Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Albatrozes, de Damasceno Vieira


Edição de Referência:

Damasceno Vieira. Albatrozes. Salvador: Lito-tipografia e Encadernação Reis & C., 1908.

ALBATROZES

POESIAS

BAHIA

LYTHO-TYPOGRAPHIA E ENCADERNAÇÃO REIS E C.

RUA DR. MANOEL VICTORINO, 23 e 25

____

19O8

A Arnaldo Damasceno Vieira

Em retribuição às suas Constelações

Como expressão de paternal carinho

Le Poète est semblable au prince des nuées

Qui hante la tempête et se rit de l’archer ;

Exilé sur le sol, au milieu des huées,

Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.

Charles Baudelaire (L’albatros)

 

ÍNDICE

Albatrozes

Ao poeta

Festim romano

A Arte

O Partenon

Banho de Friné

Culto à forma

Amor de Pigmalião

Cleópatra

Sísifo

Adormecida

Luta de Prometeu

Ante o retrato de Dante

Paixão de Miguel Ângelo

Mergulhador de Schiller

Estátua grega

Alma forte

Alma forte (em Sueco)

Os canários

A domadora

A Cristóvão Colombo

O ferreiro

Em constelada noite...

Alto da Serra

A lenda do Judeu Errante

Noite de luar a bordo

Noite gloriosa

No banho

A galera

Fitando estrelas

O duelo

Grande, imponente, o largo mar vozeia

Na arena

A Carlos Gomes

Noite de Natal

Remember

Lição de gramática

As crianças

Andorinhas

Festa do trabalho

Vitória de Friné

Uma visita médica

Sonho de Santos Dumont

Oitenta e nove

Ao mar

Cantando

A José de Anchieta

Em trem de ferro

Nostalgia

A voz do Tiradentes

A uma freira

Nas névoas, nos clarões crepusculares

A ilha flutuante

A Bocage

Não era o artista um cego de nascença

Cadáver triunfante

Novo cavaleiro

Sobre a praia de Sagres, na lendária

Os comboios

Vejo passar nas ondas revoltadas

Quisera, sobre um mármor de Carrara

Senti-me, de repente, arrebatado

A Victor Hugo

Morte gloriosa

Ante a luz

A Flor de Manacá

No túmulo de um menino

A hebreia pecadora

Faetonte

Os ciclopes

Paradis terrestre

Paraiso terrestre (tradução)

Su le Orme di Dante

I. Quem és tu, ó do Inferno condenado

II. Como um casal de pombos, no ar, aos beijos

Lendo “Francesca da Rimini”

I. Com o falso coração todo em loucura

II. Que livro é este?

III. Ah! se esta noite minha irmã bondosa

IV. Fechemos este livro apaixonado

V. Gianciotto os pilha quase que em flagrante

Apreciações da imprensa baiana

 

ALBATROZES

Ou sobre as ondas do alto mar, flutuando,

Balouçantes, em sonhos, em cismares,

Ou sobre as nuvens revolvendo os ares,

Sem receio do ciclone formidando,

De penas alvas, misterioso bando

De albatrozes, transpondo os grandes mares,

De encontro aos ventos, suplantando azares,

Vão ignoradas plagas demandando...

Deixai-os voar, em plena liberdade,

Ou rente ao mar ou na suprema altura,

Sumidos na azulina imensidade.

No dilatado voo indefinito,

Eles aspiram, como ideal ventura,

Ir pousar nas paragens do infinito.

 

AO POETA

Sofre! É lei natural: a dor nos retempera;

Ao choque da emoção, o sangue se acelera

E imprime à fronte em fogo o lampejo febril.

Sofre a atroz aflição com ânimo viril.

Bem como um reverbero a concentrar no seio

Irradiações do sol — que o sofrimento alheio

Bata em teu coração e se converta em luz.

Canta! E a tua voz que inflamada seduz

Espalhe à multidão, como urna suave essência,

Bondade, amor, poesia, a florir a existência.

Canta o Belo que vês em tocante esplendor,

O sorrir infantil, o desbrochar da flor,

A prece, na mudez eloquente do pranto,

O mistério-mulher de indefinido encanto,

O mistério da seiva em contínuo vaivém,

O sonho, a vida, a luz, o mistério do Além,

O murmurar do rio, o vozear da floresta,

Dos ninhos, a oscilar, a pipilante festa,

Da invisível monera o estremecer vital

E o eterno evolver do mundo sideral.

Quando a morte, por prêmio ao teu apostolado,

Conceder-te repouso ao coração cruciado,

Encara-a sem temor, pois não é ela um fim.

A campa é para nós um novo camarim

De mutações; a vida assume nova forma.

Não se destrói o corpo, apenas se transforma.

A alquímia subterrânea opera outro existir

No ar, ou no perfume, ou na flor a sorrir,

Ou no éter, a flutuar imponderável...

Canta!

Segue para o infinito em romaria santa!

 

FESTIM ROMANO

Após o banho em termas perfumadas,

Encantadoras cortesãs, trajando

Ricas vestes de seda aurilavradas,

Em passo airoso e brando,

Dirigem-se ao palácio

Da romana Barina.

Barina! a mais formosa em todo o Lácio!

Caprichosa hetaíra peregrina!

Barina! aquela que ao quebrar os votos

Surge mais bela e sedutora ainda!

A inspiradora de paixões protervas

Que sabe destilar filtros ignotos

De anacampseros e canídeas ervas,

Para exaltar amor que nunca finda!

Como quem vai ao Panteão da glória,

Sobem sorrindo a larga escadaria

De nitidez marmórea,

E, ébrias de alegria,

Penetram no triclínio iluminado

Por lâmpadas de prata reluzente.

Divaga pelo ambiente

De bálano o perfume delicado

A desprender-se das luzentes comas;

Vasos da Etrúria adornam-se de flores

De inebriantes aromas;

Grinaldas multicores

De rosas brancas, fulvas, purpurinas,

Pendem do teto em larga profusão

Ou se enroscam, em curvas serpentinas,

Às colunas coríntias do salão.

Esplendem as paredes de pinturas

A retratar ao vivo imagens frescas,

Lindíssimas figuras

Em posições lascivas, picarescas,

Cuja crueza as atenções atrai:

Leda entregue à paixão do cisne ufano;

Os amores do touro e Pasifae;

O cavalo dileto de Filira;

Marte e Vênus em vedes de Vulcano...

E o mais que o gênio da luxúria inspira.

Que imensa turba! Generais, questores,

Vates, edis, pretores, argentários,

Moços patrícios, velhos legionários,

Atletas vigorosos,

Hercúleos e potentes gladiadores,

Todos sedentos de apurados gozos.

A provocar febril concupiscência,

As preciosas mundanas,

Gentis tessalianas,

Em túnicas de rara transparência,

Mostram, em linhas sensuais e cruas,

A correção das formas seminuas...

Outras em véus de Tiro mal ocultam

A lúbrica evidência

De tesouros que avultam...

Que regozijo!... Que função é esta?

Completa hoje Barina o lustro sexto:

Magnífico pretexto

Para exibir extraordinária festa,

Da qual a aparatosa ostentação

Lembre Luculo na exageração.

O que Roma possui de mais egrégio

Comparece ao banquete, quase régio...

Como um tributo à História,

Barina e oito principais loureiras

Representam de filhas da Memória,

As de Apolo impolutas companheiras.

Brilhantes singulares,

A deslumbrar as vistas,

Valiosíssimas gemas

Refulgem nos anéis e nos colares

E dão às Musas divinais encantos.

Desde os altos coturnos aos diademas,

Mirrites odorantes, ametistas,

Pardálios e berilos, zeros, xantos,

Astrápias, crisoprasos, sandaresos,

Carcínias e calais, altas conquistas

De libertinos Cresos,

— Todo um mundo de joias ofuscantes

Que são de Arte famosas maravilhas —

Exibe-se. Crotálias sussurrantes

Impendem de emperladas gargantilhas.

Ostentam-se as esplêndidas beldades

Circundadas de auréolas, reluzindo,

Quais se fossem as próprias Divindades

Que ali baixassem do sagrado Pindo.

Ancilas, escançãs, lustrosas, pretas,

Cintadas de levíssimos cendais,

Esbeltas, a mostrar as rijas tetas

Em linhas belamente esculturais,

A sorrir donairosas,

Com graça e com presteza,

Servem a lauta, enriquecida mesa

Coberta de iguarias saborosas:

Ostras vivas, de gratas sensações,

Sardas do Egeu, saperdas africanas,

Atuns da Calcedônia, esturjões

De Rodes, holotúrias capreanas,

Moreias da Sicília e do Oriente,

Zorzais da Ásia Menor, tordos, faisões,

Da Frígia francolins e, ricamente,

Línguas de rouxinóis, de reais pavos,

De sabor excelente;

Veados, javalis e patos bravos

Oriundos da Gália Transalpina;

Frutas — volemas, tópios deleitosos,

Cariotas e, em ricos vasos belos

De incrustações de pedraria fina

— Em crisendetas — doces melimelos;

Original dilúvio

De vinhos capitosos,

Desde o falerno ao mássico potente,

E o de Chipre e o famoso efervescente

Estátana — licor de quente eflúvio

Fabricado nas fraldas do Vesúvio —

E os liberi bellaria calorosos:

Tudo que ao paladar incita gozo

Delicia-se ali avidamente.

Vibra, saudosa e límpida, a harmonia

Da tíbia berecíntia comovente;

Escravas gregas, cantos de poesia,

Repassados de amor e de mistério,

Soltam nas duplas flautas sonorosas...

Gemem, suspiram cordas do saltério,

Das harpas e das cítaras queixosas,

E aquela deliciosa sinfonia

Dos instrumentos suaves

Lembra a doçura do cantar das aves

A festejar o despontar do dia.

De vez em vez escuta-se o anagnosta,

O escravo que declama

Canções lésbias, ardentes, fesceninas,

De que toda a assembleia rindo gosta

E mais ateia a chama

Dos heróis e das belas messalinas.

Bronzi-dourados numes

— Prendas colhidas em troféu de Elêusis —

Erguem ao ar caçoulas fumegantes

De timiamas a exalar perfumes,

Como oblação misteriosa aos Deuses

Propícios aos amantes.

Em grita, soam saudações sinceras

Às Musas em revolto desalinho,

E os ciatos imergem nas crateras

A transbordar de vinho...

Em cimbos áureos libam-se licores;

Cantam hinos a Baco os bebedores;

Reclamam novas ânforas marcadas

Pelos nomes dos cônsules antigos,

E são logo esgotadas

Pela avidez dos comensais amigos.

Dissolvem ricas pérolas nas taças

Os convivas, em honra de Barina:

Aclamam-na mais bela do que as Graças,

Rival vitoriosa de Ericina.

De escaldadas, raucíssonas gargantas

Soam por fim seis brindes — que são tantas

As letras de Barina.

Os comensais

Vão se entregar às danças sensuais.

De anéis de ouro a cingir os tornozelos,

Coroados de mitras os cabelos,

Assírias bailadeiras,

Cor do fruto das altas tamareiras,

Olhos violáceos da contínua insônia,

— As crotalístrias — a rufar pandeiros,

Quase aéreas, deslizam,

Em requebros ligeiros,

E as nudas plantas só de leve pisam

Tapetes da opulenta Babilônia.

Aqueles corpos juvenis exaltam,

Fascinam como a luz...

Em doido movimento os seios saltam,

— Gêmeos amores ebriosos, nus...

A plena embriaguez, a nudez plena

Mostra contornos finamente raros

A causar desesperos ao pincel,

Ondulações que não descreve a pena,

Mimos que exigem mármore de Paros

E do inspirado Fídias o cinzel.

Após geral tripúdio, nova cena

Começa...

Véu de Apeles ao painel.

Quando o sol do outro dia

— Novo conviva — entrando,

A rir, iluminou o enorme bando,

Viu no triclínio a conclusão da orgia:

Atletas, generais, edis, questores,

De faces avinhadas,

E poetas e patrícios e pretores,

Com as frontes não mais engrinaldadas

De louros ou de flores,

Dormiam ressupinos, arquejantes,

Nos braços nus das pálidas bacantes.

Descuidosa da sorte,

A embriagada Roma não ouvia

O galopar dos bárbaros do Norte.

 

A ARTE

Quando ela foi à Grécia, à pátria dos primores,

Nua e casta, a sorrir, cingida de lauréis,

Engrinaldou-se em glória a fronte dos pintores,

Rutilou como um sol o aço dos cinzéis.

Famoso estatuário, um gênio inexcedível,

Ao vê-la, prosternou-se aos pés do esbelto vulto,

E quis, num rasgo audaz de inspiração incrível,

Reproduzir a Deusa a quem rendia culto.

O mármore desbasta, esculpe febrilmente,

Contorna a fronte, o colo, os seios virginais,

Adelgaça-lhe a cinta, em ânsia impaciente,

Arredonda os quadris, contorna mais e mais...

E vendo ressurgir do mármore a figura,

É tanta a comoção do espírito intranquilo,

Que o gênio, curvo o joelho, em êxtase, murmura

“A Divindade és tu! És tu, Vênus de Milo!”

 

O PARTENON

Ao poeta sueco Göran Björkman

I

Sob o cinzel de mágico prestígio

De Fídias e de alunos esforçados

— Ictinos e Calicles inspirados —

Atenas sobe a estético fastígio.

Como imortal, olímpico vestígio

Do talento de artistas sublimados,

Na Acrópole de blocos cinzelados

O Partenon se impõe como um prodígio.

Da Ciência a Deusa armipotente impera.

Feita em oiro e marfim, alta, irradia,

A deslumbrar olhares fervorosos.

Ah! quem ao grande Péricles dissera

Que por museus bretões se espalharia

Tanto esplendor de mármores gloriosos!

II

Tanto esplendor de mármores divinos!

Relevos de frontões, egrégios bustos,

Apolíneas estátuas, Zeus augustos,

Artêmis, Parcas, Eros peregrinos,

A fileira dos vultos femininos

Das frisas, e os equestres e os robustos

Jovens guerreiros de perfis venustos

Tiveram que sofrer vários destinos.

O tempo destrutor e mãos mesquinhas

Desfizeram-te, ó grego relicário,

E em muda solidão, triste, definhas.

Após fulgente brilho extraordinário,

Tens por hino — o chilrear das andorinhas

E por adorno — o limo parietário.

 

BANHO DE FRINÉ

Quando Friné, a lúbrica sereia,

Despe na praia o mimo da roupagem,

E nua, em pleno sol, calcando a areia,

Banha-se em ondas de espumante arfagem,

A turba que este fato presenceia

Suspira, ofega e freme, em vassalagem

Àquele corpo juvenil que ondeia

Qual da Afrodite a peregrina imagem.

Ela volve, impudica e donairosa,

E expõe, com garbo, à multidão curiosa,

A rara Forma em que a beleza é suma.

Ao vê-la, Apeles, num clarão radioso,

Concebe a ideia do painel famoso:

“Gloriosa Vênus a surgir da espuma!”

 

CULTO À FORMA

Em face à galeria de pintura,

Sinto estranha paixão quando deparo

Com desnudada, esplêndida figura,

— Belo produto de pintor preclaro.

Enlevado perante a formosura,

Eu, semelhante a fetichista ignaro,

Dobrado em reverente curvatura,

Consagro culto àquele objeto raro.

Se contemplando a estampa inanimada,

Sinto amor e respeito venerando

Pela Forma que apenas foi pintada,

Que sentirei por ti, ó Deusa, quando

Parece que és da tela desligada

E viva e luminosa vais passando?

 

AMOR DE PIGMALIÃO

Que gozo triunfal de estatuário!...

Ei-lo abraçado à esplêndida figura:

Oscula-lhe o cabelo, a fronte pura,

Belos olhos de mimo extraordinário!

Como um louco febril, um visionário,

Beija-lhe a boca de infantil frescura,

O colo, os seios de brilhante alvura,

Os seios! alvos lírios de um sacrário!

E impreca o céu num grito de agonia:

“Ó Vênus imortal, dá vida à ideia

Faze animar-se a pedra muda e fria!!”

Prodígio divinal! A cípria deia,

Compungida do gênio que sofria,

Dá vida à estátua, e surge Galateia!

 

CLEÓPATRA

I

Cingido o corpo em tela de brocado

Que mal encobre, o contornado seio,

Reclinada em divã aurilavrado,

Cisma a Rainha em palpitante anseio.

Em forma de asas de íbis, mas de prata,

Luz o toucado; a esplêndida melena

Densa, ondulosa e negra se desata

Sobre a espádua morena.

O diadema de pedras cintilantes

Exibe em oiro a víbora sagrada

De boca de coral, olhos — diamantes,

E tremulante a língua bifurcada.

Cisma, apoiada sobre o cotovelo,

Semblante concentrado, merencório,

Pés em sandálias a calcar o pelo

De urso branco, hiperbóreo.

Como troféu colhido em pugna ardente

— Vencido soberano —

Semideitado, mas de altiva frente,

Vê-se-lhe aos pés enorme tigre indiano.

Esbelta escrava grega, seminua,

Com leque de plumagens multicores,

Agita o ar contra o calor que estua

E sufoca de ardores.

A calma intensa fortemente aflige-a;

À transparência do sutil vestuário,

Bem poderia helênico estatuário

Reproduzir a Vênus Calipígia.

Em que meditas, ambiciosa filha

Dos Ptolomeus, em teu cismar profundo?

No ardente olhar um só desejo brilha:

O de reinar no mundo!

II

Airosa como um cisne e marchetada

De arabescos — dragões de madrepérola —

Resvala a embarcação engrinaldada

Sobre a face do Cidno d’água cérula.

Recebe a egípcia Antônio na galera

De popa d’oiro, velas purpurinas,

Remos de prata. E desde logo impera

No romano de ideias libertinas.

Uma leve harmonia voa incerta

Das cítaras em trêmulos arpejos;

Sob o dossel da câmara entreaberta

Soa em surdina a música dos beijos.

Vinhos, perfumes, cantos cristalinos

Transportam ambos a deleites célios...

As três ordens de remos argentinos

Batem cadentes: branda força impele-os.

Subjugando o triúnviro, proclama

Cleópatra, a sonhar mais alto sólio:

“Hão de aclamar-me pela voz da Fama,

Quando eu ditar as leis no Capitólio!”

Sempre utopista, a bela imprevidente,

A fitar o céu puro,

Pressupõe, pelos gozos do presente,

Um grandioso futuro.

Sonha ver hieroglífica escritura

Narrar os planos vastos,

E a vitória já conta por segura,

Ultrapassando de Ramsés os fastos.

Parece-lhe que os ídolos imensos,

Grandes esfinges e animais sagrados

Estão, como suspensos,

No triunfo engolfados.

Alexandria toda se engalana

De adornos emblemáticos,

E, em sinal de alegria, a Soberana

Consagra as noites a festins orgiásticos.

Na desvairada vida a que se vota,

O contendor de Augusto manifesta

Amor insano à culta poliglota,

E repudia Otávia, a esposa honesta.

III

Um dia, após prazeres requintados,

Por dar a Antônio sensação mais forte,

Ao átrio manda vir três condenados

A castigo de morte.

E a extravagante, olímpica Princesa,

Ordena se ministrem corrosivos

Dos três reinos da vária natureza

Aos míseros cativos.

Flautas e guslas, harpas e pandeiros,

Por moças da Caldeia desferidos,

Destinam-se a espalhar sons prazenteiros

E a sufocar gemidos.

Em ligeiro tablado ao centro posto,

Surge um felá — figura resoluta:

Sem contração no rosto,

Bebe de um trago a taça de cicuta.

Depois, um grande partha musculoso

Recebe o tóxico, a sorrir ingere-o,

E cai, arqueado, a escabujar furioso,

Demente pelo efeito deletério.

Chefe núbio de altura extraordinária,

Negra epiderme, desconformes dentes,

Em jaula aceita luta sanguinária

Com rábidas serpentes.

Seis áspides, seis víboras sanhudas,

Como insufladas de vertigem louca,

Ensanguentam-lhe as pernas cabeludas,

Braços e peito e escancarada boca.

Contra as horrendas serpes esfomeadas

Desenvolvendo ingênito valor,

Vence-as a pés, a dentes, a punhadas,

E morre como um bravo o lutador.

Marco Antônio horroriza-se ante a cena;

Crispa-lhe o dorso estranho calafrio,

E vê na amante impávida, serena,

Prazer e sangue frio.

IV

À sombra de um velário, no terraço,

Canta o romano herói, ébrio de vinho;

Ela, formosa, a veste em desalinho,

Relembra de Ericina o vivo traço.

Beijam-se a rir, em serpentino abraço;

Da fogosa paixão no torvelinho,

Repetem juras de eternal carinho,

— Amor que vence o tempo e vence o espaço.

Vendo-o dormir, qual fera subjugada,

Levanta-se a Rainha alucinada,

Faces em chamas, desnastrada a coma,

E, olhando o mar, exclama, altiva e brava:

“Jamais! Jamais me arrastarás escrava,

Presa a teu carro triunfal, ó Roma!”

V

Defronte ao cabo de Ácio, o mar se coalha

De embarcações egípcias e romanas

A disputar ufanas

Os troféus da batalha.

Vozes em grita, imprecações frementes

Bem como lanças de arremesso, voam

Das grandes naus de popas imponentes

Que estalando abalroam.

“Por Zeus! Por Ísis!” Orações e pragas

Ressoam no mavórcio incitamento;

Rolam sinistras, espumantes vagas

Sobre verde lençol sanguinolento.

Em defesa da própria liberdade,

Os fortes africanos combatentes,

A praticar ações de heroicidade,

Vão prestes recolher palmas virentes.

* * *

Em meio da batalha, a amedrontada

Cleópatra — somente vencedora

Nos combates de amor — foge apressada

Como se a morte a seu encalço fora.

Sob nuvem compacta, aterradora

De setas, segue Antônio a régia amada,

E após, supondo morta a sedutora,

No rude e largo peito embebe a espada.

Morde um áspide o seio palpitante

Da Rainha, que em derradeiro instante

Diz às escravas:” Exaltai-me a sorte!

Filha de heroicos Reis, nunca vencida,

Excelsa glória me coroa a vida,

Pois que à desonra vil, prefiro a morte!”

 

SÍSIFO

Como Sísifo — a vítima da lenda —

A rolar o rochedo na montanha,

Tendo escrita nas faces a legenda

Da existência infernal, escura, estranha;

Entregue à luta colossal, tremenda,

Que de sangue vivaz as mãos lhe banha,

Erguendo o fardo à alcantilada senda,

Sem nunca interromper lida tamanha:

Assim, por entre os cardos da existência,

Ergo, ofegante, à ríspida eminência,

Como um suplício atroz, duro rochedo...

Um grande amor... Abranda-te, minh'alma!

Cessa, doida ilusão! Ó dor, acalma!

Coração, não reveles o segredo!

 

ADORMECIDA

I

Dormes. Sobre o veludo da almofada

Repousas meiga a face purpurina

Por um belo sorriso iluminada.

É cedo. A claridade matutina,

Manso beijando a cúpula estrelada,

Vai suspendendo a rútila cortina...

Desperta a natureza dos enleios

Da noite de luar; e tu, formosa,

Entregue ainda a castos devaneios,

Vais prolongando a noite esplendorosa...

— Braços em cruz guardando os níveos seios —

Qual guarda a concha a pérola mimosa.

Dormes feliz, sem tímidos anseios,

Sem as paixões da vida tormentosa.

II

Não venho perturbar-te o sonho lindo,

Nem te oscular a pálpebra cerrada;

Vejo-te a boca rúbida sorrindo

Como sorvi no céu a madrugada,

Em que sonhas? Que gozo etéreo, infindo,

Transluz em teu semblante, Lola amada?

Que mundo vês além, entreluzindo,

Róseo, através da pálpebra rosada?

Que sol te doira o sono de inocência?

Em que elevada e límpida existência

Divagas a sonhar, anjo risonho?

Mas de leve estremeces... Não, querida!

Não despertes! A mágoa desta vida

Não vale as alegrias de teu sonho!

 

LUTA DE PROMETEU

Qual planeta na esfera diamantina

Preso do sol à rútila influência,

Arrebatado à universal cadência,

À poderosa força que o fascina

Assim te sigo ansioso. Cumpro a sina

Que me traçaste à túrbida existência!

Não posso opor altiva resistência

À luz de teu olhar, mulher divina!

Punge-me às vezes íntima saudade

Do que fui, da perdida liberdade,

Da minha nobre aspiração suprema!

Porém, qual Prometeu acorrentado,

Se tento revoltar-me alucinado,

Aperto mais a sufocante algema!

 

ANTE O RETRATO DE DANTE

Ao contemplar a pálida figura

Curvada a meio sobre o livro aberto,

E em traço firme, vigoroso e certo,

Compondo a sós a célebre escritura;

Ao ver-lhe a grave e larga curvatura

Do crânio altivamente descoberto,

Creio sentir, a fulgurar de perto,

Da Renascença a grande aurora pura!

E murmuro: “Teu gênio sublimado,

Aos infernos e aos céus arrebatado,

Por sobre as gerações paira pujante!

O tempo curva-se ao teu vulto egrégio!”

E, enlevado, cometo um sacrilégio:

Osculo a efígie divinal do Dante.

 

PAIXÃO DE MIGUEL ÂNGELO

“Que importa que o mundano preconceito

Proíba ao meu amor de idolatrar-te?

Que importa que se eleve em toda a parte

Barreira enorme a sufocar-me o peito?

Não devo os meus extremos consagrar-te,

Eu! que ao belo, ao sublime rendo preito,

E que a teus pés, com íntimo respeito,

Amo a virtude quanto adoro a arte?

Dá-me a glória!” suplica o visionário

— Arquiteto, pintor e estatuário —

Em íntima oração de aflito monge.

Mas Vitória Colonna bela e grave

Qual de um sonho visão, branca e suave

Circundada de luz, esvai-se ao longe...

 

MERGULHADOR DE SCHILLER

O pajem nadador que Schiller canta

Vai ao fundo do mar buscar a taça.

Maravilhado o Rei de audácia tanta,

Quer que a novo capricho satisfaça.

Torna a arrojar a taça e a mão da Infanta

Promete ao jovem como régia graça.

Louco de amor, o pajem se adianta

E cai ao mar, sorrindo ante a desgraça.

Sofre a infeliz Princesa intensa mágoa,

Não vendo ressurgir à tona d’água

O noivo, que morreu nas ondas cérulas.

Assim também, ó Musa, te amofinas,

Por ver que de entre as ondas cristalinas

Não surjo à luz do sol trazendo pérolas.

 

ESTÁTUA GREGA

Surge, gloriosa, de marmórea espuma,

Como do mar a Vênus donairosa,

Branca mulher — a perfeição é suma —

Tendo de Aspásia a Forma esplendorosa.

Desnudada Rainha, ela ressuma

A soberba de Juno caprichosa;

Comove, exalta, sem mostrar nenhuma

Alteração na face majestosa.

Fídias, surpreso, ao contemplar-lhe o vulto

Curva o joelho em fervoroso culto

E sagra-lhe paixão insana e fátua.

Abraça e beija o escultural encanto...

Fala-lhe... e sente, com supremo espanto,

Que é fria e morta a divinal estátua!

 

ALMA FORTE

Embora insanamente torturada

— Cabeça em febre, em sangue o coração,

Rotas as vestes nos sarçais da estada,

E de amargo suor banhando o chão,

Inunda-te em frescores de alvorada,

Musa ferida! Em casta irradiação,

Sacode o pó da clâmide sagrada,

Distende as brancas asas na amplidão!

Descreve, pelo espaço tormentoso,

Um giro triunfal, pleno de gozo,

Sufocando no peito a dor atroz!

Envolvem-te a procela e os céus em brasas?

Que importa! Enverga firme as largas asas

Suplanta as tempestades, albatroz!

 

MINS, HVEM DU ÄR!

ALMA FORTE

(Tradução em sueco)

Tynga dig qval, dem ej du mäktar tälja,

är utaf ângestsvett din panna kall,

nödgar dig nâgot dampa känslans svall,

mâste i hvarje stund din grât du svälja,

Sângmö, din frihet dock de ej fâr sälja!

Blif ingens, icke ens din sorgs, vasall!

Nej, innan än din egen kraft ar är all,

upp att en värdig tillflyktsort dig välja!

Mot ljusa rymder dina vingar spänn,

högt ofvan stormar, ofvan moln dig svinga,

och för en stund dig stark och frigjord känn!

Hvad än dig sker, tro ej din kraft för ringa!

Om mot ditt bâl än riktas tusen bloss,

glöm ej att du har vingar, albatross!

Göran Björkman.

Estocolmo

 

OS CANÁRIOS

Na florida janela

Que a madressilva de festoes enrola,

Colocara a donzela

A pequena gaiola,

— Palacete encantado

Em que a vida passava alegremente

Um lindo belga, um músico inspirado,

Um gênio, que excedendo aos mais notórios,

Não precisou cursar conservatórios,

A modular contente,

Qual príncipe em chalé, travesso, e louro

Como uma pluma de ouro.

Se alguma vez o via com fastio,

Rosina, segurando com carinho

Entre os lábios um leve pedacinho

De pão-de-ló macio,

Oferecia a boca nacarada

À ave afortunada,

Que a beijava, amorosa e saltitante,

Qual se beijasse apaixonada amante!

Feliz canário! Após a refeição,

Sutilmente molhava o bico n’água

E trinava em seguida uma canção,

Um hino triunfante,

Como um protesto à mágoa,

Como um belo sinal de gratidão.

Conversavam às vezes. Quadro lindo!

Ele, alegre, cantando; ela, sorrindo:

“Como feliz tu passas a existência!...

És um rei nesta aérea residência,

A. cantar, a saltar pelos poleiros,

Sem a turba servil dos lisonjeiros!

Se acaso me deixasses, que tristeza

Não sofreras! Que angústia nunca vista!

— Vida de sofrimento e de crueza,

À beber água turva nos regatos,

A procurar debalde pelos matos

Um raminho de alface, um grão de alpista!

Como alguém que a chorar se desconsola,

Na tua soledade,

Ou morrias de fome ou de saudade,

Saudade desta esplêndida gaiola!...”

O pássaro, gorjeando

A música divina,

Dizia, ou forte ou brando:

“Enganas-te, Rosina!

Quando um dia adejar pela amplidão,

Poderei eu acaso, ante a grandeza

Do infindo azul, de toda a natureza,

Recordar com saudade esta prisão?

Pois eu que tenho sede do infinito

E jamais sentirei cansaço na asa,

Preferirei o espaço circunscrito

Desta pequena, imperceptível casa?

Abraso-me de ardores!

Pulsam-me n’alma aspirações tão grandes,

Que invejo a hercúlea força dos condores

Para arrojar-me muito além dos Andes!

Sei que te aflige a confissão sincera;

Porém devo dizer-te: — Um dia, quando

Tua alma, que é risonha primavera,

Florir as ilusões que vêm brotando,

E alguém aproximar-se, comovido

Ante esse esbelto porte sedutor,

Murmurando enlevado ao teu ouvido:

Adoro-te! e sentires pela face

Vivíssimo rubor,

Como refulge à noite esplendorosa

Um meteoro rútilo e fugace;

Quando ouvires a música do amor

— Ai! decerto bem mais harmoniosa,

Mais fremente de encantos

Que os meus sentidos cantos —

Quando em fim da paixão tu fores presa:

A tua própria mão

Causará a surpresa

De vir abrir-me a porta da prisão!”

Ela ouvia-o cantar, mas não sabia

Que coisas o canário lhe dizia.

Em breve prazo, um ente predileto,

Terno amor contraído desde a infância,

Despertou em Rosina um grande afeto,

— Dulcíssima fragrância

A embalsamar a recatada estância.

Rosina amava com ardor profundo,

Como se pode amar sobre este mundo.

As suas mais risonhas fantasias,

Desejos de elevar-se venturosa

A outra esfera azul, mais luminosa;

Douradas utopias.

Mimoso pranto a furto derrama do,

Vagos pesares, doidas alegrias;

Tudo quanto sentia de encantado

No coração a transbordar de aromas;

Tudo quanto a fazia suspirar,

Arfando as níveas pomas,

Como suspira o mar

Inundado em fulgores de luar;

Como suspira a aragem

A balançar o lânguido perfil

Das flores, ciciando uma linguagem

Misteriosa e sutil;

Tudo quanto a paixão segreda, inspira

E faz com que famoso estatuário

Arranque, como estrofes de uma lira,

Deusas pagas do olímpico sacrário

Da natureza esplêndida e marmórea;

Tudo que é febre, entusiasmo ardente,

Santa loucura de atingir a glória:

Ela depunha, pálida e tremente,

No puro altar sagrado, irradiante,

Em que adorava o busto adolescente

De seu primeiro amante.

Quanto ela era feliz! A natureza

Parecia-lhe noiva engrinaldada,

Cintilante de joias e beleza,

A receber na fronte imaculada

Um ósculo do sol! Tão venturosa

Se julgava Rosina,

De tudo descuidosa,

Que se esqueceu de dar o necessário

Ao cantador canário,

Que desprendia a voz sempre argentina!

E no dia seguinte o mesmo olvido!

O pássaro trinou, já pouco forte,

Misturando no cântico um gemido

De quem vê perto a morte.

Rosina pôde ouvi-lo. Num momento

Corre a dar-lhe alimento;

Mas, quando lhe abre a porta, alguém reclama

Entregar-lhe uma carta; ela abandona

A gaiola, ao ver letra de quem ama,

Daquele por quem toda se apaixona.

Curiosa lê, defronte da janela,

Quatro linhas da epístola singela:

“Não posso unir-me a ti! Um juramento

Prende-me o coração, prende-me a vida

À mão de outra mulher! Oh! que tormento!...

Despreza-me, querida!”

No canapé tombando desmaiada,

Deixa cair a carta malfadada.

Ao despertar da síncope sombria

— A primeira agonia

Que lhe enublava a fronte de criança —

Olhou para a gaiola: o meigo louro

Fugia sem tardança,

Qual se buscasse, ardente de esperança,

Um precioso tesouro!

Cintilavam no espaço as asas de ouro!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chorosa, ajoelhada, em triste anseio,

Qual consternada estátua da aflição,

Levou Rosina a mão ao casto seio

— Ao soluçante, angélico sacrário —

Seguindo o voo da ave na amplidão,

E sentiu que outro afeto, outro canário,

Também lhe abandonara o coração.

 

A DOMADORA

Perante a grande multidão curiosa

Que doidamente aplaude e que condena,

Ela exibiu-se, impávida e serena,

Cingido o corpo em clâmide pomposa.

Entrou nas jaulas e afagou mimosa

De hircano leão a túrbida melena;

O tigre, o lobo, a carniceira hiena

Curvaram-se ante a força prestigiosa.

Quando a beijaram canibais panteras,

A turba, num transporte delirante,

Fez-lhe ovações estrídulas, sinceras.

Porém ela chorava nesse instante:

Chorava não poder, entre as mais feras,

Domar o fero coração do amante.

 

A CRISTÓVÃO COLOMBO

De pé sobre o convés, batido pelo vento,

Sentindo em torno o mar a rebramir violento

Como um monstro feroz na treva a protestar;

— Um átomo perdido em meio do infinito —

Sobre a agulha o olhar continuamente fito,

E tormentoso o céu e tenebroso o mar;

Sem ver costa ou farol no revolto proscênio,

O gênio, iluminado à luz do próprio gênio,

Afronta sem temor os rudes vendavais.

Quais asas de albatroz, as enfunadas velas

Parecem provocar a sanha das procelas

E para o sol poente avançam mais e mais...

A fé exalta o ardor ao forte navegante:

Consulta o astrolábio, a bússola, o quadrante,

E aponta no horizonte a rota a percorrer:

“Dali há de surgir a terra que procuro!”

Mas o tempo se alonga e a bruma do futuro

Faz a triste campanha, em susto, esmorecer.

De elétrica descarga o horríssono rebombo

Não enruga sequer a fronte de Colombo,

De pé sobre o convés, qual sobre um pedestal!

Que importa a confusão revolva os elementos

E a fúria impetuosa, indômita, dos ventos

Arraste a natureza em círculo infernal?

“Em três dias vos dou a terra prometida,

A terra que entrevejo esplêndida de vida,

Qual dos povos hebreus a bela Canaã!”

E, céus! antes de findo o diminuto prazo,

O gajeiro, no tope, a perscrutar o ocaso,

“Terra! Terra!” bradou, sorrindo, uma manhã!

Pelo espaço cruzou uma alegria — uma ave!

Pouco e pouco um perfume edênico e suave

Fez palpitar de gozo o peito aos europeus.

Curvaram-se os heróis da celebre viagem,

A proferir, em coro, altíssima homenagem

De intensa gratidão e puro amor a Deus!

Ao contemplar, surpreso, a rara maravilha,

Ao ver surgir do mar, entre festões, uma ilha,

Sentiu Colombo o pranto umedecer-lhe a tez...

Não pode a pena audaz, não pode a língua humana

A emoção descrever, sagrada e soberana,

Que o peito fez arfar do grande genovês!

Em sonho, acaso viu a encantadora imagem

Desta terra feliz que arroja na passagem

Inventos ao porvir por sobre as multidões,

Formosa, a abandonar o seio das florestas,

Para dar ao trabalho estrepitantes festas,

Altiva, a despertar a inveja das Nações?

O gênio imaginou que a terra que surgia,

Como a Vênus, do mar, devera ser um dia

Empório do progresso, a pátria do vapor,

Emissária da luz, contrária à sombra tétrica,

Indo às nuvens roubar a claridade elétrica

E dar à humanidade o máximo esplendor?

Sublime transição! O louco visionário

A abrir da natureza o mágico sacrário,

E, pobre, dar ao mundo um mundo superior!

Pequeno, a ver o mar — o torvo mar de Atlante —

A cantar docemente um hino triunfante,

Qual um escravo núbio às plantas do senhor!

Salve, salve, Colombo! A tua imensa glória

De luz iluminou os pórticos da história,

Rasgando à humanidade a senda do porvir!

Do belo pedestal em que soberbo imperas,

Vês, quais ondas, passar as transitórias eras!

Venceste o mar, e o tempo aos pés te foi cair!

 

O FERREIRO

Eu gostava de ver a valentia

Do musculoso obreiro já grisalho,

Cuja fronte banhada em santo orvalho

À luz da ardente forja resplendia.

Que rijeza de pulso! Que alegria

Tinha sobre a bigorna do trabalho

À vibrar firme, estrepitante, o malho,

O malho que só ele suspendia!

Eu, se às vezes nas artes tenho ingresso

E vou também, qual simples jornaleiro,

Unir-me aos operários do progresso,

Não abato a cerviz; mas, altaneiro,

Às porfiadas lutas me arremesso

Seguindo o nobre exemplo do ferreiro.

 

EM CONSTELADA NOITE...

Em constelada noite, quando fito

A vasta e palpitante imensidade,

O pensamento quer, com ansiedade,

Perscrutar os mistérios do infinito.

Escute-o, em sonho, a interrogar aflito:

“Donde irradia a eterna Divindade,

Se dos astros a infinda quantidade

Jamais espaço encontra circunscrito?

Onde está Deus?” E o pensamento, estuoso,

Em gigantesco voar vertiginoso

As estelares amplidões percorre...

De mundo em mundo, no aspirar insano,

Tenta engolfar-se no profundo arcano...

Mas no abismo insondável tomba e morre.

 

ALTO DA SERRA

Como é soberbo o panorama agreste

Que em torno descortino!

Quanto efeito de luz pelas quebradas!

Que delicados tons! esmeraldino,

E verde-escuro, em sombras carregadas,

E ao fundo, a recortar o azul celeste,

Serranias de azul ultramarino!

Prodigioso pincel

Fez brotar da gigântea fantasia

A vasta encenação deste painel!

O sol, o gigantesco lampadário,

Rompendo a gaze da neblina fria,

Apoteosa a pompa do cenário!

Em contorções sequiosas, compressivas,

Enroscam-se as orquídeas com violência

À ramagem das árvores altivas.

O concentrado ouvido quase escuta

O frenesi da luta,

Luta pela existência.

Soam nas pedras límpidas cascatas

E rolam pela Serra alegremente,

Indo levar a rápida torrente

À profundez das inviáveis matas.

Cada vez menos denso,

O nevoeiro esgarça-se, e, subindo

Do vale à Serra e pelo espaço infindo,

Semelha rolos de sagrado incenso...

Forte apitar do trem pelas montanhas

Produz, em ecos, vibrações estranhas...

Rumor das fontes, o cantar das aves,

Orquestração misteriosa, idílica,

Recorda um hino a estremecer as naves

De festival basílica.

Colocada em poética ladeira,

Pequenina choupana

Faz ondular o fumo da lareira

E olor de rosas levemente emana.

Sorrindo, entregue ao maternal enleio,

À luz do sol de resplendente brilho,

À porta, uma mulher aleita o filho

No intumescido seio.

Um homem que regressa dos labores,

Acaricia a face da criança

E das fadigas ásperas descansa

Fitando os seus dois únicos amores.

Invejo-te o viver, serrano obscuro,

Indiferente ao social bulício!

Circunscreves no lar o teu futuro!

Não sabes que irmãos teus — os denodados

Filhos do Sul — em bárbaro suplício,

Pela guerra civil são destroçados!

Não te requeima a artéria palpitante

A febre do amor pátrio que calcina!

Neste belo proscênio deslumbrante

Outra paixão te arrasta e te domina!

Tens, em vez de fumaça asfixiante,

O perfumado ambiente das florestas!

Em vez do sangue a avermelhar os campos,

Rúbidas Hores a saudar-te em festas!

Fulgem-te à noite estrelas, pirilampos,

E não canhões ferais da artilharia!

Atônita e surpresa,

Tua alma se gloria,

Engolfada nos grandes esplendores,

Na majestade desta natureza!

Alheio à guerra, a ódios, a vinganças,

Do pesado trabalho tu descansas

Em meio de teus únicos amores!

Ao passo que minh’alma compungida,

Torturada em cruéis desesperanças,

Casa a rude existência atormentada

À infrene desfilada

Deste agitado trem... chamado vida!

Alto da Serra, estação da estrada de ferro de S. Paulo a Santos. Maio de 1895.

 

A LENDA DO JUDEU ERRANTE

Prostrado pela cruz de peso extraordinário,

O justo percorria a rua da Amargura,

Sentindo, longe ainda, o cimo do Calvário

— O desejado termo à trágica tortura.

Parou junto ao portal de ríspido operário

E quis sentar-se aí a arfante criatura;

Mas Ashavero, a rir do mártir missionário,

Não teve compaixão daquela desventura.

Impele-o brutalmente e brada-lhe: “Caminha!

Caminha!” Cristo, ouvindo a rude voz mesquinha,

Voltou sereno o rosto e disse esta verdade:

“Caminharás também, sem pátria, sem abrigo,

Sem ter em toda a terra uma afeição de amigo!

Caminharás, judeu, por toda a eternidade!”

 

NOITE DE LUAR A BORDO

A lua, a branca Ofélia, brandamente

Estende o misterioso véu de prata

Pela amplidão dormente

E no rio espelhante se retrata,

A recordar sultana

Que a se rever num lago devaneia.

Trasborda o rio, e a cheia

Alaga a verde alfombra da savana.

Por entre as ramarias

Dos sarandis curvados sobre as bordas,

Geme a corrente vagas harmonias

Como de um bandolim as tênues cordas...

Embalsamam-se os ares de fragrâncias

Agrestes, das campinas

Orientais e argentinas,

E além, sobre os outeiros,

A luz branqueia as casas das estâncias

Ornadas de coqueiros.

Que cenário contemplo!

A lua que em fulgores se dilata,

Semelha enorme lâmpada de prata

A iluminar um templo.

No salão do recreio uma espanhola

Gorjeia, acompanhando-se ao teclado,

Um romance amoroso que se evola

Ao céu todo estrelado:

“Todo acabó; ¡extinguida

La antigua llama siento!

No exhale ni un lamento

Mi altivo corazón.

Que el más completo olvido,

Rasgada, ya la venda,

¡Sobre mi amor extienda

Su fúnebre crespón!”[1]

Recosto-me à amurada

Da popa, a ver a espuma alvinitente

Que as rodas do vapor em giro ardente

Levantam na carreira arrebatada.

Alguém que não conheço

Acerca-se de mim. Não me recordo

Das palavras trocadas no começo

Da convivência que mantive a bordo.

“Como e belo o Uruguai! disse enlevada,

A suspirar de manso.

Como ele espelha a noite constelada!

De vê-lo não me canso!

Para onde vai, senhor?”

— Eu, volto aos lares,

A Porto Alegre, após dorida ausência.

“Eu à França, e cruciada de pesares

Que me tornam suplício esta existência.

Preciso de viajar. A vida agora

É para mim prisão.”

E naquele semblante adolescente

Que a lua romantiza e mais descora,

Uma nuvem passou, triste e silente,

Como passa chorando uma ilusão.

— Sofre acaso, senhora?

“Sim; procuro

Sanar a dor pungente

Que sinto a torturar o coração.

— Tenha fé...

“Eu não creio no futuro.”

— Acaso amou?

“Amei; mas fui traída.

É vulgar, como vê, banal a história

Que me amargura a vida.

Amor! paixão! miragem transitória

Que enlouquece a razão e o sentimento,

Fenece num momento!

Sei que devo esquecer o noivo ingrato

Que desfez, sem piedade, as minhas crenças;

Mas muitas vezes beijo o seu retrato,

Sentindo aqui saudades bem intensas!”

E bela e envolta no clarão da lua,

Aflitamente comprimia o seio.

No salão de recreio

O canto da espanhola continua:

“¡Oh! cuanto te adoraba!

¿Por qué no confesarlo?

Cautiva, sin pensarlo,

¡Me vi de tu beldad!

Y hoy mismo que te huyo,

Si he roto mis cadenas,

A costa de hartas penas,

¡Compré mi libertad!”[2]

E a doente saudosa prosseguia:

“Vou visitar Paris. Esta senhora

(Disse indicando alguém) é minha tia,

Uma alma compassiva que me adora,

E me serve de mãe nesta agonia

Que sinto, a definhar-me de hora em hora.

O senhor é feliz! Já foi amado

E continua a sê-lo... Não é certo?

Não respondi: sentia igual deserto

No coração ferido e torturado.

No florescer dos anos,

Dezenove talvez, a desventura

Alquebrava a mimosa formosura,

Sob o peso de atrozes desenganos.

Quanta mágoa sentia em morrer cedo!

Seu nome? É meu segredo.

Entregue ao profundíssimo desgosto,

Deixava a lua iluminar-lhe o rosto.

No salão, entretanto,

Como um canário a modular contente,

Soava docemente

Da faceira espanhola o terno canto:

“¿Por qué tiernos recuerdos

Me asaltan de otros días,

Flotantes armonías

De un canto que expiró?

Aun cuando el sol se esconda

Tras las nevadas cumbres,

¡Revelan sus vislumbres

Mi sueño que pasó!”[3]

A natureza em torno estremecia

De infinita poesia.

Naquele belo instante,

A lua, na amplidão, banhada em glória,

No zênite, seguia a trajetória,

Serena e triunfante.

Nenhuma nuvem pelo céu suspensa.

A vasta imensidade,

Misteriosa e funda como a crença,

Esplendia a solene majestade.

Com intima tristeza,

A jovem desditosa

Ia soltando as folhas de uma rosa

E as deixava cair na correnteza...

Depois, em vago anseio,

Reclinando a cabeça sobre o seio

Da velha comovida,

Verteu nervoso pranto,

Derradeiro talvez de toda a vida.

E ressoava no salão o canto:

“Mas no; ¡nada perturbe

Tu misteriosa calma!

¿A qué desear la palma

De mi desgraciado amor?

Que Dios que nos escucha

Dé paz a tu existencia!

Yo guardaré la esencia

De la marchita flor!”[4]

Reprimindo a emoção, dizia a doente:

“Fidelidade eterna, beijo ardente,

Jura de noivo a protestar, chorando,

É sonho de demente,

Um mito neste globo miserando!”

E olhando o calmo céu resplandecente:

“Além, n’alguma estrela cintilante,

Não formada do lodo deste mundo,

Talvez possa minh’alma — doida amante —

Calmar a febre deste amor profundo.

Serei feliz! Quem sabe?...

E a voz tremia

De ciúme e de agonia.

“Veja as mãos como escaldam!”

E confiante,

Estendeu-mas chorosa. Nesse instante,

Em que a vi junto a mim, sentida e bela,

Estranha sensação de luto e gozo

Senti pulsar no coração queixoso

Que partilhava a sorte da donzela.

Forte acesso de tosse convulsiva...

Um soluçar intenso

Umedece-lhe os lábios. A saliva

Molha de sangue o pequenino lenço.

Contemplo-a pensativo,

Opresso o peito a tanto sofrimento,

E a pesar meu, revivo

De meu passado um íntimo tormento,

Também sem lenitivo...

E enquanto duas almas

Expandem no silêncio a mesma dor,

Soam bravos e palmas

No salão de recreio do vapor.

 

NOITE GLORIOSA

“Descreve-me esta noite deslumbrante,

Este céu que de estrelas se constela,

A grande maravilha palpitante

De sóis cravados na azulada tela!

Descreve, numa estrofe rutilante

Em que a chama sagrada se revela,

A lua, a cismadora deusa errante

Que divaga a sorrir, desnuda e bela!

Canta, poeta, a augusta majestade

Que nos rodeia: a luz, a imensidade,

Tudo quanto respiro e sinto e rejo!

Em prêmio da tarefa sublimada,

Que desejas? A glória ambicionada?”

— Sim, amor! Quero a glória de teu beijo!

 

NO BANHO

Tomba-lhe aos pés a túnica de neve,

E na plena nudez mais provocante

Aproxima-se da água murmurante

E quer ao mar lançar-se... e não se atreve.

De pedra em pedra salta, airosa e leve,

Como uma ave de mimo cativante,

Expondo ao sol que a beija a todo o instante

Maravilhas que a pena não descreve.

Salta na agua. Espumantes as ondinas

Envolvem-na de gotas cristalinas

Dos pés à cabeleira negra e basta.

Após ligeiro instante, ei-la! aparece

Tão cheia de esplendores, que parece

A imagem de uma Deusa, nua e casta!

 

A GALERA

Voga, através dos tempos, a galera,

— A Vida — que nos leva a estranhas plagas,

Ora ao silvar de tempestade fera,

Ora ao vaivém de balouçantes vagas.

De que ponto da terra fez partida?

Talvez da Ásia central. Qual sua idade?

Tenebrosa questão não resolvida.

Qual seu destino? O vago, a eternidade.

Ou gemendo ou sorrindo, ela percorre

Há milênios a rota do infinito,

E a cada geração que luta e morre

Outra nova se arroja no conflito.

Agonizar de velho, rir de infância,

— Cair de ocaso, enrubescer de aurora —

Vício e virtude, ciência ou ignorância,

Ligados tombam pela borda fora.

Prossegue a Vida — as velas desfraldadas —

Ou brilhe o sol sobre a planície funda,

Ou, a fremir de nuvens carregadas,

A noite espalhe escuridão profunda.

Entre a alegre celeuma dos contentes

Ah! quanta vez o coração não chora,

Ao contemplar estremecidos entes

Mortos, lançados pela borda fora!

Mas não jazem no olvido os cativantes

Afetos a que damos sagrações:

Nós os sentimos flutuar constantes

No mar sem termo das recordações.

Se o materno, bendito sustentáculo

Nos foi levado agora na corrente,

Façamos da saudade um tabernáculo!

De nosso coração — câmara ardente!

 

FITANDO ESTRELAS

Reclinada a meu ombro, ela, sorrindo,

Murmurava, indicando-me as estrelas:

“Quisera na amplidão voar, ir vê-las,

Engolfar-me na luz deste céu lindo!

Se a alma vai ao céu num gozo infindo,

Talvez eu possa um dia conhecê-las!

Que prazer não terei, vagando pelas

Constelações que vejo reluzindo!”

Pensativa, mais alva que alabastro,

Cismava, divagando de astro em astro,

Longe do mundo, longe dos escolhos...

E naquele mistério venerando,

Eu também me enlevava, contemplando

O brilho das estrelas... nos seus olho.

 

O DUELO

(BALADA ANTIGA)

No vetusto salão de austera fidalguia,

Ornado de brasões e bustos ancestrais,

Dois jovens, dois campeões, de força e galhardia,

Cavaleiros e irmãos, e, pela fama, iguais,

Por destino fatal encontram-se rivais,

Votando à mesma dama intenso amor fremente.

À luz do lampadário, a sós, de frente a frente,

Espadas a cruzar, em giro ameaçador,

Pareciam dizer, no conflito inclemente:

“Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!”

O ríspido golpear tinia e retinia

Nos muros; as viris imagens patriarcais

Daquela veneranda, egrégia galeria,

Relembrando os lauréis das batalhas campais,

Em defesa da pátria e dos direitos reais;

Os guerreiros-avós, ao ver o duelo ardente,

Culpado, fratricida, inglório, deprimente,

Despediam do olhar lampejos de furor!

Mas ouvia-se a voz de cada combatente:

“Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!”

Ferido fundamente o braço que feria,

Os peitos a sangrar nos assaltos mortais,

Em breve, cada atleta, arquejante, caía,

A soltar da garganta estertorados ais!

Sucumbiram assim descendentes marciais

De família de heróis — a progênie valente!

Morreu no lampadário a luz intermitente...

Silêncio... escuridão... ensanguentado horror!

Não mais se ouviu soar a aspiração veemente:

“Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!

OFERTÓRIO

Ó poeta-estatuário, ousado esteta e crente,

Fidalgo e cavaleiro e apóstolo fervente,

Que na Arte concentraste o teu sublime ardor!...

Tu, sim, podes bradar, ansioso, febrilmente:

“Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!

 

GRANDE, IMPONENTE, O LARGO MAR VOZEIA

Grande, imponente, o largo mar vozeia,

E as ondas, em constante marulhada

Batem contra o recife, e sobre a areia

Vêm morrer, em surdina compassada.

Ao ver surgir formosa a lua cheia

Sobre a cidade, ao longe desenhada,

A fantasia, em gozo, devaneia,

Como num sonho enorme arrebatada.

Sedenta de ascensões, minh’alma ansiosa,

Toda engolfada em sideral mistério,

Contempla a branca esfera luminosa,

E quer, num giro astral, forte, bendito,

Transpondo, além, o firmamento etéreo,

Percorrer as estrelas do infinito.

 

NA ARENA

A praz-me ver-te assim, num ímpeto selvagem,

Partir, galgar de um salto o dorso do corcel,

Mostrando na expressão a impassível coragem

Dum Hércules viril, sem maça e sem broquel.

Na carreira febril, na rápida passagem

Sobre infrene animal espumante e revel,

Recordas de um centauro a vigorosa imagem

Por entre as ovações que arrastas de tropel.

Entre o cerrado pó que se eleva ondulante,

Perpassas a sorrir, altivo e triunfante,

Sob a forte explosão das palmas das plateias...

Que famosos lauréis na fronte cingirias,

Se pudesses também, fremente de alegrias,

Partir, saltar, vencer na arena das ideias!

 

A CARLOS GOMES

I

Que importa? Não foi ela, a morte, a vencedora!

Não apagou no pó, na treva aterradora,

A mente a se evolver em mais radiosa luz!

Quebrou-lhe o pedestal terreno, derribou-o

Do soberbo alcantil, mas não tolheu o voo

Da essência que imortal nova forma produz!

A morte não destrói as criações do gênio!

Do presente ao porvir alonga-se o proscênio,

Qual — de uma estrela a outra — a eterna luz astral!

Permanecem na terra os grandes pensamentos,

De duração maior que egípcios monumentos,

Impondo às gerações respeito cultual!

Concentrando no peito o ardor do Novo Mundo,

Quiseste ir expandir o talento fecundo

Onde a Arte soleniza as grandes sagrações:

Na pátria de Colombo e Galileu e Dante,

De Pórpora, Rossini e Verdi e Mercadante,

Foste um nome estrelar entre constelações!

Quem, longe, te inspirou? A profunda saudade,

A saudade da pátria, a erma soledade

De um coração que sofre em contínuo lutar!

Em sonhos, a rever a pompa das florestas,

Dos selvagens o amor, o ciúme, a guerra, as festas,

Tua alma se enlevou num livro de Alencar!

E, Artista, interpretaste, em estos de harmonia,

Das aves o cantar e a épica poesia

Dos hinos triunfais dos rudes aimorés!

E a tua inspiração, sublime de grandeza,

Bela como o esplendor de nossa natureza,

Fulgiu, irradiou dos tempos através!

Pulsou-te na existência um palpitar de glórias,

— Mundo de comoções, de febre, de vitórias,

Que vinham como um sol em nós resplandecer!

A pátria, comovida ao teu fogoso impulso,

Sentia, entre ovações, um frêmito convulso,

Orgulho nacional de te haver dado o ser!

É que ninguém tão alto, em terra americana,

Uma batuta ergueu, briosa e soberana.

Desde as plagas bretãs às regiões austrais!

Só tu, num recruzar de notas e de assombros,

Alçaste, novo Atlante, um mundo sobre os ombros

E o levaste da história aos brônzeos penetrais!

II

Uniu sombra espectral eis desce da montanha...

Longa roupagem branca envolve a forma estranha

Que deixa após de si um rastro de fulgor.

De louros coroada, altiva e majestosa,

Recorda-nos Cornélia, a romana orgulhosa

Que aos filhos incutiu exemplos de valor.

E desce, desce mais do píncaro da Serra!

Um clarão sideral esplende nesta terra

Como outrora o fanal que deslumbrou Belém!

Que deusa vitoriosa assim se corporiza?

Porventura é Veleda, a druida, a profetiza,

Que nos vem desvendar os mistérios do Além?

Traços esculturais, o olhar pasma-se ao vê-los!

Douram raios de sol a alvura dos cabelos,

Servindo-lhe de altar um nimbo rosicler!

O porte gigantesco exalta, entusiasma!

De que estrela desceu este belo fantasma

Que vem pairar aqui, em forma de mulher?

Quem és, visão errante, a alucinar as almas?

Vens acaso trazer mais louros e mais palmas

Ao grande sonhador que aos astros ascendeu?

“Sou mãe, poeta! Eu sou a terra dos Andradas!

Ao som das orações, das músicas sagradas,

Eu venho recolher um gênio que morreu!”

E o cadáver tomando em suas mãos divinas,

Qual uma rara flor brotada nas Campinas,

Beijou-o com calor, com intima efusão;

Depois, como a Niobe, em desespero enorme,

Rasgando o seio nu, exclama: “Filho, dorme!”

E o sepultou ali, no próprio coração!

Santos, 21 de outubro de 1896

 

NOITE DE NATAL

Abre-se a porta, e o bando de inocentes

Louras crianças que a esperança embala,

Insofrido e curioso, invade a sala,

Ao som de risos, gritos estridentes.

Aos pais, todos saúdam sorridentes,

Nessa noite feliz, de festa e gala!

Verdejante pinheiro em torno exala

Perfume e luz — repleto de presentes.

Soam trombetas, rufos de tambores

Defronte do presépio em que o Menino

Jesus sorri mimoso, entre esplendores.

Fulge outra luz no quadro peregrino:

Assoma aos olhos dos progenitores

Pranto de amor, brilhante e cristalino.

 

REMEMBER...

Sei que lembras, em êxtase suspensa,

Amor e crença de passadas eras,

Quando o teu ser. ardente de quimeras,

Só palpitava de paixão imensa.

Entregue à dor oculta, mas intensa,

A recordar felizes primaveras,

Vertes saudosas lágrimas sinceras

Por ver perdido o amor, perdida a crença!

A vida é qual corrente marulhosa

Que as flores de noss’alma arranca e leva

No turbilhão ruidoso, efervescente.

Depressa esvai-se a quadra venturosa!

Tudo quanto na vida nos enleva

Passa desfeito ao longo da corrente...

 

LIÇÃO DE GRAMÁTICA

Nunca o jovem se vê a sós com ela:

A mãe, cosendo junto da janela,

Sempre assiste às lições;

Mas, por mais forças que ele em si reúna,

Sente, em presença da formosa aluna,

Febris palpitações.

Tem por ela profundo sentimento;

Mas deseja ocultar, como avarento,

O recatado amor;

Não dando mostras da paixão imensa,

Afeta a mais completa indiferença,

Como hábil professor.

Julga a aluna uma estátua inerte e fria;

E, para convencer-se, quer um dia

Ouvi-la conjugar

Uma bela palavra, um verbo ardente,

Que faz pulsar o peito adolescente,

O doce verbo amar.

“Diga o futuro deste verbo.”

E ela,

Sem leve alteração na face bela,

Responde: — Eu amarei.

“Muito bem; mas se o tempo for passado?”

Ela diz friamente: — Eu tinha amado,

Ou antes, eu amei.

“Como chama este modo eu amaria?”

A moça lhe responde sempre fria:

Condicional lhe chamo.

“Diga o presente indicativo.”

A medo,

Ela confessa o virginal segredo!

Corando diz: — Eu amo...

 

AS CRIANÇAS

Que gozo divinal eu sinto, quando

Recostado à janela, pensativo,

Contemplo o quadro esplêndido, expressivo,

Das crianças que às aulas vão passando!

Aquele vozear ou forte ou brando

E sempre alegre, cândido, expansivo,

Ecoa na minh’alma em tom festivo

Como harmonia de plumoso bando!

Passai, turba feliz! Vede na escola

Que brilhante porvir se desenrola

Ante vós, aos lampejos da razão!

Estudai entre risos cristalinos!

Enchei de clara luz vossos destinos,

Que em vós reside a glória da nação!

 

ANDORINHAS

Quando o quente verão se extingue, quando

O fresco outono refrigera os ares,

Elas, vibrando tímidos cantares,

Vão além, novo clima demandando.

Atravessam o azul, de bando em bando,

Boêmias, sem amor aos pátrios lares;

Sem a opressão dos íntimos pesares,

Em caravana aérea vão cantando.

Assim também, ó crenças de outras eras,

Andorinhas azuis, doidas quimeras,

Que me alegráveis no risonho estio,

Fugistes como os pássaros errantes,

E não volveis jamais, nem por instantes,

A visitar o vosso lar vazio!

 

FESTA DO TRABALHO

À hora do romper da madrugada,

Abre-se a fábrica, o motor apita;

Aproximam-se em longa desfilada,

Obreiros que o trabalho nobilita.

Homens, mulheres, jovens e pequenos,

Em rumores de alegres matinadas,

Mostram-nos rostos de saúde plenos

Almas pelo dever entrelaçadas.

Entram todos; ocupam-se os lugares;

Cada qual tem tarefa competente.

Vai começar a bulha dos teares,

Das lançadeiras o girar ardente.

Ruge o motor, e as rápidas correias

Imprimem às polés rodar insano;

Urdem-se, tramam-se as ligeiras teias

A transformar-se em delicado pano.

Dentadas rodas na engrenagem soam

Rodam volantes; a caldeira freme;

Em seus vaivéns as lançadeiras voam;

Tudo palpita; o próprio solo treme!

E os homens, as mulheres e as crianças,

Naquela enorme luta sempre intensa,

Têm como escudo a todas as provanças

A crença no trabalho, altiva crença!

E, ao concluir as lidas triunfantes,

Sorriem comovidos, prazenteiros,

Mostrando gotas de suor — diamantes

A engrinaldar a fronte dos obreiros.

Que imponência na festa da oficina!

Ante o concerto estrepitoso e vário,

Chego a invejar a fortunada sina

Do mais humilde e rústico operário!

 

VITÓRIA DE FRINÉ

Acusada do crime de impiedade,

Vai ser, decerto, condenada à morte

A cortesã de mais formoso porte

Que na Grécia imperou, naquela idade!

O povo, no Areópago, em ansiedade,

— Cultor da estatuária — sente a sorte

Do modelo de Vênus; da consorte

De Praxíteles, na celebridade!

Hipérides, num rapto de eloquência,

Rasga-lhe o manto e brada com violência:

“Condenai-a!... Mas vede a forma sua!...”

Contempla-a o tribunal, cheio de pasmo!

E sob aclamações de entusiasmo,

Absolve o tipo da Beleza nua!

 

UMA VISITA MÉDICA

O banqueiro lhe diz: “Mandei chamá-lo

Para ver que moléstia impertinente

Incomoda Leonor.

Ela é muito nervosa: um forte abalo

Prostrou-a; sobreveio febre ardente.

Examine-a, doutor.

Queira entrar para a alcova.”

No aposento,

Entre a espumosa alvura das cortinas

Cerradas por igual,

Repousa um anjo lindo e sonolento

No mimoso frouxel das rendas finas

Do leito virginal.

Havia ali, no recatado ambiente,

Grato aroma de cravos e baunilha,

E um tépido calor.

Afastando as cortinas levemente,

Diz o pai carinhoso: “Minha filha,

Aqui tens o doutor.”

Vermelhas de rubor as faces belas,

Ela os olhos que há pouco dormitavam

Abrindo à viva luz,

Casta e surpresa, confrangeu as telas

Sobre os seios que livres palpitavam

Formosamente nus...

Para ver se a moléstia era do peito,

O médico auscultou-a gravemente

Sobro o dorso gentil,

Conchegando-a com íntimo respeito

E ouvindo o forte coração ardente

A palpitar febril...

Auscultou-a, enlevado, ao ver aquela

Perfeição de mulher, lembrando a Vênus

Que em Milo floresceu,

A branca estátua altivamente bela

— A glória da escultura dos helenos —

Que o Louvre recolheu.

Colado o ouvido à pele cetinosa

Da donzela que a medo estremecia

De cândido pudor,

Ele escutava a música nervosa

Do peito que cantava a melodia

De apaixonado amor.

Ah! quanto desejara que a visita

Fosse longa, bem longa, interminável,

Em êxtases assim!...

Mas, repelindo o sonho em que se agita,

Tranquiliza o bom velho impressionável

E receita por fim.

Manda vir um calmante, e, prazenteiro,

Vê a febre ceder incontinente:

Sorri de orgulho então.

Mas, ao sair da casa do banqueiro,

Percebe, dentro em si, novo doente:

— O próprio coração.

 

SONHO DE SANTOS DUMONT

Como um exemplo do sublime esforço

Do ousado brasileiro,

Águias brancas levantam sobre o dorso

O carro que conduz o mundo inteiro.

E sobre o globo, a estremecer de pasmo,

O busto varonil

De Dumont, no sagrado entusiasmo

De erguer aos céus o nome do Brasil.

Proclama a Fama o infindo itinerário...

O Sol, a Lua, a Estrela Matutina

Dão intenso clarão extraordinário

A esta sagração quase divina.

A eterna Glória de asas distendidas

À fronte de Dumont cinge a coroa

— Prêmio de todas as Nações reunidas

À Ideia rara que no espaço voa.

Como um meteoro na amplidão dos ares,

Resplende a Alegoria,

Sorrindo à ira dos revoltos mares,

Sobranceira ao fragor da ventania.

A Musa, deslumbrada ante a conquista,

Pergunta ao Gênio em pleno azul profundo:

— Que intentas, arrojado fantasista?

“Transpor os polos, contornar o mundo!”

 

OITENTA E NOVE

O povo opresso e a plebe maltrapilha

Cumprem alto dever:

Deitam por terra os muros da Bastilha

— Emblema do despótico poder.

Num momento de febre, de alegria,

De santa embriaguez,

Dietrich incita em chama a fantasia

De Rouget, moço poeta montanhês.

E, pálido, de Lisle, a mente em fogo,

Em ânsia o coração,

Inventa e canta, em pátrio desafogo,

As estrofes da célebre canção.

Allons, enfants de la patrie! dizia

Num brado triunfal,

E a esse canto a França estremecia

Como se ouvisse um hino nacional!

Em breve o canto ardente, imerso em glória,

A fremir de valor,

Não é somente um hino de vitória,

Mas triste De profundis do Terror!

Ao som da forte imprecação leonina,

Que vibra ao coração,

Sobe firme os degraus da guilhotina

O próprio Dietrich, o nobre ancião!

Rouget de Lisle, trêmulo de espanto,

Pelo Jura a fugir,

Pergunta o nome do terrível canto...

A Marselhesa! gritam-lhe a rugir!

A canção, como nênia funerária,

Em breve ressoou

Aos ouvidos da grei revolucionária:

Danton, Robespierre, Vergniaud...

O fato Oitenta e nove, soberano,

Enche o mundo de luz;

Porém como Saturno, o deus insano,

Devora os próprios filhos que produz!

 

AO MAR

Amo-te sempre, ó mar! Amo-te as belas

Transformações grandiosas que apresentas,

Ora ondulante, a balançar as velas,

Ora batido de infernais tormentas!

Quando no espaço as nuvens aguacentas

Despedaçam-se ao sopro das procelas,

E, revoltado, o teu furor ostentas,

Que ciclópica força não revelas!

Em meio de contrários elementos,

Bramir dos raios, sibilar dos ventos,

Convulsionar do pélago insondável,

Eu quisera casar notas troantes

Às tuas sinfonias retumbantes,

Ó imortal Beethoven formidável!

 

CANTANDO

Eles iam cantando à flor dos mares,

Ao som do vento que impelia a vela;

Ágeis gaivotas, recruzando os ares,

Manchavam, brancas, a azulada tela.

Deslizavam quais rubros nenufares

Embalados nas ondas! A donzela,

Vibrando, alegre, límpidos cantares,

Dava aos sorrisos a expressão mais bela

Ambos jovens, em plena puberdade,

Afoutavam-se ao mar com segurança,

Sem temer a longínqua tempestade.

Parecia que o céu, todo bonança,

Lhes dizia: “Cantai, ó mocidade!

São de rosas os mares da esperança!”

 

A JOSÉ DE ANCHIETA

Glória a ti, abnegado missionário,

Que te internaste nos sertões brasíleos,

Só tendo por escudo o breviário

E por armas a cruz!

Atravessando inóspitas paragens,

Florestas virgens que só feras trilham,

Foste incutir nos corações selvagens

Doutrinas de Jesus.

Ao som fluente de teu verbo augusto,

Que comovia endurecidas almas,

Em rudes frases guaranis, sem custo

Fazendo as pregações,

Transformavas as tabas dos guerreiros

Onde constante golfejara o sangue,

Em asilos de paz, hospitaleiros

Sacrários de afeições!

Inspirado na excelsa majestade

Da fértil natureza americana,

Ensinavas a crer na Divindade

Aos filhos de Tupã!

E do Evangelho difundindo a crença,

Fizeste a luz resplandecer nos crânios,

Tal como a rósea claridade intensa

Que ilumina a manhã!

Jamais tua alma se inquinou no vício:

Indiferente às tentações da carne,

Praticavas, no grande sacrifício,

Prodígios de valor.

Igual a Xavier, senão mais forte,

Perduras nos anais do Novo Mundo,

E no volver dos séculos, teu porte

Mostra eterno fulgor!

 

EM TREM DE FERRO

Eu a, em trem de ferro, ver aquela

Cidade de La Plata peregrina;

Sentava-se a meu lado, airosa e bela,

De mantilha espanhola, um argentina.

Com voz musicalmente cristalina,

Travou comigo prática singela:

Mire usted, caballero, ¡esta divina

Mañana!...

Eu contemplava os olhos dela.

E por todo o decurso da viagem

Mostrava-me as belezas da paisagem

Que corriam defronte da janela...

Mire usted ¡cómo es rico este paseo!

¡No hay nada más bello!

“Sí, ¡os creo!”[5]

E acreditava, sim, nos olhos dela.

 

NOSTALGIA

Aprazia-me olhar, calmo e sozinho,

A vastidão intérmina do mar,

Ouvindo em volta o surdo burburinho

Das ondas em cadente suspirar.

Rasgava a proa o líquido caminho;

E bandos de gaivotas a voar,

Qual se tivessem no paquete o ninho,

O seguiam, cortando leve o ar...

Nenhuma terra ao longe!... Que amargura

Ao ver-me na extensíssima planura,

Na solidão profunda a meditar!

Saudade, amor da pátria, venerando,

Tu me falavas n'alma, contemplando

A vastidão intérmina do mar!

 

A VOZ DO TIRADENTES

CENA FANTÁSTICA

O cenário representa a praça do Rio de Janeiro em que foi martirizado o Tiradentes. É noite. O herói surge do chão, revestido da alva de enforcado. Depois de olhar em torno de si, como que a interrogar a sombra:

Que funda solidão! Como esta terra

Jaz num grande silêncio apavorante!

Nenhum som! Nenhum brado vingativo

Contra a cena de sangue! Tudo é morto!

A noite negra que me cobre é luto,

É mortalha estendida num cadáver!

As brasíleas florestas seculares

Não sussurram protestos contra o crime!

Os alterosos, escalvados montes

São gigantes de pedra adormecidos!

Os próprios rios permanecem quedos!

Oh! não!... Que neste solo americano

O santo amor da pátria, amor sublime,

Comigo não morreu! Existe ainda!

Existe em cada arbusto, em cada pedra,

Em cada peito de homem! Não! Não morre

A ideia que eterniza o Tiradentes!

Vejo ainda meus dignos companheiros

Reunidos no lar de Cláudio Costa,

De Cláudio Costa, do poeta ilustre!

Bem reconheço a ti, Tomás Gonzaga,

Trovador de Marília e patriota!

Paula Freire de Andrade, grande amigo,

Desejas dar mais honra à nobre farda,

Brandindo a espada em nome da República?

És tu, Vidal Barbosa — honroso filho

De Esculápio, tu vens da culta Europa

Juntar o teu saber à nossa causa?

Tu, José Maciel, que assimilaste

De Rousseau as doutrinas filosóficos,

Vens também reforçar os conjurados?

Tu, poeta Alvarenga, lira de ouro

Trazes ao grêmio teu sincero auxílio?

Salvador do Amaral, José Resende,

Luís Vaz, não faltastes ao congresso!

Quero abraçar-te, sim, padre Toledo,

E a ti, Rodrigues Costa, ambos ministros

Da crença de Jesus, da augusta crença

Que ao mundo proclamou Fraternidade!

Sede os apóst'los da cruzada santa!

Intercedei a Deus pela vitória

Do plano patriota!

( Pausa )

Irmãos, não vedes,

No cenário da América do Norte,

Os Estados Unidos, como altivos,

Ao impulso de um Washington valente,

Libertam-se do jugo da Inglaterra?

Imitemos, irmãos, tão belo exemplo!

Que o mesmo sol da glória resplandeça

No solo brasileiro, nestas plagas

Opulentas de raras maravilhas!

Na Europa a França agita-se, neste ano

De oitenta e nove, para dar ao mundo

Os Direitos do Homem, derrocando

A Bastilha do férreo despotismo!

Vão ruir os caducos privilégios!

A corte de Luiz Décimo Sexto,

Os ricos Grão-Senhores, a Rainha

Maria Antonieta, os grandes Bispos,

Toda a Nobreza e Clero acostumados

Ao luxo, ao desperdício, usufruindo

Rendas do Estado, fabulosas somas

Arrancadas ao povo em mil impostos,

Toda essa aparatosa fidalguia

Em poucos meses tombará por terra!

Vai proclamar-se a era da Igualdade!

Ouço o rumor confuso que precede

O explodir do vulcão rev’lucionário!

Gira no espaço a ideia redentora,

— A Liberdade a eletrizar os povos!

Formemos, pois, a Federal República!

Tenhamos nós também vastos Estados

Independentes e entre si unidos

Por uma lei geral que enlace a todos

Num elo só, mas poderoso, eterno!

Unidos, marcharemos ao futuro!

Seja a nossa divisa Liberdade

Inda que tarde! Estampe-se à bandeira

Um gênio a espedaçar algemas férreas!

Que a soberba torrente do Amazonas,

Estrepitosa como as nossas almas,

Repercuta na costa lusitana

O estridor festival de nossos hinos!

Porém, quem vem de encontro à grande causa?

Quem faz a aurora transmudar-se em trevas?

Um judas, um traidor, nos vende a todos!

Joaquim Silvério denuncia o fato

E nos entrega à sanha da justiça!

Ah! delator! arrastarás na História

Como um grilheta o ferro da ignomínia!

Eu serei sempre o morto redivivo,

Um brasão imortal de minha pátria,

Exemplo de honra às gerações vindouras!

E tu, exposto ao público desprezo,

Na forca da traição, terás dos tempos

A execração que pune Iscariote!

Que sorte a dos leais inconfidentes!...

Cláudio, para eximir-se dos algozes,

Vai na prisão buscar o suicídio!

Sua memória é declarada infame!

Os mais são degredados, vão para a África,

Para as febres palustres, para a morte!

( Sorrindo )

Eu não sou desterrado! A Monarquia

Quer em mim saciar toda a vingança!

Quanto me alegra a lúgubre sentença!

Fazem-me o chefe da facção, eu pago

Por todos os meus fortes companheiros!

Sim, sou o réu do crime escandaloso!

Não vos temo, Visconde Barbacena!

Despojai-me da farda, não poluída,

E revesti-me da alva de enforcado!

Esta singela, imaculada túnica

Vale mais para mim que um manto régio!

Subo sereno a escada do patíbulo!

Deste cimo alteroso a que me elevam

Entrevejo na fímbria do horizonte

O grandioso clarão de um sol futuro

Que belo surgirá, antes de um século!

Eia, carrasco, tem valor, enforca-me,

Despedaça-me em nome da Rainha!

Minha glória imortal começa de hoje!

Meu sangue, derramado nesta terra,

Servirá de rastilho para um dia

Combalir, arrojar além do Atlântico

O trono, repelido em toda a América!

Deste mesmo lugar de meu suplício,

Por acaso, destino ou Providência,

Surgirá, qual visão esplendorosa,

A veneranda imagem da República!

( Soa o hino nacional. Ouve-se bradar: Liberdade ou morte! )

Porém, que escuto? Que harmonia é esta?

Um hino vibra além! Ouço distintos

Vivas festivos: Liberdade ou morte!...

Do Sul ao Norte as mágicas palavras

Transformam nossa pátria! Não me engano!

( Ilumina-se o cenário. Tiradentes ajoelha-se )

Eu te agradeço, ó Deus, justiça eterna,

Fator dos mundos, protetor dos povos!

O Brasil despertou!... Vingou a ideia,

A ideia que eterniza o Tiradentes!

(Ouvem-se vivas a Pedro I. O herói levanta-se. )

Que nome escuto em meio da vitória?

A multidão aplaude delirante...

Viva Pedro Primeiro?! Sim, saúda

Pedro Primeiro em vez de João Sexto!

Muda apenas de nome ao soberano!

O Rei ficou, para firmar um ramo

Da velha dinastia nesta terra,

Que devera cingir barrete frígio,

Nunca rendida à casa de Bragança!

Ó multidão de cegos miserandos!

Se tens um novo Rei a que te curvas,

Submissa como escrava aos pés de um déspota,

Se conservas os pulsos algemados,

Como podes saudar a Pátria livre?

Que adoração dás tu à Liberdade?

Deploro o teu segundo cativeiro,

Pátria infeliz! Não quero ouvir teu hino!

( Cessa o hino e escurece o cenário )

Desperta, ó povo, do marasmo inglório!

Poetai, escritores, jornalistas,

Inspirados tribunos, levantai-vos!

No livro, no jornal, nas conferências,

Fazei a democrata propaganda!

Consagrai-vos ao grande apostolado,

Como São Paulo, a doutrinar as turbas

Nos dogmas do novíssimo Evangelho!

De vós depende o próximo triunfo!

Tempo, ó gênio veloz, agita as asas,

Roda no espaço o globo, volve os dias,

Faze correr os anos na ampulheta,

Mais rápidos que os raios na tormenta!

Concede à Pátria um novo oitenta e nove!

( Ilumina-se fortemente o cenário. Ouve-se soar ao longe, entre salvas de artilheria, a Marselhesa. )

Que som além ressoa que estremece

As fibras de meu peito? Não me iludo!

Desde o Sul às paragens do Amazonas,

Reboa, no troar da artilheria,

Um hino universal — a Marselhesa!

( Ouvem-se vivas à República Federal. )

Saúdam, sim, a Federal República,

— À minha aspiração, a minha glória!

Como belo fulgura o sol dos livres

Neste céu do Cruzeiro! Que epopeia!

É este o astro que entrevi da forca!

Avante, patriotas, que adotastes

A forma federal sem que uma vida

Sucumbisse na rápida mudança!

Que grande exemplo ofereceis ao mundo!

Desfraldai a legenda do Progresso,

O livre pavilhão às auras livres!

Estremecem de júbilo as ossadas

De meus martirizados precursores!

Posso agora dormir! Estou vingado!

( Desaparece no mesmo ponto donde surgiu. Levanta-se o pano do fundo para deixar ver uma apoteose à República dos Estados Unidos do Brasil. Soa o hino republicano. )

( O pano cai lentamente. )

 

A UMA FREIRA

Rosa do lar, em plena florescência,

Mimosa pelo olor e formosura,

Vais consagrar a flórida existência

À treva sepulcral de uma clausura!

Foges da vida à nobre resistência,

À luta em que noss’alma se depura,

E, casta, vais votar-te à penitência

Na solidão da cela, triste, escura!

Pobre flor, murcharás à luz dos círios,

Cercada de visões e de martírios,

Crendo ainda ofendida a Divindade!

Seguissem todas teu votivo exemplo!

— Em breves anos, pelo amor ao templo.

Iria se extinguindo a humanidade!

 

NAS NÉVOAS, NOS CLARÕES CREPUSCULARES

A Philéas Lebesgue[6]

Nas névoas, nos clarões crepusculares

Da quaternária época do mundo,

Vivia o troglodita, vagabundo,

Sem ter na terra definidos lares.

Olhando a solidão dos céus, dos mares,

Tomava-se de horror ante o iracundo

Convulsionar do pélago profundo,

Ante a procela a retumbar nos ares.

Só, contra a sanha de animais disformes,

De contínuo a travar lutas enormes,

Era um temido herói entre a braveza.

Porém sentiu-se quase um Deus no dia

Em que a Mulher, nascendo, aparecia

Como o primor maior da natureza!

 

A ILHA FLUTUANTE

A vida É como uma ilha flutuante

Que pela correnteza vai aos mares,

Ora de aromas perfumando os ares,

Festejada de música orquestrante,

Ora vagando à sorte dos azares

No revolto cairel do abismo hiante,

Martirizada ao látego espumante

Do mar que canta nênias tumulares.

Arrebatada a ilha, deixa a costa

E o furor do Oceano, altiva, arrosta

E quer vencer a onda que recresce...

Mas em meio da rápida viagem,

Sem ver a orla oposta, na voragem

Anseia, treme, cai, desaparece.

 

A BOCAGE

I

O IMPROVISADOR

Em outeiro, no pátio de convento

De freiras entusiastas de poesia,

Entre vates rivais, ele porfia

E os sobrepuja em rasgos de talento.

Ouvido o mote, glosa-o de momento,

Com caprichosa, artística harmonia,

E a mostrar apolínea valentia,

Causa, em torno de si, deslumbramento.

A glória, no improviso conquistada,

Prende, extasia a turba eletrizada,

Que de ovações exalta o repentista.

Porém, depois do triunfo caloroso,

Ao Botequim das Parras vai, ebrioso,

Manchar em vinho seus lauréis de Artista!

II

O DEMOCRATA

Quando, em França, explodindo a liberdade,

Faz ruir, com fragor, o despotismo,

E estremecem os reis, ao brilhantismo

Daquela rubra, estranha claridade,

Bocage, que detesta o servilismo

Atentatório à humana dignidade,

Quer ver — que sonho! — a ideia da igualdade

Libertar Portugal do obscurantismo.

Porém Manique — o esbirro-mor que aterra —

Na humilhação de uma cadeia o encerra,

Para que o gênio da altivez decaia.

Na prisão, revoltado, o bardo exora:

Liberdade, onde estás? Quem te demora?

Quem faz que o teu influxo em nós não caia?

III

NA ÍNDIA

Manique o força a abandonar Lisboa...

E o desditoso, errante, peregrino,

Semelhante a Camões, parte, em destino

À possessão ultramarina, a Goa.

Aí, a vida insípida se escoa

Entre chatins de cérebro mofino;

E ao tédio sucedendo o desatino,

Vai a Surrate macular-se à toa.

Ante a impudente Manteigui, o poeta

Molha a pena aquilina em tinta abjeta

E canta como um fauno alucinado.

Após o riso exclama soluçante:

Sinto rasgar-me o peito a cada instante

A mágoa de morrer expatriado!

IV

NA VÉSPERA DE MORRER

Quase a deixar a tumultuosa vida,

Contempla no aposento, lacrimosa,

Solto o cabelo, pálida, formosa,

A jovem Márcia, a noiva estremecida.

Pela desgraça e pela dor vencida,

A delicada virgem melindrosa,

Em pranto oscula a fronte luminosa,

Como de um áureo resplendor cingida.

Grato à ventura desta unção extrema,

Improvisa Bocage um terno poema,

Como de uma ave o derradeiro canto.

Fitando-a, exclama o poeta resignado:

Meu mal dorme, repousa, embriagado

Das mil venturas que me dá teu pranto!

V

ANTES DE MORRER

Arrependido de um viver vicioso,

O trovador de Leandro, penitente,

Espera a dor final, serenamente,

Sempre a cantar em metro sonoroso.

Dos amigos ao círculo piedoso

Mostra-se humilde, afervorado crente,

E junto a frei José, a Deus temente,

Revela o meigo coração bondoso.

Acusa os seus prazeres de tiranos,

Confessa que sua alma em si não coube,

E implora aos céus, por fim, livre de enganos:

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube!

VI

GLORIFICAÇÃO

Portugal e Brasil e toda a parte

Em que ressoa a língua portuguesa,

Comemoram-te a fúlgida realeza,

Ó grande, imperecível Mestre de Arte!

Todo o mundo latino vem saudar-te

Pela expressão de clássica pureza

De teus cantos de amor, de gentileza

E de riso que em dardos se reparte.

Quis a inveja tolher-te o voo altivo,

Mas um centênio passas, redivivo,

De olhos videntes no porvir imersos!

Tens em Setúbal monumento alçado;

Porém mais que a Coluna, mais firmado

É o teu padrão — o bronze de teus versos!

21 de dezembro de 19O5.

 

NÃO ERA O ARTISTA UM CEGO DE NASCENÇA

Não era o artista um cego de nascença;

Já tinha visto a terra, os céus e o mar;

Porém a febre da varíola intensa

Na infância lhe extinguira a luz do olhar.

Mas como lenitivo ao sofrimento,

À constante tortura,

Interpretava a magoa no instrumento

Aprendido nos tempos de ventura.

Harmonias vibradas na palheta

Produziam efeito enlevador,

Qual se um gênio chorasse à clarineta

Do jovem professor.

Na treva procurava, em doido anseio,

Uma branca visão que idealizara,

Bela, a sentir no palpitante seio

Paixão ardente e rara.

Aspirava que a imagem peregrina

O amparasse na vida... Vão reclamo!

Uma voz maviosa, feminina,

Lhe disse, em beijos, esta frase: “Eu te amo!”

Quando ouvia o roçar de seda leve

E de mulher o timbre aveludado,

Queria num minuto, embora breve,

Sentir alguém, por ele, apaixonado.

Pedia eterno amor: davam-lhe flores!

Mas palmas festivais e a própria glória

Jamais puderam minorar-lhe as dores

Ou desnublar-lhe a face merencória.

Gozou, por fim, da máxima alegria!

Arfou-lhe o peito, num ideal transporte,

Quando, a sorrir, adormeceu um dia

No seio branco da visão da morte.

 

CADÁVER TRIUNFANTE

Morrera o Campeador. O corpo embalsamado

É posto no corcel, como se vivo fora:

Prendeu-se-lhe na destra a lança vencedora,

Largo escudo lhe cobre o peito inanimado.

— Calções de preto e branco e o manto costumado —

O herói, numa atitude audaz, dominadora,

Rompe, através da noite, a marcha aterradora;

Cavaleiros fiéis o seguem lado a lado.

A inimiga mourama, atônita de susto,

Incapaz de lutar, dispersa-se, fugando:

Búcar, o próprio Rei, tremendo, escapa a custo.

O castelhano povo, ante a vitória absorto,

Na passagem aclama o Cid venerando,

O grande vencedor, inda depois de morto!

 

NOVO CAVALEIRO

Para ter ordem de cavalaria,

Ele despia emblema de pureza,

— A veste toda branca — e, com presteza,

De túnica escarlate se cobria.

Que pela Igreja o sangue verteria,

O seu vestuário, assim, dava a certeza;

Perante o altar e em face da nobreza,

O sacerdote a espada lhe benzia.

Um cavaleiro armava-o; o juramento

Prestava-o sobre a espada do senhor;

Ofertavam-lhe as damas, no momento,

Cota, braçais, couraça, a lança, a espada...

As esporas, porém, de áureo fulgor,

Eram prendas de dona apaixonada.

 

SOBRE A PRAIA DE SAGRES, NA LENDÁRIA

Sobre a praia de Sagres, na lendária

Praia donde partiram caravelas,

Impelidas de febre extraordinária

Ao Tenebroso Mar, de atras procelas;

Onde o príncipe Henrique, o sábio Infante,

Sentia à fronte borbulhar a Ideia,

E em face aos mapas, num pensar gigante,

Sonhava para a pátria uma epopeia;

Aí, onde o passado se condensa

Nas conquistas, frementes de emoções,

Onde o embate das vagas lembra a intensa

Orquestração dos versos de Camões;

Na plaga em que arrojados navegantes

— Colombos, Dias, Gamas imortais —

Souberam planejar feitos brilhantes

Cumulados de aplausos perenais:

Branca Visão, de albente claridade,

Divaga sobre a célebre eminência:

No coração — anseios de saudade,

Nos lábios — -um sorriso de clemência.

Quando o sol, a surgir gloriosamente,

Contorna de ouro o vulto soberano,

A sombra, projetada no ocidente,

Sonha vir ao Brasil, transpondo o Oceano.

Porém o mar, na curva despiedosa,

Sufoca-lhe o desejo, e brame e espuma.

Sobe o sol; volta a sombra, pesarosa,

A recolher-se ao pedestal de bruma.

A Visão não realiza a ideal ventura

De contemplar, de longe, a quem tanto ama,

Nem pode, em sombra, vir, pela planura,

Vagar nos florestais do Pindorama...

Porém o Tempo vaticina: “Espera!

Do exílio há de a Justiça arrebatar-te

E em teu país, de eterna primavera,

Num funerário monumento de Arte,

Entre sinceras expansões de glória

De um povo que ao teu nome se reanima

Recolhera teus restos, em memória

Do que foste e do amor que te sublima.

Filósofo encaraste o banimento

Sem protesto, sem queixas doloridas;

Só na tua viuvez, o sofrimento

Banhou-te a face em lágrimas sentidas.

Um dia, em frente à nacional bandeira,

Ao som dos hinos fortes da República,

Como um padrão de glória brasileira

A História te erguerá na praça pública!”

Finda-se a voz. Radiante o sol no oriente

Faz tanto a sombra enorme se alongar,

Que ela pensa envolver, saudosa mente,

O Gigante que dorme à beira-mar.

 

OS COMBOIOS

O dever é a obrigação rigorosa de fazermos o que convém à sociedade.

Raynal

A Augusto de Lima

De um lado e de outro escuta-se um rumor:

São comboios que vêm precipitar-se,

Num encontro fatal despedaçar-se,

À beira de um abismo aterrador.

Alucinado o guarda, de terror,

À alavanca da agulha vai lançar-se

Todo ofegante, e evita entrechocar-se

Os trens que correm... rangem com fragor...

Quando ele, no desvio, abre a passagem,

Uma criança avista sobre o trilho,

E a dor quase o fulmina ante essa imagem!

Firme, tendo no olhar estranho brilho,

Salva os trens! Mas, em prêmio da coragem,

Vê morrer esmagado o próprio filho!

 

VEJO PASSAR NAS ONDAS REVOLTADAS

Vejo passar nas ondas revoltadas

Bouquet de róseas flores,

Condenado aos furores

Do mar, arfante a ríspidas rajadas.

Flutua, como um sonho tormentoso

Que nos confrange o coração aflito:

Parece desprender no pego iroso

Um ai de angústia, um sufocado grito...

Quem assim te juntou, haste por haste,

Como um penhor de sentimentalismo?

Bouquet tombado em proceloso abismo,

Em que mãos femininas te formaste?

Por que toste lançado sem piedade

Sobre o revolto Oceano,

A servir de joguete à tempestade,

Ao rebramir insano?

Que existência misérrima e precária,

Prenda infeliz! Que lutas dolorosas!

Antes tu fosses desfolhar as rosas

Junto a cruz funerária.

Recordas a mulher a quem no mundo

Votamos os mais íntimos amores:

Sorrindo, ela arremessa ao mar profundo

Nosso bouquet de flores...

Morrem as flores que a procela trunca

E o vento arroja pelo Oceano afora;

Porém no coração, ferido embora,

Vive a saudade, que não morre, nunca!

 

QUISERA, SOBRE UM MÁRMOR DE CARRARA

A Alberto de Oliveira

Quisera, sobre um mármor de Carrara,

Eternizar-te a forma peregrina,

Toda a lisa epiderme, branca e fina,

Todo o corpo, a mostrar perfeição rara.

Com que enlevos eu não esculturara

A estatura, a expressão quase divina,

E o sorriso da boca pequenina

Que só heleno artista idealizara!

Completa a estátua, esbelta e vencedora,

Vencedora do tempo, eu sofreria

Dores atrozes que a razão obumbram,

Por ver faltar à Deusa encantadora

O que eu não posso dar à pedra fria:

A luz, com que teus olhos me deslumbram!

 

SENTI-ME, DE REPENTE, ARREBATADO

Senti-me, de repente, arrebatado

De verdejante e flórida eminência

E sobro negro abismo arremessado:

Tanto o golpe feriu minha existência,

Ao perder-vos, ó mãe! visão sagrada!

Meu amor! minha humana providência!

Após a prostração amargurada,

Minh’alma, em ascensão prodigiosa,

Foi ao Sul, a vos ver inanimada.

Ante vós ajoelhou-se, e, lacrimosa,

Vos osculou a mão que ternamente

Me alentava na bênção carinhosa.

Aí, a reprimir o pranto ardente,

Foi saudosa render-vos a homenagem

Que vos devia vosso filho ausente.

Envolvida na fúnebre roupagem,

Sob um véu para sempre adormecida,

Parecia de santa vossa imagem.

A morte, ao vos roçar, compadecida,

Não deformou "o angélico semblante

De quem sempre formosa foi na vida.

Compungiu-se, talvez, naquele instante,

Ao ver tanta nobreza em vosso porte

E tão risonha graça cativante.

Minh’alma que por vós foi sempre forte,

Seguiu convosco ao cimo da colina

Em que levanta seus troféus a morte.

E viu... i ó dor cruel! ó dor ferina!

O féretro descer à sepultura,

Como se esconde joia peregrina.

Supôs ver, entre anseios de tortura,

Surgir de vossa campa, em vivas cores,

O meu passado, imerso em desventura.

Relembrei os balsâmicos olores

Com que tonificastes a conduta

De quem no coração só teve horrores...

Em desfazer tropeços resoluta,

Havia em vós o tipo da romana

Que aparelhava os filhos para a luta.

Abroquelar vontade soberana

Contra o revés, vencer o desalento,

Eis a missão que vos fazia ufana.

Seguir vosso elevado incitamento,

Cumprir indicação propiciatória,

Era como observar um juramento.

Desprendida da vida transitória,

Subiu a vossa mente, etérea e linda,

À vida universal, de eterna glória!

É ela quem do Além me exalta ainda!

É ela quem me inspira esta elegia,

Santificada de saudade infinda!

Minha mãe! minha estrela! minha guia!

Em tudo que engrandece eu vos contemplo

E a vossa voz escuto na harmonia

Da natureza transformada em templo!

 

A VICTOR HUGO

Como um colosso ródio em pleno Oceano,

Sobrepujante à fúria das procelas,

A proteger as erradias velas,

Mostrando-lhes a esteira a prosseguir,

Assim o máximo Poeta, soberano,

— Foco de luz, de liberdade e crenças —

Em meio à sanha das paixões intensas,

Indicava aos Artistas o porvir.

Entre as radiantes claridades puras

Que fulgiam das letras no congresso,

O grande arauto do ideal progresso,

Em sóis mudava os pensamentos seus!

— Águia sempre, librada nas alturas,

Com o poderoso, enérgico remígio,

Subiu das honras todas ao fastígio:

Foi, perante seu séc’lo, um semideus!

Quando, curvado à lei da natureza,

No fim do vitorioso itinerário,

Ele caiu no leito funerário,

O mundo estremeceu, ouvindo o som...

Enlutaram-se os povos de tristeza!

Tombara o Poeta do real proscênio!

Mas — esplendente apoteose ao gênio! —

Por ele, um templo alçou-se num Panteom!

 

MORTE GLORIOSA

A Coelho Neto

I

Na rocha verdejante,

Ensombrada de fetos e arvoredo,

A ouvir do mar constante burburinho,

O chalet do vetusto comandante

Faz recordar um ninho

De albatroz sobre a crista de um rochedo.

No mar nascera aquele velho austero

E aí desenvolvera a inteligência

Nos estudos da náutica ciência:

Ao mar votava grande amor sincero.

Sobrepujando o Oceano furibundo,

Como se acaso igual gigante fora,

Muitas vezes fizera a volta ao mundo

Na alterosa galera Lutadora.

Mas o navio um dia naufragara

Sob o fragor de aspérrimo ciclone...

Só quem tenha perdido afeição cara

— Mae devotada ou filho estremecido —

E a justo desespero se abandone,

Pode julgar a dor do nauta, quando,

Pela força dos fatos compelido,

Alucinado e trêmulo, chorando,

Disse adeus à galera, à companheira

De toda a sua vida aventureira.

Parecia que parte de sua alma

Ficava ali, gemendo, sem conforto,

Naquele barco espedaçado e morto.

Nostálgico e doente,

Para em final de vida gozar calma,

Isolou-se do mundo inteiramente.

Com a única filha que tivera

— Formoso mimo de inocência e graça —

— Orquídea que em ternura ao tronco abraça —

Foi curtir as saudades da galera,

A todos ocultando o seu segredo,

Naquele asilo à beira-mar — a fronte

A fitar o horizonte,

Como um branco albatroz sobre um rochedo.

II

Ao som cadente do quebrar das vagas

— Som cheio de tristeza, de poesia,

De funda soledade,

Que reconcentra a nossa fantasia

Na ideia da infinita imensidade —

Tinha prazer em relatar à filha

Alegres excursões a longes plagas...

Ir ver um continente; após — uma ilha;

E mais outras, mais outros continentes,

Belas cidades que o progresso expande,

Crenças, costumes, línguas diferentes...

Ver quanto, é vário, quanto o mundo é grande

Para quem lhe perscruta os acidentes!....

Pensativo, quedava-se à janela,

A contemplar num sonho iluminado

As naves a passar na verde tela

Do mar arfante... Que prazer magoado!

III

No declinar de um dia,

Alheio ao mal de morte que o minava,

Ficou-se triste, a contemplar a brava

Luta das ondas contra a penedia.

“Vinde ao leito, meu pai”, pede a donzela

— A ingênua providência

Que toda se desvela

Em prolongar-lhe os dias de existência —

“Recolhei-vos ao leito!

Não suporteis a insana ventania

E a chuva intensa e fria

Que vos alaga o peito!”

Ele, porém, não pôde ouvi-la; atento,

Olhava uma fragata que impelida

Pelo furioso vento,

Vinha sobre os parcéis perder a vida.

A prever um naufrágio apavorante,

Que transfiguração teve esse velho!

Esquece a dor que o coração lhe oprime:

Ergue-se firme, trágico, sublime,

— Figura legendária do Evangelho —

E toma o porta-voz no grave instante.

Grita, ordena, com voz dominadora,

Como se fora o próprio comandante,

Ou fosse aquele barco a Lutadora!

A maruja que atônita se esforça,

Executa a manobra; o navio orça,

Deixa os parcéis e afasta-se à bolina.

IV

“Salvei-a! oh! Deus! Salvei-a!”

Exclama o doente com febril transporte;

Mas uma dor aguda, repentina,

Do grande coração rebenta a veia.

Tivera, enfim! a sorte

De morrer em seu posto! A fronte inclina

Sobre o colo da filha comovida,

E a sorrir, venturoso, exala a vida.

 

ANTE A LUZ

Sentindo na alma o sereno brilho

Da matutina de eterno alvor,

Beijo nas faces e abraço um filho

No qual meu sangue revive em flor.

Não sei quando este mimo inocente

Mais me conforta, mais me seduz:

Se quando as palmas bate contente,

Se quando, absorto, contempla a luz.

Minh’alma, ciosa, debalde o chama

Ao vê-lo entregue à fascinação;

Ele os bracinhos estende à chama

Como atraído pelo clarão.

E balbucia! quer, insofrido,

— Prometeuzinho — se apoderar

Daquele fogo desconhecido

Que lhe não deixo sentir, tocar.

A rir, afasto-o do devaneio

Porque lhe pode produzir mal;

Porém aplaudo tão belo anseio:

—Todo embeber-se por um ideal!

A luz te faça, meu filho, um forte

Em toda a vida que vais fruir!

A luz te seja constante norte!

A luz resplenda no teu porvir!

 

A FLOR DE MANACÁ

I

Abril. Quanto esplendor na altura iluminada!

Pela arenosa praia, em forma de enseada,

Riem, folgam ao sol os nus tupiniquins:

Uns reinam nas igaras,

Outros fazem voar dos arcos as taquaras,

Ou sopram nos borés — as flautas dos festins.

De enfeite extravagante adornam-se contentes

Os ágeis dançadores:

Na fronte, o kanitar de penas multicores;

Ao pescoço, ramais de conquistados dentes;

O plumoso enduape em volta da cintura;

Nos pulsos, nos artelhos,

Os vistosos anéis de penas amarelas.

Com tintas vegetais ornando as formas belas,

Ou fazem-se vermelhos

Ou pintam-se em xadrez de cor azul-escura.

Nos lábios, nas orelhas, embutidos,

Botoques ou metaras

De ossos agudos, dentes retorcidos,

Ou madeira espelhante ou pedras raras.

Entregues ao prazer aquelas almas,

Sobre a macia areia,

A saltar, batem palmas,

E dão-se as mãos, formando uma cadeia.

II

A moça mais formosa

De toda a tribo que folgando está,

Por distinção honrosa,

É conhecida Flor de Manacá.

Debalde procurais entre as donzelas

Mais sedutor olhar, linhas mais belas:

Mais correção não há.

A todas ela vence em gentileza,

Como um raro primor da natureza,

A Flor de Manacá.

Contorna-lhe a cintura delicada

Araçoiá de plumas, variegada,

Que mais prestigio a seus encantos dá.

Como a Paraguaçu, como a Iracema,

Devera ser cantada num poema

A Flor de Manacá.

Quanta alegria a virgem manifesta,

Saltitante e faceira,

A dominar a festa!

Brinca na espadua a solta cabeleira;

Búzios de cores brilham no colar;

Nos contornados braços e nos joelhos,

Ligas de fios largos e vermelhos

A flórea virgindade a revelar.

Tez rosada e morena!

Seios de estátua! rubra a boca e breve!

Linguagem que semelha a cantilena

Da patativa, harmoniosa e leve!

Grego escultor, se a vira

No sagrado esplendor da forma nua,

Sem poder modelar a imagem sua,

Pasmo de assombros, o cinzel partira!

Dentre as esbeltas filhas das florestas

Nenhuma tinha a flecha mais certeira,

Nem maneiras mais lestas

Na caça ou pesca ou célere carreira.

Nos três lustros e meio de existência,

Nunca em laços de amor foi ela presa:

Descuidosa, passava a adolescência

Como flor, a adornar a natureza.

Vinte e quatro de Abril. O pôr do sol

Incendeia as florestas no arrebol.

Reverberando a rósea luz celeste,

De novo encanto a plaga se reveste.

Lançando, acaso, o olhar

Pela extensão do mar,

Os selvagens avistam, demandando

A terra pátria, um bando

De aves enormes de asas distendidas...

Cessam danças, os cantos emudecem.

Interrogam-se as turbas surpreendidas:

“Que embarcações estranhas

São essas que aparecem?

Que vêm fazer igaraçus tamanhas?

Por Tupã! Quem são estes navegantes

Que assim vencem as ondas atrevidas?

São homens como nós? Serão gigantes?”

Dos peitos rompe exclamação de pasmo!

III

Na seguinte manhã, vivo entusiasmo

Reúne à praia curiosa gente.

Da frota vem Ribeiro, moço ousado,

A perlustrar a terra firme ou ilha.

Desembarca e contempla, deslumbrado,

A Flor que a seu encontro vai, ridente.

Palpita alvoroçado

O coração do nauta adolescente

Em face da selvagem maravilha.

Como a nuvem tingida pela aurora,

Ao sentir do mancebo o olhar ardente,

A Flor de Manacá detém-se e cora.

Passada a comoção, serve de guia

Ao jovem forasteiro.

Leva-o consigo à taba, à moradia

Do povo hospitaleiro,

Raça tupi, de nobres sentimentos.

Por acenos explica

Tudo quanto pertence à tribo errante:

De penas coleção formosa e rica;

Os maracás, sagrados instrumentos;

Dá-lhe a provar cauim, vinho ebriante;

Com gestos e com vozes agradáveis

O faz entrar nas ocas, nas palhoças,

Indicando-lhe as redes confortáveis

E com ele passeia pelas roças.

Durante aquele esplendoroso dia,

O dia da chegada, áureo, risonho,

Ribeiro teve-a sempre em companhia

Como enlevado na espiral de um sonho!

Ao voltar ao batei, a Flor, sorrindo,

Como um penhor precioso

Da recente amizade,

Oferta-lhe um colar de conchas, lindo

E o cinge, com galante urbanidade,

Ao pescoço do jovem jubiloso.

IV

No festivo domingo de Pascoela,

A selvagem donzela

Que a cismar no estrangeiro devaneia,

Sentindo o seio arfante de saudade,

Da praia em que passeia

Vê a missa primeira, pelo frade

Henrique de Coimbra oficiada

Na Coroa Vermelha, desnudada,

E agora de homens cheia.

À sombra misteriosa de um dossel

— Sedoso esparavel —

Por entre as régias pompas da manhã,

Toda inundada em luz

Fulge a festa cristã,

Sublime de grandeza

Perante a majestosa natureza

Da terra Vera Cruz.

O Capitão desfralda sobranceira,

Como insígnia real,

A Cruz de Cristo, a esplêndida bandeira

Que lhe ofertara o Rei de Portugal.

A moça observa, atônita e surpresa,

Aquelas nunca vistas louçanias!

Os trajes de veludo! a gentileza

Dos nobres oficiais!

A luz relampejante dos metades!

O trêmulo brilhar das pedrarias!

Vê Ribeiro ajoelhar-se, levantando

Os braços para o céu; a Flor ajoelha,

Também erguendo os braços nus; e quando

O jovem beija o solo,

Ela, curvando gentilmente o colo,

Com íntimo prazer naquele instante,

Roça na areia a boca semelhante

À bela flor vermelha.

V

Maio, dia primeiro,

Manda Cabral que ali,

Quase à margem do arroio Mutari,

Seja plantada a Cruz, sacro madeiro,

A que devem solenes homenagens.

Marinheiros e frades e selvagens

Em procissão conduzem, à porfia,

A Cruz que sobre o topo é brasonada

Pelas armas da lusa monarquia,

Como um padrão de glória ambicionada.

E outra missa, maior, esplendorosa,

Celebra-se imponente,

Junto à primeira Cruz, a mais grandiosa

Que se elevou nas terras do Ocidente.

Todo o selvagem povo, estupefato

Ante as grandezas que ali vê patentes,

Sem poder explicar tanto aparato,

Imita em gestos o fervor dos crentes.

Inspirado, eloquente. Frei Henrique

Prega junto do altar,

Para que a expedição sabendo fique

O meio de aos pagãos iluminar:

“Brandura, amor, afago,

São como o sol na imensa escuridão

Em que e abisma o instinto malfazejo!

Sempre é fecundo o permutar de um beijo!”

E a vido santa de Felipe e de Tiago

Exalta no sermão.

VI

Maio, dia segundo.

Gaspar de Lemos volta a Portugal

A dar grata notícia, não de um mundo,

Mas de uma ilha na parte ocidental

Do tenebroso Atlântico profundo.

Aproxima-se a hora da viagem...

A Flor, prevendo amargurada ausência,

Pede a Ribeiro fique na paragem

Onde amor os ligara na existência.

Em vão! Faz-se mister a despedida

Mutuamente sentida.

Ah!... pela vez primeira aljôfares divinos

Tombam, cheios de luz, dos olhos cristalinos.

O dia é de bonança.

Ao soprar do terra! será partida

A frota, a demandar o cabo enorme

Que transformou o Adamastor disforme!

O cabo que vai dar boa esperança!

A Flor, junto da Cruz na praia erguida,

Sofre mágoa cruel,

Quando vê que um batel

Traz Afonso Ribeiro

E mais outro inditoso companheiro

Que em Vera-Cruz serão abandonados

Para a pena cumprir de degredados.

Após um breve instante,

Na capitânia o célebre Almirante

Ordena às caravelas

O desfraldar das velas.

A frota faz-se ao largo.

Ribeiro então sentiu correr o pranto amargo

Ao ver os seus irmãos a caminho do Oriente!

Apoiado na Cruz, a soluçar gemente,

Seguia com o olhar as naus na imensidade!

Que dor e que saudade!

A pátria lhe fugia! A pátria, o santo lar,

Expulsava-o sem dó! fugia sobre o mar!

Sufocando a emoção, o mísero exilado

Exclama resignado:

“Partis! Ides à glória! Eu fico no desterro,

Condenado a morrer em triste solidão!

É castigo demais ao meu desvio ou erro!

Quando ao crime ultrapassa, é crime a punição.

O livro da Verdade, o livro grandioso,

— A História — há de dizer que eu, Afonso Ribeiro,

Em abril, vinte e cinco, ano mil e quinhentos,

Tive a glória de ser o português primeiro

Que impávido, animoso,

Pisou em Vera Cruz, a terra dos portentos,

Que à noite se ilumina às luzes de um Cruzeiro!

Vós ides atingir ao pórtico sublime

Da Fama que concede esplêndido troféu,

Enquanto vou pagar imaginário crime

Ante o deserto mar. ante o deserto céu!”

Depois, lançando em torno o olhar alucinado,

Contempla a Flor e a Cruz.

“Ó sinal redentor! Sou menos desgraçado,

Abraçando-me a ti, ó crença triunfante!

Ó crença de Jesus!

Como a estrela que o norte aponta ao navegante

Nas trevas de minh’alma infiltra nova luz!

Ampara-me a existência em meio da rudeza!

E tu, ó virgem pura, ó flor, a mais formosa

De quantas produziu aqui a natureza,

Que tens no casto olhar irradiação gloriosa,

Protege-me entre os teus!

Em prêmio, eu te darei a crença no meu Deus!”

Os nautas na amplidão, já perto do horizonte,

Puderam ver ainda,

No fundo verde-azul de uma paisagem linda,

O proscrito, de pé,

Erguida paia o céu a iluminada fronte,

Entre o emblema do Amor e o símbolo da Fé!

 

NO TÚMULO DE UM MENINO

JOÃO PAULO[7]

A Afonso Celso

“Exulta, filho meu! Já tens formoso estema

Sobre a fronte infantil! Já não serás vulgar!

A Glória te osculou; és o herói de um poema:

Mereceste um soneto à Péthion de Villar!”

Vós cantáveis assim, na ventura suprema

De um glorioso porvir ao filhinho apontar!

Mas a Morte, sem dó, com despiedade extrema,

O mimo encantador vos foi arrebatar!

Eu tive-o junto a mim, numa tarde esplendente,

E, saudoso, recordo as graças da criança

Que entre rosas viveu cinco anos tão somente!

Religião de Jesus! Conforta o poeta aflito!

Vibra em seu coração os carmes da Esperança,

— Esperança de o ver a sorrir no infinito!

 

A HEBREIA PECADORA

A Luiz Murat

“Esta mulher que vedes adultera

E a ser apedrejada a lei condena.

Deve morrer, Que nos dizeis da pena?”

Mas Jesus, inclinando a fronte austera,

Escrevia na areia. Vendo que era

Baldado o interrogar, o povo ordena

Que a julgue. Ele, então, diz com voz serena

Em que se lia uma emoção sincera:

“Quem dentre vós se encontre sem pecado

Seja o primeiro que a apedreje!” O bando

De fariseus retira-se apressado.

Jesus diz à mulher naquele instante:

“Vês? Ninguém te condena.” E meigo e brando

“Vai. E nunca mais peques de ora em diante.”

 

FAETONTE

A J. M. Goulart de Andrade

Ígneo plaustro, a quadriga, em fúria tresloucada,

Espumante de raiva, em corcovos acesa,

No infrene galopar abala a natureza,

E o Sol, ou quase abrasa a Terra apavorada,

Ou, perdido dos céus na infinda profundeza,

Deixa-a envolta na treva, a morrer congelada,

Crendo, na confusão, já convertida ao nada;

Mas Faetonte, o cocheiro, orgulhoso da empresa,

Por entre os turbilhões de fogo, imerso em glória,

Levado aos repelões, em êxtase, risonho,

Brada: Avante! ao tropel, na insana trajetória!

Ser quase o Sol! ser quase um Deus!... Rara ventura!

Eis o sonho triunfal! o ambicionado sonho!

Que lhe importa que Zeus o fulmine da altura?

 

OS CICLOPES

A Raimundo Correia

Nas cavernas restruge um fragor do batalha:

O ferro, ao se amolgar, range, ringe, rebrama,

E expele com furor, em fagulhas, a chama

Albi-rósea que salta e morrendo se espalha.

Mas a forja moderna em raios não trabalha;

Para a humana ruína o ferro não se inflama:

Os ciclopes-heróis, envoltos noutra flama,

Sentem que nova luz irrompe da fornalha.

Esquecidos do Zeus de vinganças tremendas,

Gigantescos, febris, os ruivos operários

Mostram às multidões mais dilatadas sendas,

Em honra das Nações pela Força oprimidas,

Arrojam no cadinho os canhões sanguinários

E os convertem após em máquinas brunidas.

 

PARADIS TERRESTRE[8]

A Damasceno Vieira

LE POETE

vous en souvenez-vous de ce soir où vos âmes

Retrouvèrent la route et la porte d’Eden ?

Vous erriez, pleins de rêve, sur détours du jardin,

Et les fleurs s’inclinaient vers vous comme des femmes.

Celui qui veille au seuil du Paradis perdu,

Dépouillant son glaive ceint de flammes,

Précédait lentement votre marche profane

Et vous montrait le lieu de l’Arbre défendu

Qui toujours refleurit et jamais ne se fane :

Vous alliez répétant tout bas les mêmes mots

Et, joignant par instants vos lèvres,

Pour laisser vos coeurs jumeaux

Se parler de plus près, sous les regards plus ensèvres,

L'Ange prit une harpe accrochée aux rameaux

Et se mit à chanter l’hymne de l’Espérance;

L’Arbre antique et fatal vous couvrait de ses branches,

Et la divine Voix,

Par coups d’ailes légères, passait dans le silence,

Eveillant ciel et terre à la fois.

Les astres clignotaient comme des yeux de femme ;

La Voix entra dans vous : c’était une âme!

Distraite, votre main à l’Arbre de malheur

Cueillit un bourgeon frêle,

D'où devait naître une fleur !

L’Ange alors s’arrêta pour vous chercher querelle ;

Mais vous teniez la tige arrachée en passant,

Et la fîtes fleurir au sein de votre sang !

ADAM ET EVE

Est-ce donc un péché que de croire à la Vie ?

Et de laisser pleuvoir dans son âme ravie

Les baisers parfumés, les désirs musicaux,

À l’heure où de l’Amour les rires prophétiques

Font sonner les échos

Et germer les roses mystiques?

JEHOVAH

De vos bonheurs d‘un jour je ne suis plus jaloux :

Vivez, souffrez : je vous absous !

Philéas Lebesgue

La Neuville — Vault, par Savignies (Oise)

 

PARAÍSO TERRESTRE

(Tradução)

O POETA

Acaso vos lembrais daquela noite linda

Em que o caminho e a porta do Éden reencontraste?

Nas curvas do jardim — cheios de sonho ainda —

Erráveis. E ante vós dobravam-se nas hastes

As flores, a imitar mulheres reverentes.

Aquele que o limiar do Paraíso guarda,

Abandonando o gládio em flamas esplendentes,

Vos precedia a marcha, em marcha leve e tarda,

E a Árvore vos mostrou, dos frutos proibidos,

Que, sempre a reflorir, não se fana jamais.

Vós repetíeis baixo os mesmos sons queridos.

Juntáveis, muita vez, os lábios passionais

Para que os corações, gêmeos, pudessem, certo,

Falar-se de mais perto,

Entre olhares de luz e bem-aventurança...

Tomou o Anjo uma harpa aos ramos, na passagem,

E se pôs a cantar o hino da Esperança:

A Árvore fatal vos cobria com a ramagem,

E a divina Voz

Passava no silêncio, a bater asas, veloz,

A despertar o céu e a terra juntamente.

Os astros, a luzir nos espaços infindos,

Num palpitar fremente,

Quais olhos de mulher pestanejavam lindos.

À Voz vos penetrou, naquela noite calma:

Essa Voz era uma alma!

À Árvore do Mal a vossa inconsciente mão

Colheu débil botão

Donde devera, em breve, irromper uma flor!

Ao ouvir o rumor,

O Anjo então parou, a inquirir, agitado;

Mas viu que vós aí já tínheis arrancado,

Ao passar, a sorrir, um ramo vigoroso,

E o fazíeis florir em vosso sangue estuoso!

ADÃO E EVA

É, pois, pecado algum o acreditar na Vida?

Deixar cair, chover em noss’alma embebida

Desejos musicais e beijos odorantes,

Na hora em que do Amor os risos augurantes

Fazem ecos vibrar

E, pronto, germinar

As formosas

Místicas rosas?

JEOVÁ

De um dia de prazer não sou cioso inclemente:

Vivei, sofrei; eu vos absolvo plenamente.

 

SU LE ORME Dl DANTE

Ao Conde Angelo de Gubernatis, professor de literatura italiana na Universidade de Roma.

 

I

E come il pan per fame si manduca,

Così il sovran li denti all’altro pose

Là ‘ve il cervel s’aggiunge colla nuca.

Inferno, canto XXXII.[9]

“Quem és tu, ó do Inferno condenado,

Que eternamente cumpres o destino

De remorder, com tanto desatino,

O cérebro de um padre torturado?

Por que te mostras, mais do que assassino,

Um quase irracional, um cão danado?”

Erguendo o rosto iroso, ensanguentado,

Responde: “Quem sou eu? — Conde Ugolino.

Este, a quem o remorso não consome,

Quis que eu e quatro jovens descendentes

Numa torre morrêssemos de fome!”

E, recordando o horrendo vitupério,

Como um louco furioso crava os dentes

No espedaçado crânio de Rogério.

 

II

Quando leggemmo, il disiato riso

Esser baciato da cotanto amante,

Questi, che mai da me non fia diviso,

La bocca mi baciò tutto tremante.

Inferno, canto V.

Como um casal de pombos, no ar, aos beijos,

No turbilhão de um círculo do Inferno,

O par gentil, fremente de desejos,

Voa e revoa em padecer eterno.

Unidos, enlaçados — qual mais terno —

Nos torturantes, rápidos adejos,

Soltam, gemendo, tristes rumorejos;

Mas o suplício não comove o Eterno.

“Qual vosso crime?” perguntou-lhes Dante.

— Nós líamos o conto apaixonado

De Lanceloto, e meu cunhado, ardente,

Viu que a Rainha um beijo provocante

No cavaleiro dera, e, alucinado,

A boca me beijou todo tremente.

 

LENDO “FRANCESCA DA RIMINI”

Tragédia de Gabriele d’Annunzio

A Gabriele d’Annunzio

 

I

Ato II, cena III

E il sorso

che voi mi deste...

col vostro falso cuore

pieno de tradimento e di follia,

fu l’ultimo, fu l’ultimo che telsemi

la sete...

Com o falso coração todo em loucura,

Fazendo-me beber um sorvo ardente,

Extinguistes a sede incandescente

Que eu sentia por vós, quase perjura.

Por que, cruel, não tive eu a ventura

De ser por vós lançada ao mar fremente,

E à praia de Ravena, docemente,

Me depusestes na arenosa alvura?

“Como devo morrer?” O moço aflito

Pergunta.

— Em vosso ardor eu vejo agravo,

Crime esse amor de insólito exagero!

Como pena ao desejo, que é delito,

Deveríeis morrer, mas como escravo,

A remar na galé do Desespero.

 

II

Ato III, cena V

PAOLO

quai libro è questo?

FRANCESCA

di Lancillotto del lago...

Guardate quello stormo

di rondini, che arriva e segua l’ombra

sul bianco mare!

— Que livro é este?

— A história do famoso

Lanceloto do Lago.

— Lede-o, entanto.

— Olhai! Cobre-se o mar de um alvo manto!

— Lede-o, Francesca...

— Um bando fantasioso

De andorinhas sombreia o mar calmoso!

— Lede-o...

— Como produz um suave encanto

A rubra vela que se alonga tanto,

Como cingida em fogo esplendoroso!...

Lê Paulo: “Vendo-o tímido, temente,

Ela prende-lhe o mento, e, alucinada,

Beija-o na boca prolongadamente.”

Aí, tendo a razão toda perdida,

O moço imprime um beijo na cunhada,

Que diz: “Não, Paulo! e cai desfalecida.

 

III

Ato V, cena II

FRANCESCA

Era dolce

la mia sorella...

Ah, s’io l'avessi meco, se stanotte

ella facesse il suo piccolo letto

accanto al mio![10]

Ah! se esta noite minha irmã bondosa

Fizesse o leito seu junto a meu leito,

Eu não sentira torturar-me o peito,

Esta imensa tristeza dolorosa!

Ah! Se eu pudesse vê-la jubilosa,

Correr descalça, e, junto ao parapeito

Da janela, chamar me, a ver o efeito

Du estrela d’alva a resplender graciosa!...

BIANCOFIORE

Vós chorais!... Quero, em vossa companhia,

Dormir ao pé de vosso leito!

FRANCESCA

Não!

Há de passar-me esta melancolia.

Vai dormir o teu sono descuidado.

BIANCOFIORE

Irei... Deus vos conceda proteção!

FRANCESCA (dirigindo-se para a alcova)

Agora, ao meu destino infortunado!

 

IV

Ato V, cena IV

FRANCESCA

Baciamo gli occhi, baciami le tempie

e le guance e la gola…

così… così... Prendimi l’anima e riversala.[11]

Fechemos este livro apaixonado

E nos lancemos ambos à ventura

Deste infinito amor, desta loucura

Que me extasia, ó Paulo! ó bem amado!

Beija-me os olhos! beija com ternura

O colo, a face, a boca, e, arrebatado,

Como num voo ao céu todo estrelado,

— Lábios unidos — cinge-me a cintura!”

E, a palpitar na febre dos desejos,

“Francesca!... Paulo!” dizem, num gemido

Entrecortado de ardorosos beijos...

Porém a porta se abre de repente!

No estoque de Gianciotto enfurecido

Sucumbem, traspassados juntamente.[12]

 

V

Ato V, cena última

Francesca in un baleno si getta tramezzo ai due; ma, come il marito tutto si grava sopra il colpo e non può ritenerlo, ella ha il petto trapassato dal ferro, barcolla, gira su sé stessa volgendosi a Paolo che lascia il pugnale e la riceve tra le braccia.

Gianciotto os pilha quase que em flagrante:

Vai ferir Paulo em rápida estocada,

Mas Francesca interpõe-se, e, desvairada,

Quer ser a vitimada nesse instante.

E recebe no seio palpitante

Golpe mortal. “Ó Paulo!” exclama, ansiada,

E gira em torno a si e cai prostrada,

Morta, nos braços do aterrado amante!

Ele a beija na boca ardentemente!

Em face ao crime, o rábido marido

Mata o rival-irmão incontinente.

Após a dupla morte, curva um joelho

E no outro despedaça, enfurecido,

O longo estoque tinto de vermelho.

ALBATROZES

APRECIAÇÕES DA IMPRENSA BAIANA

“Difícil cousa é titular-se uma produção literária.

“O escritor desenvolve o pensamento pelo acanhado das estrofes ou pelas páginas de um livro de prosa, com uma precisão admirável.

“Mas ao batizar o seu trabalho, sente fugir-lhe o vocabulário, e começa a investigar, numa angústia de impotente, uma palavra que reúna a aluvião de ideias coordenadas.

“Quem se desse ao encargo de traçar a psicologia dos títulos teria assunto para muitos capítulos, em que se veriam ou o desespero do autor à procura do substantivo desejado ou a disparidade do pensamento com a denominação do traçado.

“Wenceslau de Queiroz, em ligeiras linhas, fez a psicologia das dedicatórias, mostrando quanto pode urna expressão atuar no espírito do crítico.

“Entretanto, a sutileza de um espírito observador acharia muito mais variedade de sentir, estudando os títulos de obras, ou simplesmente de produções dispersas.

“Amiúde, eu que não tenho pretensões a psicólogo me deparo com esse pesadelo dos literatos, sentindo o sacrifício da ideia pela vitória do título, ou a nenhuma relação deste com o conjunto.

“Li um soneto Olhos, que desses preciosos órgãos só tinha a palavra que o encimava; um outro Desprezado, em que o autor cantava as carícias solícitas da amada, jamais recusadas ao seu amor; outro Soalheira, que principiava pela descrição de um dia chuvoso e era rematado com um hino à voz da eleita, que eu fiquei julgando ser uma artista de soalhos.

Canção da morte é um punhado de versos flamantes, em que jovem poeta celebra o vigor do sangue, os encantos cia natureza, para na última quadra desejar | desaparecer da vida terrena.

“Seria longo enumerar os casos de pobreza de vocábulo ou disparate no fato que venho comentando e que não é matéria capital destas linhas.

“Procurei penetrar este ponto, porque imagino as torturas, a ânsia, o desgosto de um literato titulando um trabalho seu.

“Delicadas e fluentes, quase sempre saturadas de doce lirismo, são as 150 páginas do novo livro com que o estimado e conhecido poeta Damasceno Vieira, nosso distinto colaborador, acaba de enriquecer as estantes dos apreciadores do bom verso.

“Lira sonora e meiga, vibrando sob a influência dos mais gratos sentimentos, é essa que o Albatrozes nos apresenta, em versos inspirados, de agradável, emocionante leitura.

“Damasceno Vieira não é um novo na esfera resplendente da literatura: o Albatrozes aparece depois da publicação de outros volumes seus, de versos e prosa. Seu nome, portanto, já corre mundo, firmando trabalhos que lhe têm granjeado simpatia e apreço. É o bastante para recomendar a nova obra do poeta, a qual, de fato, corresponde plenamente ao mérito das antecedentes.

“A Damasceno Vieira agradecemos o oferecimento gentil de um exemplar do Albatrozes, impresso e encadernado na Lito-Tipografia, e Encadernação Reis & C., que lhe deu mimosa e elegante feição.”

Diário da Bahia, de 2O de setembro de 19O8.

___

“ALBATROZES, conjunto admirável de ideias e de imagens que só aos inspirados, às almas vibráteis, é dado urdir com graça e harmonia.

“Damasceno Vieira é poeta que não faz vibrar uma corda única. É dessas almas que não querem somente ver passar diante de seu olhar a ilusão em sua dança de silfo; que não podem viver somente no luar do lirismo, nas moles redes da anacreôntica, às quais não basta pressentir, em um sopra da brisa de éden desconhecido, a passagem docemente misteriosa da terna estrofe de trança perfumada.” Vibram-lhe na lira também as grandes emoções, as grandes vozes! Naquele escrínio encontramos lavores como este, quando ele se refere à Arte;

“Quando ela foi à Grécia, à pátria dos primores,

Nua e casta, a sorrir, cingida de lauréis,

Engrinaldou-se em glória a fronte dos pintores,

Rutilou como um sol O aço dos cinzéis!”.

“Alta inspiração e requinte literário!

“E, como esta, também é belíssima a seguinte estrofe de seu soneto — No banho:

“De pedra em pedra salta, airosa e leve,

Como uma ave de mimo cativante,

Expondo ao sol que a beija a todo o instante

Maravilhas que a pena não descreve.

“Eis aí uma estrofe em que se sente a maciez do veludo...

“Fazendo vibrar a corda do patriotismo, ele nos diz, em verso rijo e forte, n’A Voz do Tiradentes:

“Porém que escuto? Que harmonia é esta?

Um hino vibra além! Ouço distintos

Vivas festivos: Liberdade ou morte!...

Do Sul ao Norte as mágicas palavras

Transformam nossa pátria!.... Não me engano!

“E ei-lo que vai, por aí além, a navegar no mar alto da inspiração!...

“Para o poeta um verso do Dante, de quem ele diz que:

“Ao contemplar a pálida figura

Curvada a meio sobre o livro aberto,

E em traço firme, vigoroso e certo,

Compondo a sós a célebre escritura;

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

“E conclui:

“O tempo curva-se ao teu vulto egrégio!

E, enlevado, cometo um sacrilégio:

— Osculo a efígie divinal do Dante!”

“Para ele, repetimos, um verso do Dante vale tanto como a voluptuosidade dos amores de Ovídio.

“Sem trabalhar a imagem nem compassá-la servilmente, encontramos ali estrofes em que o poeta — frappe le fer en cadence comme Virgile l’a remarqué des Cyclopes.

“E lembrando-se desses obreiros de Vulcano, os originais habitantes do Etna, é ainda o poeta que, num surto de imaginação, nos diz:

“Mas a forja moderna em raios não trabalha;

Para a humana ruína o ferro não se inflama:

Os ciclopes-heróis, envoltos noutra flama,

Sentem que nova luz irrompe da fornalha.”

“Seria interminável esta ligeira notícia dos Albatrozes, se quiséssemos expor belezas como estas.

“É o quanto podemos dizer dos versos de Damasceno Vieira.

“Falta-nos competência para apurar senões, mister que deixamos aos lictores da crítica, ou melhor, o que só aos mestres cabe.

“Se, como diz Teófilo Braga, a poesia está na imagem e no sentimento, ela ali está em toda sua pujança.

“Cada vez encontramos provas mais palpitantes da vida eterna da Poesia! Tinha muita razão o grande Victor Hugo.”

Jornal da Manhã, de 27 de setembro de 19O8.

___

“Num elegante volume cartonado, impresso nas oficinas Reis & C., Damasceno Vieira, o distinto filho do Rio Grande do Sul, acaba de trazer à nossa bibliografia literária mais uma coleção de versos escolhidos, alguns já em voga, outros de recente elaboração. São peças bem fundidas, com os característicos desse ilustre e incansável homem de letras: a correção verbal, a precisão nas ideias e imagens, o apuro artístico da forma, a ciência e experiência dos segredos da métrica. O que tudo se exemplifica à leitura de qualquer destas composições, a que o autor deu o título de Albatrozes que lhe sugeriu uma bela poesia de Baudelaire.

“A imaginação plástica de Damasceno Vieira documenta-se, com efeito, a cada pegada de sua musa, ainda bastante moça e vigorosa para conceber e reproduzir em traços firmes a beleza e para entoar-lhe os hinos ardentes que são a Estátua grega, Amor de Pigmalião, No banho, Vitória de Friné, Quisera sobre um mármor de Carrara... etc. Neste gênero em que o poeta, que foi romântico, dá prova de unia evolução bem natural para a arte requintada dos Gautier e de Lisle, merece especial menção o Festim romano, quadro antigo, magistralmente desenhado e de rutilante colorido. Não se suponha, entretanto, que o artista se contenta com o desenho e as cores, abrindo mão da ideia. Depois de longamente descrito o festim, lá encontraremos o pensamento do poeta nestes versos, que produzem o efeito sensacional de um grito de alarma no auge de uma orgia:

Descuidosa da sorte,

A embriagada Roma não ouvia

O galopar dos Bárbaros do Norte.

“A natureza também inspira vantajosamente o poeta. É ler-lhe Ao mar, Alto da Serra, Em constelada noite... À história, à vida dos grandes homens, ao amor, aos espetáculos vários da vida, toma Damasceno Vieira os seus motivos poéticos, produzindo, entre muitas peças que serão devidamente apreciadas, o magnífico soneto A domadora, o poemeto de sabor indianista A Flor de Manacá, o comovente quadro Os comboios, o Cadáver triunfante, a bailada antiga O duelo e os inspirados alexandrinos Ao poeta.

“No espaço de uma notícia não cabe mais sobre o livro do abalizado escritor, que entretanto uma longa apreciação mereceria como obra de maturidade, valiosa, escorreita, nem fria nem audaciosa, isenta dessas extravagâncias a que muita gente nova, ou para dar-se ares de nova, gosta de pagar excessivo tributo, de que vem a arrepender-se. Nem o ilustre homem de letras, cuja convivência intelectual tem sido há alguns anos um prazer para a Baía, tinha mais o direito de fazer obra que desmentisse a sua experiência e a sua alta sinceridade literária.

“Os Albatrozes são dedicados a Arnaldo Damasceno Vieira, poeta par droit de naissance e também por conquista de um talento fecundado nos melhores estudos.

“A Damasceno Vieira os nossos agradecimentos e parabéns.”

Gazeta do Povo, de 5 de outubro de 19O8.

___

Não quisemos dirigir os nossos prolfaças ao poeta Damasceno Vieira, antes da leitura do elegante volume dos Albatrozes onde, a cada página, nos detivemos diante de uma imagem feliz, de uma ideia original e expressiva do seu sentimento, da correção de um alexandrino, do delicado lavor na estrutura de um decassílabo, ou da meticulosa preocupação da rima, prestando-se todo esse conjunto de qualidades, que enriquecem e abrilhantam os versos de Damasceno Vieira, ao estudo do poeta — o que nos não propomos fazer aqui.

“Essa tarefa de demonstrar até que ponto se expande o temperamento vibrátil do cantor dos Albatrozes e se as suas emoções se transmitem com a mesma intensidade com que foram sentidas, essa tarefa, repetimos, compete mais ao crítico do que ao noticiarista.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

“A feição geral do livro é o lirismo, e nesse gênero Damasceno Vieira tem lugar de destaque entre os bons artistas do metro.

“Devido, talvez à influência exercida no Brasil pela A morte de D. João, o autor dos Albatrozes também se sentiu irresistivelmente apaixonado pela nova escola realista, ou, melhor, quis amoldar o seu talento à nova fonte de inspiração poética, produzindo A Musa Moderna (Porto Alegre— — 1885).

“Cultivou o realismo puro e isento das torpezas e imundícias que impopularizaram o ideal da nova poesia.

“Diz-nos isto o poeta e confirmam os trabalhos que compõem A Musa Moderna.

“O realismo que seguimos, escreveu Damasceno Vieira, não faz uso de constantes hipérboles nem se impõe à admiração dos ingênuos por meio de estilo transcendental, mais próprio de compêndio de filosofia do que de um livro de índole poética: antipatizamos com tudo quanto se opõe à fácil compreensão do belo artístico.”

“Assim definindo a sua intuição do realismo na arte, diz o poeta, de referência a Jean Richepin:

“Apesar, porém, da admiração que nos causa, não o podemos aceitar como modelo. A liberdade de que usa vai até à licença; muitas de~ suas poesias, por obscenas, colocaram-se abaixo da crítica.”

“Damasceno Vieira, por pendor poético ou por inclinação do seu temperamento, evitou os escândalos do realismo, ao contrário de outros trovadores nacionais que levaram o seu ideal às fronteiras da brutalidade e da impudicícia.

“Daí, pois, o seu caminho de Damasco, a sua reversão ao lirismo dos primeiros tempos, ao lirismo franco, enérgico e encantador, pela pompa exuberante do sentimento e da emoção.

“Justifica o nosso enunciado a resolução do poeta, extremando da A Musa Moderna as composições propriamente líricas para incorporá-las ao recente volume dos Albatrozes, que, de modo indiscutível, documenta o conceito em que é tido Damasceno Vieira como poeta inspirado a rigorosa expressão do vocábulo.

“Haja vista a coleção de sonetos que opulentam o valor artístico dos Albatrozes, ou ainda, se quiserem, o poemeto Festim Romano que, no tocante à graça, ao mimo e à beleza da forma, faz lembrar a maneira descritiva de François Coppée nos Promenades et Intérieurs ou nos Poèmes Divers.

Ce n’est fait de l’art que consiste à mettre

Une émotion sincère en vers faux,

escreveu o discípulo de Lecomte de Lisle nos versos consagrados a Th. Gautier.

“Abre o Festim Romano com estes versos:

Após o banho em termas perfumadas,

Encantadoras cortesãs, trajando

Ricas vestes de seda aurilavradas.

Em passo airoso e brando,

Dirigem-se ao palácio

Da romana Barina.

E em versos assim impecáveis se desenvolve o assunto do gracioso poemeto.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

“Nos Albatrozes encontram-se bons modelos de composição poética e só deixamos de os enumerar para não citar quase todo o volume, que guardaremos como custoso mimo, como dádiva de muita valia.

“Como retribuição da oferta que do seu livro de versos Constelações lhe fizera

Como um penhor de filial dever

o digno continuador de seu nome; o engenheiro militar, tenente Arnaldo Damasceno Vieira, que é também um inspirado poeta, o autor de Albatrozes consagra-lhe esta obra, respondendo delicadeza a delicadeza, livro a livro, e até a mesma música na dedicatória, porque o faz

Como expressão de paternal carinho.

“Assim declarada a impressão que tivemos com a leitura do novo livro de Damasceno Vieira, aceite sinceros parabéns o distinto poeta, em quem a atividade no desempenho zeloso de funcionário público não amortece o fervor às letras.”

(Excertos do Jornal de Notícias, de 29 de outubro de 19O8.



[1] A grafia do Espanhol foi corrigida pelo editor deste arquivo. No original, aparece:

 “Todo acabó; estinguida

La antigua llama siento!

No exhale ni un lamento

Mi altivo corazon.

Que el mas completo olvido,

Rasgada, ya la venda,

Sobre mi amor estienda

Su fúnebre crespón!”

[2] Idem anterior:

 “Oh! cuanto te adoraba!

Porqué no confesarlo?

Cautiva, sin pensarlo,

Me vi de tu beldad!

Y hoy mismo que te huyo,

Si hé roto mis cadenas,

A costa de hartas penas,

Compré mi libertad!”

[3] Idem anterior:

 “Porqué tiernos recuerdos

Me asaltan de otros dias,

Flotantes armonias

De um canto que espiró?

Aun cuando el sol se esconda

Trás las nevadas cumbres,

Revelan sus vislumbres

Mi sueno que pasó!”

[4] Idem anterior:

 “Mas no; nada perturbe

Tu misteriosa calma!

A qué desear la palma

De mi desgraciado amor?

Que Dios que nos escucha

Dé paz á tu existencia!

Yo guardaré la esencia

De la marchita flôr!”

[5] Idem anterior:

 — Mire usted, caballero, esta divina

Mañana!...

…………………………………………………….

— Mire usted como es rico este paséo!

No hay nada más bello!

“Si, os créo!”

[6] [Nota do escritor] Em retribuição à sua poesia Paradis terrestre.

[7] [Nota do escritor] Falecido a 15 de junho de 1907.

[8] Algumas correções foram feitas na grafia do Francês.

[9] Idem anterior, com respeito ao Italiano.

[10] No original, está:

Era dolce

la mia sorella, è vero, Biancofiore?

Ah, s’io l'avessi meco, se stanotte

ella facesse il suo piccolo letto

accanto al mio! Se ancora

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[11] No original, está:

 Baciami gli occhi, baciami le tempie

e le guance e la gola…

così… così…[ tieni, e i polsi e le dita… così…] Prendimi l’anima e riversala

[12] [Nota do escritor] Fecho inspirado no verso de Dante:

 “Amor condusse noi ad una morte.”

Inferno, canto V