Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

George Marcial, de Virgílio Várzea


Texto-fonte:

Virgílio dos Reis Várzea, George Marcial,

Lisboa; Porto: Tavares Cardoso & Irmão; Tipografia Universal, 1901.

ÍNDICE

Duas palavras

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

Nota

 

Duas palavras

George Marcial é um episódio da vida política, econômica, social, doméstica e psicológica do fim do Império, com as nostalgias, as críticas acerbas, as agonias, os desfalecimentos e infinitas tristezas do desabar de um mundo quatro vezes secular. Havia então na atmosfera, pairava por todo o Brasil a ansiedade, a dúvida, o temor, a ameaça de movimentos misteriosos, o desamparo em que permanecia o meio social pela aproximação do desconhecido e do tenebroso. O Império agonizava.

Fatos políticos longamente acumulados haviam explodido, lançando a anarquia sobre a população e as instituições, colocando o trono num mar proceloso de incertezas e angústias. A moléstia tinha feito do velho Imperador um rei Lear, alquebrado, vencido, e de longas barbas brancas, abandonado, tateando incerto o futuro. Já se pressentiam vagamente os primeiros rumores das novas instituições que iam em breve transformar a pátria.

Esse ano de 1889, para nós, era bem o 89 da França. A dúvida, a incerteza, a descrença, a negação avassalavam os espíritos.

E a narração de George Marcial traduz todas as modalidades da época em que foi observada e vivida, com o seu descontentamento de todas as coisas, o seu desdém da uniformidade secular, do tradicionalismo, do nativismo, da fé aceite e da vasta arquitetura do arcaico edifício monárquico. As críticas veementes de George sobre a multi­plicidade dos assuntos eram um sintoma fa­tal do momento, requintadas pela saturação das altas civilizações universais.

O Comodoro, colocado entre as grandiosida­des da sua visão cosmopolita e as estreitezas ca­turras do indigenismo pátrio, sob a pressão da carregada atmosfera social de então, derramava-se em imprecações, golpes, vitupérios incoercíveis. Mas esse pessimismo absoluto traduzia uma re­montada forma de patriotismo, de nacionalismo elevado, procurando constituir uma coletividade alta com destruição das Muralhas da China do con­servantismo.

Os demais personagens do livro são apropria­damente os de uma sociedade doente, perdida, que atingira o fim das coisas. O meio físico, porém, na sua exuberância e opulência grandiosa, imperecível, como no gigantesco cenário real, invade por toda a parte a narração, avassala tudo, sentindo-se imortal na plenitude e na magnificência de uma natureza de supremos encantos.

Tal é a história de George Marcial.

Rio de Janeiro, dezembro de 1900.

George Marcial

 

I

George Marcial era mais conhecido por todos pelo “Comodoro”. Este título, que se lhe substituíra ao nome no convívio social, ganhara-o ele, por seu denodo e façanhas, quando ainda 1° tenente efetivo da armada britânica, a bordo do couraçado Superb, no bombardeio de Alexan­dria, sob as ordens do almirante Seymour. O Comodoro pertencia a uma família, meio brasileira, meio inglesa habitando Santa Catarina, e cujo chefe, um homem excêntrico e meio louco, mas ao mesmo tempo inteligente e prático, enviava invariavelmente todos os filhos varões, desde a idade de doze anos, para Europa ou para os Estados Unidos, a trabalhar no comércio ou como “praticantes para pilotos” a bordo dos navios fazendo grande navegação cosmopolita. Foi por isso que George, naturalizando-se cidadão inglês, entrara para a armada dessa nacio­nalidade onde, depois de um brilhante curso na escola de marinha, tivera a sua primeira patente de oficial, mal completara os dezoito anos.

Enviando assim os filhos para esses grandes países, o vesânico patriarca julgava fazer deles homens apropriados para a vida e capazes das mais dificultosas empresas. Ele próprio, o velho Guilherme Marcial, não tinha sido educado de outra forma e, desde muito, era isso uma tradição na família Marcial, mesmo antes de emigrar para o Brasil, no tempo em que habitava os Açores. Nessa gente, com exceção das mulheres, todos falavam inglês e tinham um ar britânico, puri­tano de quaker. Cultivavam muito as leituras mais variadas e com especialidade, por uma insistência insana do velho, a economia política; seguindo, com paixão e violência, as teorias de Adam Smith. As “investigações sobre a Natureza” e as causas das “Riquezas das Nações” eram objeto de um culto para o excêntrico velho. Mais ou menos os filhos haviam herdado o toqué do progenitor, e mesmo o Comodoro, posto possuísse grande retidão de espírito e fosse uma vontade e um caráter de bronze, com um notável critério em todos os atos da vida, em certas circunstâncias, traído pela degenerescência atávica, declinava para o extremado e o insano.

As mulheres da família Marcial eram umas gigantescas criaturas espadaúdas e que podiam representar bem a Musa Moderna, de que fala Jayme de Seguier nestes versos das heroicas “campanhas realistas” de outrora:

“É uma mulher altiva, atlética, radiante,

Com auroras na fronte e lampejos no olhar.

É formosa, talvez, como a Beatriz do Dante.

Tem na alma a vastidão balsâmica do mar.

As suas fortes mãos, robustas, calejadas,

Os braços colossais, brancos como alabastros,

Não duvidam vibrar os golpes das enxadas

E suspender no azul as órbitas dos astros.

Seu ventre juvenil, vastíssimo e potente,

Mais puro do que a luz vibrante das manhãs,

Reúne proporções para gloriosamente

Arremessar à terra um povo de titãs...”

Assim eram as irmãs de George, umas pode­rosas virgens, fortes e de esplendida carnação, perante as quais os homens de estatura mediana não sabiam bem o que fazer, entre o temor e o afeto, perturbados e impressionados pela radia­ção e Majestade daqueles corpos triunfais. Muito raramente, por isso, achegavam-se os na­morados, e só os rapazes de fora da terra, os recém-vindos, arrojavam-se a ter pretensões às “Mu­sas Modernas”.

George Marcial chegara ao Rio de Janeiro depois de uma ausência de vinte e três anos em que só uma vez visitara a família em Santa Catarina, tendo aí tocado por acaso o navio em que andava, a Beagle, numa viagem para o Pacífico. Desses vinte e três anos de serviços marítimos, os seis últimos haviam sido gastos comandando steamers de comercio, de onde saíra com algumas centenas de contos de réis.

De suas longas e extraordinárias viagens por todo o mundo obtivera uma larga cultura, e a sua estada na ilustre e brava marinha inglesa, bem como o seu contato com a grande civilização dos povos mais adiantados da Europa e com a civili­zação nova e ciclópica dos Estados Unidos, dera-lhe certa mordacidade desdenhosa e cruel para as nacionalidades acanhadas e que, como a nossa, ocupam ainda um plano secundário. O espírito, de ordinário tão lúcido, de George, era vitimado por este preconceito, e os sarcasmos os mais lacerantes alvejavam sempre o Brasil, a pro­pósito até de coisas mínimas. A indignação e o desprezo que ostentava por tudo chegavam aos últimos limites e afrontavam o ridículo das opi­niões extremadas, porquanto o Comodoro pretendia, muito seriamente, por exemplo, que as nossas populações rurais não conheciam outro gênero de alimentação além da farinha de man­dioca, afetando diversos nomes. Depois com a permanência na pátria modificou algum tanto essas opiniões descabeladas, mas sempre continuou a julgar deficientíssimas as nossas coisas e o caráter nacional. Este caudaloso desdém, que dele descia para a nação como um Paulo Afonso bramante, não era verdadeiramente senão um pa­triotismo levado à loucura, por querer ver o seu país, que tem uma Majestade na vastidão do terri­tório, dominando pela altitude, pela força e pela nobreza. Detestava a monarquia brigantina, mas não se reunia aos republicanos por os achar pouco eficazes e mal orientados na propaganda às suas ideias, posto contassem em suas fileiras alguns vultos de valor.

Uma vez gabaram-lhe muito a igreja da Candelária com o seu grande zimbório, e ele apressou-se em ir vê-la; mas quase injuriou o sujeito que, para obsequiá-lo, servira de “cicerone”, dizendo-se fu­rioso pelo obrigarem a gastar tempo com “aquela insignificância”, a ele que havia contemplado maravilhas, como a catedral de Colônia, a de S. Paulo em Londres, a basílica de S. Pedro em Roma, e as imensas mesquitas de Constantinopla e do Cairo, sem falar nos admiráveis pagodes e templos da Índia e Japão. A rua do Ouvidor parecia-lhe um lamentável corredor feito por castores ou ratos, comparada às monumentais ruas de Lon­dres, Paris, S. Petersburgo, Viena e Nova York.

Os amigos diziam-lhe então, a sorrir:

— Deixa estar que você se acostuma! Ainda há de achar tudo muito lindo.

— Oh! pois não! replicava-lhes George. Mas as mulheres? Sim, as mulheres? Vocês acham que a esses corpinhos com saias que por aí enxameiam nas “vielas” se possa chamar seriamente mulheres? Umas anãs, raquíticas, enfezadas, quase sem seios, e até em geral com maus dentes! E vocês chamam a isso mulheres! E pretendem elas ser as rivais e semelhantes das mulheres dos grandes países europeus e dos Estados Unidos! Quanta pretensão!...

— Anda lá! dizia-lhe o Carlos Baker, um belo rapaz filho de ingleses mas já nascido no Brasil. Não há de tardar muito que os teus olhos se não acostumem à adorável cor de jambo. Não há nada como a moreninha brasileira!

— Se tu me mostrares alguma coisa que não seja a mocinha “figura de mesa”, um biscuizinho que apenas pode dar à luz mas não pode criar os filhos; se tu me mostrares alguma rapariga verdadeira beleza nesta terra, ó Baker, então ver-se-á o que é possível pensar a respeito...

— A coisa é simples, fez o Baker. Estamos na rua do Ouvidor, a tal ruela feita pelos ratos, como tu dizes; hoje é sábado e, inevitavelmente, veremos daqui a instantes um tipo de moça brasileira que te vai impressionar, com certeza, a Ernestina Veiga.

— Mas que estatura terá essa Ernestina? Já daqui a estou vendo a brasileira alfinim, com vozinha aguda, os modos atados, nervosa, langue, pequenina...

— É, sim; vai desdenhando que hás de ficar caidinho.

— Mas, ao menos, não se poderá saber a pro­cedência ou a origem dessa menina Veiga? Por­que não me admiraria que, sendo filha de alguma família estrangeira... possa apresentar um certo quê superior, original, hors ligne.

Qual família estrangeira, qual nada! volveu o Baker. Bem nossa e bem cabocla que é ela! É filha do senador Visconde de Chuy.

— Por que diabo então será assim tão interes­sante essa cabocla?...

— Olha, aí vem ela. Anda lá! Lança-lhe os olhos e não te faças de desdenhoso...

A donzela vinha descendo a rua em compa­nhia da mãe, uma matrona apertada em sedas pretas, de toucado e com uma gravidade senhorial. Ernestina era na verdade bela, modelada como uma estátua, cheia de graça e de uma beleza voluptuosa de mameluca. Muito espartilhada, flexível e donairosa, tinha um ar garrido e faceiro de moça que sabe que é adorada, que mil olhos a fixam pasmados, arrebatados, num embevecimento. Era por isso um tanto leviana. Quer na compa­nhia da mãe, quer na de outras pessoas, trazia sempre à cauda um admirador, um namorado, a quem vinha espalhando sorrisos, promessas e es­peranças de um futuro enlace ideal de paixão.

As suas custosas toilettes, de uma grande ori­ginalidade artística, o seu largo chapéu negro cheio de plumas e flores escarlates, a traziam sempre em relevo, muito notada, muito admirada por todos. A sua passagem despertava, não raro, entre os homens, murmúrios de adoração e de desejos sublevados.

George Marcial observava-a atentamente fiando lhe perder um gesto, um movimento, gostando daquele alvoroço de rapariga que tem o coração cheio de amor e a cabeça repleta de ilusões. Achou-lhe um encanto, uma irresistível atração nos grandes olhos negros, na boca, na sua fina pele trigueira e no seu rosto oval. E vendo-a passar por ele rua abaixo, ao lado de sua mãe, e mudamente, com um olhar banhado dum vago enlevo.

O Baker, ao perceber o interesse íntimo com que o Comodoro a seguia, perguntou-lhe à meia-voz:

 — Então, George, que te parece?

— Adorável, oh! profundamente adorável!... E os dois, até ali parados, começaram também a descer a rua até ao Paschoal, onde ela entrou triunfalmente por entre a admiração dos janotas que abriam alas à sua passagem, sequiosos de um sorriso ou de um olhar. Acompanhando, a conveniente distância, aquela flor de luxo e beleza, o Comodoro e o Baker ouviram de um rapaz de chapéu alto que também a seguia, esta exclamação entusiástica:

“É mais bonita que uma palmeira real!”

Entraram no Paschoal. Carlos, pouco cerimonioso, conhecendo bem o estilo da casa, foi logo procurando a mesa em que deviam beber e instalou-se comodamente numa cadeira, convidando o amigo a imitá-lo. George, com a hesitação de quem não conhecia a terra e seus usos, acompanhou-o, ferido pelo brilho e o reflexo dos espelhos baratos, ali colocados pretensiosamente, a cobri­rem de alto a baixo as paredes, reproduzindo continuamente, numa balbúrdia de imagens, os corpos que se moviam e cruzavam, às portas e no inte­rior do edifício, àquela hora do dia.

Um conglomerado de pequenas mesas de mármore rodeadas de cadeiras atravancava todo o âmbito do salão, onde um alegre bando chilrante de damas lanchavam, sob as gazes transparentes das vestes primaverais. Os seus chapéus bizarros, cheios de pássaros, de flores e de grandes plumas de avestruzes do Egito, lembravam, pela fulgu­ração multicor, um desses jardins da Tijuca ou de Botafogo, onde corolas preciosas desabrocham perenemente, todo o ano. À luz suave do dia, que aí pairava em crepúsculo, os olhos feminis radiavam como diamantes de uma grande vitrine, com brilhos quentes de vida e pontos negros de azeviche. E foi esse clarão de olhos bonitos o que mais atraiu a retina impressionista de George, ao entrar pela primeira vez nessa confeitaria, onde agora imperavam para ele, mais que todos, os grandes olhos rasgados de Ernestina, que o envolviam ao instante deliciosamente em fulgores de pedraria. Na sua qualidade de expatriado, de homem recém-vindo e que não conhecia a socie­dade em que ia passar a viver, o Comodoro continuou a analisar, a perscrutar tudo numa inda­gação febril de curiosidade...

À direita e à esquerda, viam-se homens entre senhoras, caras em geral inexpressivas, tomando gelados, devorando sanduíches, comendo empadi­nhas, camarões e siris recheados. Bebiam pouco, em cálices pequeninos, mas parolavam muito, es­pecialmente sobre política... Examinando todas essas fisionomias, com os olhos a pousar de mesa em mesa, de novo encontrou George o vulto gra­cioso de Ernestina, que o entontecia com o seu perfume de malva, de fruta madura. Mas um caixeiro meninote apareceu junto à mesa e o Ba­ker, voltando-se para o camarada, perguntou-lhe:

— O que se há de beber?

O Comodoro, distraidamente, quase sem olhar, murmurou:

— Whisky.

Uma vez servido, bebendo o seu whisky com água, George procurava nos olhos de Ernestina uma luz de que já se habituara a gostar, e, por sobre a escumilha as nucas lácteas das moças que punham cintilações de joias no ambiente de mistura com pequenos recantos voluptuosos de pele nua empoada — ele a fitava, de vez em quando, lançando olhares vivíssimos sobre o seu busto encantador, ao mesmo tempo que falava discretamente a Carlos sobre tudo o que via.

— E aí está por que não temos estética, dizia, nem “linha”, nem gosto, nem correção. Aqueles presuntos, aqueles pães cobertos de açúcar, aqueles biscoitos crespos atulhando cestos e latas mal pin­tadas acumuladas a todas as portas; aquelas pencas de frutas, aquele doce de calda e tudo quanto está exposto, impossibilitam o trânsito a uma senhora, manchando-lhe as rendas, nodoando-lhe a nitidez dos vestidos. Em nenhum país civi­lizado se expõem às portas dos estabelecimentos comerciais gêneros para vender, sobretudo numa confeitaria — pelo contrário, nos mais adiantados, como a Inglaterra, a França, a Alemanha e os Estados Unidos, há mostradores, mesas envidra­çadas: nenhuma casa porém é escancarada ou se desdobra para a rua: a mercadoria acha-se acomodá-la convenientemente e tudo se destaca nas lojas por uma grande ordem e incomparável asseio. Tenho notado que os empregados aqui tiram os doces e biscoitos com as mãos para os servir à freguesia. Que estupidez e que indecência! É por isso que lá fora, nas grandes civilizações, ainda acham este país impossível, selvagem. É o eterno Índio”, meu Carlos.

O Baker acudiu logo, sorrindo:

— Ora qual! Isso é um pessimismo. Tu vens de Londres, da apoplexia do ouro e do luxo, sa­turado até à medula de civilização europeia. Mas o que é afinal a civilização europeia? A civilização europeia é uma coisa chegada ao pleno desenvol­vimento, a completa maturidade. Já não tem mais que dar, e vive só de requintes. Olha que nós somos um país novo, homem! .

Ernestina, agora muito interessada na sua funda curiosidade feminina, examinava o Comodoro, que lhe parecia muito esquisito e de uma grande originalidade. Aquele aspecto sadio, ro­busto, cheio de vida, da sua fisionomia tostada pelo sol, a elegância extrema e viril, o seu bigode espesso e bem tratado, o colarinho alto e reluzente, de uma alvura de cal, os sapatos que todos reparavam de longe criticando e, sobretudo, a sua admirável cabeça sombreada de cabelos negros, o seu rosto nobre e expressivo de olhos claros e grandes, o porte elevado e ereto — a encantavam singularmente, lembrando-lhe um oficial da es­quadra de lord Tyron, que ela vira, um domingo de regatas, na enseada de Botafogo, de pé, à popa de um grande escaler de doze remos, sorrindo triunfalmente para a sua guarnição de jovens louros na vitória do primeiro páreo.

George também lhe notava a faceirice, o “chic” Parisiense, que exibia ao tomar o seu gelado, sorvendo-o delicadamente pela ponta da colherinha de prata, na garrulice arisca e airosa de um passarinho debicando a polpa doce de um fruto selvagem. E declarava a Carlos radiante:

Beautiful a Ernestina! Oh Beautiful!

E então, era ou não o que eu dizia, filho? exclamava o Baker. Deixa lá, tu já me pareces impressionado...

O outro ria-se, discretamente, num júbilo:

— Quem sabe? Talvez... Ela é na verdade soberba, e tem distinção, tem nobreza...

E levantaram-se, projetando-se muito a figura gigantesca do Comodoro, de pé, aprumado britanicamente na sua magnífica toilette feita em Regent Street. Ao saírem, Ernestina experimentou como que uma contrariedade, achando os demais homens que ali estavam insuportáveis, mesqui­nhos, banais, com fisionomias conhecidas e que não interessavam. E intimamente preocupada, lembrou à mãe que já eram horas.

Saíram; enfiaram pela rua Gonçalves Dias. Lá estavam eles, o Comodoro e o Baker, palrando repousadamente à porta da charutaria, no meio do burburinho das 4 horas. Elas passaram muito rente, quase roçando-os por entre a grande multi­dão que assaltava os tramways. Mãe e filha, então, instalaram-se num deles, a correr, com os vesti­dos arrepanhados atrás. E do alto de um banco, bem aprumada e galante nas suas vestes de seda, enquanto o carro não seguia, Ernestina arremes­sava a George, persistentemente, olhares fulgu­rantes.

O Comodoro, muito alto na sua grande fi­gura, o ar gentleman, deitava-lhe também, de vez em quando e com nobreza, os seus belos olhos claros, agitando a grossa bengala de cana entre os dedos, onde a pedra negra de um anel faiscava. O Baker, então, sacudiu-lhe as mãos à inglesa e despediu-se.

— E agora? exclamava George Marcial consigo mesmo. Agora... é segui-la.

E logo investiu para o bond, que começou a rolar, atulhado de gente.

De pé, à plataforma, soprando alegremente o fumo do seu charuto, ia pensando: esta patriciazinha me agrada, ela é nova, é bonita, tem graça e tem toilette; depois, qualquer dia, vem a casar aí com algum pobre-diabo de comerciante ou bacharel; não lhe dou seis meses... É verdade que ela parece gostar de mim, mas necessariamente há de ter o seu namorado ou o seu “pre­dileto”, que lhe vai à casa, leva-lhe flores, acompanha-a às soirées, aos teatros, curva-se todo ao sr. visconde. Não, decididamente ia manter aquilo, de longe, meio afastado, porque não convinha arredar da menina a ideia de pensar em outro, porquanto ele não podia casar-se, não era homem para semelhante tolice, e depois talvez nem se demorasse no Brasil. Era verdade que sentia por ela qualquer coisa de extraordinário, de delicioso e inefável como um trinar de pássaros em manhã clara entre arvoredo, ou como uma faixa de sol entrando por uma janela aberta numa casa de campo. Mas só por isso não valia a pena ir parar ao casamento. Pois aquilo lá podia ser com ele, que percorrera países, cidades e sítios onde a beleza tem mais prestígio, resplandece mais alto e possui cunho mais glorioso, sem se embaraçar jamais nessa bobagem do casamento, tão bem definida numa frase de Balzac; sim, com ele, que conhecera e amara as supremas formosuras da carne sem nunca render-se até aquele ponto; que resistira às incomparáveis seduções das mulheres da Áustria, da Rússia, de Inglaterra e dos Estados Unidos! Sobretudo às últimas, que chegaram a transformar a insignificância do namoro numa coisa social, um princípio filosófico — a flirtation! Lá podia dar-se com ele, que soubera re­sistir a todas as tentações! Não lhe faltava mais nada senão ir “espichar-se” com a primeira brasileira formosa que lhe aparecia! Isso era bom para os caixeiros, os comerciantes, os pobres e os sem ideias, que não saem da terra onde nas­cem, não vêm nada, não conhecem nada, tristes sujeitos totalmente desprovidos de aspirações e ideiais no seu voo terra a terra de galináceos! Para ele, não! que era homem de conhecimentos e de viagens... Mas — agora é que reparava — para que toda aquela série de considerações?! O que era certo, é que ele ali estava, a incorrer também na banalidade que tanto odiava. Vencia-o o tal “vício” brasileiro de seguir uma rapariga até à casa, através de mil peripécias, de trapalha­das, de coisas românticas e loucas, só porque ela nos atirou, de passagem, numa rua ou numa confeitaria, alguns sorrisos e alguns olhares como braçados de flores! Mas também que fazer, numa cidade como esta, onde não há quase a alegria artística dos grandes centros industriais e mentais e onde não existem divertimentos, impressões estéticas, a não ser na rua do Ouvidor, porque os teatros, uns teatrinhos reles, são frequenta­dos por uma gentinha equívoca, sem fisionomia, sem correção?! E concluía: — De resto, para mim, isto vai ser, de ora em diante, uma ocupação: posso dizer que tenho agora um ofício.

E fixava Ernestina que, de vez em quando, se voltava no banco e o olhava, sorrindo com os seus belos dentes brancos.

— Está de todo “caidinha”, murmurava então intimamente o Comodoro. Já a posso considerar “minha”, muito “minha”. É só esperar o casa­mento ou... há tanta gente que precisa de em­prego, de posição, de condecorações! Depois nada há mais facil de obter neste país que os empregos e as “condecorações”...

O tramway ia entrando agora o Catete. A um e outro lado a rua fugia, empoeirada pelo vento da tarde. As casas, as janelas fechadas, tinham um aspecto mesquinho, acachapado, triste. Ne­nhum palacete em toda a sua extensão, além de um alto prédio quadrado, as paredes de mármore róseo mas sem a menor arte nas suas linhas arquitetônicas e plantado provincianamente à esquina de uma rua: no cimo do seu frontal elevado negrejavam, como se fossem de repente alçar voo, cinco grandes águias de bronze que lhe davam um ar sinistro, funerário. As demais construções eram todas sem estilo e formavam um verdadeiro mis­tifório dos mais desencontrados padrões.

Ao chegar a Botafogo, na volta da praia, o bond parou e Ernestina e a mãe apearam. Em seguida, dirigiram-se para o portão de um lindo palacete, de grandes proporções, pintado de azul e assobradado. Na frente havia um vasto jardim de ruas areadas e brancas, circulando moitas de roseiras e arbustos com um gradil cor de bronze. Para os fundos, por cima das platibandas rendilhadas, desenhava-se, no alto, a verdura de um bosque ou de um pomar...

O Comodoro então, nobremente, com a elegância e a destreza própria de um marinheiro, saltou diante e ficou sobre o passeio, aguardando o bond que voltava. Ao atravessar o jardim, Ernestina voltou-se ainda uma vez para ele e antes de desaparecer lançou-lhe um olhar que era ao mesmo tempo uma despedida e um convite amoroso.

 

II

Domingo de verão, ao meio dia. O céu estava de um azul suave e nítido, sem a mancha do mais leve filete de nuvem. O sol, tocando agora o zênite, lançava verticalmente sobre a terra o seus raios de ouro vivo. E apesar da viração fresca, soprando dos lados da barra, um grande abafamento pesava na comburência do ar que tremia. A essa hora, da Estação da Estrada de Ferro Central um trem de subúrbios partia, na alacridade dum silvo prolongado e agudo, apinhado de gente que ia para as corridas.

Era um dia de grande prêmio no Derby-Club.

Num wagon de primeira classe que, como os demais do comboio, rolava alegremente cheio de moças, jogadores e sportsmen, achava-se o Comodoro, envergando sobrecasaca e chapéu alto de oito brilhos, e que, como sempre em toda a parte, atraía a atenção de todos pela sua “linha” e pela sua beleza viril. Sentado junto à janela, no estreito banco de palhinha, onde o incomodava constantemente a obesidade irritante e inquieta de um sujeito barbado, de óculos de ouro, com as mãos crivadas de anéis, sujeito que não obstante a fina toilette e riqueza que ostentava, mais parecia um açougueiro, — George sentia-se furioso consigo mesmo por se haver lembrado, naquele dia, de ir assistir — aliás pela primeira vez depois que vol­tara ao Brasil — a uma corrida de cavalos. O seu aborrecimento começara logo ao chegar a Estação, cujo aspecto lhe parecera mais o de um reles armazém de docas em Liverpool, que a gare prin­cipal da capital de um país embora esse se cha­masse Cafraria ou Tunísia. Depois os trens eram uma vergonha, estreitos, sujos, sem conforto. Saíra de casa alegre e feliz sob o esplendor daquele dia divino e, no entanto, conforme lhe sucedia invariavelmente na terra da pátria, ali se achava agora contrariado e cheio de spleen! E o que mais lamentava era ter de aturar tudo aquilo sozinho, ruminar intimamente as suas críticas sem um amigo com quem se expandir, pois o Baker, não sabia porque excentricidade ou vesânia, o dei­xara nesse domingo para ir à Paquetá, a um pic-nic em família.

— Bem se arrependia agora de não ter acom­panhado o Baker à pitoresca ilha, como ele tanto lhe pedira na véspera! murmurava o Comodoro de si para si.

E projetava já apear na primeira estação e tomar um landau que o levasse às Laranjeiras, afim de ir passar o resto do dia em plena nature­za, nas Paineiras ou no Corcovado, quando lhe voltou subitamente ao espírito, como pela manhã ao despertar, a lembrança alvoroçante do encon­tro com Ernestina. E pensava:

— De certo ela devia estar lá. Tratava-se de um grande prêmio, não podia faltar. O pai era sócio do Derby e, segundo lhe haviam dito, um dos principais fundadores daquela sociedade. De­pois o Chuy era rio-grandense e, como todo o bom rio-grandense, amava as corridas e amava os cavalos. E concluía: — Não, já agora irei, embora tenha de sofrer hoje mais alguma desilusão, mais alguma maçada...

Nisto o trem estacou bem ao portão do Derby. E logo os wagons entraram a despejar pelas plataformas mulheres e homens, que grazinavam álacres, em trajes de campo, e investiam apressa­damente para a entrada do prado, com os guarda-sóis pretos ou brancos de mistura às sombri­nhas de variado colorido abertos no alto, consultando os jornais esportivos, notando o programa da corrida.

George seguiu-os e ao aproximar-se do portão começou a sentir o imenso rumor de mar grosso que fazia dentro a multidão. Entrou. Pelos lambrequins e pelas colunas das arquibancadas, já repletas de povo, galhardetes, ouro, escarlate pal­pitavam ao vento, tendo ao centro, entrelaçadas artisticamente, as iniciais D. C. Na pelouse, grupos de indivíduos de toda a espécie, apopléticos, suados, com lenços ao pescoço e o cartão de en­trada metido na fita dos chapéus, numa agitação, cercavam os book-makers, que, num berreiro, apre­goavam já poules e frações.

Ia começar o primeiro páreo.

Ao chegar à escadaria das arquibancadas, Mar­cial parou um instante a olhar a raia e toda a paisagem do prado, achando o sítio um encanto.

Já então sobre os gramados, de um verde pri­maveril e cantante, estacionavam as carruagens, as caleches, as vitórias, os dog-carts e os fáetons, sobre cujas almofadas se erguiam, em ati­tudes pretensiosas, as silhuetas das “horizontais”, que abriam no alto, com os pequeninos para-sóis escarlates, brancos, amarelos ou azuis, bem assim com as suas toilettes espaventosas, a cores gri­tantes, uma enorme mancha pinturesca que o sol de ouro hilarizava. Os gommeux ao lado, com um ar canaille, binoculizavam constantemente as mulheres do pavilhão central e das arquibancadas, enquanto os postilhões e os groons, as caras esca­nhoadas à romana, muito perfilados nas suas li­brés brancacentas ou cor de pinhão, as rédeas nas mãos enluvadas, os chicotes suspensos, continham o frenesi dos toncis e dos normandos árdegos, que escarvavam o chão de vez em quando, sacu­dindo as cabeças em tilintadas sonoras de barbelas e correntes metálicas.

No encilhamento, onde só têm entrada os sócios, os proprietários de animais, os jockeys e os convidados, cochichava-se, falava-se ao ouvido, faziam-se furtivos sinais, na indagação das tramoias e tribofes, do valor e da saúde dos pare­lheiros. Aí os animais que deviam tomar parte no primeiro páreo, já montados pelos jockeys que vestiam roupas de cetim de todas as cores, vol­teavam a passo sob as amendoeiras.

De repente, as badaladas da sineta anunciaram a partida dos cavalos para a raia. O movi­mento e o rumor da multidão subiram de ponto, os pregões dos book-makers aumentaram:

— Vai fechar! Poules e frações em todos os animais!...

E os parelheiros, deixando o encilhamento decerto, foram saindo, um a um, e se reunindo na pista sob a bandeira vermelha do starter, que o alinhava para dar o sinal da partida

O Comodoro lembrou-se então de ir tomar o seu lugar. Mas antes de subir quis dar uma volta até ao pavilhão da diretoria, para ver se descobria Ernestina. Encaminhava-se para lá, quan­do subitamente da boca dos espectadores uma nervosa exclamação irrompeu:

— Saíram!

Voltou-se logo para a raia. Um novelo de poeira erguia-se vagamente, dourado pelo sol, e através dele pontos negros fugiam celeremente fazendo a grande volta circular. Por instantes que­dou-se a olhar a partida; mas, em pouco, tornando à sua preocupação íntima, continuou o passeio por entre os grupos dos jogadores que, mudos e de pé, estatelados em profunda emoção, acompa­nhavam ansiosamente, com os olhos, a vertiginosa corrida.

Os animais entravam justamente a reta de chegada, quando George avistou Ernestina, deli­ciosa nas suas vestes de caxemira clara, ao lado do seu pai, um homem alto e forte como um Hércules, com os cabelos e as barbas alvejados pelos anos, e que, meio curvado para a esposa, sentada ao pé de si, dizia-lhe algumas palavras, todo ex­pansivo e risonho. Muito interessada pela Feniana, a sua égua favorita que correra no primeiro páreo, Ernestina só veio a dar com o Comodoro no momento em que este fora postar-se à grade fronteira ao pavilhão central, de onde a cumpri­mentou com a maior distinção e sorrindo. A moça, muito surpreendida, correspondeu-lhe com um leve aceno de cabeça, admirada daquela audácia dele, mas intimamente feliz por o ver...

No entanto apregoavam-se poules para o se­gundo páreo. Os jogadores, agora em maior número, agitavam-se em torno dos book-makers, mais apopléticos e mais suados ainda, discutindo furio­samente sobre o valor dos cavalos, comprando cheques e cheques numa desmedida ambição de lucros.

George, um tanto fatigado e sufocado do ca­lor, aproveitando o instante em que Ernestina se voltara para atender a um bando de amigas que a tinham ido cumprimentar, correu a um dos bo­tequins afim de tomar um grog. Quando voltou já os animais do segundo páreo estavam na raia.

Ernestina, agora, conversava com a mãe e as outras moças, toda graciosa e risonha, os belos olhos negros de gazela voltados de vez em quando para o Comodoro. Ao fundo, o visconde de Chuy, seu pai, o ventre proeminente, no seu todo atlético e mole, palestrava discreta e conselheiramente com um sujeito esguio, pequenino, o rosto chupado e seco, negrucho, que trajava de preto, sem a menor linha”, com uma cartola à antiga e luvas, escuras no bolso do croisé, um tipo bacharelado em direito, deputado geral por uma província do norte e entregue à mania intolerável da geografia e da literatura Indianista.

George teve uma impressão desagradável, aquele sujeito, com um físico enfezado e ridículo, lembrava-lhe um descendente perfeito desses povos degenerados da Ásia, um habitante indígena de Sião ou Malaca, que ali se viera colocar estranhamente para afrontar a sua estética e a sua “paixão”, perturbando o encanto da moça com a hedionda figura do seu todo ciprestal.

— Mas quem seria aquele ente, raquítico feio como um chin? perguntava-se mentalmente. Talvez o namorado, talvez o noivo...

Agora o tipo dirigia-se à Ernestina que pare­cia não ouvi-lo, pois olhava vagamente para a pista, para o ar, para a paisagem em volta ostentando-se, muito linda e tropical, no horizonte além, onde corriam altas montanhas azuis e rochedos cinzen­tos, disformes, sobressaindo, em cristas atalaiantes de verdura, os píncaros iluminados do Corcovado e da Tijuca. O visconde de Chuy, de pé, na linha do fundo, ao lado do dr. Henrique — tal era o nome do homem enfezado que tanto aborrecia o Comodoro — prestava-lhe toda a atenção, embeve­cido nas palavras que de seus lábios saíam e que ia comentando com o seu costumado abanar de cabeça e uns sorrisos de admiração, tirando de vez em quando do bolso o lenço de seda encarnada e a rica tabaqueira de ouro, de bela tampa lavorada.

O homenzinho asiático, animado pela atitude apologética do visconde, e dirigindo-se sempre a Ernestina, perorava retoricamente e com muitas “chapas, sobre as violetas que ela trazia graciosamente, num ramilhete adorável, sobre a curva cheia do colo; explicava minuciosamente, com os ósseos dedos de tísico unidos em molhos no ar, qual o significado amoroso daquela flor e qual o seu cultivo botânico, rematando as frases empo­ladas e ocas com esta ideia sediça:

— A violeta, Mademoiselle, é o emblema da modéstia!...

O visconde achou-o “genial”, louvou-lhe a ima­ginação, o talento, a eloquência, que qualificou de “castiça”, comparando-o a “um Padre Vieira”, a “um Pinheiro Chagas”. Mas para lisonjear mais altamente ao bacharel foi até a antiguidade re­mota, cuja história dizia ser a sua “especialidade”, e exclamou curvando-se um pouco e sorrindo:

— Você, Henrique, faz lembrar Cícero ou Demóstenes !

— Qual! senador. Eu serei quando muito um humilde admirador dessas glórias, dessas celebri­dades. Faço, entretanto, por seguir-lhes os condoreiros voos...

— Não, filho, não! ponhamos de parte a modéstia, sobretudo quando se está entre amigos, oficiais do mesmo ofício”. Aquele discurso de 85, no S. Pedro, sobre a arte dramática e aquele outro que fizeste, o ano passado, no Instituto Histórico, a propósito da tua Corografia do Piauí, são obras para um Ayres de Casal, um Candido Mendes... Depois soubeste dar-lhes um verdadeiro cunho patriótico, civilizador, grandioso, de conformidade com as instituições deste nosso grande Império democrata. Quem me dera, ai! quem me dera produções assim!...

Ernestina, aproveitando a discussão entre ambos, voltou as costas ao bacharel e, debruçando-se muito da grade, pôs-se a fixar o Comodoro, que a olhava discretamente, numa atitude de gentleman. E até ao quinto páreo, em que se disputou o “Grande Rio de Janeiro”, George e a moça, mudamente, com os olhos, enlearam-se e sumiram-se um no outro, em carícias de amor...

Mas de repente, o dr. Henrique interrompeu bruscamente o visconde, ensandecido de ódio, diante daquele namoro inopinado de Ernestina até então desconhecido para ele. E dando um passo ner­voso e louco para a frente, foi colocar-se bem pelas costas da moça, abandonando assim a con­versa e a gloriosa comparação com Antonio Vieira e com Chagas, que lhe fazia o Chuy, no intuito de o distinguir, pois era seu costume, afirmava, “acoroçoar sempre com bondade aos jovens ora­dores”. Profundamente inquieto, as mãos sobre o espaldar da cadeira onde estava Ernestina, um arrepio de temor na medula, o deputado e corógrafo tremia, vendo naquela flirtation terrível uma ameaça e uma derrota de todo o seu futuro.

Não é que estivesse completamente sob a pressão da formosura da jovem e sentisse os arrastamentos de uma fascinação única. Não era homem para essas coisas. Materialão, prosaico, ambicioso, só percebia o lado utilitário de tudo. Certamente não era insensível à beleza ideal e às formas esculturais da rapariga, mas faria o casamento da mesma maneira em circunstâncias contrárias.

Eleito deputado geral naquele ano, pelo 1° distrito do Piauí, o dr. Henrique devia a sua posição a um bambúrrio eleitoral, verdadeiro arranjo político, inesperado, de ocasião. Viera à Câmara com certas pretensões a orador, nascidas certamente no borburinho das festas acadêmicas em que tomara parte no Recife, nos últimos anos de direito. Mas o seu primeiro discurso, como re­presentante do povo piauiense, ou a “estréia auspiciosa e feliz”, como a chamava o Chuy, fora um perfeito “fiasco”, pois as bancadas ficaram para logo vazias aos primeiros períodos, muito retóricos e decorados, que pronunciara, desan­dando a oratória no mais completo mistifório de imagens literárias e raptos sermonários, à agressão esfuziante dos apartes humorísticos que sobre ele choviam partindo do pequeno grupo de complacentes que se quedara na sala a ouvi-lo. Não obstante, audaz e louco que era, sempre que havia ocasião pedia a palavra a pretexto do tudo. Temia no entanto que lhe não renovassem o mandato, porque a oposição na província o atacava furiosamente, fulminando-o com verdades e intrigas. Nestas condições só aquele casamento o poderia salvar, e por isso agarrava-se a ele com “unhas e dentes”, visto ser-lhe indispensável, para a reeleição, o prestígio de um senador e homem do Paço.

Apresentado um dia, por um seu colega, ao visconde de Chuy, este lhe fizera no lar um acolhimento afetivo e sincero, na sua bondade e otimismo de velho, por haver lido uns discursos do Henrique, insignificantes e vazios todos, mas muito emendados pelo redator dos debates, o conhecidíssimo Moreira. O Moreira, agarrando palavra aqui, palavra ali, pelo sentido, reconstruía com habilidade o monstro, à maneira do que fazia outrora o velho Cuvier com os animais paleon­tológicos. O senador babava-se todo pela retórica, pelos discursos bombásticos, pelas “chapas” da ênfase, e sentia na sua incompetência incon­sciente grandes entusiasmos pelo moço depu­tado, quase sempre falando mal, meio tatibitate, as palavras pronunciadas com um tom arrastado, descansado, de sonolência e preguiça. No Hen­rique via o visconde um rapaz apresentável, mo­rigerado e bondoso, a quem estava reservado um belo futuro, pelo que observava com satisfação as pretensões dele à filha.

— Pode dar um bom marido, dizia S. Ex. fre­quentes vezes de si para si.

E notando que a filha esquivava-se às amabilidades e importunidades tolas do moço, falara cautelosamente à consorte que entrou a aconse­lhar a menina que se tornasse moderada, amável, tolerante. Fora ela, a velha senadora, que ado­tara e achara bom o casamento. Por seus con­selhos e sua coação carinhosa, Ernestina se re­solvera, depois de muitas lutas, a aceitar as homenagens mal-arranjadas e trapalhonas do Henrique. Aguardava, porém, ocasião apropriada para descartar-se dele, não julgando absoluta­mente possível que as coisas fossem até ao casamento, porque a ela, por temperamento, fantasia e sentimento artístico inato, repugnava-lhe semelhante homem. Nessas disposições de espírito apareceu-lhe o Comodoro, e daí a rapidez com que, em seu seio opulento e virgem, se levantou o incêndio de uma paixão. Agora, no prado, era uma excelente ocasião para realizar a primeira demonstração de antipatia, banir a espécie de armistício em que viviam e erguer afoitamente, com a intrepidez nervosa das mulhe­res, o estado de guerra. De tudo isto o visconde não pescou coisa alguma, e só a senadora achou umas palavras de leve censura à filha pela desatenção que dava às corridas e ao que se passava em redor, desde a entrada do “janota estrangeiro”.

— Ernestina, o que é isto? você está toda no ar, filha!

— É por causa das poules! gaguejou o Hen­rique com um ar muito gauche. Comprou uma porção e, decerto, agora, está a fazer cálculos, com a sua ambiçãozinha de ganhar!

Era o último páreo. Mal chegaram os animais começou a debandada, o assalto aos wagons, sob a pilhéria néscia e rude de alguns sujeitos que as proferiam no aperto da multidão, maculando a doçura e o encanto da hora, emprestando aos va­gos dourados meridionais do crepúsculo lindíssimo um ar baixo e chulo.

O dr. Henrique, muito enciumado e furioso com o que lhe fizera a moça, teve vontade de abandonar a família antes de tomar o trem. Mas visconde agarrou-o pelo braço, convidando-o para jantar, como fazia sempre. O rapaz, depois de muitas escusas, acedeu por fim; entretanto, no seu mutismo e amuo, ruminava intimamente pretexto de escapar-se. Na rua Gonçalves Dias tomaram o bond de Botafogo e ao enfrentar Tipografia Nacional, o deputado, apresentando motivo de um discurso a rever, desculpou-se de não ir mais longe e embarafustou pelo edifício, ainda a essa hora deserto, aos olhares surpresos de um servente, um preto velho. Mas, logo que bond desapareceu, atirou-se a pé, agitadíssimo inquieto, pela rua de S. José, para o hotel onde estava hospedado, o Coroa de Ouro, no cais do Pharoux.

Subiu nervosamente as escadas em direção ao quarto, e, mudando de roupa, começou a refletir:

— Quem seria aquele sujeito das corridas, muito correto com um porte nobre, que lhe aparecia assim, quase com o casamento feito, à última hora, como um trouble fête? Havia de inda­gar. Ele parecia um rapaz rico, um dandi, muito na moda, com um jeito inglês. Talvez na rua do Ouvidor o conhecessem, lhe informassem quem era. Não é que temesse um desarranjo completo no seu noivado: bacharele advogado, conhecia que essas veleidades nunca ou muito raramente chegam a resultado. Tudo reduz-se a puras fan­tasias românticas, a flamas que vêm, em certa época, às raparigas, mas que são logo dissipadas pelo bom senso e a disciplina das famílias no ar­ranjo dos casamentos pacatos e convenientes. Mas é que sentia agora uma perturbação de amor‑próprio magoado, porque aqueles olhares cons­tantes de Ernestina e o grande ar olímpico e so­berano daquele estranho, que parecia escarnecer dele, observá-lo como uma raridade, um aleijão, um fenômeno — punham-lhe tempestades no coração. E resolveu não ir, no outro dia à noite, à casa do senador. Era o seu protesto. Porque, no fim de contas, ele também não era um “coisa à toa”, a quem se preterisse pelo primeiro recém-vindo...

Com efeito, nessa noite, o visconde de Chuy teve de lamentar com tristeza a falta de um dos companheiros do voltarete. E, como ao outro dia o Henrique não lhe aparecesse ainda, a sós com a esposa, o senador comentava a ausência do amigo:

— Teria adoecido o Henrique! ou eram os seus discursos que o retinham até àquelas horas na banca da escrita, porque pareceu-me ouvir que tencionava entrar em preparo de novas produ­ções oratórias...

A mulher, muito ponderada, fê-lo chegar à razão com o seu bom senso caseiro de matrona, informando-o de que a filha fizera correr de esfuziote o noivo, e tudo por causa de um “janota estrangeiro “ que tinha visto, primeiro na rua do Ouvidor e, naquele último domingo, no Derby...

— Precisas então ver isso, Genoveva, tomar sentido nisso! disse o senador preocupado.

— Já fiz ver tudo à Titina, homem! Mostrei-lhe a inconveniência... Aquela menina! Vejam só que doidice!...

E para dissipar a má impressão, o senador, no dia seguinte, passou pela Câmara dos Deputados, e arrastou, a jantar, o Henrique.

Ernestina só apareceu depois de estarem todos à mesa, e finda a refeição recolheu-se de novo ao seu gabinete de toilette, que ficava por cima da sala de visitas, de sorte que, no silêncio da casa, o bacharel ouvia nervosamente o tic-tac in­quieto dos saltos das botinas dela, ressoando no sobrado, à maneira do ruído pertinaz e impor­tuno de ratinhos passeando e amando no forro. A moça estava furiosa com aquela caceteação:

— Lá estava o estafermo, em baixo, e com cer­teza queria conversa. Talvez até se animasse a exprobrações! Vejam o atrevimento do idiota com as costas quentes da proteção de meus pais! Olhem que se não podia aturar mais! Mas dei­xassem estar, ela havia de ensinar ao desengra­çado de conversas enjoativas e tolas! Como porém proceder naquele instante? Não era possível fi­car toda a tarde no toilette!

E resignadamente veio descendo, com lenti­dão, os degraus. Na sala refugiou-se atrás do piano; e abrindo-o correu os dedos pelo teclado. Principiou a tocar a Dolores: e todo o sentimentalismo daquela valsa envolveu-a em espirais de uma doçura terna e magoante, como deviam ser os abraços e o enlaçado de uma paixão. Toda ner­vosa, vogando na suavidade das notas em lá me­nor, sentia-se enlevada sob a tepidez das carícias de um gentleman, formoso como um Adonis e robusto como um guerreiro. Nuvens feitas com os sons veludosos da música, róseas e auroriais, sustinham ambos no Espaço, protegendo os seus amores... E o busto imponente do Comodoro aparecia-lhe agora com uma atração irresistível.

Assim deliciosamente devaneava, quando um crocitar de corvo surdiu ao pé dela, afugentando-lhe aqueles doces cismares. Era o dr. Henrique, que, estendendo-lhe a mão, como desejoso de que a música parasse, começou a dizer-lhe atrapalhadamente na sala deserta, abandonada proposital­mente pelo visconde e a esposa:

— Precisava de uma explicação! Não podia dispensar uma explicação! Sim, porque tinha um “aperto n'alma” desde domingo...

Ernestina, habilmente, para se furtar a um tête-à-tête impossível, desagradável, fingiu não compreender a interpelação, e deixando o piano correu à janela.

Nessa ocasião, sobre os rebrilhamentos cor de cobre do ocaso, vinham vindo pelo passeio, numa tranquilidade de deuses ou de animais far­tos e repousados, o Comodoro e o Baker. Pareceu-lhe então que não era a luz despedida do céu ou do horizonte, mas a luz dos olhos de George que a envolvia num clarão de uma doçura amo­rosa.

— Então não responde? gemeu-lhe pelas cos­tas o Henrique, que a seguira até à janela.

Mas, ao deparar com os dois homens que iam descendo agora pela linha do cais em direção à cidade, ficou como louco numa onda de cólera.

Ernestina, aborrecida por o ver ao seu lado justamente quando o Comodoro voltava-se todo para ela numa rutilação de olhares, debruçada como estava da sacada, retorquiu-lhe vivamente com um timbre agastado:

— Responder o que? Ora essa! Que tolice e que impertinência! Até não parecia de um cava­lheiro aquele modo!

Henrique conteve-se, viu que tinha sido incon­veniente e que ia deitando tudo a perder. Com uma moça assim tão “nervosa”, a menor exigência podia ser um rompimento, e tudo “iria por água abaixo”. E num tour de force de perspicácia:

— Desculpe, Titina. Não era intenção minha ofendê-la. Apenas desejo não ser esquecido e o mais que fiz foi por um impulso do coração tor­turado...

— Ora, sr. dr. Henrique Teixeira!... Não fora melhor que me não tivesse interrompido?... Não gosta de música porventura?... O senhor foi quem me fez chegar à janela... Por que, pois, me recrimina?...

Todo curvo, como numa aceitação resignada de tudo quanto ela dizia, o rosto negrucho e seco manchado ainda de palidez pelo furor íntimo que sentira ao avistar o Comodoro, o de­putado gaguejou teatralmente:

— Perdão! Perdão! Não a interromperei mais. Pode ir tocar tranquilamente. Sou um seu escravo...

George Marcial e Carlos Baker tinham parado à primeira esquina, sob um flamboyant florido que roçava a ramaria larga pelo gradil bronzeado do jardim contíguo, entrelaçando as pontas altas, em lança, na profusão primaveril das corolas es­carlates. Troçavam ambos, a pequenas risadas, a figura simiesca do Henrique que à sacada, por detrás do busto vaporoso da moça, arrojava olhares desvairados para a rua, para eles, colericamente, como quem atira pedradas. E, palrando e rindo alegremente à custa do deputado, aguardavam o primeiro tramway que descesse para voltar à cidade.

Anoitecia no entanto. Já pela vasta curva da praia começavam a rutilar, aqui e ali, as chamas vermelhas dos lampiões de gás. Da cidade fileiras de bonds cheios subiam pesadamente, com gente a transbordar dos balaustres e plataforma apinhadas. As águas da pitoresca enseada, à proporção que a sombra cobria o céu onde as estrelas surgiam em zig-zags dourados, desmaiavam seu azul, transformando-se lentamente, no seu contorno de arena, numa planície de prata. As luzes todas em torno espelhavam-se aí tão feérica como numa festa de Ondinas em fundo d’águas lendárias!

O Comodoro e o Baker, numa mudez de enlevados, quedaram-se a olhar por instantes a paisagem magnífica daquele sítio ideal. Mas um bond apontou de repente à esquina da rua dos Voluntários da Pátria e os dois, arrancando-se à contemplação em que estavam, dirigiram-se para ele a gigantescas passadas. Embarcaram. Ernestina tinha voltado à sacada, pois lá estava a sua toilette clara de crepe da China, que trazia à tarde, a destacar-se vagamente sobre o fundo cor de ouro do salão iluminado. Sozinha à janela, sem a companhia desagradável do Henrique, a moça percebendo George e o amigo acomodados no último banco do bond, entrou a segui-los com o olhar até à altura da rua Marquês de Abrantes, onde o carro se sumiu contornando a curva de aço...

Os dois amigos, muito juntos no banco, con­versavam agora discretamente sobre vários assuntos.

— Sabes? disse Baker ao camarada, tenho uma boa notícia a dar-te. Lembras-te daquela viagem que fizemos juntos de Southampton para Glasgow, quando comandavas o Hobart da carreira da Austrália? Recordas-te da célebre Lady Victória, a inglesa de rôxo que embarcara no Cabo, e que tanto te impressionara pelo seu todo esguio de espectro, mas de uma beleza peregrina nesse traje funerário que não tirava jamais?...

— Oh! perfeitamente respondeu George, pa­rece que a estou vendo... Mas que é?...

— Lady Victória está no Rio de Janeiro. Se me não engano, era ela a pessoa que vi, ontem, ao descer da Tijuca, em frente ao Portão Vermelho. Ia num carro aberto, indefectivelmente de roxo, como seu enorme e elegante chapéu de laços negros. Foi num relance, ao cruzarem-se os nossos carros. Olhei ainda para trás, mas o seu caleche fugia velozmente, de maneira que não me pude certificar bem.

— O que me dizes, Carlos?! É encantadora! Si ela está aí, vou vê-la. Ainda lhe sinto o per­fume d’água de Colônia e lhe vejo os olhos cisoradores, onde erravam visões de legenda escocesa, Lady Victória é uma mulher extraordinária, não tem talvez igual na espécie, parece-se com a grande civilização de onde provêm e lembra bem um lírio roxo do Eufrates. Vou amanhã à Tijuca. Espera-me lá que almoçarei contigo. Victória far-me-á esquecer Ernestina. E depois toma-se um fartão, ó Baker, de beleza e carne boreal! .. .

Lady Victória Churchill era na verdade uma inglesa singular. Nascera na Escócia, numa encantadora cidade das margens do Clyde e, por paixão, casara com lord Herbert Churchill, do Almirantado, muito rico e célebre como grande marinheiro, e que a amava com o amor dos for­tes, dos vencedores. Victória pertencia a uma no­bre família de puritanos que tinha castelos e her­dades, fazendo agricultar os seus campos pelos rendeiros escoceses. Enviuvara aos vinte e seis anos e, como sinal de pesar pela morte de lord Churchill, a quem adorava, adoptara essa toilette roxa a que aludira o Baker. Separara-se da família, mal aquele golpe a ferira, resolvendo correr o mundo inteiro para sufocar a sua dor na ver­tigem das viagens. Lord Churchill tinha deixado uma fortuna prodigiosa: possuía grande número de estabelecimentos industriais em Glasgow e isso habilitara Lady Victória a realizar o seu plano matematicamente. Foi assim que, partindo num grande steamer inglês para a Índia, passara depois à Austrália, daí continuara a percorrer todas as ilhas da Oceania, todos os países de Ásia e de África, onde embarcara, de volta à Inglaterra, no Hobart, então sob o cominando de George. Descansou um pouco em sua cidade natal. Mas, ansiosa outra vez por andar, andar, andar, dirigiu-se para a América do Norte, que visitou miu­damente; e, descendo pelo México e Colômbia, viera parar agora à Capital do Brasil, afim de cansar de todo talvez a sua nevrose das paisa­gens... Nem uma vez nos continentes percorri­dos, nas cidades que vira pode um olhar de homem comover o seu coração encarcerado numa eterna saudade, a sua cabeça onde bailavam os cânticos da sua religião e as frases severas de seus sacerdotes! Alta, esguia, esquisita, talhada como uma garça, Lady Victória andarilhou todo o globo na sua eterna toilette roxa, com as suas revistas inglesas e a sua bela cabeça, de onde es­corriam uns cabelos de ouro fulvo que pareciam feitos de Champagne e de vinho Xerez. Nem uma amiga a acompanhara, nem uma galga. Ninguém! Ela e a sua paixão, nada mais!...

Tal era a dama de quem se ocupavam o Comodoro e o Baker na animada conversação, entre­tida da rua Marquês de Abrantes à cidade.

— Oh! George, mas essa inglesa deve ser extraordinária! fez de repente o Baker. É o tipo do castelo de virtudes” — invulnerável! Lem­bras-te do seu procedimento a bordo? Só faltou que nos andasse ao colo. Não houve nada que lhe não oferecêssemos e ela apenas mal sorria, com os seus dentes miudinhos de gata e os seus olhos azuis de tulipa ártica...

— Na verdade, lady Victória era assim, disse o Comodoro. Mas depois disso estive com ela em Nova York, passeamos juntos várias vezes. Andava ainda muito triste, nas vestes de eterno lilás, mas olhava já para tudo, enfeitando-se a bouquets de violetas e notando as coisas com gra­ça... Depois, numa viagem que fizemos juntos ao México, ficamos dois bons amigos, e ao passarmos a Havana, tínhamos já intimidade... Mas eu tive de ir a Londres e ela seguiu então num paquete holandês para o golfo de Dárien... No último shake-hands que trocamos, perguntando-lhe se ainda acaso nos veríamos na vida, murmurou mansamente: “oh! sim, caro Comodoro, e talvez em sua pátria”... E ali estava. De certo vinha ao seu encontro. Iria pois visitá-la à Tijuca por aqueles dias.

O bond tinha chegado quase vazio ao “ponto” da cidade. Os dois saltaram intrepidamente e, estacando no passeio fronteiro, entraram a combi­nar em que hotel jantariam.

— Vamos ao Londres! exclamou de repente o Baker.

— Não, é horrível. Aquilo é o covil dos vadios da rua do Ouvidor.

— Então, ao Bragança!

— Pior! os caixeiros, como toda a gente aqui, têm a mania baixa da intriga e do boato político, retorquiu George.

O amigo, já inquieto e nervoso nos seus modos brasileiros, gritou-lhe:

— Mas então onde iremos nós jantar?... — Sei lá! Vamos ao Globo, que apesar de ter vinhos detestáveis e de não ter conforto, é o melhor hotel desta triste capital.

 

III

Depois da cena desagradável passada entre Ernestina e o dr. Henrique, este, desorientado, apenas voltaram à sala o visconde e a esposa, des­pediu-se dizendo que não podia demorar-se mais, porque no outro dia saía um paquete para o norte e tinha de responder às cartas urgentes dos ami­gos políticos. Muito agitado, com o espírito em tumulto, ao sair o portão não quis tomar o bond receoso de encontrar algum amigo ou conhecido que lhe descobrisse no rosto sinais de aflição. Resolveu então ir caminhando a pé até ao largo do Machado, pois precisava da ginástica do movimento para se aliviar. E afim de afastar-se o mais depressa possível daquela casa de onde saía como um “escorraçado”, entrou a caminhar a passadas violentas sob as árvores do passeio, cosido à grade dos jardins, como quem se oculta de um crime. Tomado ainda do nervosismo, ia pensando todo trêmulo nas sacudidelas da marcha:

— É verdade, nunca pensei que a Titina me fizesse o que fez! Tratou-me com pouco caso, com indiferença e dureza, fascinada pelo “outro”... E sentindo o passo arrastar sem querer, tropeçando constantemente nas lajes já gastas e desiguais, resmungava surdamente, proferindo sozinho palavras destacadas, incoerentes. Chegava à rua Marquês de Abrantes, quando um vulto de cartola, atravessando-se-lhe à frente, fê-lo parar exclamando:

— Então, o João Artur cai ou não cai?! Vocês precisam ver isso, acabar com isso... É tomar uma resolução e constituir um ministério forte!

O Henrique, erguendo a cabeça, reconheceu o interrogante. Era o dr. Lúcio Nóbrega, advogado de certa nomeada, antigo chefe conservador. É ex-deputado geral pela sua província. Quis retrucar logo, mas ao primeiro momento aquela deslocação de ideias deu-lhe um alheamento uma dificuldade de resposta. Passado um instante, porém, atirou-lhe aborrecido, como para se ver livre de uma coisa importuna:

— Mas a que vem isto, Nóbrega? Que pergunta intempestiva! Qual cair, qual nada! Tolices... É uma loucura todo este negócio da oposição! O que estão fazendo é tornar possível a subida dos liberais!...

O Nóbrega, plantada ao lado do Henrique que voltara a caminhar, insistia entretanto com a sua voz trovejante:

— O ministério está perdido com os Loyos, talvez não se aguente por muito tempo! O João Artur tem sido de um descuido inqualificável, isto desde a escolha do ministério! Ora, chamar Florindo Vianna!...

O Teixeira estava furioso com aquela história, aquela importunação, e já concordava em tudo para achar uma despedida. E o Nóbrega largou-o, com efeito, à travessa Marquês do Paraná, mas ao perder-se no escuro das casas arrumou-lhe ainda com esta:

— Vocês não se aguentam, não penses! Com chefes irresolutos e fracos é isto mesmo — catapruz!

 O Henrique, sem fazer caso da rajada, respirou com alívio:

— Ora vai-te, maçante!...

E continuou na sua andada ligeira por um dos passeios.

Dois carroções, dos que conduzem carne verde aos açougues, e algumas carruagens que subiam para Botafogo, atropelavam-se na rua de envolta com os bonds correndo em sentido oposto. As duas grandes reticências fulvas de gás, lançadas ao longo das calçadas, eram cortadas de instante a instante pelos vultos desses veículos que se arras­tavam ruidosamente sobre as rodas oscilantes.

Em pouco o pobre rapaz chegou ao largo do Machado. A profusão de luzes saída da estação de bonds abria na noite um clarão violento, do seio do qual apregoavam-se jornais da tarde, ba­las e bilhetes de loteria. Um dos vendedores, vendo-o parado, aguardando o tramway, acercou-se e colocando-se à sua frente estendia-lhe os bilhetes em leque, gritando:

— É a grande: seiscentos contos!

Mas um bond apareceu e o Henrique enfiou-se logo para dentro. Fatigado chegou ao hotel Coroa de Ouro onde encontrou cartas do norte. Subiu e foi abri-las no quarto: eram, em totalidade, pedidos de eleitores, algumas queixosas, outra mostrando já uma pontinha de arrogância de votantes descontentes. Certas comunicações mais íntimas, encomendavam-lhe objetos, utensílios domésticos, máquinas de costura, e outras botinas, chapéus de senhora, caixinhas de música! Os jornais da província, mal escritos e mal impressos, amontoavam-se em maços que o correio trouxera...

O Henrique, muito nervoso, entregue aos seus pensamentos, preocupado em achar uma solução ao negócio que o azoinava, atirou tudo aquilo de trambolhão para um canto do quarto:

— Estes idiotas não têm que fazer! Já estou enjoado! É esta cantiga sempre por todos os correios! Se fosse a mandar as encomendas que me pedem, acabaria por deitar bazar!...

E entregando-se inteiramente à ideia que o escorraçara e impelira a vir a pé de Botafogo ao largo do Machado, principiou a refletir:

— Realmente a coisa mudara muito desde o aparecimento daquele sujeito estrangeirado! Com certeza era algum banqueiro inglês. Precisava tomar sentido, do contrário seria embrulhado, correria o risco de perder o lanço. A rapariga era de impressões, tinha muito “romance” no espírito, podia por aí arranjar-lhe alguma! Mas como de repente haviam armado aquela história? Era pre­ciso lábia, na verdade! Se não fossem as corridas, era capaz de ignorar ainda toda a velhacada. E naquela tarde com que desplante se olharam na presença dele! Apenas começavam e já se tornavam escandalosos. Certamente que também tinha, em parte, grande culpa. Por que razão não se ha­via até agora definido, deixando a posição dúbia de namorado? Por que razão não a tinha pedido em casamento? Tomaria assim uma direção clara, retilínea, segura. Principiaria desde então a ter direitos”, a falar desassombradamente... Já era aceito, tinha plena certeza, pelo senador e a esposa, faltando apenas a formalidade do “sim” de Ernes­tina, o que viria, como sempre acontece, após uma resistenciazinha e negaças de pomba amorosa...

Assim pensando, assentara entender-se dentro em breve com o visconde, pedir-lhe categórica e formalmente a filha. Sim, porque o negócio com o outro” era uma tolice, não valia nada. Talvez até fosse devido a não se ter decidido “pedi-la” desde logo. Era isso, certamente, pois “conhecia bem as moças”. Aquela história com o “estrangeiro” não tinha importância, jurava...

Acalmara totalmente. E mandando vir cerveja, deliberou passar o resto da noite, para distrair-se, nalgum teatro.

Saiu. Subiu a rua Sete de Setembro e caiu no largo do Rocio. Daí enfiou pela do Espírito San­to, em direção ao Sant'Ana. Entrou. Representava-se uma das revistas em voga.

Uma concorrência enorme alastrava-se pelo recinto do edifício e por todo o jardim. Era, em geral, gente do comércio, estudantes, militares e provincianos, suando muito sob o calor dos numerosos bicos de gás ardendo em profusão, no abafamento excessivo da noite de outono. Por entre os arbustos iluminados, gomosas, na maio parte comuns, conhecidas, gastas, passeava de mesa em mesa, todas risonhas e dengosas, com um ar acessível e barato. Recebiam, aqui e ali, uma pachuchada, uma troça, um dito, e, sentan­do-se entre os homens que as chamavam, rom­piam a ingurgitar copázios de cerveja. O dr. Hen­rique achava aquilo uma coisa estranha, feérica, sublime! Aquelas mulheres pareciam-lhe deusas, brancas e rosadas como eram: e lembrava-se então vagamente das Ninfas que, com aquele rostos e encantos, ele vira pintadas, em criança, numa edição ilustrada do Télémaque. Não se animava, porém, a dirigir-lhes a palavra, a convidá-las para qualquer coisa. E pensava desapontadamente:

— Para isto não há como os rapazes do Rio! São desembaraçados, têm jeito...

Mas a orquestra que tocava, emudeceu de repente. O pano de boca subiu, no ruído grosso do teatro repleto de gente: e logo, no silêncio difícil trazido pelos “psius”, sobre o tablado cheio de vistas, surgiram mulheres em vestes de meia cor-de-rosa, quase nuas, que principiaram a cantarolar, a desenrolar um “maxixe”. Os seus quadris redondos tinham um movimento peneirado, e os compassos da música animalizavam os gestos, as vozes, dando-lhes uma intenção ge­nesíaca.

Sucediam-se ininterruptamente as cenas africanas dos bailados sensuais: e as voltas, reviravoltas e mexidos irrompiam do palco desaforadamente, como eflorescências afrodisíacas. As figuras simbólicas deslizavam, numa nuvem de colorido, com o seu aspecto insípido, sensaborão, e

proferindo tolices. Mas o povo achava tudo aquilo grandioso! As imagens da Fortuna, da Imprensa, da Loteria, da História, da Política, da Pátria, da Glória, representadas por atrizes carminadas e caiadas, na maior parte muito gordas, produziam um sucesso...

 O Henrique voltou alta noite, entusiasmado com todas aquelas grandezas, muito satisfeito, a gargantear jubilosamente estes versos da revista:

“Eu sou da terra do vatapá...

Moqueca, ioió!

Moqueca, iaiá!”

E entrando no hotel, já meio apagado na sonolência das altas horas noturnas, ia dizendo consigo mesmo:

 — Para a gente, divertir-se, não há como o Rio de Janeiro! É a terra da vida à grande!...

No dia seguinte, como o visconde lhe mandas se um cartão perguntando-lhe “qual o motivo de tão longa ausência”, o bacharel Teixeira, em gran­de toilette, foi jantar a Botafogo. O futuro sogro recebeu-o, como sempre, com uma girândola de risos de alegria, batendo-lhe no ombro, dando-lhe bons charutos e internando-se em seguida pelo labirinto da política do Império. D. Genoveva, a sua amigalhaça, muito expansiva, mostrou-se também bastante solícita, com o seu aspecto de “ban­deira da misericórdia”, sempre pronta a influenciar sobre o espírito da filha, em favor do dr. Henrique.

— Dão licença, os amigos...

— Oh! doutor, o senhor é como filho desta casa e sempre nos dá muito prazer com as suas visitas!

— Obrigado, obrigadíssimo!

E logo tomaram-lhe o chapéu, conduzindo-o para a sala de visitas, onde, num vasto pano de parede, se destacavam dois grandes quadros a óleo, colocados aos lados do espelho — um era o retra­to de D. Genoveva, toda decotada e cheia de joias, numa rica toilette de veludo negro; o outro era o do Chuy, muito aprumado e severo dentro da sua casaca, condecorado de grande da corte.

Então que há de novo, doutor? perguntou-lhe o visconde. Que notícias me traz da Câmara? Ainda não li os jornais da tarde...

— As coisas não andam boas nem nada, senador! Os liberais deram hoje por lá um escândalo, a propósito de umas pilhérias do Florindo Vianna. O caso esteve engraçado e grave ao mesmo tempo. Até chamaram o Rodrigo de “homem tatuado”!...

— Ora essa! murmurou o senador. Este Flo­rindo Vianna é sempre o mesmo homem, cético, indiferente, humorista...

D. Genoveva interrompeu a conversa. Não saía há dois dias. Estava com saudades dos sorvetes do Paschoal e precisava de um novo livrinho de missa. O que possuía, tinha uma cruz na capa, e era de madrepérola: queria um de marfim com uma Senhora das Dores, em prata ou ouro, mas coisa bonitinha, porque a sua devoção era com essa Santa.

Muito negrucho, a voz aflautada e meio des­confiado, Henrique aventurou:

— E como passa a Titina?

De saúde vai bem, doutor; mas anda muito nervosa, com sonhos maus, tristezas, e diz que tudo a aborrece, tudo!

— São incômodos de “amor”, D. Genoveva. As moças são assim mesmo, têm emoções constan­tes, delicadezazinhas, mil nadas nervosos... Não é exato, visconde?

— É verdade; e o melhor meio de as curar é arranjar-lhes um bom maridinho, pessoa digna, séria, que as ame lhes dê cuidados...

Ouvindo falar em casamento, o Henrique que até aí não achara vasa para encartar o seu pe­dido, embatucou um pouco, empalideceu e teve um engulho na garganta. Esteve quase a dizer, de supetão, o lugar comum: — “Sr. visconde, ve­nho pedir-lhe a mão de sua filha”... Mas lembrou-se que lhe podia vir de repente uma recusa, pois não falara ainda no assunto à Ernestina. E monologava intimamente:

— Sim! porque ela podia embirrar por a não ter consultado antes de a pedir aos pais!... E como proceder naquela emergência?... Penso numa consulta, assim que a moça lhe aparecesse. Mas logo, por um bom raciocínio, compreendeu os perigos da empresa. Via já Ernestina irritada, protestando “que não queria, que a não fosse pedir, que já tinha o seu noivo...” E esta ideia transtornou-o como uma cólica, fazendo-o agitar-se e tomar a primitiva resolução: pedi-la aos pais sem mais formalidade, num grande lance de audácia, num arrojo de jogador que atira a fortuna numa alta e decisiva cartada. Afoitamente então, aproveitando as palavras do senador sobre o ca­samento, lançou em voz gaga:

— Amigo Sr. visconde, se deseja com efeito “curar” a Titina; se é esse o remédio que acha bom, eu ouso propor-me a nobre e honrosa tarefa, pedindo-lhe a mão de sua filha...

Foi como se houvesse caído subitamente da parede o retrato do senador. As cadeiras recua­ram: houve tosses, troca de olhares espasmados entre o velho casal: as respirações sibilavam, o momento tornou-se difícil e solene para todos. D. Genoveva, muito escarlate e inflada de satis­fação, os olhos pregados carinhosamente no moço deputado, sorria como numa beatitude; mas não podia articular palavra, presa como estava de imensa emoção, porquanto via realizar-se já mentalmente a maior preocupação da sua vida — o casamento de sua filha única e infinitamente ado­rada! O visconde, porém, homem forte como era, recalcou no peito a comoção, e, serenando um pouco, fixou gravemente o Henrique, excla­mando:

— É sagrado o seu pedido, meu amigo, e é de todo o coração que lhe dou a mão de minha fi­lha. Minha esposa, que passa agora a servir-lhe de segunda mãe, dá-lhe também o seu consenti­mento, pois já tínhamos pensado nisso, como numa coisa vantajosa para o senhor e a Titina, que, estou certo, receberá com alegria a notícia da sua felicidade...

O Henrique quis falar, mas o visconde e mulher caíram-lhe nos braços, chamando-o de filho, idolatrado filho!

Houve um silêncio e o dr. Teixeira, não satisfeito ainda com as últimas frases do velho, chamou D. Genoveva para um canto e entrou a fa­lar-lhe baixinho, quase em segredo, perguntando-lhe se a Titina com efeito receberia bem o seu pedido, aceitando-o por esposo.

— Não lhe dê cuidado, dizia a senadora; aquilo é uma tontinha, muito caprichosa, mas muito bom coração. Talvez recuse à primeira vista, por den­guice de moça; mas eu lhe falo, digo-lhe que já é tempo de constituir o seu lar, de tornar-se senhora e ela concordará. Eu sei como isso se arranja, deixe estar... Olhe, vou ter agora mesmo com ela, que se acha lá em cima, a se vestir para o jantar. Fique tranquilo, meu filho, fique descansado... .

E deixou a sala, num rapto de saias, fazen­do-se mais vigorosa, mais moça, numa grande ex­pansão e risonha, correndo ao encontro da filha.

O visconde convidara o Henrique para um “pega” de damas, afim de matarem o tempo, enquanto não iam para a mesa.

D. Genoveva subira apressada a escada do pa­vimento de cima, em direção ao quarto de Ernestina que, ainda em colete, se achava entregue os preparativos do penteado, procurando, ao mo­mento, domesticar um certo crespinho, que na­quele dia estava reinando e não queria ficar quieto no seu lugar, como nos outros dias.

— Ora que maçada este cabelo!

E com o ferro quente na mão, em frente ao espelho, que a fotografava em corpo inteiro, fazia a larga pasta frisada que depois teria de co­brir com o “invisível”, uma rede finíssima de ca­belos da cor dos seus.

Quando a porta se abriu, dando entrada à sua mãe, ela teve um sobressalto, no receio natural de que outra pessoa, um estranho, a visse naquele estado de meia toilette, em que as suas belezas opulentas de virgem avultavam esculturalmente, no colo moreno e cheio de um perfume capi­toso, e em toda a carnação: cor de jambo do seu corpo admirável.

A velha, aproximando-se e beijando-a na boca, disse-lhe meigamente:

— Então, Titina, ainda não estás pronta?...

— Mas que pressa é esta hoje, mamãe?!...

— Certamente. Não sabes que o dr. Henrique já se acha aí para o jantar? Estamos só à tua espera... Apressa-te, pois, menina!...

— Sim, sim... Mas por que a Gertrudes não veio ajudar-me a vestir?...

— É que está lá em baixo apurada... Tu sa­bes que quando alguém vem jantar cá em casa é sempre este reboliço... Mas eu te ajudo. Vá, acaba com esse penteado!... Enfia o vestido de uma vez... Anda!...

— Ora, mamãe, tanta pressa por causa daquele aborrecido!...

— Que aborrecido, Titina? Referes-te ao dr. Henrique?!... Que tolice! É um moço bem distinto, muito inteligente e de posição. Tomara muita gente que por aí figura ter as qualidade dele!... Teu pai sempre diz que não há rapaz de maior futuro, e que se os conservadores continuarem no poder, está ali está, ministro...

— Sei disto, mamãe. Mas para mim é um aborrecido, é um esquisito, um tolo...

— Deixa-te destas coisas, menina! São embir­râncias fúteis... Comigo já se deu o mesmo, quando era da tua idade. Tu ainda vens a gos­tar dele! Depois, preciso que gostes... Olha, eu tinha uma notícia a dar-te e ia guardá-la para mais tarde, mas já que tocaste nisso, vou dizer tudo agora. O Henrique pediu-te hoje em casamento e nós já lhe demos o “sim”...

— Trá! Ernestina partira o cordão do colete, ouvindo as últimas palavras de sua mãe; e, muito pálida, toda nervosa, o olhar espantado, voltou-se vivamente para a velha, perguntando-lhe:

— Que é que disse, mamãe?!...

— Que disse?! Que o Henrique quer casar contigo e eu e teu pai já lhe aceitamos o pedido...

— Casar com o Henrique?!... Que loucura! Não faltava mais nada! Casar com ele, nunca!...

– Então por que, minha filha?!... Pois já é tempo de tomares estado... Ou queres porven­tura ficar para “tia”?... A proposta é magnífica. É aceitai-a, e aceitai-a como um presente do céu... Olha que as moças por aí andam loucas por uma felicidade assim!...

E nesta cantilena, D. Genoveva, como um operário que sabe malhar o ferro e amoldá-lo a tudo, levou a batalhar com a filha para que acei­tasse o noivo. A Titina, coitada, alanceada e ner­vosa, mas já um tanto convencida, prometeu que seria razoável, iria consultar por algum tempo a sua alma, depois se votaria ao “sacrifício”...

Instantes após, a moça descia com sua mãe, não sem uma grande contrariedade íntima, ao en­contro do Henrique, que perdera propositalmente todas as partidas de damas só para lisonjear ao Chuy.

Houve um eflúvio na sala quando elas en­traram, a senadora iluminada de um grande sor­riso, a filha com os olhos meio úmidos e triste. O visconde e o bacharel que se ergueram logo das cadeiras, correram-lhes ao encontro.

D. Genoveva fez então um esforço, reuniu toda a sua habilidade de mãe de família e teve, numa grande ideia, esta frase sintética:

— Eis aqui a sua noiva, dr. Henrique. Agora, que sejam felizes!...

O jantar foi uma delícia para todos, menos para a Titina que se conservava ainda pálida, muito meditativa. Ao dessert o deputado fez um longo brinde, cheio de rasgos oratórios, como na tribuna da Câmara; e nos períodos finais, tocando ao patético, despertara lágrimas de ingênuo enternecimento nos olhos do velho casal, quando, ao referir-se à noiva, chamou-a de “corda santa da sua alma, torre angélica de virtudes, fanal que o guiaria, a ele, palinuro inexperiente, pelos mares procelosos do futuro!...”

À noite fez-se música. O dr. Teixeira, ainda na recordação do espetáculo da véspera, pediu à noiva que fosse tocar alguns trechos de O Bendegó e outras revistas teatrais, que tanto o encantavam; depois, muito instado pelo senador e a esposa, recitou entusiasmado, ao som da Dalila, a Judia de Thomaz Ribeiro, afetando notas portuguesas e acionados dramáticos que aprendera com um ator que recitara essa poesia, em 84, num teatro do Recife...

Ao chá, após uma longa conversa íntima e algumas considerações do visconde sobre a vida doméstica, ficou determinado que o casamento se realizaria daí a três meses.

Às onze horas o deputado despedia-se.

Ernestina estava noiva! Que sensação e angústia ao chegar ao seu quarto, na tranquilidade de toda a casa, agora em silêncio, sob o clarão mortiço da veilleuse!... A princípio deitou-se, assim como estava, de bruços, chorando, abandonada à sua dor. E toda a sua vida de moça, desde que deixara o colégio das Irmãs, desenrola­va-se-lhe à lembrança com todos os sonhos, aspi­rações, desejos, planos e devaneios dourados... Tudo se achava burlado! Num momento comprometera-se irremediavelmente! Pensara sempre em casar-se com efeito, mas com um ideal que construíra sob as impressões dos romances que lera: um rapaz formoso como uma moça, elegan­te, delicado, com uma voz doce e amorosa de te­nor!... Desde então era aquela a imagem que­rida que afagava e que aparecia continuamente ao seu espírito, como assinalando definitivamen­te o seu destino...

O Comodoro devia, em parte, a impressão que lhe causara à regularidade de suas feições e à delicadeza de tez adquirida nos países setentrionais por onde andara. Era graças a isso que Ernestina lhe havia perdoado os grossos ombros hercúleos e o poderoso da musculatura, que às vezes a intimidavam.

Este ideal, que é o de todas as jovens, e o mais generalizado, se não o único, no mundo fe­minino, achava-se agora preterido e suplantado pela figura simiesca e polichinélica do deputado, de um moreno acobreado, sem “linha” e sem distinção, tendo estampada no rosto a decadência da raça, ao ponto de assemelhar-se consideravel­mente aos chineses que ela trazia pintados no leque! O noivo que sempre idealizara era um cavaleiro radiante e jovem, extraordinário em todas as coisas, com uma eloquência de iluminado ou de profeta, — e o Henrique não podia ser mais tatibitate e desengonçado do que quando lhe falava, na perturbação de namorado que não se crê bem aceito.

— Que imenso despenhamento! Oh! a mais pungente de todas as quedas! Estava perdida para sempre! Nunca mais sorririam os seus lábios, nunca mais amaria! porque o casamento, como um cárcere eterno, lhe fecharia todas as alegrias. Como lhe seria possível, a ela, ficar unida àquele grotesco, deixar-se apertar nos seus braços, deixar-se beijar em intimidades sem afeto!... E tinha sido para todas aquelas amarguras que ela houvera nascido!... E fora para aquela imensa mágoa, para aquele destino in­fausto que a tinham criado com meiguice, com extremos, que a haviam educado tão cuidadosa­mente!... Presentemente os pais, sempre tão afetuosos e bons, mostravam-se ásperos e agasta­dos com ela, como inimigos, de modo a quase estranhá-los, tão mudados os achava! As famílias mais íntimas, as amigas mais estremecidas, tinham também para ela, agora, um ligeiro ar de censura, condenando a sua relutância em aceitar o Teixeira, e considerando, todas, aquele casamento como uma felicidade inaudita... Até a professora de música e a institutrice, informadas pela indiscrição e abelhudice da mãe, achavam que mademoiselle não andava bem rejeitando aquele noivo; e as próprias criadas oficiosamente intervinham, por adulação, para agradar a senhora! Era uma conspiração. Mas que fazer? Para onde fugir? E que poderia ela, tão fraca, tão aban­donada, tão sem experiência, não tendo uma só pessoa que a protegesse, que a resguardasse!... Lembrava-se de casos análogos nos romances, mas aí havia sempre um predileto da protogonista que era um valente, que tudo ousava e tudo sacrificava, sem hesitar, ao objeto amado! Ela não tinha esse predileto, esse paladino, porque mal encetara, havia pouco, uma troca de sentimentos com um desconhecido, o perdera de vis­ta, não sabendo se se tratava de um brasileiro re­cém-chegado da Europa ou de algum viajante de passagem pelo Rio de Janeiro...

Ergueu-se, cambaleante, na embriaguez da dor: as lágrimas queimavam-lhe o rosto; foi até à janela, descerrando a veneziana que deitava para as trevas do quintal. Aqui e ali, luzes mortiças furavam os fundos das casas. Uma brisa mansa trazia no seio os odores dos terrenos próximos, emanações de lavadouros, de estábulos, de flores e de hortas em terrenos alagados. A tranquilidade imaculada da noite cheia de astros, perturbava-se instante a instante, em toda a imensa zona, pelo cantar guerreiro e vitorioso dos galos, agastados e num desafio infindável, pressentindo a madrugada...

O frescor da aragem noturna fez-lhe experimentar uma atenuação e uma calma. Sentia-se muito fraca, com as pernas trêmulas, e pensou dever achar-se bastante mudada, prostrada como estava desde o anoitecer. Acendeu a vela do psiché, mirou-se longamente, com curiosidade, como se fosse outra pessoa; e, enternecendo-se, veio um acesso de pranto, que deixou correr, diante de sua obser­vação, como se o seu ser experimentasse uma dua­lidade. Viu então que se não tinha despido, e co­meçou por desmanchar o penteado, arranjando coquetemente os cabelos em magdalena, achan­do-se assim mais formosa e representando melhor o desalento. Mas, antes de desvestir-se de todo, uma nova agitação invadiu-a, e principiou a per­correr o quarto, de modo maquinal e inconsciente, numa angústia funesta, até que, extenuada, ati­rou-se sobre o leito outra vez, e dando com os olhos embaciados de lágrimas numa imagenzi­nha da Conceição, colocada na parede acima da cabeceira da cama, tirou-a do lugar e beijou-a lon­gamente, soluçando. Lembrou-se, então, que as Irmãs lhe tinham dado aquele cromo rendado, como uma salvação nos momentos dolorosos. E encaminhada para este novo rumo do sentimento, entrou a pensar na Religião, na doçura dos conventos, na vida mística das escolhidas de Deus lançadas ali pelas amarguras humanas... A quan­tas a paixão desventurosa não teria feito santas?!... Mas nem esse recurso lhe restava agora: os conventos haviam desaparecido, despovoados e destruídos pela descrença desoladora da Civi­lização!...

— Aonde estaria presentemente o escolhido dos seus pensamentos, o formoso homem a quem ela entregara todo o seu amor?!... Com certeza partira. Talvez nunca mais voltasse! Se soubesse quanto ela sofria, se pudesse adivinhar a amar­gura que a dilacerava, por certo que a viria sal­var, apresentando-se para esposá-la!... O Henri­que então seria o primeiro a desistir, a abandonar tudo, porque se sabia desamado...

E veio-lhe uma esperança: poder, nalguma ocasião, antes do casamento, chegar a ver o Comodoro e fazê-lo sabedor da situação em que se achava...

Mas bateram à porta. Correu a abrir. Era a Gertrudes, a velha criada, que vinha com solici­tude informar-se do que tinha a “menina”, pois ficara assustada com o ruído dos seus passos no quarto e o clarão que saía pela veneziana a ho­ras tão adiantadas.

— Jesus! a Titina ainda acordada! murmurou a boa mulher; e com a janela aberta!... Até podia apanhar alguma! E vendo o rosto de Ernestina macerado e umedecido de pranto: — Mas para que está a afligir-se, menina! Nossa Senho­ra há de fazer tudo pelo melhor...

Passou-lhe as roupas de dormir e agasalhou-a como se fosse uma criança. Quando saiu do quar­to, vinham surgindo as primeiras barras da alvorada. Ernestina adormecera e só a altas horas da manhã despertara, com aquela pungência aguda que têm as pessoas vitimadas pela dor após o alheamento e o lenitivo trazidos pelo entorpecimento do sono.

— Meu Deus! que imensa amargura! fez ela gemente.

 

IV

À porta do hotel do Globo, depois de um jantar demorado, cheio de cordial e repousada pa­lestra, George Marcial e Carlos Baker, mais uma vez trataram a hora do seu almoço no dia seguinte e do passeio que tencionavam fazer através da Tijuca.

 — Às onze horas lá estarei, Baker!

E despediram-se. Na manhã seguinte o Comodoro, governando uma linda égua alazã, que lhe tirava o fáeton, dirigia-se para a Tijuca, ao Moreau, onde o Baker o esperava. Uma alegria tropical enchia-lhe o peito. A verdura da paisagem, as chácaras, os chalés, os palacetes airosos à grande luz solar, o azul do céu, o silêncio dos arrabaldes e as flores trasbordantes de aromas singulares, extasiavam-no, dando-lhe uma grande doçura e uma grande tranquilidade.

— Como estaria lady Victória! pensava. Casada ou ainda viúva? e ainda seria a dama de há seis anos, quando ele comandava o Hobart?

Conservaria ainda aquela encantadora frescura, aquela deliciosa mocidade com que lhe aparecera em Nova York e na Havana? De certo esta­ria mais velha, com alguma ruga traiçoeira nos olhos e ao canto da boca, ou, quem sabe! mais bela, mais alva, mais serena, como um mármore antigo, mas com a austeridade das sacerdotisas e o ar de imaculabilidade de uma vestal!... Sim, porque entre as inglesas eram muito comuns essas coisas. Depois de se terem deixado arrastar durante anos pelas loucuras de um sentimento, de um vício, de uma paixão, mudavam de repen­te, afetando ares da mais alta pureza e honesti­dade!

E sorria. O lilás eterno do seu vestido fazia-lhe manchas violáceas nos objetos que fitava, como redes brancas das casas e nas largas folhas dos caládios verdes, pintalgados com salpicos de sangue e de leite, e que depois, ao seu olhar absorto na contemplação íntima de um ideal que reconstruía, tornava a forma de um estranho lírio do Eufrates! Bufando lesto, imponente, num garbo forte e possante, o seu animal trotava sem­pre, muito bem governado, as crinas adejando ao vento na monótona modorra da marcha... Acen­deu um charuto de Cuba e começou a fumar distraidamente. O fumo dava-lhe uma dolência non-chalante e, mais acentuadamente, com os seus olhos azuis, transparentes, lady Victória surgia-lhe, à maneira de uma aparição, numa túnica de violetas. Parecia-lhe mesmo sentir o seu perfume d’água de Colônia, ver passar-lhe à retina, num clarão instantâneo, a sua cintura delgadíssima, estrangulada no espartilho que a aprumava e a assinalava com o etéreo afilamento héctico de uma dessas Princesas de bailadas, que uma transcendente paixão amorosa definha e mata!...

Os bonds subiam e desciam atulhados de gente, que olhava detidamente a George, admirando-lhe a elegância sóbria e correta de diplomata yankee ou de gentleman inglês. Quando alguma senhora, trazendo flores rôxas e artificiais no chapéu, passava em qualquer dos bonds, que se cru­zavam, ele a olhava atentamente, pensando reconhecer lady Victória e ficava numa impaciência se a velocidade dos veículos lhe não permitia certificar-se bem da identidade das pessoas. Mas refletindo, concluía que não era ela, que não podia ser ela, porque nenhuma das criaturas que ali iam revelava o tipo dela, tipo de Dama escocesa de Ossian, entre educanda e monja do clã. Depois a sua esguieza ideal de Visão era inconfundível, como sua eretitude de vergôntea de árvore real dos Grampiams e os seus quebran­tos e graças de Willis.

— Ah! as suas graças de Willis! murmurava amorosamente consigo, recordando os meses felizes e fugidios que com ela passara sob a tepidez deliciosa dos céus azuis da Havana.

E com estas preocupações de galã enamorado, esquecido já de Ernestina, George chegou ao hotel Moreau estacando a égua ao portão, onde a figura loura e alta do Baker o aguardava desde muito, no seu aprumo de anglo-saxão.

Os dois amigos saudaram-se alegremente. E o Baker, chamando um criado que se aproximava, mandou recolher o faeton, com muitas recomendações. Em seguida, encaminharam-se ambos para a sala do bilhar, resolvendo encetar, antes do almoço, uma pequena partida, na qual o Baker fazia prodígios com o taco. Numa das vezes em que lograva realizar uma grande série de carambola, exclamou, num contentamento, dirigindo-se ao outro:

— Creio que vamos almoçar bem: veado ou carneiro da Nova Zelândia, e também um leitão­zinho de forno e galinha à brasileira...

O Comodoro, quase sem o ouvir, de pé a um ângulo, o taco entre as mãos e apoiado à beira da mesa, sorria silenciosamente para a perícia do amigo, carambolando continuamente, com uma elegância que o deslumbrava; e, posto conhecesse aquele jogo como poucos, deixava-se bater como um “pixote”, só para ser agradável ao Baker. Depois, a radiação d’alma em que estava por ir ver a sua “lady”, não lhe permitia outra preocupação que não fosse aquele único pensamento.

Ganha a partida pelo Baker, os dois amigos passaram imediatamente ao salão das refeições conversando intimamente, baixinho.

— E sobre o caso, o que há de novo? perguntava o Comodoro.

— Por enquanto, nada. Tenho pedido infor­mações aos criados, mas embalde!

— Bem! Então, findo o almoço vamos procurá-la, Baker, porque se tu a viste com efeito, e vindo para estes lados, nós a acharemos impreterivelmente nem que para isso eu tenha de estafar a minha Galga por estes carcavões e colinas!

— Sim, sim... Mas almocemos primeiro, que eu já estou com uma grande sede do meu Pomard e da minha costeleta!...

O almoço foi abundante e substancial: bom vinho e boa carne, palestra e recordações europeias... E logo ao segundo prato, Carlos informou a George que havia no hotel duas espanholas, esbeltas como duas palmeiras, ou melhor, como duas “poldras de steeple-chase.” Riram muito da comparação, mas o Comodoro achou-a excelente por ser nova, original e caracteristicamente “inglesa.” E dando um olhar largo ao salão:

— Homem, Baker, este hotel dia a dia melhora. Aqui já se sente um certo asseio e conforto... Inegavelmente é, no gênero, a primeira casa do Rio de Janeiro.

O outro, contendo admiravelmente, na saúde robusta e brilhante dos seus trinta e seis anos, exclamou todo a rir:

— Ali! Já estás otimista! Ainda bem!... Mas este veado da Nova Zelândia está uma iguaria de rei! Ataca-lhe, George, que isto aqui não há sempre, isto mandei eu vir de encomenda...

Falaram então de cozinhas e, apesar de educados em países saxônios, acabaram de louvar, sobre todas, a cozinha francesa. Ao fim do almoço, o champagne, saudaram à lady Churchill, a ene­oada puritana escocesa que viajara com eles, mar em fora, no convés do Hobart, à maneira de uma estranha mermayd.

Momentos depois, o fáeton rodava levando os dois amigos através da Tijuca, pelos hotéis, pelas vilas e avenidas, em busca da “inglesa”. O sol de ouro resplandecia no alto, numa flamejação estival. Era pela uma hora. A estrada azoi­nava sob a voz das cigarras trilando nas cercas cheias de cipós floridos e trepadeiras, e nas rama­gens altas onde pássaros pipilavam frouxamente amando à luz morna e suave. Montanhas altea­vam os píncaros para todos os lados, com gran­des chagas de barro vermelho abertas à picareta, ou com casas brancas e amarelas, escondidas en­tre a verdura, pelos socalcos e encostas íngremes, à maneira de ninhos felizes dormindo em meio à folhagem...

— Como isto aqui é admirável, Carlos! Que possante natureza! Este país, bem povoado e civilizado, seria o primeiro do mundo! O futuro deste colosso, deste imenso El Dorado, depende apenas da colonização, mas da colonização de povos das grandes e fortes raças, saxões, eslavos; romanos... As províncias do sul, onde já se faz sentir a influência desse belo elemento, têm o progresso assegurado. Olha o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que são os únicos pontos do Brasil bem conhecidos na Europa!... Não imaginas, filho desta terra, mas tendo passado toda a existência até hoje fora dela, sinto-me entretanto arrebatado, surpreendido por estes ma­ravilhosos quadros de bucolismo e paisagem. Ah! quanto consola e ilumina a alma o esplendor, paradisíaco deste canto abençoado!... Que pu­reza de ar e como isto cheira a virgindade!...

O Baker, muito repousado e feliz, saturado também até ao íntimo das magnificências do dia encantador, concordava inteiramente:

— É verdade, George. Não há talvez outro país igual em todo o globo! É por isso que aqui fundeei de uma vez... e aqui hei de acabar!...

Tinham chegado a um novo hotel. Saltaram. Apareceu-lhes um criado, que os mandou entrar e sentar-se e lhes serviu dois grogs. Carlos recla­mou então a presença do dono da casa. Quando este surgiu, apenas foram trocadas algumas palavras, perguntou-lhe se ali não estava hospedada uma senhora inglesa, chegada há pouco da Europa ou dos Estados Unidos; e disse-lhe o nome de lady Victória. O homem, sem compreender a princípio, titubeava numa obtusidade, mas, depois de algumas explicações, respondeu risonhamente:

— Sim, sim, já sei... Está aqui... É uma senhora estrangeira, loura, alta e muito magra, que dizem ser abastada e de grande posição. Chegou não há ainda uma semana, e ocupou-me logo duas das maiores salas de cima. Trouxe consigo um ror de malas e volumes, anda sempre vestida de roxo e ninguém lhe entende uma pa­lavra.

Os dois pediram-lhe então para ir verificar se a senhora estaria nos seus aposentos, ou se teria saído àquela hora. O hoteleiro, acedendo amavelmente ao pedido, internou-se pela casa. Daí a minutos voltou, dizendo-lhes que a “estrangei­ra” estava lá em cima, a ler os jornais e cartas que o correio lhe trouxera pela manhã.

Ao certificarem-se da presença de lady Victória no hotel, o Comodoro e o Carlos entreolharam-se radiantemente, e tirando dos seus cartões os mandaram levar pelo garçom à senhora, anun­ciando a sua visita.

— Que podiam subir! foi a resposta do criado ao voltar.

Então eles, aprumados e ágeis, galgaram a escada que levava lá acima aos apartamentos de lady Victória, que eram cercados por uma larga varanda, asseada e bem pintada, alegre e coberta de epomeias e madressilvas. Numa das salas mais vastas ela os esperava, de pé, um fino sorriso ao canto da boca bem feita, muito alta e esguia, o olhar fulgurando vivamente, no encanto de quem espera uma surpresa agradável.

George e Carlos apareceram-lhe, alegres vigorosos, estendendo-lhe fidalgamente as mão enluvadas, que ela apertou num vivo shake-hand muito admirada da frescura dos seus dois amigos que não via havia anos. Falaram em inglês. Vitória felicitou-se por aquele feliz encontro com os velhos companheiros da viagem do Hobart principalmente referindo-se a Baker, a quem não via desde então. E não tirava os lindos olhos do Comodoro, como o remirando com intimidade... O Carlos, que estava com a palavra ao momento, perguntou-lhe, entre muitas coisas, se ela ainda passeava, como outrora, percorrendo todos os mares e países do globo...

— Que sim, que viera ao Rio de Janeiro para conhecer também o Brasil, cujas riquezas e encantos naturais tinham maravilhado o espírito de tantos ilustres viajantes e até o do próprio Darwin, que cinco anos, a bordo da canhoneira Beagle e da Real Armada Britânica, viajara todo o mundo. Achava, com efeito, um país admirável, desde as flores e as frutas até as montanhas e o céu, de um azul magnificente e de uma doçura infinita. Chegara havia uma semana apenas, vindo das Repúblicas do Pacífico pelo Rio da Prata, onde tudo lhe parecera adiantado, mas de pouca originalidade, pois os objetos, como as pessoas, estavam profundamente saturados de um exces­sivo europeísmo. O Brasil, não: dir-se-ia um can­teiro de terra muito singular, com ardores de belo sol e uma eterna verdura, que era o encanto dos seus olhos, enamorados da esmeralda deliciosa das serras e vales. Tinha ido poucas vezes à ci­dade, que deixava para ver mais tarde, porque estava certa de que o Rio de Janeiro não a im­pressionaria com requintes de arquitetura de conforto, de civilização e de arte. Preferia, nos pri­meiros dias, matar a curiosidade, que a mordia, observando o campo, as florestas, aqui tão cerradas e pujantes, cheias de poesias e gorjeios, como se as almas dos grandes maestros imortais, nelas vivessem a cantar transformadas em pássaros canoros!... Não havia os rouxinóis, mas tinha os lindos sabiás, que, segundo afirmavam, ao luar das noites de estio, eram como cálamos de pasto­res da Hélade dobrando nos ramos altos à beira das praias claras... A natureza, enfim, com toda uma pasmosa profusão de tons álacres — o encarnado-sangue das pancetas, o amarelo quente das laranjas e dos abacaxis, o azul e verde dos pássaros — inebriava-a na exposição feérica e nunca vista dum estranho e perpétuo carnaval de flora e de fauna! Estava apaixonada, deveras, por aquelas maravilhas brasileiras, que tão vivamente con­trastavam com o seu “eterno estado íntimo”, ali naquele ninho campestre da Tijuca, ao perfume mágico e encantador dos rosais...

Carlos Baker agradeceu-lhe sorrindo o elogio à pátria, à magia dos céus de ouro e das florestas da incomparável Vera Cruz, como a denominara Cabral, que a descobrira nos tempos áureos do Venturoso, enquanto George fixava lady Victória, meigamente e a sorrir, comentando, não sem um certo humorismo, em silêncio, o entusiasmo dela por aquelas matas, o que era uma eterna “chapa” proverbial no mundo inteiro, “chapa” que ele ouvia sempre ao declarar a sua naciona­lidade a algum conhecido ou amigo, que lhe saía logo com o elogio altanado aos bosques e à grandeza territorial do Brasil.

Sentados comodamente, com os pés estendidos em longas cadeiras inglesas forradas de peles, palraram alegremente ainda, durante horas e horas, sobre excursões e viagens, recordando cada um o que havia visto e gozado, citando povos, todos os países do mundo, especialmente os Estados Unidos e a velha Inglaterra... Entardecia, e todavia falavam da Escócia, que todos adora­vam, num tropel de recordações!...

Caía a noite, quando se ergueram. Lá fora, no céu muito límpido começavam a reluzir as estrelas.

Lady Victória pediu-lhes que aparecessem sempre, se fosse possível, todos os dias, para ter também “alegrias humanas” naquele seu retiro de campo. O Baker desculpou-se logo, delicada­mente, que não podia comprometer-se a apare­cer sempre, por causa dos seus afazeres comer­ciais; mas que o faria, ao menos, uma vez por semana. George, sim, poderia bem alegrá-la com suas visitas, porquanto estava ali a gozar as delícias da pátria, livre já das ocupações materiais quotidianas da vida, pois a soubera ganhar nobremente nos seus árduos trabalhos de mar... O Comodoro prometeu, então, a lady Victória voltar na quinta feira próxima, convidando-a desde aquele momento para um passeio à vela ao longo da baía de Guanabara, no Coleridge, o seu pequeno cutter de recreio, de construção inteira brasileira, e que fora lançado ao mar havia uma semana. E, trocados os últimos shake-hands, despediram-se.

No outro dia, à uma hora da tarde, George saía do Londres a passadas apressadas, um tanto fora da sua calma habitual. Estava furioso. Fora lá almoçar pela primeira vez e o haviam feito esperar medonhamente por uma coisa à toa, uma insignificância que pedira, um chavão, uma “chapa de hotel”. O bife, uma carne morta, tinha gosto de ferros velhos, de ostra, de leite e das coisas mais incríveis! E nesta desagradável impressão, a sua crítica acerada contra a pátria e tudo o que a ela pertencia, despertou de novo, furiosa, violentíssima:

— Era preciso nunca ter posto o pescoço fora desta terra, nunca ter deixado a farinha de pau, os beijus e as rapaduras, para pensar que aquilo era carne, era coisa que se pudesse comer! Ingurgitara às pressas uma omelete malcozida, meio rançosa da péssima manteiga, afogara tudo em Port Wine falsificado e café, e saíra para a “ruela”, nauseado, com cólicas, quase a vomitar!...

E o Comodoro subia a rua, em direção ao Paschoal, a ver se encontrava o bom do Baker para poder melhor desabafar o seu tédio. Quase esquina da rua Gonçalves Dias esbarrou com Alberto Making, um rapaz engenheiro, filho de Paulo, formado na Politécnica, mas que praticara muito em Londres de onde regressara havia, apenas dois anos. O Making era muito hábil, por isso, mal chegara de Inglaterra, fora nomeado diretor de várias estradas de ferro particulares, e, ultimamente, “engenheiro de tráfego” da Central. Os dois pararam, apertaram-se as mãos e entraram a conversar.

Era uma segunda-feira, dia em que a rua do Ouvidor tumultua e se agita como que reagindo contra o amortecimento e a solidão do domingo. As famílias menos do high-life, a  burguesia dos arrabaldes obscuros e pobres, a gente da cidade nova, da Gamboa e do Saco do Alferes, as moças recém-chegadas da província, cruzavam, como de costume, para baixo e para e cima, apressando-se nas suas voltas e compras, na mediocridade e barateza de suas toilettes simples, no receio de encontrar-se com as “outras”, as freguesas do Notre-Dame, do Zenha, da Madame Guimarães e do Barbosa Freitas. Rapazes de toda a ordem, estudantes, janotas de profissão e outros, aglomeravam-se como sempre, à porta do Café do Brito, à esquina de certas ruas e pelas charutarias...

O Comodoro, exacerbado com a história do almoço, muito preocupado com lady Victória, que não lhe saía do espírito — achava tudo impossível, intolerável, e chamava as moças que passa­vam de camondonguinhos”, “titerezinhos”. E acrescentava na sua análise amarga:

— Esta cidade não tem uma rapariga chic, Alberto! Custa a crer, mas é verdade!...

— Isso lá não, meu amigo! retrucava-lhe o outro há aqui moças adoráveis, podes acreditar! Belezas como não se encontram em parte alguma do mundo, afianço-te! Eu viajei muito e conhe­ço... Hóspede ainda, como és, não podes avaliar. Hoje, como já deves saber, é um dia “morto” para essas coisas. Mas eu te mostrarei, numa sexta-feira, quando nos encontrarmos. Depois, olha cá essas toilettes simples que aí vês encobrem, não raro, corpos deliciosos...

— Para vocês que não têm gosto, nunca viram nada, não duvido! treplicava-lhe George, ainda exacerbado.

— Ora deixa-te disso! tornava-lhe o Alberto. O que é que tu tens visto?... Então eu não visitei, não residi mesmo, em Londres, Paris, Berlim. Roma, S. Petersburgo e Nova York, lugares onde a beleza tem sido mais decantada e mais célebre?!... Pois afirmo-te, pelo-me pela brasileira, pequenina e graciosa, com os seus olhinhos muito negros...

Pararam no Paschoal. O Baker não estava, Começaram a procurar alguma novidades em doceria. Naquele dia não havia. Deram volta, saíram Entraram no Ponto, mas ressurgiram logo. E, em seguida, foram postar-se à porta da chapelaria Watson, em observação ao caleidoscópio imenso da rua.

O Alberto mostrou então a George dois rapazes que estavam à porta da casa Au Petit Journal, a discutir calorosamente, numa conversa renhida. Um era alto, grosso, de largos ombros a fisionomia ampla e cheia, meio acaboclada um todo reforçado de ginasta. O outro, de estatura média e forte, sóbria mas elegantemente vestido, uma cartola muito luzidia à cabeça, tinha a pele pintalgada e queimada pelo sol, as atitudes e os gestos de um embarcadiço. Eram ambos muito jovens, e seus rostos, onde havia pouca barba, injetavam-se com os esforços da voz, no ruído intenso da rua. Do que diziam percebiam-se apenas, de vez em quando, como notas bem timbradas e repetidas, as palavras “Arte” e “Estética”, que sibilavam no ar.

— Conheces os nossos literatos? São dois deles. E disse-lhes os nomes.

George Marcial, que o ouvia quase indiferentemente, respondeu-lhe que conhecia isso de literatura brasileira, mas de modo vago, por alguns estudos estrangeiros e uma ou outra revista que quando podia, lia lá por fora, nos vagares de suas viagens e que, presentemente, ali, folheava uma ou outra vez, quando a chuva o retinha nos seus apartamentos do hotel, em Santa Tereza.

O Making, que conhecia os rapazes e amava belas-letras, informava ainda:

— Mas olha que são dois jovens talentosos e que muito prometem! Eu os conheço desde que chegaram do sul. Trabalham de companhia, e têm agora em preparo um grande romance realista, de costumes fluminenses. As folhas já se referiram à obra com simpatia e encômios...

— Macaqueando os Goncourt, talvez! fez George com desdém.

Mas o Alberto defendia-os:

— Não, filho, não. Deixa-te disso! Os rapazes têm talento e hão de ir longe, acredita. Os trabalhos são bem feitos e têm merecido atenção... — Sim, perfeitamente. Eu já os tenho lido, e apreciado mesmo algumas das suas composições, volveu distraidamente.

Com certeza, continuou o Making, estão eles agora a discutir os detalhes do seu romance, colhendo, quem sabe, notas originais na observa­ção direta desta multidão em trânsito!...

O Comodoro teve, então, um certo interesse:.

— Na verdade, pode ser que com esses dois jovens e outros se reconstitua a literatura brasileira. A questão é terem tenacidade e serem bem secundados... E, invadido outra vez pelo seu pessimismo: — Mas esta terra não dá nada, Making! Isto há de ficar sempre assim!...

De repente, na rua, correu um alvoroço. Grupos, aqui e ali, se adensaram. E um ruído longínquo de música de pancadaria, arrebatou a atenção de todos. O Comodoro e o Making voltaram-se logo para baixo, indagando.

Era uma manifestação endereçada ao ministro Florindo Vianna, por haver salvo a cidade de. epidemias ferozes e vitimantes. O préstito era numerosíssimo, dividido em pelotões sob o regime de um estandarte. Vinha da rua Direita e parava em frente às redações dos jornais destacando vivas. Às vezes, oradores suados e enrouquecidos diziam palavras enfáticas, deitavam discursos. E logo, das sacadas, davam-lhes o troco nas mesmas frases vigorosas e férvidas em que havia o esforço de fazer tropos e imagens oratórias. Os foguetes então esguichavam para o espaço e a música rechinava sonoramente, no aplauso da retórica triunfante.

A manifestação compunha-se, em totalidade de pretendentes a empregos públicos, homens recrutados nas repartições de higiene e polícia, de secretas e outros, cujas botas escangalhadas e ruças, botas de lidador, davam-lhes um aspecto “pobre-diabo e “judeu errante”. Um porta-bandeira, enorme, de cartola amassada, sobrecasacado, o suor a pingar em gotas sob a cabeleira em desalinho, personificava bem a manifestação. E parece que o personagem possuía a ideia de que a representava, porquanto os seus olhares sobranceiros quase guiavam a multidão dos manifestantes tendo o seu todo uma pose triunfal. Seria ele, decerto que, cara a cara, discursaria ante o ministro, acabando por o abraçar com as suas vestes suadas e sujas. Por isso, muito cheio de si, do alto da sua importância elevava epicamente a bandeira azul e branco, onde se lia em letras bordadas a ouro — S. M .B. Recreio dos Artistas.

A procissão era infindável, levava um tempo imenso a passar. Figuras de todo o jeito marchavam, ao som da música, nas suas roupas cossadas. O povo, muito sábio, postado a um e ou­tro lado da calçada, achava tudo aquilo carna­valesco, ridículo, uma manifestação descarada, pulha, arranjada por meia dúzia de políticos in­teressados e pelo próprio governo. O grotesco de todos aqueles personagens do préstito indignava o público artístico da rua do Ouvidor e a rapa­ziada. E em pouco, começaram as troças, os risos, as bengaladas. Dos grupos, parados às esquinas ou às portas dos cafés, gritavam aos manifestantes:

— Fecha a boca!... Ó cara dura!... Ó su­jo!...

Ou então faziam-lhes:

— Hu! hu! hu! E distribuíam-lhes pauladas. Barulhos, aqui e ali, surgiam, com grande reboliço, gritinhos de mulheres pelos passeios, empurrões, disparadas, apitos por entre a multidão.

A um velho venerando, já todo curvado e de longas barbas brancas como essas que pendem das árvores velhas, berraram-lhe:

— Ó caixa de óculos! Ó monge!

O préstito passou, enfiando-se pela rua do Gonçalves Dias, onde tomou toda tuna fileira de bonds. especiais; e lá foi, nos veículos, ao som das charangas, rematar a sua obra...

O Comodoro sentia-se envergonhado da enorme soma de ridículo que saía de tudo aquilo para a pátria. Aqueles homens amarrotados, sem convicção e inconscientes que marchavam ali para uma coisa fútil e banal, davam-lhe náuseas. Ele ti­nha visto essas procissões cívicas na Inglaterra, em França, na Alemanha e nos Estados Unidos... Eram operários, robustos e poderosos, trazendo estampada no rosto a audácia e a convicção, movidos por um fim nobre. Marchavam desassombradamente, prontos a lutar e a morrer quando eram envolvidos pela tropa. As suas fisionomias varonis e austeras tinham a luz do entusiasmo. Avançavam cantando marselhesas hinos de revolta! Eram sempre préstitos levantados contra o governo, contra. as instituições, contra os grandes estabelecimentos industriais, e que acabavam no protesto explosivo de um meeting em praça pública, dissolvendo-se em sangue, tumulto e morte pela espada militar:

E aqui? perguntava, voltado para o Alberto. Aqui eram umas caranguejolas de uns tristes operários sem um ideal alevantado, ínfimos em­pregados públicos, pobres serventes de repartição, polícias secretas, maltrapilhos voluntários, aos quais só lhes cabia a heroicidade desfaçada de afrontar o ridículo e a hostilidade escarninha malfazeja do povo...

O Making achava que também no estrangeiro havia alguma coisa de manifestação. Mas George insistia:

— Não! nunca vi! O que sempre observei lá, eram reuniões de protesto, meetings, romarias anárquicas a monumentos ou a cemitérios... Isto sim, isto vi eu às dezenas, por toda a parte... Os governos lá não se dão ao descaro de arranjar-se manifestações, o que os desmoralizaria pelo enorme grotesco da coisa...

O Alberto, conhecendo todo o peso desta grande verdade, estacou enleado, a procurar em vão um argumento para contraditar ao Comodoro, que, consultando rapidamente o relógio, estendeu-lhe a mão em despedida, arrumando-lhe ainda num riso:

— Tenho de ir, para o hotel, mas estou com verdadeiro receio de encontrar de novo a infâmia da manifestação! Sou capaz de fazer por aí al­guma...

 

V

Naquela manhã um sol flamejante e intenso jorrava luz numa poeirada de ouro. O Comodoro se erguera cedo, conforme os seus hábitos sadios de marítimo; e após o banho frio revigorador, pu­sera-se a preparar a toilette, penetrado do grande esplendor do dia que lhe inundava todo o quarto pelas janelas abertas. Muito feliz e borbulhando de alegria, como nos domingos festivos de Inglaterra, quando ia passar as manhãs e as tardes nalgum cottage com misses — agitava-se de um para outro lado, a cantar, à meia voz, a velha canção escocesa com que lady Victória, havia dois dias, encerrara fidalgamente as delícias da se­gunda visita que ele lhe fizera, no seu ninho da Tijuca. Que soberba quinta-feira de estio! E os versos fluíam-lhe dos lábios, na sua linguagem primitiva e virgem, repassados de notas toscas e bárbaras, mas de um tal nativismo que dir-se-ia entrever em sua música, o verde dos prados da Escócia, o azul de seus lagos límpidos e o vago aroma suave das douradas margaridas! A canção era a Auld lang sine, Lembrança dos tempos idos! E George dizia as estrofes apaixonadamente, re­cordando-as com saudade no correr dos estribilhos:

For auld lang sine, my dear,

For auld lang syne

W'ell take a cup o’Ruidness yet

For auld lang syne!

Recordemos, pois, querida,

Essas venturas, agora,

Bebendo à quadra florida

Da nossa vida de outrora

Chegara à janela e, ainda envolvido no seu rico chambre de seda da Índia, debruçou-se da grade a contemplar a grandiosa paisagem que se desenrolava a seus olhos. A cidade agachava-se lá em baixo, ampla e ciclópica, numa prodigiosa aglomeração de telhados vermelhos que se superpunham e paredes brancas que faiscavam, den­tre as quais irrompiam para o céu, aqui e além, triunfalmente, torres de igrejas, chaminés de fábricas, o zimbório e as flechas da Candelária. A enorme baía do Rio de Janeiro, onde pousava a infinita multidão dos navios, com os seus cascos negros e o alto perfil das mastreações, desdobra­va-se a perder de vista, cortada de ilhas verdejantes. O vasto lençol das águas reluzentes, com um azulado tom de aço novo, tinha uma mansidão esplêndida à larga brisa do mar. Um grande steamer saía, com o seu longo penacho de fumo que se estendia pela popa fora...

George, então, na presença daquele dia en­charcado de azul e de ouro, repassado de um indefini­do bom humor e prazer, teve esta frase:

— Que glorioso dia! O que eu vou hoje gozar!...

E retirou-se, a repetir ainda, com a sua voz de tenor, as estrofes da canção:

auld acquaintance be forgot,

And Should never braught to mind?

Shauld auld acquaintance be forgot

And days lang syne?

Pode ficar olvidada

A nossa antiga afeição,

Sem nunca mais ser lembrada

E os tempos que já lá vão?...

Foi acabar de vestir-se, por entre um doce tumultuar de ideias, recordações de viagens, certas aventuras romanescas por países da Europa me­ridional — a Espanha, a Itália — que lhe perpas­savam agora pelo cérebro. Daí a instantes des­cia o Plano Inclinado, todo vestido de claro, com luvas, um capacete de linho branco, binóculo a tiracolo e uma singular orquídea amarela na la­pela do casaco. Estava radiante, esmaltado, com um todo à parte no meio da população indígena, incarateristica e raquítica; e, muito alto e forte, perfeito espécime de civilizações superiores, exi­bia vitoriosamente a nitidez, o aprumo, o gosto estético inglês.

Na rua homens paravam para o olhar. As senhoras mostravam-se surpreendidas, fixando-o muito, saudando-o com sorrisos acolhedores de dentes de jaspe. Ele, muito digno, alheado de tudo, a cabeça erguida nobremente, só tinha uma preocupação: o seu cutter e lady Victória Churchill. No largo de S. Francisco tomou um bond da Ti­juca. E ia pensando:

— Lady Victória vai ficar encantada, vai maravilhar-se. Diante da pompa e magnificência quase sobrenaturais deste dia, destes aspectos imprevistos da paisagem já tão admirada por ela, uma grande impressão experimentaria decerto o seu exquise temperamento de mulher norte-europeia? Parecia-lhe estar já a ouvir o seu beautiful muito atado e sonoro, em presença das águas azuis da baía, onde o Coleridge balançava, esguio, com o seu fino mastro à proa, o seu pano branco enfunado, a bandeira inglesa a tremular altivamente numa pequena haste à ré! O que não ia gozar!

Os seus olhos azuis, muito meigos, embeber-se-iam largamente na radiação da luz dourada e nas ondas espumosas, que ela amava desde criança, porque a sua infância se passara num velho cas­telo à beira-mar, na formosa enseada de Greenok!... E a volta, à noite, como não seria deliciosa, depois de bordejarem o dia inteiro pela baía, aportando numa ou noutra ilha para descansar, borboletean­do, lanchando e bebendo champagne na tolda à fresca aragem do mar! Ela chegaria a casa fati­gada, com a pele branca meio tostada, duas rosas de púrpura nas faces, os cabelos cheios de sol! Ele plenamente satisfeito, enternecido, aceso de amor por ela!...

E, sôfrego por chegar de uma vez, impacientava-se, indignava-se quase com a lentidão do bond. Não queria perder tempo. O seu desejo era que aquilo caminhasse, voasse, numa impetuosidade de máquina, engolindo vigorosamente a distância.

Quando chegou ao hotel, aos aposentos de lady Victória, ela já o esperava, muito alta e elegante numa toilette de mar que surpreendeu a George, um véu azul no rosto, um gorro escocês à cabeça com uma pena de albatroz.

Good morning, my lady!

— Good morning, sir!

E apertaram-se as mãos, a falar do passeio, do dia magnífico que estava, do que se iam alegrar. Saíram. E, depois de alguns minutos de andada tomaram lugar no primeiro bond que descia em direção à cidade.

No cais do Pharoux, àquela hora da manhã era uma multidão de embarcações de todo o gênero, grandes e pequenas, a se atropelarem, na lufa-lufa da atracação, em meio ao praguejar dos catraieiros. Havia então, como sempre, o extraordinário movimento de embarque e desembarque de toda uma população comercial e marítima, em atividade, o grosso ruído matinal de um grande porto cosmopolita. Barcas a vapor, saveiros, escaleres, canoas, lanchas, fáluas, cruzavam-se em várias direções, por entre o silvar agudo das máquinas, as vozes rijas das manobras, o esfrolar das ondas batendo de encontro ao cais. A fresca aragem do mar dava um ligeiro arrefecimento à face e às almas a alegria e a comoção das lon­gas viagens. Enchia o espaço, ao largo, coalhan­do a superfície das verdes águas mansas, a infi­nita profusão dos mastros, vergas, gurupés e a cordoalha dos navios de grande porte, brigues, galeras, paquetes, cruzadores, couraçados, dese­nhando-se nitidamente sobre os longes parda­centos como os traços de uma água-forte ciclópica...

Lady Victória sorria presa ao braço de George, aspirando vigorosamente o leve perfume marinho que errava, enquanto ele, a cabeça erguida, na atitude de quem procura alguma coisa no espa­ço em torno, despedia olhares para a amontoação de pequenos cascos, a ver se o cutter já estava atra­cado. Encontrou-o de repente, para o lado da Es­tação das Barcas, entalado entre uma flotinha de botes do trafico e alguns “bonds marítimos”. Abeirou-se do cais e, vendo de pé à popa a figu­ra grossa e loura do patrão, o James, que passea­va um olhar inquieto pela multidão enchendo o de­sembarque — gritou-lhe em inglês que atracasse.

E logo um lindo casco singrante, todo enverni­zado, com um fino mastro amarelo de muita guinda, um pequeno gurupés meio curvo, veio avançando lentamente, a proa alta boleada, um grande tosamento na borda. Era uma embarcação muito leve, elegante, artística, lembrando vagamente uma tartana ou um fuste, feita pelo sistema Trajano, que George admirava por sua estética, originalidade e excelentes condições náuticas. Caíra ao mar havia pouco, do Estaleiro da Prainha, pertencente ao célebre construtor com quem o Comodoro mantinha a maior amizade, não só por serem brasileiros e comprovincianos, como porque a sua apresentação lhe fora feita pelo seu grande amigo o almirante Seymor em Londres, quando aí se achava Trajano de Carvalho, então em plena glorificação e uma das individualidades brasileiras mais conhecidas no mundo marítimo europeu, sobretudo depois que o governo britânico adotara o seu sistema para alguns dos vasos de sua marinha de guerra e lhe oferecera o posto de contra-almirante honorário com o cargo de diretor-geral das construções navais no arsenal Bombay.

O cutter tinha um convés corrido com uma escotilha ao centro braçolada a metal, um pequenino cabrestrante patente e um molinetezinho onde se enroscavam, as cabeças, duas delgadas amarras de ferro, novas e reluzentes. À ré, via-se uma meia laranja, com entalhaduras e relevos que dava passagem para a estreita câmara, embaixo — uma câmara sem camarins ou cabines guarnecidas, anteparas de macios coxins de veludo granada e com uma mesa oval ao centro, cercada de belas cadeiras girantes e coberta por um rico pano de caxemira verde a ramagens douradas, ali colocada para os ligeiros repastos das “partidas” de recreio no mar. Em cima na tolda, rodeando o mastro a certa altura, por sob a retranca, e eriçando a mesa das amuradas, malaguetas de metal amarelo reluziam como se fossem de ouro. O trincaniz e as bordas eram pintados de branco, um branco azulado, e deixa­vam transparecer todo um luxo náutico requintado. De meia-nau para ré havia uma esplêndida balaustrada onde se erguiam os vergalhões de aço do toldo. E, do lado de fora, no largo espelho enramalhetado da popa, este letreiro dourado, em maiúsculo — COLERIDGE.

Logo que o cutter atracou embarcaram.

Lady Victória, toda encantada, examinando tudo com um ar entendido, admirava-se de que aquele “formoso yacht” fosse construção brasileira, porque lembrava perfeitamente as belas embarcações de recreio de lord Daudley ou de lord Warton, de Londres e Glasgow, embarcações em que ela tantas vezes viajara em solteira.

Não foi sem um grande ajuntamento de povo para ali afluído das adjacências do cais que o Coleridge de latino aberto ao vento, o soberbo gaff-top afagando o mastaréu, se fez ao largo na baía. Victória e George, de pé à popa, olhavam cidade, que se afastava pouco a pouco, estendendo-se panoramicamente do Pão de Açúcar ao Caju, na linha densa e vastíssima do casario branco que borda o litoral.

O casco, deitado a um bordo, numa elegância de gaivota, singrava o abismo do mar, levemente arrepiado nas ondulações preguiçosas do fluxo e do refluxo. À ré, ao leme, à veemência da velocidade, a água cantava, espumejando uma esteira com redemoinhos de prata. Os três marinheiros estavam a postos — o patrão ao leme, os outros dois admirando a graça veleira do cutter, na sua paixão de marítimos que amam os navios como as pessoas. George sorria, na alegria da bordada, indicando à lady Churchill algumas belezas e curiosidades do golfo de Guanabara, talvez o mais belo do mundo.

Passaram-se os primeiros cascos dos couraçados brasileiros, entre os quais se destacavam dois cruzadores americanos, uma fragata alemã à vela e uma canhoneira francesa, com as bandeiras de suas nações tremulando galhardamente, em panos de cores álacres, no meio do pavilhão nacional, melancólico e encardido no seu desbotado auriverde. Em plena baía, o Coleridge fez uma evolução, mudando de rumo, e correndo a bolina entre o forte de Villegaignon e a ponta da Boa Viagem, tendo a um lado, próximo, o Saco de S. Francisco, e do outro, mais distante, o lindo outeiro da Glória, muito verde e cheio de casinhas brancas como os presépios de Natal.

Lady Victória sentara-se nos bancos junto à gaiuta, e, de binóculo em punho, varava com a sua curiosidade o imenso panorama que se azulava, horizonte afora, para além do Pão de Açúcar e do ilhéu fulvo da Rasa. Extasiava-se! O coração batia-lhe contente pela alegria revigorativa que dá o mar, pela singularidade da paisagem e pelo verde ofuscante das ondas. As inter­jeições saltavam-lhe da boca, num entusiasmo ingênuo como o de uma criança arrebatada por uma tetéia extraordinária. George satisfeito também, resfolegava naquela pureza de ar salitroso, vendo o seu cutter, muito firme e seguro, saltando as vagas com a rapidez de um albatroz. Ago­ra, na bordada em que iam defrontavam o Fla­mengo, essa rua alegre, da costa, onde a aristocracia salubriza a carne, higienando-se nos ba­nhos de mar, e onde as edificações têm um ar asseado e nítido, de cimalhas espanadas pelos ventos frescos, lembrando as avenidas litorais de Brighton. A arrebentação era fortíssima no cais todo de cimento e granito.

O Comodoro, que considerava este passeio como um triunfo para o seu amor com lady Victória, fizera preparar um lunch de caça e pei­xe para consumo da tournée através do ar livre das águas. Não fez cerimônia, e com toda a correção serviu à sua formosa companheira um pouco de lebre e uma salada de lagosta, regadas de um bom Sauterne e de um espirrante champagne. Ela ria, falando-lhe do apetite que lhe dera aquela “partida” e do violáceo das monta­nhas, tão parecido com o roxo singular da sua toilette, que intimamente talvez já desejasse mudar para uma cor mais garrida, para um matiz mais em harmonia com a sua pessoa e com suas intenções no presente. George dizia-lhe que nenhum país do mundo era comparável ao Brasil para estes pic-nics do bom-tom, dando-se por muito feliz que ninguém, a não ser ele, quisesse ter a loucura de possuir um cutter “em ordem” para fazer vilegiaturas marítimas. A inglesa res­pondia-lhe que tinha observado que a fidalguia brasileira não gostava disso, porque não dava na vista, não rendia aplausos de espectadores, não “saía nos jornais”, como os aniversários, os bai­les, os casamentos, os batizados, o nascimento dos filhos. Aquilo, enfim passava “desapercebido”. Por isso o high-life fluminense só usava di­vertir-se em passeios de coupé, excursões a lugares determinados ou consagrados, soirées com na­moros e recitativos, alguma coisa de regatas, de longe em longe, e corridas nos prados... Só os ingleses ali sabiam gozar e amar o mar, percorrendo-o, aos domingos, nos seus cutterzinhos de Botafogo.

— Perfeitamente, concordava o Comodoro.

Não amavam o oceano pelo medo do enjoo, pelo medo de morrer afogados, o que até, muitas ve­zes, os privava de ir à Europa ou aos Estados Unidos, contagiar-se na grande Civilização ou saturar-se de bem viver e de estética!...

De repente houve uma iluminação de prazer no rosto de lady Churchill, porquanto, por sobre a alvura da vela, passara piando um grande ban­do de gaivotas e de biguás, aves marinhas que ela vira em todos os mares sempre, lentas e sau­dosas, numa dolência de voos recurvos, acompa­nhando os steamers de porto em porto, às rajadas dos ventos ponteiros, pelas auroras e ocasos... E apontou-as a George, dando-lhes, na sua língua uma denominação poética de aves errantes, iguais a ela, que já pensava que não tinha mais pátria.

O Coleridge voava e ia cumprindo o itinerá­rio traçado pelo Comodoro ao seu patrão inglês. Por isso, agora, entrava, a um toque do leme, na enseada de Botafogo, toda acesa em brilhos vi­vos àquela hora de sol a prumo e talhada em imenso anfiteatro marinho, como para lutas de monstros ictiológicos ou naumaquias ciclópicas. Os cães, os prédios, os jardins, os bonds em movimento, os transeuntes e tudo o que feria a vista do observador, divisava-se a olhos nus, reconhecendo George a moradia de Ernestina, que lobrigara de relance, achando-lhe um ar devasta­do e melancólico ao momento, por estar toda cer­rada couro um castelo onde há luto. Então, com Victória a seu lado, lembrou-se passageiramente da outra”, a adorável brasileira que chegara quase a amar. E comparava-as, mentalmente. Eram bem diferentes! Sim, eram bem diferentes as duas! Mas se lhe dessem ambas ao mesmo tempo qual delas escolheria? Talvez a morena, porque mais o encantava decerto, virgem como era e trescalando à fruta verde, dessas frutas que recendem e que fazem vir água à boca à mais leve arranhadura na casca... Oh! mas o cutter, como uma seta, como um galgo numa batida de veados, roçando a superfície de Guanabara, espumava, descrevendo uma meia-lua na enseada e safando-se logo dela com proa ao forte da Laje.

Tudo desapareceu subitamente para George com a retirada do local, continuando-lhe somente no pensamento os dois olhos azuis da “sua lady” muito úmidos, de um veludo e de um magnetismo novo ao sol. E ainda entre a Laje e a fortaleza de S. João, o timoneiro impulsionou o Coleridge, a um novo rumo, dando-lhe a direção de uma diminuta galheta, situada à esquerda do Pão de Açúcar, numa magnífica alvura de areias e de mar grosso.

Saltaram. O Comodoro dera o braço à inglesa, e propusera-lhe uma vista de olhos até à falda do imenso monolito, ali, a algumas braças apenas. Havia uma pequena sebe, muito verdejante, listrada de veredas sinuosas, abertas pela passagem dos artífices da fortaleza próxima. Victória ia fazendo, aqui e além, colheitas de conchas, e, na sua passagem para a grande rocha, encontrou, numa árvore tosca e morta, uma vida de orquídea em plena florescência — catleya-gutata, leopardina. Apanhou-a, com gritinhos nervosos, toda satisfeita, cantando estrofes de canções saudosas do seu país, que lhe vinham à boca em borbotões de alegria.

Quando chegaram à falda do Pão de Açúcar, os seus rostos ensanguentavam-se do calor, os seus olhos brilhavam aos raios de ouro do sol como turquesas molhadas. George apontava à lady Churchill o grande monstro granítico, e ela admirava o veludo verde-escuro dos musgos e líquens que o vestiam, desde a base — parte afogada no mar, parte enterrada na selva — até ao píncaro, espaçoso, com verdura e um pequeno plaino, on­de, em certas manhãs de verão, se enxugam ao sol, como roupa branca nos estendais das lavan­derias, algumas nuvens alvas, que desaparecem e se desfazem depois pelo dia.

George, desde que se embrenhara por ali com Vitória começara a falar-lhe de Cuba, recordando as passagens deliciosas do viver de ambos na Havana: e imprimia um tom meigo e saudoso às suas expressões delicadas de tenor enamorado. Tudo isto era o desejo violento e profundo de prender em seus braços longamente aquela mulher ideal, que tanta vez sentira já soluçar e gemer de paixão contra o seu peito incendido, debaixo do céu azul dessa ilha encantadora, trescalando à açucena e jasmim pelas noites consteladas. Lady Churchill, enlanguecida também pelo sol flamejante, o rosto alvíssimo abrazado por duas rosas de fogo, sentia a sua viva toquade por George arder agora tão fundo no seu temperamento nevrótico, como no dia em que, quase louca de tanto ocultar aquele afeto, quebrando per­didamente o voto que fizera sobre o cadáver ainda quente do primeiro homem que amara, abrira-se toda ao Comodoro comunicando-lhe, nesta frase soluçada, a sua estranha paixão: — Geor­ge, George, eu te amo!...” E, com o sangue ferver-lhe nas faces, tonta e delirante como nessa noite “terrível” da Havana, em que conhecera pela segunda vez na vida um seio de Apolo amoroso — foi-se entregando sem um “não!” aos braços de Marcial, sob uma moita protetora de arbustos marinhos que os cobriram docemente com o seu docel rendilhado de folhas...

Instantes depois, mais repousados da grande cáustica estival, retomavam a vereda que conduzia à prainha onde estava o Coleridge. Embarcaram. O Comodoro ordenou, então, ao mestre que aproasse para a barra, desejoso como estava de uma golada de ar livre nas planuras do oceano.

O cutter pôs-se a saltar de vaga em vaga com o  seu latino enfunado, e só pela tarde, no meio de um crepúsculo carregado de ouro, sob um terral muito brando e uma leve ondulação, foi que, sonolentamente, como uma quilha sonâmbula, o gaff-top a bater, banhado da luz violácea do ocaso. asfixiando-se em sombra, voltou, cheio dessa nostalgia suave que o céu das Ave-Marias derra­ma nos marinheiros.

No zinco escuro da baia, aqui e além, vultos negros de embarcações, com os mastaréus som­brios como os pinheiros da Noruega, à noite, pe­los luares gelados de inverno. Os pontos luminosos dos faróis estrelavam já a cordoalha marcando o ancoradouro. A bordo dos couraçados, brasileiros ou estrangeiros, leves rumores de clarim, o silvo dos pífanos, o rufar vago de tambores... À direita, serras recortadas, esfumando-se no crepúsculo, os pendores e as faldas constelados dos pingos de ouro radiantes da iluminação pública. Para o fundo, ao norte, a barra maciça e dentada dos Orgãos, indecisos na retirada da luz, como dorsos angulosos de mastodontes; os negrumes rotundos das ilhas, topetadas de palmeiras, cujas ramagens, na cinza translúcida do ar, agitavam cabeleiras sinistras como cabeças de loucos... À esquerda, a grande capital, serpenteada de lu­zes, coleando sob o crepe do ocaso... Para leste, as últimas tintas do sol aplumbeavam-se de todo, e, no cutter meio parado na vaga, George Victória, como o patrão e os tripulantes, sentiam bem esse vir triste da noite, que se espalha primeiro pela terra como uma poeira escura acinzentando a atmosfera, e desce depois sobre o mar, que lhe acende o fogo sulfúreo das ardentias...

O Coleridge com um farolim ao mastro, vogava agora na altura de Villegaignon, em direção ao Pharoux. De vez em quando, pela proa, à distância, passavam-lhe, como iluminados palácios flutuantes em festa, as barcas da Companhia Ferri, cruzando-se, carregadas de passageiros, entre Niterói e o Rio. Uma esteira alvíssima de espuma e um schlôp-schlôp de rodas mordendo as águas vigorosamente, as acompanhavam com uma música marulhosa através à oscilação mansa das ondas.

No cais, o fáeton de George o esperava; e quando chegaram não tiveram mais que subir para as almofadas e gritar ao cocheiro que batesse para a Tijuca.

 

VI

Era uma noite de quinta-feira. Henrique Tei­xeira e a mulher preparavam-se para ir ao tea­tro. Na calçada, em baixo, uma carruagem espe­rava.

Naquele dia era a primeira vez que Ernesti­na saía depois que casara. Só para não aparecer em público com o marido, levara esses três primeiros meses de “lua de mel” fechada em casa, num aborrecimento, num tédio, sem arredar pé. Não visitara a ninguém. Lançada aos braços de um ser que o seu coração repelia, unicamente para fazer a vontade à mamã e ao papá, ela via escoarem-se as horas, as semanas e os meses, com infinita lentidão, e sentia que tudo em redor de si era triste, desolador e estéril. O mundo aborrecia-a agora, e só encontrava tranquilidade e repouso no pensamento da morte. Nada mais resplandecia a seus olhos, oferecendo-lhe conso­lações ou encantos, nada lhe merecia atenção. Apenas, uma única coisa ainda emocionava às ve­zes no silêncio de seu quarto, enchendo-a de pas­sageira alegria, reanimando-lhe as esperanças des­falecidas, dourando-lhe vagamente o destino: era a grande paixão mal-apagada que tinha pelo “outro”, por George, que ela nunca mais vira, mas que supunha poder ainda um dia encontrar. E nessa ocasião mesmo, quebrando a promessa que a si própria fizera, num momento de deses­pero, de nunca sair com aquele homem que sem amor esposara — consentira em ir ao teatro, porque, sem saber como, fora subitamente inva­dida pela ideia de que poderia talvez encontrar George Marcial.

— Não sei o que é, dizia consigo ao vestir-se, mas experimento agora um grande alvoroço, uma grande alegria! Parece que vou para uma grande felicidade! Sinto uma palpitação! O que será?!...

E o seu pensamento, suavemente, sem o menor impulso, recaía na pessoa do Comodoro, presente sempre à lembrança:

— Talvez o encontre hoje no teatro!...

E tinha sorrisos contínuos, diante do largo espelho Psiché, a ajeitar o cabelo com ambas as mãos, em cujos dedos reluziam anéis, ora amansando os crespinhos revoltos, ora remexendo aqui e ali, na renda do pescoço, nos folhos do peito, na cintura, na saia do vestido, caindo em pregas verticais à frente. Estava admiravelmente formosa, com os seus olhos negros brilhando muito. O seu busto ereto e forte, os seus grossos quadris haviam-se desenvolvido mais, tinham agora a possança, a correção de linha das estátuas e pare­ciam feitos para o hercúleo amor de um gigante...

Enquanto se aprontava, o marido, numa conversa íntima com a viscondessa, revelava-lhe abertamente o desejo, que desde que casara intu­mecia o seu coração de homem, de ter um filhi­nho para beijar e embalar nos braços cantando. E exclamava:

— Que ventura incomparável, se Deus me der um filhinho mãezinha!...

A velha, enternecida, cheia de meiguice e bondade, dizia-lhe que “tivesse fé em Deus, porque Deus era misericordioso e só sabia fazer o bem”. E acrescentava:

— Deixe estar, ainda é cedo... Deus lhe há de atender...

Era com uma certa impaciência nervosa, muito alegre e a cantar, que Ernestina, lá em cima no quarto, retocava pela última vez a sua toilette cor-de-rosa, pregando um molho de camélias brancas ao seio.

O esposo continuava sentado na sala de jantar à espera, sob a luz viva dos globos de gás que faziam cintilar as porcelanas, os cristais do guarda-louça e o oleado da mesa, onde pavões esvoaçavam. Conversava ainda com D. Genoveva, muito risonho e feliz ao sentir pela primeira vez, depois do casamento, o canto suave da es­posa e o seu alegre rumor. E prosseguia na sua continua parolagem com a sogra, perdendo-se em numerosos detalhes da vida doméstica, quando, de repente, o velho relógio envernizado, que palpitava a um tanto, com o seu esguio volume semelhando um caixão ao alto, começou a bater oito horas.

Ernestina, que descera a escada num voo, irrompeu então na sala de jantar, radiante e inefável, as pulseiras a tilintarem em gritinhos de ou­ro, toda envolta numa nuvem de aroma:

— Vamos! vamos! São horas...

O Henrique imediatamente se ergueu, pe­quenino e magro, mas muito teso na sobrecasaca preta, agarrando o guarda-chuva e o chapéu ata­rantadamente.

E desceram apressados.

O carro deu uma volta na calçada; e o co­cheiro, avistando-os, correu logo a abrir a porti­nhola.

Subiram para as almofadas do coupé, e man­daram bater para o Lucinda...

A essa hora justamente, George Marcial estacava a Galga ao portão do Lucinda e dava a mão a lady Victória para que saltasse. Ela apeou muito alta e admirável, com um enorme chapéu claro, de onde esguichavam para o ar três tufadas papoulas escarlates. Trajava um riquíssimo ves­tido azul celeste, enfeitado de rosas vermelhas e lindos fofos de gaze. E foi por entre um grosso ajuntamento de homens, pasmados à calçada a olhar, que deu entrada no teatro pelo braço do Comodoro.

Só depois que se havia munido do bilhete de camarote, é que George refletiu que aquela ida ao teatro era uma má ideia, pela falta de conforto e alegria, de atores e peças capazes de que se ressentia o Rio de Janeiro, em todas as casas dramáticas. Vacilou, por isso, um instante ao en­frentar o porteiro. Mas que havia de fazer? Ia ser uma noite mal gasta, sabia, mas ao menos Victória teria, naquela reunião, um assunto magní­fico para uma de suas pitorescas análises de cos­tumes, pois as fazia como poucos pelo conheci­mento que tinha de todos os povos e pelo seu grande humour. Resolvido a ficar, internou-se com a inglesa, atravessando o jardim. Quando, porém, penetraram no edifício e se acomoda­ram à beira da frisa, uma desolação apoderou-se de ambos à vista do profundo abatimento e aspecto ruinoso da sala de espetáculo. No em tanto, como a casa começava de encher-se, saturada de um chiar de passos contínuo e de um arrastar e remexer de cadeiras, distraíram-se com a observa­ção das pessoas.

Nos outros camarotes, à semelhança de cari­caturas de todas as espécies, comendadores, em­pregados públicas, deputados, homens da bolsa, obesos negociantes de molhados e outros, rodea­dos das respectivas famílias, perfilavam-se, alguns com o rosto cheio de sono, os olhos cansados pela intensidade dos bicos de gás, que lhes es­brazeavam a pele reluzente de suor. Matronas rotundas, na maior parte apertadas em vestidos escuros, abanavam-se constantemente com os seus grandes leques, dobrando de vez em quando o grosso busto amplo, para um lado ou para outro, afim de conter a criançada que se dependurava loucamente dos balaustres, ou que entrava e saía dos camarotes em gritinhos e saltos pelos corre­dores. Bem à linha da grade, e dominadas zelosa­mente pelo olhar materno, as moças, cloróticas e franzinas na generalidade, exibiam-se saliente­mente, nas suas belas toilettes claras, com os seus chapéus de altas plumas. Algumas, de entre a gente do high-life, erguiam maneirosamente os braços enluvados, empunhando pequeninos binóculos de madrepérola ou marfim, em observações rápidas e vivas a certos pontos da plateia e às frisas fron­teiras.

As “torrinhas” gracejavam. Eram centenas de estudantes, vadios da cidade, operários, polícias secretas, mulatos, crioulos, meninos vagabundos e algumas criadas, das que deixam cedo as casas dos amos para se divertirem, à noite, na admiração da arte dramática.

— Alevanta o pano!

— Dá cá o pé, papagaio!

— Ó Cunha, tira o chapéu!

— Ó cara dura! Ó sujo!

E com essa chalaça grossa, a gente do “cama­rote do Torres”, como ela mesma se designa, azoinava todos os outros espectadores com os seus apupos, as suas gargalhadas, os seus comentários alvares de representante do asno.

A plateia era uma coisa um pouco melhor. Apesar de haver gente de colarinho sujo e barba por fazer, em grande desmazelo de toilette, notavam-se alguns guarda-livros, alguns primeiros-caixei­ros, gordos como bácoros bem tratados, de um riso parvo e jorrante a propósito da menor coisa; vários tipógrafos pelintras e aliteratados cheios de pieguismo e autores de poesias que trazem em geral este título sediço: Gutemberg, Colombo, Descrença, O martírio; numerosas cocotes, vis­tosas e coloridas como as telas dos pintores da Rosa † Cruz, os olhos de deboche, afetando vo­lúpia, grandes luvas até às axilas, chapéus emplumados escandalosamente, as faces muito fari­náceas de dartros e pó de arroz; um bando de gommeux, seguindo-as como seus vassalos ou pa­jens, calçando polainas e luvas, arrebitados, es­guios, com se fossem feitos com um sopro, um ar de pândegos de estatuetas, badine e monóculo, olho cavo, muito encervejados soltando ditinhos a cada uma delas, que lhes respondia com uma pancadi­nha de leque no rosto, com carícias de pelúcia e promessas de beijos... O mais, era o burguês po­bre, o bacharel, o engenheiro, o doutor em medi­cina, o deputado e o senador provincianos, só ou com as esposas, umas prendas, pesadas e boas, honestas e carinhosas, que não adoeciam e que lhes reproduziam a espécie uma vez por ano. Alguns comendadores, solteirões e mais modestos, que não aspiram figurar no camarote e que vão para as cadeiras com os seus “sonhos” ao peito, em fortes coruscações de pedras preciosas, ufanos e inchados de vaidade balofa como perus de roda. Diversos militares, entre alferes e capitães, as fardas fechadas e reluzentes nos botões, dando um tom marcial à sala, e, no meio deles, um velho coronel, nariz de gavião e presas de cão de fila, de bigodes espetados e aspecto de galo de briga, cantador e fanfarrão, senhor de terreiro e arrastador de asa grotesco...

Esta era a gente que tomava lugar no teatro, para ver a peça, para admirar os atores e ouvir a orquestra. Lá fora, porém, em redor das me­sas do jardim e no botequim, jornalistas e literatos palravam ruidosamente discutindo assuntos de arte ou fazendo calemburgos, com grandes risadas que enchiam a sala de um zum-zum tão forte que sufocava por vezes o da multidão.

George agora reparava, muito interessado, nos espectadores de um camarote quase fronteiro ao seu, onde se ostentava uma linda jovem vestida de cor-de-rosa, com uma grande lactescência de camélias ao peito. Reconheceu-a. Era a “morena” de Botafogo, a radiante criatura por quem, durante alguns dias, havia meses, se abalançara, em companhia do Baker, a rondar-lhe a habitação, plantada à beira d’água como as formosas casas de Nápoles, da branca Nápoles, de que tinha tan­tas recordações. Ao lado dela estava postado, e com ares de viva intimidade, na sua figura débil e angulosa de chim, o tal sujeito que tanto o incomodara no Derby, e que até aquela hora ele, Marcial, ignorava ainda que fosse o marido de Ernestina. Adivinhou-o, porém, vendo-os assim sozinhos no camarote, totalmente desacompanha­dos dos viscondes de Chuy.

— Estava, pois, visto que tinham casado! murmurava intimamente, a observá-los de instante a instante mas com discrição.

E não era sem uma pontinha de remorso que chegava a essa conclusão, pensando que poderia ter impedido a união daquela bela flor da raça ariana com um triste exemplar de malaio, por­que estava quase certo, de que ela o amava a ele, George, e de que o teria preferido à múmia com quem casara se ele a tivesse pedido aos pais... Mas logo estas considerações lhe pareceram uma tolice, acabando por achar que o casamento com o bacharel fora o mais acertado.

E o Baker que não lhe aparecia! refletia agora, examinando mais detalhadamente os tipos da plateia. Andava de certo nalguma estroinice, nalguma nova paixão por atrizes, por cocottes; ou talvez estivesse a villegiar por Petrópolis ou S. Paulo com alguma das espanholas companhei­ras de hotel, uma das “poldras de steeple-chase”, como as chamara. Mas admirava-se de que ele houvesse partido sem uma participação, sem um adeus...

Por momentos ficou a pensar naquela ausência do Baker, o seu amigo favorito, e jurou sa­ber notícias dele no dia seguinte.

Lady Victória o distraiu de semelhantes lem­branças, falando-lhe do teatro, que achava muito pobre, mal iluminado e sem decoração com uma orquestra insignificante, quase sem figuras e que estava para ali a estropiar Donizetti.

George, olhando de vez em quando, Ernestina, vagamente despeitado com a ideia do casamento dela mas sem o externar de leve, respondia à lady Churchill, exagerando a penúria dos empresários nacionais, a falta de voo dos autores dramáticos, o atraso e a mesquinhez dos processos cenográficos, dos maquinismos, da movimentação cênica, a ignorância e inaptidão dos atores e atrizes, afirmando que a maior parte das composições musicais eram paráfrases ou plágios dos maestros estrangeiros, não havendo ainda música nacional — nem mesmo em Carlos Gomes, que tinha a maneira toda italiana  — senão nas cantigas populares e modinhas. Victória ria-se ironicamente, e falava dos teatros de Londres, de Paris, de Berlim, de Nova York, de S. Petersburgo, de Viena, e mesmo dos da Austrália, em Melbourne e Sidney, que eram verdadeiras ma­ravilhas comparados ao da Capital brasileira...

No seu camarote, Ernestina impacientava-se já por tardar tanto o primeiro ato, e começava a analisar a frisa. De repente, teve uma forte impressão: lá estava George, sem o amigo com quem o via sempre mas acompanhado de uma senhora loura, esguia e com um todo original. O Comodoro, na sua correção de gentleman, sa­lientava-se vivamente pelo físico e a toilette, pela alegria e a elegância de sua pessoa. Ernes­tina, então cautelosamente, para não ser pressentida pelo marido, pôs-se a olhar George, a matar saudades da beleza do seu tipo másculo, que tanto encantava a sua natureza de rapariga tro­pical.

— Sim! meditava; era aquele o seu ideal, era o homem para quem o seu seio se abrira expansivamente, para quem os seus braços certamente teriam todos os conchegos e todas as carícias...

E suspirava, opressa, numa contrariedade que o calor das luzes e da multidão mais e mais aumentavam, comparando a figura do “outro” a do esposo, tão raquítica e inferior, e que o destino lhe reservara com uma crueldade imerecida. E acariciava amorosamente, com os seus belos olhos pestanudos e negros, o busto apolíneo de George, que lhe parecia falava ali à sua dama com dedicação apaixonada. E meditava intimamente:

— Oh! como seria feliz se lhe fosse dado andar pelo braço daquele homem superior, de passadas firmes e porte varonil, sem o terror, que a assaltava na vida presente, de engravidar, porque ele era “o seu escolhido”, o companheiro adorado, ao passo que o tatibitate do Henrique, muito metido a negócios de oratória e política, lhe causava tédio e medo, tirando-lhe todo o desejo de conceber um filho, que desejava louro e parecido com o Comodoro.

— Queres groseille? perguntou-lhe o Henrique, ao aparecimento de um vendedor de refrescos à porta do camarote.

O bacharel estava mais abatido agora: o rosto chupado, os olhos encovados, as orelhas muito despegadas do crânio. Todo ele era uma grande anemia. Já tinha dado com a presença de Marcial, e, empalidecendo vivamente, entrara a inquietar-se, acometido de um vago ciúme. Mas, reparando bem, viu que ele não estava só, pois tinha uma mulher a seu lado. Pensava que seria a esposa ou alguma amante talvez... Prevenido, porém, com a história do Derby, de vez em quando espiava, seguindo-lhe ansiosamente os movimentos e olhares. O mesmo fazia com relação à Titina, que procurava distrair com conversas, ainda as mais inoportunas, na persuasão ingênua de que ela não tivesse visto ainda o Comodoro. E com Ernestina, muito calculadamente, estivesse ao momento a olhar a plateia, parecendo indiferente a presença do “estrangeiro”, serenou de todo; e, para mais a agradar, furtando-a à atenção do outro, fazia-lhe oferecimentos, baixinho, numa voz de ternura:

— Queres umas balas, querida?

— Não, não quero. Não tenho vontade...

O pano subira num trilar de apito; as cadei­ras rangeram na plateia, a gente daí descobrira-se. Cessara o zumbido das palestras e a fumaça dos cigarros. Era uma première. A casa estava cheia. Representava-se um drama, extraído por um jornalista, de um romance de Zola. O primeiro ato começava, numa casa dos Rougont-Macquart em Paris, por um episódio comum e burguês da vida. O empresário do teatro, um antigo ator de nomeada na infância da geração, de 1850, arranjara uma mise-en-scène enfática, suja, im­possível, com grandes preocupações de não ma­cular a intenção de Zola, de interpretar a obra exibindo, com todo o rigor, as ideias do natura­lismo...

Então, aos olhos dos espectadores admirados começou a mais vergonhosa das borracheiras. Gritava-se, faziam-se gestos indecorosos, os vinhos que se bebiam em cena eram verdadeiros, havendo por isso um calor extraordinário na repre­sentação. O galã, que era o próprio empresário, homem de setenta e tantos anos, fazia prodígios, procurando falar com naturalidade, ter gestos hu­manos e não ser exagerado. Mas um vento mau, soprador e fresco, balançava as cenografias re­produzindo Paris, e fazia tudo oscilar como num ciclone. Um abade, cujo papel coubera a um ator português, talhado para fingir mal de padre cura, punha tudo a perder, com as suas minudências enfáticas de falso interpretador do naturalismo e com as suas cruezas de arrieiro linguarudo.

A  burguesia, quer das cadeiras quer dos cama­rotes, exaltava-se, admirando “os grandes artistas” e o assunto da peça, que lhe parecia muitíssimo interessante. A protogonista entrara, andrajosa e imunda, com roupas empoeiradas e mendigas, porque o tal empresário queria tudo de après nature — Nada de falsificar a Natureza!...

E a representação prosseguia, numa verdadeira calamidade. Mas as torrinhas desandaram em aplausos, seguindo-se logo a plateia e as próprias frisas.

O Henrique, entusiasmado, sem saber o que dizia, gritava: — ”Bravo! Bravo!” envergonhando Ernestina, que, aproveitando o instante, trocava francos olhares com George, o qual sorria ironica­mente da atitude gauche do deputado. Este, po­rém, arrebatado e louco, debruçado dos balaustres, pedia agora bis, o que desafiou uma gargalhada geral das galerias, enfreando imediatamente a epilepsia do pobre admirador da arte dramática e fazendo lágrimas à moça, que via o seu camarote tornado de repente alvo de chacota e apupos. Felizmente, isto durou apenas segundos, porque o pano desceu logo entre palmas.

Ernestina ergueu-se, então, ainda muito vexada e indignada, e foi para o fundo do camarote, onde repreendeu o marido, chamando-o de inconveniente, tonto, pascácio.

— Onde é que já viu as pessoas de certa or­dem, os cavalheiros dos camarotes darem bravos? Como era ridículo e vergonhoso pedir bis numa cena dramática, a ponto dos atores se mostra­rem aborrecidos! Estava vendo que ele não pas­sava de um matuto e ela não estava para ser ridicularizada por sua causa...

O Comodoro, de longe, não obstante a ani­mada conversa que entretinha com lady Victória, de vez em quando relanceava olhares para o camarote de Ernestina, seguindo mais ou menos tudo o que se passava.

O espetáculo, daí por diante até ao fim, foi uma pachouchada, uma degringolada fantasmagó­rica de romantismo e realismo, de tolice e verdade, de que muito riram George e Vitória, admirados, de certo, da coragem dos atores e do empresário, e mais ainda da infinita tolerância e gosto artístico dos espectadores. Ernestina, que com seus ralhos fizera amuar o marido, isolando-o para o fundo do camarote, procurava agora, abertamente, os olhares de Marcial, não já sem um vago ciúme da “inglesa” com quem ele entrara a conversar cerradamente desde o fim do I° ato.

No entanto, a derradeira cena exibia-se no palco, precipitadamente, num roldão de persona­gens. Era uma agitação quase frenética de diálogos e tiradas ruidosas, lançados pelo vozeirão do “centro” contra a figura hedionda, pálida e sinis­tra, do “cínico”, debatendo-se já, com olhares arregalados de pânico, junto à pessoa majestosa e serena de um maire e entre um pelotão de guar­das policiais ...

E assim o espetáculo findou.

George, com lady Churchill pelo braço, em meio à multidão que saía, encaminhou-se para a porta; e quando ia a tornar o seu fáeton, divisou, com espanto, à claridade do gás, o vulto alto do Baker, em desalinho e meio ébrio, relutando va­gamente com uma esbelta mulher, que o procurava conduzir à pressa para uma “vitória” esta­cionada adiante.

 

VII

Ernestina acordara tarde, estremunhada; e fi­cara de repente admirada de se ver ali, sozinha, na sua cama de solteira, com o bidet de mármore ao lado e o velho trepied de bronze egípcio onde a veilleuse ardia ainda numa vaga chamazinha amarela, à luz velada da manhã entrando pe­las janelas através dos reposteiros de caça. Esfregou ligeiramente os olhos e relanceou-os em torno, para se certificar bem: o toucador torneado d'érable lá estava a um ângulo, com o seu ser­viço de porcelana nova que cintilava, e o espelho retangular coroado por um grande florão esculpido, o cristal meio inclinado, refletindo um pedaço do teto, a cúpula, o laço azul do cor­tinado: a um canto o seu antigo guarda-vestidos de mogno, a cômoda, duas altas cantoneiras douradas com estatuetas de Sèvres e pequeninos vasos chineses: defronte, suspensos por longos cordões de seda a pregos de metal, dois quadri­nhos representando paisagens europeias  — moças atravessando um campo de feno sob um poente alaranjado; outras colhendo flores numa sebe, à beira de uma estrada volteando uma colina: e sobre a cabeceira, que tinha agora o cortinado colorido, o cromozinho emoldurado da santa de sua devoção, pequenina e doce, gravada a cores como as iluminuras medievas dos agiológios. Correndo a colcha de cetim teve um suspiro de­solador:

— Meu Deus! Que felicidade se fosse ainda solteira!...

Nisto a porta do quarto abriu-se, e a velha criada entrou com o chocolate, dando-lhe meiga­mente os bons-dias e perguntando-lhe “como passara a noite“, a voz um pouco atrapalhada, o olhar meio espantado por ver a Titina ocupando outra vez os seus cômodos de “menina”.

— Que horas são, ama? Isto já deve ser tarde...

A Gertrudes respondeu que já tinham dado as dez que o dr. Henrique descera há muito e lá es­tava na sala de jantar a conversar com a senhora.

— Mas como é que a menina veio parar aqui? Perguntava.

— Olhe que é para admirar! Deixar o seu quarto, tão pertinho e vir dormir nesta cami­nha estreita, e tão sozinha... É para admirar!...

Ernestina espreguiçou-se, abrindo muito os braços roliços, fazendo esticar a fina cambraia da camisa fechada até a garganta, e, num movimento langue e pesado, que lhe revelava plena­mente a contornação magnífica das formas esculturais, sentou-se. Pediu à ama que lhe passasse os pantufos bordados, o peignoir da manhã, e, vestindo-o à pressa, saltou da cama e encami­nhou-se para o banho.

Estava muito nervosa. Desde a véspera à noite ao voltar do teatro, que pouco ou nada sossegara, pensando na figura que fizera o marido a dar bravos e bis no camarote em que estavam.

Chorara de envergonhada dentro do coupé, e ao entrar em casa resolvera “castigar” o idiota, deixando-o abandonado no seu quarto de casal. Por isso fora dormir na sua cama de solteira, onde levara a revolver-se até a madrugada, ruminando a “amargura “ sofrida, mas experimentando ao mesmo tempo suaves recordações — encontrara, afinal, George! O seu pensamento não tinha agora outra preocupação, era só para ele! Bem lhe dizia o seu pressentimento que o iria ver... Que noite aquela! E como ele estava no camarote em frente ao seu! Que surpresa!... O Comodoro achava-se com uma dama, loura e esguia, que parecia estrangeira, e que tinha um rico ves­tido azul celeste, atacado até ao queixo como o das inglesas; mas nem por isso deixara de a olhar, a ela Ernestina, como nos primeiros dias em que a vira... Que encontro, Nossa Senhora! Ele não estava nada mudado e lhe parecia mais belo que nunca! E bem sentia agora que o não pode­ria mais esquecer, porque a sua paixão se reacendeu de um modo louco, extraordinário! Ador­mecera nestas conjeturas...

O marido, no vasto quarto próximo, tendo apenas de permeio os aposentos do visconde e da esposa, abandonado e maltratado, não pudera dormir igualmente. Levara as horas a rolar sobre o leito, humilhado, aflito, invadido por todas as fraquezas, entristecido, quase a chorar, com ideias de suicídio... Era a primeira vez que ela lhe fazia aquilo, a Titina! Por isso, logo que ama­nheceu, pressentindo a sogra levantada, correra para ela a queixar-se. E contara-lhe tudo minuciosamente, desde a “história dos aplausos” até ao abandono em que a esposa o deixara.

— Pois é como lhe digo, mãezinha, afirmava Henrique; cheguei até a pensar no suicídio! Nunca supus que a Titina me fizesse o que fez! Deixar o leito de casal, e ir dormir para outro quarto! E tudo isso porque aplaudi uma atriz! Parece incrível! Maldito espetáculo! Antes lá não tivéssemos ido!...

— Tranquilize-se, meu filho. Isto não é nada, há de passar. Logo fazem-se as pazes e tudo fica esquecido... Mas a culpa foi sua, toda sua! Também ir aplaudir uma atriz, e pedindo bis, e dando bravos! Você caiu numa! Olhe que é para uma mulher ficar enciumada! Não é para menos, acre­dite! Mas sossegue, que isto há de passar...

E D. Genoveva, já um tanto alterada, por ver que as “desavenças” começavam a surgir, amea­çando perturbar o seu lar com dictérios e falatórios, que a “boca do mundo” podia muito bem de repente espalhar pela cidade, pois os criados já andavam com um ar esquisito, como a espreitar e a ouvir tudo que falavam, — D. Genoveva er­gueu-se então, escarlate; e, muito atrapalhada e nervosa, correu ao encontro da filha, que, já de volta do banho, se recolhia ao quarto. Esbarra­ram-se na escada, onde Ernestina voltou-se para tomar-lhe a benção e beijá-la. A moça estava ainda muito pálida, apesar do banho frio: trazia os cabelos soltos pelas costas, sobre uma toalha de felpo alvo; e com a fisionomia meio severa, porque já desconfiava da “queixa” do esposo, mal sorrira à sua mãe. Mas a senadora, fitando-o com certa gravidade, murmurou entre repreensiva e carinhosa:

— Mas que foi isto esta noite Titina? pois então você abandona seu marido, o seu quarto, assim sem mais nem menos?! Que loucura, minha filha? Estas coisas não se fazem... O Henrique desde cedo que está lá em baixo a queixar-se, coitado! Isto é uma vergonha, é preciso que se não repita mais! Que desgosto para teu pai se viesse a saber do que houve! Acaba com isto de uma vez! E não tornes mais a fazer destas, nunca mais! Olha que estou tão incomodada que nem sei... Parece-me até que se deu um escândalo aqui em casa!...

E as duas se encaminharam para o quarto. Ernestina, meio abalada com as palavras de sua mãe, desatou a chorar. Mas D. Genoveva abraçou-a, enternecida, e, beijando-a muito, dizia-lhe:

— Para que choros, minha filha? Não é caso para isso... E sentando-a na cama, acrescentava, afagando-a e animando-a: — Sossega, Titina! Sossega, que já está tudo passado. Isto não tem valor, eu te disse por dizer... Mas sossega, que não te digo mais nada...

O visconde de Chuy, que estava a ler as folhas da manhã e ouvira os soluços da filha largara tudo e rompera pelo quarto, em chinelas e ainda de chambre como se levantara. Vinha muito pálido e, mal se abeirara do leito, antes de beijar. Ernestina, começara a perguntar:

Que foi? Que aconteceu? Alguma desgraça?... A esposa, para ocultar-lhe tudo, improvisou então:

— Tolices da Titina, Maneco, pois não sabes que anda agora com ciúmes do Henrique?...

O bom do senador, já mais corado e mais cal­mo, meio irônico e alegre, desatou numa grossa e catarrosa gargalhada de velho:

— Ah! Ah! Ah! Ah!...

E correu para a escada, gritando ao genro que subisse. Quando este apareceu, agarrou-o pela mão e impôs as pazes à filha, que as aceitou depois de muita relutância e ainda banhada em lágrimas.

A moça fingiu satisfazer-se com aquelas “pa­zes” e com a promessa, que fizera o Henrique, de “nunca mais cair noutra”; mas no íntimo sen­tia avolumarem-se mais e mais, a indiferença e o tédio que sempre lhe inspirara a figura raquítica, negrucha e simiesca do esposo.

Os dois velhos, então, julgando muito natu­ralmente que após a “briga” viria a clássica cena de beijos e arrulhos dos que são eternamente noivos e amantes, deixaram-nos a sós — ela, ainda em pranto e furiosa, ele implorativo e humilde como um cão.

— Agora estou perdoado, Titina? gaguejou ti­midamente o Henrique.

— Perdoado de que?! Da vergonha do tea­tro?... Ora essa!... O seu procedimento tolo de ir queixar-se à mamãe é que é imperdoável, inqualificável... Mas você há de se arrepender! Eu lhe ensino... Daqui por diante é que há de ver!...

O deputado, infeliz sob esta rajada de amea­ças, baixou por um instante a cabeça e, louco de afeto e de zelos, no temor de uma nova provação, pediu-lhe quase de joelhos:

— Titina! minha querida! por Jesus e pela Vir­gem não me faças mais sofrer! Não me abando­nes mais, meu amor! Tu não sabes o que passei esta noite! Eu julguei que ia morrer! Ah! se soubesses!...

E achegava-se para a esposa, procurando enlaçá-la e beijá-la. Ela porém, que o não amava, repelia-o vivamente, afastando-o de si, numa có­lera, os olhos já secos do pranto:

— Ora deixe-se de cenas! E faça o favor de sair, que me quero vestir... É melhor que vá almoçar, que são horas de ir para a Câmara...

Mas ele insistia, desvairado, como numa sofreguidão de carinhos. Ernestina desviava-se, aborrecida, furiosa, afastando os magros braços do Henrique, as suas mãos afiladas e tísicas, que a procurava tatear num anseio, nervosas e suplicantes. Caíra agora de joelhos junto ao leito, sempre com as mãos erguidas para ela, numa convulsão desesperada. De vez em quando, as pontas dos seus dedos ósseos e longos, muito descarnados, por entre queixumes e protestos amorosos, tocavam o corpo de Ernestina, que o enxotava com palavras veementes, descarinhosas, repulsivas. Agora é que tinha por ele uma re­pugnância suprema! Nem o podia encarar! E, apesar dos esforços que fazia para conter-se, sem romper outra vez para não desagradar aos pais, disse-lhe nervosa e irritada.

— Vá! vá! Levante-se! Isto é uma vergonha! O que está o senhor a fazer!...

O Henrique gemia humildemente, muito de baixo, com uma voz de choro:

— Por quem é, escute-me!...

Mas a esposa não o quis ouvir mais, e saiu dando-lhe uma rabanada com desprezo. Foi refu­giar-se no quarto dos pais, onde se trancou.

De joelhos, como estava, ele ficou fulminado, num apatetamento, com um aspecto idiota, ao vê-la afastar-se bruscamente dali, esmagando, com toda a crueldade, o seu brio de homem e os seus mais íntimos afetos. Depois ergueu-se, num desalinho, e sentado à beira do leito pensava:

— Aquilo era um repúdio formal... Mas que fazer, em tal caso, Deus do céu! Consagrava todo o seu amor à Titina, as suas esperanças, o seu futuro. A sua glória, os seus louros de bacharel, corógrafo e deputado eram dela, só dela! A “ingrata” porém pagava-lhe daquele modo, escarnecendo-o, desprezando-o, ludibriando-o... Era uma desgraça, uma infinita desgraça!...

E rompeu a chorar, silenciosamente, num desfalecimento cobarde. Mas a Gertrudes surgira a dizer-lhe que o almoço estava à mesa. Levantou-se então apressado, a enxugar os olhos com lenço. Foi-se ver ao espelho: estava cavado, desfigurado, os cabelos revoltos, a roupa amarrotada! Alisou-se com o pente, escovou-se, endireitou a gola, a gravata; e enfiou pelo corredor que ia dar à escada em direção à sala de jantar...

Ernestina, fatigada e nervosa, numa indisposição, não quis almoçar. Pediu apenas à ama que lhe levasse uma xícara de chá, alguns biscoitos e leite. Após esta pequena refeição, voltou ao seu quarto, e, estirando-se no leito, assim como esta­va, adormeceu. Tomara-a logo um sonho confuso, mas delicioso... E acordara com uma risada, porque supunha, naquele instante, achar-se real­mente longe, nos braços de George. Ele tinha-a enlaçada, cobria-a de beijos, dizia-lhe histórias graciosas, contava-lhe as suas grandes viagens... Depois, com uma grande risada, disse-lhe: — Ago­ra, para findar, o episódio do Velho rajah indiano: conhecera-o em Paris.

Senil e grotesco, vivia no meio de um luxo ex­traordinário, cercado da exploração das cocotes. O rajah era uma espécie de nababo, de uma rique­za fantástica, já muito entrado em anos, decré­pito, e que pelava-se todo pelas horizontais, ainda as mais comuns, reunindo-as em casa duas ve­zes por semana, em orgias tumultuosas em que havia toda a sorte de bailados loucos, quadros-vivos, cancans, poses-plásticas... E o velho rei hindu assistia a tudo isso do alto de um sólio dourado, reclinado sobre um divã da Pérsia, numa incomparável satisfação, os olhos semi-cerrados, úmidos de gozo, profundamente feliz, na beatitude de um êxtase!... De olhos abertos, agora, Ernestina bocejava, espreguiçava-se. E do travesseiro, por uma das janelas, pôs-se a fixar indolentemente um pedaço do Azul, que ia pouco a pouco escurecendo sob a cinza do crepúsculo. Uma grande estrela relu­zia, em foco, no meio de miríades de outras, com a sua luz trêmula e de prata. Nem uma nuvenzinha maculava a nitidez daquele céu esgazeado e límpido!

Acordada, bem disposta pela reparação das forças ganhas no sono, a moça, no seu leito, tra­çava mentalmente um projeto de vida tendente a terminar aquela existência, anormal e cheia de pesadelos. Queria, primeiro que tudo, a George, pois o amava: era-lhe preciso saber quem era, onde habitava, e se aquela “inglesa” que tinha ao lado no teatro pertencia-lhe como esposa legitima, ou era sua irmã, ou sua amante passageira, dessas que vivem por instantes na voluptuosidade de um homem, sem nunca tocarem o seu espírito ou o seu coração: depois queria libertar-se da “tirania” da família, desde o marido até os pais, que lhe tinham arranjado aquele casamento. Na sua cabecinha afo­gueada, de ideias extravagantes, próprias de uma histérica ou de uma mulher infeliz no amor, for­mavam-se mil planos, cada qual mais incoerente e destinado a perturbar a paz e a honra dos seus. Mas assim como os ideava, os repelia logo, por lhe parecerem humanamente impraticáveis. Não cessava, contudo, de cogitar de outros, cuja exe­cução pudesse ser fácil e rápida, porque, dizia consigo, “lhe era necessário quanto antes fugir ao despotismo de todos, e se lançar, de alma inteira, no gozo da sua paixão”...

Depois de muito rolar no leito, importunada pela Gertrudes, que insistia para que descesse a jantar, já meio irritada e nervosa, teve uma ideia, que lhe pareceu ótima e lhe agradou profunda­mente, porque, além de tudo, tinha todas as cruel­dades e encantos malévolos que projetava: fin­gir-se, dentro em poucos dias, doente, mostrando-se triste, aborrecida, indiferente a tudo e a todos, com olhares vagos e preocupações fixas, fúnebres, apregoando aos pais que talvez não pudesse vi­ver por muito tempo, pois sentia que um grave mal a consumia, a impelia irremediavelmente para a morte, para um fim!... E isto parecia magnífico ao seu romantismo... Sim, no outro dia começaria a pôr em prática tudo isso, certa de que triunfaria: era ir ficando melancólica, não falar, não se alimentar à vista da família, conservar-se sempre deitada, os cabelos soltos, os olhos baixos como sob um sofrimento contínuo, e afetar um gemido ou um soluço quando a viessem atormentar... E sorria, intimamente satisfeita!

— Na verdade, era esplendida essa ideia de manha bem desenvolvida, pensava. Não desperta­ria desconfianças e lhe surtiria o desejado efeito. Chamariam o dr. Queiroz, um velho bondoso e simpático, com os seus óculos douro, suas suíças alvíssimas, e que era o antigo médico da casa. Ele viria, como das outras vezes, e, diante dos pais, far-lhe-ia um“ exame”, tomando-lhe delica­damente o pulso, vendo-lhe a língua, procedendo a minuciosa auscultação, acabando por dizer que “aquilo não era nada”. Ela, porém, a boca con­traída de dor e de queixas simuladas, estertoran­do a voz, com olhares incertos e melancólicos, afirmar-lhe-ia que “se sentia sem forças, porque tinha um grande peso no peito, falta de respira­ção e uma tristeza como se estivesse vendo a mor­te...” Então, o bom dr. Queiroz ficaria ataran­tado, sem saber explicar o que se passava, enquanto a Ciência e a Verdade lhe garantiam a saúde e a mocidade do seu corpo florido. E o mais que ele podia receitar seria um “fortificante” qualquer e um calmante para os seus nervos, com passeios, distrações e uma alimentação forte, positiva, de carne com sangue e capitosos vinhos... E no seu quarto, para aumentar a aflição do Henrique e de todos, arderiam em frente aos seus santos algumas velas de cera, como promessas feitas por ideais fervorosos e místicos. Exaltaria muito a sua religião: o nome de Deus não lhe sairia mais dos lábios, recebendo ósculos em seus sagrados “registros”: e, prostrada em poses e ge­nuflexões devotas, revelaria incomparável unção e incomparável fé. Oraria, toda de branco, ajoelhada horas e horas defronte da imagem da Vir­gem, à semelhança das monjas que, nos extremos da vida, rezavam ainda nas celas, muito brancas nos hábitos de linho, beijando às vezes um amu­leto, uma relíquia, sob a luz doce e velada do último dia! Assim, quase monomaníaca por Deus, a sua doença teria uma maior solenidade, um mais elevado encanto, e toda a família, e o mari­do, estava certa, gemeriam de medo, de terror, quando ela, como uma louca, se pusesse desgre­nhada e descalça a beijar, em soluços, o seu Cristo de marfim...

Mas a noite invadira todo o quarto com a sua negrura espessa, em cujo seio os objetos se ha­viam afundado. Fora como uma submersão. Só a brancura do cortinado e dos lençóis flutuava, à maneira de pastas de algodão encardido. O vi­dro retangular do espelho reluzia frouxamente, como se um enorme furo varasse a parede, ver­tendo uma claridade moribunda e cinzenta de anoitecer. As vidraças pareciam crivadas de es­trelas, radiando num fundo azul-ferrete, semelhan­tes a esses altares mal alumiados dos sítios que, pelas grandes festas anuais da Igreja, se enfeitam de rosinhas brancas ao fundo de capelas humildes.

Ernestina experimentou de repente como um temor, de se achar ali sozinha. Sempre fora muito medrosa. Em pequena, a sua caminha de grade ficava no quarto da mamã, bem juntinho ao leito dela, porque temia que viesse, altas horas, algum “bicho” puxar-lhe as perninhas, arrebatá-la. Dor­mia de cabeça coberta. A lamparina ficava acesa toda a noite, à porta do quarto próximo; mas, mesmo assim, quantas vezes não se acordava a choramingar de medo! Perseguiam-na então, mui­to, visões de bruxas e lobisomens das histórias que lhe contava uma velha senhora agregada de casa, que o papá chamava de “sinhá Bonifácia”. Crescera, ficara moça, sacudira de si a maior parte de semelhantes tolices, mas nunca pudera bem, em certas ocasiões, resistir a essas influências da infância... Ergueu-se um pouco sobre um braço, estendeu a mão para um dos bidets, à pro­cura dos fósforos, da vela, apalpando cautelo­samente. Não os encontrou. Entrou então a chamar pela Gertrudes.

De baixo, da sala de jantar, subia um rumor de passos, de quem passeia de um lado para ou­tro: estalavam vozes, um tinir de louça... Pensou consigo:

— Lá estão eles, o papai, o Henrique e mamãe!... Que gente que não acabava mais com aquilo, que se não cansava!... Agora era sempre aquela apoquentação... Mas se pensavam que ela ia ficar às boas com aquelas lamúrias, estavam enganados! Não vê! Que não viessem com tolices! Não a convenciam, por mais que fizessem. Estava decidida a romper, oh se estava!...

Mas a criada apareceu com a luz, e contou que a senhora não almoçara nem jantara quase, atirada para cima do sofá, triste, abatida, com uma cara que fazia dó.

— Agora mesmo deixei-a a chorar! disse.

O senhor andava só para lá e para cá, a um dos lados da mesa, de cabeça baixa, cismático. Tinha levado a tarde inteira, na sala, a conversar com o dr. Henrique, que estava muito pálido, encovado, os olhos raiados de sangue, e que de vez em quando gritava numa fúria de palavras: — Eu já não posso mais! eu já não posso mais!... É preciso acabar com todo este tormento!... Eu mato-me, não há outro remédio! Eu mato-me!... O senhor acudia então, de pé diante dele: — ­Acalme-se, Henrique! por quem é, acalme-se! A Titina é boa filha, boa menina, há de fazer as pazes, deixe estar... Isto é um escândalo, uma desonra para minha casa!... O que não dirá a vizinhança, o que não dirão os amigos, meu Deus! O que não vai falar essa gente!...

Ernestina acompanhava as palavras da ama em silêncio, livorecida, com os olhos muito aber­tos, tomada de uma súbita emoção. De repente, saltou da cama, toda no ar, como uma louca. Vestiu-se, numa pressa, numa atrapalhação: as pernas tremiam-lhe, uma ânsia oprimia-lhe o peito, sufocando-a. Não podia respirar. E, esti­cando-se toda, ergueu os braços, abriu a boca: — Ai! ama, que aflição!...

E caiu de bruços sobre o leito, chorando.

 

VIII

O Cassino Fluminense resplandecia ilumina­do. Cá fora, na rua, o cordão de gás da fachada as carruagens e coupés da aristocracia que, lá den­tro, nos salões, curvava-se e bajulava ao monarca, aos ministros, aos grandes, fazendo intrigas políticas e pedindo concessões. Uma falange de da­mas formosas tomava lugar nas primeiras linhas, onde a sua beleza fulgurava com deslumbramen­tos. Os decotes, os braços nus, os colos e espáduas lácteas imprimiam ao baile o ar ardente e volu­ptuoso dos festins babilônicos, onde as mulheres iam vestidas de branco, com braceletes e diade­mas de ouro e pedraria, vestidas de tecidos tran­sparentes de seda, que flutuavam, leves no espa­ço, ao menor movimento... Havia perfumes nas salas, os gorgorões rugiam, as joias entornavam cintilações de estrelas por noites calmas, e os toucados eram como os dias e noites pontilhados de fogos de diamantes. O chic requintado das mulheres equivalia à correção dos homens, de preto e claque, alva luva de pelica, sapatos e meias negros, o peitilho alvo bordado da camisa reluzindo pelas facetas dos brilhantes.

Viam-se os pesados generais fardados, em gran­de gala, rodeando, como os velhos conselheiros, a figura triste e já meio alquebrada pela enfermi­dade e os anos, do Imperador, muito alto, ombros quase de um metro, cabelos e barbas longos e alvejantes, à paisana, dentro da sua régia casa­ca, enflorada de condecorações brasileiras e de ou­tras ofertadas pelas grandes potências. Os minis­tros conversavam em grupo pelos cantos, sempre com profunda preocupação da gentileza e amabilidade, mostrando-se muito corteses para todos, fingindo assim popularidade e hábitos de democracia.

Mas o que mais chamava a atenção da sala pela bizarria e pela singularidade, era o corpo diplomático, vestido com exageros de figurino, espartilhado, escanhoado, monóculos, suíças, caras em geral vermelhas e narizes aquilinos. A sua correção, a sua palestra, a todo o instante se manifestavam, pelos ademanes de gentleman e pela graça e cortesia com que cercavam as senhoras. Como perus, impando de amor e vaidade, junto aos lindos olhos, aos colos quentes e arfantes, arrastavam asas voluptuosas, exibindo gru-gús de estilo estrangeirado e toilettes mais bem feitas que as nossas, de manufaturas europeias.

A valsa, a fina valsa, era o delírio dos adidos e a glória dos plenipotenciários, que, com toda maestria, mostravam ao Imperador a civilização dos seus países, o que era ao mesmo tempo um exemplo ao governo nacional, que muitas vezes enviava às potências verdadeiros matutos. Eram homens da científica e marcial Alemanha, da rica e liberal Inglaterra, da artística e patriótica França, da nevoenta e poderosa Rússia, da aris­tocrática e remontada Áustria, da ciclópica e ma­ravilhosa República Norte-Americana e condottieresca e duelista Itália, que brilhavam nos salões, nos caprichos da dança, mostrando que a valsa era própria das grandes civilizações. As da­mas que volteavam nos seus braços, iam mais contentes que com os outros cavalheiros, voavam como andorinhas a lhes sentir a quentura da pele as cócegas da barba e o ardente sopro da respiração. Sentavam-se enlanguecidas, com as cabeças tontas, arrebatadas.

Os cônsules, em geral homens de dinheiro, enriquecidos nos consulados pelos espólios dos patrícios, não dançavam, palestrando com os cortesanos, com o Imperador ou o Conde d’Eu, de estatura alta e muito surdo, a fisionomia acavanhacada dos Orléans, sempre a dizer que não ouvia e a pedir que repetissem a frase. O cônsul alemão lá estava a palrar com alguns dos grandes do Império, em cuja roda se via o Chuy que fora acompanhado da família. O dr. Henrique ouvia com atenção, em companhia do sogro, o cônsul da Confederação Germânica, admirando-lhe a linguagem que achava muito atrapalhada.

Ernestina estava lindamente vestida. A sua toilette de seda clara, com empastamentos de rendas no decote, justapunha-se perfeitamente à sua carnação, a estalar a fazenda, dando-lhe ao colo um suave arredondamento de peito de pomba. Os seus amplos quadris estortegavam-se premidos pelas abas inferiores do colete, que a verticali­zava, aumentando-lhe a elegância das formas. Tinha grandes olheiras, e a sua face muito branca de pós de arroz lembrava às vezes o livor das estátuas de mármore. D. Genoveva, muito gorda, quase sem cintura, pomposamente empoleirava-se na sua cadeira, vendo a grandeza em pletora nos salões e a bailar por entre colunas de estilo coríntio, as caudas esvoaçando, as cabeças jun­tas, roçando-se e falando pelos olhos. A conside­rável matrona, muito ancha de ter conseguido levar a filha ao grande baile imperial, porque, havia um mês, depois da noite do espetáculo, que ela vivia em luta com o marido, — dirigia-­lhe agora frases consoladoras, influindo-a para dançar, dizendo-lhe que não devia rejeitar convi­tes, pedidos de valsas e contradanças que lhe fizessem

— Olha, Titina, o Henrique não tem ciúmes destas coisas, nem pode ter. Vai dançar, diver­te-te.

— Deus me livre, mamãe! Estou aborrecidís­sima e, apesar de ser tão cedo, já desejo voltar, para casa...

Então, o louro cônsul alemão lhes interrompeu a conversa, mostrando-lhes a Imperatriz, com eu rosto amplo e sereno de santa, os seus ban­dós venerandos, sentada entre velhas damas do paço. O homem falava à meia voz e com vagos acenos, num português arranhado e áspero:

— Sua Majestade Imperratriz está, come semprre, sérrio, trriste... Mas guante nobrre e virrtuoso senhorre que é! Muito dirreta e juste nome de “Mãe das Brasileirres” que le derram.”

E, admirando-lhe as suíças louras e reluzen­tes como se fossem de cobre, D. Genoveva e a Titina concordavam, dirigindo a conversação para a Princesa, muito redonda e escarlate, bonachei­rona e burguesa que, num grupo de gentis se­nhoras de ministros e médicos do paço, entre as quais sobressaía a sua querida amiga de infância a baroneza de Oeiras — sorria alegremente a todos, numa sem-cerimônia democrática que fazia pas­mar os estrangeiros.

Na roda do sogro, e mais raquítico ainda na sua murcha casaca preta, o Henrique sentia-se cada vez mais deslumbrado por tudo o que via naquele meio. Nunca tinha ido a um baile do Cassino, tão famoso como ponto de reunião da sociedade seleta da Corte! Não fossem as “borr­ascas” do seu lar, e estaria de todo radiante. Assim mesmo, como homem tropical, descendente de indígenas e portugueses, meio bárbaro, meio civilizado, ele adorava a cor gritante das toilettes espaventosas e das bandeiras e galhardetes, que ornavam as colunas e paredes. Os grandes lustres de cristal, ressoantes de pingentes que se mo­viam no ar em espelhamentos de facetas, incen­didas de arco-íris multiformes, enchiam-lhe a retina de uma ofuscação cegante e que lhe agitava os nervos. O ruído da sala, o vozear surdo dos con­vivas, o ronronar da seda e o tic-tac dos passos perturbavam-lhe ainda os sentidos, alucinando-o quase, quando a música marcial estrondeava pelas arcarias do teto enchendo a casa de sons e har­monias. Então o bater dos pratos metálicos da banda militar tinham um poder extraordinário sobre aquele temperamento de caboclo. Quando o Imperador passava junto a si, o Henrique jul­gava até uma ilusão semelhante felicidade de ro­çar-se pelo gigantesco e espadaúdo monarca, que se acostumara a idealizar em menino, numa grande admiração de servo, examinando-lhe curiosamente as feições nas moedas de vintém que corriam lá na sua remota província natal. Embora deputado, em contato constante com os ministros, nunca até então fora ao Paço, e só vira a Família Imperial uma ou outra vez, de relance, nos velhos coches da Quinta de S. Cristovão passando a trote pelas ruas, ou nalgum desem­barque ou festa, em que o Imperador sempre se lhe ocultava aos olhos, cercado pelas ondas grossas da multidão que o não deixava nesses momentos. Assim, era aquela a primeira vez que tinha a dita de,apreciar o velho e sábio Imperador da maior nação da América do Sul, que pas­sava nos longínquos sertões do Brasil como uma ficção celeste, uma divindade, quase um deus! Ao ouvir-lhe a fala, teve contudo uma desilusão. O Senhor D. Pedro II possuía uma voz fina e fanhosa, não correspondendo por forma alguma à sua estrutura setentrional de colosso. Achava que do seu peito amplo e forte devia sair um tro­vejar de palavras e não um som débil e fraco de voz feminina. Essa fala de criança, num arcabouço de Adamastor, parecia-lhe mesquinha e ridícula...

Deixando o Imperador, o bacharel pôs-se a mirar, muito detidamente, os outros membros da Família Imperial. Examinou primeiro o Conde d’Eu, de calças quase a balão sob a casaca, o ta­lhe esguio dos Orléans, militares; depois a Princesa, muito simples e sem pose nas suas saias tufadas, o ar ingênuo e bom de uma menagére de­dicada; e logo após a Imperatriz, velhinha, pe­quenina, a fronte pura de Madona sob os bandós de algodão. Mas quem mais atenção lhe mereceu foi o moço príncipe D. Pedro Augusto, neto do Imperador, que já conhecia de o ter visto, algu­mas vezes, nas ruas. Estava a sorrir gordamente, com um vago ar de idiota, para um grupo de mo­ças. Louro, sempre de preto, com a mania de imi­tar o avô, rotulado de mineralogia pelo seu curso na Politécnica, sem educação filosófica, lido apenas em compêndios velhos e atrasados de engenharia, era um Narciso imperial, fofo, doente, profundamente enamorado da sua figura, que procurava corrigir de vez em quando com ligeiros toques à casaca, ao colarinho e aos punhos. Não obstante, o Henrique o olhava com admira­ção, porque se murmurava já que também ele era candidato ao 3.° reinado, havendo um  grupo de senadores e publicistas que lhe apoiavam as pretensões.

O deputado foi surpreendido nestas considera­ções, e bruscamente arredado delas, pela figura atlética de George Marcial, que passou desfiando uma valsa com a mulher de um banqueiro flu­minense muito conhecido. Teve logo um grande desgosto e ficou profundamente contrariado com o aparecimento ali “daquele homem”, que “era a sua desgraça”.

George parecia um príncipe, pelo apuro do seu traje e pela elegância de sua pessoa. Tinha a nota da correção britânica desde o cabelo até os pés, calçados em sapatos ingleses, esguios e rutilantes, de verniz negro. O seu colarinho, a gravata, o peitilho alvíssimo, levemente bordado, destacavam-lhe esculturavelmente o rosto moço, de pele macia e rosada, sob os cabelos sedosos, escuros e reluzentes, apartados ao lado por uma risca perfeita. Dançava com apurada elegância, sem afetação, eretamente, afrontando a pose, a coquetterie dos adidos. Foi logo muito notado. As mulheres, à primeira vista, fizeram-lhe um riso de desdém, achando-o “exagerado”; mas imediatamente submeteram-se à sua masculinidade, à sua força, ao vigor da sua beleza apolínea. E, em pouco, foi uma curiosidade geral no salão. Todos queriam saber quem ele era.É muito elegante, dizia a jovem e linda viúva, a baronesa de Almeida. — Valsa como um arquiduque Austríaco, era opinião da Sra. Melo e Alvim, cujo marido fora embaixador em Viena.

E o Comodoro impressionava. Até os viscondes de Chuy o olhavam com admiração. Ernestina, não; essa, apenas o avistou, trazendo uma outra pelo braço, deitou logo despeito, desviando os olhos de sobre ele, mas fingidamente, pois o seguia com malícia. E amargava intimamente uma inquietação nervosa, invejando já a senhora do banqueiro Figueiroa, que começava a achar um tanto “deslambida” com George, apesar de a sa­ber uma das matronas mais respeitáveis daquela sociedade.

O cônsul Alemão, que conversava ainda com o Chuy, em cujo grupo se fora colocar nesse ins­tante o secretário da legação inglesa, John Ha­milton, um jovem forte e alto, de finos bigodes retorcidos e rala cabeleira loura, — dirigindo-se a este aludia a George, que achava um perfeito gentleman. O representante de “Her Gracious Majesty”, um amigo de Marcial desde Londres, entrou então a dar-lhe uma informação sobre George, que lhe sorria às vezes ao passar no tor­velinho da valsa. A família Chuy escutava-o atentamente, sobretudo Ernestina, que lhe não per­dia uma palavra, fixando-o vivamente com o seu olhar radiante. Sir Hamilton dizia:

— É o Comodoro George Marcial, oficial reformado da marinha de guerra britânica. Nas­ceu no Brasil, numa das províncias do Sul, Santa Catarina ou Rio Grande... Tinha prestado gran­des serviços no Egito, a bordo de um dos navios da esquadra de Seymour, no combate contra as fortalezas da revolução nacionalista ao mando de Árabe-Paxá... Aí obtivera ele o posto ho­norário de “Comodoro”. Antes disso, distinguira-se muito em Chipre, na Índia, nos Estados Unidos e nas costas do Pacífico, em várias e di­ficultosas comissões marítimas... Por último, andara a comandar os grandes sleamers da car­reira da Austrália, que deixara havia apenas um ano para vir fixar-se de uma vez no Brasil... E acrescentara, por fim: — Que George era ainda solteiro e senhor de muitos milhões esterli­nos...

Estas últimas palavras de sir John Hamilton ficaram cantando ao ouvido de Ernestina, que sabia agora quem era o cavaleiro da sua fantasia. Exultava, num orgulho, louvando-se mentalmente pela escolha que fizera, “votando-se” para sempre àquele homem, que era desde muito o senhor da sua vida. O esposo, ao lado, quedara-se boquiaberto. Então aquele homem tinha sido tudo aquilo?!...

O visconde de Chuy murmurou solenemente:

— É verdade, grande herói, glória de nossa pátria e dessa culta e soberba Albion, que é a inveja de todos os países!...

A valsa terminara. Marcial, depois de algumas voltas em passeio, sentara gentilmente a galante senhora de Figueiroa. Na roda do Chuy todos o fixavam ainda com admiração; e, como o visconde e a esposa, concitados por Ernestina, revelassem o desejo de conhecer pessoalmente o “ilustre Comodoro”, sir Hamilton, precisa­mente ao momento em que George enfrentava o grupo, chamou-o com um riso e um delicado ac­eno. Marcial aproximou-se, dirigindo-se ao ami­go, que em curtas palavras significativas, o apre­sentou ao senador e à família.

— Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Comodo­ro, disse o visconde curvando-se todo.

George, retribuindo-lhe a saudação, trocou al­gumas frases com o velho, dizendo que já o co­nhecia muito de nome, como estadista e legislador. O Henrique, num profundo contraste físico ao pé de Marcial, sentia-se duplamente re­voltado contra ele — primeiro, porque o sabia seu “rival”; segundo porque era obrigado a reconhe­cer, bem a contragosto, que não passava de um anão junto à estrutura colossal do Comodoro. Mas, recalcando o seu despeito, apertava risonho a mão de George, que mal o fixava no seu constante indiferentismo pelos homens e as coisas do seu país. Ernestina fora a última a dar um shake-hands a Marcial, e o fez um pouco confusa, trêmula, pálida, no receio de que todos lhe não devassassem de repente o “seu segredo”, a sua paixão!

George começou então a falar, numa sóbria e fina conversação, que a todos encantava pela na­turalidade, as impressões e o colorido cosmopolita que imprimia aos assuntos. A sua análise, nas altas rodas, bem ao contrário do que se dava quando se achava entre camaradas e íntimos, era imparcial e moderada, prendendo por isso aos que o escutavam num interesse continuo pelo desen­lace dos fatos, esboçados sempre rapidamente, com tintas vivas, exatas. Dirigindo-se ora aos viscondes, ora ao deputado e à esposa, trazia-os presos ao encanto da sua palavra, quando a or­questra deu sinal para uma quadrilha. Pedindo venia ao bacharel, que convidou para vis-à-vis, tirou Ernestina e, oferecendo-lhe gentilmente o braço, foi tomar lugar à grande quadra que se principiava a formar na sala. O Henrique saiu imediatamente em busca de um par e, encon­trando-o, foi colocar-se em frente a George Marcial.

Ernestina sentia-se profundamente feliz ao lado do Comodoro. O porte dele, a sua distinção, o seu garbo, parecia-lhe que a engrandeciam a tornavam invejada das outras, que não lhe ti­ravam os olhos, como numa admiração demora­da. Há muito tempo não experimentava sensação igual. O seu braço delicado tremia ao contato do braço de George, que lhe falava suavemente, numa música de voz encantadora. E o seu coração palpitava agora na alegria da paixão que ex­perimentava desde muito por aquele homem ado­rado. Na radiação íntima em que estava, ela, que ainda há pouco quisera retirar-se do baile, pedia a Deus nesse instante que alongasse aquela noite por um tempo interminável. E, muito riso­nha e feliz, esquecia-se totalmente dos dias pas­sados de “angústia”, em que andara a rolar, so­bre o leito, despenhada e como louca, por não ver nem poder falar a Marcial.

George, pela sua parte, já “cansado” da beleza loura e boreal de lady Victória, sentia como uma renovação de ternura junto àquela flor tro­pical. Verdadeiro Lovelace mundano, que ne­nhum coração feminino lograra ainda acorrentar, não experimentara, como o seu par, a comoção ingênua do primeiro amor, mas gozava uma certa delícia ao ter ali, sob o braço, aquela morena adorável, que o impressionara agradavelmente há um ano, e que se lhe oferecia agora com toda a tentação de um “fruto proibido”, arrastando-o para uma aventura “arriscada e difícil”, mas por isso mesmo ideal. Observando com segurança toda a paixão que lhe votava a moça, procurava corresponder-lhe, pondo maior ternura na voz e mais persuasão nas palavras.

Mas a música estrugiu em toda a sala, e a quadrilha começou, cerimoniosa e com solenidade. Dançava-se quase em pontas de pés e nos bicos dos dedos, de modo cadenciado, evitando encontrões e pisadas nas caudas, acompanhando perfeitamente o ritmo da orquestra, que desper­tava um entusiasmo nos pares ao vibrar das gros­sas notas vigorosas dos instrumentos de metal...

Ao findar a contradança, George, depois de algumas voltas pela sala, sentara-se com a moça, prosseguindo na palestra que com ela encetara sobre viagens e nacionalidades, onde entrava principalmente o Brasil, que qualificava de “in­comparável país, à espera apenas de uma grande civilização para tornar-se o paraíso terreal”. O Henrique, que já deixara o par e retomara o seu lugar, defronte, no grupo do Chuy, sentado ao lado da sogra, dizia a esta, em conversa e muito enciumado, que a Titina não procedia bem, de­morando-se tão longamente ao lado do Comodoro, pois a quadrilha acabara há muito e aquilo podia tornar-se notado. Mas D. Genoveva, cujo olhar não se despegava da filha, no embevecimento maternal que experimentava por a ver gentilmente distinguida pelo cavalheiro estran­geiro, nem prestava ouvidos ao genro. Como este insistisse, porém, ameaçando retirar-se do baile, acudiu, bondosamente e a rir:

— Mas isso é natural, meu filho. O Sr. Comodoro é um moço muito viajado e que conhece todo o mundo. A Titina, de certo, está gostando de ouvi-lo. Não há nada de mal numa conversa­ção instruída... Depois, muitos pares da quadri­lha acham-se ainda conversando. Olha ali a se­nhora de Sahy com o ministro de França, e há que tempo; a Prado, a viscondessa de Santa Mar­ta, a Costa Lima... A conversação num baile, e com altos personagens, é sempre honrosa e tem chic... Não, você não está com a razão, Henrique! Ao contrário, deve-se dar por feliz...

O bacharel convenceu-se, mas tartamudeou ainda uma réplica, a fixar muito a esposa, com o ar esquisito e soturno de quem se sente vagamente espoliado de uma coisa querida. E torcia-se num nervosismo íntimo, suportando em si­lêncio toda aquela cena com o “outro” na indiferença absoluta da Titina que, como sempre, em público, quase lhe não falava nem parava ao pé dele, à maneira de uma pessoa estranha e que o não conhecia.

O Chuy, que estivera a conversar todo o tem­po com sir John Hamilton, ao retirar-se este, er­gueu-se e, dando o braço ao genro, atravessou o salão dirigindo-se ao presidente do conselho de ministros, o João Artur, um homem magro, de es­tatura regular, cara larga, acaboclada, com um bigode negro e tênue, quase imperceptível, célebre pela sua capacidade administrativa e o seu bom senso político. S. Ex., muito correto e amável, um leve riso nos lábios, conversava em tom familiar numa grande roda de senadores e depu­tados, na maior parte da facção conservadora que era o seu partido. Falava, nesse instante, com a pessoa alta e membruda do Silvério Martins, o rei bomba da tribuna parlamentar, e figura de primeira ordem na política liberal de sua província, o Rio Grande do Sul.

Quando o visconde e o Henrique entraram no grupo, o presidente do conselho, interrompendo a palestra, voltou-se e apertou-lhes a mão com um sorriso de boa acolhida. Os outros fizeram o mes­mo, curvando-se todos, murmurando palavras de­licadas. E o Silvério Martins, o largo peito proe­minente, muito teso e numa pose de colosso, a que dava certa afetação para aumentar de Majestade leonina, conforme o hábito quando estava em público ou diante de mulheres, porque era tão forte político quanto vaidoso da sua beleza más­cula — recebeu o comprovinciano e velho colega com um riso ruidoso e a sua grossa e desenvolta franqueza campeira de griasca, trovejando amavelmente, numa voz volumosa e de baixo pro­fundo:

— Falava agora mesmo a teu respeito. Dizia que eras sempre o bom camarada de todos os tempos, mas que ninguém se fosse imiscuir no teu distrito em época de eleições... É como bem afirmas constantemente: “aquilo é o meu baluarte, a minha Sebastopol!” Ali não há quem penetre, nem quem te possa arrancar o bastão de marechal...

Oh! o visconde é um ditador nessa parte da campanha! fez o presidente do conselho com jovialidade.

E logo a conversa política se generalizou, na roda, sobre todo o Rio Grande. O Henrique, porém, não lhe prestava quase atenção, a espionar furtiva e continuamente a esposa, que palestrava ainda com o Comodoro.

No entanto a orquestra rompeu a tocar, e George Marcial, despedindo-se de Ernestina, er­gueu-se e dirigiu-se para o fundo do salão, de onde voltou a valsar com a loura e linda miss Emília Walker, filha do ministro americano.

Ernestina levantou-se em seguida e foi até ao lugar onde estava sua mãe. Mas aí não se demo­rou quase, enveredando para o toilette das senhoras, onde algumas moças se miravam e remiravam, no cristal dos ricos espelhos iluminados, dando toques aos penteados, às vestes, empoando-se, perfumando-se, para virem surgir com mais brilho sob as luzes do salão. Aí a Titina atirou-se sobre uma cadeira de estofo, fingindo uma dor de cabeça, procurando evitar os olhares, as fra­ses das companheiras.

Mas de repente sentiu-se enleada por uns braços mornos e cheirosos, ouviu um beijo nos seus densos cabelos e uma doce risada, fresca, castanholada, que a despertaram alegremente. Era a Laura de Barros, uma antiga camarada do colégio das Irmãs. Abraçaram-se e beijaram-se ainda, por entre exclamações muito vivas:

— Oh! Tu por aqui, Ernestina?! Então como passas, querida?!

— E tu, Laura?! A que tempo te não vejo. Mas onde é que estavas que só agora apareces?!.

A Laura explicou-lhe tudo. Viera ao baile só com o pai, porque a mãe estava ainda de res­guardo do último bebê, e não podia sair. Contava encontrar-se com o noivo, que lhe afirmara não podia perder aquela noite de Cassino; mas o “in­grato” não aparecera e ela, aborrecida com aquilo, metera-se na galeria desde a primeira qua­drilha. Estava lá com umas amigas, a quem também os namorados haviam faltado... Eram as filhas do desembargador Moreira, duas raparigas morenas e magrinhas, com quem ia passar dias à rua dos Voluntários, no tempo do colégio, e que eram agora suas vizinhas no Rio Comprido. Não se lembrava das Moreiras, as Caniços, como lhes chamavam os rapazes do teatrinho da Gávea?... Pois eram elas... E mudando subita­mente de assunto :

— Então, já sei que casaste, e com um moço deputado... Mas onde está ele? Como se chama? É bonito?... Diante dessas palavras, que tanto a contrariavam, Ernestina mal pôde responder à amiga:

— Ah! se tu soubesses como foi arranjado o meu casamento e quanto tenho sofrido!... Mas, para te contar tudo isso, só se fosses passar um dia comigo... Então verias como fui uma louca, quando dei um tal passo... Uma verdadeira des­graça menina!... Vai lá em casa que eu te con­to... Olha, aparece domingo...

— Domingo é impossível, Titina, interrompeu a outra.

Moramos agora tão longe... Mas um dia eu vou, deixa estar; e me contarás tudo tim-tim por tim-tim...

Numa pressa graciosa ergueu-se de repente da cadeira; e abraçando e beijando rapidamente a amiga:

— Adeusinho, querida, adeusinho! Não me lembrava que as meninas estão lá à minha espera para sairmos... Eu vim só buscar a man­tilha e o burnous... Adeusinho!...

Quando a outra desapareceu, Ernestina ficou com os olhos rasos d’água, tendo inveja daquela liberdade, daquela vida solteira de andorinha, daquele zig-zag de saias livres, que Laura fizera que ela não podia fazer mais! E sozinha, de ideia em ideia, voltou a pensar no Comodoro, concluindo que era impossível continuar por mais tempo “naquela vida”. O seu plano de doença, que projetava desde um mês, estava disposto e ia pô-lo em prática. Precisava gozar o seu amor, fosse como fosse, pois estava preparada para tudo...

Arrancou-a destas reflexões dissolventes e tris­tes, cujas consequências ela não podia pesar ao momento, nem poderia pesar bem senão depois de as pôr em prática, a presença de D. Genoveva entrando alegremente no toilette, a chamá-la para a sala, onde o Henrique a esperava para a apre­sentar a um de seus amigos e colegas de repre­sentação, o dr. Estevão Dias. Ernestina levantou-se, foi endireitar-se a um dos espelhos, e dando o braço a sua mãe saiu ao encontro do marido. Feita a apresentação, o dr. Estevão convidou-a para a mazurka que a orquestra tocava, e, enlaçando-se ambos, desapareceram no torvelinho dos pares...

George Marcial isolara-se agora a uma das sa­cadas. E cismava, sensibilizado pelos encantos da Ernestina, que a valsa e a longa conversa lhe haviam bem revelado. Era já muito tarde. Quase ninguém transitava na rua do Passeio e no Lar­go da Lapa, onde estacionava o bando enorme dos coupés e das carruagens, ondulando e relu­zindo no escuro pelas grossas cúpulas de couro envernizado. Toda a grande área fronteira ocu­pava-a o Passeio Público, que se estendia até a chaparia líquida do mar, faiscando sob a lua, na orla verde-negro do fendilhado das árvores, para além do muro branco do terraço e do cais. Em baixo, à esquerda, era a valia larga da rua vazia, onde um outro bond corria, de tempos a tempos, num tropel de patas trotantes e num tilintar de campainhas, contornando curvas de aço que rutilavam no chão como lâminas de espadas fantásticas. À direita, a imensa aglomeração dos carros, em cujos varais as parelhas escarvavam, socavam as pedras, na impaciência dos finos ani­mais de tiro condenados a longas paradas. Os tílburis ficavam mais longe, nas imediações da velha igreja da Lapa, onde se via o coche do Im­perador aguardando o fim do baile, cercado do piquete de cavalaria, que o tinha de acompanhar, batendo à frente, em disparada.

E George continuava a devanear, na adoração de Ernestina, por quem se sentia profundamente “tocado”. Mas dessa doçura de cisma amorosa, em que castelava venturas, uma contrariedade, além de outras, surgia, pontilhando o seu gozo de espinhos, de desagrados. Era a pessoa de lady Victória, com quem desde meses se ligara em íntima vida de ménage, pois não supusera então encontrar mais Ernestina, nem tão pouco reacender uma “impressão” que julgava passageira e sem raízes n'alma. Estava agora “entre dois fogos”: entre as dificuldades do amor de uma senhora casada, a quem se via escravizado de re­pente, e o embaraço terrível da “outra”, que dia a dia aborrecia, mas da qual custosamente se po­deria apartar, por conhecer bem a paixão louca dessa mulher excêntrica e de quanto seria capaz, se ele de repente a desprezasse. E censurava-se pela ideia infeliz que tivera de, sem a necessária reflexão e estudo, lhe haver montado o vasto cottage da Tijuca, quando a podia possuir facil­mente em quaisquer apartamentos de hotel, como acontecera em Nova York e Havana, e isto sem a escravização, ao instante embaraçosa, de uma existência quotidianamente unida e quase marital.

Embalde o Comodoro forcejava por afastar do seu espírito aquela “coisa” desagradável, que lhe toldava a felicidade da noite. À sua imagina­ção, já um tanto exaltada, voltava de momento a momento, com insistência tenaz, a figura esguia e loura de Victória, que, de certo, ainda acordada, lá estava no cottage, a passear, como sempre, toda suspirosa e magoada, de um a outro extremo da sala, à espera que ele chegasse...

Quando entrou em casa era já madrugada. Lady Churchill, que se cansara de esperá-lo — pois fora aquela a primeira vez que ele recolhera tarde — deitara-se por fim, mas tomada de uma in­sônia agitava-se ainda sob os lençóis de linho alvo. Ao sentir George no quarto, moveu-se no leito e murmurou em inglês uma das suas quei­xas costumadas, a que ele respondeu, como sempre com uma desculpa carinhosa. E ao trocarem o beijo da boa-noite, a pobre Victória, coitada numa crise de ciúme agarrou-se a ele a chorar...

 

IX

A casa que Marcial alugara na Tijuca tinha as mais vastas acomodações e um belo jardim e pomar. De construção artística e moderna, o seu estilo arquitetônico era o comum aos pa­lacetes mais ricos do bairro. Interiormente, porém, apresentava compartimentos patriarcais, talha­dos por seu primitivo proprietário — um velho negociante inglês que a mandara edificar para sua residência — segundo as necessidades do clima tropical. Mas o opulento homem apenas lograra habitar esse cottage durante ano e meio, pois tanto o deixara viver a lesão cardíaca que o ful­minara, uma tarde, ao recolher da cidade, o que obrigou a família a retirar-se logo após para a Europa, sendo vendida a chácara a um capita­lista brasileiro que a alugara ao Comodoro. Este a mobiliara ao fino gosto inglês, sem luxo espalha­fatoso, mas de modo confortável; e nela se fora instalar com Victória.

Durante os primeiros seis meses, a fidalga escocesa viveu, como ela própria dizia, “num paraíso terreal”, porque George não lhe saía dia e noite das saias, o portão egoistamente trancado a visitas e a importunações desagradáveis, e só se abrindo para dar passagem às alegres excursões que faziam, de vez em quando, no bairro.

A cidade nunca mais os vira, a não ser de relance, quando iam para as partidas de cutter ou para o teatro, como nessa célebre noite do Lucinda, em que a presença de Ernestina, reacen­dendo na alma do Comodoro uma antiga im­pressão de acaso, viera trazer à lady Churchill, sem que ela o percebesse, coitada, a primeira onda adversa onde se afogaria, talvez, dentro em breve, toda a sua felicidade...

Até essa noite Marcial fora para ela o compa­nheiro amantíssimo e sincero, que não tinha se­não a preocupação exclusiva de a adorar. Não se arredava então de Victória, levando os dias a seu lado, a ler Dickens e Byron. Com ela percor­ria a chácara, entretinha-se no exercício de jogos, de tiro ao alvo, da ginástica, fazendo a hema­tose ao sol, por entre as aleias de jasmineiros e de roseirais. Intercalava tudo isso com passeios a ca­valo ou a fáeton, a que ela não faltava nunca. E iam até à barra onde George se embevecia, tendo o seu olhar saudoso de marujo a embe­ber-se no mar, que lhe recordava quadros de uma longa vida cheia de sensações e nostalgias. À volta uma como que indefinida berceuse o emba­lava, cantando a plangência da vaga, o seu soluço rouco, o seu ritmo épico. Tinha miragens de oceanos largos com velas brancas de navios sal­picados de espuma, rasgando as ondas em efer­vescências e prata. Via-se então dentro desses cascos que amava, os marinheiros a postos, o pano bojando cheio na aragem. E às vezes estremecia, porque era capaz de jurar ter ouvido, numa alucinação, os finos gualdropes do leme ti­lintarem sonoramente, num balanço de tangage... Ela, compreendendo a paixão de George pelo mar, exaltava-lhe a beleza das marinhas, a esquisitice das aves aquáticas e a singularidade original das ilhas pontuando a superfície de sable. E logo, ao outro dia, realizavam um passeio na baía, onde o Coleridge velejava até à primeira cinza do ocaso. Às vezes era o próprio Como­doro quem governava o cutter... Quando vol­tavam, nesses dias, animavam-se muito ao jantar, comendo com apetite e indo depois fazer a di­gestão para o caramanchel do jardim, onde, pelas noites de lua, ficavam a conversar até tarde sob o crivo das ramagens... Em certas noites fazia-se música. Lady Churchill sentava-se ao piano, começava a tocar e a cantar as suas canções da Escócia, com as músicas populares e saudosas das suas montanhas tristes. Marcial, ao pé, num pequeno divã, ouvia, absorto e idealizado. Esses concertos terminavam sempre pela execução de grandes peças clássicas, como a Sonata Patética, de Beethoven, o Rondo Caprichoso, de Mendels­sohn, e trechos escolhidos de Schuman, Weber e  Wagner...

George, que então não tornara a encontrar Ernestina, e que não mais se lembrara dela até à noite do Lucinda, dizia-se absolutamente feliz e chamava a casa o “seu rico, o seu esplêndido ménage”. Com efeito, nesses primeiros seis meses, experimentara aí as emoções, os alvoroços de quem, longos dias viajando, aborda de repente o país desejado, um canto de terra virgem, desco­nhecido, inédito, onde tudo que o cerca oferece impressões vivas, visões inauditas, perspectivas inefáveis — a verdura, o céu, as montanhas, o mar... Mas fora só encontrar a “adorável mo­rena” e começara logo a sentir, naquele viver com a inglesa, o cansaço das coisas que vão per­dendo o seu encanto e dia a dia se desvendam, se nos tornam familiares, íntimas, comuns e cuja posse completa faz murchar os esplendores pelos quais tanto se desejou morrer! Agora, entrava a envolvê-lo pouco a pouco como uma névoa de tédio que aumentava e se espessava sobre o cirstal da sua alma, derramando nele o desconsolo, a tristeza, a frieza talvez dos saciados, que veem raiar além outro amor... Aquela formosura setentrional de lady Victória, a sua alva carnação de saxônia, a sua magreza singular, os seus bas­tos cabelos louros, a sua boca pequenina, os seus dentes adoráveis, já haviam perdido para ele a fascinação e, o mágico poder das sensações de outrora. Todos os seus desejos e entusias­mos, tão profusa e intensamente despendidos na conquista dela, sentia-os escoarem-se agora, como as águas de um reservatório que lentamente abre brechas e lentamente se esgota. A atração e prestígio daquela ligação, diluíam-se inteiramente nas ondas de um outro afeto, à magia irresistível de Ernestina que, como um sol, rebrilhava de novo ao seu espírito, prometendo emoções e go­zos inefáveis, porque não tinham sido ainda ex­perimentados por ele. A sua paixão pela Escocesa, que lhe parecera a princípio iria perdurar toda a vida, cessara inopinadamente: assim uma galera, que viajava feliz com todo o pano ao vento, vai cair de repente no seio das calmarias podres!

Victória já percebera tudo, e mostrava-se triste, tendo na fisionomia o ar abatido de quem carrega a obsessão de uma desgraça próxima. Ruminava toda a sorte de ideias, procurando des­cobrir a causa daquele “abandono”, que atribuía vagamente à impressão de George por alguma outra mulher. E continuamente se perguntava:

Quem seria? Alguma brasileira ou alguma es­trangeira como ela?!...

E seus belos olhos azuis se quedavam cismativos, evocando no espírito as damas conhecidas que lhe podiam ser rivais. Certas vezes folheava o grande álbum de retratos das amizades de George no Rio de Janeiro, e quando um perfil de mulher se lhe apresentava — baronesa, viscondessa, ou outra — de olhos lânguidos e fartos cabelos, o seio formoso e forte, podendo apaixonar o amante, ria-se vaidosamente, comparando-as a si e achando-se superior a todas. Mas não obstante, experimentava desesperos cruéis, ânsias, raivas íntimas, e para ainda certificar-se do seu “valor” sobre as demais mulheres, possíveis amantes de Marcial, corria a um dos espelhos e, ner­vosamente, como uma louca, punha-se a tomar atitudes, poses de beleza, sorrindo para a sua imagem que se lhe afigurava ideal... E logo recobrando a sua costumada serenidade, a segu­rança da sua formosura, sentava-se ao piano e começava a cantar a bela canção escocesa Auld Lang Syne, com que festejara alegremente a pri­meira visita de George depois da sua chegada. Repetia então longamente, destacando bem as frases, os versos estribilhados:

For auld long syne, my dear,

For auld lang syne!

W'ell takle a cup o’Ruidness yet

For auld lang syne!

Tomada de certa melancolia executava com suprema arte, como nos primeiros meses da sua instalação ali, quando George levava horas e ho­ras a ouvi-la num embevecimento — as peças mais emocionantes do divino Schuman, que era um dos seus maestros prediletos. Começava quase sempre pela sugestiva e doce Alucinação e findava invariavelmente pela nostálgica fantasia As borboletas negras, que lhe saía dos dedos ágeis, numa atra sinfonia gemente de bailada fúnebre, onde uma jovem arquiduquesa renana, numa tarde de outono, à janela, do castelo, onde es­pera o seu noivo, é acometida de repente por um bando de insetos negros, que a envolvem sinistramente, enquanto um pajem triste galopa em direção às muralhas a comunicar-lhe que o príncipe querido morrera numa batalha... Sob esta música tristíssima, Victória adormentava por instantes as dores vivas da sua alma e o cruel abandono em que a deixava agora Marcial, du­rante dias inteiros.

Mas logo depois vinham-lhe crises terríveis. O histerismo entrava a dominá-la duma maneira possante. Era uma antipatia, um frenesi por tudo quanto a cercava, revestindo a seus olhos um aspecto ridículo e desprezível os objetos mais amados, os mais raros bibelots, as mais ricas joias vinculando inefáveis lembranças, laços que­ridos, conhecimentos preciosos, afeições de sua infância serena e de sua mocidade festiva, passa­das em antigos castelos na sua terra da Escócia, ou em salões de ouro e púrpura nos palacetes reais da Irlanda ou do Principado de Gales. Sentia ataques de zelos, perturbações infinitas, em que o bom senso, a delicadeza, a doçura, a inteligência, a superioridade individual que era inata na sua “linha” de fidalga anglo-saxônia, fracassavam de repente deixando confusos e pas­mos os próprios criados. O seu espírito não parava, verrumado constantemente por mil pensa­mentos dolorosos. Procurava descobrir a razão daquele abandono inexplicável, daquela súbita indiferença de Marcial, tão “honest” e tão “gentleman” sempre, na heroicidade como no amor, em toda a sua vida de “comodoro”, de oficial da marinha britânica. E, agitando-se para sufo­car a sua angústia, lady Victória sentia pesar-lhe sobre o coração um grande desalento, uma grande desgraça. De instante a instante exclamava intimamente, soluçante e numa desolação:

— Abandonada!... Abandonada!...

Pelas dez horas, na confortável e espaçosa sala de jantar, as persianas fechadas, os criados punham a mesa para o chá, o delicioso chá inglês. E era todo um alegre tinir de colherinhas de prata e porcelanas finas. O chefe de copa, que arranjava a mesa, avisava-a então de que tudo estava “pronto”, e se retirava discretamente.

Muito alta no seu roupão claro de seda, a de­licada cabeça feminina envolta num nimbo de ouro onde o gás acendia centelhas, suspirosa e pen­sativa, Victória sentavase à mesa. Servia-se, be­bia o chá a pequenos goles espaçados. Depois erguia-se, fechava-se na sala à espera de George, passeando nervosamente, de um para o outro la­do, como num convés de steamer...

 

X

Fora uma delícia para Ernestina aquele baile no Cassino, o seu encontro com o “Comodoro”, o que ali gozara, arrebatada nos braços dele que a acariciavam no enlaçamento voluptuoso das danças, sentindo a sua paixão crescer aos com­passos febris da orquestra. Como o seu destino, até então terra a terra, banal, cheio de contrariedades, onde não reluzia um clarão de verdadeira alegria ou de felicidade sonhada, e onde toda a esperança se estiolava e pendia, apenas brotava, semelhança das flores que nascem em terrenos desprotegidos e ásperos, em que os ventos lavram e as estiagens caem pesadamente — aparecia-lhe de repente, do meio daquela noite, cheio de en­canto e florido! Na sua alma se avultaram agora ocupando todo o espaço de suas ternuras, de modo quase irresistível, as mudas solicitações vio­lentas da sua paixão, que não queria senão gozar...

Desde aquela noite, entre todas venturosa, em que a tomara uma emoção sem igual, que Ernestina não pudera mais acomodar-se às es­treitezas das regras burguesas, domésticas, nem obedecer aos graves conselhos, dia a dia repeti­dos incessantemente pelos pais. Vivia agora em continuas agitações histéricas que não procurava ocultar. Dias inteiros, desgrenhada e só, no seu quarto de solteira, não aparecendo a ninguém, não recebendo ninguém, repudiando tudo, com antipáticas recusas, frenesis pelas mínimas coisas, quase sem se alimentar — levava a medi­tar no melhor modo de aproximar-se mais intimamente do Comodoro, de o ter ao pé de si, de se lhe entregar, custasse o que custasse.

O Henrique não sabendo explicar aquela nevrose da esposa, começava de impressionar-se, no receio de que aquilo viesse a findar na lou­cura, pois dia a dia recrudesciam as impertinências e atos bruscos de Ernestina, que proposi­talmente os requintava, recusando a comida, os remédios, tudo. No seu projeto terrível de mos­trar-se atacada de uma grave moléstia, conseguia iludir a todos de tal maneira que nem mesmo um especialista conseguiria dizer ao certo qual o seu verdadeiro estado. Eram o gemido doloroso, os olhos fundos, com olheiras arroxeadas e cheios de um vago desvairamento, a toilette em desleixo, como nas pessoas que se sentem perdidas, desen­ganadas, e tudo aparentado genialmente, como só o poderia executar um complicado organismo de mulher.

Fingia estas coisas especialmente quando se via acompanhada. Mas apenas a deixavam, fe­chava-se no seu quarto, a gozar estranhamente as torturas que infligia aos seus, e principal­mente ao marido, ao mesmo tempo que se ex­pandia intimamente, recordando toda a conversa que tivera com George no baile, pensando nele, o coração transbordando do amor que lhe votava. Se alguém batia de repente — D. Genoveva com um caldo — ou o esposo que subia a saber como passava, demorava-se muito a abrir, e, deixando-se abater sobre a espreguiçadeira, entrava logo a gemer, a queixar-se de febre, de pontadas pelas costas e de uma grande falta de ar. Uma ou duas colheres de caldo ainda levava à boca, mas à terceira dizia achar-se enjoada, afetando ânsias, náuseas profundas. A mãe então punha-se a in­vocar Nossa Senhora, a lastimar-se da sorte, numa inquietação angustiada. O Henrique, muito magro e abatido, empalidecia cada vez mais, e, o espírito apreensivo, as pernas a tre­merem, quase desfalecia com estes desânimos da sogra. E era sempre com um mau pressentimento sobre a saúde da Titina que ambos deixavam o quarto, a se entreolharem em silêncio, os olhos rasos de lágrimas.

O médico da casa fora chamado várias vezes, e depois de exames minuciosos, auscultações pro­longadas, declarara que “aquilo não era nada, pulmões um pouco enfraquecidos, uma insignifi­cância, de fácil cura com vinhos restaurativos e bons ares”. E acrescentava que o que ela sofria era mais devido ao sistema nervoso, que se achava muito superexcitado, do que a outra qual­quer causa”. A moça, no entretanto, para levar a cabo o seu “plano”, afirmava tristemente que estava muito mal. E se a mãe lhe ralhava, por lhe ouvir tais palavras, enfurecia-se fazia mil loucuras.

Ernestina, diante das declarações do médico, que tanto a contrariavam, resolveu imediata­mente levar ainda mais longe aquele fingimento de doença. Passou então a afetar as mais ter­ríveis crises, durante as quais atirava ao chão os móveis do quarto, rasgava-se, despedaçava os bibelots. Por fim, coroava todos estes atos diabó­licos com um suposto ataque de nervos, que punha tudo em reboliço. E, quotidianamente, re­petia as mesmas cenas, insistindo nas suas niquices, a fazer desatinos em presença fosse de quem fosse.

A casa perdera já a habitual serenidade de outrora. Aquele casamento desfizera, talvez para sempre, a paz doméstica que constantemente cer­cara o velho casal. Agora, até pelos mais escusos recantos, havia uma desordem e uma sublevação: eram ondas desencontradas e revoltas, sacudindo tudo no dorso, à maneira de um mar em tormenta!

Uma tarde a coisa chegara a tal ponto, que o visconde de volta do Senado, experimentou uma grande aflição, ao ouvir os gemidos da filha, nos aposentos em cima. Entrara meio pálido, trêmulo, atirando logo da grade à criada que viera abrir, esta pergunta ansiosa:

— Que aconteceu, Rita? Que ha? Pareceu-me ouvir choros lá em cima!...

A criada, muito atrapalhada, entrou a expli­car tudo:

— É a Titina com o nervoso. Desde que o se­nhor saiu que a minha ama está lá em cima. Mas a menina nada de se acomodar, cada vez a mais, cada vez a mais... A senhora então pôs-se a ra­lhar... A Titina vai larga a bater-lhe o pé, a responder-lhe; depois caiu para trás com o ata­que. E lá está na lida, a gemer, a gritar. A gente pegada já mandou cá saber, como no outro dia. O dr. Sarmento, que ia passando, veio até à es­cada; mas a senhora lhe disse que não era coisa de cuidado, era o ataque costumado. E subiu ou­tra vez, e lá está com o dr. Henrique e a Ger­trudes, que não tem parado, coitada...

O visconde, os olhos úmidos, um ar ansiado, deu um suspiro e enfiou para a sala de jantar, resmoneando frases vagas incoerentes, o passo incerto, a coçar a calva. Depôs a um canto o guarda-chuva, a cartola, e encostando-se à mesa, ainda muito pálido, ficou por um momento pa­rado, a abanar tristemente a cabeça. A Rita, que ia para o lado da copa, apreensiva por o ver desfigurado estacou no corredor, a perguntar-lhe o que tinha. Ele não respondeu logo; e só pas­sados minutos é que lhe pôde dizer, numa voz vacilante e cansada:

— Um copo d’água, Rita! Um copo d’água, depressa!

 E, arrastando uma das cadeiras mais próximas, sentou-se pesadamente, muito branco, banhado dum suor frio, que lhe bolhava da testa e da calva.

A Rita, muito assustada, correu a uma das étagères, e, enchendo com ruído um dos copos, sem se lembrar da bandeja ou da salva, agarrou-o tremulamente e veio trazê-lo ao visconde, que permanecia estatelado contra a mesa, a cabeça apoiada às mãos, os olhos semi-cerrados. A criada chamou-o, então; mas o velho não fez o menor movimento, como desacordado.

A Rita então, deixando o copo ao pé dele, atirou-se para o andar de cima a gritar:

— Acudam! acudam! que o senhor está sem fala!...

Ouviu-se logo um grosso rumor de objetos móveis que se chocam e caem. Passos violentos vibraram o teto, que estalava. Os gemidos de Ernestina cessaram de repente, suplantados pela grande matinada, através da qual se sentiam passadas moles descendo a escada, de envolta com ais tristíssimos que desolavam a casa. E imediatamente D. Genoveva, o genro e a Gertrudes se precipitaram pela sala de jantar, num ala­rido e numa trapalhada...

 

XI

Tantos abalos fizeram com que Ernestina experimentasse, efetivamente, alguns dias de febre. O médico aconselhou então uma mudança para Santa Teresa. O senador e a esposa, sem perda de tempo, saíram a ver um hotel; e escolheram o Vista Alegre, onde a moça se foi instalar com o marido.

Aí teve o Henrique um desapontamento terrível, ao passo que Ernestina rejubilou e deu-se parabéns a si mesma, porquanto o seu “plano” parecia agora encaminhar-se para uma realização prática. Estas impressões tão opostas de ambos provinham do encontro, logo no primeiro dia, com a pessoa do comodoro que, tendo-se liber­tado sabiamente de lady Victória, já então em caminho de sua pátria a bordo de um transatlântico da Linha do Pacífico, o Cotopaxi, desfizera o cottage e voltara a habitar os seus aposentos do hotel.

Se os dois esposos se haviam surpreendido daquele modo, embora diferentemente, não menos emocionado ficara Marcial com a presença deles ali, pois desde o baile do Cassino não vira mais Ernestina, posto levasse a cruzar desde en­tão a Praia de Botafogo nas imediações do pa­lacete Chuy. Por isso, enquanto o pobre bacharel se arrenegava com aquele encontro, que bem adivinhava ser a sua desgraça — ela e o Comodoro o achavam o mais auspicioso e feliz. Amando-se reciprocamente não desejavam senão ver-se todos os dias: e o acaso, que opera às vezes mi­lagres, eis que lhes proporcionava isso como se fora uma coisa combinada.

George assim que os viu no hotel correu a cortejá-los; mas, criterioso e gentleman, afastou-se imediatamente, guardando, perante o casal, uma atitude toda cerimoniosa. Descia diariamen­te à cidade depois do almoço, e quando volvia não se mostrava quase, principalmente quando o Henrique se achava presente. Na semana seguin­te, contudo, fez-se ver de Ernestina duas e mais vezes por dia, mas furtivamente, para a acostumar e não despertar a menor curiosidade entre os hóspedes e criados. E só quase um mês decor­rido, resolveu prudentemente assumir a iniciativa de uma resolução. Calculadamente deixava-se fi­car o dia inteiro no hotel, saindo apenas a peque­nos passeios no morro. E passou a encontrar-se com a moça, sobretudo nas horas em que o ma­rido estava ainda na Câmara. Tinha com ela va­gas conversas rápidas, no jardim ou na sala das recepções, conversas que eram às vezes diante de todos, e a que ele procurava despreocupadamente dar uma feição casual, um tom respeitoso. Os seus olhos entendiam-se, porém, tanto como o contato expressivo de suas mãos, que tudo diziam no incêndio de suas almas, enlaçadas inseparavelmente pelos elos poderosos de mútua e profunda paixão...

Um dia, voltava ele de uma excursão à Caixa d’Água e ao França, quando avistou Ernestina encostada à balaustrada do jardim ao fundo do edifício, lançando os seus lindos olhos melancó­licos sobre a cidade, em vista geral, na vastidão de muitas léguas. A enorme capital, daquela distância, assemelhava-se, na redução em que fica­vam as casas, a uma colossal caravana, parte acampada e imóvel na planura imensa, e parte como em movimento, representada nas habitações, trepando as encostas das colunas e outeiros. Pe­daços de mar estendiam-se ao longe com uma cor de prata oxidada: e os cabos, ilhas e cabeços da costa faziam relevos geognósticos, muito vastos, muito nítidos. Na baía estirada e ampla, ainda serena àquela hora, cheia de listrões como um mármore, os navios, microscópicos, boiavam como pontos negros, dormentes, riscados vagamente no alto pela pauta indecisa dos mastros, da cordoa­lha. Nos planos mais próximos, renques de pal­meiras, os finos caules muito eretos lançando triunfalmente ao Azul o penacho verde das folhas. E ali no alto sentia-se surdamente o grosso rumor da cidade, com as atenuações do mar ba­tendo, em orla de espuma, as ribas do litoral.

O Comodoro, risonho e feliz, muito elegante nas suas vestes a primor, aproximou-se delicadamente, falando-lhe:

— A vista daqui é excelente admirável. Mas a cidade não tem nada de monumental, é uma cidade de pombos, tudo tão pequenino, tão reduzido... Nem um só edifício grandioso braceja e estende-se no espaço... E pressentindo uma bevue, pois conversava com uma senhora a quem essas coisas pouco ou nada interessavam, emendou logo dizendo: Não sabe quanto estimo vê-la mais animada! Quando aqui chegou, senti uma certa inquietação...

Ela voltou-se graciosamente, muito tesa no seu vestido fresco de linho cor-de-rosa; e fixan­do-o vivamente com os lindos olhos negros e bri­lhantes, retorquiu-lhe a sorrir:

— Por ventura preocupa-se tanto comigo? Não acredito. As suas preocupações são bem ou­tras decerto... Se o que diz fosse sincero, vivamente sincero, estaríamos juntos mais vezes. Não, o senhor Comodoro tem mais em que cuidar! E não fora assim, honraria frequentemente, com a sua conversa, àquela que tanto o aprecia... Eu sei, estas suas palavras são apenas uma das mui­tas gentilezas com que sempre me distingue...

— Perdão! não posso consentir que ponha em dúvida, e com tamanha injustiça, o meu interesse, o meu afeto! atalhou George, imprimindo à voz uma ternura e uma convicção.

Houve um silêncio. E ele, que falava de cabeça baixa como entretido com as flores vermelhas da trepadeira que se enroscava nos balaustres, erguendo os olhos viu Ernestina um pouco pálida, hesitante no que devia dizer, como dese­josa de uma mudança de assunto.

— Não! volveu ainda, achegando-se mais para ela. Peço-lhe, por quem é, não repita mais semelhantes palavras! Juro-lhe que o meu amor, que pôde sobreviver ao seu casamento, me há de acompanhar até à morte... E baixando a voz, olhando em volta o jardim, continuou: — Não pode calcular qual tem sido o meu desespero, de um ano a esta parte. O Inferno, onde os padres dizem que tanto se pena, é uma coisa suave comparada ao estado do meu espírito. Quantos sofrimentos me hão flagelado, a senhora jamais o saberá! E agora devo dizer-lhe tudo, pois não desejo que ignore coisa alguma. Quero ser julgado pelo seu coração, dando-lhe todas as provas... Tencionava, depois dos nossos primeiros encontros, e após uma pequena viagem que pretendia fazer, pedi-la em casamento a seu pai; mas apenas adotara esta resolução soube, de plena certeza, que já tinha tratado esponsais com aquele que é hoje seu marido... Depois disto tenho vivido por aí nem sei como, procurando sempre atordoar-me neste turbilhão da vida... Mais do que tudo, para minha felicidade, desejaria hoje poder retirar da minha alma a impressão da sua imagem... Impossível, porém! Hei de morrer já agora, acorrentado a este imenso afeto!...

Ela ouvia-o de olhos baixos, sem o poder fitar, emudecida ao sentimento e ao calor daquelas palavras, que lhe davam como uma alegria indefinida e uma grande palpitação. George não cessava, no entanto:

— Só lhe peço agora uma dedicação fraternal, o consentimento de lhe devotar a fidelidade de toda a minha vida, com a abnegação humilde e mansa de um cão. E tomando-lhe da mão bei­jou-a furtivamente, com o abatimento de um ven­cido ou de um mendigo, acrescentando: — Espero não me negará este supremo consolo!...

Nunca Ernestina recebera uma tal impressão. Aquelas palavras do Comodoro a enlouqueciam e a enlevavam de uma maneira estranha. A pai­xão que desde muito sentia por ele, unindo-se intensamente à sensação de suas frases tão cheias de carícia e verdade, dera-lhe como um atordoa­mento.

No entanto, ele falava-lhe ainda, pondo lágrimas na voz e um tom de incomparável since­ridade na confissão que lhe fazia. E, entrando am­bos a caminhar insensivelmente, como dois so­nâmbulos, ao longo dos balaustres, aproximaram-se de um vasto caramanchão entrelaçado de folhagens existente no jardim. Entraram. Marcial, que emudecera por momentos, murmurou de novo:

— E ainda lhe quero dizer uma coisa...

Mas à sombra amiga em que se achavam veio-lhe um desejo de aconchegamento. Então, na meia escuridão esverdeada daquele nicho todo formado de trepadeiras, envolveu-a carinhosa­mente nos braços. Ela debatia-se, porém frouxa­mente, veludosamente, opiada pela volúpia. O jardim permanecia deserto, e não havia quase um rumor. Continuando a dizer-lhe palavras afetuo­sas e doces, George foi sentar-se com ela sobre um divã de conchas que havia no fundo...

Quando soergueram-se, pareceu-lhes que o sol faiscante tinha ganho tons desfalecidos, desmaia­dos, doentes, um ar de desolação. Sentiam, apesar do calor, uns arrepios na viração que passava, tão mansa que mal agitava as ramagens. Apres­saram-se logo em deixar o caramanchão. E o Comodoro, num movimento de despedida, apertou-lhe a mão docemente, ciciando com ternura:

— Adeusinho, até à tarde ! Creia que de ora avante não encontrará somente em mim o irmão, mas o escravo!...

Daí por diante Ernestina, com essa arte e habilidade de que só o cérebro feminino é capaz quando ao serviço de um interesse ou de uma paixão, proporcionava a George rendez-vous semanais nos seus próprios aposentos, aproveitando para isso a ausência do marido e as horas do dia em que era menor o movimento do hotel. O Comodoro então, para evitar qualquer semelhança ou escândalo, depois do almoço, como sempre, afetava descer à cidade; mas em verdade o que fazia era dar um ligeiro passeio à rua do Riachuelo e adjacências, regressando em seguida, a fingir, na atitude e nos gestos, quando porventura en­contrava pessoas que o olhavam com certa admi­ração, a volta súbita de quem esquece alguma coisa ao sair. Não obstante esta finura e preocu­pação de ambos em ocultar o seu amor, já se rosnava à boca pequena, no hotel, “que a mu­lher do deputado andava sendo requestada pelo lord inglês”, como, por ironia e inveja, tratavam a George os hóspedes.

Mas essa vida incomparável dos dois amantes, nesse Brocken de Santa Tereza, devia durar apenas meses. E foi numa quinta-feira de março, quando justamente findava para eles essa peque­nina estância de ouro, que o Henrique — que tudo ignorava, coitado! — ao deixar a mesa do almoço, em vez de sair para a Câmara, como costumava, voltou com a esposa para o quarto, a dizer-lhe meigamente:

— Bem, querida, descansa agora um pouco, para depois fazeres a tua toilette que temos de deixar hoje o hotel... Tu já estás boa, forte, bem disposta, não é verdade? É necessário, por­tanto, recolhermo-nos ao lar... Estive ontem lá em Botafogo com os paizinhos e, sem consul­tar-te, para poder fazer-te esta surpresa, preveni-os que regressaríamos esta tarde. Ficaram numa alegria e, para te surpreenderem também, prometeram que subiriam até cá, a buscar-nos. De certo já es­tão em caminho e não tardam a surgir por aí...

Ao ouvir tais palavras, que tanto a contrariavam, Ernestina agastou-se logo; mas, dissimulando a terrível impressão (pois já modificara o desagradável tratamento que dera até certo tempo marido), respondeu:

Ora, Henrique, você parece louco! Pois sem me prevenir, sem mais nada!... Não, hoje não vou, fica certo. Só no sábado. .. E, pensando no Comodoro, de quem se não queria afastar sem um aviso, insistia: Só no sábado, só no sábado!...

Mas nesse instante os viscondes surgiram e Ernestina não pôde mais opor-se, tendo de ir imediatamente mudar de toilette para descer, porque a mãe, toda a rir-se e feliz, mal a abraçara, rompeu a dizer:

— Vamos! vamos, menina! que eu e teu pai já estamos mortos de saudade... A Gertrudes e a Rita já prepararam tudo. Os aposentos de vo­cês foram todos arranjadinhos de novo. Nem vocês mais os conhecem, estão como no dia noiva­do, um brinco!. .

E a viscondessa foi-se enfiando para o quarto, a ajudar Ernestina a vestir-se.

Durante o tempo da estadia da filha no hotel, o senador e a mulher iam lá jantar aos domingos, demorando-se até dez e onze horas da noite, No último domingo, porém, não tinham podido ir, por causa da família do Silverio Martins que fora passar o dia com eles. Por isso, quando o genro, na véspera, lhes declarara que desceria de vez no outro dia à tarde, D. Genoveva ficara contentíssima prometendo-lhe que subiria com o marido a buscá-los, mas que não dissesse nada à Titina “porque lhe queria fazer uma surpresa”. E assim ali se achavam agora, dando uma grande contrariedade à filha, que não contava com “aquela” e que, era obrigada a dei­xar o hotel sem prevenir a George que, nessa manhã justamente, partira para Petrópolis, onde ia demorar-se dois dias a fim de assistir à festa dada pelo corpo diplomático à embaixada inglesa, e para a qual lhe mandara instante convite o seu bom e velho amigo sir John Hamilton.

 

XII

No outro dia à noite, ao chegar de Petrópolis, o Comodoro foi desagradavelmente surpreendido, logo ao vestíbulo do hotel, com a notícia que lhe deram alguns hóspedes, e os próprios criados, de que o dr. Henrique e a esposa haviam recolhido, na véspera à tarde, ao seu palacete de Botafogo. Placidamente, como sempre, sem exter­nar a sua contrariedade, depois de uma ligeira conversa em que lhe narraram as novidades do Rio naqueles dois dias, e lhe perguntaram como estivera a festa ao plenipotenciário britânico — George subiu para os seus aposentos, onde, sob a impressão da má nova, começou a rebuscar tudo secretária, cômodas, bibelots — à procura de algum bilhete ou cartão de Ernestina que lhe ex­plicasse, embora laconicamente, aquela súbita re­tirada. Mas em vão o fez, porque nenhuma letra encontrou. Meio inquieto e nervoso, chamou um dos criados, a quem pediu soda-water, pergun­tando ao mesmo tempo se o correio não levara cartas ou jornais durante a sua ausência. O criado disse-lhe que não sabia, mas que ia indagar; e, voltando daí a instantes com a garrafa de soda e um copo, informou que o correio “nada trou­xera” para o Sr. Comodoro.

Marcial fechou-se então no quarto, impressio­nado, a monologar intimamente sobre o procedimento da moça, retirando-se assim tão precipita­damente do hotel, sem lhe deixar sequer uma palavra, uma indicação! E mil ideias atravessa­vam-lhe o cérebro sobre o que teria ocorrido entre ela e o marido para uma tão repentina partida, quando Ernestina não lhe falara nunca em deixar tão cedo o local onde, dizia, “passava perfeitamente”. Ao contrário, afirmara-lhe sempre — como ainda na véspera da sua ida à Petrópo­lis — “que era certo permanecer ali por mais dois ou três meses, só devendo voltar definitivamente à sua habitação na cidade, lá para o princípio do inverno”. No entanto partira naquela quinta-feira, e na sua ausência! Como explicar tudo isso e o silêncio cruel para com ele?...

— Teria havido alguma denúncia ao marido? perguntava-se. Não era possível, porque se tal se tivesse dado, seria seguido de alguma questão, de al­gum escândalo... Isso não sucedera, de certo, senão encontraria ainda o burburinho, o salsei­ro”... Mas o que teria ocorrido então?...

E vinham-lhe ímpetos de sair imediata­mente, descer até Botafogo e ir rondar o palacete do Chuy, a ver se de algum modo podia saber o que se dera. Refletindo, porém, achou que não devia fazê-lo. Com esse ato leviano podia ir robustecer a desconfiança ou suspeita que tinham os hóspedes dos seus amores com Ernestina. Não! só desceria, no outro dia, depois do almoço, conforme os seus hábitos. Depois, lá em baixo, dis­cretamente, indagaria, trataria de decifrar o “eni­gma”...

Entretanto, os pensamentos maus sobre o “ca­so” voltavam-lhe ainda, insistentemente. E outra vez agitava-se, torturava o espírito, na ânsia de adivinhar os motivos daquela partida tão preci­pitada. Mas a sua imaginação, logo acalmada, trazia-lhe agora outras ideias. Fora devido, quem sabe (e era o mais provável) a alguma enfermi­dade repentina do senador ou da esposa... Er­nestina recebera, decerto, um desses recados ou participações urgentíssimas de família: “corra, ve­nha já, que sua mãe (ou seu pai) está a decidir” — e isto, muitas vezes, por um incômodo mínimo, porque conhecia (por experiência de menino lá no seu lar do sul) quanto eram nervosos e apreensivos os brasileiros na sua vida íntima. E, convencido desta hipótese, já mais tranquilo, repetia mentalmente:

— Foi moléstia na família, sem dúvida! E por isso a Titina partiu assim de súbito, sem me dei­xar uma participação, um aviso.

Levantou-se, solfejando baixo, na sua voz de barítono, uma dessas favoritas canções escocesas que trazia sempre na memória, e com as quais se expandia nos momentos de alegria. Vi­rou então consoladamente o copo de soda-water; e, mudando de toilette, acendeu um havana e desceu para o jardim a gozar um pouco da noite, que estava lindíssima.

Aí encontrou, arranchados entre as outras famílias num dos grandes bancos que pousavam a um ângulo, o dr. Carlos Engelk e a esposa, cer­cados pelas filhas, três louras e graciosas frau­leins teuto-brasileiras que, todas de claro ao luar, evocavam de repente o quadro encantador e sugestivo de uma balada renana com ondinas e walkirias... George fizera o conhecimento do dr. Engelk, havia dois anos, na sua província, em Joinville, onde esse digno homem era proprietário e clínico. Durante os meses que se demorara nessa linda cidade catarinense, frequentara muito o lar do nobre saxão, que se achava agora ali de passagem, devendo seguir para a Alemanha por aqueles dias. Chegara ao hotel com a família, justamente na véspera da partida do Comodoro para Petrópolis, de sorte que mal se tinham visto uma vez e trocado rápidas palavras.

Por isso, à aproximação de Marcial, Engelk ergueu-se cortesmente, saudando-o e convidan­do-o a sentar-se ao seu lado.

Feitos os devidos cumprimentos às damas, os dois encetaram logo conversação sobre Santa Ca­tarina, as suas colônias alemãs, a sua navegação, a sua indústria e comércio, por enquanto ainda em início, mas que, pelos seus belos e abun­dantes produtos, prometiam já vir dar à terra, do futuro, um lugar assinalado entre as primei­ras províncias do Brasil... Depois, a palestra se generalizou, tendo por assunto os grandes países da Europa, e especialmente a Alemanha... Pelas onze horas, o dr. Engelk e família, como os demais hóspedes que se agrupavam no jardim, recolheram, dando as boas noites a George que ficou ainda sentado, a deliciar-se com o esplendor da noite.

Nesse instante a lua, na sua argêntea radia­ção, galgava o zênite do firmamento, fazendo cintilar como lâminas de aço polido as folhas das árvores em torno. Lá em baixo, longe, a casaria profusa da cidade, estadeava-se nos seus largos panos de paredes brancas como leite, sob a mole dos telhados escuros onde uma ou outra clara­boia, mergulhando em cheio no polvilho do luar luminoso, reverberava feéricamente como um jorro de prata em fusão. Mais distante, além, era a chapa imensa do mar, espelhada à maneira da superfície morta de um lago, onde a multidão dos navios fundeados lançava manchas vagas de som­bra, tanto como o relevo franjado das ilhas que tinham, nas pontas avançadas de rocha, uma faiscação de espelhim.

O Comodoro, o coração afogado numa vaga saudade e na recordação de Ernestina, ergueu-se então lentamente e foi subindo para o seu quarto, onde, apesar do seu temperamento sadio e leoni­no, levou a rolar sobre o leito, numa agitação e numa insônia, até aos primeiros clarões da alvo­rada.

Contra o costume acordou tarde, estremunha­do. Mas, abrindo uma das janelas, viu que um sol glorificante e saudável banhava o azul e a terra com a sua luz viva e de ouro. E, pensando em Ernestina e nos “passos” que tinha a dar na cidade, já de todo desentorpecido e alegre, vestiu o chambre de seda escarlate lembrando um manto romano, e desceu para o banho. Voltou logo após, numa pressa, pois sentira de repente no alto o relógio do hotel bater as dez horas. Passou rapidamente os olhos pelo Jornal do Comércio e outras folhas do dia, abriu o guarda-roupa, e tirando um terno claro de cheviote começou a vestir-se. Depois do almoço, como o correio chegara trazendo-lhe a correspondência da Europa, sacou rapidamente, dentre a ruma dos jornais ingleses, a Revista de Edimburgo, e, abrindo-lhe as folhas uma a uma, atirou-se para a estrada a tomar o wagon do Plano. Na rua do Riachuelo, enquanto esperava o bond do largo de S. Francisco, depa­rou com o Alberto Making, que apenas o avistou correu para ele a sorrir, exclamando já de longe:

— Então, George, que é isso? há que tempo te não vejo!...

O Comodoro abraçou-o afetuosamente, dizendo-lhe:

— Por aqui, como vês. há quatro meses mais ou menos que deixei a Tijuca. E cá estou outra vez, no Vista Alegre, a gozar a divina Natureza... Mas de onde vens tu agora, Making?...

O outro contou-lhe que vinha do palacete de um grande amigo seu, o Conde de Alexandrina. Era dia de anos da Condessa, e fora lá almo­çar... George não conhecia então o Conde de Alexandrina, um dos primeiros banqueiros brasileiros?... O Comodoro conhecia-o, tinha-lhe sido apresentado pelo Baker, uma ocasião, no Banco Inglês...

— E por falar no Baker: dize-me cá, Alberto: sabes por onde anda ele? Olha que há segura­mente oito meses que não nos encontramos... A última vez que o vi foi à saída do Lucinda, mas ele não deu comigo. Ia a tomar uma vitória, numa pressa, pelo braço de uma rapariga que me pareceu a Consuelo...

O bond surgiu nesse instante, muito carregado, atravancado de passageiros. Os dois assaltaram um dos estribos, e correndo os balaustres foram colocar-se à plataforma traseira.

Aí o Making narrou-lhe tudo. Estivera com o Baker na antevéspera da sua partida para S. Paulo, e ele lhe dissera justamente que vira George nessa noite do teatro, mas não lhe fala­ra “para o não interromper no seu idílio escocês”. Ele, Alberto, a princípio não entendera que história era aquela de idílio escocês; o Baker o elu­cidara, porém, aludindo a uma dama inglesa, viúva de um lord e chamada Victória Churchill, que estava então no Rio e com quem se relacionara a bordo do Hobart, na sua viagem do Cabo para Londres... O Baker demorara-se na capital paulista cerca de um mês, depois descera para Santos, de onde seguira para o Rio da Prata e de lá para a Espanha, em cujas plagas errava ainda, numa aventura à Byron, pelo braço da Consuelo, uma rapariga andaluza que habitara muito tempo o Moreau em companhia de uma irmã, que era agora a “esposa passageira” do secretario da le­gação de França. Naturalmente fora com a Con­suelo que George o vira à porta do Lucinda. Na última carta datada de Madrid, o Carlos pe­dia-lhe que procurasse o Comodoro, lhe desse um abraço e lhe perguntasse pela “lady escocesa”... E tirando a carta do bolso, o Alberto passou-a a George que a leu e releu para melhor gozar as “pilhérias” do Baker.

Mas o bond chegava ao largo de S. Francisco. Marcial saltou então apressado e, despedindo-se do Making, largou a passadas violentas para a rua Sete de Setembro, afim de tomar o bond de Conde d’Eu e Barcas para a rua Direita, pois lembrara-se de ir até ao Correio, à posta-restante, a ver se havia alguma carta de Ernestina. E já no carro, lastimava-se de não ter tido aquela ideia há mais tempo, quando era quase certo que lá encontraria a carta, porquanto fora isso uma combinação feita entre ambos, logo depois do primeiro “encontro”, como uma medida de previdência para o caso de alguma separação imprevista ou necessidade de correspondência.

Efetivamente, na posta-restante, entregaram-lhe uma carta cuja procedência reconheceu logo pelo sobrescrito. Abriu-a, muito satisfeito. Era de Ernestina e estava datada do mesmo dia em que deixara o hotel. Nela explicava-lhe a moça, em primeiro lugar, a sua partida precipitada de Santa Teresa. E em seguida, com palavras muito íntimas, pedia-lhe que, apenas chegasse de Petró­polis, corresse a Botafogo, onde à tardinha ou à noite estaria à janela, à espera dele. Falava, e depois, nas “terríveis saudades da ausência”, fa­zia-lhe recomendações “não deixasse de pensar nela, não esquecesse as juras de amor!” E “como não podia ser antes” (bem a seu pesar!) marca­va-lhe uma entrevista para terça-feira próxima, dia em que ia à modista, à Mme. Guimarães. Esperasse-a no largo de S. Francisco, lado do Parc Royal, às três horas”. “Daí seguiriam para onde o destino e a paixão os quisessem levar...” E terminava: “Não faltes, estou louca por ver-te! Adeus! Tua do coração — Titina”.

Lendo e relendo o fino bordado gracioso daquelas letras amadas, Marcial deixou o Correio. À esquina da rua do Ouvidor estacou um momento, consultou o relógio: eram quatro horas. Devia ir vê-la imediatamente ou esperar “a tardinha ou a noite” como lhe dizia a encantadora missiva?... Varado de saudade resolveu partir logo, embora mesmo a não visse. Saltaria na praia, faria horas... E para evitar qualquer estorvo se­guiu a pé até à rua de Sete de Setembro, por onde subiu em direção à de Gonçalves Dias. Do ponto tinham largado três bonds, atulhados de gente, tendo à frente o do Jardim. Tomou-o de um salto, agarrando-se a um dos balaustres. E lá foi a rolar, num alheamento das pessoas em vol­ta, o coração e o espírito saturados deliciosamen­te das palavras da carta e da visão de Ernestina.

 

XIII

Aquela terça-feira de abril amanhecera chu­vosa. Ernestina que levara a noite numa insônia, a pensar na entrevista, dormia ainda a sono solto quando o marido, já vestido para sair, a despertou dizendo:

— Então, querida, não te levantas? Olha que já é tarde! O almoço está à mesa, e tu tens de ir hoje à modista...

Ela sentou-se no leito, a bocejar e a bater as pálpebras à claridade viva que entrava pelas ja­nelas através dos reposteiros.

É verdade, ia-me passando... Fizeste bem em chamar-me, senão continuaria a dormir! E eu que tenho tantas voltas a dar, além da prova do vestido!... E como ele se encaminhasse para a porta acrescentou:

— Espera, dá-me primeiro o peignoir e manda cá acima a Gertrudes.

Na sala de jantar o Henrique, depois de avi­sar à Gertrudes de que a esposa a chamava, foi sentar-se à mesa onde já o aguardavam o Chuy e a viscondessa que, nos dias em que eles tinham de sair cedo para o Senado e a Câmara, limita­va-se tão somente a servi-los, pois não almoçava senão em companhia da filha. D. Genoveva an­dava agora satisfeita, porque o genro não se quei­xava mais da esposa e porque esta, depois daqueles quatro meses de Santa Tereza, dia a dia en­gordava mostrando-se cada vez mais alegre e robusta. O visconde, do mesmo modo que a con­sorte, era todo prazer e sorrisos. Os criados reju­bilavam também. E até a própria casa revestia outro aspecto, recuperada a tranquilidade de ou­trora.

Apenas os dois saíram, D. Genoveva subiu nos aposentos da filha, que vinha chegando do banho, os bastos cabelos negros soltos pelas es­páduas, radiante e toda fresca no seu roupão de cetim. Trocado entre ambas o beijo costumado, Ernestina começou a vestir-se, auxiliada pela Gertrudes que ia tirando do guarda-roupa as pe­ças da toilette escolhida para o dia.

Um alvoroço dominava a moça cujo espírito não tinha outra preocupação que não fosse a pessoa de George, a quem ansiava por falar, porquanto depois que deixara o Vista Alegre apenas o pudera ver duas vezes — uma na tarde em que ele recebera a sua carta e outra na véspera à noite, quando recolhia de uma visita na vizinhança em companhia do marido. Ao atacar o corpete lembrou-se do coupé, e voltando-se para sua mãe perguntou-lhe se já tinham ido avisar à cocheira. D. Genoveva disse-lhe que não tivesse cuidado porque o coupé não tardaria. Com efeito, instantes depois, o carro estacava à porta do pa­lacete.

Ernestina então, dando os últimos toques ao cabelo e ao chapéu, enfiou a sua capa marrom, e pegando do guarda-chuva e das luvas, desceu com a mãe para a sala de jantar, onde os copeiros serviam já o almoço. Sentaram-se à mesa. De um canto, o velho relógio de armário bateu uma hora.

— Que tarde! murmurou a Titina, consultando seu pequenino relógio de algibeira. A que horas vou chegar à modista!...

— Ora almoça a teu gosto, menina, acudiu D. Genoveva. Tens ainda a tarde toda. Até às cinco há muito tempo, não te inquietes! Aquilo em chegando lá é só provar o vestido... Não te lembras das outras vezes? Pois há de ser a mesma coisa...

Mas Ernestina apressava-se, olhando de vez em quando o relógio. E daí a instantes, bem instalada nas almofadas do coupé, descia para a cidade pela rua Marquês de Abrantes.

Àquela hora justamente o Comodoro, ata­cado numa grossa ulster de xadrez que lhe des­cia até aos joelhos tornando-o mais alto, prote­gido pelo seu guarda-chuva inglês, deixava o portão do hotel e caminhava a passo estugado para o alpendre do Plano, sob um aguaceiro terrível. Estava furioso com o tempo “que logo se guardara para aquela ocasião”, pois ruminava já mentalmente a vaga desconfiança de que Er­nestina ia faltar-lhe talvez, apesar da afirmativa da carta: “Creia que não deixarei de ir, acon­teça o que acontecer”. E inquietava-se porque sentia agora uma paixão que jamais experimen­tara. Este vivo sentimento quase fora para ele próprio uma surpresa. Mundano dos grandes cen­tros sociais europeus, sempre volúvel e adorador de todas as belezas, não supusera nunca que mulher alguma o pudesse impressionar e domi­nar. Mas Ernestina surgira, e ele, que a desde­nhara a princípio posto a houvesse acolhido numa ligeira flirtation, se lhe rendia agora irresistivelmente. Só viera a avaliar da intensidade do seu afeto pelos sofrimentos que o alanceavam ante aquela separação. Desde o dia em que voltara de Petrópolis e não a encontrara no hotel, que um mal-estar indizível varava-lhe a alma, cuja única preocupação era ela, só ela! Nada mais via e nada mais sentia. E porque? Porque tudo isso se traduzia na vis íntima e afetiva do seu temperamento, do seu organismo de homem, im­pondo-lhe, por uma lei sempre vitoriosa e inelu­tável, a constituição da família, o aconchego de um lar. Conhecia que não podia mais esquecer Ernestina, custasse-lhe embora a própria vida!...

No entanto, chegara à rua do Riachuelo. A chuva caía em bátegas que o vento de leste agitava a rajadas. Os bonds desciam cheios, as rodas afogadas, em certos pontos da rua, na en­xurrada barrenta, fervendo às sarjetas num es­trepitar de torrente bravia. Parou um momento à porta da estação, à espera do primeiro tílburi que passasse. Ao fim de alguns minutos, que lhe pareceram horas, puxou do relógio: eram duas e vinte! Impaciente abriu o guarda-chuva e ati­rou-se à lama e às bátegas, entrando a descer a rua. À esquina do Lavradio encontrou um landau vazio: fez sinal ao cocheiro e saltou para dentro, mandando bater para o largo de S. Fran­cisco, onde apeou momentos depois, ordenando que o fosse esperar ao largo do Rosário.

Encaminhou-se então para o passeio do ponto dos bonds de S. Cristovão, a esquadrinhar, olhar ávido, a multidão que se apinhava em torno, pe­las portas e sob os toldos das lojas. E pensava: “Ainda não veio, decerto!” Consultou outra vez o relógio: faltavam dez para as três. Nervoso e numa impaciência foi até à calçada do Parc Royal. Ainda nada! Adiantou-se até à primeira esquina, sempre a esquadrinhar todo o largo. E como a chuva começava a estiar parou, a exami­nar cuidadosamente os transeuntes que de contínuo desembocavam da rua do Ouvidor.

Desse lado no passeio, em frente a um salão térreo de barbeiro, pousava, sob as árvores, um denso grupo de pessoas que esperavam o bond da Praia Formosa. Ao dar com ele, de guarda-chuva em punho, colossal na grossa ulster de xa­drez, o ajuntamento entrou a mirá-lo admiradamente. Ficou irritado. Ali estava o enfezado do indígena a pasmar sempre para ele, matutamente, com um ar idiota! Nisto o bond chegou, contor­nando a curva de aço: e logo o bando atirou-se para dentro, aos empurrões, numa balbúrdia de mil demônios. Olhava ainda aquela trapalhada, quando Ernestina apareceu, saindo a rua do Ouvidor, magnífica na sua capa de seda marrom, o guarda-chuva aberto numa das mãos, a outra segurando por detrás o vestido que expunha uma larga barra de saias alvas bordadas. Teve um imenso alvoroço. E marchando ao encontro dela, apenas apertou-lhe a mão a sorrir, deu-lhe o braço e a foi conduzindo para o largo do Ro­sário onde tomaram o landau, ordenando George ao cocheiro que tocasse para a Tijuca, lembrança que lhe ocorrera de improviso por não ter determinado de antemão o lugar aonde ir.

Ernestina, mal se acomodara no carro, perguntou-lhe nervosamente: — “Mas até onde va­mos, George?... Para um hotel, não! Deus me livre!... Podem reconhecer-me... Depois é uma vergonha, tanta gente!... Como havia de ser então? retorquia o Comodoro. E começou a di­zer-lhe que não pensara calmamente naquilo por­que “andara pelo ar” toda aquela semana. Esperava primeiro falar-lhe para tomar uma resolução definitiva sobre a sua vida, sobre a vida de ambos, pois não podiam continuar por mais tempo naquela situação. Era impossível! Queria gozar o seu amor tranquilamente; e isso não podia ser ali, decerto, e daquele modo tão deprimente para ambos... Ela não lhe havia dito tantas ve­zes que desejava sair com ele, deixar o Rio de Janeiro, o Brasil, e irem ambos para a Europa ou para os Estados Unidos, onde justificariam a sua união, tornando-a legítima perante a socie­dade, para serem felizes?... Pois bem! ele lem­brara-se disso; e ali lhe dizia que era chegada a ocasião... Aproveitavam o momento e combi­navam tudo... Embarcariam no primeiro vapor para os Estados Unidos, e lá casariam pela religião protestante... Depois partiriam para a Eu­ropa, a fixar residência em Londres, Paris ou Berlim...

E rolando sempre, através de ruas e praças, entraram na rua Conde do Bonfim. A chuva apertara de novo, torrencialmente. Bátegas rijas tamborilavam nos vidros, embaciando-os, velan­do-os de uma branca cortina d’água. Estreita­mente enlaçada ao Comodoro, num enlouquecimento de volúpia e paixão, Ernestina aprovava todo este plano de fuga, murmurando apenas de vez em quando:

— Pois sim, George, pois sim!...

Anoitecia quando o carro parou, já de volta, no largo do Rocio esquina da rua da Carioca. A chuva continuava ainda, desoladoramente. Ernes­tina enrolando-se bem na sua capa e abrindo o guarda-chuva, saltou para o passeio e entrou a caminhar apressadamente, afim de tomar o bond de Botafogo. George mandou tocar para o Plano Inclinado; e daí a meia hora dava entrada no hotel onde, apenas lhe serviram o jantar, se reco­lheu aos aposentos a dispor meticulosamente as coisas para a viagem.

Tinha combinado tudo com a moça. Sabia que na quinta-feira partiria para Nova York um paquete da linha Norte-América-Brasil, o City of Rio de Janeiro. Seguiriam nele. No outro dia, cedo, iria à Companhia comprar as passagens, dando também uma chegada a bordo para falar ao Comandante e escolher o camarim. À noite, embarcada a bagagem, passar-se-ia para o Cole­ridge e, pela madrugada, daria um golpe à terra, à praia de Botafogo, em frente ao palacete do Chuy. Tomaria Ernestina, e singrando logo para o largo bordejaria pela baía até à hora de atracar ao paquete. E depois... mar em fora para o seu novo destino!...

 

XIV

No outro dia, depois do almoço, George desceu para a cidade. O tempo continuava chuvoso. Mal apeara do bond no largo de S. Francisco, di­rigiu-se à Companhia Norte-América-Brasil a comprar as passagens. Munido dos bilhetes enca­minhou-se para a rua Direita onde tomou um tílburi para a Prainha, em cujo ancoradouro se achava o Coleridge. Ao saltar tomou para o cais onde descobriu imediatamente o pequeno escaler de bordo, patroado pelo James, que já o esperava conforme o aviso recebido na noite anterior.

Embarcou para o cutter. Aí, depois de declarar ao patrão a sua partida no outro dia para os Estados Unidos, instruiu-o sobre o que devia fazer durante a sua ausência. Em seguida despachou o James para a terra com algumas incumbências, constantes da compra de objetos necessários à viagem, entre os quais avultavam roupas brancas para senhora, “quase um enxoval de noivado” como pensava o patrão, um tanto intrigado ao ler a lista minuciosa que lhe dera o Como­doro, recomendando-lhe executasse tudo até a tarde, hora em que estaria de volta do City of Rio de Janeiro onde ia escolher o seu camarote. Efetivamente, apenas o bote desatracou, levantou ferro com os dois tripulantes que ficaram e lar­gou a velejar em rumo do grande steamer.

A lestada continuava. Um denso nevoeiro en­chia a baía, cuja superfície agitada vagalhoava sob a chuva às ríspidas rajadas que passavam. As montanhas beirando o litoral estavam todas encobertas, e no imenso surgidouro os navios de cabotagem e de longo curso destacavam-se apenas, aqui e além, por um ou outro fragmento de casco nos lugares onde a névoa fazia rasgões, ou por manchas tênues de esfuminho, debuxando de leve a cordoalha e as mastreações oscilantes.

Daí a momentos, o Coleridge, muito veleiro, atracava ao transatlântico, que uma multidão de saveiros cercava, despejando, sob as bátegas, vo­lumes e volumes de carga, que pouco e pouco iam enchendo o ventre do monstro cujo fundo de zarcão, à popa, já se enterrava nas águas. Gal­gando a escada de ré, George foi até a tolda, onde encontrou o imediato com quem depois de rápida palestra sob os toldos abarracados, passou ao salão da câmara e, em seguida, aos camarotes que percorreu um por um para escolher o seu. O oficial, que o conhecia de nome, o acompanhou amavelmente a todos esses compartimentos, le­vando-o depois a visitar o navio, ainda desconhe­cido de George por ser aquela a segunda viagem que fazia ao Brasil.

Ao voltarem à câmara, o imediato convi­dou-o a tomar uma taça de champagne que Geor­ge aceitou gentilmente, a gabar-lhe a construção do steamer, as acomodações e as excelentes condições de navegabilidade. O oficial externou-se então longamente sobre detalhes náuticos, en­carecendo o modo seguro por que o vapor se por­tava no mar mesmo com temporal, pois nele andava desde que caíra do estaleiro. No correr da conversação, Marcial perguntou-lhe quem era o comandante do City of Rio de Janeiro, e teve a agradável surpresa de ouvir dos lábios do ho­mem o nome de Robert Murray, capitão-tenente reformado da armada Americana e seu velho co­nhecido de Nova York. Ao despedir-se, dizendo que embarcaria no outro dia pela manhã, pediu ao oficial que o recomendasse ao comandante Murray; e desceu presto a escada em demanda do cutter.

Era pelas três horas. A lestada, a rajadas furiosas, continuava a açoutar as águas, erguendo junto às ilhas grandes coroas de espuma que re­bentavam, às vezes, engrossadas pelos vagalhões do largo, em barras finas de tule enevoando por instantes os altos cabeços e cabos.

Marcial, metido numa longa capa de borracha, de pé à popa do Coleridge, pensava em Er­nestina, sorrindo intimamente “àquela oportuni­dade” da borrasca que ia proteger admiravelmente o “rapto” projetado. Felizmente o tempo prometia aguentar assim até à noite, até à madrugada. E o cutter, a borda rasa com a água, voava para vante por entre as manchas negras dos navios que o nevoeiro envolvia na sua imensa fuma­rada alva.

No ancoradouro da Prainha, o James com o escaler carregado de volumes aguardava já o Co­leridge, e apenas este lançou âncora, atracou, co­meçando a baldeação da carga, a que George assistia risonho, mandando arrumar tudo na câmara. Depois o Comodoro sentou-se à pequena mesa redonda, onde um dos tripulantes que fazia de dispenseiro colocara um bom lunch de san­duíches, chá e champagne. E como um rei marinheiro do Norte, viajando sozinho e incógnito no seu yacht imperial, ficou-se ali a repastar pacifi­camente, embalado pelas ondas e pelos seus so­nhos.

Às seis horas subiu para a tolda, onde se que­dou longo tempo apoiado às malaguetas do leme, a olhar os trechos da cidade e do cais que por acaso se mostravam, às vezes, riscados obliqua­mente da chuva, através os rasgões do nevoeiro. Para os lados da barra e do mar as perspectivas continuavam sepultadas densamente no sendal da borrasca.

Anoitecera no entanto. Em baixo, na câmara, o James fizera já acender as duas lâmpadas do teto e dos glass-rack's.

Mas George permanecia ainda no tombadilho, sob o toldo espesso do Coleridge, entretendo-se agora com os faróis e farolins que iam saltando, um a um, na sua luz frouxa e trêmula, pela cordoalha dos barcos. Veio-lhe então uma nostal­gia das suas longas e aventurosas viagens em na­vios de guerra e paquetes, que lhe avivavam cer­tas recordações, a que se prendiam estados de alma delicados, coisas afetivas, impressões indeléveis ou passageiras, cenas doces de amurada, mistérios de camarim, ou largas cenografias oceâni­cas. E sobre todas lhe bailava ao momento no espírito, com admirável nitidez, o painel belo e terrível de um incêndio a bordo de um steamer alemão que encontrara, uma noite de cruzeiro ao largo das costas britânicas, nas vagas bravas da Mancha. Comandava então um pequeno cruza­dor, o Lion, que seguia para o norte, para Sou­thampton, a reunir-se à esquadra de Tyron aí ancorada. Ao deparar com o sinistro, mudara imediatamente de rumo, navegando para oés-no­roeste, onde o casco flamejava à tiragem forçada, apesar da vaga alta, dentro de uma hora, chegava a três amarras do vapor. O incêndio lavrava violentamente à proa, manchando o mar de fantásticos clarões escarlates, não conseguindo alastrar-se para a popa, porque o comandante, ao pressentir o fogo, mandara máquinas atrás. Pela tolda, ao clarão formidável das labaredas, seme­lhantes a um monstruoso novelo de serpentes em brasa, via-se o fervilhar de uma multidão de passageiros — homens, mulheres e crianças — que se agitava, de braços ao ar, gritando sinistramen­te. As silhuetas desgrenhadas e movediças desses infelizes desenhavam-se, num recorte escarlate e satânico, sobre a negridão do horizonte...

Lançando do cruzador ao paquete dois grossos viradores de arame, Marcial, num desses rasgos de temeridade e arrôjo que tanto o caracteriza­vam, não olhando os vagalhões desmontados, fez atracar os dois cascos e, com toda a oficialidade e guarnição, jogou-se por entre o fogo, salvando toda aquela gente, que viria a perecer dentro em pouco, se não fora a sua passagem por ali no Lion e o seu pronto e eficaz socorro, praticado com risco da própria vida e da de seus coman­dados. Rompia a madrugada, quando a afanosa baldeação dos passageiros terminou. George gri­tou então para o comandante e tripulantes do steamer, que se passassem para o cruzador. Mas o louro gigante do Dantzig, obcecado no dever de marinheiro que ordena que o chefe seja o último a abandonar o seu posto, de pé ao passadiço que as labaredas mais avançadas esbrazeavam já, alu­cinado no desespero da sua energia vencida, pa­recia disposto a se afundar com o navio, num desses obscuros suicídios heroicos, tão comuns nos verdadeiros marítimos, quando colhidos pelo sinistro invencível! O Comodoro, vendo que o bravo leão do oceano assim se condenava estoicamente à morte, ordenou ao mestre que fosse arrancar do seu posto o comandante do steamer e a sua companha. Cumprida a ordem, foram co­lhidos os viradores, ficando o paquete abando­nado à furia do fogo e das ondas. Puxando a todo vapor, o Lion tomou de novo o seu rumo, em de­manda de Southampton. Quatro horas de mar alto durou essa travessia arriscada, em que o pe­queno cruzador, sobrecarregado com cento e trinta passageiros, fora a guarnição, ameaçara por vezes soçobrar. Mas em pouco a ilha de Wight se de­senhou à proa, na sua silhueta de verdura ren­dada, e as vagas entraram a abonançar gradual­mente. Todos os passageiros exultavam agora à aproximação de Southampton, onde iam desem­barcar. Fora aí, nesse transe doloroso, que George conhecera a filha do Conde de Foerbach, plenipo­tenciário alemão que ia assumir o seu cargo em Washington. Era uma adorável fraulein do Wurtemberg, de lindos olhos castanhos e cabelos tro­picais, que, se não fora o seu porte elevado e a sua pele boreal, dir-se-ia uma dessas belezas fascinantes das raças meridionais. A moça, que tinha apenas dezoito anos e o doce nome de Berta, muito impressionara o Comodoro, sobretudo por lhe recordar as jovens da sua terra natal: e uma vaga saudade do Brasil distante to­mou-lhe a alma, de envolta com o enternecimento daquela ligeira loquade... Pelas dez horas o Lion passava junto à esquadra inglesa, fazendo sinal de náufragos a bordo e dando parte ao al­mirante de que seguia para Southampton... E den­tro em pouco o navio entrou a subir o Test, que deslizava sob uma imensa floresta de mastros e cascos por entre as colinas esmeraldinas das margens. Na cidade o desembarque começou, ape­nas o Lion atracou ao arsenal. O Conde de Foer­bach e a família, porém, só baixaram à terra pela tarde. George acompanhou-os então ao Grande Hotel da Germânia, onde se hospedaram até ao outro dia em que partiam para Londres. Aí, até à meia-noite, deliciou-se numa adorável palestra com Berta, que o distinguira meigamente com as suas gentilezas e graças, mesmo porque tinha sido ele quem a carregara ao colo, do tombadi­lho do steamer para a pequena câmara do Lion... Essa última palestra com Berta pusera-lhe uma saudade n'alma, a tal ponto que, ao chegar a bor­do, se fora postar ainda ao tombadilho, a pensar nela. Fazia luar, um luar nebuloso de outono, deixando ver vagamente a mole alva das casas, e, entre estas, o grande edifício do hotel, coroan­do um outeiro com a sua vasta massa de mármore. Como deixara Berta à janela, no seu rico water proof de peles, pôs-se a olhar nessa dire­ção, onde lhe parecia o vulto dela permanecia ainda, a procurar sobre o rio, entre a multidão dos navios, o casco fino do Lion. E o perfil alto e cheio de fraulein Foerbach, com os seus lindos olhos castanhos e os seus cabelos tropicais, con­fundia-se de repente na imaginação do Como­doro com o adorado perfil de Ernestina, cuja ima­gem imperava agora absoluta em sua alma...

No entanto, a lestada continuava turbilhonando sobre a planura das águas. Um rebocador, que vinha espumando forte nas ondas para os lados da Mortona, passou rente ao Coleridge, num gros­so arfar de cetáceo, anunciando aos barcos em volta o avançar da sua singradura ligeira pelo som estriduloso do seu apito metálico.

Eram quase nove horas. Marcial desceu para a câmara, onde o bom velho James punha a mesa para o chá. Ainda sob a melancólica impressão daquelas recordações, sentou-se à pequena mesa redonda coberta por uma alvíssima toalha de fa­vos e sobre a qual um aparelho de christofle cintilava pelos lavores em relevo, como se fosse de prata. Em silêncio então, e com os seus olhos claros cheios de um vago cismar, pôs-se a bebe­ricar o seu chá. Depois, ergueu-se e foi até uma das vigias da popa, onde se quedou um instante a olhar, através do espesso vidro, a iluminação da cidade e do cais. Em seguida, dando ordem ao James, que subia em direção ao rancho, para que à meia-noite o viesse chamar e tivesse tudo pronto para suspender, tirou a capa de borracha e recostou-se sobre um dos divãs da amu­rada...

À meia-noite em ponto, o patrão aproximou­- se da gaiuta e gritou para baixo, que o cutter es­tava pronto a largar. O Comodoro, despertan­do da madorna em que estava, levantou-se de um salto, e, envergando logo a capa, subiu para o tombadilho.

A lestada tinha feito uma pausa. As lufadas eram agora mais brandas e o céu, menos carrega­do de bulcões negros, parecia indicar que o tem­po levantaria dentro em pouco. Mas por toda a Guanabara as vagas rolavam ainda desmontadas, em novelos de espuma.

Colocado ao cata-vento, George gritou para a proa, que virassem o molinete, tesassem as amar­ras e largassem o pano. E logo o Coloridge, mui­to doce de governo, entrou a fazer cabeça, aproan­do para a barra. Caçado o grande latino, o cutter deitou-se num bordo e começou a correr numa espumarada alva...

Meia hora depois, o morro da Viúva apareceu pela proa no seu cabeço elevado. O Como­doro mandou então carregar e, ferrado o pano num momento, a guarnição armou remos, entran­do o cutter sem ruído nas águas da enseada.

De pé ao leme, Marcial pôs-se a esquadrinhar a longa curva da praia, que se ia acentuando e destacando na noite pela linha dos lampiões de gás, à medida que a embarcação progredia tirada a largas remadas. Nos pontos de atracação nem uma falúa se via por causa do temporal, e apenas dois cutterzinhos de recreio, desguarnecidos como sempre quando fundeados, balouçavam sob o ven­to que silvava à cordoalha. Em terra, para dentro do pequeno paredão do cais, só um bond corria, num tilintar de campainhas, as cortinas arriadas, um disco verde de luz perdendo-se por entre as árvores...

Agora, vagamente emocionado, George fixava da tolda o palacete do Chuy, de onde, através das vidraças de uma das janelas do primeiro andar, se coava para fora o mortiço clarão de uma lâm­pada. Era o sinal combinado! Ernestina o espe­rava.

E, para a avisar igualmente que ali ia ao seu encontro, ordenou ao proeiro que suspendesse três vezes no ar o farolim do Coleridge, que vinha oculto sob o castelo, para que de terra se não reconhecesse que ali estava uma embarcação. No mesmo instante atravessou, e saltando para o botezinho de bordo, entrou a vogar para o cais. Não havia o menor receio de que algum bond o sur­preendesse, naquele quarto de hora mais próximo, porque o último que passara ia penetrando ao momento na rua dos Voluntários. De mais nada se temia o Comodoro, que era homem de aventuras e de lances arriscados.

Enxurrado o bote na praia, George galgou o cais. No alto parara um instante a investigar a rua para um e outro lado, quando subitamente avistou Ernestina que, envolta num manto negro, caminhava para ele a passos precipitados. Num alvoroço, e sem tempo a perder, não pudera mur­murar palavra, e, agarrando-a possantemente nos braços, desceu a correr em direção ao bote. Ape­nas alcançara a bancada da ré, gritou para o Ja­mes: — “Larga!”

E logo o bote se afastou em direção ao cutter. Aí, mal colocou a moça na câmara, George voltou à tolda, mandando aproar para o largo.

A manhã anunciava-se já sobre os montes de Niterói numa vaga claridade azulada. O mar, agora mais calmo, espumava em vagas rasas.

Vendo o cutter velejado, Marcial desceu para a câmara. Sobre um dos divãs de veludo, com a cabeça caída entre os braços que se apoiavam às almofadas, Ernestina soluçava. Enlaçou-a en­ternecido, procurando consolá-la. Mas aquele pran­to desfeito recrudescia mais e mais sob os seus beijos e afagos. Era a saudade profunda, a dor excruciante e terrível de ter dado “aquele passo”, de ter abandonado o seu lar, legando a desventu­ra e a desonra, talvez a loucura ou a morte, aqueles que mais a amavam!... No entanto, não havia mais recuar. Entregue aos vai-vens do des­tino pelo homem que adorava, ia correr outras terras, ia rolar sobre os mares... E no deslizar daquela vela sentia já o desaparecimento completo da sua vida passada. Na linha longínqua da terra, lá na formosa enseada, ficava para sem­pre o seu lar, que em pouco acordaria, num tor­velhinho de angústias, sob o clamor da desgraça!...

E o Coleridge avançava nas ondas correndo em rumo da Laje...

  

XV

No outro dia, no palacete do Chuy, foi como se tivesse perecido uma pessoa da família. Desde as oito horas da manhã que D. Genoveva chorava desesperadamente, numa imensa aflição, fechada em seus aposentos. Caída sobre o leito, a cabeça enterrada nas mãos, só se lhe ouvia mur­murar de vez em quando, numa voz débil e rouca:

— Que desgraça, meu Deus!... Eu não posso mais, eu morro!...

O visconde que passeava mudamente de um a outro extremo do quarto, a alva cabeça veneranda abatida sobre o peito, a alma sangrando numa angústia sem nome, a esses gritos desolados da esposa estacava por instantes, e, com os olhos arrasados de pranto, as pernas a tremerem-lhe, acer­cava-se dela e pedia-lhe que sossegasse, tivesse ainda uma esperança, pois tudo não estava per­dido, e a Titina voltaria decerto, ficando tudo como dantes.

E prosseguia no seu agitado passeio, as mãos cruzadas às costas, numa das quais se via um papel branco, amarrotado e vagamente umedecido de lágrimas. Esse papel, que ele lia de momento a momento, com desesperação, era a carta que Ernestina deixara na véspera, ao partir, sobrescritada à sua mãe. Tinha sido encon­trada sobre o bidet do quarto quando a ama, a boa Gertrudes, aí penetrara, pela manhã, para levar-lhe o café. A velha fâmula, ao deparar o leito vazio e tal qual o arranjara na véspera, ti­vera uma emoção e ao dar com aquele envelope compreendera tudo. Então, muito pálida e aflita, saiu a correr para a sala de jantar onde já se achavam os viscondes. Estendeu a carta à se­nhora e começou a balbuciar em voz trêmula “que a menina não estava no quarto nem em parte alguma da casa”...

D. Genoveva fez-se logo muito branca, largou a carta sobre a mesa e desandou a chorar. O vis­conde, que estava junto a uma das janelas, muito absorvido com os jornais da manhã, e que nem dera pela entrada da ama, pois tudo se passara em minutos, correu para a esposa perguntando assustado:

— Que foi? Que sucedeu? Alguma dor?!...

Mas D. Genoveva, em soluços, não podia ar­ticular palavra. E foi a ama quem explicou tudo, mostrando-lhe a carta.

Ele agarrou o envelope, rasgou-o a tremer e desdobrando a pequena folha de papel começou a ler numa ânsia. Na sua letra clara e miúda Er­nestina, depois de aludir “à desgraça do seu casamento”, dizia que naquele mesmo dia deixava o Brasil em companhia do homem que amava. E concluía pedindo aos pais que lhe perdoassem a loucura. “Mas não podia fugir ao seu destino, re­sistir a tamanha paixão. Rezassem por ela, que em breve talvez voltaria!”

O visconde acabou a leitura da carta na estranheza e no apatetamento que dão, a princípio a quem os experimenta, os grandes golpes súbitos.

Tinha os olhos secos, mas sentia o coração tão amortecido no fundo do peito que lhe parecia ia morrer de repente. E fitando desvairadamente a Gertrudes, que ali ficara de pé contra a mesa, chorando em silêncio, perguntou-lhe com voz sufocada:

— Mas você procurou bem pelo quarto, ama? Você viu a casa toda?... Não é possível, não pode ser... Isto seria além de tudo a maior das vergonhas!...

A ama, sacudida por uma nova crise de pranto, enxugando os olhos ao avental que trazia, respondeu-lhe:

— Sim, meu senhor, já vi tudo, até o banheiro e a chácara... Não está! Não está em parte alguma!...

Mas D. Genoveva ergueu voz debilmente pedindo que a levassem para o quarto, porque sen­tia uma grande aflição. E fez um esforço na ca­deira procurando levantar-se.

O visconde e a ama a ampararam então, e a foram conduzindo devagar para a escada que le­vava ao andar superior. Apenas a pobre senhora chegou ao seu quarto, foi cair sobre a cama, in­vadida outra vez por soluços violentos.

O Chuy, chorando também agora, entrou a passear pelo quarto, muito opresso e respirando a grandes haustos. A esposa parecia porém acalmar-se, como num vago adormecimento. Ao vê-la assim sossegada, encaminhou-se para a porta e, fechando-a cautelosamente, enfiou pelo corredor em direção aos aposentos do genro. Estacou à entrada, com uma grande palpitação, batendo de leve à porta. Dentro houve um rápido arras­tar de chinelos. O Henrique, que se erguia na­quele momento, envolvendo-se no chambre, cor­reu a abrir. O visconde precipitando-se pelo quarto atirou-se-lhe nos braços, exclamando subitamente, num tumulto de palavras:

— Meu filho, acaba de suceder-nos uma gran­de desgraça! A Titina abandonou-nos... E lá se foi com um homem, nem se sabe para onde!... Quem havia de dizer!... Isto é a maior das tor­turas, é a nossa desonra!...

E apresentou-lhe a carta, que tinha toda amar­rotada nas mãos.

O Henrique, muito pálido, atônito, sem com­preender bem o sentido daquelas palavras, que lhe pareciam de um louco, recuou alguns passos, tomou o papel e começou a ler febricitantemente, numa sofreguidão ansiosa de saber o que nele estava escrito. Ao terminar a leitura, lívido como um morto, fixou por um instante o velho, com os olhos desmesuradamente abertos, cheios dum bri­lho estranho. Quis murmurar uma palavra, mas a língua se lhe enrolou na boca. Ergueu os bra­ços de repente, no gesto trágico de alguém que recebe de chofre uma facada, e, dando alguns pas­sos cambaleantes, caía de bruços sobre o leito varado, numa angústia suprema!...

O visconde, vendo-o assim aniquilado, aproximou-se do leito e entrou a dizer-lhe frases de con­solação. Mas D. Genoveva despertara do seu adormecimento, em grandes gritos lacerantes. E o Chuy, atarantado e aflito, abandonou logo o genro, correndo a acudir à esposa...

O palacete não se abriu mais desde então; e em todo o fidalgo bairro de Botafogo, como nas rodas conhecidas da família. quer na rua do Ou­vidor, quer em outros pontos da cidade, não se fa­lava noutra coisa senão na fuga de Ernestina com George Marcial a bordo do City of Rio de Janeiro, que a essa hora ia já em pleno mar, em rumo da América do Norte.

 

XVI

Justamente ao instante em que o Chuy e a esposa recebiam a dolorosa notícia de que a filha abandonara o lar, o Coleridge, depois de longas evoluções pela baía, ferrava o alto latino atra­cando ao costado de ré do paquete americano. Apenas os croques de aço uniram à escada a pe­quena embarcação, George e Ernestina subiram para a tolda. No portaló encontraram o imediato de bordo que os recebeu, todo afável, por entre a aglomeração dos passageiros de primeira classe, que entregavam os seus bilhetes e assis­tiam ao ruidoso arrumar das bagagens. Não se detiveram porém, enfiando em seguida para o sa­lão da câmara, afim de descerem ao camarote. Aí esbarraram com o comandante Murray, a quem o Comodoro apresentou Ernestina.

Após as primeiras palavras trocadas, o jovial marinheiro yankee, na alegria daquele feliz en­contro com o seu amigo Marcial, convidou-o e à moça a acompanharem-no até ao seu camarim para uma taça de champagne. George escusou-se delicadamente, dizendo que precisava assistir à acomodação da bagagem no camarote e dar as últimas ordens à companha do cutter. Murray desceu então com ele, dando o braço a Ernestina cujos olhos, através o espesso véu que trazia, mostravam-se ainda inflamados da longa ma­drugada de vigília e choro a bordo do Coleridge. À porta do camarote deixou-os, dizendo-lhes que “dispusessem dele como entendessem e descul­passem, porque tinha de ir atender do passadiço às manobras da partida”.

Apenas entrou no pequeno compartimento, Ernestina atirou-se sobre uma das cabines e, er­guendo nervosamente o véu, rompeu a soluçar baixo, as mãos agarradas às de George que se sentara a seu lado, beijando-a e acarinhando-a com extremos.

Em pouco o vapor arrancou e os balanços do mar alto entraram a perturbar Ernestina com as angústias do enjoo.

Dedicado e sincero na sua grande paixão, o Comodoro não se tirou mais de ao pé dela se­não no porto da Bahia, onde, às primeiras horas de ancoragem, subiu até à tolda a comprar frutas e consagrar alguns momentos de palestra ao seu velho camarada, o capitão Murray.

Na travessia para Pernambuco, e daí ao Pará, a moça, já mais acostumada aos balanços de bordo, pela manhã, e à tarde, a instâncias de George subia com ele até ao vasto salão da câmara. Estava agora mais resignada e conversava jovialmente com o imediato e o comandante, que, quando não se achavam de quarto, vinham para ali confabular com eles, por horas e horas.

De Belém por diante a viagem começou a ter para ela atrativos e encantos inteiramente novos e que davam como um brilho a mais ao seu grande amor por George, que um instante só lhe não deixava de prodigalizar as doçuras e carícias do seu profundo devotamento. As estreitezas do steamer, e aquela convivência quase íntima com marinheiros e passageiros que se entreviam e se encontravam numa plebeia mistura de multidão, a todo instante e por toda a parte, à mesa, no sa­lão, nos corredores dos camarotes e sob os toldos do tombadilho; tudo isso que a princípio lhe pa­recera tão desagradável, e antipático, oferecia-­lhe agora impressões tão originais e suaves que, muitas vezes, dizia a George que iria de certo ex­perimentar uma tristeza quando chegassem aos Estados Unidos e tivessem de deixar o vapor. O Comodoro, então, satisfeito e radiante, por vê-la sentir-se feliz e já também identificada com aquilo que fora sempre para ele o maior ideal na vida, prometia-lhe que, apenas realizassem a sua união “legal” em Nova York, e completassem a sua longa visita às velhas nações da Europa, sairiam a percorrer as demais paragens do globo, até que as saudades da pátria os reconduzissem a repou­sar para sempre no Brasil.

A travessia até Havana, único porto das An­tilhas onde tocava o paquete, correu, como no princípio da viagem, sob ventos favoráveis e uma continua bonança. Mas dois dias depois, nas al­turas de Delaware, sobreveio um desses frequen­tes temporais que no inverno açoitam subversivamente todo o litoral da América do Norte, co­brindo-o de densos nevoeiros sinistros. Foi uma noite de apreensões e angústias para os passa­geiros do City of Rio de Janeiro, que, se não fora a perícia do seu comandante, teria sido lançado aos escarcéus da costa ou, quem sabe, ao fundo torvo do mar.

O ciclone caiu de tal modo que não deu tempo de se fecharem as gaiutas e se ferrarem os grandes toldos do convés; de sorte que estes, aos primeiros pegões furiosos, se abriram de meio a meio, jogando às bordas do steamer grandes an­drajos de lona, que tremulavam às rajadas numa sinfonia atroadora. Rolos de mar alterosos, fer­vendo em cachões, vinham embater contra o casco que saltava sobre eles em balanços formidandos.

Era pela meia noite. O Comodoro, que se achava no passadiço acompanhando a navegação ao lado do comandante Murray, preocupado com Ernestina que ficara tranquilamente a dor­mir no beliche, desceu a correr em direção ao camarote. Ia a transpor a porta, quando um enorme vagalhão de través galgou de repente a popa, num formidável choque d’águas sobre a tolda. Voltou presto ao corredor para ver se a terrível vaga teria invadido as gaiútas e o salão. Verificando, porém, que tudo permanecia na mesma, enfiou-se no camarote, onde já encontrou Ernestina sentada sobre o beliche, a gritar por ele, num estremunhamento, muito pálida e as­sombrada com o rugir da tormenta.

Nos outros camarins os passageiros que dor­miam haviam acordado subitamente, espantados também com o fragor do vagalhão. Um sussurro grosso de vozes ergueu-se então, como num pressentimento de naufrágio; e logo após, apesar dos trancos violentíssimos do vapor, cada um, armado do seu salva-vidas entrou a desfilar em direção ao salão alto da câmara, que duas grandes lâmpadas elétricas alumiavam frouxamente com a sua luz doce e branca.

Aí todas as grandes vigias quadradas esta­vam fechadas, os grossos vidros corridos, através dos quais se viam, lá fora, largos trechos da tolda que os relâmpagos aclaravam fantastica­mente, num instantâneo chamejar sulferino. E na borrasca que aumentava violentamente, as cristas das ondas em fúria, crescendo em píncaros terríveis que o vento inflava sem cessar em monstruosas cordilheiras líquidas, vinham que­brar-se, por vezes, em empuxões de maremotos satânicos, sobre a proa de steamer. Lençóis fos­forejantes de prata erguiam-se então às amura­das, cobrindo-as de um bordo ao outro de uma es­pumarada alvíssima.

George, que conhecia bem aquelas paragens agrestes, apesar de sua calma de leão do oceano, vendo o recrudescer do ciclone, resolveu subir também para o salão onde, em caso de sinistro, poderia melhor embarcar com Ernestina num dos escaleres do navio, para uma tentativa qual­quer de salvação. E, sem dar a perceber à moça o perigo que os ameaçava, agarrou-a ao colo por causa dos grandes balanços e tomou pelo corredor de meia-nau para a escadaria da câmara.

Logo à entrada do salão encontraram os oi­tenta passageiros de primeira classe que levava o vapor, com a família espanhola que embarcara em Cuba e cujas moças tinham-se ligado muito à Ernestina, apenas trocaram as primeiras pala­vras na tolda ainda no porto de Havana. Foi uma alegria para essa boa gente o aparecimento de Ernestina e de George, pois apesar de acostuma­dos a constantes viagens por aqueles mares, es­tavam todos no maior dos temores. Enquanto a moça se aninhava entre as outras, o Comodoro foi dar uma olhadela ao tempo a uma das vigias que ficavam sobre as duas escadas da câmara. Mas voltou imediatamente para junto da família conhecida, cujo velho chefe, cavalheiro D. An­tonio Fernandez, rico negociante da Havana, co­meçou a interrogá-lo longamente sobre o tempo­ral e as condições de navegabilidade do steamer, que não conhecia porquanto era a primeira vez que nele viajava.

George, depois de lhe gabar as qualidades do navio, que era novo e muito bem construído, oferecendo a maior segurança, mesmo nas piores condições de tempo e mar, entrou a falar detalha­damente sobre os temporais em toda a costa americana do Atlântico. E citava casos de nau­frágios trágicos assinalados nos anais marítimos de todas as nações, narrando igualmente fatos de experiência própria ocorridos nas viagens que fizera aos Estados Unidos, quando oficial efetivo da armada britânica. Uma vez, por exemplo, demandava ele Nova York, como ofi­cial encarregado da navegação a bordo do cou­raçado Durham quando uma noite, altas horas (tal qual como naquele momento) caíra um tem­poral súbito, que os desviara completamente do rumo obrigando-os a uma capa seguida por quase uma semana. E tal era o furor dos ventos e va­gas que instantes houve em que o navio parecia querer soçobrar. A companha, ao fim de três dias de luta, ficara exausta e sofrera a perda de al­guns homens. Depois, a temperatura regelara de tal modo que fora preciso descerem até ao Goolf-Stream para refazer-se a maruja e voltarem a ter­minar o cruzeiro...

Ao ouvirem falar o Comodoro muitos passa­geiros acercaram-se curiosamente, encantados da­quela palavra fácil e técnica que pintava tão bem as grandes cóleras oceânicas: e isto foi como uma admirável distração para aquelas almas, a quem o perigo iminente arrebatara de toda a alegria e o sabor da existência.

Mas as horas passavam. O ciclone, cansado da sua fúria assoladora, amainava pouco e pouco. O esfrolar desmanchado das ondas serenava também. O steamer, já avançando mais livre e fol­gado no torvelinho espumoso, melhorava os seus balanços. E a primeira claridade azulada da au­rora invernal despontava a leste, na imensa li­nha do longínquo horizonte.

Daí a instantes, servido o café e o excelente chá da manhã, as portas da câmara, que haviam sido fechadas a chave e calafetadas por causa do embate das ondas, foram abertas de par em par, por ordem do comandante. Os passageiros espalharam-se uns em alegres grupos pal­radores pelos largos bancos da tolda, enquanto outros se debruçavam aos balaustres da borda a olhar o descampado infinito do mar ainda espu­moso do ciclone.

George e Ernestina tinham subido para o pas­sadiço, onde estavam o comandante, o piloto de quarto e o homem de governo. E, ao passo que a moça se entretinha a olhar os primeiros bandos de gaivotas alvíssimas que chegavam em revoa­das alacres a escoltar o vapor, o Comodoro, de pé a um recanto das amuradas conversava inte­ressadamente com o Murray sobre os efeitos da tormenta, a bordo, naquelas seis horas de nave­gação.

E o City of Rio de Janeiro, corria airoso nas ondas. Já então para os lados do oeste, através do nevoeiro da costa que o vento do norte esga­zeava aos poucos, se debuxava vagamente a som­bra úmida das montanhas de Filadélfia e de Trenton, ondulando para o sul. Pela proa, numa distância de trinta milhas, mais ou menos, esten­dia-se, ainda indeciso nas águas, o relevo recortado de rochas da ponta meridional da ilha de Ma­nhatan. E o circular espelho verde-escuro da baía de Nova York cintilava placidamente, co­berto de uma poeirada de ouro, à embocadura do Hudson.

 

XVII

Uma semana depois, num domingo, o Chuy e a esposa, acompanhados dos velhos criados que havia tantos anos os seguiam, e que eram quase como pessoas da família, deixavam o seu palacete e, cercados de um numeroso grupo de parentes e amigos, na maior parte membros proeminentes da colônia rio-grandense na Corte, apeavam tris­temente do seu landau junto ao cais do Pharoux e tomavam um bond marítimo que, apenas os re­cebeu e a nobre comitiva, se fez ao largo na baía, em demanda do Santos, num dos paquetes da Companhia Nacional de Navegação a Vapor, que já fumegava no poço, em frente à fortaleza de Villegaignon pronto a cortar o oceano para as províncias do Sul.

D. Genoveva acomodara-se junto ao espe­lho de popa na pequena embarcação, rodeada ca­rinhosamente pelas suas íntimas as senhoras Soa­res, Maciel e Martins, a que se seguia, em ordem de colocação, o bando chalrante das filhas, uma constelação de moças inefáveis que faziam a great atraction das festas e reuniões familiares dos aristocráticos salões fluminenses da época. Atacado no seu rico vestido de gorgurão negro, como num luto pesado, a pobre senhora parecia mais abatida que nunca sob a sua imensa dor, que por vezes lhe inundava os olhos de lágrimas e lhe sacudia o peito em soluços. Mais para a proa ficava o grupo dos homens, deputados e senadores, entre os quais se destacava a figura alta e veneranda do Chuy, cujo rosto, mais pálido e envelhecido agora, revelava bem toda a mortificação e angústia que lhe dilaceravam a alma e que lhe minavam, decerto, os últimos dias da existência, já sobre­carregada pelos seus oitenta anos.

Apesar do terrível infortúnio que esmagava a ilustre família que iam ali acompanhar até ao vapor, naquela retirada de derrota à província natal, os amigos não cessavam um instante a ani­madíssima conversação em que se haviam empe­nhado desde que pisaram a lanchinha. Semelhante conversação versava quase exclusivamente sobre política; e nas rápidas controvérsias que se acen­diam por vezes abafava não raro a palavra de todos, o vozeirão tribunício do Silverio Martins, o ditador político do Rio Grande do Sul, que, como tal, e com o seu descomedido orgulho íntimo de estadista que o fazia reputar-se um Bis­marck ou um Gladstone, não permitia prevale­cesse naquela roda, como em toda a reunião onde acaso se achava, senão o seu verbo, a que procu­rava dar sempre a maior intenção e força oratória. O visconde porém que muitas vezes o contrariara em outros momentos, nem o escutava, alheado a tudo e a todos, só entregue à sua pungência íntima, que mais lhe vergava agora a venerável cabeça encanecida. E entre todos do grupo unicamente um homem, baixo e delgado posto que ro­busto, com uma fisionomia pálida e simpática, dando-lhe menos idade do que a que verdadeira­mente tinha, e ornada de um pequeno bigode negro, por baixo do qual lhe bailava nos lábios o eterno sorriso cético e desdenhoso que lhe era peculiar — afrontava o colosso da eloquência e da retórica, crivando-o de vagas mas certeiras iro­nias e sarcasmos. Era o Fernando Maciel, depu­tado por Pelotas, onde o seu prestígio político dominava desde muito em contraste ao do Mar­tins; o Fernando Maciel, estadista reformador e hábil, disciplinado no mais puro liberalismo inglês, e que fora ministro do Império no gabinete La­fayete. Estes golpes de réplica do deputado pe­lotense, pela sua serenidade e eficácia, descon­certavam frequentemente o Bismarck dos Pampas, cuja voz aumentava então de ressonância, aba­lando o tôldo verde da lancha e rolando como um trovão sobre as águas. Não obstante a conversa­ção prosseguia, renhidíssima...

Mas a ligeira embarcação atracava já ao cos­tado de ré do paquete. E logo todos se ergue­ram no paneiro, dando a mão às senhoras e gal­gando, após elas, a escada em direção ao portaló, onde se aglomerava uma multidão de passageiros e outros, à cuja frente se destacava, ao lado do comandante de bordo, o vulto agigantado e atlético de um almirante, o Visconde de Framandahy, camarista do Imperador. O velho dignitário da corte, cercado de outros personagens áulicos, adiantando-se, abraçou demoradamente o viscon­de, dizendo que ia levar-lhe as suas despedidas e mui particularmente as de Suas Majestades. O Chuy, profundamente comovido, numa voz trêmula e surda, agradeceu, em seu nome e no de sua esposa, a alta gentileza dos Soberanos, e, com um dos braços cingindo ainda o seu grande amigo e comprovinciano, a quem as maiores glórias na­vais da pátria abroquelavam imortalmente, sa­grando-o o seu primeiro capitão-de-mar — o foi conduzindo para o vasto salão da câmara, onde, após rápida e íntima conversação, silenciosos e com os olhos mareados de lágrimas, trocaram um outro abraço, mais triste, mais estreito e solene, porque era talvez o derradeiro na existência já quase finda de ambos!

Em seguida, o almirante, acompanhado do seu séquito, encaminhou-se para a escada que, con­forme os seus velhos hábitos marujos, desceu ainda destramente, desaparecendo com todos sob o toldo verde-claro, a sanefas de damasco da mesma cor, da esguia e magnífica galeota de guerra em que viera, a qual largou imediata­mente, tirada à larga voga dos seus vinte e qua­tro remos, em direção ao Arsenal de Marinha.

Os passageiros, atraídos ainda pela figura nobre e veneranda do insígne marinheiro, relíquia viva e preciosa dos tempos heroicos do Império, debruçados da borda seguiam com o olhar a singradura veloz da pequena embarcação, que se perdia agora por entre os cascos dos couraçados de guerra numa esteira ondulosa de espuma...

Na câmara, como a viscondessa se sentisse um pouco incomodada, o visconde desceu com ela para o camarote, seguindo-os tão somente os parentes e amigos mais íntimos, enquanto as moças rapazes se dirigiam para o tombadilho, aban­cando sob os frescos toldos de lona, a palrar alegremente, enlevados no imenso espetáculo da baía coalhada de navios e no admirável esplen­dor da manhã.

À popa, num recanto de balaustres, em uma roda de negociantes que, terminada a sua excur­são político-comercial à Corte, recolhiam agora ao Rio Grande, o Silvério Martins discursava, fa­zendo vibrar muito alto a sua palavra rumorosa flamante, numa grande exposição da próxima volta ao poder do partido liberal. E dizia: O atual presidente do conselho, o João Artur, com o seu bom senso administrativo — não se lhe podia ne­gar — fizera o 13 de Maio; mas não obstante ha­via de cair, dentro em breve, com toda a sua gente. O partido conservador achava-se esgotado desmoralizado pelos tremendos escândalos em que se envolvera com a célebre concessão Soyo e outras, e os liberais aí vinham, possantes e bem orientados, para abrirem novos horizontes à Pátria. O partido liberal, nas fecundas reuniões do seu grande congresso, planeara definitivamente todas as reformas de que carecia a nação, afim de se tornar esta verdadeiramente superior, alinhando-se entre as primeiras potências europeias e os próprios Estados Unidos. Essas sábias reformas, já em parte vulgarizadas e tratadas pela Tribuna Liberal, eram a Nova organização das Municipalidades, A Federação das Províncias e muitíssimas outras... A subida dos liberais era portanto ine­vitável, pois que viriam eles, além de tudo, asse­gurar o domínio do Terceiro Reinado. Deixassem ladrar a “cainçada” republicana, exploradora da boa-fé das classes armadas e do despeito furioso dos escravocratas feridos pela Lei Áurea! Essa gente que andara a pregar loucamente a demo­cracia sob outro regime, quando o Império já a realizava de uma maneira talvez inigualável entre os demais países sul-americanos, que o adoravam aliás como o Chile, por exemplo; essa gente, es­tava certo, havia de transformar-se e bater palmas às novas ideias liberais, que iam envolver todo o Brasil no clarão de uma imensa aurora de pro­gresso social! Depois o chefe, o pioniere do par­tido ia ser, desta vez, um homem de gênio, um financeiro de primeira ordem, um consumado es­tadista, um vulto em nada inferior aos Cavour aos Meternich e aos Giers — o conselheiro Assis Afonso. Seria este quem, à frente da política liberal, viria iniciar uma nova fase de evolução sociológica no Império, fazendo-o entrar no cami­nho da verdadeira grandeza e da verdadeira feli­cidade...

Mas um grosso silvo metálico estrugiu de re­pente para os lados de proa, dando o sinal da partida. O grande tribuno cessou logo o seu dis­curso e, despedindo-se com um rápido abraço fra­ternal a cada um, passeou em de redor os seus óculos doutorais, procurando a família e os com­panheiros. Encontrou-os em meio à aglomeração de pessoas que enchiam o portaló, e, gritando-lhes que aguardassem um instante, correu a abraçar o visconde e a esposa. E daí a minutos o Silvério Martins volvia ao tombadilho, dirigindo-se logo para a escada onde os seus desciam já em deman­da do bond marítimo.

Os botes e lanchas a vapor, já reembarcados os que tinham de voltar para terra, num ruído de croques batendo o costado e envolvidos numa espumarada levantada pelos hélices e remos — ciavam, tocavam avante, viravam, aproando e deslizando para o cais. E o paquete, as amarras a pique, numa grande trepidação, arrancou para a barra, lançando pela alta chaminé negra uma espessa e longa voluta de fumo que se perdia popa em fora...

Cinco dias passados, depois de haver tocado em Santos, Paranaguá e Desterro — portos de es­cala — o vapor ancorava em frente à cidade do Rio Grande, onde a parentela e os amigos, mais numerosos que os da Corte e mais sinceros que eles na sua ingênua sentimentalidade provinciana, correram a receber os viscondes, que desem­barcaram, como sempre quando volviam à terra natal, por entre imensa multidão de conhecidos e curiosos de toda a espécie, seguindo em carros particulares para a casa do chefe político local.

Apesar do carinho e solicitude dos parentes e amigos, e dos rogos contínuos de todos para que se demorasse na cidade ao menos aquela semana, o Chuy, surdo a tudo, trabalhado somente pela sua angústia e num completo desengano do mun­do — ativava os feitores e peões que o tinham ido esperar, afim de que preparassem as bagagens e cargas para a partida no outro dia, pela manhã, para a sua charqueada, que o aguardava, como um asilo querido, entre as risonhas planícies e colinas de S. Miguel, junto às nascentes do hu­milde arroio de onde lhe viera o título e que lá corria tranquilamente, límpido e pitoresco como nos tempos saudosos da sua meninice, na fronteira meridional do Brasil. Era ali, naquela estância feliz onde nascera, que ia agora encerrar para sempre os seus dias, tendo unicamente a conso­lá-lo, como uma benção do céu, a santa compa­nheira de toda a sua vida, relíquia suprema dos seus afetos, que venturosamente escapara imaculada à tirania cruel do destino!

Efetivamente, no outro dia, pela madrugada, em duas grandes carruagens de viagem, e segui­dos da escolta montada dos feitores e peões, lá partiam o visconde e a esposa, em demanda do seu ermo solar do Chuy.

 

XVIII

George e Ernestina, apenas desembarcados na imensa cidade, foram hospedar-se no célebre hotel de Buckinghan, à Quinta Avenida, em frente ­ao Parque Central.

Era no começo do verão. Nova York, a peque­nina cidade neerlandesa de outros tempos trans­formada agora pela vertigem do progresso Iankee numa outra Londres universal, estadeava-se ale­gremente, sob um céu claro e cheio de sol, à bei­ra do seu golfo azulado. Vastamente, como no es­tranho impulso de abranger todo o estado, a na­ção inteira e a própria América, à maneira do espírito da raça anglo-saxônia, estendiam-se à rosa-dos-ventos os seus imensos arrabaldes, que são como outras tantas grandes cidades divididas pe­las faixas coleantes do Hudson: Jersey-City, Brooklyn, Long-Island-City, Hoboken... Tudo isso formava como um oceano de casas, a dezenas de andares, edificadas com primor de arquitetura e desdobrando-se em monstruosas vagas simé­tricas delimitadas pelas avenidas e squares, onde se avolumavam, aqui e ali, monumentos admiráveis, vazados em todos os estilos, feitos de todos os mármores. E manchas largas de verdura ren­dilhavam tremulamente no céu os topes altos dos ramos, amenizando, a espaços, numa decoração campesina, a mole alva das casas. Montanhas ondulavam ao longe, numa linha recortada e saudosa...

Os primeiros dias que se seguiram ao da che­gada, não obstante a curiosidade que tinha de percorrer a cidade, Ernestina não arredou pé do hotel, ainda meio tonta da viagem e do torvelinho violento das emoções em que andara.  Estava um pouco pálida e emagrecera muito naquelas três semanas de mar. E embora o Comodoro a cercasse de toda a sorte de carinhos, mostran­do-lhe incessantemente uma dedicação e afeto que a enlevavam na sua grande paixão por ele — os seus belos olhos negros continuavam em­panados pela nostalgia e, às vezes, por um ne­voeiro de lágrimas, que a acometia quando a lembrança viva da família, tão descaroavelmente abandonada, lhe apunhalava a alma.

Nesses momentos doentios, d’envolta com as venerandas imagens de sua mãe e de seu pai, que viviam indelevelmente no seu espírito, nim­badas por uma auréola sagrada, surgia-lhe não raro, na imaginação, o perfil triste e lívido do es­poso, que ela não amava, mas que, sem saber como, começava de lhe inspirar agora, vagamente, um sentimento inquietante de ternura e piedade. Vinha-lhe então um arrependimento do que fizera e, simultaneamente, um desejo excru­ciante de, esmagando o seu amor numa resolu­ção salvadora e suprema, abandonar George para sempre e voltar à Pátria, à quietitude abençoada do seu lar e à afeição incomparável dos seus. Mas essa ansiedade de reparação da sua falta não durava mais que um instante, e só a pungia nes­sas elétricas intermitências do seu tempera­mento de histérica, vencido e acorrentado fun­damente à uma eterna e irresistível vibração pas­sional. Um olhar, uma palavra ou uma carícia do Comodoro faziam-na esquecer para logo tais ideias sentimentais, que, posto voltassem frequen­temente ao seu cérebro, na lembrança das coisas passadas, sem que ela mesma o sentisse, pouco a pouco se desvaneciam, com a distância e o tempo que tudo sepultam e apagam...

Outra coisa que a trazia enclausurada no ho­tel era o seu “casamento”, pois a contrariava e humilhava muitíssimo o ser apresentada falsamente por George como sua esposa, conforme sucedera a bordo e nos portos estrangeiros onde tocara o City of Rio de Janeiro. Além de isso aquela situação de amante, embora toda a gente ali a ignorasse, era intolerável à sua dignidade e às suas crenças religiosas. Por isso, logo que pisara o hotel declarara a George que não sairia para parte alguma sem que ele, como lhe prometera, legalizasse primeiro a sua união.

O Comodoro que, por legítimos escrúpulos de homem superior e por honorabilidade própria outra coisa não queria, porquanto na sua paixão depunha os mais altos interesses de toda a sua vida, apenas descansou o dia da chegada saiu a tratar dos papéis para o seu enlace legal. Assim, daí a três dias, na presença de quatro testemu­nhas, escolhidas de entre os seus mais íntimos ami­gos, o ato civil do seu consórcio com Ernestina, se realizava, modesto e sem alarde, perante um dos juízes de casamento, num dos bairros da grande cidade. Coroou a cerimônia uma alegre excursão marítima, à tarde, em torno à ilha de Blackewell's e um jantar íntimo, à noite, numa das ricas salas particulares do Buckingham Hotel.

Nessa noite, apenas os convidados se despe­diram, Ernestina, recolhendo com George aos seus aposentos, sentou-se à secretaria a escrever uma longa carta à sua mãe, na qual, como na que lhe deixara ao abandonar o lar, começava por pedir perdão da “loucura” praticada, “loucura nascida exclusivamente da grande paixão que votava ao Comodoro”. Depois passava a narrar-lhe minu­ciosamente a viagem, tão bonita a princípio mas por fim sacudida pelo terrível ciclone que assaltara o vapor nas costas de Delaware. Prosseguindo, dizia-lhe as torturas das saudades, as contínuas lembranças de todos desde a partida da casa pa­terna até à chegada àquela imensa cidade. Con­tava-lhe ainda, num tumulto de palavras, traduzindo bem a alegria da sua alma ao momento, o seu consórcio com Marcial, naquela tarde, em presença das autoridades judiciais de Nova­ York... E concluía pedindo à mãe lhe deitasse a sua benção como de antes, solicitando o mesmo do pai; e que lhe escrevessem, enviando suas cartas para Paris onde devia achar-se brevemente, pois embarcaria para ali com George por aquele mês...

A carta não continha a menor referência ao “outro”, ao seu verdadeiro marido, o infeliz dr. Henrique Teixeira que, naquela mesma noite e àquela mesma hora, em Teresina, numa mo­desta casa situada à rua do Imperador, em com­panhia da velha mãe, a cabeça amparada ao seu peito, torturado e vencido pelo grande afeto que ainda votava à esposa adúltera, torcia-se, nas ânsias de uma hemotise, sobre a estreita cama dos tempos de solteiro, onde agora o prostrava mor­talmente a tísica. O pobre rapaz embarcara para a sua província natal uma semana depois do seu terrível infortúnio, já tão doente e tão fraco que fora carregado, em braços, até bordo, por dois dos seus mais íntimos amigos.

Quinze dias depois da remessa da carta, per­corrida a babilônia americana, de Barenswood a Flatsbusck, de Hordken a Bedford, vistos rapidamente os seus principais monumentos e curiosida­des — o Comodoro e Ernestina partiam, a bordo do Wilhelm II, para Southampton, de onde passariam, após pequena demora em Londres, para o primeiro porto da França e daí para Paris. Atraía-os assim à Europa a Exposição de 1889, que ia já em pleno esplendor, aglomerando numerosamente na vasta e festiva capital do Mundo Latino multidões de visitantes de todos os pontos do Globo.

 

XIX

Em Paris, passadas algumas semanas no Ho­tel Universal, George, que tencionava fixar ali o seu ninho, embora pretendesse, encerrada a Expo­sição, iniciar o seu largo plano de constantes via­gens a todos os países da Europa, e talvez mesmo a alguns mais longínquos — em África, na Ásia ou na Oceania — foi instalar-se com Ernestina num pequeno mas opulento palacete que com­prara nos Campos Elísios.

O prédio, mobiliado com arte e sobriedade à maneira britânica, que tão sensatamente harmo­niza o confortável com o estético, sem cair na profusão das alfaias e bibelots que às vezes atin­gem ao ridículo e ao exótico entre os povos lati­nos, talhava-se em dois andares e dispunha de excelentes apartamentos, em meio aos quais so­bressaíam pelo seu luxo e riqueza o salão de recepções e a sala de jantar, dando ambos para um jardim bem cuidado, onde uma cascatinha cantava entre frondes altas de tílias e moitas de arbustos floridos. Em cima, no segundo pavimento, os aposentos íntimos de George eram verdadeira­mente principescos. No pátio interior havia um custoso e pitoresco aviário e uma estufa cheia de plantas tropicais, lembrando vagamente o Brasil. Ao fundo, à conveniente distância, ficava a cavalariça onde George acomodava o seu faeton e o seu dogcar, bem como as finas parelhas de raça que mandara vir de Londres.

Na sua nova instalação Ernestina deliciava-se, tanto mais quanto o Comodoro, afetivo e dedicado, deixara para sempre os seus hábitos de grande flâneur e mundano, consagrando quase todos os instantes da sua vida à exclusiva adoração dela, que soubera encerrar-lhe o coração, outrora tão inquieto e volúvel, no círculo de ouro das afeições eternas. E assim, unidos e felizes, no seu noivado que parecia não dever findar se­não pela morte, colhiam e gozavam todas as flo­res do bem-estar humano, no seio paradisíaco da maravilhosa capital, entre as sinfonias emba­ladoras da civilização.

Os primeiros tempos de este estabelecimento, George votou-os em satisfazer a viva e justa cu­riosidade de Ernestina de visitar e admirar os monumentos e magnificências desse incomparável Paris que fora sempre o ideal dos seus sonhos de moça. Por essa forma, em dois ou três meses, conheceu ela tudo quanto o esforço e o progresso humano apresentam aí de mais notável, desde o palácio das Tulherias ao Pantheon. Esses dias deram-lhe a mais agradável impressão pelos aspectos sempre novos e variados de tudo que via. O frêmito suave, a consolação e o enlevo, embora fugidios, que as coisas originais e nunca vistas trazem ao espírito de quem as contempla, senão conseguiram adormecer atenuaram em grande parte as suas tristezas e saudades. A lembrança dolorosa da família deixada ao longe, sob o peso da desventura que ela lhe causara com o seu abandono, já raramente a assaltava no tumulto de impressões que lhe dava, a toda hora, Paris. Depois o repouso e expansão de alma que lhe ha­viam proporcionado o seu novo enlace e a longa carta enviada à sua mãe antes de deixar Nova­ York, carta que lhe dava a esperança e crença íntimas de que todos os laços de família se reatariam apenas chegasse ao seu destino — muito con­corriam também para a tranquilidade em que se via. E completava tudo isso o sentir-se agora com “uma posição definida” pois que tinha já a sua casa, o seu novo lar, e George não era mais o “amante” mas o “bom maridinho “, vivendo só para ela e por ela, numa dedicação que era a sua maior felicidade.

Esta grande ventura de Ernestina prolongou-se ainda com as festas arrebatadoras, profusas e excepcionais da Exposição, que parecia ser a suprema apoteose do século e do gênio latino, as­sinalando a mais alta conquista do Progresso e da Civilização. E os dias, agora, como nos primei­ros meses, tornavam-se para Ernestina de um ar­rebatamento e delícia indizíveis, porquanto Paris e toda a França se expandiam e festinavam, des­lumbrando as nações cultas do Globo, sob o domínio de Carnot, no triunfo incomparável da Terceira República.

Nessa festa universal o que mais prendia a atenção dos viajantes estrangeiros, dos nacionais e particularmente dos Parisienses, que enxameavam desde o amanhecer até alta noite no Campo de Marte, era a prodigiosa invenção e execução da engenharia moderna, consubstanciada nesse pasmoso monumento da Torre Eiffel. Toda de aço e com os seus trezentos metros de altura, nas suas quatro plataformas (ocupadas por hotéis, botequins, confeitarias e seções de jornais) que di­minuíam gradativamente de âmbito até ao pe­quenino pavilhão culminante, sob cuja flecha de ouro tremulava, dia e noite, o glorioso estan­darte francês desdobrado vitoriosamente no Azul — a torre gigantesca tinha um destaque à parte, em meio a todas as seções, aliás extraordinárias, da Exposição, e suplantava-as, pode dizer-se, com o seu arrojo, singularidade e beleza de linhas. Além de isso, a poderosa construção, tornava-se desejada e atraía pelo maravilhoso golpe de vista que daí se gozava, dominando Paris inteiro até à linha dos subúrbios longínquos e das forti­ficações. Desse encantador varandim, trepidando aos ventos e topetando o céu, a vista do observa­dor experimentava um verdadeiro deslumbramento no panorama majestoso da imensa capital, feita, só de arte e beleza, e estendendo-se num círculo de milhas e milhas, como um largo e grandioso mapa em relevo.

Fora esse varandim que constituíra desde logo a predileção de Ernestina, que aí passava fre­quentemente algumas horas, pela manhã ou pela tarde, embevecida com o imponente espetáculo da babilônia gaulesa, achatando-se para todos os lados, na sua infinita casaria coroada de monu­mentos, e atravessada pela faixa flexuosa do Sena, o rio amado dos Parísios, o velho e lendário Se­quana. E, esquecida das coisas passadas e só en­tregue àquela atualidade feliz, cercada de todos os confortos e da alta e leal afeição de George, exultava de ventura aos afagos do seu novo des­tino...

Mas, uma noite, toda essa felicidade mudara. Recolhia da Ópera com George, onde fora assis­tir à Walkyria, quando, ao penetrar nos seus aposentos, encontrou, uma carta tarjada de luto e pro­cedente do Brasil. Ao ler o sobrescrito, traçado numa letra trêmula e confusa, que reconheceu ser de sua mãe, empalideceu vivamente e, no te­mor de algum acontecimento sinistro ocorrido na família, vacilou em abri-lo e quedou-se a re­volvê-lo um instante nas mãos que tremiam. E uma grande palpitação agitava-a à ideia, que lhe atravessou para logo o espírito, de que aquela carta lhe trazia, talvez, a notícia esmagadora da morte do pai. Mas instantaneamente um outro pensamento surgiu-lhe, e este parecendo-lhe a in­teira verdade: o falecimento do marido, o Hen­rique, que, doente como estava, não pudera de­certo resistir ao abandono em que ela o deixara. Então, mais tranquila, decidiu abrir o envelope, e rasgou-o nervosamente. Às primeiras linhas, porém, desatou num pranto. Tinha sido, com efeito, seu pai que morrera repentinamente, uma tarde, ao voltar do campo, na sua charqueada do Chuy...

Estacou um instante, a murmurar por entre soluços: — “Pobre pai! Pobre pai!” E tal aconte­cimento lhe parecia impossível.

Mas, ansiosa por saber tudo, fazendo um su­premo esforço para reprimir a infinita e dilace­rante angústia que pouco a pouco a avassalava, soluçando sempre, prosseguiu na leitura da carta, correndo as linhas atordoada e convulsivamente, com um olhar desvairado. E ao chegar ao ponto em que sua mãe lhe dizia “que fora ela, sua fi­lha, a causadora de aquela desgraça”, e que em breve iria “fazer companhia ao marido”, porque não podia sobreviver por mais tempo a tantas desventuras — Ernestina deu um grito terrível e foi cair de bruços sobre o leito.

O Comodoro, que estava ainda a despir-se no gabinete de toilette, correu logo para o quarto; e, encontrando-a assim cabida e banhada em lágrimas, tomou-a nos braços e começou a beijá-la, perguntando:

— Que foi, querida? Que sucedeu?!...

Ela, num esforço, muito pálida e desfigurada, a voz entrecortada pelos contínuos soluços, mur­murou debilmente:

— Ai! George, foi meu pai que morreu! E fui eu a causadora da sua morte!...

E deixou rolar a cabeça sobre o ombro de Marcial que, ao vê-la assim, procurava consolá-la com toda a sorte de carinhos. E todo o resto do noite Ernestina passou-o ao colo dele, a chorar desesperadamente, como uma louca.

 

XX

Durante dois meses Ernestina não saiu de casa, fechada no seu luto pesado, em crises inter­mitentes de pranto. A morte do pai causara-lhe certamente profundo sentimento, porque ele fora sempre para ela dos maiores extremos e a ado­rara como louco, por ver naquela filha única o fruto sagrado da sua união, que durara quase sessenta anos de ininterrupta felicidade. Mas a dor suprema que a obrigava a enclausurar-se assim, num estranho desprendimento das alegrias do mundo, e que a trazia numa contínua e obcecada pungência, era não só o ter sido ela a “causa” da sua morte, como as esmagadoras palavras de sua mãe, dizendo-lhe na tristíssima missiva “que em breve iria fazer companhia ao marido, pois não podia suportar por mais tempo tantas aflições e desditas.”

Torturada por essa impressão dolorosa, avas­salava-a dia a dia uma profunda tristeza e tal mudez sombria e mórbida que nada conseguia amenizar, nem mesmo as carícias contínuas e a alta afeição de George que, conhecendo o gran­de abalo que ela sofrera e o seu temperamento de histérica, receava aquilo não viesse a termi­nar por alguma moléstia mental. Por isso, passa­dos dois meses, como semelhante estado, longe de qualquer atenuação parecia de agravar-se de momento a momento, resolveu, embora contrariando-a na sua obsessão doentia, levá-la a pequenos passeios pelos arrabaldes, visto experimen­tar ela agora uma invencível aversão ao tumulto dos boulavards e centros festivos de Paris. E con­citava-a a distrair-se, a viver, a gozar. Mas Ernestina se opunha, murmurando debilmente:

 — “Que não; não podia, porque uma angústia íntima a consumia sem tréguas desde que rece­bera aquela notícia terrível. Fora ela a causado­ra da morte de seu pai... Depois tinha um pressentimento secreto de que sua mãe dentro em pouco sucumbiria também... Não, não lhe falasse em divertir-se!...

E recairia na sua grande tristeza, no seu lon­go mutismo.

O Comodoro tornava-lhe então meigamente:

— Que se deixasse de tolices! O que sucedera era a coisa mais natural da vida. Seu pai não morrerá dos desgostos que ela lhe dera, mas da avançada idade a que atingira... Quanto às palavras da sua mãe não passavam elas, decerto, de uma expressão de profundo desalento e de dor pela grande perda sofrida... Que não se estives­se pois a consumir com pressentimentos insubsis­tentes, que não tinham razão de ser, irrealizáveis, impossíveis!... Tivesse fé em Deus, que, morto o Henrique, regressariam ao Brasil e ela veria de novo sua mãe, e seriam ainda todos três fe­lizes...

Diante de tais palavras, tão repassadas de afeto e carinho, Ernestina apenas sorria, vaga­mente enternecida, fitando muito — George com os seus belos olhos cheios agora de melancolia.

Ele, observando atentamente que o estado dela não melhorava, e até se agravava, com um emagrecimento e fraqueza assustadoramen­te progressivos, e temendo sobreviesse alguma moléstia grave e incurável que de repente a arre­batasse para sempre à sua paixão e à sua felici­dade— procurava convencê-la de que muito bem lhe faria a ela uma pequena viagem à Espanha, à Itália ou à Suíça. Mas Ernestina recusava-se obstinadamente, com o seu sorriso melancólico, que tanto inquietava a George pondo-lhe no espírito um pressentimento sinistro. No entanto, já não se escusava, como a princípio, a segui-lo em pequenos passeios pela cidade. O seu ponto predileto, à maneira das suas últimas visitas à Exposição, era o alto da torre Eiffel, onde passava agora longas horas, não palreira e alegre como (de antes, a apontar, borbulhante de graça, todas as curiosidades e belezas de Paris, mas a contemplar mudamente os longes enevoados do horizonte, onde os seus olhos se embebiam, mareados de lágrimas, como na nostalgia infinita de alguma coisa que parecia flutuar além, para os lados da pátria distante...

E os meses decorriam e ela sempre a defi­nhar, sem uma queixa ou um gemido, no turbi­lhão abafado das angústias íntimas. Até que uma noite, altas horas, nos seus aposentos, o Como­doro foi despertado subitamente, por um ai plangentíssimo de Ernestina. Ergueu-se, num sobressalto, e tomando-a nos braços, fria e estertorosa, viu-a extinguir-se num estremecimento nervoso. Abalado profundamente, sob o golpe inopinado, depôs a cabeça da morta sobre os travesseiros e correu à campainha a chamar os criados; e, vol­vendo logo para junto dela, agarrou-lhe as mãos fortemente, beijou-as, e caiu de joelhos a soluçar como um louco.

 

XXI

Dois meses depois, de volta da Inglaterra para onde partira no dia da inumação de Ernes­tina no Père Lachaise, o Comodoro, coberto de luto e monologando intimamente coisas sombrias, saltava do elevador para o varandim culminante da torre Eiffel, quando esbarrou de repente com o Baker, que não via desde que este, deixando o Rio de Janeiro, embarcara com a amante, a Con­suelo, para as alegres terras de Espanha. Foi uma agradável surpresa para ambos, que troca­ram então um longo abraço, no meio de grandes exclamações. E após os comentários recíprocos sobre a casualidade de aquele encontro, o Baker entrou a discorrer sobre a sua vida nos dois últimos anos.

Narrou então a Marcial aquela louca aventu­ra com, a espanhola, que lhe devorara a maior parte das economias comerciais entesouradas na capital do Império durante quase dois lustros. Abandonara-a por fim, em Madrid, seguindo para a Biscaia de onde se passara à Inglaterra, a visi­tar a família. Gozara, em companhia desta, um repouso de cerca de seis meses consumindo três outros numa rápida e geral villegiatura a toda a sua Old England querida. Mas o divino ouro bra­sileiro ameaçava a extinguir-se, e ele, vendo-se só com um punhado de libras, pensara logo em voltar à sua antiga casa de comissões da rua da Alfândega; e como, tiradas as passagens, o “cobrezinho” dava ainda, posto que parcamente, para uma ligeira excursão pelo continente, lem­brara-se de visitar a Exposição. Embarcara pois para Paris; e ali se achava, em pleno Campo de Marte, pairando no ar, a trezentos metros do solo, naquele prodígio de torre, que atestava glorio­samente a possança e o progresso a que atingira a Engenharia, nesse fecundo e tumultuoso fim de século...

E mirando o Comodoro de alto a baixo, com insistência e lentidão, como se lhe quisesse estudar a fisionomia e a toilette:

Mas agora é que reparo, George! Acho-te bastante mudado nessa estranha toilette de luto, que te envelhece de certo modo destruindo-te a antiga “linha” de dândi... Já não pareces o mesmo! Estas até com um ar burguês e român­tico, tu que te rias de tudo e de todos e que tanto desdenhavas das coisas humanas!...

E ia atacá-lo com as suas costumadas pilhérias e troças. Mas conteve-se, ao observar-lhe no rosto uma maior severidade e tristeza. Por isso acrescentou apenas:

— De certo vens de passar por algum grande desgosto...

Marcial, que até ali o escutara em silêncio, murmurou com um suspiro:

— É verdade, Baker. Não imaginas o que te­nho sofrido nestes últimos tempos!

E, apoiado ao gradil de aço trepidante, inteira­mente despercebido do panorama, agora já um tanto sombrio, que se desenrolava em torno, sob o céu encoberto pelas primeiras brumas de inverno, contou ao amigo, confidencialmente e com minú­cia, toda a história da sua paixão até ao desen­lace fatal da morte de Ernestina...

Quando o Comodoro concluiu, a noite en­volvia lentamente Paris que pouco a pouco se estrelava de luzes, principalmente no Campo de Marte, já resplandecente e feérico sob os grandes focos elétricos da Exposição.

O Baker, que o ouvira atentamente, às suas últimas palavras ajuntou com um vago senti­mento:

— Terrível, bem terrível tudo isso meu Geor­ge! Mas que fazer agora, senão te lançares de novo ao torvelinho dos prazeres humanos?... É gozar, é gozar, enquanto a velhice te não vem envolver nos seus gelos e nos seus desenganos...

O outro, ainda emocionado da dolorosa narra­ção que fizera de toda a sua desventura, volveu com desânimo:

— Não! Nunca mais!...

O Baker porém, fixando um instante a pro­fusa iluminação da cidade, que se agitava lá em baixo num perene e incomparável bulício apesar da neve que caída, com os seus modos doidivanas e a sua contínua inquietitude, tomou do braço do Comodoro e atirou-se para o elevador, exclamando alegremente:

— Vamos! Vamos! meu George. Afoguemos as nossas dores nos prazeres mundanos!...

E desceram ambos a visitar o Pavilhão da Pérsia e a beber o precioso Shiraz balsâmico vendo dançar as baiadeiras excitantes.

FIM

Nota

O presente romance, feito a princípio da colaboração com o sr. Oscar Rosas, foi publicado, em 1894, na Cidade do Rio, sob o título de O Comodoro. Essa publicação não passou, porém, de um pequeno número de capítulos ligeiros. Alguns anos depois, em 1898, tendo eu necessidade de arquitetar a totalidade da obra para uma editoração na Re­vista Brasileira, tornou-se indispensável refundir inteiramente o título e o texto, e dar-lhe remate, de modo que da parte primitiva do meu colaborador absolutamente nada permaneceu, ficando isolada por completo a que me pertencia. Só assim foi possível imprimir a este livro aquela unidade de redação de conceitos e confluência de ideias de uma auto­ria única, necessária à elaboração de um trabalho homogê­neo e coerente.

Tal qual aparece hoje, nesta edição portuguesa dos be­neméritos editores Srs. Tavares Cardoso & Irmão, este roman­ce tem uma unitária e integral construção, desde o primeiro ao último capitulo, quer como concessão quer como forma. De resto já primitivamente, em todo o seu delineamento, desde o primeiro ao último detalhe, desde o filão ou coluna vertebral até aos incidentes e planos secundários, tinha sido ele por mim pensado e arquitetado. Assim, pois, sem inverdade, não poderia figurar mais aqui o nome do meu colaborador, porquanto, repito, o que havia originariamente dele nesta narração desapareceu totalmente pelas suces­sivas refundições aperfeiçoadoras.

Rio de Janeiro — fevereiro de 1901.

Virgílio Várzea.