Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Cartas Chilenas

Epístola a Critilo

Vejo, ó Critilo, do Chileno Chefe,

Tão bem pintada a História nos teus versos,

Que não sei decidir, qual seja a cópia,

Qual seja o original. Dentro em minha alma,

Que diversas paixões, que afetos vários

A um tempo se suscitam! Gelo, e tremo,

Umas vezes de horror, de mágoa e susto;

Outras vezes do riso apenas posso,

Resistir aos impulsos. Igualmente

Me sinto vacilar entre os combates

Da raiva, e do prazer. Mas ah! Que disse!

Eu retrato a expressão, nem me subscrevo

Ao sufrágio daquele, que assim pensa,

Alheio da Razão, que me surpreende.

Trata-se aqui da humanidade aflita,

Exige a Natureza os seus deveres;

Nem da mofa, ou do riso pode a idéia

Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos

Se propõem do teu chefe a infame História

Quem me dirá, que da estultice as obras,

Infestas à Virtude, e dirigidas

A despertar o escândalo, conseguem,

No prudente Varão mover o riso?

Eu vejo,que um Calígula se empenha

Em fazer, que de Roma ao Consulado

Se jure o seu cavalo por colega:

Vejo, que os cidadãos, e as Tropas arma

O filho de Agripina, que os transporta

Em grossos vasos sobre o Tibre, e logo

Por inimigos lhes assina os matos,

Que atacar manda com guerreiro estrondo:

Direi, que me recreia esta loucura?

Que devo rir-me, e sufocar o pranto,

Que pula nos meus olhos? Não, Critilo,

Não é esta a moção, que n’alma provo.

Por entre estes delírios insensível,

Me conduz a Razão brilhante, e sábia,

A gemer igualmente na desgraça

Dos míseros vassalos, que honrar devem

DÂ’um tirano o poder, o trono, o cetro.

Se Tália, e Melpômene nos pintam

Nos seus teatros as paixões humanas,

Ao ridículo gesto, ou ao semblante

Da cena, que o coturno me apresenta.

Eu me conformo ao interesse, quando,

Aborreço a maldade, e quando rendo

A formosa virtude os dignos votos.

Despedace Medeia os caros filhos,

Guise Atreu de seus netos as estranhas;

Eu terei sempre horror às impiedades,

Jamais da irreligião, da fé mentida,

Me hão de enganar os pérfidos rebuços,

Ou da fingida cena os vãos adornos.

Devo pois confessar, Critilo amado,

Que teus escritos de uma idade a outra

Passarão sempre de esplendor cingidos:

Que a Humanidade enfim desagravada

Das injúrias, que sofre por teu braço,

Os ferros soltará, que desafrouxa,

Tintos do fresco, gotejado sangue.

Súditos infelizes, que provastes

Os estragos da bárbara desordem,

Respirai, respirai. Ao benefício

Deveis do bom Critilo a paz suave,

Que a vossa liberdade alegre goza.

Sim, Critilo, são estes os agouros,

Que, lendo a tua história, ao Mundo faço.

De pejo, e de vergonha os Bons Monarcas,

Que pias intenções sempre alimentam,

De reger, como filhos, os seus povos,

Tocados se verão. Prudentes, sábios,

Consultarão primeiro sobre a escolha

Daqueles chefes, que a remotos climas

Determinam mandar, dele fiando

A importante porção do seu governo.

Prevenidos, que a vã, brutal soberba

Só nas obras influi destes monstros,

Pelo escrutínio da virtude, espero,

Que regulados os seus votos sejam.

De uma estéril, mortal genealogia,

Que o mérito produz de seus maiores,

Eles, amigo, argumentar não devem

Propagados talentos. A virtude

Nem sempre aos netos por herança desce.

Pode o pai ser piedoso, sábio, e justo,

Manso, afável, pacífico, prudente,

Não se segue daqui, que um ímpio filho,

Perverso, infame, díscolo, e malvado,

Não desordene de seus pais a glória.

Nem sempre as Águias d’outras Águias nascem,

Nem sempre de Leões Leões se geram:

Quantas vezes as pombas, e os cordeiros

São partos dos Leões, das Águias partos?

Para reger, ó Reis, os vossos povos,

Debalde ides buscar brasões, escudos

Entre os vossos Dinastas. Roma, Roma

As fasces, as secures, mais as outras

Imperiais insígnias só tirava

Da provada virtude. Se das Togas

Distinguia uma, e outra espécie, Atenas

É quem a todas o caráter dava.

Igualmente Civil, Jurisconsulto,

Que instruído guerreiro, era mandado

Um cidadão, que da Província as rédeas

Manejasse fiel. Daqui os Fábios,

Daqui os Cipiões, e os bons Emílios,

Os Césares daqui, que os Fastos ornam.

Que diferentes hoje os nossos grandes!

É filho do Marquês, do Conde é filho,

Vá das Índias reger o vasto Império.

Ó Deus! E que infelizes os vassalos,

Que tão longe do Trono prostitui

O vosso Império aos abortivos chefes!

Lá vai aquele, que da avara sede

É por gênio arrastado: que tesouros

Não espera ajuntar! Do alheio cofre

Se há de esgotar a aferrolhada soma.

Desgraçada Justiça! Da Igualdade

Tu não sabes o ponto: é a balança

Do interesse, que só por ti decide.

Que despachos injustos, que dispensas,

Que mercês, e que postos não se compram

Ao grave peso da selada firma!

Outro vai, que lascivo, e desenvolto,

Só da carne as paixões adora, e segue.

Honra, decoros, vós sereis despojos

Do seu bruto apetite. Em vão cansados,

Pais de família, velareis vós outros

Da vossa casa o pundonor herdado.

Ao vis ataques do atrevido orgulho,

Hão de ceder as prevenções mais fortes;

Vítimas da voraz sensualidade,

Vossas filhas serão, vossas mulheres.

Que direi do soberbo, do vaidoso,

Do colérico, e de outros vários monstros,

Que, freio algum não conhecendo, passam

A sustentar no autorizado cargo

Tudo quanto a paixão lhes dita, e manda!

Não sofre aquele, que o vassalo oculte

Os cabedais, que à sua indústria deve;

E que a seus filhos, e a seus netos possa

Deixar, morrendo, uma opulenta herança.

Um falso crime lhe figura, aonde

Esgote as forças, que levar procura

Além das frias apagadas cinzas.

Este medita, que a Nobreza ilustre

Sufocada se veja. A prisão dura,

O distante degredo é, que promete,

Da prevista vingança o fim prescrito

Ó Senhores! Ó Reis! Ó Grandes. Quanto

São para nós as vossas leis inúteis!

Mandais debalde, sem julgada culpa,

Que o vosso chefe a arbítrio seu não possa

Exterminar os réus, punir os ímpios.

É c’os Ministros de menor esfera

Que falam vossas leis: nos Chefes vossos

Somente o despotismo impera, e reina.

Gozar da sombra do copado tronco

É só livre ao que perto tem o abrigo

Dos seus ramos frondosos. Se se aparta

Da clara fonte, o passageiro prova

Turbadas águas em maior distância.

Mas ah!, Critilo meu, que eu estou vendo,

Que já chegam a ler as cartas tuas.

Estes bárbaros monstros são, cobertos

De vivo pejo, ao ver os seus delitos,

Que em tão disforme vulto hoje aparecem.

Destro pintor, em um só quadro a muitos

Soubeste descrever. Sim, que o teu Chefe

As maldades de todos compreende.

Aqui vê-se o soberbo, que pensando

Do resto dos mais homens, nada serem,

Mais que humildes insetos, só de fúrias

Nutre o vil coração, e a seus pés calca

A pobre Humanidade. Aqui se encontra

O ímpio, o libertino, que ultrajando

Tudo quanto é sagrado, tem por timbre,

Ao público mostrar, que o Santo Culto,

Que nos intima a Religião, somente

Aos pequenos obriga, e que por arte

Os conserva a ilusão no fanatismo,

Por que de obediência às leis se dobrem.

Aqui se acha o lascivo: é o vaidoso,

É o estúpido enfim, é o demente,

O que ao vivo aparece nesta empresa.

Tu, severo Catão, tu repreendes

Com teu mudo semblante a pátria Roma,

Nem seus teatros de lascívia cheios,

Sofrem teus olhos nobremente irados.

Pede o congresso de terror ferido,

Que o rígido Censor o circo deixe,

Ou que senão produza a torpe cena.

Este, ó Critilo, o precioso efeito,

Dos teus versos será, como em espelho,

Que as cores toma, e que reflete a imagem;

Os ímpios Chefes de uma igual conduta

A eles se verão, sendo arguidos

Pela face brilhante da Virtude,

Que nos defeitos de um castiga a tantos.

Lições prudentes de discreto aviso

No mesmo horror do crime, que os infama,

Teus escritos lhe deem. Sobrada usura,

É este o prêmio das fadigas tuas.

Eles dirão, voltando-se a Critilo,

Quanto devemos, ó Censor facundo,

Ao castigado metro, com que afeias

Nossos delitos, e buscar nos fazes

Da Cândida Virtude a sã doutrina.

Ilmos. e Exmos. Senhores

Apenas concebi a ideia de traduzir na nossa língua, e dar ao prelo as Cartas Chilenas, logo assentei comigo, que V.V.Exias. haviam de ser os Mecenas, a quem as dedicasse.
São V.V.Exias. aqueles, a quem os nossos Soberanos costumam fiar o governo das nossas Conquistas: são por isso aqueles, a quem se devem consagrar todos os escritos, que os podem conduzir ao fim de um acertado governo.
Dois são os meios, por que nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação; Outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes. Esta a razão, por que os teatros, instituídos para a instrução dos cidadãos, umas vezes nos representam um Herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios.
Entendo, que V.V. Ex.ias se desejaram instruir por um, e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, tem V.V. Exias. os louváveis exemplos de seus ilustres Progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário, que eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio em um Reino estranho. Feliz Reino, e felizes Grandes, que não tem em si um modelo destes!
Peço a V.V.Exias. que recebam, e protejam estas Cartas. Quando não mereçam a sua proteção pela eloquência, com que estão escritas, sempre a merecem pela sã doutrina, que respiram, e pelo louvável fim, com que talvez as escreveu o seu Autor Critilo.
Beija as mãos
De V.V. Excelências
O seu menor criado.

Prólogo

Amigo Leitor, arribou a certo porto do Brasil, onde eu vivia, um galeão, que vinha das Américas Espanholas. Nele se transportava um mancebo Cavalheiro, instruído nas humanas Letras. Não me foi dificultoso, travar com ele uma estreita amizade, e chegou a confiar-me os manuscritos, que trazia. Entre eles encontrei as Cartas Chilenas, que são um artificioso compêndio das desordens, que fez no seu governo Fanfarrão Minésio, General de Chile. Logo que li estas cartas, assentei comigo, que as devia traduzir na nossa língua, não só porque as julguei merecedoras deste obséquio, pela simplicidade de seu estilo, mas também pelo benefício, que resulta ao Público, de serem satirizadas as insolências deste Chefe, para emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas pisadas. Um Dom Quixote pôde desterrar do Mundo a loucura dos Cavaleiros andantes. Um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um Governador despótico.
Eu mudei algumas coisas, menos interessantes, para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te, que me desculpes algumas faltas, pois se és douto, hás de conhecer a suma dificuldade, que há na tradução em verso. Lê, diverte-te, e não queiras, fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão Minésio. Há muitos Fanfarrões no Mundo, e talvez que tu sejas também um deles.
[assinatura]

Quid rides? Mutato nomine, de te Fabula narratur...
Hor. Satir. 10 Vers. 69

Carta 1ª

Em que se contam os sucessos da entrada, que fez em Chile Fanfarrão Minésio

Amigo Doroteu, presado Amigo,

Abre os olhos, boceja, estende os braços,

E limpa das pestanas carregadas

O pegajoso humor que o sono ajunta.

Critilo, o teu Critilo, é quem te chama;

Ergue a cabeça da engomada fronha,

Acorda, se ouvir queres cousas raras.

Que cousas, tu dirás, que cousas, podes,

Contar, que valham tanto, quanto vale,

Dormir a noite fria em mole cama

Quando salta a saraiva nos telhados,

E quando o Sudoeste, e os outros ventos

Movem dos troncos os frondosos ramos?

É doce este descanso, não to nego:

Também, prezado Amigo, também gosto

De estar amadornado, mal ouvindo

Das águas despenhadas brando estrondo;

E vendo ao mesmo tempo as vãs quimeras,

Que então me pintam os ligeiros sonhos:

Mas, Doroteu, não sintas, que te acorde;

Não falta tempo em que do sono gozes.

Então verás Leões com pés de pato;

Verás, voarem Tigres, e Camelos;

Verás, parirem homens, e nadarem

Os roliços penedos sobre as águas.

Porém que tem, que ver, estes delírios

Cõs sucessos reais, que vou contar-te?

Acorda, Doroteu, acorda, acorda,

Critilo, o teu Critilo, é quem te chama

Levanta o corpo das macias penas,

Ouvirás, Doroteu, sucessos novos,

Estranhos casos, que jamais pintaram

Na ideia do doente, ou de quem dorme,

Aquelas febres, desvairados sonhos.

Não és tu, Doroteu, aquele mesmo,

Que pedes, que te diga, se é verdade,

O que se conta dos barbados monos,

Que à mesa trazem os fumantes pratos?

Não desejas, saber, ser há grandes peixes,

Que, abraçando o Navio com as longas,

Robustas barbatanas, o suspendem,

Inda que o vento, que da alheta sopra,

Lhes inche os soltos, desrinzados panos?

Não queres, que te informes dos costumes

Dos incultos Gentios? Não perguntas,

Se entre eles há Nações, que o beiço furam,

E outras, que matam, com piedade falsa

Os pais, que afrouxam ao poder dos anos?

Pois se queres, ouvir notícias velhas,

Dispersas por imensos alfarrábios,

Escuta a história de um moderno Chefe,

Que acaba de reger a nossa Chile,

Ilustre imitador de Sancho Pança.

E quem dissera, Amigo, que podia,

Gerar segundo Sancho a nossa Espanha!

Não cuides, Doroteu, que vou contar-te

Por verdadeira história uma novela,

Da classe das patranhas, que nos contam

Verbosos navegantes, que já deram

Ao globo deste Mundo volta inteira.

Uma velha Madrasta me persiga,

Uma mulher zelosa me atormente,

E tenha um bando de gatunos filhos,

Que um chavo não me deixem, se este Chefe

Não fez ainda mais, do que eu refiro.

Agora pois, doce Amigo, vou pintá-lo

Da sorte, que o topei a vez primeira;

Nem esta digressão motiva tédio,

Como aquelas, que são dos fins alheias:

Que o traje, mais o gesto nas pessoas,

Faz o mesmo, que fazem os letreiros,

Nas frentes enfeitadas dos livrinhos,

Que dão, do que eles tratam, boa ideia.

Tem pesado semblante, a cor é baça,

O corpo de estatura um tanto esbelta,

Feições compridas, e olhadura feia:

Tem grossas sobrancelhas, testa curta,

Nariz direito, e grande, fala pouco

Em rouco baixo som de mal falsete,

Sem ser velho, já tem cabelo ruço,

E cobre este defeito, e a fria calva,

A força do polvilho, que lhe deita.

Ainda me parece, que o estou vendo,

No gordo Rocinante escarranchado,

As longas calças pelo umbigo atadas,

Amarelo colete, e sobre tudo,

Vestida uma vermelha, e justa farda:

Que é sinal, ou caráter, que distingue

Aos serventes das casas dos mais homens,

Assim como às famílias se conhecem

Por herdados brasões de antigas armas.

Montado em nédia mula vem um Padre,

Que tem de Capelão as justas honras,

Formou-se em Salamanca, é homem sábio;

Já do Mistério do Pilar um dia

Um sermão recitou, que foi um pasmo:

Labregão no feitio, e meio idoso,

Tem olhos encovados, barba tesa,

Fechadas sobrancelhas, rosto fusco,

Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera,

Que num corpo, que tem de nabo a forma,

Haviam pôr os Céus tão grande caco!

O resto da família é todo o mesmo,

Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes

Um rifão, que nos diz, que dos Domingos

Se tiram muito bem os dias Santos.

Ah! pobre Chile, que desgraça esperas!

Quanto melhor te fora, se sentisses

As pragas, que no Egito se choraram,

Do que veres, que sobe a teu governo

Carrancudo casquilho, a quem rodeiam

Os néscios, os marotos, e os peraltas.

Seguidos pois dos grandes, entra o Chefe

No nosso Santiago, junto à noite.

A casa me recolho; e cheio destas

Tristíssimas imagens, no discurso

Mil coisas feias, sem querer, revolvo.

Por ver se a dor divirto, vou sentar-me

Na janela da sala, e ao ar levanto

Os olhos já molhados. Céus, que vejo!

Não vejo estrelas, que serenas brilhem,

Não vejo a Lua, que prateia os mares.

Vejo um grande cometa, a quem os doutos

Caudato apelidaram. Este cobre

A terra toda com o disforme rabo.

Aflito o coração no peito bate,

Eriça-se o cabelo, as pernas tremem,

O sangue se congela, e todo corpo

Se cobre de suor. Tal foi o medo!

Ainda bem o acordo não restauro,

Quando logo me lembra, que este dia,

É o dia fatal, em que se entende,

Que andam no Mundo soltos os diabos.

Não rias, Doroteu, dos meus agoiros;

Os antigos Romanos foram sábios,

Fizeram agoireiros estes mesmos,

Muitas vezes choraram, por tomarem

Os avisos celestes, como acaso.

Ajuntaram-se os grandes desta terra

À noite em casa do benigno Chefe,

Que o governo largou. Aqui alegres,

Com ele se entretinham largas horas,

Depostos os melindres de grandeza,

Fazia a Humanidade os seus deveres

No jogo, e na conversa deleitosa.

A estas horas entra o novo Chefe

Na casa do recreio, e reparando

Nos membros do congresso, a testa enruga,

E volta a cara, como quem se enoja,

Por que os mais dele junto não se assentem,

Se deixa em pé ficar a noite inteira;

Não se assenta civil da casa o dono,

Não se assenta, que é mais, a ilustre Esposa,

Não se assenta também um velho Bispo,

E a exemplo destes o congresso todo.

Pensavas, Doroteu, que um peito nobre,

Que teve Mestres, que habitou na Corte,

Havia praticar ação tão feia,

Na casa respeitável de um Fidalgo,

Distinto pelo cargo, que exercia,

E, mais ainda, pelo sangue herdado!

Pois ainda, caro Amigo, não sabias

Quanto pode a tolice, e vã soberba?

Parece, Doroteu, que algumas vezes

A sábia Natureza se descuida.

Devera, doce Amigo, sim devera,

Regular os natais, conforme os gênios.

Quem tivesse as virtudes de Fidalgo,

Nascesse de Fidalgo, e quem tivesse

Os vícios de vilão, nascesse embora,

Se devesse nascer de algum lacaio,

Como as pombas, que geram fracas pombas,

Como os tigres, que geram tigres bravos.

Ah! se isto, Doroteu, assim sucede,

Estava o nosso Chefe, mesmo ao próprio,

Para nascer Sultão do Turco Império!

Metido entre vidraças reclinado

Em coxins de veludo, e vendo as Moças,

Que de todas as partes o cercavam,

Coçando-lhe umas levemente as pernas,

E outras abanando com toalhas:

Só assim, Doroteu, o nosso Chefe

Ficaria de si um tanto pago.

Chega-se o dia da funesta posse;

Mal os grandes se ajuntam, desce a escada,

E, sem mover cabeça, vai meter-se

Debaixo do lustroso, e rico palio.

Caminham todos juntos para o Templo.

Um Salmo se repete em doce coro,

A que ele assiste desta sorte inchado.

Entesa mais que nunca o seu pescoço,

Em ar de minueto os pés concerta,

E arqueia o braço esquerdo sobre a ilharga.

Eis aqui, Doroteu, o como param

Os maus comediantes, quando fingem

As pessoas dos grandes nos teatros.

Acabada a função, a casa volta,

Os grandes o acompanham descontentes,

Com a mesma pompa, com que foi ao Templo.

Já vistes o Ministro carrancudo,

A quem os tristes pretendentes cercam,

Quando no Régio Tribunal se apeia,

Que bem, que humildes, em tropa sigam,

Não para, não responde, não corteja!

Já vistes o casquilho, quando sobe,

À casa, em que se canta, e em que se joga,

Que deixa à porta as bestas, e os lacaios,

Sem, sequer, se lembrar, que venta, e chove?

Pois assim nos tratou o nosso Chefe;

Mal à porta chegou do Chefe antigo,

Com ele se recolhe; e até ao mesmo

Luzido nobre corpo do Senado,

Não fala, não corteja, não despede.

Da sorte, que o lacaio a sege arruma,

Por não tomar a rua às outras seges,

Assim os cidadãos o pálio encostam

Ao batente da porta, e quais lacaios,

Na rua esperam, que seu Amo desça,

Ou, a ele ficar, que os mande embora.

À vista desta ação indigna, e feia,

Todo o congresso se confunde, e pasma:

Sobe às faces de algum a cor rosada,

Perdem outros a cor das roxas faces;

Louva este o proceder do Chefe antigo,

Aquele o proceder do novo estranha,

E os que podem vencer do gênio a força,

Aos mais escutam sem dizer palavra.

São estes, louco Chefe, os sãos exemplos,

Que na Europa te dão os homens grandes?

Os mesmos Reis não honram os vassalos?

Deixam de ser por isso uns bons Monarcas?

Como errado caminhas! O respeito

Por meio das virtudes se consegue,

E nelas se sustenta, e nunca nasce

Do susto, e do temor, que aos povos metem

Injúrias, descortejos, e carrancas.

Findou-se, Doroteu, a longa História

Da entrada deste Chefe. Agora vamos,

Que é tempo descansar um breve instante.

Nas outras contarei, prezado Amigo,

Os fatos, que ele obrou no seu governo,

Se acaso os justos céus quiserem, dar-me,

Para tudo escrever, papel, e tempo.

Carta 2ª

Em que se mostra a piedade, que Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo, para chamar a si todos os negócios.

As brilhantes estrelas já caíam,

E a vez terceira os galos já cantavam,

Quando, prezado Amigo, punha o selo

Na volumosa carta, em que te conto

Do nosso imortal Chefe a grande entrada.

E refletindo então, ser quase dia,

A despir-me começo com tal ânsia,

Que entendo, que inda estava o lacre quente,

Quando eu já sobre os membros fatigados,

Cuidadoso estendia a grossa manta.

Não cuides, Doroteu, que brandas penas

Me formam o colchão macio, e fofo;

Não cuides, que é de paina a minha fronha,

E que tenho lençóis de fina Holanda,

Com largas rendas sobre os crespos folhos;

Custosos pavilhões, dourados leitos,

E colchas matizadas não se encontram

Na casa mal provida de um Poeta,

Onde, há três dias, que o rapaz, que serve

Nem na suja cozinha acende o fogo;

Mas nesta mesma cama tosca, e dura,

Descanso mais contente, do que dorme

Aquele, que só põe o seu cuidado

Em deixar a seus filhos o tesouro,

Que ajunta, Doroteu, com mão avara,

Furtando ao rico, e não pagando ao pobre.

Aqui... mas onde vou, prezado Amigo?

Deixemos episódios, que não servem,

E vamos prosseguindo a nossa história.

Fui deitar-me ligeiro, como disse;

E mal estendo nos lençóis o corpo,

Dou um sopro na vela, os olhos fecho,

E pelos dedos rezo a muitos santos,

Por ver, se chega mais depressa o sono,

Conselho, que me deram sábias velhas.

Já, caro Doroteu, o sono vinha:

Umas vezes dormindo ressonava,

Outras vezes rezando, inda bulia

Com os devotos beiços, quando sinto,

Passar um carro, que me abala o leito.

Assustado desperto, os olhos abro,

E conhecendo a causa, que me acorda,

Um tanto impaciente o corpo viro,

Fecho os olhos de novo, encruzo os braços,

Para ver, se outra vez me torna o sono.

Segunda vez o sono já tornava,

Quando o estrondo percebo de outro carro;

Outra vez, Doroteu, o corpo volto,

Outra vez me agasalho, mas debalde.

Já soam dos soldados grossos berros,

Já tinem as cadeias dos forçados,

Já chiam os guindastes, já me atroam

Os golpes dos machados, e martelos;

E ao pé de tanta bulha, já não posso

Mais esperança ter de algum sossego.

Salto fora da cama, acendo a vela,

À banca vou sentar-me exasperado;

E por ver se entretenho as longas horas,

Aparo a minha pena, o papel dobro,

E com mão, que inda treme de cansada,

Não sei, prezado Amigo, o que escrevo;

Só sei, que o que te escrevo, são verdades,

E que vêm muito bem ao nosso caso.

Apenas, Doroteu, o nosso Chefe,

As rédeas manejou de seu governo,

Fingir nos intentou, que tinha uma alma,

Amante da Virtude: assim foi Nero;

Governou aos Romanos pelas regras

Da formosa Virtude; porém logo

Trocou o cetro d’ouro em mão de ferro.

Manda pois, que os Ministros lhe deem listas

De quantos presos as cadeias guardam,

Faz a muitos soltar, aos mais anima

De vivas bem fundadas esperanças.

Estranha ao subalterno, que se arroga

O poder castigar ao delinquente

Com troncos, e galés; enfim ordena,

Que os presos, que em três dias não tiverem

Assentos declarados, se lhes abram

Em nome dele Chefe os seus assentos.

Aquele, Doroteu, que não é santo,

Mas quer fingir-se santo aos outros homens,

Pratica muito mais, do que pratica,

Quem segue os sãos caminhos da verdade.

Mal se põe na Igreja, de joelhos,

Abre os braços em cruz, a terra beija,

Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,

Faz, que chora, suspira, fere o peito,

E pratica outras tantas macaquices,

Estando em parte, onde o Mundo as veja.

Assim o nosso Chefe, que procura,

Mostrar-se compassivo, não descansa

Com estas poucas obras: passa a dar-nos

Da sua compaixão maiores provas.

Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime

Dos soldados, que furtam aos soldados;

E sabes muito bem, que pena incorram

Aqueles, que viciam ouro, e prata.

Agora, Doroteu, atende o como

Castiga o nosso Chefe em um sujeito

Estes graves delitos, que reputa

Ainda menos, do que leves faltas.

Apanha um Militar aos Camaradas

Do soldo uma porção: astuto, e destro,

Para não se sentir o grave furto,

Mistura nos embrulhos, que lhes deixa

Igual quantia de metal diverso.

Faz-se queixa ao bom Chefe deste insulto;

Sim faz-se ao Chefe queixa, mas debalde,

Que este Hércules não cinge a grossa pele,

Nem traz na mão robusta a forte clava,

Para guerra fazer ao torpe Caco.

Já leste, Doroteu, a Dom Quixote?

Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;

Mas diverso nos fins, que o doido Mancha,

Forceja por vencer os maus gigantes,

Que ao Mundo são molestos, e este Chefe

Forceja por suster no seu distrito

Aqueles, que se mostram mais velhacos.

Não pune, doce Amigo, como deve,

Das sacrossantas Leis a grave ofensa;

Antes benigno manda ao bom Matúsio,

Que do seu ouro próprio se ressarça

Aos aflitos roubados toda a perda.

Já viste, Doroteu, igual desordem?

O dinheiro de um Chefe, que a lei guarda,

Acode aos tristes órfãos, e às viúvas,

Acode aos miseráveis, que padecem

Em duras, rotas camas, e socorre,

Para que honradas sejam as Donzelas;

Porém não paga furtos, por que fiquem

Impunes os culpados, que se devem,

Para exemplo, punir com mão severa.

Envia, Doroteu, vizinho Chefe

Ao nosso grande Chefe outro soldado,

Por vários crimes convencido, e preso.

Lança-se o tal soldado de joelhos

Aos pés do seu Herói; suspira, e treme,

Não nega que ferira e que matara;

Mas pede, que lhe valha a mão piedosa,

Que tudo pode, que ele aperta e beija.

Pergunta-lhe o bom Chefe, se os seus crimes

Divulgados estão; e o camarada

Com semblante já leve lhe responde:

Que suas graves culpas foram feitas

Em sítios mui distantes desta Praça.

Então, então o chefe compassivo,

Manda tirar os ferros dos seus braços:

Dá-lhe um salvo conduto, com que possa,

Contanto que na terra não se saiba,

Fazer impunemente insultos novos.

Caminha, Doroteu, à forca um Negro,

Conforme as leis do Reino, bem julgado.

Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto,

Estas fatais sentenças não revoga,

Sem um justo motivo, em que se firme

Do seu perdão a causa: também sabes,

Que estas mesmas Mercês se não concedem,

Senão por um Decreto, em que se expende,

Que o Sábio Rei usou por Motu proprio

Do mais alto Poder, que vem do Cetro.

Agora, Doroteu, atende, e pasma.

Por um simples despacho manda o Chefe,

Que o triste padecente se recolha:

Assenta, vale tanto lá na Corte

Um grande El Rei impresso, quanto vale

Em Chile um como pede, e o seu gadancho.

Aonde, louco Chefe, aonde corres,

Sem tino, e sem conselho? Quem te inspira,

Que remitir as penas, é virtude?

E ainda a ser virtude, quem te disse,

Que não é das virtudes, que só pode

Benigna exercitar a Mão Augusta?

Os Chefes, bem que Chefes, são vassalos;

E os vassalos não têm poder supremo.

O mesmo grande Jove, que modera

O Mar, a Terra, o Céu, não pode tudo,

Que ao justo só se estende o seu Império.

O povo, Doroteu, é como as moscas,

Que correm ao lugar, aonde sentem

O derramado mel; é semelhante

Aos corvos, e aos abutres, que se ajuntam

Nos ermos, onde fede a carne podre.

À vista pois dos fatos, que executa

O nosso grande Chefe, decisivos

Da piedade, que finge, a louca gente

De toda parte corre, a ver se encontra

Algum pequeno alívio à sombra dele.

Não viste, Doroteu, quando arrebenta

Ao pé de alguma Ermida a fonte santa,

Que a fama logo corre, e todo o povo

Concebe, que ela cura as graves queixas?

Pois desta forma entende o néscio vulgo,

Que o nosso General, Lugar-Tenente,

Em todos os delitos, e demandas,

Pode de absolvição lavrar sentenças.

Não há livre, não há, não há cativo,

Que ao nosso Santiago não concorra.

Todos buscam ao Chefe, e todos querem,

Para serem bem vistos, revestir-se

Do triste privilégio de mendigos.

Um as botas descalça, tira as meias,

E põe no duro chão os pés mimosos;

Outro despe a casaca, mais a veste,

E de vários molambos mal se cobre;

Este deixa crescer a ruça barba;

Com palhas dÂ’alho se defuma aquele;

Qual as pernas emplasta, e move o corpo,

Metendo nos sovacos as muletas;

Qual ao torpe pescoço dependura

Despido braço, que só cobre o lenço;

Uns com o bordão apalpam o caminho;

Para pagarem somas, que não devem.

Ah! tu, meu Sancho Pança, tu que foste

Da Barataria Chefe, não lavraste

Nem uma só sentença tão discreta!

E que queres, Amigo, que suceda?

Esperavas acaso um bom governo

Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste

Em trajes de casquilho nessa Corte?

E pode, meu Amigo, de um peralta

Formar-se de repente um homem sério?

Carece, Doroteu, qualquer Ministro

Apertados estudos, mil exames:

E pode ser o Chefe onipotente

Quem não sabe escrever uma só regra,

Onde ao menos se encontre um nome certo?

Ungiu-se para Rei, do Povo eleito,

A Saul, o mais santo, que Deus via;

Prevaricou Saul, prevaricaram

No governo dos povos outros justos:

E há de bem governar remotas terras,

Aquele que não deu em toda a vida

Um exemplo de amor à sã Virtude?

As Letras, a Justiça, a Temperança,

Não são, não são Morgados, que fizesse

A sábia Natureza, para andarem

Por sucessão nos filhos dos Fidalgos.

Do Cavalo Andaluz, é sim provável,

Nascer também um potro de esperança,

Que tenha frente aberta, largos peitos,

Que tenha alegres olhos, e compridos,

Que seja enfim das mãos, e pés calçado.

Porém de um bom ginete também pode

Um quatralvo nascer, nascer um zarco.

Aquele mesmo potro, que tem todos

Os formosos sinais, que aponta o Rego,

Carece, Doroteu, correr em roda

Do grande picadeiro muitos meses,

Para uma, e outra parte. Necessita,

Que o destro picador lhe ponha a sela,

E que montando nele pouco a pouco,

O faça obedecer ao leve toque

Do duro cabeção, da branda rédea.

Os mesmos, Doroteu... Porém já toca

Ao almoço a garrida da Cadeia;

Vou ver, se dormir posso, enquanto duram

Estes breves instantes de sossego;

Que sem barriga farta, e sem descanso,

Não se pode escrever tão longa História.

Carta 3ª

Em que se contam as injustiças, e violências, que Fanfarrão executou, por causa de uma Cadeia, a que deu princípio.

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!

Assopra o vento Sul e densa nuvem

Os Horizontes cobre, a grossa chuva,

Caindo das biqueiras dos telhados,

Formam regatos, que os portais inundam:

Rompem os ares colubrinas fachas

De fogo devorante, e ao longe soa

De compridos trovões o baixo estrondo.

Agora, Doroteu, ninguém passeia;

Todos em casa estão, e todos buscam

Divertir as tristezas, que nos peitos

Infunde a tarde mais, que a noite feia.

O velho Alcimidonte certamente

Tem postas nos narizes as cangalhas,

E revolvendo os grandes gordos livros

Cos dedos inda sujos de tabaco,

Ajunta ao mau processo muitas folhas,

De vãs autoridades carregadas.

O nosso bom Dirceu talvez que esteja

Com os pés escondidos no capacho,

Metido no capote a ler gostoso

O seu Virgílio, o seu Camões, e Tasso.

O terno Floridoro estas horas

No mole espriguiceiro se reclina

A ver brincar alegres os filhinhos,

Um já montando na comprida cana,

E outro pendurado no pescoço

Da Mãe formosa, que risonho abraça.

O gordo Josefino está deitado,

Nada lhe importa, nem do Mundo sabe,

Ao som dos ventos, dos trovões, e chuva,

Como em noite tranquila dorme, e ronca.

O nosso Damião enfim abana

Ao lento fogo, com que sábio tira

Os úteis sais da terra, e o teu Critilo,

Que não encontra aqui, com quem murmure,

Quando só murmurar lhe pede o gênio,

Pega na pena, e desta sorte voa

De cá tão longe a murmurar contigo.

Já disse, Doroteu, que o nosso Chefe,

Apenas principia a governar-nos,

Nos pretende mostrar, que tem um peito

Muito mais terno, e brando, do que pedem

Os severos ofícios do seu cargo.

Agora cuidarás, prezado Amigo,

Que as chaves das cadeias já não abrem

Comidas de ferrugem! Que as algemas

Como trastes inúteis se furtaram!

Que o torpe executor das graves penas

Liberdade ganhou! Que já não temos

Descalços guardiões, que à fonte levem

Metidos nas correntes os forçados!

Assim, prezado Amigo, assim devia

Em Chile acontecer, se o nosso Chefe

Tivesse em governar algum sistema.

Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios

Às folhas dos Olmeiros se comparam;

São como o leve fumo, que se move

Para partes diversas, mal os ventos

Começam a apontar de várias partes.

Ora pois, doce Amigo, atende o como

No seu contrário vício degenera

A falsa compaixão do nosso Chefe.

Qual o sereno mar, que num instante

As ondas sobre as ondas encapela.

Pretende, Doroteu, o nosso Chefe

Erguer uma Cadeia majestosa,

Que possa escurecer a velha fama

Da Torre de Babel, e mais dos grandes

Custosos edifícios, que fizeram

Para sepulcros seus os Reis do Egito.

Talvez, prezado amigo, que imagine,

Que neste monumento se conserve

Eterna a sua glória, bem que os povos

Ingratos não consagrem ricos bustos,

E montadas estátuas ao seu nome.

Desiste, louco Chefe, desta empresa;

Um soberbo edifício levantado

Sobre ossos d’inocentes, construído

Com lágrimas dos pobres, nunca serve

De glória ao seu Autor, mas sim de opróbrio.

Desenha o grande Chefe sobre a banca

Desta forte Cadeia o grande risco,

À proporção do gênio, e não das forças

Da terra decadente onde habita.

Ora pois, Doce Amigo, vou pintar-te

Ao menos o formoso frontispício;

Verás se pede máquina tamanha

Humilde povoado, aonde os grandes

Moram em casas de madeira a pique.

Em cima da espaçosa escadaria

Se forma do Edifício a nobre entrada,

Por dois soberbos arcos divididos:

Por fora destes arcos se levantam

Três jônicas colunas, que se firmam

Sobre quadradas bases, e se adornam

De lindos capitéis, aonde assenta

Uma formosa regular varanda:

Seus balaústres são de lisas pedras,

Que brandos ferros cortam sem trabalho:

Debaixo da cornija, ou projetura

Estão as Armas deste militar abertas

No liso centro da vistosa tarja.

No meio desta frente sobe a torre,

E pegam desta frente para os lados

Vistosas galerias de janelas,

Que enfeitam as douradas negras grades.

Sabes, Doroteu, quem edifica

Esta grande cadeia? Não, não sabes;

Pois ouve, que eu to digo: um pobre Chefe,

Que na Corte habitou em umas casas,

Em que já não se abriam as janelas.

E sabes para quem? Também não sabes;

Pois eu também to digo: para uns Negros,

Que vivem, quando muito, em vis cabanas,

Fugidos dos senhores lá nos matos.

Eis aqui, Doroteu, ao que se pode

Muito bem aplicar aquele mofa,

Que faz o nosso Mestre, quando pinta

Um monstro meio peixe, meio dama.

Na sábia proporção é que consiste

A boa perfeição das nossas obras.

Não pede, Doroteu, a pobre Aldeia

Os soberbos palácios; nem a Corte

Pode também sofrer as toscas choças.

Para poder suprir o nosso Chefe

Das obras meditadas as despesas,

Consome do Senado os Rendimentos,

E para maltratar o triste povo

Com estas nunca usadas violências,

Quer cópias de forçados, que trabalhem

Sem outro algum jornal mais, que o sustento,

E manda a um bom cabo, que lhe traga,

A quantos Quilombolas se apanharem

Em duras gargalheiras. Voa o cabo,

Agarra a um, e a outro, e num instante

Enche a cadeia de alentados Negros.

Não se contenta o cabo com trazer-lhe

Os Negros, que têm culpa, prende, e manda

Também nas grandes levas os escravos,

Que não têm mais delitos, que fugirem

Às fomes, e aos castigos, que padecem

No poder dos Senhores desumanos.

Ao bando dos cativos se acrescentam

Muitos pretos já livres, e outros homens,

Da raça do País, e da Europeia,

Que diz ao grande Chefe são vadios,

Que perturbam dos povos o sossego.

Não há, meu Doroteu, quem não se molde

Aos gestos, e aos costumes dos Maiores;

Brincando os inocentes os imitam:

Se as tropas se exercitam, eles fingem

As hórridas batalhas: se se fazem

Devotas procissões, também carregam

Aos ombros os andores, e as charolas.

Os mesmos Magistrados se revestem

Do gênio, e das paixões, de quem governa.

Se o Rei é Piedoso, são benignos

Os severos Ministro: se é tirano,

Mostram os pios corações de feras.

Por isso, Doroteu, um Chefe indigno

É muito, e muito mau, porque ele pode

A virtude estragar de um vasto Império.

Os nossos Comandantes, que conhecem

A vontade do Chefe também querem

Imitar deste cabo o ardente zelo.

Enviam para as pedras os vadios,

Que na forma das ordens mandar devem

Habitar em desterro novas terras.

Ora pois, doce Amigo, já que falo

Nos nossos comandantes será justo,

Que te dê destes bichos uma ideia.

A gente, Doroteu, que não se alista

Nas tropas regulares, forma corpos

De bisonha ordenança. Não há terras

Sem ter um corpo destes; os seus chefes

Ao capitão maior estão sujeitos,

E são os que se chamam Comandantes,

Porque as partes comandam destes Terços.

Estes famosos chefes quase sempre

Da classe dos vendeiros são tirados.

Alguns inda depois de grandes homens,

Se lhes faltam os negros, a quem deixam

O governo das vendas, não entendem,

Que infamam as bengalas, quando pesam

A libra do toucinho, e quando medem

O frasco da cachaça. Agora atende,

Verás, que desta escória se levanta

De Magistrados uma nova classe,

Que tratem da polícia, e que não deixem

Viver nos seus Distritos as pessoas,

Que forem revoltosas. Quer que façam

A todos os vadios uns sumários,

E que sem mais processos os remetam

Para remotas partes, sem que destas

Jurídicas sentenças se faculte

Algum recurso para mor alçada.

Já vistes, Doroteu, um tal desmancho?

As santas leis do Reino não concedem

Ao Magistrado Régio, que execute

No crime o seu julgado, e o nosso Chefe

Quer, que deem as sentenças sem apelo

Incultos comandantes, que nem sabem

Fazer um bom diário do que vendem!

Concedo, caro Amigo, que estes homens

São uns grandes consultos, que meteram

Os corpos do Direito nos seus cascos

Ainda assim pergunto: como pode

O Chefe conceder-lhe esta alçada?

Ignora a lei do Reino, que numera

Entre os Direitos próprios dos Augustos

A criação dos novos Magistrados?

O grande Salomão lamenta o Povo,

Que sobre o Trono tem um Rei menino:

Eu lamento a Conquista, a quem governa

Um Chefe tão soberbo, e tão estulto,

Que tendo já na testa brancas repas

Não sabe ainda, que nasceu vassalo.

Os néscios comandantes, e o bom cabo

Que fez o nosso herói geral meirinho

Remetem nas correntes povo imenso,

Parece, Doroteu, que temos guerras,

Que para recrutar as companhias

De toda parte vêm chorosas levas.

Aqui, prezado Amigo, principia

Esta triste tragédia. Sim prepara,

Prepara o branco lenço, pois não podes

Ouvir o resto, sem banhar o rosto

Com grossos rios de salgado pranto.

Nas levas, Doroteu, não vêm somente

Os culpados vadios; vêm aqueles,

Que a dívida pediu ao comandante;

Vem aquele, que pôs impuros olhos

Na sua mocetona; vem o pobre

Que não quis emprestar-lhe algum Negrinho

Para lhe ir trabalhar na lavra, ou roça.

Estes tristes mal chegam são julgados

Pelo benigno Chefe a cem açoites.

Tu sabes, Doroteu, que as leis do Reino

Só mandam que se açoitem com a sola

Aqueles agressores, que estiverem

Nos crimes quase iguais aos réus de morte.

Tu também não ignoras, que os açoites

Só se dão por desprezo nas espáduas;

Que açoitar, Doroteu, em outra parte

Só pertencem aos Senhores, quando punem

Os caseiros delitos dos escravos.

Pois todo este direito se pretere.

No pelourinho a escada já se assenta,

Já se ligam dos réus os pés, e os braços,

Já se descem calções, e se levantam,

Das imundas camisas rotas fraldas.

Já pegam dois verdugos nos zorragues,

Já descarregam golpes desumanos,

Já soam os gemidos, e respingam

Miúdas gotas de pisado sangue.

Uns gritam, que são livres, outros clamam

Que as sábias leis do Reino os julgam brancos;

Este diz, que não tem algum delito,

Que tal rigor mereça; aquele pede

Do injusto Acusador ao Céu vingança.

Não afrouxam os braços dos verdugos,

Mas antes com tais queixas se duplica

A raiva dos tiranos, qual o fogo

Que ao sopro do vento ergue as chamas.

Às vezes, Doroteu, se perde a conta

Dos cem açoites, que no meio estavam

Mas outra nova conta se começa.

Os pobres miseráveis já não gritam,

Cansados de gritar; apenas soltam

Alguns fracos suspiros, que enternecem.

Que é isso, Doroteu, tu já retiras

Os olhos do papel? Tu já desmaias?

Já sentes as moções, que alheios males,

Costumam infundir nas almas ternas?

Pois és, prezado Amigo, muito fraco.

Aprende a ter valor do nosso Chefe,

Que à janela se pôs, e a tudo assiste

Sem voltar o semblante para a ilharga;

E pode ser, Amigo, que não tenha

Esforço para ver correr o sangue,

Que em defesa do Trono se derrama.

Aos pobres açoitados manda o Chefe,

Que presos nas correntes dos forçados

Vão juntos trabalhar. Então se entregam

Ao famoso Tenente, que os governa,

Como sábio Inspetor das grandes obras.

Aqui, prezado Amigo, principiam

Os seus duros trabalhos. Eu quisera

Contar-te, o que eles sofrem, nesta carta,

Mas tu, prezado Amigo, tens o peito

Dos males, que já lestes, magoado;

Por isso é justo, que suspenda a História,

Enquanto o tempo não te cura a chaga.

Carta 4ª

Em que se continua a mesma História.

Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, que tomando

Entre dentes alguém, enquanto encontra,

Matéria, em que discorra, não descansa.

Agora, Doroteu, mandou dizer-me

O nosso amigo Alceu, que me embrulhasse

No pardo casacão, ou no capote,

E que pondo o casquete na cabeça

Fosse ao sítio Covão jantar com ele.

Eu bem sei, Doroteu, que tinha sopas

Com ave, e com presunto, sei que tinha

De mamota vitela um gordo prato,

Que tinha fricassês, que tinha massas,

Bom vinho de Canárias, finos doces,

E de mimosas frutas muitos pratos.

Porém que importa, Amigo; perdi tudo

Só para te escrever mais esta carta.

Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, pois o priva

De encher o seu bandalho, pelo gosto

De fazer quatro versos, que bem podem

Ganhar-lhe uma maçada, que só serve

De dano ao corpo, sem proveito dÂ’alma.

A carta, Doroteu, a longa carta,

Que descreve a cadeia, finaliza

No ponto, de que os presos se remetem

Ao severo Tenente que preside

Como sábio inspetor às grandes obras.

Agora prossigamos nesta História,

E demos-lhe princípio por tirarmos

Ao famoso Inspetor, ao grão Tenente

Em cores delicadas uma cópia.

É de marca maior, que a mediana,

Mas não passa a gigante; tem uns ombros,

Que o pescoço algum tanto lhe sufocam.

O seu cachaço é gordo, o ventre inchado,

A cara circular, seus olhos fundos,

O gênio soberbão, grosseiro trato,

Assopra de contínuo, e fala muito.

Presa-se de fidalgo, e não se lembra

Que seu pai foi um pobre de um meirinho,

Que passou por aumento para a honra

De tratar das cobranças dos contratos,

De quem ficou devendo grandes somas,

Sinal de que ele foi um bom velhaco.

O filho, Doroteu, tomou-lhe as manhas

Era um triste pingante, que só tinha

O seu pequeno soldo, agora veio

Para Inspetor das obras, e já ronca,

Já empresta dinheiros, já tem casas,

Já tem trastes de custo, e ricos móveis.

Mas logo, Doroteu, verás o como.

Mal o duro Inspetor recebe os presos,

Vão todos para a obra; alguns abrem

Os fundos alicerces; outros quebram

Com ferros, e com fogo as grossas pedras.

Aqui, prezado amigo, não se atende

Às forças, nem aos anos. Mão robusta

De atrevido soldado move o relho,

Que a todos igualmente faz ligeiros.

Aqui não se concede de descanso

Aquele mesmo dia, o grande dia,

Em que Deus descansou, e em que nos manda

Façamos obras santas, sem que demos

Aos jumentos, e bois algum trabalho.

Tu sabes, Doroteu, que um tal serviço

Por uma civil morte se reputa.

Que peito, Doroteu, que duro peito

Não deve ter um Chefe, que atormenta

A tantos inocentes por capricho!

Que se arrisque o vassalo na campanha,

De uma justa ação, que a Pátria exige:

Nem este grande risco nos estraga

O pundonor, que vale mais, que a vida,

Antes nos abre as portas, para entrarmos

No templo do Heroísmo. Sim nós temos,

Nós temos mil exemplos. Muitos, muitos,

Que há séculos morreram pela Pátria

Na memória dos homens inda vivem.

Mas arriscar vassalos inocentes

Às pedras, que se soltam dos guindastes,

E aos motes de piçarra, que desabam

Nos fundos alicerces sem vencerem

Nem como jornaleiros tênue paga:

Pô-los ainda em cima na figura

Dos indignos vassalos, que se julgam

Em pena de delitos, como escravos;

Isto só para erguer uma obra grande,

Que outra pequena supre; é mais que injusto,

É uma das ações, que só praticam

Aqueles torpes Monstros, que nasceram

Para serem na terra o mal de muitos.

Dirás tu, Doroteu, que o nosso Chefe

Não quer, que os inocentes se maltratem;

Que o fero comandante é quem abusa

Dos poderes, que tem. Prezado Amigo,

Quem ama a sã verdade, busca os meios

De a poder descobrir, e o nosso Chefe

Despreza os meios de podê-la achar.

Que é deles? Os processos, que nos mostram

A certeza dos crimes? Quais dos presos

Os libelos das culpas contestaram?

Quais foram os Juízes, que inquiriram

Por parte da defesa? E quais Patronos

Disseram de Direito sobre os fatos?

A santa lei do Reino não consente

Punir-se, Doroteu, aquele Monstro,

Que é réu de Majestade, sem defesa:

E podem ser punidos os vassalos

Por aéreos insultos, sem se ouvirem,

E sem outro processo mais, que o dito,

Em uma informação de um homem néscio?

Um louco, Doroteu, faz mais ainda,

Do que nunca fizeram os Monarcas;

Faz mais, que o próprio Deus, que Deus querendo

Punir em nossos pais a culpa grave,

Primeiro lhes pediu, que lhe dissessem,

Qual foi do seu delito a torpe causa.

Passam, prezado Amigo, de quinhentos

Os presos, que se ajuntam na cadeia.

Uns dormem encolhidos sobre a terra,

Mal cobertos dos trapos, que molharam

De dia no trabalho; os outros ficam

Ainda mal sentados, e descansam

As pesadas cabeças sobre os braços

Em cima dos joelhos encruzados.

O calor da estação, e os maus vapores

Que tantos corpos lançam, mui bem podem

Empestar, Doroteu, extensos ares.

A pálida doença aqui bafeja,

Batendo brandamente as negras asas.

Aquele, Doroteu, a quem penetra

Este hálito mortal, as forças perde,

Tem dores de cabeça, e num instante

Abrasa-se de calor, de frio treme.

Fazem os seus deveres os afetos

Do nosso grão Tenente, Amor, e Ódio;

Aquele, que risonho lhe trabalha

Nas suas próprias obras, é mandado

Curar-se à Santa Casa, como pobre.

Os outros são mandados, como servos,

Que fogem ao trabalho dos senhores:

Para as correntes vão, arrancam pedra,

E quando algum fraqueia, o mau soldado

Dá-lhe um berro, que atroa, a mão levanta,

E nas costas o relho descarrega.

Ah! tu, piedade santa, agora, agora

Os teus ouvidos tapa, e fecha os olhos;

Ou foge de uma terra, onde um Nero,

Aonde os seus sequazes cada dia

Para o pranto te dão motivos novos.

O fogo, Doroteu, que vai moendo,

Depois de bem moer, a chama ateia,

E a matéria consome em breve instante.

Assim a podre febre, que rolando

Aos míseros enfermos pouco a pouco,

Erguendo qual o fogo a labareda,

À força do descanso, que resulta

Do trabalho, e do sol, consome, e mata.

Uns caem com os pesos, que carregam,

E das obras os tiram pios braços

Dos tristes companheiros. Outros ficam

Ali nas mesmas obras estirados.

Acodem mãos piedosas. Qual trabalha,

Por ver se pode abrir as grossas pegas,

E qual o copo d’água lhe ministra,

Que ferrados os dentes já não bebem.

Uns as caras borrifam, outros tomam

Os débeis pulsos, que parando fogem.

Ah! não mais compaixão, não mais desvelo;

O socorro chegou, mas foi mui tarde.

Cobrem-se os membros de um suor já frio,

Os cheios peitos arquejando roncam,

E vertem umas lágrimas sentidas,

Que só lhes descem dos esquerdos olhos,

Amarela-se a cor, baceia a vista,

O semblante se afila, o queixo afrouxa,

Os gestos, e os arrancos se suspendem,

Nenhum mais bole, nenhum mais respira.

Assim, meu Doroteu, sem um remédio

Sem fazerem despesa em um só caldo,

Sem sábio Diretor, sem Sacramentos,

Sem a vela na mão, na dura terra

Estes pobres acabam seus trabalhos.

Que esperas, duro Chefe, que não contas

À Corte os teus triunfos? Tu não podes

Mandar alqueires dos anéis tirados

Dos dedos, que cortaste nas campanhas;

Mas de algemas, de pegas, de correntes

Podes mandar à Corte imensos carros.

Tu podes... Mas, Amigo, não gastemos

Todo o tempo em contar sentidas cousas;

Façamos menos triste a nossa História;

Misturemos os casos, que magoam

Com sucessos, que sejam menos fortes.

Não bastam, Doroteu, galés imensas;

São outros mais socorros necessários,

Para cresceram as soberbas obras,

Ordena o grande Chefe que os roceiros,

E outros quaisquer homens, que tiverem

Alguns bois de serviço, prontos mandem

Os bois, e mais os Negros, que os governem,

Durante uma semana de trabalho.

Ordena ainda mais, que neste tempo,

Não recebam jornal, antes que tragam

O milho para os bois dos seus celeiros.

Que é isso, Doroteu, abriste a boca?

Ficaste embasbacado? Não supunhas,

Que nosso grande Chefe se saísse

Com uma tão formosa providência?

Nisto de economia é ele o mestre.

Está para compor uma obra, onde

Quer o modo ensinar de não gastarem

As Tropas cousa alguma no sustento.

Deus o deixe viver, até que chegue

A pô-la, Doroteu, no mesmo estado,

Em que estão os volumes, onde existem

Os despachos, que deu no seu governo.

Ora, ouve Doroteu, atende, e pasma

Para se sustentarem os forçados,

Os gêneros se compram com bilhetes,

Que paga o tesoureiro, quando pode;

E sobre esta fiança inda se tomam

Por muito menos preço, do que correm.

As Tropas, que carregam mantimentos

Apenas descarregam, vão de graça

À distante caieira com soldados

Buscar queimada pedra; daqui nasce

Os tropeiros fugirem, e chorarmos

A grande carestia de sustento.

Responde, louco Chefe, se tu podes

Tais violências fazer; não era menos

Lançares sobre os povos um tributo?

Os homens, que têm carros, e os que vivem

De víveres venderem, são acaso

Aos mais inferiores nos Direitos?

Esta cadeia é sua, por que deva

Sobre eles carregar tamanho peso?

E o Povo, quando compra tudo caro,

Não paga ainda mais, do que pagara,

Se um módico tributo se lançasse?

Em primeiro lugar, o Santo Cristo

É homem muito sério, e por ser sério

Não tem com essa gente um leve trato.

Em segundo lugar é muito pobre,

Só dá aos seus devotos indulgências,

Com anos de perdão, e destas drogas

Não fazem tais validos nenhum caso.

Ora pois, louco Chefe, vai seguindo

A tua pretensão, trabalha embora

Por fazer imortal a tua fama.

Levanta um edifício em tudo grande,

Um soberbo edifício que desperte

A dura emulação na própria Roma.

Em cima das janelas, e das portas

Põe sábias inscrições, põe grandes bustos,

Que eu lhes porei por baixo os tristes nomes

Dos pobres inocentes, que gemeram

Ao peso dos grilhões, porei os ossos

Daqueles, que os seus dias acabaram,

Sem Cristo, e sem remédio no trabalho:

E nós, indigno Chefe, e nós veremos,

A quais destes padrões não gasta o tempo.

Carta 5ª

Em que se contam as desordens feitas nas Festas, que se celebraram nos Desposórios do Nosso Sereníssimo Infante, com a Sereníssima Infanta de Portugal.

Tu já tens, Doroteu, ouvido cousas,

Que podem comover a triste pranto

Os secos olhos dos cruéis Ulisses.

Agora, Doroteu, enxuga o rosto,

Que eu passo a relatar-te cousas lindas.

Ouvirás uns sucessos, que te obriguem

A soltar gargalhadas descompostas,

Por mais que a boca com a mão apertes,

Por mais que os beiços já convulsos mordas.

Eu creio, Doroteu... porém aonde

Me leva tão errado o meu discurso?

Não esperes, Amigo, não esperes,

Por mais galantes casos, que te conte,

Mostrar no teu semblante um ar de riso.

Os grandes desconcertos, que executam

Os homens, que governam, só motivam

Na pessoa composta horror, e tédio.

Quem pode, Doroteu, zombar contente

Do César dos Romanos, que gastava

As horas a caçar imundas moscas?

Apenas isto lemos, o discurso

Se aflige na certeza, de que um César

De espíritos tão baixos não podia

Obrar um fato bom no seu governo.

Não esperes, Amigo, não esperes

Mostrar no teu semblante um ar de riso.

Espera quando muito ler meus versos,

Sem que molhe o papel amargo pranto,

Sem que rompam a leitura alguns suspiros.

Chegou a nosso Chile a doce nova,

De que Real Infante recebera,

Bem digna do seu leito, casta Esposa.

Reveste-se o Baxá de gênio alegre,

E para bem fartar os seus desejos,

Quer, que às despesas do Senado, e Povo

Arda em grandes festins a terra toda.

Escreve ao Senado extensa carta,

Em ar de Majestade, em frase Moura,

E nela se lhe ordena, que prepare

Ao gosto das Espanhas bravos touros.

Ordena-se também, que nos Teatros

Os três mais belos dramas se estropiem

Repetidos por bocas de mulatos:

Não esquecem enfim as cavalhadas.

Só fica, Doroteu, no livre arbítrio

Dos pobres camaristas repartirem

Bilhetes de convite pelas Damas.

Amigo Doroteu, ah! tu não podes

Pesar o desconcerto desta carta,

Enquanto não souberes a lei própria,

Que aos festejos Reais prescreve a norma.

Enquanto, Doroteu, o nosso Chile

Em toda parte tinha à flor da terra

Extensas abundantes Minas de ouro;

Enquanto os taverneiros ajuntavam

Imenso cabedal em poucos anos,

Sem terem nas tavernas fedorentas

Outros mais instrumentos, que não fossem

Os queijos, a cachaça, o negro fumo,

E sobre as prateleiras poucos frascos.

Enquanto enfim as Negras quitandeiras

À custa dos amigos só trajavam

Vermelhas capas de galões cobertas,

De galacés, e tissos ricas saias;

Então, prezado Amigo, em qualquer festa

Tirava liberal o bom Senado

Dos cofres chapeados grossas barras.

Chegaram tais despesas à notícia

Do Rei prudente, que a virtude preza,

E vendo, que estas rendas se gastavam

Em touros, cavalhadas, e comédias,

Aplicar-se podendo a cousas santas,

Ordena providente, que os Senados,

Nos dias, em que devem mostrar gosto

Pelas Reais fortunas, se moderem,

E só façam cantar no Templo os Hinos,

Com que se dão ao Céu as justas graças.

Ah! meu bom Doroteu, que feliz fora,

Esta vasta Conquista, se os seus Chefes

Com as leis dos Monarcas se ajustaram;

Mas alguns não presumem ser vassalos;

Só julgam, que os Decretos dos Augustos

Têm forças de decreto, quando ligam

Os braços dos mais homens, que eles mandam,

Mas nunca quando ligam os seus braços.

Com esta sábia lei replica o corpo

Dos pobres Senadores, e pondera,

Que o severo Juiz, que as contas toma,

Não lhes há de aprovar tão grandes gastos.

Da sorte, Doroteu, que o bravo potro,

Quando a sela recebe a vez primeira,

Enquanto não sacode a sela fora,

E faz em dois pedaços cilha e rédea,

Mete entre os duros braços a cabeça,

E dá saltando aos ares, mil corcovos.

Assim o irado Chefe não atura

O freio desta Lei, espuma, e brama:

Enquanto entende, que o Senado zela

Mais as leis, que o seu gosto, não descansa:

Aos tristes Senadores não responde,

Mas manda-lhes dizer, que a não fazerem

Os pomposos Festejos, se preparem

Para serem os Guardas dos Forçados,

Trocando as Varas em chicote, e relho.

Já vistes, Doroteu, que o grande Chefe,

O defensor das leis, o mesmo seja,

Que insulte, que ameace os bons vassalos,

Que as Santas Leis respeitam? Pois ainda,

Ainda, Doroteu, não vistes nada.

Um monstro, um monstro destes não entende,

Que existe algum maior, que ousado possa,

Ou na terra, ou no Céu tomar-lhe conta.

Infeliz, Doroteu, de quem habita

Conquistas, de seu Dono tão remotas!

Aqui o Povo geme, e os seus gemidos

Não podem, Doroteu, chegar ao Trono,

E se chegam sucede quase sempre

O mesmo, que sucede nas tormentas,

Aonde o leve barco se soçobra,

Aonde a grande Nau resiste ao vento.

Que peito, Doroteu, que peito pode

Constante persistir nos sãos projetos,

Ouvindo as ameaças do tirano,

E junto já de si o som dos ferros?

Somente, Doroteu, os homens santos,

Que a sua lei defendem, veem os potros,

Veem cruzes, cadafalsos, e cutelos,

Com rosto sossegado; os outros homens

Não podem, Doroteu, não podem tanto.

À força do temor, o bom Senado

Constância já não tem; afrouxa e cede:

Somente se disputa sobre o modo

De ajuntar-se o dinheiro, com que possa

Suprir tamanho gasto o grande Alberga.

Uns dizem que das Rendas do Senado,

Tiradas as despesas, pouco sobra.

Os outros acrescentam, que se devem

Parcelas numerosas impagáveis

Às consternadas Amas dos Expostos.

Uns ralham, outros ralham, mas que importa;

Todos arbítrios dão, nenhuma acerta.

Então o grande Alberga, que preside,

Vendo esta confusão, na Mesa bate,

E levantando a voz pausada e forte,

A importante questão assim decide.

Há dinheiro, Senhores, há dinheiro:

Vendam-se os castiçais, tinteiro, e bancos,

Venda-se o próprio pano, e Mesa velha;

E quando isto não baste, há bom remédio;

As fazendas se tomem, não se paguem,

E para autorizardes esta indústria,

Eu vos dou, Cidadãos, o meu exemplo.

Intentam replicar-lhe os Camaristas,

A tão baixos calotes nunca afeitos:

Mas ele, que não sofre mais instâncias,

As grossas sobrancelhas arqueando,

Desta sorte prossegue em tom azedo:

Se os meus santos conselhos se desprezam

De pressa vou queixar-me ao nosso Chefe.

Ah! pobres Cidadãos, se assim o faço!

Já se me representa, que vos sinto

Gemer debaixo dos pesados ferros! ...

Só tu, maroto Alberga, só tu podes

Desta sorte falar aos teus Colegas!

Que importa, que os acuses, e que importa,

Que os prenda com grilhões o duro Chefe?

São ferros, estes ferros muito honrados;

Que a honra só consiste na Inocência.

Apenas, Doroteu, o vil Alberga

Fala em queixa fazer ao nosso Chefe,

De susto os Camaristas não respiram:

Quais chorosos meninos, que emudecem,

Quando as amas lhes dizem: Cala, cala,

Que lá vem o Tutu, que papa gente.

Mandam-se apregoar as grandes Festas,

Acompanha ao Pregão luzida Tropa

De velhos Senadores; estes trajam

Ao modo cortesão, chapéus de plumas,

Capas com bandas de vistosas sedas.

Chega afinal o dia suspirado,

O dia do Festejo: todos correm

Com rosto de alegria ao Santo Templo.

Celebra o velho Bispo a grande Missa;

Porém o sábio Chefe não lhe assiste

De baixo do espaldar ao lado esquerdo:

Para a Tribuna sobe, e ali se assenta.

Uns dizem, Doroteu, fugiu prudente,

Por não ver assentados os Padrecos

Na Capela Maior acima dele;

Os outros sabichões, que a causa indagam,

Discorrem, que o Senado lhe devia

Erguer no Presbitério dossel branco,

Em honra dele ser Lugar-Tenente;

Mas eu com estes votos não concordo,

E julgo afoito, que a razão foi esta:

Porque estando patente, e tendo posto

O seu chapéu em cima da cadeira,

Pudera duvidar-se, se devia

O Bispo ter a Mitra na cabeça.

Acabou-se a função: o nosso Chefe

A casa com o Bispo se recolhe.

A Nobreza da terra os acompanha,

Até que montem a dourada sege.

Aqui, meu Doroteu, o Chefe mostra

O seu desembaraço, e o seu talento.

Só numa função destas se conhece

Quem tem andado terras, onde habitam

Despidas dos abusos sábias gentes.

Vai passando por todos, sem que abaixe

A emproada cabeça, qual Mandante,

Que passa pelo meio das fileiras.

Chega junto da sege, à sege sobe,

E da parte direita toma assento.

O Bispo, o velho Bispo atrás caminha

Em ar, de quem se teme da desfeita:

Com passos vagarosos chega à sege,

Encaixa na estribeira o pé cansado,

E duas vezes por subir forceja.

Acodem alguns Padres respeitosos,

E por baixo dos braços o sustentam.

Então com mais alento o corpo move,

Dá o terceiro arranco, o salto vence;

E sem poder soltar uma palavra,

Ora vermelho, ora amarelo fica,

Do nosso Fanfarrão ao lado esquerdo.

Agora dirás tu: que bruto é esse!

Pode haver um tal homem, que se atreva

A pôr na sua sege o seu Prelado

Da parte da boleia. Eu tal não creio.

Amigo Doroteu, estás mui ginja.

Já lá vão os rançosos formulários,

Que guardavam à risca os nossos velhos.

E n’outro tempo, Amigo, os homens sérios

Na rua não andavam sem florete,

Traziam cabeleira grande, e branca,

Nas mãos os seus chapéus; agora, Amigo,

Os nossos próprios Becas têm cabelo,

Os grandes sem florete vão à Missa,

Com a chibata na mão, chapéu fincado,

Na forma, em que passeiam os caixeiros.

Ninguém antigamente se sentava,

Senão direito, e grave nas cadeiras;

Agora as mesmas Damas atravessam

As pernas sobre as pernas; noutro tempo

Ninguém se retirava dos Amigos,

Sem que dissesse adeus; agora é moda

Sairmos dos congressos em segredo;

Pois corre, Doroteu, a paridade,

Que os costumes se mudam com os tempos.

Se os antigos Fidalgos sempre davam

O seu direito lado a qualquer Padre,

Acabou-se esta moda: o nosso Chefe

Vindica os seus direitos; vê, que o Bispo

É um grande, que foi há pouco Frade,

E não pode ombrear com quem descende

De um bravo Patagão, que sem disputa

Lá nos tempos de Adão já era grande.

Na tarde, Doroteu, do mesmo dia,

Sai uma Procissão, de poucos Negros,

E Padres revestidos só composta;

Que os brancos, e os mulatos se ocupavam

Em guarnecer as ruas, pois que todos

Alistados estão nas Régias Tropas.

Caminha o nosso Chefe todo Adônis

Diante da Bandeira do Senado,

Alguns dos rigoristas não lho aprovam,

Dizendo que devia respeitoso,

Da maneira que sempre praticaram

Os seus Antecessores, ir ao lado,

Por ser esta Bandeira um Estandarte,

Onde tremulam do seu Reino as Armas.

Mas eu não o censuro, antes lhe louvo

A prudência, que teve, pois supunha,

Que à vista do seu sangue, e seu caráter,

Podia muito bem querer meter-se

De baixo, Doroteu, do próprio pálio.

Que destras evoluções não fez a Tropa!

Uns ficam ao passar do Sacramento

Com as suas barretinas nas cabeças;

Os outros se descobrem, e ajoelham,

E enquanto não se avança o grande Chefe,

Prostrados se conservam, e devotos

Não cessam de ferir os brandos peitos.

Ah! grande General, com esta Tropa

Tu podes conquistar o Mundo inteiro!

Foram muitos felizes os Lorenas,

Os Condés, os Eugênios, e outros muitos,

Em tu não floresceres nos seus tempos!

Meu caro Doroteu, os sapateiros

Entendem do seu couro; os alfaiates

Entendem de vestidos; enfim todos

Podem bem entender dos seus ofícios;

Porém querer o Chefe, que se formem

Disciplinadas Tropas de tendeiros,

De moços de taverna, de crianças,

E bisonhos roceiros, é delírio.

Que o soldado não fica bom soldado,

Somente porque veste farda curta,

Porque limpa as correias, tinge as botas,

E com trapos engrossa o seu rabicho.

A negra noite em dia se converte

À força das tigelas, e das tochas,

Que em grande cópia nas janelas ardem.

Aqui o bom Robério se distingue;

Compõe algumas quadras, que batiza

Com o distinto nome de epigrama;

E pedante rendeiro as dependura

Na dilatada frente, que ilumina,

Fazendo-as escrever em lindas tarjas.

Rançoso, e mau Poeta, não nasceste

Para cantar Heróis, nem cousas grandes.

Se te queres moldar aos teus talentos,

Em tosca frase do País, somente

Escreve trovas, que os mulatos cantem.

Andava, Doroteu, alegre a gente

Em bandos pelas ruas. Então vejo

Ao famoso Robério neste traje:

As chinelas nos pés, descalça a perna,

Um chapéu muito velho na cabeça,

E fora dos calções a porca fralda.

Em um roto capote mal se embrulha,

E grande varapau na mão sustenta,

Que mais de estorvo, que de arrimo serve,

Pois a cachaça ardente, que o alegra,

Lhe tira as forças dos robustos membros,

E põe-lhe peso na cabeça leve.

Não repares, Amigo, que te conte

Este sucesso, que parece estranho,

Este grande Robério é um daqueles,

Que assenta à sua mesa o nosso Chefe.

Agora, Amigo, vê, se esta pintura

Não pode muito bem à nossa História

Sem violência servir também de enfeite.

Fiquemos, Doroteu, aqui por ora,

Pois de tanto escrever a mão já cansa.

Em outra contarei o mais, que resta,

E vi no grão Passeio, e mais no Curro,

Aonde as cavalhadas se fizeram,

E onde os maus capinhas maltrataram

Em vez de touros, mansos bois, e vacas.

Carta 6ª

Em que se conta o resto dos Festejos.

Eu ontem, Doroteu, fechei a carta,

Em que te relatei da Igreja as Festas;

E como trabalhava por lembrar-me

Do resto do Festejo; mal descanso

Na cama os lassos membros, me parece,

Que vou entrando na formosa Praça.

Não vejo, Doroteu, um curro feito

De pedaços informes de outros curros:

Sim vejo o mesmo curro, que o bom Chefe

Riscou na sua praia, e nele vejo

As mesmas armações, e as mesmas caras.

Ora vou, doce Amigo, aqui pintá-lo

Na frente se levanta um camarote

Mas alto, do que todos, uma braça;

Enfeitam seu prospecto lindas colchas,

E pendentes cortinas de damasco;

À direita se assenta o nosso Chefe;

Os Régios Magistrados não o cercam,

Nem o cerca também o nobre corpo

Dos velhos Cidadãos, aquele mesmo,

Que faz de toda Festa os grandes gastos:

Com ele só se assenta a sua Corte,

Que toda se compõe de feros Martes.

Aqui alguns conheço, que inda vivem

De darem o sustento, o quarto, a roupa,

E capim para a besta, a quem viaja.

Conheço a outros muitos, de quem dizem,

Que foram almocreves, e vendeiros,

Que foram alfaiates, e fizeram,

Puxando a dente o couro, bem sapatos.

Ah! meu prezado Amigo, não te rias

De veres, que estes são aqueles grandes,

Que em presença do Chefe encostar podem

Os queixos nos bastões das finas canas.

Nas polidas Itálias não se vendem

Honrosos Senhorios, e Condados?

Pois também, Doroteu, no nosso Chile

Se vendem os Empregos Militares.

Largar ouro a Matúrio importa o mesmo,

Que sofrer em Madri o duro peso

Da luzente armadura longos anos.

Nos outros adornados camarotes

Assistem as famílias mais honestas:

Aqui nada se vê, que pobre seja.

Recreia, Doroteu, recreia a vista

O vário dos matizes; cega os olhos

O contínuo brilhar das finas pedras.

No meio de um palanque então descubro

A minha, a minha Nise: está vestida

Da cor mimosa, com que o céu se adorna.

Ó quanto, ó quanto é bela! A verde olaia,

Quando se cobre de cheirosas flores,

A Filha de Taumante, quando arqueia,

No meio da tormenta o lindo corpo,

A mesma, a mesma Vênus, quando toma

O grosso escudo, e lança, por que vença

A paixão do Deus Marte com mais força,

Ou quando lacrimosa se apresenta

Na sala de seu Pai, para que salve

Aos seus troianos das soberbas ondas,

Não é, não é, como ela, tão formosa.

Qual o tenro menino, a quem se chega

Defronte do semblante acesa vela.

Umas vezes suspenso, outras risonho

Os olhos arregala, e bem que o chamem,

A tesa vista não separa dela:

Assim eu, Doroteu, apenas vejo

A minha bela Nise, no seu rosto

Emprego os olhos, que se arrasam d’água,

E por mais que me chamem, que me abalem,

De embebido que estou, não sinto nada.

No meio, Doroteu, de tanto assombro,

Me finge a perturbada fantasia

Novo sucesso, que me aflige, e cansa.

Aparece no curro passeando

Sexagenário velho em ar de moço;

Traja uma curta veste, e calções largos

Da cor da seca rosa, a quem rodeia,

O brilhante galão de fina prata.

Na bolsa do cabelo, que se adorna

De duas negras plumas, e de flocos,

Branquejam os vidrilhos, e no peito

De flores se sustenta um grande molho;

Traz dois anéis nos dedos, e fivelas

De amarelos topázios: não caminha,

Sem que avante caminhe um branco pajem,

Atrás a cadeirinha, e seu moleque

Em forma de lacaio. Ah! velho tonto,

Esse teu tratamento imita, imita

Ao estado, que tem o Rei do Congo.

Mal ponho os olhos no caduco Adônis,

Então se me figura, que ele oferta

A Nise uma das flores, e que Nise

Com ar risonho no seu peito a prega.

Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste;

Sentem a sua força os altos Deuses,

Os homens, mais as feras, e em Critilo

Não podes esperar paixões diversas.

Apenas isto vejo, exasperado

Meto mão ao florete, e quando intento

O peito traspassar-lhe, então acordo;

E vendo-me às escuras sobre a cama,

Conheço, que isto tudo foi um sonho.

Pintei-te, Doroteu, o grande curro

Da sorte, que minha alma o viu sonhando;

Agora vou pintar-te os maus sucessos,

Que impressos inda tenho na memória.

Ainda, Doroteu, no largo curro

Caretas não brincavam, nem se viam

Nos rasos camarotes altas poupas,

Enfeites, com que lustram néscias damas;

Quando já no castelo de madeira

As peças fuzilavam, sinal certo,

De que o nosso Herói, e o velho Bispo,

No adornado palanque se assentavam.

Agora dirás tu: é forte pressa!

Os Chefes nos Teatros entram sempre

Às horas de correr-se acima o pano.

Amigo Doroteu, tu nunca viste

Uma criança, a quem a mãe promete,

Levar a ver de tarde alguma festa,

Que logo de manhã a mãe persegue,

Pedindo que lhe dispa os fatos velhos?

Pois eis aqui, Amigo, o nosso Chefe,

Não quer perder de estar casquilho, e teso

No erguido camarote um breve instante.

Chegam-se enfim as horas do festejo,

Entra na praça a grande comitiva,

Trazem os pajens as compridas lanças,

De fitas adornadas; vêm à destra

Os formosos ginetes arreados,

Seguem-se os Cavaleiros, que cortejam

Primeiro ao bruto Chefe, logo aos outros,

Dividindo as fileira pelos lados

Não há, quem o cortejo não receba

Em ar civil, e grato, só o Chefe

O corpo da cadeira não levanta,

Nem abaixa a cabeça. Qual o dono

Dos míseros escravos, quando juntos

A benção vão pedir-lhe, por que sejam

Ajudados de Deus no seu trabalho.

Feitas as cortesias do costume,

Os destros cavaleiros galopeiam

Em círculos vistosos pelo campo:

Logo se formam em diversos corpos,

A maneira das Tropas, que apresentam

Sanguinosas batalhas: soam trompas,

Soam os atabales, e fagotes,

Os clarins, os boés, e mais as flautas.

O fogoso ginete as ventas abre,

E bate com as mãos na dura terra.

Os dois mantenedores já se avançam.

Aqui, prezado Amigo, aqui não lutam,

Como nos espetáculos Romanos,

Com formosos Leões malhados Tigres,

Os homens peito a peito, e braço a braço:

Jogam-se encontroadas, e se atiram

Redondas alcancias, curtas canas,

De que o destro inimigo se defende

Com fazê-las no ar em dois pedaços.

Ao fogo das pistolas se desfazem

Nos postos as cabeças: uma ficam

Dos ferros trespassadas; outras voam

Sacudidas das pontas das espadas.

Airoso cavaleiro ao ombro encosta

A lança no princípio da carreira,

No ligeiro cavalo a espora bate,

Desfaz com a mão igual o ferro, e logo

Que leva uma argolinha, a rédea toma,

E faz, que o bruto pare. Os dois Coros

Aplaudem o sucesso, enchendo os ares

De grata melodia. Então vaidoso,

Guiado de um padrinho ao Chefe leva

O sinal da vitória, que segura

Na destra aguda lança. O bruto Chefe

Aceita a oferta em ar de Majestade,

À maneira dos Amos, quando tomam

As cousas, que lhe dão os seus criados.

Nestes, e noutros brincos inocentes

Se passa, Doroteu, a alegre tarde.

Já no sereno céu resplandeciam

As brilhantes estrelas; os morcegos,

E as toucadas corujas já voavam,

Quando, prezado Amigo, nas janelas

Do nosso Santiago se acendiam

Em sinal de prazer as luminárias.

Ardem pois nas janelas de Palácio

Duas tochas de pau, e sobre a frente

Da Casa do Senado se levanta

Uma extensa armação, a quem enfeitam

Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga,

Aqui o prêmio tens do teu trabalho.

Tu farás das torcidas, e do azeite

Aos tristes Camaristas contas largas;

E as arrobas de sebo, que não arde,

Desfeitas em sabão mui bem te podem

Toda a roupa lavar por muitos anos.

Nas margens, Doroteu, do sujo corgo,

Que banha da cidade a longa fralda,

Há uma curta praia toda cheia

De já lavados seixos: neste sítio

Um famoso passeio se prepara.

Ordena o sábio Chefe, que se cortem

De verdes laranjeiras muitos ramos,

E manda, que se enterrem nesta praia,

Fingindo largas ruas. Cada tronco

Tem debaixo das folhas uma tábua,

Sem lavor, nem pintura, que sustenta

Doze tigelas de grosseiro barro.

No meio do passeio estão abertas

Duas pequenas covas pouco fundas,

Que lagos se apelidam; sobre as bordas

Ardem mil tigelinhas; e o azeite,

Que corre, Doroteu, dos covos cacos,

Inda é mais, do que são as sujas águas,

Que nem os fundos cobrem destes tanques.

A tão formoso sítio tudo acode,

Ou seja de um, ou seja de outro sexo,

Ou seja de uma, ou seja de outra classe.

Aqui lascivo amante sem rebuço

À torpe concubina oferta o braço;

Ali mancebo ousado assiste, e fala

À simples filha, que seus pais recatam:

A ligeira mulata em trajes dÂ’homem

Dança o quente lundum, e o vil batuque.

Aos cantos do passeio inda se fazem

Ações mais feias, que a modesta oculta.

Meu caro Doroteu, meu doce Amigo,

Se queres, que este sítio te compare

Como sério poeta, aqui tens Chipre

Nos dias, em que os povos tributavam

À Deusa tutelar alegres cultos.

Se queres, que o compare, como um homem,

Que alguma noção tem das sacras letras,

Aqui Sodoma tens, e mais Gomorra.

Se queres finalmente, que o compare

A lugar mais humilde em tom jocoso,

Aqui, Amigo, tens esse afamado

Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.

Depõe o nosso Chefe a Majestade,

E por ver as Madamas, rebuçado

No capote de berne, corre as ruas,

Seguido, Doroteu, das suas guardas

Depois de dar seus giros vai sentar-se

Em um dos toscos bancos, onde tomam

Assento certas Moças, que puderam

Não sei por que razão cair-lhe em graça.

Não diz uma fineza às tais Mocinhas;

Pois não é, Doroteu, porque não saiba,

Que ele tem muito estudo de Florinda,

Da Roda da Fortuna e dÂ’outros livros,

Que dão aos seus leitores grande massa;

É sim por sustentar a gravidade,

Que no público pede o seu Emprego:

Mas, para lhe mostrar, o quanto as preza

Ó força milagrosa do bestunto!

Descobre esta feliz, e nova traça.

Vai sentar-se na ponta do banquinho,

Umas vezes suspende ao ar o corpo,

Outras vezes carrega sobre a tábua;

E desta sorte faz, que as belas Moças

Movidas do balanço, deem no vento

Milhares, e milhares de umbigadas.

Chega-se, Doroteu, de fronte dele

Um Máscara prendado. Não estima

De ver executar vistosos passos;

Manda sim, que arremede um nosso Bispo,

Que arremede também o modo, e gesto

De um nosso General. São estes momos

Os únicos, que podem comovê-lo

No público amostrar risonha cara.

Oh! alma de Fidalgo! Ó Chefe digno

De vestir a libré de um vil lacaio!

Cresceram, doce Amigo, alguns foguetes

Da noite, em que o Senado fez no curro,

De pólvora queimar barris imensos.

Em uma noite clara, qual o dia,

Ordena, que os foguetes vão aos ares.

Vai se pôr no passeio reclinado

Sobre um monte de pedras: faz-lhe corte

A velha poetisa, que repete

Um soneto, que fez a certos males.

Começam os vapores do ribeiro

A formar sobre a terra nuvens densas.

Não se veem dos foguetes os chuveiros,

Não se veem as estrelas, nem as cobras;

Mas ele os deixa arder, e gasta a noite

Contente com ouvir alguns estalos,

E a bulha, que eles fazem, quando sobem.

Já chega, Doroteu, o novo dia,

O dia, em que se correm bois, e vacas.

Amigo Doroteu, é tempo, é tempo

De fazer-te excitar no peito brando

Afetos de ternura, de ódio e raiva.

No dia, Doroteu, em que se devem

Correr os mansos touros, acontece

Morrer a casta esposa de um mulato,

Que a vida ganha, por tocar rabeca.

Dá-se parte do caso ao nosso Chefe.

Este, prezado Amigo, não ordena,

Que outro músico vá em lugar dele

A rabeca tocar no pronto carro,

Ordena, que ele escolha, ou a cadeia,

Ou ir tocar a doce rabequinha

Naquela mesma tarde pela praia.

Que é isso, Doroteu, estás confuso!

Duvidas, que isto seja, ou não verdade?

Então, que hás de fazer, quando me ouvires

Contar desordens, que inda são mais calvas?

Indigno, indigno Chefe, as leis sagradas

Não querem, se incomodem alguns dias

Os parentes chegados dos defuntos,

Ainda para cousas necessárias.

E tu, cruel, violentas um marido

A deixar sobre a terra o frio corpo

Acena-lhe o capinha, ele recua;

E atira com as mãos ao ar a terra.

Acena-lhe o capinha novamente,

De novo raspa o chão, e logo o investe!

Lá vai o mau capinha pelos ares,

Lá se estende na areia, e o bravo touro

Lhe dá com o focinho um par de tombos;

Nem deixa de pisá-lo enquanto o néscio

Não segue o meio de fingir-se morto.

Meu esperto boizinho, em paz te fica,

Que o nosso Chefe ordena, te recolham

Sem fazeres mais sorte, e ter reserva

Para ao curro saíres, quando o forem

Do Senhor do Bonfim as grandes festas.

Agora sai um touro, que é prudente,

Se o capinha o procura, logo foge,

Os caretas lhe dão mil apupadas:

Um lhe pega no rabo, e o segura;

Outro intenta montá-lo, e o grande Chefe

O deixa passear por largo espaço.

Mandar soltar-lhe os cães, manda meter-lhe,

As garrochas de fogo, que primeiro,

Que a pele rompam do ligeiro bruto

Nos destros dedos do capinha estalam.

Com estes maus festejos, que aborrecem,

Se gastam muitos dias. Já o povo

Se cansa de assistir na triste praça,

E ao ver-se solitário, o bruto Chefe

Nos trata por insultos mais ingratos.

Soberbo, e louco Chefe, que proveito

Tirastes em gastar em frias festas

Imenso cabedal, que o bom Senado

Devia consumir em cousas santas?

Suspiram pobres Amas, e padecem

Crianças inocentes; e tu podes

Com rosto enxuto ver tamanhos males!

Embora, sacrifica ao próprio gosto

As fortunas dos povos, que governas.

Virá dia, em que mão robusta, e santa

Depois de castigar-nos se condoa,

E lance na fogueira as varas torpes.

Então rirão aqueles, que choraram,

Então talvez, que chores, mas debalde,

Que suspiros, e prantos, nada valem,

A quem os guarda para muito tarde.

Carta 7ª

Em que se trata da venda dos despachos e Contratos.

Os grandes, Doroteu, da Nossa Espanha

Têm diversas herdades: umas delas

Dão trigo, e dão centeio, e dão cevada;

As outras têm cascatas, e pomares

Com outras muitas peças, que só servem

Nos calmosos verões de algum recreio.

Assim os Generais do nosso Chile

Têm diversas fazendas: numas passam

As horas de descanso; as outras geram

Os milhos, os feijões, e muitos frutos,

Que podem sustentar as grandes casas.

As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem,

Abertas nunca são do torto arado.

Quer chova de contínuo, quer se gretem

As terras ao rigor do sol intenso,

Sempre geram mais frutos, do que as outras,

No ano, em que lhes corre ao próprio o tempo.

Estas quintas, Amigo, não produzem

Em certas estações, produzem sempre;

Que o nosso General tomando a foice,

Vai fazer nas searas a colheita.

Produzem, que inda é mais, sem que os bons Chefes

Se cansem com amanhos, nem ainda

Com lançarem no