrono da onda embalando a quietação macia do seu viver – verteram na sua alma, como num vaso propício, uma sensibilidade muito fina. Vêm desses puros mananciais o sentido som d’água, a candidez, a simpleza que há nas cantigas ilhoas. Elas dizem a velha saudade lusíada, a festiva alegria das novenas, o Amor, os olhos cheios de sortilégios das raparigas cor de jambo – que cheiram à laranja e à chita nova. E como um Deus tutelar e meigo, abençoando tudo – o mar! O mar que o ilhéu corta com a sua canoa frágil, seja calmo ou seja tempestuoso, como os seus avós o cortaram com as suas quilhas altas e fortes. E as palavras desse canto! Quase nada de Amor, de esperanças ou de juras sentimentais. É a vida com as suas fatalidades inevitáveis; é a recordação amarga ou doce das terras percorridas – onde foi levar a tropa para vender ou invernar. Ouçamo-lo:

“Na vida não paga a pena,Andar a gente a cismar.Porque tudo que assucedeNinguém pode sofrenar.Corri por todas as terras,Bebi de todas as águas.D’algumas truxe uma flor;D’outras, só truxe mágoas.Não tenho medo da guerra,Podem vir e me levar.Que o homem só veio ao Mundo,Pra com outro entreverar!”

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Enquanto o ilhéu, pequenino e pálido, insulado do Mundo na sua casucha de barro vermelho, amando os arvoredos e o mar que lhe dá a fecundidade e a mantença, vive para a companheira e a familiagem, de que tira, como duma inesgotável fonte de Juventa, a moderada alegria da existência e os cândidos motivos das cantigas. Hospitaleiro também, também generoso, bravo e resistente, é, porém, tão tímido, que a sua timidez chega a fazê-lo agreste e a emprestar-lhe uma atitude de permanente fraqueza e covardia. No entanto, as suas tradições heroicas acendem brilhos inexcedíveis na história militar catarinense. A sua alma, como o seu sangue, é velha de quase três séculos! Recebeu-a do avô açoriano, ilhéu como ele, já melancolizada pela saudade da ilha nativa, pelos monótonos e longos meses de viagem sobre a vaga incerta. E tendo guardado essa alma instintivamente através das idades, apenas com a vibração mais intensa que o novo ambiente lhe imprimira, ficou sendo o mais lusitano dos brasileiros e o mais sentimental dos catarinenses. E a música que reveste essas cantigas, tão simples, de cinco notas apenas, de dó a sol, sem modulações preguiçosas, sem trêmulos, sem pausas lânguidas e doloridas, sem síncopes soluçantes, sai e volta ao som inicial como vem e vai uma onda sobre a areia. É ainda o fado à cadência do mar. As cantigas do ilhéu:

“A vela do meu barquinho,Fui eu mesmo que a teci.Demorei um poder d’anos,Porque só pensava em ti.Os olhos que me espinharamDeixaram-me satisfeito,Pois guardei-os, com os espinhos,Bem no fundo do meu peito.Meu coração como um búzio.Repete sempre: Maria!É por isso que o escuito,Dia e noite, noite e dia.Soidade – sino a dobrar,Em tardes de procissão,Cantiga morta que vive,No búzio do coração.”

O ilhéu resumiu os cuidados da sua existência em três doces verbos: Amar, Pescar e Cantar. O terceiro verbo, porém, é como um claro estribilho dos outros dois. Às vezes, até se transforma em flores sobre as sepulturas que se fecham:

“Maçarico morreu ontem,E ontem mesmo se enterrou.Na cova do maçarico,Muita menina cantou.”

Amando – o ilhéu canta para exaltar o seu Amor; fundeando o espinhel ou lançando a rede – canta para enganar a fadiga; sofrendo – também canta em busca de consolo; falando – ainda canta, embebendo as palavras das doçuras que têm nos olhos. Esguichando-lhe o perfil e respigando-lhe as doces qualidades, sinto que o amo. E esta ternura que me consola o coração, sobe-me à garganta e me dá uma alegre vontade de cantar! Ah! Não fosse eu um ilhéu e não tivesse também a alma de cigarra.

Foi alegre o nosso último jantar no derradeiro acampamento! Eu e o desembargador Boiteux – que desde alguns dias, com uma probidade escrupulosa, comemos no mesmo prato – arrasamos duas pirâmides de feijão com arroz. Amanhã, à hora do almoço, prestaremos uma homenagem ao João Pinto, artista perfeito do fogão; falará o Cid Gonzaga. Durante treze dias, com uma eficácia, pontualidade e dedicação inexcedíveis, o João Pinto nos deu às 8 da manhã e às 6 da tarde: feijão com charque e arroz. Às vezes, inspirado por alguma deusa da floresta, sorrindo de satisfação e orgulhoso do seu saber, ele modificava o cardápio e nos oferecia um almoço ou um jantar absolutamente novos: charque com feijão e arroz com linguiça. Era uma orgia! Caíamos sobre aquilo com a voracidade de chopins em roça de milho. Depois, um a um, com os olhos pesados e um ardume na boca do estômago, devastávamos caixinhas inteiras de bicarbonato de sódio.

— Sim! é a voz do acampamento: sim! O João Pinto merece esse discurso do Cid, o burro zaino do Savas e uma patente...

Amanhã a estas horas, se Deus não tresmalhar e destruir os nossos planos, estaremos em Pato Branco ou rodando para Clevelândia sobre as quatro patas de borracha do automóvel. Já estou enfarado de cascos de burro. Sinto-me embebido, saturado de floresta, de cheiros acres e de rumores bárbaros.

Fazenda Velha de Sant’Anna é um belo rincão encastoado entre matas e pinheirais hieráticos. Embora não tenha, como a Fazenda do Sargento, aqueles campos dilatados em coleios mansos, onde cresce um pasto fino, alto e que oculta um boi; e aquelas florestas de erveiras; e aqueles pinheirais que enchem, frisam e entristecem os horizontes, a Fazenda Velha possui, de resto, um mundo de árvores de lei, e pastagens ricas, e uma água límpida, sonora, que mata as mais ásperas fadigas e desanuvia, limpa o espírito mais torvo. Está em terras que nós conquistamos a ferro ao castelhano e um acordo transferiu ao Paraná.

XXIII

Pato Branco, 13/5/29. 17 horas e meia.

Atingimos os limites dos nossos cansaços, através de sete léguas de trote! Dentro de alguns instantes chegarão os automóveis. Os automóveis! Será isso possível? Há que tempos não ouvimos o ruído trepidante dos seus motores e a música futurista dos seus glaxons! Vou deixar as minhas notas para Clevelândia, para o sossego de um quarto de hotel, com lumes civilizados e, em torno, o zumbido da colmeia humana.

Clevelândia, 3 horas da madrugada. Levantei-me, neste momento, da mesa do jantar. Ainda lá ficaram a conversar, quebrando de quando em vez a cinza do cigarro no pires da xícara do café, o Cid Gonzaga, o Savas, o Breves e o Clóvis Viegas. O Selistre de Campos, como não fuma, faz bolinhas de miolo de pão.

Comemoramos, comovedoramente, a data nacional de 13 de Maio: o presidente, acompanhado por toda a sua comitiva, visitou os túmulos onde dormem, até que vibrem as trombetas do Juízo Final, no vale de Josafhat, o major Monteiro e alguns dos seus bravos companheiros da coluna Paim Filho. Falou o desembargador Boiteux, que relembrou o heroísmo dos que souberam morrer pela ordem e espargiu sobre as sepulturas – mancheias de folhas verdes apanhadas na floresta. O Dr. Selistre de Campos, rio-grandense e republicano, agradeceu a homenagem. Ficamos um minuto em silêncio, de cabeça descoberta. Ao fundo, a multidão de caules, de ramos e de folhas, espalhava uma penumbra recolhida de sacrário. Na forquilha de um galho, perto, um pássaro azul-escuro gorjeava, todo arrepiado e inquieto. Baitacas e gralhas, em bandos palpitantes sob o azul do céu, ou voando de braço em braço dos pinheiros, gritavam, arranhavam a seda radiosa da manhã. Perfumes doces de flores do mato e aromas úmidos de troncos e de musgos entrelaçavam-se, fundiam-se no cheiro forte e quente que vinha da mangueira, da terra, das gramas em torno, encharcadas de sol. Às vezes, se ouvia um galo cantar, muito longe; mas, para logo, o sussurro de um arroio, que em outros tempos moveu um monjolo, punha no ar um som claro de água corrente. Depois, o Dr. Selistre acenou com o seu chapéu e gritou: “Viva o Brasil!” E prosseguimos a nossa marcha.

Até Pato Branco, a viagem foi um rosário de belezas que os nossos olhos iam sempre rezando. Num lugar chamado Polacos, onde há uma igreja e um cemitério que parecem brinquedos, apeei num rancho de ervateiro para chimarrear. Mas a sesteada foi na Fazenda da Fartura, na casa do Sr. Coelho – um senhor moreno que engrulha o alemão e venera o monge João Maria. O desembargador Boiteux – a quem tal veneração entristeceu – conseguiu trocar, com o Sr. Coelho, o retrato descalço do monge por um São José litografado em Leipzig... É um homem ilustremente curioso esse respeitável Coelho! Queria um lugarzinho no grupo que “posava” já montado, diante da máquina fotográfica. Falou qualquer cousa ao presidente, que sorriu e mergulhou na casa. E reapareceu com as suas roupas de cancha, um enorme lenço vermelho ao pescoço e a gaita de fole debaixo do braço. No momento em que o fotógrafo recomendou a clássica “atenção”, dobrou levemente a perna direita, depe