Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A República dos tolos, do Padre Correia de Almeida


Texto-fonte:

ALMEIDA, José Joaquim Correia de. A república dos tolos.

Rio de Janeiro: Laemert & Cia., 1881.

A REPÚBLICA DOS TOLOS

POEMA HEROI-COMICO-SATIRICO

PELO PADRE

JOSÉ JOAQUIM CORRÊA DE ALMEIDA

RAMERRANEIRO EX-PROFESSOR DE LATIM DA PROVINCIA DE

MINAS-GERAIS

Stultorum infinitus est numerus.

EDITORES

H. LAEMERT & C.

66, Rua do Ouvidor, 66

RIO DE JANEIRO

___

1881

A REPÚBLICA DOS TOLOS

POEMA

HERÓI-CÔMICO-SATÍRICO

 

ÍNDICE

CANTO PRIMEIRO

CANTO SEGUNDO

CANTO TERCEIRO

CANTO QUARTO

CANTO QUINTO

CANTO SEXTO

CANTO SÉTIMO

CANTO OITAVO

CANTO NONO

CANTO DÉCIMO

EPÍLOGO

 

CANTO PRIMEIRO

Da infinita República dos tolos

vou mencionar alguns assinalados,

e, para bem visivelmente expô-los

ou de frente ou de costas ou dos lados,

hei-de cantar, ao som de vil bandurra,

muito herói com figura de caturra.

Esqueçam-se as fantásticas patranhas

que a mente produtiva de Cervantes

pretendeu que passassem por façanhas

de um cavaleiro audaz entre os andantes,

O qual, porque a História o não desmancha

ainda é Dom Quixote de La Mancha.

E tu, ó sutilíssimo sarcasmo,

que infundes no epigrama tanto chiste,

abrasa-me de alegre entusiasmo

neste assunto, que nada tem de triste;

salvo sempre o rifão — que o muito riso

é sintoma ou sinal de pouco siso.

Adão, por aceitar conselhos de Eva,

sem dúvida é o mais velho autor da asneira,

mas tão alto o meu estro não se eleva,

em procura da origem verdadeira;

pois de Horácio é preceito, que eu aprovo,

que nunca a narração comece ab ovo.

Leitor, assíduo eu quero-te comigo

nesta frívola empresa, a que me atrevo,

e, se atenção benévola consigo

na leitura que faças do que escrevo,

contar-se-ão por muito bem achadas

as minhas irrisórias pachuchadas.

Não perderás o tempo inutilmente,

se leres o poema até o cabo:

e, para que melhor te experimente,

não te direi, enquanto não acabo,

o conceito e prestígio que ganhaste,

só porque neste afã me acompanhaste.

A infinita República

decerto não tem raias,

porque há infindas laias

de inúmeros pataus.

E os mais seguros cálculos,

feitos pelos primeiros

de nossos Engenheiros,

serão tidos por maus.

Se uns são francos estólidos,

ou tolos descobertos,

presumidos espertos

são mui tolos também.

Deixando impressa a mácula,

o demônio-serpente

é causa de que a gente

no mal enxergue o bem.

Não queiras que geógrafo

eu marque a longitude,

nem grau de latitude

do torrão nacional.

Se dos tolos o número

se diz que é sem limite,

sábio leitor, permite

que isto seja tal qual.

Nem queiras que das épocas

exatamente eu fale;

lá isso pouco vale,

o assunto o não requer.

Não há tolo anacrônico,

merece pois conceito,

e deve ser aceito, venha quando vier.

Assim, dando princípio

aos dizeres insulsos,

uns exemplos avulsos

vou coligindo aqui.

Se algum for pouco análogo,

espero que se acate,

visto que o disparate

é moda por aí.

Absurda incoerência

é leitura escabrosa,

que afeia um tanto a prosa,

e não tem tom nem som.

Porém destampatórios

de métrica heresia

tem dado à poesia

muita graça e bom tom.

Fétido em roupa e hálito,

velho, ou menino, ou moço,

antes e após o almoço,

não cessa de fumar.

Se o sarro produz ânsias,

a velha, a pequenita,

a moça mais bonita,

se lhe há-de acostumar.

Recrutas da República,

cigarristas agarro,

que é símbolo o cigarro

de magna estupidez.

Se abrevia esse tóxico

a vida apetecida,

ao mais parvo suicida

antídoto não dês.

Um sórdido usurário

seu dinheiro aferrolha,

com sabugos arrolha

garrafas de ouro em pó.

E dorme em cama aspérrima

de seca bananeira,

não sei de que maneira

trançada com cipó.

Com raciocínio algébrico,

seguro, financeiro,

não usa travesseiro,

nem usa de lençol.

Tem vestuário idêntico,

qual a fama o assevera,

no inverno ou primavera,

haja chuva, haja sol.

Aos ventos anuncia-se

não estreita fatia,

senão larga quantia

que deu para o Hospital.

Daí recebe um título,

baronato ou comenda,

tendo feito a encomenda

ao Ministrinho tal.

Vaidosamente estúpida

ignora muita gente

o quanto é exigente

o preceito cristão.

De milhões fosse a dádiva,

sem limpa caridade

não tem na eternidade

o valor de um tostão.

Outro usurário sórdido

em ajuntar é destro,

porém não perde um sestro

que estraga o cabedal.

À loura Desidéria

envia pelo pajem

finíssima roupagem,

precioso dedal.

A grã Beldade aceita-lhe

presentes repetidos,

e os xales e vestidos

já não cabem no rol.

Não foge de isca, come-lh’a

e é provável que deixe

o que às vezes o peixe

dizem deixar no anzol.

Um nobre de prosápia

liga a filha ao Menezes,

que é primo duas vezes,

ou quiçá mais de três.

Ou (por ter certa dúvida,

não digo com afinco)

é mais de quatro ou cinco,

ou mais de seis talvez.

Um dos bens do consórcio

não se achou em atraso,

e em nono mês, bom prazo,

o sucesso se deu.

A prole tem um gênero,

E, vista à luz do dia,

fêmea será sandia,

macho será sandeu.

Para a ilustre família

cruzamento de raça

é a maior desgraça

que possa acontecer.

Entende que se o bácoro

cruzado é mais robusto,

é porque corne arbusto,

por al não há-de ser.

Mostra bom-senso prático

um lavrador discreto,

e, conforme interpreto,

é homem de razão.

Tem na colheita o cêntuplo

de tudo o que cultiva,

e os serviços ativa,

por não perder sazão.

Gosta, porem, do estrépito

da caça de veados,

que deixa estropeados

o rosilho e o pedrês.

Sem nos impor seus méritos

com tola gabolice,

entretanto em tolice

vale por dous ou três.

Se fala no Topázio,

não há cão de mais faro,

e, causando-me enfaro,

não me deixa partir.

Se narra peripécias,

quando não me retiro,

solta, sem arma, o tiro,

é cachorro a latir.

De toutiço e de nádegas,

de fivelas e murça,

um cônego discursa

com cabeça de pau.

Mas, coitado, poupemo-lo;

de asno tem um pouquito

um padre periquito,

tucano ou pica-pau.

Quando vai para o púlpito,

vê que não se encubra

a fina meia rubra,

e deixa ver-se o anel.

Retórico bombástico,

emprega uma linguagem

que é verdadeira imagem

da falada em Babel.

São inocentes vítimas

os seus pios ouvintes,

e os bons contribuintes

merecem compaixão.

De tão alta eloquência

tu, leitor, encontraste

antítese ou contraste

no estilo claro e chão.

Esse estilo frutífero

já vai perdendo o apreço,

enquanto sobe em preço

o balofo sermão.

Temos lei evangélica,

e ao padre, quando a prega,

espórtula se entrega,

que lhe enche bem a mão.

Tornou-se um bom ofício

a prédica moderna,

se bem que a pena eterna

nos pregue o pregador.

Porém não quero alvíssaras

pela dura verdade,

que, sem ser novidade,

descobre o tentador.

E fique em paz o cônego,

que, inda sem ter pregado,

em mérito é julgado,

bem ou mal, por Garret.

Sendo em regra omnia vanitas

(Latim aproveitável),

nada vês de notável,

se a conezia é ré.

Mas... passemos ao túmulo.

A vaidade na cova

é convincente prova

da humana insensatez.

O luxo cadavérico

não afugenta o verme

de dentro da epiderme

ou cutícula ou tez.

Custosas honras fúnebres

ao cadáver se fazem,

e os restos mortais jazem

em rico mausoléu.

¿A. pompa tão magnífica,

e tanto galão junto

levarão o defunto

direito para o céu?

Irá primeiro o mísero,

esfarrapado pobre,

que, expulso pelo nobre,

viveu na sordidez.

Pede a razão e a lógica

que ele, quando bem morre,

na glória se desforre

do mal que se lhe fez.

E o turpilucricúpido,

que não deu pão nem capa,

do fogo não escapa,

nem devia escapar.

E no dia novíssimo,

se não morreu contrito,

há-de saber aflito

que foi tolo sem par.

Incrédulo filósofo

impiamente disserta,

e alcança a fama certa

de livre pensador.

Mas quer que o cemitério

não lhe rejeite os ossos,

e a ideia de outros fossos

o enche de magoa e dor.

Ouve Missa católica,

e, admirador constante

da seita protestante,

tem a Bíblia nas mãos.

Falando em tolerância,

ataca a propriedade

da fiel Irmandade,

que enterra seus irmãos.

A seu turno algum Pároco

quer que fique insepulto,

por indigno de indulto,

quem vacilou na fé.

Crê na misericórdia

Divina, que é tão grande,

mas não que Deus se abrande,

quando mais preciso é.

O pecado é do espírito,

não do corpo, e nossa alma

no céu recebe a palma,

ou vai a Belzebu.

Sem referência ao préstimo

da pele a servir de odre,

disputar carne podre

faz do homem urubu.

¿Será posto em sarcófago,

envolto na mortalha,

quem morreu em batalha

que se chama campal?

A guerra é jogo sério,

difere do cucarne,

e deixa exposta a carne

ao voraz animal.

¿Se o desditoso náufrago

nas águas perde a vida,

a família convida

quem o leve em caixão?

¿Sem solenes exéquias

O insepulto defunto

não terá, eu pergunto,

carnal ressurreição?

Nem o pio nem o ímpio

faça tanto barulho,

pois do fútil orgulho

o demônio se ri.

Salvo o efeito higiênico,

combatido o miasma,

de medo de fantasma

não morro, nem morri.

Caro leitor, convence-te:

os caminhos dos mortos,

ou direitos ou tortos,

irão a Josafá.

E lá estarão trêmulos

os tiranos sinistros,

e os algozes ministros,

que fazem tremer cá.

Mas... perdão, ó teólogo;

se em tudo isto que disse

houver qualquer sandice,

eu já me desdirei.

E perdão, ó filósofo;

se. no tratar do tema,

ofendi vosso sistema,

de novo aprenderei.

Reflito que a matéria

‘stá fora do programa

porque triste epigrama

não se pode admitir.

Sim, leitor, é de essência

 que o belo desaforo,

em vez de excitar choro,

somente faça rir.

Se, à força de hermenêutica,

Dizem que o estilo é o homem,

talvez aqui me tomem

por padre de sermão.

E este livro, na hipótese

de vir da sacristia,

sem dó nem simpatia

deixem cair da mão.

 

CANTO SEGUNDO

Meu leitor, este capítulo

não é de teu interesse,

porém justo me parece

que eu aqui trate de mim.

Equivale a vitupério

o louvor na própria boca;

direi, pois, cousinha pouca,

sem perfume de jasmim.

Baixo músico, sem mérito,

recebi ordens de padre;

e, quadre bem ou não quadre,

rimo meu verso também.

São de efeito estes três títulos,

e podem dar-te a medida,

que aliás não me é pedida,

do quanto e como andei bem.

Pondo a mão na consciência

dir-te-ei, e não é peta,

que não tenho na gaveta

às vezes nem dez tostões.

Um padre-poeta-músico

(tripeça desengonçada)

é uma bem desgraçada

trindade de pobretões.

É tal o meu vestuário,

que a russa, grosseira capa

ao reparo não escapa

do literato galã,

Se me não faz monge esse hábito,

lá por ver a carruagem,

não renderei homenagem

à impostura papelã.

E, a despeito da penúria,

vivo alegre, e dou risadas,

e gentes ajuizadas

também me ajudam a rir.

Só algum fidalgo exótico,

por lhe eu parecer lanzudo,

inculcando-se sisudo,

fará bem em me aborrir.

Maior que sexagenário,

sempre aos achaques sujeito,

entretanto não me ajeito

a viver como ancião.

Erudito sem memória,

muitas vezes me acontece,

devendo escrever com S,

escrever com C sião.

N’outro tempo usei da férula,

ensinei latim, fui mestre,

e lá no fim do trimestre

ouvia o som do metal.

Um professor de gramatica,

ou, por outra, um mestre-escola

não mendiga de sacola;

se morre, é porque é mortal.

Nesse penoso exercício,

que durou longos trinta anos,

conversei com Espartanos,

e por fim me jubilei.

Ainda bem que por último

tive aquela recompensa,

que estava, como se pensa,

autorizada por lei.

De muitos, hoje Vigários,

Juízes ou Advogados,

os verbos mal conjugado

eu costumava emendar.

Agora, nesta matéria,

ao padre-mestre Mineiro,

rançoso ramerraneiro,

quinaus elos podem dar.

Um destes, contra gerúndios,

fala bem, mas há quem tema

que a mó do novo sistema

esmague as conjugações.

Outro (que grande prodígio!)

segue caminho mais reto,

e ensina latim correto

em duas ou três lições!

O Gil, no estudo jurídico,

tornou-se tão relevante,

que é de jus se lhe levante

indestrutível padrão.

Processou-se um furto de égua,

e o meu Bacharel, tão apto,

viu que nas penas de rapto

estava incurso o ladrão!

Certo pimpolho do Hipócrates,

Doutorzinho em medicina,

explica-me que a vacina

vem da vaca e não do boi.

Meu orgulho pavoneia-se,

pois. à luz do sol a pino,

mostra o tenro esculapino

que meu aluno ele foi.

Ainda hoje alguns discípulos

têm aprendido comigo,

e sou mui constante amigo

do triste Ovídio Nasão;

embora na Instrução Pública,

onde se apura o que é belo,

não penetre esse libelo,

nem se lhe faça alusão.

Na banca de exame exige-se

que um jovem, fraco estudante,

quer bisonho, quer pedante,

escreva puro latim.

Os latineiros corrigem-lhe

a tal peça de encomenda,

e esse remendo ou emenda

não é de liso cetim.

Posto que haja dicionários,

Parece-me regra torta

escreverem língua morta,

que não sabem, nem eu sei.

Mas, enfim, do sono plácido

não me priva a novidade;

tenho apetite, é verdade,

e por isso hoje almocei.

Dos genitivos enfáticos,

se a teoria lhe importa,

não fecharei minha porta,

ao colega professor.

De sintaxe a questiúncula

seja ou não seja acabada,

queijo, vinho e goiabada

ofereço ao defensor.

Explicar Virgílio e Cícero,

Tito Lívio e Horácio Flacco,

já custou muito tabaco,

que é regalo do nariz.

Hoje o latim macarrônico,

que os progressos não desmente,

vai correndo fluidamente,

como água de chafariz.

Algum bom pai de família,

que tem amor aos rapazes,

só quer que sejam capazes

de ir a exame responder.

Se orelham os prolegômenos,

e os repetem sem vexame,

vencido que seja o exame,

irão depois aprender.

De uma cartinha lacônica

de algum Ministro de Estado

o examinando alistado

não se deve descuidar.

São para dóceis mesários,

que desde então já não brigam,

preceitos que mais obrigam,

pedir quem pode mandar.

De aprovações de colégios

na relação costumada

há pomada e mais pomada,

pomada com profusão.

Matérias mil simultâneas

não são confuso trabalho,

pois eu é que me atrapalho,

onde não há confusão.

Lá porque eu use de óculos,

não me julgo tão profundo

que possa meter o mundo

por outra estrada melhor.

Trazer tudo para a sátira,

e levar tudo a carolo

de um poeta meio tolo

faz tolo e meio ou maior.

Já tenho entrado em polêmicas

em defesa de um partido,

e também as tenho tido

de muito pior jaez.

E então noto que o adversário,

deixando as questões pendentes,

quando me toma entre dentes

mostra ser péssima rês.

Posto que nenhuma glória

me resulte dos combates,

ainda acudo aos rebates,

e à toa algum tiro dou.

Porém é tiro de pólvora

sem chumbo e com pouca bucha

que não mata a quem o chucha,

nem a quem dorme acordou.

Esse foi sempre meu gênio,

foi sempre essa minha balda,

nem a cabeça se escalda

n’outro modo de escrever.

Daquele que tira escândalo

de minha inocente manha

a parvoíce é tamanha,

que maior não pode haver.

Inexplicáveis delícias

sinto às vezes, quando leio

descompostura, que veio

contra mim, n’algum jornal.

Já recebi como obséquio,

e não supus que houvesse erro,

uma oferta de cincerro,

que é expressivo sinal.

Há sempre insultos recíprocos

entre parvos escritores,

que supõem que a seus leitores

deste modo hão de agradar.

Se alguém me fez uma injuria,

e eu também lhe fiz ofensa,

a cousa assim se compensa,

e nisso é que veio a dar.

Saibas tu, leitor biógrafo,

e saiba qualquer ouvinte:

mil, oitocentos e vinte

é o ano em que nasci.

Diz-me a crônica doméstica,

porém disso me não lembro,

que era quatro de setembro

quando leite apeteci.

Oh que estupendo espetáculo

presenciaram meus olhos!

Por falta de uns bons antolhos

com certeza me espantei!

Aos melífluos, doces ósculos

da carinhosa ama minha

eu preferi a maminha,

e logo me amamentei.

Até aí não fui eu néscio!

Veio vindo com a idade

esta minha nescidade,

que hoje está em sumo grau.

E sou asnática vítima,

em todo e qualquer ensejo,

traficante sem pejo,

de avental ou balandrau.

No doméstico e no público

sendo o viver bipartido,

se em baixa conta sou tido,

não me deve isso admirar.

Firme nos mesmos princípios,

que segui desde mancebo,

tenho tirado bom sebo,

e continuo a tirar.

Sem pôr brasas no turíbulo,

sem ser chorão, que é quem mama,

se acaso um mandão não me ama,

acho-lhe toda a razão.

Seja isto orgulho ou modéstia

(opostos que se confundem),

por mais que os mandões o afundem,

vejo emergir meu brasão.

E é justamente este o cúmulo

de supiníssima asneira,

e por isso a bananeira

o cacho não dá, nem deu.

Se a importância vem dos títulos,

não da honradez ou serviço,

quando esse estrume fez viço,

a planta não se perdeu.

Em louvor de São Telésforo,

certa senhora remissa

encomendou-me uma missa,

que pronto lhe celebrei.

Espero debalde a espórtula

e essa magra ninharia,

que outro padre cobraria,

coitada!, eu não lhe cobrei.

Pergunto agora à Dona Águeda

(este é o nome da sujeita

que ao beatismo se ajeita,

e a missa me encomendou):

¿Do pio voto exonera-se

quem zombou do sacerdote,

e sacrílego calote

deste modo lhe pregou?

Sendo dia aniversário

da morte da cara esposa,

milionário João de Souza

manda uma missa dizer.

Cá este é pontualíssimo,

E o seu criado João Lopes

no melhor dos envelopes

a esmola me vem trazer.

Inda estou na rua, e sôfrego

corro a casa, e, apenas entro,

quero ver se o que vem dentro

dá para muitos pastéis.

Cruel decepção! O invólucro

do piedoso ricaço

de recheios era escasso,

encerrava dous mil réis.

Como esse aí há muitíssimos,

e depois dizem que o padre,

quando se queixa ao compadre,

não é que tenha razão!

Pois saibam que este presbítero,

pagando salário ao pajem,

de ferradura e forragem

precisa... para o alazão.

Não podes fazer o cálculo

das mantas que um padre leva;

mas, leitor, aqui releva

que eu as deixe de contar.

De minha inepta estultícia

não cabe nas minhas trovas

a coleção de mil provas,

se eu as pudesse ajuntar.

Sendo tão magro o salário,

com injustiça e dureza

acusa-se de avareza

o padre que quer o seu.

¿E quanto se paga ao médico,

que multiplica as visitas,

sem falarmos nas coisitas

que enxergou e apeteceu?

¿Quanto ganha o boticário

para aviar a receita,

que ignorante enfermo aceita,

continuando a gemer?

¿E quanto se paga ao rábula,

que com um requerimento

pode comprar mantimento

para dez anos comer?

Chame-se um pai de família

para vir dar a sentença,

concedendo o que pertença

a cada um na questão.

Se a decisão for jurídica,

de um lado contos e contos,

d'este outro lado os descontos,

ou parcelas de tostão.

Leitor, se da nobilíssima

terra de meu nascimento

tu não tens conhecimento,

para informar-te aqui ‘stou.

Eu nasci na legendária

cidade de Barbacena,

onde a mais risonha cena

quem aí veio avistou.

Oh! que tão lindo crepúsculo,

oh! que dourado horizonte

não se goza deste monte,

tão suave e natural.

Milagre na zona tórrida,

oh! que frescura no estio,

oh! que dezembro tão frio

aqui no hemisfério austral.

Sei que não desminto o oráculo,

que diz, porém não me aterra,

que profeta em sua terra

ninguém jamais o será.

A ingratidão dos patrícios

é cousa tão corriqueira,

que, por mais que se não queira,

sucede e sucederá.

Nem te acuso, ó minha pátria!

Feliz ou infeliz no ensaio,

já agora daqui não saio

e aqui desejo morrer.

Como Demócrito, rindo-me

eu vejo com desafogo

que nossa vida é um jogo,

e... deixo o marfim correr.

Se dizes que isto é critério,

meu leitor benevolente,

é que que desta vez a lente

não te ajudou a me ver.

Rio até de cousas lúgubres,

e aquele que ri de tudo

é toleirão por estudo,

e maior não pode haver.

 

CANTO TERCEIRO

Depois que ingenuamente, sem floreio

nem graça, ao prelo dei minha pessoa,

ainda tu, leitor, conforme creio,

não sabes o que n’ela melhor soa.

Suporás que não saio desta roça,

ou, quando muito, dou algum passeio,

pernoitando em tugúrio ou vil palhoça,

onde insossa canjica janto ou ceio.

Afirmo-te que estás muito enganado!

Profundos mares tenho percorrido

sem remo, sem vapor, sem vela ou nado,

sem perigo, onde tantos têm morrido.

As terras mais inóspitas do globo,

basta-me só lembrar-me, eu as visito;

não fujo de panteras, de urso ou lobo,

e afronto o mais feroz bicho esquisito.

Respeita, pois, em mim o viajante,

nem consintas que alguém me menoscabe;

é meu itinerário tão pujante,

que nestas magras páginas não cabe.

Cheio de mim, isto é, mui presumido,

De tudo quanto vi pequena parte

narrar-te-ei neste conto resumido,

sem o auxílio pedir de engenho e de arte.

¿Tive um dia vontade de ir à França?

Não houve precisão de passaporte;

dito e feito, sem mínima tardança

a Gália percorri de Sul a Norte.

¿Tive um dia vontade de ir a Roma?

Samarra não vesti, não tomei capa;

lá fui, vi muitos Santos em redoma,

e submisso beijei o pé do Papa.

¿Meteu-se-me em cabeça ir a Lisboa?

Sem trouxa nem baú, e até sem mala,

fui lá ver muito herói que esteve em Goa

e hoje está entre os quadros de uma sala.

¿Quis ver as mil grandezas de Inglaterra?

Achei-me logo às margens do Tamisa;

era tudo etiqueta nessa terra,

e o povo estava em fraldas de camisa.

¿Lembrei-me de chegar à Cochinchina?

Lá estive, e ninguém pense que minto;

fui à Pérsia também, e fui à China,

viajei tanto ou mais que o Mendes Pinto.

¿Quero ver por mim mesmo a pia Espanha?

Visito São Jacó da Compostela,

muita frente em romagem me acompanha,

no tumulto não quebro uma costela.

¿Tentei ver teus trabalhos, ó Lesseps?

Eu lá fui, a despesa não me aterra;

admiro-me de como tu decepes

um torrão de compacta, imensa terra.

¿Por acaso eu fiz gosto de ir ao polo?

Vejo as focas aí no caramelo,

enquanto este calor que vem de Apolo,      

aquece e aquecerá tanto camelo.

¿Curioso quis ver a pororoca?

Num átomo cheguei ao Amazonas;

vi águas, em novelo ou maçaroca,

correrem rio acima assaz medonhas.

¿Quis ver dos Faraós o velho Egito?

Vi de perto as pirâmides enormes,

ante as quais te fizeste pequenito,

ó, grande Bonaparte, que hoje dormes.

¿Quis me achar nos desertos africanos?

Lá fui, não prego petas a martelo,

aonde fez esforços sobre-humanos

o mal-aventurado e forte Otelo.

¿Meu leitor, o que dizes

depois deste meu conto?

Talvez digas que é sonho,

talvez me chames tonto.

Quando assim ajuízes,

é por seres bisonho.

Eu não sonhei, nem minto,

Nem sou qualquer basbaque,

e o Fernão Mendes Pinto,

por ver tanta proeza,

por essa redondeza,

não sofrera esse ataque.

O argumento é frisante,

mas vamos adiante.

Tu sabes que passei a minha vida

aqui ou nos vizinhos lugarejos,

e supões a questão já resolvida

contra mim, e conforme aos teus desejos.

Entendes que não fiz essas viagens,

que não se realizam sem primeiro

completarem-se aprestos e bagagens,

com dispêndio real de bom dinheiro.

Pois a gora, leitor condescendente,

o engano não é meu, pretendo expô-lo;

e, se tens de o saber desejo ardente,

verás que desta vez fui menos tolo.

Cortei largo, porém sobra-me

muito pano para mangas;

presenciei bugigangas,

e em Darwin achei razão.

Os bugios sabem música,

e, quando encheram as panças,

divertem-se em contradanças,

porque o gênio é folgazão.

Minerei na Califórnia,

e pude extrair tanto ouro,

que salvaria o Tesouro,

se a exigência fosse tal.

Quis trazer esse ouro em lâminas

para cá, mas do transporte

a despesa era tão forte,

que excedia o capital.

Por instinto democrático,

esquecendo a língua lusa,

falei Francês, vesti blusa,

visitei Victor Hugô.

Ao ouvir tanta eloquência,

que contestar não se lhe ousa,

quis aprender muita cousa,

e o tempo me não chegou.

Visito a moderna Grécia,

pois, quanto à velha, essa foi-se,

e o tempo deu-lhe tal coice,

que não se levantará.

Não deixo de ir à Beócia

e, se Píndaros não acho,

encontro lá muito macho,

como aqui os haverá.

Quando quero, vou à Prússia,

e converso com Bismark,

sem que o relógio me marque

o tempo da discussão.

Ele fala-me do Império,

e me diz que El-Rei Guilherme,

para não ter povo inerme,

militariza a nação.

Já tenho ido à Rússia, impávido,

e, no tempo mais sombrio,

não me acautelo do frio

desse gelado país.

Vi que o terror não é pânico

no rei e no realista,

supondo que o nihilista

tenha criado raiz.

Atravessando as Astúrias,

indo à vila de Madri,

vi que não sofre pevide

a língua de Castelar.

Novo Cícero ou Demóstenes,

sucede que no debate

as atenções arrebate

este orador singular.

Fui, apesar de ser clérigo,

ver Alexandre Herculano,

pacato Coriolano,

que por si se desterrou.

Pedindo ao historiógrafo

que esta visita me aceite,

apontou-me para o azeite,

e a discussão encerrou.

Coberto do boné frígio

(e não me cobri debalde),

fui visitar Garibaldi,

republicano de truz.

E sacerdote de escrúpulos,

ouvindo a doutrina sua,

dei um pulo para a rua,

e fiz o sinal da cruz.

Embarco-me para as Índias

com beliche e boa cama,

e, tal qual Vasco da Gama,

tenho à frente Adamastor.

Se eu te lera o itinerário,

e as impressões da viagem,

sem obter maior vantagem,

passara por impostor.

Vi e ouvi que entre os indígenas

do brasílio Mato Grosso,

por tradução ou destroço,

o sábado e sabaru.

Recordo-me da Bolívia,

sem que a memória cochile;

estive lá e no Chile,

e daí fui ao Peru.

Estive também no México,

e, esse sucesso enfadonho

de um regicídio medonho

lamentando não errei.

Sem raízes, planta exótica,

um tal Maximiliano,

certo dia, mês e ano,

provou que é mortal um rei.

Fui à inglesa Norte-América,

país sem par no progresso,

e achei lá cordial ingresso,

porque sou branco na cor.

Uma parcela desconta-se

do meu republicanismo,

ao ver tal charlatanismo

daquele povo senhor.

Passei as colunas de Hércules

(o nec plus ultra acanhado),

sem poder ser apanhado

por mouros de Gibraltar.

Entrei, perto do Vesúvio,

na soterrada Pompeia,

e nessa triste epopeia

muito achei que meditar.

Vi a baía de Nápoles,

que vence Constantinopla,

mas prefiro nesta copla

a capital do Brasil.

Chateaubriand apoiara-me

se conhecera primeiro

nosso Rio de Janeiro.

gigantiforme e gentil.

Leitor, dest’arte eu tenho viajado

por climas, cada qual o mais diverso,

e basta que o tivesse desejado,

pois me sobra poder incontroverso.

Não escapa aos teus olhos perspicazes,

nos mapas estudando geografia,

que estas viagens pousam em tais bases,

que com justa razão se desconfia.

Ou talvez tu já tenhas acertado,

descobrindo a verdade em meus discursos,

e assim, posta a questão em bom estado,

conheças o valor de meus recursos.

Porém se, por desgraça, um pouco rombo

te mostras, quando lês letra de imprensa,

de tua estupidez o casco arrombo,

até que te penetre a boa crença.

Perdoa-me, leitor inteligente,

a incivil aspereza desta frase,

nem o dito, que me é tão compungente,

tuas faces colore, nem abrase.

Eu retiro a expressão, como é de estilo,

seguido em discussões do parlamento;

passou-se o mau humor, não queiras discuti-lo,

e ao riso dê lugar o vão lamento.

Quantas vezes, não sei se com justiça,

alguém me dá o epíteto de burro!

Aceito essa linguagem tão castiça,

sem por isso comer milho zaburro.

Não falemos em tal desaguisado,

que é devido ao veloz correr da pena:

confesso-te que andei mal avisado,

e o meu desplante assim se desempena.

Dado que ponhas em dúvida

meus estupendos dizeres,

um dos maiores prazeres

eu agora vou gozar.

V alente leitor, aguenta-te,

que te vai cair no lombo

a anedota de Colombo,

mas não sofrerás desar.

Essas viagens elásticas,

eu as faço num momento,

porque são do pensamento

que, aonde quer, aí vai.

Anda livre meu espírito

a divagar pelo espaço,

ao passo que não dou passo,

nem meu corpo daqui sai.

Nos passeios metafísicos

vou sem balão pelos ares,

atravesso extensos mares,

sem medo de tubarões.

E agora, leitor, pergunto-te:

¿os brutais materialistas

não farão parte das listas

dos mais crassos toleirões?

 

CANTO QUARTO

Leitor, toma fôlego, e vamos avante:

não pode agora dizer que não crês

nas minhas viagens, sem que se levante

o orgulho que nutro, que vale por três.

Orgulho de vate de rima sublime,

que  enxerga um argueiro no olho do irmão,

e seu epigrama, contanto que rime,

quer ele que os sábios o tragam na mão.

Orgulho de músico, afeito a dar berro,

supondo que a fama de um belo cantor

consista em mostrar-te que a voz é de ferro,

embora ofegante padeça estertor.

Orgulho de padre, ministro de Cristo,

que o santo evangelho tem lido, e viu bem

que a humilde doutrina não era como isto

que um padre corno ele vaidoso mantém.

Escuta-me agora, leitor, muito atento,

e dá-me simpática prova de afeto.

Um grande projeto

concebo e fomento!

É tal seu objeto,

que seu rendimento,

se houver fiscal reto,

por.um dará cento!

Se contra a aparência de dous substantivos,

leitor, tu protestas, protestos recebo;

usei no presente de verbos ativos,

nem há no projeto fomento nem sebo.

¿De minha pachorra

inerte, fleumática

exige a gramática

cadinho ou pichorra?

Ora essa é bem boa! Deixemos o caso,

devido ao acaso.

Ligeiro, insensível, fugaz trocadilho

não passa de um leve, comum pecadilho.

Caro leitor, convence-te, acredita

que tanto privilégio, que hoje vemos,

para o Brasil trará imensa dita,

pela qual desde já a Deus louvemos.

Sem vintém adormece um valdevinos,

e acorda milionário no outro dia;

nem sei se teve então sonhos divinos,

que a linguagem mortal mal parodia.

Engenha, verbi gratia, férrea estrada;

charlatão com fumaças de engenheiro,

calcula que na empresa desastrada

só perde quem entrou com seu dinheiro.

Bem munido de alguns centos de cartas,

vai à tua presença, ó Deputado,

e tu, fiel cristão, não te descartas,

e votas como sempre tens votado.

Cada uma das cartas recebidas

era de um eleitor independente,

ao qual deve por compra de bebidas

alguns mil réis aquele pretendente.

Corre o negócio, ou voa desta forma:

dispensa-se qualquer e todo o estudo.

Ministro ou Presidente se conforma,

e o feliz empresário alcança tudo.

¿Senhor do privilegio e sem pataca,

como é que saberá realizá-lo?

Esta fraca objeção por si se ataca,

conforme posso e devo ajuizá-lo.

Que a ciência dos tolos é profunda,

é cousa que por velha não é nova,

e seria maior a barafunda,

se aquilo que era antigo se renova.

O feliz empresário

não dispõe de dinheiro,

nem é como o engenheiro

para empresas capaz;

mas vende o privilégio,

e, achando quem o queira,

vai pela Mantiqueira

seguindo em santa paz.

Como este surgem vários,

animados do exemplo

que nos dá quem no templo

um juramento deu,

e, sem zelar o erário,

falaz representante,

aliás fino tratante,

as finanças perdeu.

‘Subvenção quilométrica

é ótima pechincha,

que aperta um pouco a chincha

desta besta Nação.

Se o futuro tem névoas,

lá isso pouco importa;

o de trás feche a porta,

que é boa comissão.

E vós, gordos políticos,

conforme humildo servo

eu daqui vos observo,

sabeis o nome aos bois.

As vossas ordens cumprem-se,

ainda bem não descem,

e os magros obedecem,

por serdes vós quem sois.

Leitor tenaz, voltemos ao projeto,

que tencionei aqui participar-te;

a cousa, por ser liquida, eu te injeto

no cérebro ou n’outra qualquer parte.

Mas, antes de tratar do grande assunto,

busco argumento em certa analogia,

que descobri, e então nesse conjunto

até aprenderás teologia.

O bugre, feio, estúpido,

vive tal qual o bruto,

e goza do atributo

de muito mais feroz.

Desumano antropófago,

é certo que o tapuia

bebe o sangue na cuia,

se apanha algum de nós.

É voraz, alimenta-se

do mais ascoso bicho,

cata manjar no lixo,

e traz o corpo nu.

Quando ele enxerga um pássaro,

prepara-lhe a negaça,

e, se o mata, ou se o caça,

devora-o mesmo cru.

Ou quadrúmano ou bípede,

qualquer que seja o nome,

o bugre se consome,

como fero animal.

Se de anil ou de púrpura

se vê o rosto tinto,

parece mero instinto,

que é dom do irracional.

Pois muito bem! Apanhe-se

um tenro bugrezinho,

e dê-se ao bom vizinho,

que o eduque entre os seus.

Estude no colégio

onde há mestre que ensina

a mais pura doutrina,

que é o temor de Deus.

Ei-lo já bom discípulo,

e, em provas excelentes,

obtendo de seus lentes

louvor e distinção.

Ei-lo em tribuna ou púlpito,

na igreja ou na assembleia,

defendendo uma ideia

com toda a discrição.

Ei-lo grande filólogo

exumando o idioma

que foi falado em Roma,

e caduco morreu.

Ei-lo profundo astrônomo,

seguindo com luneta

o espaço que o planeta

ligeiro percorreu.

Ei-lo exato geômetra,

de esquadria e compasso,

dando a planta do paço

ou palácio taful.

Ei-lo, mais que o fotógrafo,

as feições apanhando,

pintando, desenhando,

pondo ouro sobre azul.

Ei-lo firme geógrafo

descrevendo o Amazonas,

que tu tanto blasonas,

vastíssimo Brasil.

Ei-lo na História pátria

mostrando-se versado,

narrando o que é passado

desde o sete de abril.

Ei-lo fino gastrônomo,

que em lauta mesa escolhe

o peixe que se colhe

em redes de retrós.

Ei-lo, enfim, tão político,

no viver tão composto,

que vem a ser o oposto

de imundo bugre atroz.

De mais valor que a pérola,

foi bruto diamante,

que se tornou brilhante,

porque se lapidou.

Verás a que propósito

do bugre aqui se trata,

e, sem que se lavre ata,

a explicação eu dou,

Até aqui é parábola

este ligeiro conto,

que, sem falha de um ponto.

pudera acontecer.

O seguinte é apólogo

de absurda analogia,

pois a raça bugia

o que foi há-de ser.

Uma escola sustenta que o homem

procedeu do macaco ou do mono,

e esse caso por mofa não tomem,

nem se exija hipoteca ou abono.

Aproveito a feliz descoberta,

que me faz conceber uma empresa,

cuja paga será mais que certa,

calculada a receita e despesa.

Se alcançar privilégio exclusivo

(e esta hipótese é digna da tese),

eu aplico ao sagaz mono vivo

produtiva, moral catequese.

Qualquer mono que esteja no mato

se inda é tenro, eu apanho com jeito,

e o gentil Darwinzinho eu acato

embalando-o no berço, em que o deito.

Neste quadro, leitor, se és brejeiro,

é soberbo esse efeito que lhe achas!

Bem forrado de tapas e cueiro

um moninho entalado nas faxas!

¿E os afagos que essa ama lhe presta,

dando leite ou de si ou de cabra,

tendo toda a cautela em que a fresta,

que os olhinhos lhe ofende, não se abra?!

A peluda criança risonha

agradece os humanos carinhos,

e outras vezes já faz carantonha,

e parece que dá suspirinhos.

Se ao infante cortamos o umbigo,

não enxergues algum menoscabo

neste facto, tal qual como digo:

ao macaco decepa-se o rabo.

Leitor, sim, decepa-se

o rabo ao macaco,

e arranca-se um naco

ao jovem Darwin.

O pelo, esse rapa-se;

navalha há-de sobra,

e a pele recobra

lisura e alfenim.

E a prole darwínica,

que fora peluda,

que fora rabuda,

não é mais assim.

E crescendo o moninho entre afetos,

tornar-se-á um rapaz bem falante;

deixará de comer os insetos,

nem criança haverá tão galante.

Meu leitor, da surpresa e do gosto,

que terás, desde já faço ideia,

quando ouvires, beijando-lhe o rosto,

Darwinzinho dizendo — teteia.

Deste imenso Brasil nas florestas

há macacos em tal quantidade,

que se contam qual trigo em arestas,

quando a terra lie presta umidade.

Assim, pois, adotado o sistema

na mais ampla e geral das escalas,

nem a falta de braços se tema,

nem de escravos negrejem senzalas.

E, se um método tal bem se aplica

à fecunda e melhor das lavouras,

bem depressa o café centuplica

no Arrozal, Bananal e Vassouras.

 

CANTO QUINTO

Eis-me agora, leitor, metido em grande empresa,

da qual, em todo o caso, hei de airoso sair-me;

pois a cousa é por si de uma tal natureza,

que, se chego a cair, hei de me erguer a rir-me.

Educar o macaco, o barbado, o bugio

é facto social de tão extenso alcance,

que em fazer-lhe rasgado e pomposo elogio

acho muito melhor que eu hoje me não canse.

¿Não viste alguma vez em toda sua vida

uma dança africana e que se chama tango?

Se tal bambolear os teus quadris convida,

repara que a lição te ensina o orangotango.

Sob este aspecto eu creio, e firmemente creio

que minha imensa empresa imensamente brilha;

é o tango ou bugiganga inocente recreio,

que excede à do francês monótona quadrilha.

E, atenta a discrição que tu, leitor lhe notas,

a moça do Brasil não deve dar cavaco;

se ela consagra amor a frívolos janotas,

por força há-de gostar de esgares de macaco.

Hoje, quando em comum os bons agricultores

reconhecem o mal da negra escravatura,

bem-vindos hão-de ser filantropos autores,

que alforriem de chofre a humana criatura.

E este projeto meu de símia catequese,

da grande enfermidade eficaz panaceia,

se não me granjear alguma diocese,

talvez chegue a fazer-me herói de uma epopeia.

E tu, caro leitor, que me hás acompanhado

nas viagens, em tudo, e nesta tentativa,

certamente hás de ter um ótimo punhado

daquilo que se dá no bico à patativa.

É pouco, mas, enfim, já é alguma cousa,

e, para teres mais, é bom que te precates;

comigo não serás qualquer Manoel de Souza,

de um Eneias, como eu, serás fiel Achates.

Não é cevada, não, o prêmio que prometo;

esta é só para mim, se tu, posteridade,

te dignares de ler este meu poemeto,

que é digno da atual e justa obscuridade.

Eu necessito de auxílio

dos grandes capitalistas,

para ser executado

um plano de largas vistas,

e que é todo a bem do Estado.

Qualquer homem de comércio,

que as riquezas amontoa,

veja o cálculo que traço,

e verá que não destoa

de meu raciocínio crasso.

Sem expor a exame prévio

desta moeda o reverso,

compre de ações muitas grosas

bem certo de que meu verso

excede à melhor das prosas.

Cada um jogue as legítimas

que lhe estão sob tutela,

arrisque da esposa o dote,

e, sem medo nem cautela,

vá com muita sede ao pote.

As empresas hiperbólicas

são de lucros fabulosos,

e, sem grandes segurança

para os menos cautelosos,

valem por pingues heranças.

Os estatutos discutem-se,

e produz o bate-barba

este efeito comezinho:

não se pôr de molho a barba

vendo arder a do vizinho.

Todos querem grande número

de ações da empresa moderna,

e a sebosa papelada

com cuidado se encaderna

à força de sovelada.

Sustenta a imprensa diária,

sempre honesta e independente,

a ideia com energia,

e, em vez de cravar-lhe o dente,

só lhe faz a apologia.

E logo essa opinião pública,

termômetro que não mente,

torna-se eco das gazetas,

e acende espontaneamente

luminárias de grisetas.

Com baforadas de espírito

(um dos produtos do engenho),

há no Rio de Janeiro

para as empresas do empenho

sempre um bom folhetineiro.

E eu. que conheço esses trânsmites

desde o Oeste até o Levante,

com emplastros de cominhos

levarei a cousa avante,

por tortuosos caminhos.

        

Se o furor das conferências

É, a falar com franqueza,

moda com que não me arrufo,

discorra sobre esta empresa

o eloquentíssimo Rufo.

Sem depender de taquígrafo,

publique-se por extenso,

e precedido de aviso,

daquele orador pretenso

o ruminado improviso.

Tomadas tais providências,

já me está bem parecendo

que hei-de vencer a demanda,

pois a ideia há-de ir crescendo

com jeito de propaganda.

E assim se corta o nó górdio

de nossa falta dTe braços,

e os ricos agricultores

dar-me-ão muitos abraços,

como ao melhor dos mentores.

E o repporter (termo exótico,

ao rewolver similhante)

por essência intrometido,

de negócio tão brilhante

há-de tirar bom partido.

Candongueiro por ofício,

se impingir gato por lebre,

fará que a diária folha,

sem que o prestígio se quebre,

boas patacas recolha.

¿E que mal faz à República

extensíssima dos tolos

que um jornal às vezes minta,

ou nos pregue alguns carolos

qualquer imprensa faminta?

Convém, sem perder tempo, dar os passos,

para que não esfrie o entusiasmo,

se é verdade que, após longos espaços,

vai a febre caindo no marasmo.

Correrei, pois, a bem da grande empresa,

a Província do Rio de Janeiro,

e venha a mim por lícita destreza

dos ricos cafeístas o dinheiro.

Se o café pensam todos que é produto

que equivale à riqueza inesgotável,

pague o bom cafeísta o seu tributo,

e me preste adjutório aproveitável.

      

Suponhamos, leitor, que estou agora

ao pé de uma Fazenda, obra de Mafra;

meu projeto acredito que não gora,

e é por ver no terreiro tanta safra.

Apesar de importuno pretendente,

vou entrar, e acharei vela de libra;

nem indago se o dono assaz prudente

a receita e as despesas equilibra.

Estupefato encontro o maior luxo,

e cousas que não são farandulagens;

grandezas que, se eu fora mais perluxo,

provara que não vi n’outras paragens.

Deixo o pajem, vou só, sem mais nem menos,

ao portão me recebe um belo moço,

o qual depois com modos muito amenos

me convida a segui-lo para o almoço.

Não te oculto que trouxe algumas cartas,

abonando-me ao dono desta casa;

de lisonjas, que encerram, são tão fartas

que não posso deixar de fazer vaza.

Uma, sem ironia, me chamava

 — O nosso brasileiro Tolentino

e eu, vendo que meu tino se estimava,

arrisquei-me a passar por tolo em tino.

Fiz que esta fosse logo e logo entregue

para assim ser mais fácil minha entrada,

e este meio é bem justo que se empregue,

pois a carta em sossego é soletrada.

Leitor, estou perante o senhorio,

e, feitos os devidos cumprimentos,

meu semblante se alimpa do ar sombrio,

ao cheiro da vianda e condimentos.

Cada qual, dando mostras de apetite,

vai tomando o lugar que lhe compete,

depois que esse usual, cortês convite,

ao hóspede acanhado se repete.

Ocupa o Fazendeiro a cabeceira,

ficando à destra asmática matrona,

que, para ter alívio da canseira,

não dispensa a mais cômoda poltrona.

Colocam-se daí, do mesmo lado,

Fifina, Mariquinhas e Lolota,

que entrou a lambiscar queijo ralado,

e almôndegas em forma de pelota.

Eu fiquei assentado à mão esquerda,

E lá muito distante, e bem no topo,

assentou-se, evitando maior perda,

a efígie sem o espírito de Esopo.

Constou-me que o raquítico estafermo

inda era irmão germano da Senhora!

Foi rico, mas agora assinou termo

de entregar seus bens todos à penhora.

Sentados não passávamos de sete,

e esta conta é tão fácil e tão clara,

que a luz de azeite ou luz de espermacete

por ser aqui supérflua, se apagara.

Pois, leitor, eu te o digo com firmeza:

sem falar nos perus, nem nas leitoas,

o alimento que estava sobre a mesa

fartaria alguns centos de pessoas!

Fazer a descrição minuciosa

das dúzias e mais dúzias de bons pratos

é tarefa difícil e ociosa,

e eu não quero à cabeça hoje dar tratos.

Se ocupas em tal mesa um dos lugares,

a trabalhar de queixo não te mates;

pode fartar-te assaz, sem mastigares,

o fortum das cebolas e tomates.

Por não destituí-las do interesse,

das palavras que ouvi não direi nada;

a fala desta gente, ao que parece,

no aticismo está mais do que abonada.

Ainda a refeição mal começara

e eis que um anúncio traz grande alvoroço

o vizinho Abrahão e Dona Sara

e quatro filhas chegam sem almoço.

Rompe assim Dona Sara: enfim viemos,

e chegamos a muito boas horas:

esta visita há muito que devemos,

mas porém sempre somos bem caiporas!

Hoje manca uma besta da caleça,

amanhã cai Chiquinho com sarampos,

depois, quando esperávamos o Lessa,

eis que nos chega um hóspede de Campos.

E assim se passa o tempo, sem ao menos

cumprirmos os deveres mais forçosos,

não falando na récua dos somenos,

não cumpridos, por sermos preguiçosos.

E antes que os outros rissem, a oradora

foi quem riu, e seu riso é prova dada

de estar na convicção consoladora

de trazer a lição bem estudada.

Retribuindo alegre os cumprimentos,

recebe o Fazendeiro os visitantes,

pedindo-lhes que tomem seus assentos,

cedendo a fala ao bucho por instantes.

Entretanto eu notava que entre as moças

havia o comum gênero de trocas,

não de frases, que aliás são tão insossas,

senão de pantomímicas beijocas.

Talvez por ser eu padre ou por ser pobre,

não me enxergou Abrahão nem Dona Sara;

um finório judeu ali se encobre,

mas, unido à mulher, não me embaçara.

Logo que os recém-vindos se assentaram

(faz-me lembrar as parentas de Dario),

muitos gritos de horror se levantaram

da parte do mimoso mulherio!

O que é? O que não é? Os machos dizem,

e as fêmeas, cada vez mais assustadas,

respondem, mas depois que se maldizem:

estão treze pessoas assentadas!

Que esta crença ridícula é da roça

não me digas, leitor, pois tenho a opor-te

que tal superstição não há quem possa

destruir nas famílias lá da Corte.

Levante-se um, haja um que se levante!

Era assim que as mulheres reclamavam;

nem deixava o conflito de ir avante,

nem os sustos femíneos se acalmavam.

Estive por um triz a levantar-me,

e a tal resolução me abalançava,

porque me pareceu indigitar-me

Mariquinhas no olhar que me lançava.

Mas depois refleti que é com o dedo

que se indigita, e não com qualquer olho,

e assim caindo em mim daquele medo,

em vez de levantar-me, até me encolho.

Foi então que a mulher do Fazendeiro,

movendo o guardanapo como abano,

diz com amor fraterno verdadeiro:

é preciso um sair, e saia o mano.

 

CANTO SEXTO

Retirou-se cabisbaixo

o irmão da dona da casa,

e, se o não fizesse, o facho

da discórdia tudo abrasa.

Ficamos doze, e por isso

já não há mais reboliço.

Eu tornei-me pensativo

pelo incidente grutesco,

e achei dobrado motivo

na pobreza e parentesco,

inda mais por ver aceito

ridículo preconceito.

Porém toca a encher a pança

com a iguaria mais fina,

e a queixada não descansa

da lambareira Fifina,

que, se os assados destroça,

cada vez fica mais grossa.

Toda a moça comiloa,

quando faz cara de azia,

de nobre passa à viloa,

e até perde a poesia.

Tenha, pois, grande cautela,

que isso não é bagatela.

Nem coma à vista de gente,

ou na roça ou na cidade,

como quem faz cousa urgente,

mostrando voracidade.

E veja lá que não caia

no vestido a siricaia.

Nada direi dos bons ditos,

e muito se conversara;

quando pediram palitos,

então é que Dona Sara,

não sei com que pensamento,

me dirige um cumprimento.

Se acaso teve a judia

uma ideia associada,

eu, mais dia menos dia,

lhe pespego uma asseada.

¿Mas para que malquerença

com gente daquela crença?

Entretanto as quatro filhas

eu vi que já não trinchavam

e, fartas de lombo e ervilhas,

não falavam, cochichavam.

Uma delas, Maricota,

de mim fazia chacota.

Outra, que, por ser travessa,

entornou a farinheira,

não era ao debique avessa,

senão boa companheira.

Embirrei com a catita,

espritada Chiquitita.

Outra fala pelas ventas,

com voz que parece gaita;

excede às mais turbulentas,

é mesmo uma sirigaita.

E noto que se arrebita,

ou dá chascos a Bibita.

Iaiá, quando não profere

um ditinho meio chocho,

dá direito a que se espero

enjoadinho muxoxo.

Por qualquer cousa se espinha

esta quarta cachopinha.

O pai Abrão não falava,

ou, se falava, era pouco;

pois, enquanto as mãos não lava,

parece de ouvido mouco.

¿Quem sabe se os desta raça

serão surdos por pirraça?

E as três moças da Fazenda,

que deviam ser discretas,

também entram na contenda,

dizendo cousas secretas.

E eu, com a pulga na orelha,

estou de face vermelha.

Ora não temos mais nada,

diz o rico Fazendeiro,

e dispersa-se a manada,

ou rebanho verdadeiro.

E até eu, nem cause espanto,

sem dar graças me levanto!

Dir-me-ás que assim praticam,

deixando o cocho, os cavalos!

Costumes não se criticam,

e eu sempre quero observá-los.

“Cada terra com seu uso,

cada roca com seu fuso.”

Caro leitor, se a mente me não mente,

tu com razão esperas que eu te diga

o nome do senhor que atualmente

me faz o obséquio, enchendo-me a barriga.

¿E como te direi o que eu ignoro?

De pia ou de família cede o nome

a um estranho título sonoro,

que a peso de ouro inda há muito quem tome.

Mas, visto que não és bisbilhoteiro,

como alguém que pergunta e mexerica,

declaro-te que um pobre sapateiro

hoje é senhor Barão da Tiririca.

Excelência não há quem lhe recuse,

e igualmente à senhora Baronesa,

que, por mais que se esquive e que se escuse,

bem sabe que o dever não é fineza.

¿E que mal vem de tal metamorfose?

¿Se é justo que o dinheiro desperdice,

não será de justiça que ele goze

das vantagens da ilustre parvoíce?

Não devo falar mal de quem me trata,

como este titular tão poderoso;

boa louça, talher de boa prata,

e garrafas de vinho generoso.

Do que não gosto, e até tenho receio,

é de ver uns barões alambazados,

que, sem se distinguirem pelo asseio,

só dizem que têm tantos mil cruzados.

Um destes, por somítico, se atreve

a viajar sem prático e sem pajem,

conduzindo-lhe a mala um almocreve,

e só neste cifrando-se a equipagem.

Um outro despendeu muito dinheiro,

pediu, pediu, e enfim foi despachado;

continua a morar no galinheiro,

come couves, e sempre anda empachado.

¿Mas isto. leitor, que nos importa?

Sigamos o caminho que é mais reto;

não quero ver a minha ideia morta,

estando a discutir estranho objeto.

Depois de almoço opíparo

convém, conforme creio,

moderado exercício e algum recreio,

que ajude a digestão.

Encaminhei-me ao pátio,

e um carro, que chegara,

muitos volumes já descarregara,

que ensacados estão.

Desejei ver que gêneros

eram vindos da praça,

e esperava, leitor, achar-lhes graça,

mas a razão se opôs.

Vem milho de outra América,

batatas de Inglaterra,

vem o feijão não sei lá de que terra,

e vem também o arroz.

Essa cultura esquece-se,

recorre-se ao mercado.

E o fazendeiro, vendo-se arriscado,

conserva sempre a fé.

Embora falte a enxúndia,

falte a carne ou farinha,

compre-se tudo caro na marinha,

porém haja café.

Deus nos livre de assédio,

ou bloqueio estrangeiro,

mas vejo que seria lisonjeiro

para algum lavrador.

Soberbo da opulência,

só do café tem zelo,

e, entregando o mais tudo ao desmazelo,

de tudo é comprador.

Meu nariz filantrópico

já fareja o alimento

de bichoso feijão sem condimento,

e de insípido angu.

É prato de substância,

manjar quotidiano,

que mais de um senhor dá, por ser humano

ao preto quase nu.

Evitam-se as esquirolas

de carne muxibenta,

pois quem a come às vezes arrebenta,

e às vezes engasgou.

E fazem este cálculo,

do qual me não agravo,

que em falta de a comer não é que o escravo

a velho não chegou!

Se o cativo famélico

já vai perdendo o viço,

haja serão, redobre-se o serviço,

que é meio salutar.

E não se perde, lucra-se;

pois não é a papança

que dá vigor aos braços, nem a pança

os pudera aumentar.

E eu, passeando,

me distraía,

e eis que, soando,

o meio dia

faz-me voltar à casa, pois é quando

tomo café.

E na Fazenda

lá da venda

ao menos este gênero não é.

Creio em verdade

que ótima seja

a qualidade

de uma bandeja

que as chávenas traz hoje em quantidade,

tudo primor!

Da prata e louça

eu falo, e me ouça

aquele que estiver de bom humor.

Não digo tanto

disso que bebo,

e sem espanto

eu o recebo;

mas figas não darei, contra o quebranto,

a quem o fez.

Oh! que bebida

desenxabida,

dirias tu, se fosses descortês!

Não é regalo

para o Mineiro

café tão ralo,

e o cafeteiro,

que não cora de assim apresentá-lo,

no oficio é mau.

E eis o ditado

Verificado

do espeto de ferreiro ser de pau.

Veio-me agora

viva saudade

de quem lá

mora numa cidade

onde o melhor café a tempo e hora

nunca perdi.

Oh! quem me dera,

se aqui o houvera,

o café que se bebe em Baependi!

Ao correr do dia rápido

chegam pessoas amigas

e conversa-se a fartar,

porque eram todos agrícolas,

a respeito de formigas,

e do meio de as matar.

Discutindo o privilégio,

cada qual dá-lhe uma sova,

e um, não sei se com razão,

ou por não engolir pílulas,

diz que não é cousa nova

o sulfureto em questão.

A opinião é unânime

contrária ao monopolista,

que trata de enriquecer;

e, endereçado à Sibéria

o protesto n’uma lista

consta que há-de aparecer.

Fundado em boa gramática

opinei que formicida

quem o diz, diz muito mal,

e que, na regra etimológica,

deve ser formicicida

o que mata esse animal.

Aplaudiram com estrépito

de zombaria a lembrança,

que talvez não se entendeu,

e eu, supondo ter espírito,

fico, apesar da mestrança,

com a cara de sandeu!

E sem me temer de intérprete,

que meu tão justo despeito

explicasse a cada um,

qual o Romano entre os bárbaros,

digo do íntimo do peito;

Barbarus hic ego sum.

Aqui Abrão aproxima-se-me,

para dizer-me ao ouvido:

isso não é tanto assim!

E ficou fora de dúvida,

qual problema resolvido,

que o judeu sabe Latim.

 

CANTO SÉTIMO

O pai quando tem filhas, prevarica,

se lhes não manda música ensinar,

e filha do Barão da Tiririca

e cumprido dever pode abonar.

Encerre-se o debate da saúva,

Diz Dona Sara, e, pois que ainda avós

não somos, as meninas chamem chuva,

com os primores de teclas ou de voz.

E Fifina e Lolota executaram

ao piano um rondó a quatro mãos,

e meus pobres ouvidos escutaram

uns acordes que nada têm de irmãos.

Por toda a roda foram aplaudidas

com palmas e arrastados rapapés,

e a quatro mãos encheram as medidas,

revelando progresso a quatro pés.

Depois a menos jovem das judias,

no intuito de cantar o Paissandu,

combina tão estranhas melodias,

que ao hino dá caráter de lundu.

Sem embargo de sua tenra idade,

Mariquinhas também não fica atrás;

engrola, engasga, e a mãe, com gravidade

batendo-lhe nas costas, diz: São Brás!

Alguns trechos das operas de Verdi,

sentindo não ser surdo, ainda ouvi,

e um pintor caricato é quem mais perde,

por não ver as caretas que hoje vi.

Uma moça da roça, que ao teatro

já foi, e tem ouvido o Trovador,

não aprende a cantar, grita por quatro

ou mia, como gato miador.

Cessou enfim a música,

e as belas raparigas

vão se mostrar amigas

no pomar e jardim.

Lá não há cerimônias,

é secreto o passeio,

e eu aqui só receio

que se lembrem de mim.

O apetite renova-se-lhes,

após certas carreiras

à sombra das parreiras,

amena e salutar.

E os sadios estômagos,

E ventres menos cheios,

terão novos recheios,

logo que se jantar.

Do corpóreo exercício

em terreno declive

forçoso é que se prive

a idade matronal.

Tem Dona Sara o mérito

de modesta lhaneza,

e faz à Baronesa

reservado sinal.

E lá se foram rápidas,

enquanto cá na sala

escuto o que se fala

de vendas de café.

Abrahão acha os cálculos

de absoluta vantagem,

porém na corretagem

não deposita fé.

Diz ele: em comissários,

que vendem à porfia,

bem tolo é quem se fia,

meu lustre Barão.

Que, exceto meia dúzia,

os tais correspondentes

são abutres com dentes,

as contas o dirão.

Isso é que não tem dúvida!

opina um circunstante,

e nesse mesmo instante

desenrola uns papéis.

E mostra, sem retóricas,

que desde o ano atrasado

está sendo lesado

n’alguns contos de réis.

Do primeiro até o último

cada qual convencido

exclama enternecido:

desse mal me queixo eu!

E eu na estulta república

admito estes ricaços,

que nada têm de escassos,

e deixam ir o seu.

Interrompe esta prática

um negrinho que veio,

servindo de correio

de cartas e jornais.

Estes nos dão notícias

bem pouco lisonjeiras,

quer sejam estrangeiras,

quer sejam nacionais.

E só a Providência

ao mal que se avizinha

o antídoto ou mesinha

nos há-de vir trazer.

Sem olhar para o México

O Governo descansa,

crendo que tudo alcança

o indolente lazer.

Depois que o Barão leu as cartas vindas,

começou-se a leitura das gazetas,

e eu vejo as duas mães e as moças lindas

chegarem, ansiosas de ouvir petas.

Por mais inverossímil que pareça

qualquer caso que veio em qualquer folha,

vazia acha muitíssima cabeça,

que por facto verídico o recolha.

Aplaudiram deveras muita cousa

mentirosa e indecente além de insulsa,

que escrever torpemente hoje há quem ousa,

sem temor de justíssima repulsa.

Houve azáfama e riso de alegria

à vista de uma folha caricata,

que à bolsa dos papalvos dá sangria,

e a tudo quanto é santo desacata.

      

Há aí muita família infelizmente

que exige para si foros de honesta,

porém é tão estúpida ou demente,

que ignora outras cartilhas, e lê nesta.

E talvez pense um pai que uma donzela

que nestes borrões lúbricos estude

bem preservada fique da mazela,

e bem fortalecida na virtude.

Cego! não vês que, assim quebrado o freio

do Evangelho, que é lei da Cristandade,

o imundo diabólico recreio

pela base solapa a sociedade!

Inda isso não é tudo! O torpe, infame

romance dessa escola realista

penetra na família, sem exame,

porque o pai não quer ser criminalista.

Ridículo basbaque complacente,

um ceitil de juízo oh! quem te dera;

pois aquele que exemplos tais consente

vá indo, que a desonra lá o espera.

Caro leitor, a modéstia

retarda a iniciativa

 e o mofino acanhamento

conserva a língua cativa

no aproveitável momento.

Quase me escapa dos lábios,

procurando certo jeito,

a história dos meus macacos

mas eis que chega um sujeito,

capaz de a fazer em cacos.

Mordaz falador perpétuo,

ante o qual ninguém boqueja,

é paspalhão no que disse,

e, porque trota e manqueja,

comendador da sandice.

Fala, com toda a bazófia,

de contos de réis em ouro,

de contos de réis em prata,

e de notas do Tesouro,

e do Banco também trata.

              

Não assevero, parece-me

que os contos, contos e contos,

que o truão não deposita,

só existem sem descontos

na boca do parasita.

Refere que houvera sábado

um lansquenet na cidade,

e o Zezeca do Visconde

saiu limpo na verdade,

mas o caso hoje se esconde.

Coitado! exclama tristícula

a miúda Chiquitita,

e, conforme eu conjeturo,

o coração lhe palpita,

temendo pelo futuro.

Mas dizem, diz o malévolo,

que a bonachona da tia,

por amor do seu Zezeca,

já pediu grossa quantia,

e vai fazer hipoteca.

Narra um cento de episódios,

cada qual mais indecente,

e fala de umas batotas,

que só ele é quem pressente

que vinham dentro das botas.

Pregoa nomes e títulos

de um por um dos jogadores,

e, unindo a chalaça à chufa,

credores e devedores

confunde na lufa-lufa.

Todos e todas deleitam-se

em ouvir qualquer trapaça,

e o detrator incansável

se as más línguas ultrapassa,

nem por isso é responsável.

Conta que um Reverendíssimo

anunciou alta banca,

e um Doutor em medicina,

que em berliques o desbanca,

a filou na relancina.

Vá rezar o Breviário,

seu padreco jesuíta,

acrescenta o maldizente,

e, assoando a pituíta,

viu que eu estava presente.

Desconcertou-me a pilhéria,

confesso minha fraqueza,

inda mais quando diviso

a asmática Baronesa

asfixiando-se em riso.

Variando de matéria,

faz desabrido comento,

e analisa sem rebuço

o próximo casamento

de um rapaz, que não tem buço.

Diz ele, todo pernóstico,

que é digna de camisola

a viuvona que entrega

a mão a um rapazola,

vadio, que não se emprega.

Eu creio que tomou tábua

este audaz espalha-brasas,

e, entre esta gente poltrona,

quer agora fazer vazas

à custa de uma matrona!

Dando aplausos à catástrofe,

diz que o filho da madrasta

do Barão de Maxambomba,

pode negar a casta,

foi a exame, e levou bomba.

Que era um rapaz muito estúpido,

e tinha tinha (gafeira)

o sobrinho do Clemente,

porém foi segunda-feira

aprovado plenamente.

Que o Chico da Porciúncula,

querendo ser        deputado,

gastou na compra de votos,

e, apesar de ter gastado,

se é santo, não tem devotos.

Que os Membros do Diretório,

indigestas criaturas,

ainda obram como obravam,

e as suas candidaturas

cada, vez mais se depravam.

Que amanhã abrem falência

o Juca Salustiano,

o Antonico da Silveira,

o Silva, o Maximiano,

e o Timóteo da Oliveira.

Que, embora tanta bazófia

tenha tornado malucas

as moças da Paraíba,

o fanfarrão José Lucas

hoje está na pindaíba.

Que, há seis meses, o Veríssimo

deve três letras vencidas,

e aos credores fez promessa

de pagar tudo em torcidas,

porém não faz a remessa.

Que a filha de Dona Eulália     

o dia inteiro ficara

decotada na janela;

mas, coitadinha! tem cara

de arroz doce sem canela.

Que a coruja da Perpétua,

imitando a Dona Prisca,

além de usar de espartilho,

anda borrada (oh! que bisca!)

de vermelhão e polvilho.

Que a beata Rosa Angélica

de noite corre a cidade

com sapatos de cortiça,

e crava na humanidade

a dentadura postiça.

Que sofre de solitária

a neta da Chica Borges,

e a vovó, crendo em feitiço,

pendurou-lhe dous caborjes,

com laçada no toutiço.

Que a mulher do José Plácido,

ant’ontem saiu de casa;

como já fez nas colheitas;

mas desta vez se descasa

aquele par de galhetas.

Neste furor, sem dar tréguas

à indefensa vida alheia,

leva aos extremos o ataque,

e historietas folheia

com importuno sotaque.

E os patolas, deleitando-se,

ao bobo faziam praça,

e caía-lhes no goto

qualquer graçola sem graça,

seguida de um perdigoto.

E dest’arte o maior dos faladores

continuava pouco mais ou menos;

porém neste comenos,

derrubando uma mesa e três cadeiras,

barafusta por um dos corredores

para o íntimo da casa, indo às carreiras

com ele as raparigas, cuja idade

tudo tem a lucrar na intimidade.

 

CANTO OITAVO

¿Depois de procelosa tempestade...

porém.... o que digo eu, leitor sensato?!

Um pleonasmo sem necessidade,

do grão Camões supérfluo plagiato.

Depois... isto é... depois que felizmente

o detrator nos deixa almo repouso,

parece-me oportuno uma semente

lançar neste terreno, mas não ouso.

A presença de Abrão transtorna o plano,

e pode escangalhar o meu sistema;

judeu é financeiro, não me engano,

e por isso me ocorre este dilema:

Ou acha a ideia má, ou acha boa.

Se acha má, desabona minha ideia;

se acha boa, precede-me em pessoa,

e agarra o privilégio da Assembleia.

Pela boca morre o peixe,

se diz o rifão, e é certo,

mui perigoso é que eu deixe

a invenção em descoberto.

De usurpações não contemplo

os casos que tenho achado,

por temer que o mau exemplo

se estenda escarrapachado.

É uma rolha na boca

expediente discreto,

pois toda a cautela é pouca,

até se obter o decreto.

Se me descuido (oh desdouro!)

um, que apanhe a papelada,

mete, à custa do Tesouro,

o dente na marmelada.

E se, por triste consolo,

eu disser — sic vos non vobis,

ao Santo, dono do bolo,

diz a turba — ora pro nobis.

Agora, meu leitor, que há menos gente

na sala, eu me levanto, e, a passo firme,

cortejando de modo inteligente,

resoluto começo a despedir-me.

Eu não disse ao que vim, isso é verdade,

mas ninguém se dignou de perguntar-me,

e a carta que entreguei, creio que se há-de

re-soletrar depois de eu ausentar-me.

Oh! que triste papel que representa

Um pobre padre, rústico mineiro,

que não é carcamano, e se apresenta

na província do Rio de Janeiro!

Porque não espera a janta?

diz-me o Barão, e a Baroa

também, mas não se levanta

para honrar minha coroa.

As finezas agradeço

a esta gente ilustrada,

e, depois que os degraus desço,

já lá me vou pela estrada.

Vi com chapéu de grãs abas,

que do sol quebra os ardores,

faminto a comer goiabas

um dos treze almoçadores.

E vi que meu camarada,

que me faz vezes de pajem,

com a boca escancarada

devora a matalotagem.

Por simples esquecimento

ficara em jejum meu guia,

mas eu, cheio de alimento,

digo bem da fidalguia.

Meu leitor, se o meu tempo perdido

queres crer, o contrário provei-t’o;

pois por mim tenho muito aprendido,

que a viagem sempre é de proveito.

Quem conhece o terreno em que pisa,

da cultura a estação e o costume,

ou as águas melhor canaliza,

ou acerta na dose do estrume.

Dirás tu que em palestra na sala

não se pode estudar a lavoura!

A palestra, o ponto é começá-la,

adianta o serviço, ou estoura.

E a ciência de tais lavradores

não depende do prático estudo;

de um governo que esbanje os valores

quando há crises, espera-se tudo.

Assim é no Brasil, terra farta,

e suponho também seja em Cuba,

e isto faz-me dar pasto à lagarta

que o maior dos projetos incuba.

Em geral, na província do Rio,

é o feitor quem dirige os trabalhos,

e o senhor sob o teto sombrio

lê jornais e arregala os bugalhos.

E entretanto de assunto mudemos,

que a República infinda dos tolos,

aceitando os bolônios que demos,

exige outros, o eu devo propô-los.

Agora ao Curso Jurídico

eu vou, mas vou pelos ares,

que a terra tem seus azares

quem o disser é verídico.

Meu leitor, tem paciência,

voemos à Academia;

em São Paulo a epidemia

vem dos poços de ciência.

Sim, o saber é epidêmico,

e eu, para ver se me isento,

à vol d’oiseau apresento

somente um tipo acadêmico.

Nhonhô Chiquinho

está no Curso,

e entre os colegas

já faz discurso.

É nos debates

da Academia

ilustre lustre

que os alumia.

É literato

tão erudito,

que a História abrange

em um só dito.

De questões graves

mais de uma grosa

para as gazetas

escreve em prosa.

Nessas rabiscas

descrê de tudo,

da impiedade

fazendo estudo.

Chamam a isso

positivismo;

mas eu lhe chamo

pedantivismo.

Se à tal escola

queimam incenso,

trancam-se as portas

da do bom-senso.

Se usa sofisma

E alguém lhe objeta,

nhonhô Chiquinho

Vê gente abjeta.

À urbanidade

Não sendo preso,

sérios reparos

vota ao desprezo.

Faz bem o Chico

em não dar palha

a quem ‘stá vendo

se o atrapalha.

Dest’arte segue

o seu caminho

cândido e puro

tal qual o arminho.

Se range os dentes,

que se arreganham,

nesse rangido

as letras ganham.

Não há pantera

que não se amanse,

se a domestica

um seu romance.

Sobe ao Parnaso

da Pauliceia,

corrige a Eneida,

mais Odisseia.

Vate inspirado,

republicano,

só quer assunto

americano.

Diz-nos que temos

para poemas

nossas Lindoias,

nossas Moemas.

Por sermos bugres,

julga desdouro

falarmos língua

do Tejo e Douro.

E essa sentença,

assim tão lisa,

as belas letras

nacionaliza.

Sabe ele cousas

que só não cola

quem, como eu, seja

da antiga escola.

Mete em debuxos

os algarismos,

e n’um chichelo

os aforismos.

Um Engenheiro,

um Alopata,

na crassidade

ele os empata.

Diz que às demandas

dá descaminho

um advogado

sem pergaminho.

Supõe ser crime,

ou desaforo,

que os tais Rebouças

voguem no foro.

Em vão procura

no sacerdote

cousa que preste,

e que se adote.

Em tudo enxerga

jesuitismo,

e só é crente

no espiritismo.

Sem ler nos livros

trata de tudo,

pois de nascença

já trouxe o estudo.

Nem da verdade

aqui me aparto,

se sábio o creio

antes do parto.

O Chico, ó pasmo!

foi concebido

com áurea mancha

de omnissabido.

De oitenta idiomas

bem complicados

sabe os diversos

significados.

Mas é tão firme

no galicismo,

que, se este falha,

ainda eu cismo.

Os bons autores,

se ele os critica,

desvernacula,

desgramatiza.

Águia em coluna,

de canotilhos,

vê muito embaixo

cegos Castilhos.

Em tais alturas,

cheio do vento,

diz que o Bernardes

cheira a convento.

Que jovem útil,

e de esperanças,

se dos parentes

lhe vêm heranças!

Embora fosse

asno ou burrico,

cessava a asneira

em sendo rico.

Louvo a fortuna

que lhe tem dado

um pai visconde

sem viscondado.

Com tanto esmero

o educara,

que o Chico briga,

e expõe a cara.

Sofre no lombo

Dor da peroba,

e com azougue

toma caroba.

Por passatempo

pespega um couce,

e quem se queixa

equivocou-se.

Razão não teve

seu primo Juca,

que vai doente

para a Tijuca.

Tudo o amola,

tudo é maçada,

e até o enjoa

a carne assada.

Seus atributos

não amesquinho,

que os tem de arromba

nhonhô Chiquinho.

Se querem provas,

guardo-as comigo;

é o rapazete

da pátria amigo.

Daqui a pouco

é candidato,

e isto que afirmo,

assino e dato.

O Brasil medra,

se um só momento

entra o fedelho

no parlamento.

Que prazer, vê-lo

Deputadinho,

ou discorrendo,

ou caladinho!

Um nosso digno

representante

eu prognostico

desde esse instante.

E só anelo

seus elogios

ao grão projeto

dos meus bugios.

Por isso agora

eu não forcejo,

e espero calmo

aquele ensejo.

Papai visconde

que se amarqueze,

e o filho influa

na catequese.

Embora seja

bem pouco honrosa,

ganhe comenda,

porém da rosa.

Uma lei velha

tem consignado

que velhos entrem

para o Senado.

De ampla reforma

eu me avizinho,

e quero o Chico

senadorzinho.

Pater conscriptus

como rebuço

tenha no beiço

ponta de buço.

Se El-Rei o apanha

por conselheiro,

acha urna agulha

neste palheiro.

Se chega um dia

a ser Ministro,

no mar e em terra

não há sinistro.

A agricultura

toda se irriga,

e aos lavradores

cresce a barriga.

O Brasil fértil

brota e floresce,

e o bicho ou larva

desaparece.

Se, enfim, governa

este Messias,

oh! que fartura

de melancias!

Mal o Chiquinho

seja Francisco,

nossas algemas

reduz a cisco.

Se o têm por chefe

outros rapazes,

haverá sobras

de leis capazes.

E então o Estado,

por lisonjeiro,

fará inveja

ao estrangeiro.

E sem que o povo

trabalhe e canse,

será o Tesouro

livre de alcance.

Basta, basta; eu me retiro

contigo, leitor devoto,

e lá para o Norte atiro

de simpatia este voto:

Se bebo os ventos, que fendo,

pela sábia Pauliceia,

teu melindre não ofendo,

ó linda Pernambuceia.

Se refinaram os Gregos

em sete sábios um Bias,

 tu, refugando labregos,

tens apurado um Tobias.

 

CANTO NONO

Houvesse em Português leve pirríquio,

ou houvesse o pesado pé molosso,

nem assim um poeta que é mineiro

cantara dignamente este colosso,

empório e Corte e Rio de Janeiro.

Aqui fez domicílio a enciclopédia,

e, sendo esta atmosfera assaz calmosa,

força maior arreda-te do estudo,

ao passo que a cidade, tão famosa,

dá palha a muito sábio topetudo.

De ano em ano um discurso necrológico,

infalível tarefa do Instituto,

imortaliza mortos personagens,

aos quais hoje, em virtude do estatuto,

eloquente orador presta homenagens.

Um, verbi gratia, tinha tal modéstia,

que só depois do infausto passamento

sem saber se decanta ou se assobia;

pois ele (que bonito pensamento!)

sabia e não sabia que sabia!

Discorre um paroleiro em conferência,

que se diz popular, e o povo ausente

completamente ignora que se trata

de um futuro melhor do que o presente,

com palavrões maciços de ouro e prata.

Purgado de conceitos teológicos

sempre qualquer assunto é bem cabido,

e, discutindo a nossa nobre origem,

sisudos oradores é sabido

que em netos de macacos nos erigem.

¿Quem, pois, dará o epíteto de asnático

ao projeto que tenho formulado,

quando a ideia já está tão bem aceita,

e, examinada a cousa por um lado,

já tem por si o apoio de uma seita?

A gorda coleção dos filosóficos

discursalhões do Largo do Machado

depara-me um robusto documento,

e, porque felizmente o tenho achado,

meio caminho andei no empreendimento.

Não tenha o moralista a petulância

(que é mui própria de todo o moralista)

de acusar-me de asneira e de cinismo,

se aceito e ponho cá na minha lista

o orador que nos prega o Darwinismo.

Se mostrou vocação para a República,

se lhe pode prestar grande serviço,

doutrine alguns macacos este agente,

nem se rejeite aí qualquer noviço,

que nos venha trazer seu contingente.

Desdenhando os bípedes indígenas,

selvagens habitantes das florestas,

pois que isso muito bem lhe ficaria,

dome quanto macaco anda por estas,

e faça do Brasil Macacaria.

Mas fique sempre salvo o privilégio,

que tenho de pedir pela lembrança,

e deste bom princípio enfim se parta:

que o melhor me pertença na cobrança,

e, se houver qualquer sobra, se reparta.

A evocação dos espíritos

ouvi dizer que se ensina,

e muito honra à medicina,

se é de medico a invenção.

Sardanápalo, Diógenes,

Pirro, Dario, Arquimedes,

Dido, Eneias, Ganimedes

chamados à fala são.

¿Sobretudo para a Historia

de que valor não seria

uma tal feiticeiria,

se o feiticeiro quiser?

Escrevem-se novas páginas,

a fantasia é quem dita,

e um parvoalho acredita

em tudo o que se disser.

Se escuta voz de além-túmulo,

a seita não é perversa;

ao demônio, que os conversa,

dão ouvidos que eu não dou.

Algum adepto fraquíssimo,

prevenindo seu destino,

exibiu provas de tino,

só porque se suicidou.

Destas ou daquelas práticas,

que d’estarte se propagam,

os vestígios não se apagam,

e assim se governará.

Nosso Governo solícito

acha o recreio inocente,

de mui bom grado o consente,

e sempre o consentirá.

Nem eu desconheço o préstimo

do medonho espiritismo,

para aumentar o algarismo

da catequese em questão.

Revolvendo as priscas épocas,

pode informar o diabo

sobre o processo do rabo,

cortado ao macaco então.

Meu leitor, este assunto antipático

não é justo que mais discutamos,

e na Corte do Rio, onde estamos,

procuremos assunto melhor.

Nos colégios o aluno prepara-se,

e, no dia em que à banca se chame,

assentado e à espera do exame,

cada vez o seu susto é maior.

Não falemos das tais matemáticas,

do Latim nem do outros estudos,

que os rapazes que são menos rudos

recordaram por mais de uma vez.

Eu só quero falar de um fenômeno

estupendo, que tenho notado,

quando a imprensa nos dá o resultado

dos exames do bom português.

Diariamente examinam-se

pessoas de ambos os sexos,

que os complexos e incomplexos

sabendo, sabem de mais.

E depois feita a estatística,

os que à leitura se aplicam

têm visto que se publicam

as notas pelos jornais.

Dia dous. Dona Sinfrônia,

Dona Mariana Francisca,

Dona Euzébia, Dona Prisca,

Dona Isabel — Distinção.

Modesto Antônio Simplício,

Gil Vaz de Sá — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

        

Dia três. Dona Apolônia,

Dona Josefa Ermelinda,

Dona Angélica Florinda,

Dona Rosa — Distinção.

João de Barros, Tito Lívio,

Júlio César — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Dia quatro. Dona Eugênia,

Dona Ana Antônia Pereira,

Dona Rita da Silveira,

Dona Fausta — Distinção.

Félix José Felicíssimo,

Felício Braz — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Dia cinco. Dona Eulália,

Dona Quitéria Paulina,

Dona Romana Sabina,

Dona Urraca — Distinção.

Manoel Mendes Enxúndia,

José Roque — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Dia seis. Dona Escolástica,

Dona Maria Herculana,

Dona América Romana,

Dona Paula — Distinção.

José Bento, João Crisóstomo,

João da Costa — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Dia sete. Dona Cândida,

Dona Branca, Dona Cora,

Dona Flávia, Dona Flora,

Dona Lúcia — Distinção.

Matusalém Velho Júnior,

Paulo Afonso — Simplesmente.

Retirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Dia nove. Dona Bárbara,

Dona Ismênia, Dona Benta,

 Dona Cecília Pimenta,

Dona Eudóxia — Distinção.

Ambrósio de São Jerônimo,

Gil Vicente — Simplesmente.

Ketirou-se um por doente,

e teve um reprovação.

Esta cantiga monótona,

ou de nula melodia,

é solfa de cada dia,

com letrinha de esmeril.

Sendo a instrução cousa séria,

os bons examinadores

dão votos animadores

ao talento mulheril.

E passa a ser língua fêmea

a portuguesa, que se acha

com foros de língua macha,

contra a razão natural.

E raparigas filólogas,

letradas de toucadouro,

bordarão de frases d’ouro

o discurso inaugural.

E a, catequese utiliza-se

da descoberta estimável

a favor do sexo amável,

que se deve emancipar.

Se para estudos vernáculos

os machos são manicacas,

aos macacos as macacas

prefiro sem usurpar.

Honrando a boa gramática,

um governo de bom pulso

remunere, dando impulso

aos delegados fiéis.

Da régia munificência

entrem estes no rateio,

e sejam, por galanteio,

graduados furriéis.

Se queres ver a grande ociosidade,

leitor amigo; se és observador,

não andes pelo resto da cidade,

demora-te na rua do Ouvidor.

Passa e repassa ali o Deputado,

que recebe o salário da Nação;

na chamada o seu nome é descontado,

e por isso não houve hoje sessão.

Sim, desconta-se o nome na chamada,

se o fósforo não entra no entremez;

porém a generosa Pátria amada

não desconta o subsídio, e paga o mês!

Conhecido de alguns representantes

desta feliz Nação do áureo Brasil,

supus que eles me ouvissem por instantes,

mas foi atrevimento de imbecil.

Chegando-me aos políticos atores,

meu fito era seus ânimos sondar;

e os bacharéis (que todos são doutores!)

atenção não se dignam de me dar.

E daninhos carunchos ou gorgulhos,

que este país reduzem todo a pó,

enfunados de estúpidos orgulhos

desprezam-me e... ao Baião de Caiapó!

De muitos tive cartas suplicantes,

em tempo ou tempestade de eleições;

mas hoje, que de leis são fabricantes,

no encontro desconhecem-me as feições.

E eu cá tenho o prazer de conhecê-los,

e, pela nova lei nato eleitor,

darei meu voto, além de gastar selos,

a favor de qualquer mais impostor.

A mal não lhes devemos levar isto

de cada qual querer ganhar o pão,

nem ‘stamos mais no tempo de Evaristo,

que ainda, usava calças de alçapão.

Disputavam assaz fogosamente,

e, conforme bem pude ajuizar,

era esse entusiasmo veemente

pelas cenas obscenas do Alcazar.

E o lucro das palestras esquisitas,

se o houver, será só do Castelões,

pois alguns patriotas parasitas

lá lhe vão, farejando os pastelões.

E a catequese

perdeu agora,

em que lhe pese,

um bom ensejo.

Já não gracejo,

e vou-me embora,

porque é inútil

com gente fútil

querer contar.

E se não conto,

como supondes,

vou para o ponto

ali dos bonds,

onde estudantes

menos pedantes

se vão postar.

Eis-me agora envolvido entre esses pândegos,

rapazes, cada qual o mais traquinas,

que, agrupados assim nestas esquinas,

ruminam os bagaços da lição.

A lei alforriou os acadêmicos,

proibindo aos bedéis marcarem pontos,

e os alunos, isentos de descontos,

corrigem-se, e vadios já não são.

¿Prestando-lhes os pais, com sacrifício

e lesão dos irmãos, boas mesadas,

se; andarem as lições mais atrasadas,

que culpa o ensino livre pode ter?

Sendo toda a tendência hoje libérrima

 cortado o nó do dogma antes de tudo,

ninguém duvidará que sempre o estudo

se possa desatado assim manter.

Caro leitor, aos jovens escolásticos

eu quase comunico o meu projeto,

mas a tempo reflito que o objeto

em segredo para eles deve estar.

Fazendo propaganda por pilhéria,

tentariam cortar o pelo e o rabo

aos monos do País, porém ao cabo

teriam muito ainda que cortar.

Seguindo a cada fim novo princípio,

sem o empenho jamais ter acabado,

veríamos pelado ou desrabado

muito duque, barão, conde ou marquês.

Melhor é que os que estudam para médicos

vão ser especialista alveitares,

descascando animais parlamentares,

sem dó do puxavante ou da torquês.

Agora, leitor, a indústria

vejamos nesta cidade,

onde a ativa edilidade

de um Argos faz um fiscal.

E vigilante polícia

emprega contra os palitos,

que são armas de delitos,

medidas de pedra e cal.

E sábia junta higiênica,

zelando nossas entranhas,

às confeições mais estranhas

dá virtude estomacal.

E as drogas dos farmacêuticos,

de efeito dúbio ou sinistro,

por si têm sempre um Ministro

deste Império Macacal.

Portugal nos mandava seu Lisboa,

Portugal nos mandava seu Figueira,

e a pesca das patacas era boa,

porém hoje tirou-se-lhe a melgueira.

Na hipótese de que lhes dê conforto,

o fluminense e o rústico mineiro

beberricam o bom vinho do Porto,

fabricado no Rio de Janeiro.

E só Deus sabe quanto está crescido

o número dos órfãos e viúvas,

desde quando aí tem aparecido

o vinho que não é de sumo de uvas.

A indústria, que vai sendo tolerada,

muito embora produza até gangrena,

em relação aos lucros comparada,

não se condene, só porque envenena.

O fósforo também é venenoso,

mas imensa é a sua utilidade;

nem à polícia fora mui penoso

vedar a fosforal vulgaridade.

Se o fósforo, conforme eu cá adivinho,

há quem compre, sem ser para comê-lo,

o veneno com rótulo de vinho

o homem compre, sem ser para bebê-lo.

E, visto que um Governo patriota

os hábeis fabricantes não rechaça,

não sei se dê razão a quem nos bota

em sua mesa um frasco de cachaça.

Isto digo, porque terás notado

que gente nobre já não se arrebita

quando ao jantar alguém lhe tem botado

um cálix da patrícia gerebita.

Constantemente anuncia-se

a visita de um Ministro

a oficinas bem modestas

para exames ou registro

das diversas partes destas.

E logo depois publica-se

que, sendo tudo patente,

e achado bom e perfeito,

ele saiu mui contente,

e era justo com efeito.

¿Sem levantar a vista à mais alta eminência,

eu quisera saber se um Ministro de Estado,

sincero patriota, amigo deste povo,

e filho do Brasil, já terá visitado

essa Lisboa ou Porto aqui no mundo novo?!

Ousando eu perguntar, a resposta me dão:

Com isso nada tem

um povo cidadão,

que faz revolução por causa de um vintém!!

 

CANTO DÉCIMO

Dizem, mas creio ser grande injustiça,

que na Corte não há religião,

e por isso o desejo se me atiça,

de ver elucidada esta questão.

Atento observo, estudo e verifico

a hipérbole daquilo que se diz,

e devoções, que apenas qualifico,

de mestre, que fui, tornam-me aprendiz.

Às oito da manhã entro na Igreja,

fazendo magno esforço para entrar;

pois tanta multidão aí negreja,

que um espaço é difícil de encontrar.

Verdade é que no mais solene e grave

a mor parte conserva-se de pé,

e alguém, sem lhe importar que Deus se agrave,

suja o templo de escarros de rapé.

Não sei se se ora, sei que se discute,

e é boa a ocasião de discutir;

nem faltará devoto que o escute,

se se quer distrair ou divertir.

Falecera a Marquesa de Agua-Choca,

e sete dias faz que se enterrou,

constando que na cura da bichoca

o médico assistente foi que errou.

É sabido que logo que falece

uma pessoa de alta distinção,

desvantajosa ideia prevalece

sobre o acerto da médica função.

E a lealdade às vezes de um colega,

às más informações dando quartel,

como causa da morte então alega

a falta de um purgante ou de um cristel.

Não tem nada de inerte ou de remissa

a vil maledicência, e eis o rumor

que turba o sacrifício, ou Santa Missa,

lembrança do assombroso puro amor.

Cada qual ao viúvo estende os braços,

depois que o celebrante terminou,

e o mísero, apertado entre os abraços,

a mente atribulada serenou.

Eu descubro a razão de tais afagos:

perdeu mulher um homem do poder,

e, enquanto ainda houver empregos vagos,

não se acuse ninguém de os pretender.

Não foi só o católico romano

que hoje veio ouvir Missa nesse altar,

o livre pensador, turco ou germano,

achou conveniência em não faltar.

Palpitou-me apostar que se tivera

(e agora meto aqui minha colher)

falecido o marido, não houvera

tais obséquios aos filhos ou mulher.

      

Quase fiquei paralitico,

quando a Missa começara,

ao ver entrar Dona Sara,

acompanhada de Abrão.

Há judeus entre católicos,

e talvez, por ousadia,

Missa de sétimo dia

ouça quem lê no Alcorão!

Passado esse terror pânico,

que me abria uma voragem,

revesti-me de coragem,

para encarar o judeu.

Notei-lhe um risinho irônico,

e, segundo me parece,

é de mim que ele escarnece,

porém pouco se me deu.

Bem o entendi! Se da Bíblia

sabe o Velho Testamento,

por novo legislamento

já se supõe Senador.

Porém não sendo apostólico,

não lhe aproveita a reforma;

pois só cristão de outra norma

admite o reformador.

Que digo eu! A Pátria salva-se,

e goza de mil bonanças,

dirigindo-lhe as finanças

este algoz do bom Jesus.

Se o Governo é da matéria,

o demônio que o atice,

e arrede-se a beatice

do Império da Santa Cruz.

A Imperial livre América

é terreal paraíso,

e, só faltando o juízo,

tudo o que bom aí há.

Na variedade e abundância

campeando entre as primeiras,

minha terra tem palmeiras,

onde canta o sabiá.

O Brasil é fertilíssimo

de sapoti, de mangaba,

de angá, de jabuticaba,

de abacaxi, de ananás.

Tem Hospício e duas Câmaras,

e conta algum Deputado

que se inculca, e é reputado

aluno de satanás.

No chorrilho de sufrágios,

quando a cabala se trama,

ao candidato o programa

dê triunfo na eleição.

Mas quem rende culto a Lúcifer

antes vá tomar fortuna,

e ocasião oportuna

é a noite de São João.

Entre heróis desta República,

número que é infinito,

com pedestal de granito

tenha uma estátua o orador.

E, sobranceiro ao descrédito,

alcance, pelo que disse,

o diploma de sandice,

não de livre pensador.

Se crês, leitor, que sou crédulo

de ter pena ou recompensa

quem livremente não pensa,

injustiça me farás.

Arroga-se o vão filósofo

bonito predicamento,

não é crime o pensamento,

criminoso é o linguaraz.

Triste assembleia confunde-se

com qualquer casa de orates,

se blasfemos disparates

tolerados aí são.

Quando não tem freio a língua,

e os palradores disparam,

os tropeções se preparam,

e ai das ventas da nação!

Apesar disso a estatística

de macacos educados

dará ótimos bocados,

e a lavoura há-de medrar.

Do Senado o palanfrório

minha empresa não alua,

até que, habitando a Lua,

eu não ouça um cão ladrar.

Alcançando eu privilégio,

quem for abolicionista

há do ser grande acionista,

e arriscar seu capital.

E meu plano filantrópico,

desenhado a largos traços,

suprindo a falta de braços,

fará meu nome imortal.

Cafeístas milionários,

senhores de seus escravos,

oferecendo-me cravos,

saber-me-ão agradecer.

Sem gente da costa d’África,

lutando eles contra azares,

há-de, apesar dos pesares,

o cafezal florescer.

Em vez de milho e de abóboras,

e raízes feculentas,

as bananas suculentas

cultivem-se desde já.

O macaco acha delícias,

digo com toda a firmeza,

se lhe dão por sobremesa

cheiroso maracujá.

Urgindo altas providências

sobre o mal que se avizinha,

eu faço alguma cousinha,

e sinto não poder mais.

E que os poderes políticos

decretem que os pátrios monos,

suprindo estranhos colonos,

prestem serviços normais.

Tirando a limpo meu cálculo,

levarei ao parlamento

um longo requerimento,

e os pauzinhos tocarei.

Mais pachorrento que sôfrego,

só no dia de São Nunca,

estendendo a mão adunca,

o privilégio obterei.

¿E quem há-de fazer que não vejamos

aquilo por que todos almejamos?

Na geral expectativa

tem grã arte a Grã-Bretanha,

e o mundo inteiro se ativa

para o parto da montanha,

ratinho de grão valor.

Documentos preciosos

vão ao Conselho de Estado,

e os Conselheiros ciosos

nos dão este resultado,

que traz cheiro de bolor:

Enquanto não se aproxima

esse dia de ventura,

uma pedra posta em cima

é a melhor cobertura,

haja frio, haja calor.

Fique, pois, meu leitor, incubada

a questão relativa aos macacos;

quando a cousa estiver acabada,

dará lucro aos sandeus, e aos velhacos.

As espécies não são tão diversas,

que as vantagens pareçam opostas,

se as matérias não são controversas,

nem perguntas não há, nem respostas.

Quanto mais quer passar por esperto,

tanto mais o papalvo é papalvo;

deve estar da sandice mais perto

o velhaco mais coxo ou mais calvo.

E é por isso que eu tive de pô-los

na República imensa, infinita;

pois a parte que têm entre os tolos

na verdade não é pequenita.

Já Bocage dissera com graça,

e a sentença parece decreto,

que nunca houve tolice mais crassa

que a do tolo querer ser discreto.

Agora estou em férias

só quanto à magna empresa,

que tem trazido presa

toda a minha atenção.

Mas que deixe a República.

se o pedem, não anuo,

e ainda continuo

a fazer coleção.

Roceiro, de província

das luzes afastada,

mais gente adiantada

supus na Corte haver.

Na Lógica e Gramática

vejo levarem baques

aqui muitos basbaques,

e admiro-me de os ver.

Explicando o fenômeno,

tristemente notável

seja ou não aceitável,

esta razão darei:

dana a cabeça e o estômago,

e torna a gente leiga

o abuso da manteiga,

conforme reparei.

A causa não é única,

no Rio não se dorme

do modo mais conforme

às horas de dormir.

E a estupidez e a tísica,

tosse seca ou pigarro,

cura-se com cigarro,

que pode consumir.

E a infinita República

será sempre opulenta,

enquanto há febre lenta,

Gamboa e Catumbi.

E parabéns aos néscios

que habitam a cidade,

comendo em quantidade

torrado mendubi.

Sistema patriótico,

que tudo centraliza,

a terra esteriliza

do fecundo sertão.

Da Corte jovens pálidos

à força de deleite.

se a Minas vão ao leite,

Já perdidos estão.

Barbacena é monótona,

nada aí se elogia,

e sofrem nostalgia,

saudosos do Alcazar.

Acompanham de mímica

alguns trechos mais ternos

de Orfeu ido aos inferno,

mas não sabem rezar.

É alto dia esplêndido,

um dorme com preguiça,

e, apenas se espreguiça,

o café se lhe traz.

Quis ir a Cangalhópolis,

e eu me pus a observá-lo;

montou ele a cavalo,

de cara para atrás.

Eu faltaria às regras da política,

se palavras negasse assaz discretas

às sociedades público-secretas,

que amam a luz e mais a escuridão.

Do dito de Herculano recordando-me

(e Herculano não foi nenhum cossaco)

deixarei de comprar nabos em saco,

apesar das fianças que me dão.

Herodes, rei estúpido,

com parvo anuimento

deu esse juramento,

que não devia dar.

E supôs tolo. crédulo,

aflito, incomodado,

que ilícito nó dado,

não se pode desdar.

E morre inocentíssimo

aquele que batiza,

precede, e profetiza

Cristo, nosso Senhor.

A cabeça decepa-se-lhe,

é trazida num prato,

e à dançarinha é grato

esse triste penhor.

Mais do que nessas épocas,

ainda em nossos dias,

há muitas Herodias,

e sempre as há-de haver.

E, enquanto houver estólidos,

se bem o conjeturo,

jurar sobre o futuro

terão como dever.

Reinando inteira dúvida

sobre escuros objetos,

ajuntem aos projetos

juramento formal.

E tinam-lhes os tímpanos,

e a vista se lhes cegue,

quando os desassossegue

já sem remédio o mal.

E a infinita República

aprove os resultados

dos tais juramentados,

se o plano não errei.

Confirme-lhes os símbolos,

aceite-lhes os votos,

considere-os devotos

de Herodes, ímpio rei.

Inumeráveis páginas da crônica

das três partes do velho continente

referem muito caso impertinente

de reis, imperadores, faraós.

Inculcava-se filho do Deus Júpiter

esse Alexandre, filho de Filipe,

e aplaudiram-lhe a troco do acepipe

a filial injúria mais atroz.

Talvez hoje por lá, além do Atlântico,

ainda se acredite sobre-humano

um qualquer Nero, péssimo Romano,

fero algoz dos estranhos e dos seus.

Parece que n’Europa, n’Ásia e n’África

mortal que empunhe o ceptro, e suba ao trono

entre escravos é mais do que patrono,

e alguns o consideram semideus.

Não nos admira, pois, que um rei da América,

que não se exclui da fraca humanidade,

escândalo causasse e novidade,

por ir destruir lá aquela fé.

Entretanto hoteleira em Lusitânia,

sem a cara lavar no Tejo ou Douro,

por Júpiter o tem, converso em ouro,

mas ouro desta terra do café.

Um poeta, finíssimo satírico,

em Português que vence o Castelhano,

conta a chistosa história do rei Lhano,

ao qual foi visitar o rei de Thul.

Espontânea homenagem rendo ao gênio,

que de primores tais a língua dota,

e vou contar também uma anedota,

que ouvi aqui na América do Sul.

Ouça-se o conto,

dê-se o desconto.

Houve urna terra cujos habitantes,

sem exceção de um só, eram papudos;

com tão feios senões, nem por instantes

enrolavam em si panos felpudos.

É que os papos aí já eram moda,

e a esta enfim a gente se acomoda.

De pescoço perfeitamente liso,

chegando um homem lá bem conformado,

por isso mesmo deu motivo ao riso

daquele pobre povo atoleimado.

Cada qual parvamente mais absorto

não cessou de observar o grande aborto.

 

EPÍLOGO

Meu constante leitor, estás no epílogo,

que é por onde o poema eu hoje acabo,

e o conceito e prestígio que ganhaste,

só porque neste afã me acompanhaste,

redimem-te de todo o menoscabo.

Em verdade eu te admiro a paciência,

visto que tens tragado tanta asneira,

e declaro-te à face do universo

que, aplaudido por ti o insosso verso,

cresce o valor da minha pepineira.

Incoerente, lógico sem lógica,

em filhas de judia (Dona Sara)

supus nomes do Novo Testamento,

e o teu perspicaz discernimento

neste ponto talvez se embaraçara.

Desculpa-me, leitor; estes equívocos

comumente produz a leviandade;

casada com Abrão, sem dar à costa,

Dona Lúcia ou Luzia não desgosta

das luzes do farol da cristandade.

Usei de raciocínio um tanto asnático,

não indaguei o nome da consorte;

fantasiando Sara, e que o marido

deveria esse nome ter querido,

esbarrei, dando cincas desta sorte.

Desaso de juízo temerário

n’um beco sem saída deu-me entrada,

porém, oh quantas vezes, leitor firme,

terás visto e verás que se confirme

posição tão estreita e desastrada!

Se, para ouvires novos ditos frívolos,

não estão as orelhas entupidas,

estas últimas páginas escrevo,

e a esperar novamente inda me atrevo

que o chorro das sandices não impidas.

Se a letra antepuserem ao espírito

da empresa que os macacos perfeiçoa,

eu prevejo o baldão que se me atira,

tal como se partisse a vil mentira

desta minha católica pessoa.

Esopo traz um diálogo

entre um lobo e um cordeiro,

este fraco, aquele forte;

terminando o carniceiro

por dar muito injusta morte

ao brutinho, que ama a paz.

¿Pois o voraz ou o lanígero

de falar era capaz?!

O Grego nessas histórias

imagina o que não houve,

e era impossível que houvesse;

porém a ninguém aprouve,

nem foi justo que aprouvesse,

dar-lhe o nome de impostor.

São figuras de retórica,

e verídico é o autor.

Com ser incrível, o apólogo

de nua e crua verdade

tem o alto merecimento

por sua moralidade,

e ameniza o pensamento

da mais severa lição.

É tão engenhoso o método,

quão real é a ilação.

Fortalecido meu crédito

com este exemplo frisante,

os macacos humanizo,

e essa empresa agonizante

deste modo galvanizo,

modo muito natural.

Dê-se a palavra ao quadrúmano,

ou seja ou não gutural.

                                           

E vou concluir alfim,

que val’ o mesmo que enfim.

Da infinita República dos tolos

eu mencionei alguns assinalados,

e, para bem visivelmente expô-los

ou de frente ou de costas ou dos lados,

cantarolei ao som de vil bandurra,

no intuito só de honrar muito caturra.

Recitando essas chochas frases juntas

na escala de sonora melopeia,

parece-me, leitor, que me perguntas

qual é o figurão desta epopeia!

Se queres um herói bem estreado,

aqui o tens; é este teu criado.

Não fiques tolamente estupefato,

ao ouvir tão estranha novidade;

sem base no direito nem no facto,

um herói que não fez heroicidade

é qual, ou muito pouco espaço dista

de nosso mais célebre estadista.

Se entre nós hoje é tudo permitido,

e o defeito como ídolo se incensa,

poema sem ação seja mantido,

que a novíssima escola dá licença,

e voga no país literatura

que os clássicos rigores não atura.

      

FIM.