LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
O
Esqueleto, de Olavo Bilac e Pardal Mallet
Obra de
Referência
Biblioteca Virtual de Literatura
O
ESQUELETO
Mistério da Casa de Bragança
I
A NOITE NA TAVERNA
Era
por uma triste noite chuvosa, dessas que faz bem gozar quando a gente esta em
casa. Lá fora, na rua do Piolho, a chuva argamassava a lama ao ritmo plangente
de uma melopéia de cativo. E o vento vinha por ela assoviando, como por um
funil, para desembocar imprecativamente no campo da Alampadosa. Dentro, na
célebre tasca do Trancoso, a luz tremia vagarosamente nos grandes candieiros de
azeite de peixe. Dava um lúgubre aspecto aquele antro de terra batida para
chão, e de paredes escalavradas onde a gaiatice dos fregueses gostava de pintar
obscenidades e onde se fazia a carvão a conta complicada dos pichéis.
Fantástico,
por detrás do balcão envernizado como um cabo de enxada, o Trancoso erguia o
busto na plenitude atlética de seu tórax. Era a grande cabeça barbuda e
gadanhenta e, por debaixo da blusa felpuda de vasconço, o peito largo e forte a
oscilar numa tempestade de respirações troando muitas vezes o grito estentórico
dos apelativos brutais. E, para além na vastidão escura do aposento, por meio
dos altos e bojudos tonéis cheios de cartaxo e de aguardente de cana, estavam
as pequenas mesas de pau carunchoso, rodeadas de mochos baixos em rodelas de
madeira sobre três espeques.
Naquela
hora treda da noite, retardavam-se entretanto os fregueses a pretexto de que
vinham cansados da procissão ao outeiro da Glória, e de que a chuva vergastava
lá fora a quem tinha a audácia de sair. O Trancoso amuava-se, posto que lhe
fossem emborcando as bebidas e o cobre lhe caísse pela gaveta adentro com um
grande retinir metálico de chocalhar de guizos.
Já
fora para ele o tempo dos primeiros açodamentos em juntar os patacões. As
moedas de ouro contavam-se aos centos na velha arca escondida debaixo do
nauseabundo catre onde dormia. Muito criança ainda, viera de além-mares para
essas terras do Brasil, onde o ouro boiava à tona das enxurradas. E, em vez das
longas empresas viajantes pelo sertão adentro, preferira o sossego das bodegas
onde o dinheiro vinha ter pela lógica fatal das bebedeiras. Agora, diziam-no
rico, senhor de bastantes haveres e traficante até das galeras que iam buscar o
negro ao vasto deserto branco das plagas africanas.
Enriquecera
principalmente depois da chegada de d. João VI, quando a real comitiva de
fidalgos se derramara pela velha cidade de Mem de Sá, com uma enorme praga de
orgias e depredações. Fazia-se modesto, rindo com bom sorriso galhofeiro,
quando alguém alevantava o valor de suas fazendas. Dizia que não! que mais
luzia do que havia!
Mas
não andava disposto para as longas vigílias da taverna no serviço de borrachos
retardados. E, naquela noite, já por três vezes tentara despedir a freguesia.
Os fregueses bebiam, monossílabos raros e sonolentos ouviam-se apenas de espaço
a espaço. E o barulho contínuo da água, regular e metódico na tristeza da
noite.
O
Trancoso principiava a cochilar, quando a porta se abriu de repente: uma lufada
sacudiu violentamente os velhos candieiros, que rangeram nas correntes de
ferro. E leve, rápido como o vento que o trouxera, d. Álvaro Bias saltou no
meio da sala, gotejante como uma biqueira de telhado.
Saltou,
parou, e mirou-se. No chão, em roda dos sapatos puídos de d. Bias, formou-se
logo uma poça d'água. D. Bias, magro e esgalgado, no velho gibão de veludo sem
pêlo, parecia um guarda-chuva fechado, depois de um aguaceiro formidável.
D.
Bias, fidalgo espanhol da mais pura linhagem, perseguido pelos credores e pelos
alguazis em todas as bodegas das margens dos Mansanares, pulou um dia a
fronteira e foi tentar a vida em Portugal. Não houve serão de convento que não
procurasse - em vão! - saciar-lhe a fome secular: o primeiro avô conhecido de
d. Bias era tenente de Cid Campeador, e entrava em combate com um alforje às
costas, carregado de olla podrida. A família de d. Bias não era uma
família: era a arvore genealógica da fome.
Em
Portugal, d. Bias comeu, d. Bias bebeu. Com esses predicados, ganhou as boas
graças de d. João VI, que em 1808 o trouxe com sua corte para o Brasil.
Este
D. Bias, segundo reza a crônica, logo que chegou de Lisboa, foi morar na rua do
Lavradio, na casa hoje no 40, pertencente a Antônio José Viana, à
razão de 8$ por mês, cujo aluguel nunca pagou. E tais tratantices fez,
combinado com o desembargador - ouvidor Francisco Alves de Andrade, que se
ficou com o prédio e terrenos.
O
mesmo praticou com o carpinteiro Custódio Pinto de Oliveira, que lhe não
querendo vender dous lotes de terrenos contíguos e que fazem face com a rua, de
acordo com a mulher deste Custódio, formou-lhe culpa de mancebia e meteu-o na
cadeia em princípio do ano de 1811. D. Bias se ficou com a mulher e a filha de
Custódio, e na posse dos bens deste depois do desquite.
Custódio,
sem sua mulher e filha, e seus bens, foi viver do jornal que lhe dava o célebre
escultor Ângelo Pallingrini, por alcunha o Satanás.
O
Trancoso rosnou uma praga, quando o fidalgo lhe apareceu. Mas d. Bias
enganchou-se num banco. E, uma vez servido, pôs-se a beber fidalgamente a sua
zurrapa, levantando os braços para não emporcalhar na mesa os seus manguitos
sujos. A sala recaiu no silêncio. A água continuou a bater, os fregueses
continuaram a bebei; o Trancoso continuou a cochilar, e d. Bias, esgotado o
pichel, cravou dous olhos compridos e sôfregos no gordo chouriço que fulgurava
no balcão.
-
Traga outra medida, gritou a voz avinhada de um sujeitinho baixo e gordo, tão
baixo que tinha as pernas a oscilar dependuradas do mocho, e tão gordo que
parecia um tonel cuidadosamente suspenso do chão para não se estragar com a
umidade.
O
Trancoso remexeu os ombros num esgar sonolento de desprezo.
-
Melhor fariam vocês todos em limpar-me a casa de suas borracheiras! disse. E,
depois de uma pausa, acrescentou:
-
Demais, por estas horas tardias da noite, eu não vendo mais fiado! Ponham
dinheiro no balcão se querem a boa da pinga! Súcia de malandros que a polícia
d'el-rei bem devia vir buscar para uma dormida na rua da Vala!
Um
belo movimento de solidariedade fez-se então entre toda aquela gente que o
Trancoso assim maltratava com o desplante dos homens fortes e enriquecidos pela
canalha miúda dos pobretões de gibão esburacado.
E
o Carniça - um mulato esguio e de maus bofes, que vivia de sovar os negros nas
casas de família - saiu à frente das reclamações.
-
Que assim não se tratava à gente séria! gritou esmurrando a mesa onde as
garrafas e os copos dançaram.
-
Ninguém se teme da polícia d'el-rei! fez d. Bias, fanfarrão, saltando para o
meio da bodega com a mão nos copos da espada e um largo gesto arrogante.
-
Qual el-rei, nem pêra el-rei! vociferou o Carniça, pondo-se também de pé, muito
avinhado e bêbado. - Nós aqui já estamos fartos de aturar toda essa corja
portuguesa! Eu cá não faço mistério para gritar: Viva o príncipe regente!
E
gritou, com e feito, o grito revolucionário daquele tempo, num grande berreiro
forte de convicção popular.
Os
outros entreolharam-se, já desarmonizados em pensamento. A questão
deslocara-se. Já não era a rusga de uns fregueses retardatários contra um dono
de taverna que queria fechar a casa, e não fiava mais. A luz baça e fedorenta
dos candieiros que rangiam nas correntes, ofegava agora o hálito quente das
revoluções.
-
Qual d. Pedro! Mandam as cortes. E ele há de partir para abater a cerviz de
vocês outros, canalhas de brasileiros! rosnou o homem-pipa que dera origem à
contenda.
Os
fregueses dividiram-se em dous grupos. De um para outro voaram imediatamente os
copos e as garrafas. E d. Bias, que se ficara no mesmo lugar, entre os
contendores, levou o melhor do primeiro arremesso. Rolou até pelo chão quando o
Carniça investiu manhoso para tomar-lhe a durindana. E lá do balcão, o
Trancoso, abrindo uma larga e forte navalha catalã, veio para o meio do barulho
numa neutralidade agressiva de quem queria pôr no olho da rua toda aquela
comitiva brigalhona de ébrios esbodegados.
-
Que fossem se haver lá para a lama do Piolho!
Nisto,
veio de lá de fora um retinir de armas. Ouviu-se um grito de agonia, e mais outro,
e mais outro ainda. Correram todos para a porta. Matava-se ali por perto.
E
d. Bias, muito lambuzado de poeira e vinho no seu roupão de veludo sem pêlo,
ergueu-se e foi para o fundo da casa, aproveitando a confusão do momento para
esconder o chouriço por debaixo da camisa.
A
porta, todos alongaram os olhos pela noite escura. A chuva estiara um pouco.
Sem iluminação, a rua do Piolho desenhava indecisamente os seus perfis de casas
baixas. E a alguma distância da taverna, via-se redemoinhar um grupo confuso de
homens que se batiam. Mais alto que o tinir das espadas soavam as pragas dos
combatentes.
Era
positivo que um dos combatentes se defendia de todos os outros, com uma coragem
de leão.
Os
fregueses do Trancoso ficaram sem movimento contemplando a luta. E Trancoso
encolheu os ombros e voltou para seu posto no balcão, rosnando entre dentes que
melhor que se matassem todos uns aos outros aqueles vagabundos que tiravam a
espada por qualquer patifaria.
Os
outros ficaram sem intervir. O Carniça entusiasmou-se: um dos combatentes
acabava de cair varado por um bote do que se defendia. E o mulato, diante
daquele espetáculo delicioso para seu temperamento de galo de briga, berrou,
batendo palmas:
-
Aí, bravo!
Os
dous agressores perdiam terreno. A espada do desconhecido girava multiplicando
os botes, e pondo-lhe diante do peito um muro de aço em que vinham bater
inofensivas as armas dos outros dous. Mais um ferido. E o último rodou sobre os
calcanhares, fugindo, seguido de perto pelo inimigo.
Nesse
momento, d. Bias indignou-se da covardia em que estavam todos, vendo um
bater-se com tantos.
-
Caramba! não se dirá que um fidalgo de Espanha deixou de ir em auxilio de um
fraco!
E
abalou de durindana em punho para o lado em que o desconhecido perseguia o
fugitivo. Mas o fidalgo viu a sua bravura sem proveito. O desconhecido já vinha
de volta, e daí a pouco, quando entrou na tasca, o Trancoso, ao ver-lhe a
fisionomia, acercou-se dele com um ar de respeito e carinho. Os fregueses
cumprimentaram-no também. Sentou-se a um mocho, e atirando a espada
ensangüentada sobre o balcão, ordenou ao taverneiro:
-
Limpa isto e dá-me vinho!
II
O SATANÁS
Tinha
uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que
tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual
todos respeitosamente se acercavam.
Por
sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos
violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o
sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas
erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo
eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos
peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível
de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o
balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia
ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro
escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e
com esporas de grandes rosetas.
E
aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se,
indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem
pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida
restante.
Chamavam-no
Satanás e tinha a sua história.
De
origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de
tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o
incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua
salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada,
entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para
salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de
Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil
horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo
logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.
Ângelo
Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um
castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e
o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à
criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego,
autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para
precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos,
passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço,
matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou
logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e
românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do
castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante
dos serões. E apaixonou-se pela tia - uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia
a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.
Mas
quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o
assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol
apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por
entre os quais se afincava o punhal assassino.
Junto
ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da
espada - sentinela da honra no campo da morte.
Ângelo
Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de
ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas,
aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.
E
antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que
a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho
fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.
O
rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste
fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas
alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.
Ângelo,
italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um
mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele
nem tinha aprendido a respeitar.
A
idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em
um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz,
fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.
Lá
em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente
no gozo lascivo dos serralhos.
O
Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e
que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço
italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das
batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.
Noticias,
porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de
Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio
aventureiro de fidalgo.
Cumpria-se,
entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de
partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde
iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de
Nápoles.
E
foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do
austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de
um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.
Foi
ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para
o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas
de seus filhos.
Na
corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista
galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de
seu porte e pelo aventureiro de seu viver.
E
nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de
quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia
onde.
Aqui
no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que
andava pela amizade de d. Pedro.
Velho
embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias
esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que
dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.
E
por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos
ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.
Com
o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás
foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro,
que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia
guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.
Por
isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.
Apenas
d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos
os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após
a troca. de algumas palavras.
E
o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.
-
Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.
Mas
ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e
esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.
Depois
ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:
-
Pague isso em bebidas a esta gente.
E
saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer,
chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando
nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
III
O PARAÍSO DE SATANÁS
O
Satanás seguiu toda a Rua do Piolho e enveredou pela do Conde Lourenço da
Cunha. Quase ao chegar ao campo de Santana, parou à porta de uma casinha
modesta, de varanda pintada de verde, e bateu três vezes com os copos da
espada.
Era
ali, desconhecido e afastado, que fulgurava para o Satanás, o que ele
chamava - o seu paraíso: era ali que o escultor escondia, como um avarento
esconde o seu tesouro, a filha adorada única afeição pura da sua vida.
Ângelo
Pallingrini, o Satanás, como mestre d'armas do príncipe, dedicara-se a
guiar-lhe e fortificar-lhe o pulso; e quando o príncipe se fez homem, quando o
seu altivo temperamento cavalheiresco se desenvolveu, ávido de amores e de
façanhas, o Satanás passou sem transição do ofício de mestre d'armas ao
ofício de alcoviteiro, e depois de guiar-lhe o pulso, começou a guiar-lhe o
coração. Dentro do bolso do seu gibão havia sempre a certeza de se encontrar
pelo menos um bilhetinho amoroso do real conquistador. O Satanás desbravava
o caminho, aplanava-o, desembaraçava-o de todas as dificuldades.
Quando
o príncipe chegava, estava tudo feito: via e vencia - e, logo perto, ficava o
servidor fiel, de espada em punho, vigiando os amores do seu amo, para não
deixar que os fosse perturbar a fúria de um pai rebarbativo ou a inconveniência
de um marido indignado.
Desse
lodo de todos os dias, purificava-se à noite o escultor, indo beijar a filha
que ali vivia, guardada por uma velha espanhola, dona Emerenciana.
Assim
que conseguia deixar o príncipe entretido nos braços de alguma rapariga
condescendente, lá ia, embuçado na sua capa, pedir ao seu anjo da guarda um
beijo purificador. Via-a, beijava-a, e voltava a correr aventuras com d. Pedro.
Na
cidade, rosnava-se que o Satanás tinha amores ocultos com uma criatura
divina que o amava até à loucura; porque, por mais precauções que tomasse o
escultor para esconder as visitas noturnas à casinha colonial já começavam a
fazer sobre o caso um tecido caprichoso de suposições. D. Bias, que todos
sabiam muito amigo do Satanás, tomava uns ares misteriosos quando a esse
respeito o interrogavam.
-
Então?! diga cá, d. Bias: são amores, heim?
-
E que é que tem a arraia-miúda com os amores de um cavalheiro digno? Pois, que
sejam amores... E então? O que não se pode dizer, é como a bela se chama. É uma
senhora que conhece de cor os nomes gloriosos de cinqüenta avós, e cujo nome
não deve, portanto, andar na boca do populacho! Sim! que nós cá, fidalgos de
raça, não nos sujamos com mulheres de meia-tigela: queremos sedas e jóias, e
beijos fidalgos como nós!
Mas
o Satanás deixava que a bisbilhotice de todos se perdesse em conjeturas,
e redobrava de precauções.
Naquela
noite, foi d. Emerenciana quem lhe veio abrir a porta. O Satanás, seguido
pela espanhola, subiu a escada estreita e escura que levava ao sobrado, e
entrou na sala, onde a filha, assim que o viu, atirou sobre a mesa o bordado e
correu a dependurar-se-lhe do pescoço, num grande abraço carinhoso. Pela dura
face do espadachim rolaram duas lágrimas silenciosas e os seus olhos
embeberam-se, úmidos e sôfregos, nos dous céus azuis dos olhos da filha.
Branca
teria quando muito 16 anos. Era já uma deliciosa mulher, esbelta, talhe
gracioso de palmeira, seios tufados provocadoramente e grandes olhos azuis,
dando uma encantadora expressão de ternura a sua face pálida e doentia de moça
educada com rigor, sem distrações, sem grandes passeios ao ar livre. Mas o que
a tornava mais bela, o que constituía o seu maior encanto, eram os cabelos cor
de ouro, longos e finíssimos, cabelos que, quando soltos, cobriam-lhe todo o
corpo, da cabeça aos pés, como um grande manto tecido de raios de sol.
Educada
pela velha Emerenciana, com uma severidade terrível, Branca aos 15 anos ainda
tinha uma alma de criança ingênua, que não sabe o que é a vida. Os seus grandes
olhos azuis abriam-se curiosamente para o mundo, sem compreendê-lo.
Emerenciana
cumpria fielmente as ordens do Satanás, que não queria que Branca
chegasse à janela nem saísse à rua, muito cioso da virtude da filha, muito
receoso da depravação dos fidalgos portugueses que d. João VI deixara no Brasil
com o príncipe regente. De maneira que Branca se fizera mulher entre quatro
paredes, tendo como únicas distrações os seus bordados e a conversa com d.
Emerenciana, que, apesar do seu papel de vigilante rigorosa, tinha pela moça
verdadeira afeição de mãe.
Foi
mesmo a instâncias de Emerenciana que o Satanás consentiu que a filha,
depois dos 15 anos, desse alguns passeios, raros e curtos, pela cidade. De um
desses passeios nasceu para Branca uma nova era de sensações nunca até então
experimentadas nem sonhadas pela sua inocência de reclusa.
Foi
justamente um ano antes da noite cujos sucessos se estão desenrolando aos olhos
do leitor. Era o dia da procissão de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Toda a
cidade escovara os fatos, sacudira as sedas, brunira as arrecadas, e abalara
para o Outeiro, que às duas horas da tarde, apresentava o mais pitoresco
aspecto que é possível imaginar.
Desde
o adro da ermida que em 1671 a piedade do ermitão Caminha erigira no alto do
Outeiro, até à pequena praça em que vinha alargar a rua da Glória, toda a
ladeira se apendoava de arcos de folhagens e bandeirolas. As famílias
sentavam-se em bancos toscos, em um grande espalhafato de sedas novas,
enquanto, de pé, os moleques e as negrinhas, vestidos de branco, muito sérios,
carregavam cestos cheios de pão e galinha assada. Porque a gente daquele tempo
sofrera a influência de d. João VI, que não podia ir a festa nenhuma sem fartas
provisões de viveres.
Branca
fora também ver a procissão, com a velha Emerenciana. E estava muito contente,
com vontades infantis de bater palmas, gozando aquele grande prazer do contato
da multidão, saciando-se de vida, de barulho, de agitação. Fez-se um movimento
no povo. Era a procissão que descia.
Primeiro,
um padre trazia o crucifixo entre dous acólitos, que empunhavam grandes varas
de prata, em cuja extremidade uma vela de cera ardia no meio de um tufo dê
rosas artificiais. Depois vinha a irmandade, precedendo o andor vagarosa,
fazendo cair ao chão as grandes lágrimas brancas das tochas acesas. Todos se
ajoelharam. Nossa Senhora passava, muito branca e muito serena, guirlandada de
raios de prata, de mãos cruzadas ao peito, de olhos erguidos ao céu radiante
daquela tarde formosa, sobre o andor dourado, transbordante de flores. Depois,
o pálio, oscilando... Ouviam-se já, no couce do préstito, os acordes da banda
militar.
Branca
admirou o talhe esbelto de d. Pedro, que vinha fardado, empunhando uma das
varas... Por um acaso qualquer, o batalhão parou mesmo diante de Branca.
E
Branca sentiu de repente que o sangue lhe galopava à face e que o coração lhe
batia no peito, vendo o capitão que comandava a tropa, cravar-lhe na face dous
olhos negros e ávidos, que a abrasavam toda no primeiro rubor amoroso.
Paulo
de Andrade, capitão das guardas do príncipe regente d. Pedro, era um belo moço
de 27 anos, desempenado e forte, belo exemplar de homem e soldado. Foi desse
cruzamento instantâneo do seu olhar com o de Branca que nasceu a paixão que o
devia para sempre unir a ela e que o devia matar: paixão nascida num minuto,
dessas paixões que, por aparecerem muitas vezes nos romances, parecem hoje
absurdas e incríveis na vida real.
Branca
seguiu-o com os olhos, até vê-lo desaparecer numa volta da ladeira. E já ele
tinha desaparecido e ainda ela o via, alto e bonito, na farda abotoada, com a
espada ao ombro, fulgurando à frente dos soldados.
Quando
entrou em casa, a moça ia triste, de uma tristeza cuja causa ela mesmo não
compreendia bem. Nessa noite, nem os beijos do pai a alegraram. Retirou-se para
o seu quarto, onde, em frente à cama virginal, uma Nossa Senhora da Conceição
abria os braços, num pequeno oratório de vinhático. Ajoelhou-se para rezar. Mas
as palavras da reza confundiam-se-lhe na cabeça. O que ela via ali, no pequeno
oratório de vinhático, não era a Senhora da Conceição: era outra, a da Glória,
precedida da irmandade, seguida do príncipe e de um belo capitão, cujos olhos
ainda agora a abrasavam.
Despiu-se
e deitou-se. Mas embrulhou-se muito, com muito pudor, como se receasse que alguém
a estivesse vendo. Quis dormir: o sono não veio.
Dentro
dela, alguma cousa cantava, alguma cousa gemia, alguma cousa gritava. Ouvia
sair de dentro de si um grande clamor de exigências e de desejos: parecia que o
sangue lhe rufava nas veias, entre estridores frenéticos de clarins, o hino
vitorioso da sua puberdade despertada. E estremecia, julgando sentir na boca
ansiosa o contato rude dos grandes bigodes negros do capitão das guardas. Por
fim, um grande pranto lhe subiu aos olhos: e ela enterrou a cabeça no
travesseiro, sacudida por soluços que não podia reprimir, com um grande medo do
amor, que sentia nascer dentro de si e que só agora começava a compreender.
Com
o correr dos dias, Branca e Paulo de Andrade viram-se de novo. O acaso, que é o
maior alcoviteiro do mundo, arranjou meios de os aproximar cada vez mais. E, d.
Emerenciana, seduzida pela simpatia que lhe soube inspirar o capitão e pelo
grande afeto que tinha à moça, prestou-se a auxiliar-lhes o amor.
De
modo que, nessa noite em que o Satanás ao sair da bodega do Trancoso foi
à casa da rua do Conde, já havia muito tempo que o capitão tinha entrevistas
com Branca mas eram entrevistas puras, a que sempre a velha assistia. E estavam
todos à espera da primeira ocasião oportuna em que a velha pudesse contar tudo
ao Satanás e em que Paulo pudesse pedir-lhe a mão da filha em casamento.
O
Satanás, depois de abraçar a filha, chamou a velha de parte. Era assim
todas as noites: queria saber de tudo que tinha havido, se nenhum vulto
suspeito tinha aparecido a rondar a casa, se a filha tinha estado à janela.
Emerenciana
tranqüilizou-o: a velha não achava conveniente referir-lhe as pretensões do
capitão - preferia esperar e levá-lo com jeito, receosa que o gênio arrebatado
e brigalhão do Satanás deitasse tudo a perder.
O
Satanás retirou-se. Voltava para o lodo, depois de curta parada no céu.
Ia de novo encontrar o amo, que deixara ocupado a encher de consolo a noite de
uma formosa cigana, que morava para as bandas do Valongo.
E
apertando muito a filha nos braços, o escultor beijou-a na fronte, fez novas
recomendações a d. Emerenciana, e, descendo a escada, tornou a mergulhar de
novo nas trevas da noite o seu vulto misterioso.
IV
ELE
Naquela
noite o Satanás não tinha muita pressa em encontrar-se com o seu real
discípulo de armas. Sabia-o sossegadamente em lugar seguro, em uns amores
desses que só fazem correr perigo à bolsa dos galantes.
História
escandalosa de momento, grandemente comentada pela corte, onde a Domitila
intrigava, a tal paixão do príncipe era, entretanto, cousa muito honesta.
Ficava
para longe, para o Valongo.
Fora
ali que uma companhia de saltimbancos, recentemente chegada da Europa, erguera
a sua tenda, uma grande barraca de lona sobre sarrafos de pinho. A companhia compunha-se
do velho saltimbanco Vampa, que se apregoava muito entendido nessas cousas de
teatro e chegava até a compor pantomimas lisonjeiras e bajuladoras, em
homenagem a qualquer fidalgo endinheirado. Compunha-se mais de Zabanila, esposa
de Vampa, cigana nostálgica das suas terras do Oriente, onde a brisa tinha o
perfume do sândalo e o beijo dos homens tinha mais volúpia, mas em todo o caso
sempre obediente ao marido e pronta a aceitar o rendoso amante que este lhe
indicava. Compunha-se também de seis cavalos, um elefante e três comparsas.
O
Vampa, empresário da companhia e autor dramático nas horas vagas, como
Shakespeare, Moliêre e Gil Vicente, era um tipo bem falante, vocalizando as
sílabas, arteiro e manhoso, cheio de invenções para atrair o público, e
gostando de se acercar das rodas de fidalgos onde encontrava os amantes para a
mulher e os parceiros para a jogatina.
Chegado
aqui ao Rio de Janeiro, fez logo grande escândalo com uns anúncios nunca
vistos, que só ele seria capaz de imaginar: sujeitos de zabumba com o letreiro
do espetáculo a zabumbar por todas as ruas da cidade. O povo não entendia o
letreiro, porque não sabia ler, mas isto não fazia mal porque adivinhava. E o
circo do Valongo tornou-se logo o rendez-vous noturno da gente alegre
que lá ia, principalmente para aplaudir a Zabanila. Ela resistia, porém, a
todas as aclamações. Fazia-se muito séria. E os despeitados souberam em pouco
que a requestava e possuía quem muito alta e poderosamente mandava naquele
tempo.
Por
isso o Satanás não se apressava muito em ir buscar o jovem discípulo
governante. Por isso, e porque desprezava o Vampa que, ao em vez de procurá-lo
para intermediário tivera o arrojo de meter o d. Bias no negócio.
Vagaroso
de andar por aquela lama das ruas, ele chegou, entretanto, e bateu três
pancadas maçônicas na porta traseira.
-
Entre! gritaram-lhe.
Levantou
a aldraba, empurrou a porta e achou-se num pequeno aposento com paredes de
tábuas mal juntas, onde d. Pedro bebia com Zabanila e Vampa, e ria-se a bom rir
de umas cousas que lhe dizia uma esquálida cigana feiticeira, com um corpo de
pergaminho enrugado sobre os ossos.
-
Vieste a propósito. A Mãe Velha estava aqui dizendo que eu havia de ser duas
vezes rei e de morrer envenenado, sem cetro, nem coroa, como um qualquer pobre
diabo!
E
acrescentou:
-
Pergunta-lhe pelo teu destino. Talvez ela nos diga o teu futuro e pelo menos
metade desse misterioso passado, que tu gostas de esconder. Eu gosto de rir.
-
Pois fala, velha feiticeira! disse o Satanás, sentando-se e estendendo a
mão esquerda à cigana.
Esta
debruçou-se sobre a mesa, gastou uma longa pausa no exame, e depois, fitando
alternativamente o príncipe e o escultor, sentenciou:
-
Para quê? sabem melhor vocês dous, porque um, não sei qual, tem de morrer pelas
mãos do outro.
-
Ora!
E
d. Pedro levantou-se em toda a altura robusta do seu porte elegante, senhoril e
belo.
-
Tolices de velha! disse. E, voltando-se para o Satanás, acrescentou: -
Vamos.
Partiram.
Pela
noite escura e chuvarenta, seguiram os dous, um ao lado do outro, silenciosos,
quase apreensivos com a lúgubre profecia da velha feiticeira, que o Vampa,
entretanto, surrava lá no Valongo para que ela não fosse em outras vezes
dizer cousas desagradáveis aos visitantes, que pagavam bem e não deviam gostar
de semelhantes asneiras.
-
Envenenado! Sem cetro e sem coroa! rosnou o príncipe como que a concluir uma
meditação. E acrescentou: - Tu acreditas em feitiçaria, e pensas acaso que a
previsão humana pode rasgar o tenebroso véu do futuro?
O
escultor teve um gesto incerto de dúvidas, e murmurou um - talvez.
-
Eu acredito, preciso acreditar, afirmou d. Pedro.
E,
ali no campo de Santana onde estavam, parou em compostura elegante de homem que
posa para estátua.
-
Escuta! ordenou violentamente numa grande voz vibrante de comando. - Eu sou um
infeliz. Não nasci para estes tempos sossegados de agora. Pela minha imaginação
perpassam de constante os vultos desses heróis antigos que fizeram o mais nobre
da minha ascendência. E eles fizeram tanto que nada mais tenho a fazer. Entretanto
eu quisera ser o construtor de um grande povo...
E,
depois de uma longa pausa, durante a qual, de braços cruzados, ele parecia a
sombra de Napoleão, visitando a sepultura de Santa Helena, acrescentou:
-
Vês, Satanás! Fervilha-me dentro das artérias o sangue dos heróis. É
preciso acreditar no horóscopo das feiticeiras porque elas me predizem sempre
um desses futuros tenebrosos, tão cheios de desgraças, que só podem pertencer
aos valentes lidadores do progresso humano.
E
disse mais, visionariamente:
-
A história - o sagrado tribunal da inquisição, onde comparecem as sombras dos
reis - há de me julgar. Pouco me importa a sentença. Eu quero ser julgado. Ela
dirá que eu fui despótico e brutal. Mas a mim nunca deram educação. Deixaram-me
crescer como esses animais bravios da floresta que só conhecem a lei de seus
apetites e para quem a luta é a própria vida. Não posso ser melhor do que me
fizeram. Tenho, preciso ter, essa independência selvagem do leão que a nada se
curva e triunfa sempre. E sinto-me bem, assim como sou. Hei de cumprir o meu
destino todo inteiro de homem que nasceu para as altas empresas legendárias!
E
mais baixo, confidencialmente e quase triste:
-
Ouve-me, Satanás! Eu sou um infeliz.
Fez-se
então um longo silêncio, merencório e fúnebre como a antítese dos grandes que
se confessam pequeninos.
-
E tu? falou o príncipe galhofeiramente. - Lembra-te que um de nós duos tem de
morrer pela mão do outro, conforme disse a feiticeira.
-
Elas mentem às vezes. Em todo caso mais vale morrer de mão de amigo.
-
E tu és de verdade meu amigo?
-
Que pergunta!
-
Sim. Faço-te confidente de todos os meus planos. Melhor do que ninguém tu sabes
o que eu penso sobre as cortes. Tu sabes que não posso aturar essa canalha de
pairadores letrados, que quer deitar leis ao meu orgulho e a quem meu pai se
entrega com toda a moleza do seu caráter. Mas...
-
Eu o traio, porventura?
-
Não. Mas tu me aborreces, porque te fazes necessário demais. A tua dedicação
enfarta-me como a festa insistente dos rafeiros.
-
Ora. O príncipe bem sabe que Zabanila é minha inimiga. Não deve, pois, ligar
importância no que ela diz, nem permitir que esta cigana de mau olhar queira
torná-lo o instrumento das suas vinganças pessoais.
-
Sim. Falemos de Zabanila. Todo o ódio que dedicas à pobre rapariga consiste em
não seres tu o descobridor daquela pérola.
-
Pérola rachada!
-
Que importa! Eu insubordino-me e quero emancipar-me da tutela que tens exercido
sobre todos os meus amores.
-
Revolta de criança que prefere o pão preto das estrebarias ao repasto das mesas
do castelo!
-
Não, Satanás! É o meu orgulho. Eu quero conquistar uma mulher por mim
mesmo. E posso garantir-te que vou em bom caminho.
-
Faz bem. Eu velarei, entretanto, sobre os seus dias, como esse cão rafeiro de
que falou há pouco, e que tanto o incomoda com as suas carícias.
-
Não. Ordeno-te que me deixes só nesta aventura. E, olha, ela não será muito
prolongada. Daqui a três dias partiremos para Santos. São, pois, três dias de
liberdade que te peço apenas.
-
O príncipe ordena.
-
Pois bem, então separemo-nos.
E
os dous se despediram um do outro, mergulhando nas trevas os seus nobres vultos
fidalgos.
V
LE ROI
S'AMUSE
D.
Pedro tinha razão. Para o seu caráter independente, era afinal uma verdadeira
humilhação aquela constante necessidade de recorrer aos serviços do Satanás.
O que ele mais desejava, havia muito, era um amor que pudesse satisfazer o
seu orgulho de homem. Aquilo rebaixava-o diante de si mesmo; parecia-lhe, ao
receber um beijo, que não era o homem, forte e apaixonado, que o recebia,
vencedor pela força e pela paixão, mas o príncipe, vencedor pelo nome e pelo
prestígio da posição.
E
esse amor, que ele sonhava no íntimo, essa esperada paixão desinteressada e
nobre, apareceu-lhe (nem o podia imaginar o Satanás!) no mesmo
dia em que Branca deixara que o seu coração se dependurasse cativo dos belos
bigodes negros de Paulo de Andrade.
Quando
a procissão passara, um ano antes, pelo lugar em que estavam Branca e d.
Emerenciana, naquela tarde radiante em que a moça pela primeira vez sentira o
coração bater sob o domínio de um olhar de homem, o príncipe, que empunhava uma
das varas do pálio, viu de relance a filha do seu alter ego.
Dessa
tarde em diante, houve para ele a ansiedade indizível de rever e de possuir
aquela criatura loura, cujos olhos refletiam a mais pura inocência e toda a
ingenuidade de uma criança... Ah! o príncipe já andava farto de mastigar frutos
maduros: o que ele agora queria, era o sabor excitante dos pêssegos verdes,
ainda não cobertos de penugem.
Viu-a
de novo na festa de S. Sebastião, viu-a nos Te-Deuns solenes dos dias de
gala, viu-a a passeio, viu-a no largo do Paço, onde naquele tempo as famílias
iam tomar fresco, pelas tardes abrasadas do verão. E privado até então de uma
ocasião própria para lhe falar, o príncipe ardia em impaciência e em febre:
entre duas conquistas fáceis das que lhe arranjava o Satanás, aparecia-lhe
sempre a loura imagem de Branca, dominando tudo, apagando tudo com o seu brilho
e a sua pureza de estrela inacessível.
Na
ocasião em que, por basófia, d. Pedro atirou ao Satanás aquela frase
orgulhosa em que vinha explodir, despeitada, a sua altivez, estavam as cousas
nesse pé...
O
príncipe, sem que uma só palavra pudesse trair as suas ocultas intenções, não
falou mais, ao Satanás na aventura em que se tinha empenhado.
Não
que esse escrúpulo natural de cavalheiro o retivesse, não querendo magoar na
parte mais sensível da alma o seu fiel servidor; ele não sabia que Branca era
filha de Pallingrini. O que lhe retinha a indiscrição, era o desejo de poder um
dia, mostrando-lhe e provando-lhe que os seus serviços não eram indispensáveis,
dizer-lhe:
-
Vês? Possuo esta, que é melhor do que todas as outras; e não foste tu que ma
deste. Não me foi dada pela tua dedicação, nem pelo meu nome, nem pelo meu prestígio.
Amou-me, porque me achou belo, porque me achou forte e valente, porque satisfiz
o seu ideal, porque encontrou em mim o homem que lhe devia rasgar diante dos
olhos o horizonte ilimitado da vida e do amor! Já vês que os teus serviços não
são indispensáveis...
E
redobrou de vigilância e de esforços. Afinal, conseguiu saber onde morava a sua
desconhecida: seguiu-a de uma vez que a encontrou, embuçado, à saída de uma
novena do Parto.
E
começou todas as noites a rondar a casa da rua do Conde, na esperança de ver
sair alguém cuja conivência pudesse comprar a peso de ouro, na esperança de que
um acaso providencial viesse inesperadamente em seu auxílio.
Uma
noite, acreditou ter conseguido O que queria. Estava à espreita, num
terreno que havia em frente à casa, e onde se estavam fazendo obras, quando viu
um embuçado chegar, olhar demoradamente a varanda verde, por cujas janelas
passava a luz do interior, bater três vezes com os copos da espada e entrar,
depois de longamente ter escrutado todo o arredor com um olhar cuidadoso.
Que
poderia dizer aquilo? Um homem...
Mas
não esperou muito. Viu o homem sair pouco depois, com as mesmas precauções com
que entrara. Deixou-o seguir um pouco, e acompanhou-o depois, até que o viu
entrar na tasca do Trancoso. Foi aí que se convenceu de que o homem que gozava
a felicidade, até então inacessível para ele, de entrar naquela casa, que se
lhe afigurava uma fortaleza inespugnável, era o Satanás.
Procurou
a princípio descobrir que relações podia haver entre ele e a sua desconhecida.
Mas, desistiu:
-
Se é amante dela, melhor! Mais completa será a lição.
Empregou
pessoas dedicadas para auxiliá-lo a espionar a casa. E ao cabo de alguns dias
soube que a menina chamava-se Branca e vivia em companhia de uma velha
espanhola. A obra de sedução prosseguiu. D. Emerenciana, a todas as ofertas de
dinheiro, opôs uma resistência inabalável; só obteve como resultado excitar a
impaciência e o desejo do príncipe, que se resolveu a empregar os meios
violentos.
Organizou-se
o plano de ataque. Uma noite, o príncipe escondeu-se nas obras que se faziam na
rua do Conde, com dous homens dispostos a tudo. Todos armados, todos
cautelosamente embrulhados em compridos capotes.
Das
dobras do capote de um dos homens que acompanhavam o príncipe o mais alto e
mais magro, o que parecia um grande ponto negro de admiração - via-se emergir
uma durindana formidável. Era d. Bias. O momento não se fez esperar; por volta
da meia noite viram chegar à casa o vulto do Satanás.
-
Por São Tiago de Compostela! - ganiu d. Bias - temos mouro, senhor, temos
mouro! Vou a ele?
O
príncipe impôs-lhe silêncio. Como de costume, a demora do Satanás foi
curta. Pouco depois saiu e desapareceu no alto da rua, para o lado da rua do
Piolho. Os três homens saíram então do esconderijo, e d. Pedro bateu à porta as
mesmas três pancadas do Satanás.
A
porta abriu-se. Naturalmente d. Emerenciana pensara que era o Satanás que
voltava a fazer-lhe qualquer recomendação, de que se esquecera. Mas, em menos
de um minuto, agarrada de surpresa mal teve tempo de dar um grito, a velha
viu-se solidamente amarrada e amordaçada, e entregue à guarda de d. Bias. O
outro homem ficou de guarda à porta, e o príncipe subiu, levando o lampião que
d. Emerenciana trouxera.
D.
Bias sentou-se filosoficamente a um degrau, pousou a durindana nos joelhos e
sacou da profundidade de uma das algibeiras do gibão uma naca de presunto.
-
Sinto muito, sinto muito, respeitável dama, não lhe poder oferecer um pouco
desta parca refeição. Desculpe...
E
continuou esmoendo o presunto com um grande barulho de queixos, que soava na
treva da escada como uma tempestade.
Mas,
de cima, começou a chegar um barulho de passos e de vozes. Ah! bem que a boa
Emerenciana distinguia a voz aflita de Branca. E desesperava-se a velha
espanhola, sem poder acudir à sua querida filha, ali amarrada, diante daquele
fantasma que comia. Por fim, ouviu-se um grito: e nenhum outro rumor chegou de
cima.
Mas
o homem que estava à porta, bradou:
-
Quem vem lá?
E
d. Bias engasgou-se com um pedaço de presunto, compreendendo que o companheiro
batia-se lá fora com alguém, ouviu tinir de ferros, ouviu passos de quem fugia,
viu a porta abrir-se e um homem entrar, tropeçando no corpo da velha.
Era
Paulo de Andrade, que ouvira o grito e a quem a presença do homem armado à
porta causara suspeitas. Ao esbarrar no corpo, abaixou-se e reconheceu-o.
D.
Bias esgueirou-se como uma sombra pela parede, saltou à rua, disparou, tropeçou
na espada, caiu, levantou-se, e foi cair extenuado à porta do Trancoso, de onde
o Satanás vinha saindo.
Paulo
de Andrade, preocupado em desamarrar a velha, nem dera por ele. Subiu a escada
a quatro e quatro, de espada em punho, viu deserta a sala da frente, entrou
como um cego no quarto de Branca.
Todo
o quarto estava em revolução, cadeiras caídas, roto o cortinado do leito, onde
Branca jazia estendida, sem dar acordo de si. O príncipe, vendo entrar o
capitão, teve apenas tempo de apanhar a espada e pôr-se em guarda. Paulo
arremeteu contra ele:
-
Miserável!
Mas
estacou de repente, e veio recuando até a parede, com um grande espanto na
fisionomia alterada... Reconhecera o príncipe.
Lia-se
então na face do moço capitão a luta que dentro dele se travava. Por duas
vezes, pareceu atirar-se contra o seu rival. Mas d. Pedro esperava-o, sereno,
com o olhar fito no dele. E Paulo, deixando cair a espada, cravou no peito o
punhal, indo bater com a fronte na borda do leito, onde Branca continuava sem
sentidos.
Quando
d. Bias, à porta do Trancoso, conseguiu recuperar o uso da fala, começou a
contar o caso ao Satanás, preparando-se para mentir à vontade.
-
Ai! imagina, ó Satanás! eu amava, ele amava, elas nos amavam. Tudo
pronto já, quando de repente vemos a casa invadida por duzentos homens
armados... Duzentos? espera... não! não eram duzentos, mas eram cem. Caem sobre
nós. Bati-me, como sabes que me bato sempre! mas...
Mas,
onde isso? onde isso?
-
Na casa, homem...
-
Em que casa?
-
Na casa da rua do Conde; ora ouve... Mas o Satanás não quis ouvir mais
nada.
Aquele
nome de rua do Conde encheu-o de um pressentimento terrível. D. Bias nada
dissera mas o escultor ouvia uma voz secreta a gritar-lhe que era a filha quem
corria perigo.
Não
ouviu mais e correu, deixando em meio da narração o bravo fidalgo de Espanha,
que entrou para a taverna, a afogar no seio de um pichel a sua sede de sangue.
O
Satanás encontrou a porta aberta. Ah! era verdade! era verdade! Um
rugido surdo lhe saiu da garganta, voou pela escada acima, louco de raiva e de
terror. E parou à porta, sem movimento e sem voz, diante daquele quadro
terrível.
Branca
desmaiada ainda. Paulo, estendido no chão, sobre uma poça de sangue, e a velha
rezando, ajoelhada diante do oratório.
O
Satanás sentiu que a razão lhe ia fugir. Mas compreendeu. Sim! a sua
filha fora desonrada por aquele miserável que ali estava estendido. Desonrada!
desonrada a sua vida, manchado o seu único amor, calcada aos pés toda a sua
felicidade!
Uma
nuvem de sangue lhe cresceu diante dos olhos. Ah! era a velha a culpada. E,
louco, trôpego, alucinado, embebeu a sua espada até aos copos entre as duas
espáduas da espanhola.
O
sangue jorrou de repente e borrifou de gotas vermelhas o manto de Nossa
Senhora.
Nesse
momento, uma gargalhada longa, sinistra, angustiosa, repercutiu no quarto.
Branca assistira ao assassinato.
E
de pé, cercada pelo véu de ouro dos cabelos, torcia as mãos, e ria, e ria, e
ria. Enlouquecera.
VI
A PEIXADA
O
Satanás acompanhou o príncipe a Santos na madrugada do dia seguinte.
Naquela
noite, em que a tragédia da rua do Conde se passara, o Satanás saíra de
casa da filha, como um louco. Vagara sem destino até o amanhecer, apertando a
cabeça nas mãos, sem compreender ainda o que se havia passado.
E
no dia seguinte, a bordo, d. Pedro, que o forçara a partir consigo, notou-lhe a
fisionomia alterada: o Satanás queixou-se de estar doente e fechou-se a
sete chaves no mais absoluto silêncio a respeito dos sucessos da véspera. A
notícia dos dous assassinatos espalhara-se rapidamente pela cidade: tinham sido
encontrados os cadáveres de Paulo de Andrade e de Emerenciana, e a polícia
pôs-se logo em campo para esclarecer o negócio. De Branca, porém, não havia a
menor notícia: desaparecera.
Quando
o príncipe partiu para Santos, os horizontes políticos do Brasil toldavam-se,
anunciando a tempestade iminente. D. Pedro via-se reduzido a simples governador
do Brasil e recebera já a ordem de retirar-se para a Europa. O povo de São
Paulo mandara-lhe a célebre representação de oito mil pessoas, pedindo-lhe que
ficasse.
No
ouvido do príncipe regente soavam ainda as últimas palavras de seu pai, ao
embarcar para Lisboa: Pedro, põe a coroa sobre a tua cabeça...
O
seu nobre desejo de ser o constituidor de um novo povo era secundado ainda
pelos conselhos dos seus partidários, que lhe inflamavam cada vez mais o
entusiasmo e a ambição.
A
Sociedade Tenebrosa do Apostolado, que então funcionava no quartel da
Guarda Velha e da qual era o príncipe o Archonte Rei, incitara-o a
precipitar os acontecimentos. Demais, as últimas notícias de Lisboa eram as
mais inquietadoras possíveis: os deputados brasileiros, insultados nas cortes,
tinham reagido escandalosamente com uma nobre energia: perseguidos, tinham sido
forçados a embarcar para Falmouth e daí~ara o Brasil.
De
modo que o príncipe não podia mais hesitar.
Mas,
em Santos, não foi a política que lhe preocupou o exaltado coração.
Lá
mesmo, o Satanás teve de reassumir as funções de medianeiro fiel.
Porque, cheio, durante o dia, de preocupações políticas, o príncipe passava as
noites a correr a velha cidade, à cata de aventuras.
As
ruas sujas de Santos, eternamente cobertas de lama, quer a chuva caísse, quer o
sol abrasasse, impregnadas de um cheiro repugnante de maresia, não tiveram mais
segredos para os dous. E Satanás descobriu uma rapariga deliciosa, que
casara com um velho fidalgo português e que não hesitou em abrir o seio à honra
dos beijos do jovem príncipe.
A
primeira entrevista realizou-se na Barra, em casa de uma velha algarvia,
conhecida na cidade pela perícia inexcedível com que preparava as peixadas
suculentas para as funçanatas de então. E fui por uma bela noite de luar que O
príncipe, acompanhado do Satanás, partiu para a Barra, onde o esperavam
uma farta peixada de escabeche e um farto colo de mulher morena.
A
casa abria as janelas para o mar, onde o luar entornava a sua prata líquida,
naquela noite serena. Eram a perder de vista, desde a praia curva, de areias
claríssimas, até o limite apartado do horizonte, águas e águas que tremiam ao
luar, encrespadas e franjadas de espuma.
À
porta d. Pedro parou. A sua alma ardente de ambicioso agradava aquele infinito
sereno, aquela vastidão de águas calmas, ilimitadas como os seus sonhos de
poder e de glória.
O
Satanás, ao lado, olhava também o mar: e aquilo trazia-lhe à lembrança o
infinito do seu desespero e a soledade da sua vida, sem filha, sem amigos, cão
rafeiro de um fidalgo...
Mas
d. Pedro foi o primeiro a arrancar-se das suas meditações:
-
Entremos. Nunca se deve fazer esperar uma mulher.
-
Nem uma peixada, acrescentou o escultor.
Entraram.
Uma sala baixa, toda furada de janelas, por onde o luar entrava, cintilando. Ao
centro, a mesa estava posta, aceiada, com a grande terrina de louça azul,
descoberta, deixando ver o molho louro do escabeche, cujo aroma fazia a água
crescer na boca.
Maria,
ao ver entrar o príncipe, levantou-se do banco em que estava sentada, a uma das
janelas, contemplando o luar. Era uma mulher opulenta, de amplas formas
sensualmente arredondadas, olhos profundos e negros, circulados de olheiras
roxas. No lábio superior, carnudo e vermelho, sombreava-se-lhe um buço delicioso.
O
príncipe beijou-lhe a mão, fidalgamente. E, enlaçando-lhe a cintura, foi com
ela para a janela. Daí a pouco, a sala encheu-se de um sussurro de vozes
cochichadas nomezinhos ternos, risadinhas brejeiras, beijinhos marotos. O Satanás
meditava a um canto, taciturno.
A
velha Marta do Peixe entrou muito gorda, muito suada com dous seios
formidáveis, trêmulos como dous grandes bolos de gelatina, trazendo os
canjirões do Ribatejo.
Que
viessem para a mesa, que viessem para a mesa! estava a cousa de empanturrar o
bandulho e soluçar por mais! haviam de lamber os beiços.. Não! que para
coser as anchovas tenrinhas não havia com'a ela!
Abancaram
todos. E a Marta, de mangas arregaçadas, deixando ver dous braços que pareciam
duas pernas, pôs-se a encher pratarrazes de peixe.
-
Olhem que foi pescado ali assim p'lo meu home! E é quê ele foi feliz, o raio do
dianho, que as pescarias têm andado nada boas, p'la Senhora da Boa Morte!
O
príncipe interessou-se pelo homem da Marta.
-
Então? rendia o negócio?
-
Qual nada, senhor! É uma azáfama do tinhoso a sol e chuva, e nada de fazer
p'r'ó pão! E inda é bom quando não se morre por lá, por essas aiaguas de
Cristo! Inda tresantonte lá se ficou o Chico da Burra, mais a canoa e a rede...
Agora é verdade que ninguém mandou o desinfeliz ir pescar por riba da catedral!
-
Que catedral, mulher? interrogou o Satanás, curioso.
A
Marta contou então a lenda, muito conhecida, naqueles tempos e ainda hoje, em
Santos. Dizia-se que uma parte da cidade, construída pelos primeiros
portugueses, fora submergida. Era nessa parte que fora edificada a primeira
igreja de Santos: e tanto que, por noites assim, de luar, quem chegava à beira
da praia, ouvia no seio das águas um barulho de sinos, dobrando a finados. E
ai! do pescador atrevido que ousasse pescar naquele ponto!... vinham os padres
à tona d'água e carregavam com ele para o fundo do mar.
-
Crendices tolas! - disse d. Pedro.
Mas,
por uma sucessão de idéias, aquela história supersticiosa da velha trouxera-lhe
à memória as profecias da Zabanila. Sacudiu os ombros. E, aproximando a cadeira
da cadeira de Maria, pôs-se a conversar com ela, em voz baixa. Depois
levantaram-se, voltaram à janela.
A
Marta do Peixe ia retirar-se discretamente da sala, frechando para a janela um
olhar meloso e brejeiro de rufiona entendida. O príncipe falou:
-
Olá! mulher! podes levar a luz!
O
Satanás saiu, e foi à praia apreciar a noite. E a sala às escuras
encheu-se de beijos.
A
mesa ficara posta, com a terrina destampada. E talvez, naquela escuridão, a alma
faminta de d. Bias andasse em comunicações espíritas com a alma cheirosa do
peixe...
Havia
meia hora que estavam sós os amantes, quando o Satanás falou da porta:
-
Senhor!
-
Que é? saiu das trevas da sala a voz do príncipe, enfadado.
-
Cousa séria.
-
Ora, deixa lá as cousas sérias para amanhã, homem!
-
E o capitão das guardas que aí está.
-
Que espere.
-
Não pode esperar. É preciso que fale já com ele.
-
Vai-te para o diabo e deixa-me em paz!
-
Ouça, senhor...
-
Arre, vai-te! já te disse...
-
Perdão! não me vou. Acabam de chegar despachos assustadores de Lisboa.
O
príncipe resolveu-se a desenlaçar-se dos braços da amante. Saiu. O capitão
esperava-o. Depois de uma curta conferência, o príncipe veio despedir-se de
Maria. Outra vez a sala se encheu de beijos. E o príncipe, elevando a voz,
chamou pela Marta.
Ela
veio logo, muito azafamada, arrastando as banhas pesadas. E ajoelhou-se,
comovida, quando o seu hóspede lhe meteu na mão duas moedas de ouro.
Nessa
mesma noite, o príncipe saiu de Santos, acompanhado por um regimento de
cavalaria. E a madrugada despontava, banhando de ouro e fogo os píncaros de
Cubatão, quando a comitiva começou a subir a serra, a caminho de S. Paulo.
VII
D. BIAS CARCEREIRO
Feitas
as revelações e escorropichado o primeiro pichel ali na bodega do Trancoso, d.
Bias pôs-se a refletir sobre o caso.
- O Satanás
tinha partido na direção da rua do Conde. Lá chegando ele deveria
necessariamente intrometer-se naquele drama tenebroso, cujos pormenores, ele,
d. Bias, não conhecia, e cujo desenlace ficava para além, misterioso e vago
como uma ameaça constante. E o Satanás, que não devia morrer, porque os
homens daquela têmpera nunca morrem a botes de espada, o Satanás viria
tomar-lhe contas, pedir-lhe satisfações do auxílio que prestara ao príncipe para
que este lhe roubasse sua amante. E d. Bias esbugalhou os olhos em derredor,
assustado e trêmulo. Sentiu a espada do escultor prancheando-lhe o costado
manejada pelo pulso valente de Pallingrini. Supôs até o aço frio e cortante a
entrar-lhe pelas carnes adentro. Teve medo, muito medo. E apalpou os ossos para
saber se eles ainda estavam inteiros e bons, se não se tinham já esmigalhado
com esta perspectiva infalível de uma vindita do Satanás.
-
Também, quem lhe encomendara o sermão? quem lhe mandara meter-se nessas cousas
e intrigas amorosas do príncipe? Já quando promovera a entrevista com Zabanila,
a esperança dos lucros fabulosos que fizera, empanara-se com a expectativa da
rivalidade com o mestre d'armas. Este pespegara-lhe uns cachações. E bastava.
Pela primeira vez não tinha apetite de repetir.
E
d. Bias reconheceu a necessidade de fugir; de esconder-se, fosse lá onde fosse.
Saiu.
Na
rua teve uma idéia, idéia luminosa, dessas que só aparecem uma vez na vida de
um homem.
Mau
grado a sua nenhuma vocação para semelhantes empresas, atravessou o campo da
Alampadosa todo inteiro, enveredou pela rua da Cadeia, e veio andando, pé aqui,
pé ali, evitando as poças de água, aproveitando as pedras mais altas, às vezes
esgueirando-se rente às paredes.
Chegou
ao convento do Carmo e bateu, de espaços em espaços, compassadamente, numa
porta baixa e estreita que dava para o largo. Abriram-na. Ele entrou.
-
Então?
-
Novidades.
-
Mas ela está dormindo.
-
Bem. Eu durmo aqui para esperar. Mas que ninguém saiba de minha presença nestes
lugares.
E
dormiu por sobre um caixote oblongo, desses que então serviam para guardar
roupas de mulher.
No
dia seguinte, pelo meio-dia, mandaram-no chamar.
D.
Bias foi introduzido num vasto aposento luxuoso, onde morava ostensivamente a
amante ostensiva de d. Pedro. Aposento de amores, onde a fantasia da mulher
pusera alguma cousa de asiático, ele era suntuoso de comodidades, cheio de
coxins forrado a pano da Pérsia com tachas de ouro e prata.
Ela,
a quase rainha, esperava-o, molemente reclinada sobre o leito, com as grandes
carnações leitosas e fortes de mulher sadia, apenas envoltas em uma vasta
túnica de cachemira branca, bordada a ouro. Uma dama penteava-lhe com pente de
ouro os longos cabelos castanhos e sedosos. E a Domitila sorria, triunfalmente
bela.
D.
Bias ajoelhou-se.
-
Senhora! disse. - Senhora, eu tenho vigiado.
-
E já descobriste porventura alguma cousa, oh! tu! meu belo fidalgo das
Espanhas.
-
Já, minha senhora.
-
Pois conta-me lá a tua espionagem, fez a régia amante com um grande sossego de
indiferenças.
Ela
estava agora tranqüila de sua vida. Tinha conseguido do príncipe a promessa de
um título, cuja coroa, reluzente de ouro e pedrarias, viesse lhe adornar os
altos penteados à Maria Antonieta, de que tanto gostava. E essa viagem a
Santos, que acabava de se efetuar naquela madrugada, fora ela quem a exigira,
desejosa de converter esta cidade no feudo de seus amores.
Já
não lhe vinham mais os ciúmes primitivos, que tanto acidentaram o primeiro
período de suas ligações. Sentia-se feliz, forte e soberana, dominando o
coração de d. Pedro e podendo permitir-lhe as pequenas escapadas das aventuras
noturnas. E esquecia-se até de que encarregara d. Bias de vigiar os passos do
seu régio amante.
D.
Bias, porém, perorou longamente, espanholamente.
Contou
o caso da rua do Conde, fazendo-o tenebroso, cavalgando a rédeas soltas no
Rocinante das suas fantasias - d. Quixote dos ideais, ele mesmo, magro e
esgalgado, lutador impertérrito de longa durindana para a batalha solene dos
moinhos de vento.
-
Fora o Satanás que fizera tudo. O Satanás! - a negra alma
vagabunda da perversão e maldade! Fora ele quem, sem mais barregãs nem rameiras
para oferecer ao seu régio discípulo de esgrima, quisera dar-lhe até a própria
amante. Bem lhe conhecia os planos. Satanás queria dominar inteiramente
o príncipe, dominá-lo pela amizade e dominá-lo pelo coração, para ficar o
senhor absoluto dessa terra dos Brasis. Conspirava. Conspirava até contra ela -
a bela nina formosa!
-
É preciso matá-lo! Consiga ao menos que o deportem! Nada vos é impossível, a
vós que fizestes deportar o conde d'Arcos.
A
Domitila fez-se apreensiva. Ela não gostava do Satanás. E vinham-lhe
agora receios de ver a fortuna esboroar-se-lhe no momento mesmo que supunha
alcançá-la.
-
Em todo caso, disse como que meditando, em todo caso agora não pode ser, porque
o príncipe e o Satanás partiram esta madrugada para Santos.
-
Caramba! resfolegou d. Bias com a notícia de estar longe o homem de quem tinha
medo. - Caramba! porque se aqui estivesse, era eu quem o ia matar!
Ela
nem sorriu dessa fanfarronada. Mas gritou-lhe imperiosamente:
-
Quero essa mulher! Quero a amante de Satanás! Dou-te mil cruzados, se a
trouxeres!
E,
de pé, ofegante, com um gesto de rainha:
-
Vá!
D.
Bias saiu.
Caminhou
pelas ruas, altivo e malcriado, retinindo a durindana pelas pedras, cofiando o
bigode provocadoramente.
Estava
longe o Satanás, e ele não tinha medo.
Por
isso andou e correu a cidade inteira. Soube logo notícias do drama da rua do
Conde. Vieram-lhe calafrios com a noção completa do perigo que correra. Mas
dominava-lhe dentro da cabeça a idéia dos mil cruzados que lhe haviam sido
prometidos, para o caso de descobrir a amante do escultor-espadachim. E tratou
de encontrá-la.
Poucas
esperanças tinha a este respeito. Não a conhecia. E as informações dos alguazis
amigos, que andavam empenhados em desvendar o mistério da morte de Paulo de
Andrade, falavam apenas em suspeitas de que naquela casa residisse uma moça,
que devia ter fugido.
Fugido
com quem?
Levá-la-ia
d. Pedro para algum misterioso antro de amores?
Ou
o Satanás tê-la-ia posto a seguro, em algum esconderijo desses que só
ele conhecia?
D.
Bias estava na incerteza. Não sabia que partido tomar. E pensava até em
aproveitar a filha do carpinteiro Custódio, que lhe residia em casa, para
fazê-la passar como amante do italiano.
O
ponto para ele era receber o dinheiro da Domitila e passar-se imediatamente
para qualquer terra longínqua, onde não chegasse o braço vingativo do seu
ex-companheiro das bodegas do Mansanares.
Quando
seguia, porém, já quase ao anoitecer, pela rua da Vala, chamaram-no de dentro
da prisão provisória que ai havia, e onde eram recolhidos os vagabundos
notívagos.
Era
um alguazil, que ele pusera em meia confidência do negócio, e que lhe mostrou
Branca, seminua, com as roupas sangrentas.
A
filha de Pallingrini, logo após a brusca partida do pai, precipitara-se sobre o
cadáver de Paulo de Andrade. Abraçara-o, beijara-o sofregamente, loucamente, na
febre amorosa dessa loucura, que para sempre lhe entenebrecera o cérebro,
triturando-lhe o coração.
Depois
tivera medo, sentindo rijo e frio, sem aconchegos de abraços e quenturas de
beijos, o pálido capitão formoso dos seus amores juvenis.
Teve
medo e fugiu.
Perambulou
pelas ruas, inconscientemente de si murmurando carícias e meiguices e gritando
de repente um grito de horrores.
Prenderam-na.
D.
Bias adivinhou-a. Não podia ser outra. Aquele sangue, as palavras incertas que
pronunciava, e que podiam todas articular-se ao drama indecifrável da rua do
Conde, revelavam-na, garantiam-lhe a autenticidade da descoberta.
E
o fidalgo espanhol, aproveitando o alguazil seu amigo, e mais ainda o segredo
da noite, que tem sempre um manto escuro para esconder esses mistérios, levou-a
para os fundos do convento do Carmo, onde já estavam dadas ordens de recebê-la.
A
Domitila nem quis ver a rival que o Satanás lhe pretendia impor. Mas não
quis também contar logo o dinheiro que prometera, e ordenou que d. Bias ficasse
de guarda a prisioneira.
E
a porta pesada de um quarto térreo e sem janelas aferrolhou-se sobre Branca - a
pobre criança louca, para quem a sorte se mostrava tão áspera, e que cantava
entretanto um alegre bolero espanhol saltitante e amoroso como o pé das
sevilhanas.
VIII
O GRITO AURIVERDE
Naquele
tempo fazia-se a viagem de Santos a S. Paulo, através do mato virgem. A serra
que a Estrada Inglesa hoje corta, e por onde sobem os vagões bufando, só podia
ser galgada a cavalo, dificilmente, penosamente. A jornada de d. Pedro fez-se
por um dia magnífico. A serra inundada de sol encrespava a sua vegetação
prodigiosa, de um lado e de outro do estreito caminho, aberto na mata, por onde
os cavalos trotavam enchendo as grotas de ecos prolongados.
A
frente da comitiva, o príncipe cravava de instante a instante as esporas no
animal. Ao seu lado, seguia o comandante do regimento. O Satanás vinha
mais para trás, com a capa voando ao vento, na impetuosidade do galope. Depois,
atropelado e veloz, - num grande estrupido, o regimento de cavalaria abalava a
serra, voando.
Ninguém
falava. O príncipe seguia preocupado, por aquele novo aspecto que tomavam as
cousas, impondo-lhe agora um procedimento cujas conseqüências ainda não se
podiam prever. Esquecera-se já dos tristes sucessos da casa da rua do Conde. A
princípio, o remorso lhe apuara o coração, vendo-se o causador daquela grande
desgraça. Branca resistira com uma tenacidade, que ofendera a sua vaidade de
conquistador irresistível. Era a primeira mulher que opunha um obstáculo à
satisfação de um desejo seu. Ferido no amor próprio, não recuou diante de uma
violência. Nenhuma das outras recusara aquela honra, nenhuma! - estas, por
amor, cedendo-se com paixão àquele belo fidalgo que governava o maior país da
terra, e cujos lábios e cujas mãos tinham carícias tão novas, afagos tão doces;
aquelas, por vaidade, amando-o por luxo, dando-se a ele pela satisfação de se
sentirem princesas no breve espaço de um espasmo de gozo; outras, por imposição
de maridos e pais ambiciosos, fazendo do corpo de uma esposa ou do corpo de uma
filha sólidos degraus para a subida gloriosa do poder... Nenhuma das outras
recusara aquela honra, nenhuma!
E
era aquela criança tímida e fraca, era aquele pedacinho de gente, que lhe vinha
cravar os olhos na face, atrevidamente, corajosamente, e dizer-lhe sem tremer:
- Não te quero, não te desejo, não serei tua, porque não te amo, porque amo um
outro que é mais belo, que é mais amante, que é mais forte do que tu!
Depois,
quando vira entrar no quarto Paulo de Andrade quando compreendera que era
aquele o seu rival, o príncipe esperara-o a pé firme, olhando-o face a face,
num ímpeto daquele seu belo temperamento, tão seu e tão nobre, que o faria
afrontar todos os perigos, que o fez uma vez, mais tarde, sozinho, em S.
Cristóvão, esperar na rua um homem que o ofendera, e retalhar-lhe o rosto a
chicote.
Mas,
Paulo recusara, preferindo matar-se a erguer a mão contra ele.
E
vendo-o morto, o príncipe, compreendendo que ia haver um escândalo, saiu
daquela casa, fugindo do lugar onde fora procurar um gozo passageiro e onde ganhara
um remorso terrível.
Agora,
porém, essa preocupação fora sufocada por outras mais sérias. O homem
desaparecera. Em seu lugar ficava apenas o príncipe, com toda a grave
responsabilidade de uma conspiração política.
Era
possível recuar? A guerra estava declarada. A tropa portuguesa capitulara no
Rio e não tardava muito que capitulasse também em todo o resto do Brasil. O
senado conferira ao príncipe o título de Defensor Perpétuo do Brasil; não lhe
impunha esse titulo o dever de resistir a tudo e a sacudir de uma vez o jugo da
metrópole? Não era defender o Brasil e, mais do que isso, salvá-lo, fazer com
que ele se constituísse nação independente?
Quanto
ao Satanás, a sua preocupação era de outra natureza; o desgraçado
pensava na filha, de quem não sabia, de quem já não queria saber, atolada na
desonra, roubada ao seu afeto.
O
desejo de vingança enchia-lhe a alma de rancor; poderia numa hora de júbilo
supremo, roubar a vida a quem lhe roubara a felicidade? conseguiria enfim
satisfazer a sua única preocupação de agora, deitando a mão ao verdadeiro
culpado?
D.
Pedro interrompeu-lhe a meditação, chamando-o para junto de si.
-
Dize cá, Satanás! tens confiança no futuro?
-
Por que não? é tão bom esperar, mesmo quando só há motivo para desespero!...
-
Duvidas então do êxito da minha última aventura?
-
Não! não duvido... Era do meu futuro que falava e não do seu. O seu futuro é
garantido: que motivo teria eu para duvidar dele?
-
Também me parece isso. Demais não foi só a minha ambição que trouxe os
acontecimentos ao pé em que estão: foi também a fatalidade que preparou tudo,
dando-me este papel, que não posso recusar, porque há muito tempo que o
desejava e pedia a Deus. Agora é caminhar.
D.
Pedro alongou a vista pelo horizonte. Agora, galgada a serra, rasgavam-se as planícies
verdes, cheias de tufos de árvores, arrepiadas de outeiros, circuladas de
montanhas.
-
Será talvez o primeiro do mundo, este país que Deus me quis dar, na sua justiça
infinita. Desgraçado de quem, chegado ao meio do caminho, tem medo do desconhecido
e dá as costas ao que tem de vir. Eu já não posso parar. Vencerei o futuro, ou
serei vencido por ele. Mas serás meu, país abençoado...
E,
parado, sofreando a carreira ao cavalo, de cabeça erguida, belo e
transfigurado, o príncipe teve um largo gesto que varreu todo o horizonte.
Eabalou
de novo, ato do galope, pela planície afora, como se quisesse chegar mais
depressa a esse futuro que lhe sorria e que o chamava, acenando-lhe com uma
coroa e com a glória da fundação de uma grande nacionalidade.
Depois
de um longo silêncio, foi o Satanás o primeiro a falar.
-
E já não é possível reprimir o ódio entre brasileiros e portugueses, senhor.
São conflitos constantes, rixas de todos os dias. E só o que se deve recear. Se
a população portuguesa reagir? se mesmo a população brasileira recuar?
-
Não recuará. Pois não foi o próprio povo quem me pediu que ficasse, exigindo
que eu rompesse com meu pai?
-
Não há que fiar no povo, senhor. O povo quer uma cousa hoje e outra amanhã. De
mais, mesmo confiando no povo, não se devem recear as alternativas da guerra?
-
Mas as últimas noticias são boas. Labatut, na Baía, caminha de vitória em
vitória. Venceremos.
E
não falou mais, senão quando, no vale do Ipiranga, às margens do rio que se
acachoeirava, espumando, entre ribas de verdura, ordenou que se fizesse um
pequena parada de descanso, antes de entrar na cidade.
Todos
se apearam.
Na
serenidade da tarde, as palmeiras bracejavam no ar. Havia uma grande suavidade
no céu muito azul, limpo de nuvens, cortado de asas. Os cavalos saíram pelo
campo, a pastar. Os soldados estenderam-se na relva, prostrados por aquela
caminhada longa, ao sol forte de setembro. Abriram-se as garrafas de cana,
acenderam-se os cigarros.
D.
Pedro e Satanás falavam de Marta, da peixada de escabeche, da beleza de
Maria.
-
Homem, por falar em peixada... fez d. Pedro, e disse uma cousa que fez o outro
rir muito.
O
príncipe riu também, e levantando-se, entrou numa moita.
Mais
longe, na entrada do vale, levantou-se uma nuvem de poeira. Ouvia-se um galope.
E, em breve, um cavaleiro apareceu. Ao chegar perto da comitiva, apeou-se, e
deixou-se cair no chão, sem fala, coberto de pó, extenuado.
Tinham
chegado a Santos, logo depois da partida do príncipe, novas notícias, ainda
mais graves, ainda mais aterradoras.
Era
ele quem as vinha trazer. Tinha viajado sem parar um instante, num galope louco
pela serra acima.
O
comandante do regimento foi procurar o príncipe. Encontrou apenas o Satanás,
sentado numa pedra, cotovelos sobre os joelhos, face sobre os punhos,
pensando.
-
Onde está o príncipe?
O
Satanás levantou os olhos e disse gravemente:
-
Espere um pouco. Está ocupado. Foi apanhar uma parasita.
Quando
o príncipe veio, não o surpreenderam as notícias. Confirmava-se o consta de
terem sido os deputados brasileiros obrigados a fugir de Lisboa. Esses
deputados eram Antônio Carlos de Andrade e Silva, Cipriano Barata, Lino
Coutinho e Diogo Feijó. Antônio Carlos, em plena sessão das cortes interrompido
num discurso, bradara num belo assomo de indignação: - Silêncio, canalha!
Quando fala um brasileiro ninguém o interrompe!
O
governo português, diziam mais as notícias, dispunha-se a mandar uma esquadra
para o Brasil, para reprimir a revolução. Era preciso agir, com a máxima
urgência.
D.
Pedro não pestanejou. Chamou o comandante.
-
A cavalo! forme o regimento!
E
arrancou do chapéu o pendão azul e branco. Depois, tirou de uma árvore uma
folha verde, listrada de amarelo, e, substituindo-a ao pendão, montou também a
cavalo.
O
regimento esperava, em linha, a voz de marchar. O príncipe estendeu o braço:
-
A caminho!
E,
com uma voz que ecoou longamente, na tarde radiante, pelas quebradas da
serrania, soltou o seu grito de guerra - Independência ou morte!
IX
O INQUÉRITO
Mal
chegado de São Paulo, depois daquele sucesso imprevisto da Independência, que
abreviara a viagem de d. Pedro, o Satanás tratou de averiguar ocaso
misterioso da rua do Conde.
Remordia-o
principalmente o remorso no relativo à Branca e ao abandono em que a deixara.
Nem mesmo podia compreender como ele, o homem impassível e calmo, já afeito às
vicissitudes da sorte e bem afamado pela imperturbável presença de espírito,
que conservava durante os transes mais arriscados da vida, se tinha tornado quase
doudo, irrefletido e imprevidente.
A
nada concluíam entretanto as suas primeiras pesquisas. Lá, na rua do Conde, a
casa de Branca conservava-se impenetrável e quieta, com essa lúgubre fisionomia
dos prédios misteriosos que foram o teatro de um crime. E, pela vizinhança,
diziam-na apenas mal-assombrada, percorrida durante a noite por fantasmas
alvadios de almas penadas, que vinham gemer a sua dor na encenação espetral das
crendices populares.
Ninguém
sabia de mais nada, e ninguém conseguira esbater luz sobre a treva apavorante
daquele crime.
Mistério,
mistério!
De
Branca nem se ouvia falar. Talvez que ela tivesse remontado para o céu na
compostura angelical de suas purezas.
E
o Satanás debatia-se, cego e louco, apaixonado e fúnebre, na grande
noite das idéias. Lembrou-se, entretanto, de d. Bias. Fora ele quem viera
chamá-lo à bodega do Trancoso. E o magro fidalgo das Espanhas bem devia
conhecer alguma cousa desse drama sanguinolento e inexplicável. Se ele nada
pudesse dizer sobre a sorte de Branca, relataria pelo menos o princípio dessa
luta a que assistira, e que prostrara em terra o cadáver de Paulo de Andrade.
E
o Satanás dirigiu-se para a tasca da rua do Piolho.
D.
Bias lá estava.
Ninguém
lhe dissera sobre a chegada do príncipe e sua comitiva. E ele supunha-se muito
seguro, longe da espada de Pallingrini.
Ria
a bom folgar.
A
Domitila, recusando-se embora a pagar-lhe imediatamente os mil cruzados
prometidos, recheava-lhe a bolsa, de constante, e permitia-lhe algumas
diabruras, que o arredassem por momento da vigilância sobre a prisão de Branca.
E
d. Bias fazia-se agora de pagador, e falava alto e fanfarronava à vontade entre
aquela gente que lhe ia escorropichando os pichéis.
Fez-se
branco, pois, trêmulo como um esqueleto de museu agitado pelo vento, quando o Satanás
bateu-lhe ao ombro fortemente.
Mas
recuperou logo a presença de espírito. Estava diante do inimigo. E se lhe
faltava a coragem de desembainhar a nunca desembainhada durindana, compreendia
a necessidade de esgrimir a mentira - a única arma que ele sabia manejar.
-
Bem hajas pelo teu regresso! disse. Tu desapareceste de repente, e eu tinha,
entretanto, importantes comunicações a fazer.
-
E eu ando à procura dessas comunicações, fez o Satanás com a voz
soturna, sentando-se do outro lado da mesa e esvaziando um copo que ali estava.
-
Então, pergunta. As minhas idéias, assim, se concatenarão melhor e com mais
vantagens para ti.
-
Pois bem! O que é feito de Branca?
-
Que Branca?
-
A minha filha! Aquela moça loura que desapareceu bruscamente depois do crime da
rua do Conde.
-
Era tua filha!
-
Sim.
-
Pois não sei! afirmou d. Bias resolutamente.
Descobrindo
que a sua encarcerada era filha do Satanás, o magro fantasma de d.
Quixote teve ímpetos de revelar-lhe tudo. Perpassou-lhe no cérebro a idéia de
ajoelhar-se, de rojar-se ao chão, de dizer ao escultor:
-
Tua filha! Sou eu quem a tem prisioneira. Mas perdoa-me. Eu, só eu te a posso
restituir. Vem comigo. Vem buscá-la. Mas perdoa-me. Conserva-me a vida. E dá-me
os mil cruzados que a Domitila me prometeu.
Mas
d. Bias amava Branca. A meiga e triste filha do Satanás deixava que ele
a abraçasse. Sorria numa alegria infantil de louca. E muito baixinho dizia-lhe
ao ouvido uma suave cantilena de amores: - Paulo! meu Paulo!
Por
isso ele afirmou:
-
Não sei.
O
Satanás não lhe permitiria com certeza o prolongamento desses idílios de
prisão. E d. Bias amava Branca.
Também
o outro não insistiu.
Não
eram essas propriamente as revelações que esperava. Perguntara por perguntar, para
dar saída a essa idéia que o obsedava, que lhe fazia o mais forte e o mais
insistente das preocupações. E, sem mais referir-se ao caso, continuou o
inquérito relativamente aos pródromos do drama.
-
Como soubeste que lá em cima, na minha casa, havia gente a se matar?
-
Eu te conto, Satanás. Eu conto.
-
E toma tento em ti. Fala a verdade. Por que se não...
E
um grande murro sobre a mesa completou-lhe o pensamento.
D.
Bias começou assim:
-
Naquela noite, sabia de uns amores misteriosos, que não te relatarei nem por
quinhentos milhões de diabos, nem que venha o inferno todo inteiro em guerra
aberta contra mim, porque sou fidalgo das Espanhas e nunca meus lábios traíram
o segredo da reputação de uma mulher.
O
Satanás olhou-o muito sério, com a força violenta do seu olhar de fogo.
-
Escuta! d. Bias. Trata de dizer-me a verdade e deixa-te dessas retóricas.
-
Mas...
-
O melhor é perguntar. O que fazias tu na rua do Conde por aquelas horas da
noite?
D.
Bias, então, sentiu uma grande necessidade de expandir-se, de dizer a verdade
toda inteira àquele homem que ele se habituara sempre a temer, que o dominava
com todo o prestigio da sua força, e que estava ali, defronte dele, a crestá-lo
com a chama insistente do seu olhar de fera.
E
disse tudo. Disse como d. Pedro o chamara para uma empresa amorosa, como eles
se tinham ido postar diante da casa de Branca, como o tinham visto a ele, Satanás,
entrar e sair, como tinham entrado depois, como tinham garrotado e
amordaçado d. Emerenciana, como o príncipe subira e estivera lá em cima a sós
com Branca como a casa tinha sido assaltada pelo valente capitão das guardas,
como ele, d. Bias, tinha fugido e vindo lhe pedir socorro.
-
Miserável! praguejou o Satanás.
E,
para saciar logo a sua sede de vingança, para dar aos músculos nessas grandes
tempestades de idéias que lhe espatifava o cérebro, o escultor suspendeu d.
Bias pela cintura e atirou-o com durindana e tudo para o meio da sala.
Depois
saiu, possesso, louco de raiva, qual fera bravia em cio de vinganças.
D.
Bias levantou-se, a mão aos copos da espada, numa compostura honesta de homem
insultado, que exige uma reparação imediata e sanguinolenta.
-
Por S. Tiago de Compostela! Os fidalgos não fazem assim! Brigam lealmente e não
fogem como este Satanás de todos os infernos.
Lá
fora Pallingrini foi-se acalmando com a frialdade da noite.
O
vento caía-lhe sobre as faces como uma ducha, chamando-o à realidade da vida. E
ele fez-se mais quieto, diminuiu o passo, que trouxera acelerado até então, e
pôs-se a meditar.
Queria
uma vingança, vingança completa, vingança de italiano.
Branca!
Ela deveria estar em poder do príncipe. E era preciso reavê-la. Para isso não
havia brutalidades e violências que produzissem resultado. Ele tinha
necessidade de fazer-se manhoso e hipócrita. D. Pedro seria agora o seu mestre.
Ele soubera tão bem compor a fisionomia traidora e fazer-se amigo e confidente
naquela recente viagem a Santos, que bem valia a pena imitá-lo.
E,
depois... depois, quando à força de vigilância e de astúcia ele tivesse
descoberto o esconderijo onde o príncipe lhe guardava a filha, quando tivesse
abraçado Branca, quando readquirisse a posse daquele amor imaculado e puro,
ideal e santo de pai, depois... viria a luta, luta de gigantes, para a qual ele
traria toda a energia do seu temperamento e toda a audácia nunca desmentida do
seu viver.
Não
lhe bastava a morte de d. Pedro. D. Pedro era valente. E, para ele, a morte era
apenas esse fatal desenlace da vida que não assusta aos fortes e que o homem
procura muitas vezes.
Para
que matá-lo?! Embora o horóscopo fatídico da cigana aí estivesse a dizer que um
dos dous devia morrer pela mão do outro, ele não queria matar o príncipe.
Queria-o miserável e vencido, morto no seu orgulho, arrastando uns dias
infaustos de vilipêndio, martirizado por essa angústia de abatimento que é o
suplício dos fortes.
E,
horrivelmente calmo, como o espetro sinistro das vinganças, ele cortou as
trevas da noite com um gesto largo de ameaça.
X
PARA VINGAR
O
Satanás vivia infeliz nas suas pesquisas para descobrir o paradeiro de
Branca. Por mais que se fizesse a sombra de d. Pedro, por mais que o seguisse
em todas as costumeiras migrações noturnas, por mais que se lhe pusesse
debruçado sobre o espírito a acompanhar-lhe a sucessiva eclosão de idéias, não
conseguira nunca descortinar um bocadinho desse mistério, que ficava para além
sepulto no abismo apavorante dos segredos.
Vinham-lhe
por vezes dúvidas, suspeitas de que d. Bias tivesse mentido, vontade de
sujeitá-lo a um novo inquérito, planos de prendê-lo e de arrancar-lhe a verdade
até mesmo pela tortura.
Mas
d. Bias desaparecera. Ninguém mais o encontrava, nem lá na bodega do Trancoso,
nem pelos outros lugares por onde ele gostava antigamente de passear a sua
longa durindana ferrugenta. Fizera-se caseiro. E, ali nos fundos do convento do
Carmo, enlevava-se todo no amor da sua encarcerada, contente da vida, porque a
Domitila nada resolvia sobre a infeliz louca, porque davam-lhe bom repasto, e
porque estava a seguro de um encontro com o escultor.
Falto
dessas informações, desse caminho único para a descoberta da verdade, o Satanás
tinha também, por vezes, ímpetos de interpelar o príncipe, de ir
diretamente a ele para a luta suprema das vinganças paternas. Aproveitaria o
ensejo de uma alta noite, naquela hora em que os dous costumavam estar
sozinhos, e em que o vinho e a mulher fazem a palavra expansiva e franca,
volutuosamente escorregando pela língua para o diálogo amigável das confissões.
E então seria brutal, violento como um pai ultrajado que se arma com a
plenitude dos seus direitos e com o instinto das suas obrigações.
Oh!
ele bem saberia ritmar a grande vibração sonora das suas reclamações e dos seus
discursos, ele bem saberia como falar com a voz repassada de confrangimento,
pontuada de gritos e de imprecações. Para isso bastava que deixasse transbordar
toda inteira a dor sofrida que lhe ia na alma.
Mas
não convinha. D. Pedro não se sujeitaria a ouvi-lo, e nem tinha remédios para
curar-lhe o sofrimento, porque não há bálsamo que chegue para suavizar a ferida
feita nesse amor de pai, imaculado e puro, divinal e casto.
Por
isso, ele, Satanás, queria a vingança.
Os
sucessos políticos, cuja confidência lhe era diariamente feita e em que andava
completamente envolvido, vinham servir-lhe, a mais não ser, nessa obra sinistra
de vinditas que estava longamente planejando. Eles eram a apoteose do príncipe
que o povo aclamava; podiam tornar-se a derrota do seu orgulho e a morte para
sempre da sua individualidade sepultada nas trevas de um cárcere.
E
o Satanás sonhou primeiro com a reação portuguesa. As tropas lusitanas
ainda estavam aqui, luzidias e valentes, bem afamadas na disciplina e
respeitadas pelo povo.
Bem
certo que Jorge de Avilez quietava-se irresoluto, não sabendo que partido
eleger, receoso de optar entre as cortes e o príncipe herdeiro de Bragança.
Para determiná-lo a uma reação pronta e imediata, o Pallingrini teve então uma
dessas idéias diabólicas, que só a ele podiam acorrer. E numa carta incisiva
que dirigiu ao general português, narrou a história de uns amores de d. Pedro,
que tinha penetrado até a câmara nupcial do tíbio comandante lusitano.
Este,
ferido em seus brios e em sua honra, louco de dores, preparou-se então para
reagir. Mas abortou logo em princípio o movimento que projetara. A milícia,
principalmente a milícia de Niterói, cercou a divisão lusa e obrigou-a a
capitular e ir aquartelar-se na Armação, até que se aprestassem vapores para
recambiá-la para a Europa.
O
Satanás tratou então de aproveitar os elementos nacionais que se
congregavam em torno da Sociedade Tenebrosa do Apostolado, e que desde o
começo fundamentara o dogma do nativismo.
Aí
iniciado, ele tornou-se um dos maiores propugnadores da idéia, tratando de
aliciar adeptos e enredando o Rio de Janeiro numa vasta conspiração, a que
faltava apenas um chefe, com coragem e audácia para fazer a Independência de
uma só vez e completamente.
O
seu principal trabalho, porém, trabalho surdo de alcoviteiro que intriga e sabe
o segredo amoroso da alma humana, foi a rivalidade que estabeleceu entre a
Domitila e a irmã. Dessa luta de mulheres que lutavam dentro do coração do
príncipe, devia necessariamente resultar a devastação do campo de batalha.
E
era isso o que ele queria, isso o que esperava como primeiro suplício na senda
tormentosa de desgraças que estava preparando ao régio boêmio de Bragança.
D.
Pedro era o Archonte Rei do Apostolado. Chefe supremo da poderosa
sociedade, fora nela que encontrara o mais sólido apoio para as suas ambiciosas
pretensões. E mal podia ele imaginar que dali mesmo partiria o primeiro golpe
contra o seu poder.
Foi
a própria Domitila quem o preveniu do perigo. D. Bias, que, temendo o Satanás,
o considerava inimigo, começou também a freqüentar as sessões da Sociedade
Tenebrosa e chegou ao conhecimento da trama que se urdia. A Domitila,
possuidora do segredo, não hesitou: mais do que o seu despeito de amante
enganada pôde o seu amor e pôde a sua ambição. Contou tudo ao príncipe.
Dai
a dous dias, o Apostolado devia reunir-se em sessão magna.
O
príncipe dispôs-se a golpear de morte nesse dia a instituição que o queria
prender.
Foi
numa segunda-feira. As sete horas da noite, ninguém diria, ao passar pelo velho
quartel da Guarda Velha, que havia ali uma reunião de mais de quinhentas
pessoas das mais altamente colocadas da política, do exército e do povo. A casa
estava às escuras, com todas as janelas fechadas.
De
quando em quando, um vulto chegava, embuçado, e batia três pancadas à porta. A
porta abria-se, e o vulto entrava, perdendo-se no corredor escuro, depois das
palavras sacramentais do santo e da senha.
-
S. Pedro!
-
Amor e Fidelidade!
A
sala de sessão ficava ao fundo da casa. Chegava-se lá depois de percorrer três
longos corredores, através do quartel.
Era
uma enorme sala, toda forrada de tapeçaria negra e iluminada apenas por um
enorme lustre negro que pendia do teto, e onde ardiam dezenas de velas. Ao
fundo erguia-se um estrado, onde duas largas cadeiras e uma pequena mesa
esperavam o Archonte Rei e o acólito. Sobre o estrado, no fundo negro da
parede, destacava-se, bordado a vermelho, o símbolo da sociedade: um triângulo,
cercado por uma facha, onde se lia - Soc. Ten. do Apos. - e em cujo
centro ocultava o desenho de uma espada e de um machado, cruzando-se.
As
cadeiras dos camaradas estendiam-se em quatro grandes semicírculos, pela sala
negra, abafada, onde a voz ecoava longamente, não achando por onde sair. E
reinava em tudo aquilo um pavor, que pesava na alma...
Já
quase todas as cadeiras estavam ocupadas. Todos os camaradas vestiam túnica
negra, com o símbolo vermelho ao peito.
Quando
o Satanás entrou, a primeira pessoa que viu, foi d. Bias.
O
fidalgo espanhol era a figura mais sinistra de toda a sala. Estava a um canto,
encarapitado na cadeira, com os joelhos pontudos e salientando-se na túnica, e
com um eterno movimento de queixos, como se estivesse murmurando uma oração.
Quem o via, pensava que d. Bias estava rezando. Engano: d. Bias estava comendo
biscoitos.
O
Satanás parou e deixou cair pesadamente a mão sobre o ombro do
carcereiro de Branca. D. Bias ficou pálido como um cadáver, batendo os dentes e
unindo as mãos, num gesto de súplica. Mas, o Satanás fez-lhe um sinal de
ameaça e foi sentar-se no seu lugar.
Ah!
não tardava muito, não tardava muito! Em breve a porta se abriria, e ele apareceria,
confiado e calmo, sem esperar que daquela casa partisse a sentença da sua
condenação. E quando d. Pedro - o poderoso - se visse diante daquele oceano de
quinhentas cabeças, todas agitadas de ódios, todas regularmente e
implacavelmente sacudidas numa negação absoluta de apoio, ele, Satanás, o
fraco, o vencido, o cão rafeiro, exultaria na sua fraqueza e na sua pequenez...
Mas
a hora aproximava-se. O acólito - Máximo Régulo - fora tomar o seu lugar no
estrado. Um sino vibrou três pancadas, agudas e rápidas. Todos se levantaram.
Um grande silêncio pesou na sala. A porta abriu-se de par em par. E, só,
vestido como os outros, na túnica negra e simples de camarada, d. Pedro entrou
serenamente empunhando a sua insígnia de Archonte Rei - um bastão de
marfim, marchetado de ouro. A fisionomia do príncipe não revelava a menor
agitação interior. Caminhou até à mesa.
-
Deus te guarde, camarada! elevou-se a voz do acólito.
-
Leve-te o diabo, traidor ! - soou no grande silêncio da sala apavorada a voz
soturna do príncipe.
E,
antes que alguém tivesse tempo de voltar a si da surpresa, d. Pedro abriu a
pasta que se achava sobre a mesa revolveu os papéis, guardou-os consigo.
E,
erguendo o bastão, gritou:
-
Saiam!
XI
ÀS CLARAS
Quando
o príncipe saiu de dissolver a Sociedade Tenebrosa do Apostolado, onde
penetrara com a mesma audácia de Cromwell no parlamento inglês, o Satanás foi
acompanhá-lo, já precavido de respostas contra as naturais recriminações que
devia receber, desejoso de não se desligar nunca daquele cuja queda vivia
preparando.
D.
Pedro, sombrio e taciturno, caminhando para o Paço, apressadamente, não lhe
dizia sequer uma palavra. E os dous seguiam, como nas noitadas de sempre, um ao
lado do outro, muito amigos para os raros transeuntes que os viam e que deles
respeitosamente se afastavam.
E,
chegados que foram a régia habitação, penetraram, como sempre, por uma porta
escusa, situada por baixo do passadiço que ligava o palácio ao velho convento
do Carmo.
Nada,
enfim, parecia indicar qualquer alteração na vida de ambos. A mesma ceia, que
os esperava todas as noites, estava servida num aposento contíguo, térreo e um
pouco úmido, espaçoso e cheio de armários.
Sentaram-se.
Depois
da primeira libação, d. Pedro encheu novamente os copos, e, erguendo o seu,
disse, maliciosamente, com um sorriso triste de homem que assistiu ao
despedaçamento das próprias ilusões:
- A tua
amizade! Satanás.
-
A nossa!
-
Sim. À nossa. Eu acredito na reciprocidade de sentimentos entre nós. Liga-nos
um mesmo destino. E já a velha feiticeira do Valongo tinha profetizado que
algum dos dous devia morrer pela mão do outro.
E
acrescentou:
-
Mas, dize-me cá uma cousa! Por que me odeias tu?
-
Senhor!
-
Não. Não negues. Nem é próprio de ti, nem eu acreditaria nas tuas afirmações e
nos teus protestos.
O
Satanás fez um gesto vago e incerto de significação.
-
O teu ódio! continuou o príncipe, eu o tenho sentido de certo tempo a esta
parte, pertinaz e insistente sobre mim. Eu o reconheci até no teu andar e na
tua voz, por essas longas noites que temos vivido juntos derradeiramente.
-
Qual, senhor! Eu sou novamente vítima de intrigas. O príncipe bem sabe que foi
sempre invejada a confiança que me dispensava. E agora, como das outras vezes,
seja-me permitido esperar que eu saia desta aventura reabilitado, como sempre
me tem acontecido, na sua estima.
-
Bem vontade tinha eu que assim fosse. Tu não sabes como é triste e amargo o
brusco despedaçar das amizades longamente cimentadas. Tu não sabes como faz
sofrer o espetáculo da ingratidão humana.
-
Mas nesse caso, basta-lhe querer, basta-lhe examinar os fatos, para reconhecer
que a minha dedicação nem por um momento deixou de acompanhá-lo. Eu estava, é
certo, lá no Apostolado, mas lá estava para bem servi-lo.
- Não, Satanás!
Tu lá não estavas para me servir... Mas também não é essa a grande acusação
que te faço, não é por isso que venho falar-te do teu ódio.
-
Então! por quê?
-
Por quê? Mas não basta, por acaso, esse teu olhar; olhar que espeta, quando o
olhar do amigo tem veludo e maciez para o repouso da nossa individualidade toda
inteira?
-
Senhor!
-
Não, fez o príncipe. - Não protestes. Escuta-me.
E
d. Pedro, nervoso, agitado, começou a passear pelo quarto o seu grande vulto
esbelto de homem bem feito.
Depois,
voltando a mesa, ele parou, um pé sobre a cadeira e o queixo repousando sobre a
mão longa e fina de fidalgo. E pôs-se a olhar demoradamente para o Satanás.
Este
nem se movia, impassível e quieto. Refluíra-lhe para o cérebro, numa pertinaz
concentração de idéias, toda a força vital do seu querer. E estava meditando,
estava procurando o desenlace desta cena que vinha perturbar-lhe a serenidade
vingadora dos planos longamente projetados. Sentia por vezes ímpetos de atirar
para longe a máscara da comédia, que a força das circunstâncias o obrigava a representar;
desejos de ser ele mesmo nobre e altivo, como sempre fora.
Mas
a imagem de Branca perpassava-lhe pela imaginação, destacando-se da treva
absoluta do mistério como um pedido solene de vingança. E ele retesava os
músculos na rigidez suprema da calma, porque a hipocrisia era a única arma que
podia manejar contra aquele príncipe, desde o momento em que lhe não bastava a
morte de um homem para fazer o sossego e a paz da sua vida, sempre condenada
para a dor.
D.
Pedro, porém, continuou:
-
Escuta-me, Satanás! Eu primeiro quero dizer-te todo o sofrimento que me
vai na alma com esse fúnebre desenlace infalível da nossa velha amizade. Porque
eu muito te amei. Foste tu quem me ensinou o manejo das armas, quem acordou em
mim esse velho instinto belicoso e aventureiro que fez a glória dos meus avós
remotos, mas que os Braganças de agora iam esquecendo no espólio da sagrada
herança de família. A ti eu devo enfim ser o que sou - esse rei cavaleiro da
raça de Francisco de França, que muitos Pavias podem derrear mas que sai sempre
incólume, abroquelado na sua valentia para salvar a sua honra.
E
o príncipe fez uma pausa longa e demorada.
-
Devo-te isso tudo, acrescentou depois. - Mas tudo isso te tenho pago em
confiança e amizade. E tu, entretanto, só porque um dia eu fui roubar-te a
amante, tu te fizeste mesquinho e vil, indigno da minha companhia, porque não
tens coragem de lutar frente a frente contra mim, porque te embuças no
anonimato covarde das conspirações.
E
mais violento:
-
Eu posso ser amigo do meu adversário. Mas desprezo o hipócrita que maquina nas
trevas.
-
Pois bem, senhor! cartas na mesa, disse o Satanás levantando-se.
-
E assim que eu gosto de jogar as partidas.
-
Então, diga-me primeiro: onde está minha filha?
-
Tua filha! Quem é tua filha?
-
Quem é minha filha! gargalhou Satanás na sua gargalhada louca de velhas
armaduras que rangiam. - Quem é minha filha!
E
resfolegou longamente, para continuar depois:
-
Miserável sedutor! hipócrita tu mesmo! mentiroso e covarde!
D.
Pedro avançou para o escultor.
Este
deteve-o, porém, com um gesto forte de comando.
E
prosseguiu:
-
Eu vi-te, sem desonra para ninguém, penetrar na câmara nupcial destes fidalgos.
Queriam ouro e brasões heráldicos, e tu levavas-lhe uma cornucópia toda inteira
para lhes satisfazer a ganância e as aspirações. Eu vi-te descer ao mais baixo
dos bordéis, onde a moeda de prata chega muitas vezes para saciar os apetites
de um homem. Somente houve um lugar onde eu nunca te conduzi, cuja porta eu
defenderia contra os teus pedidos e contra as tuas ameaças. Era o asilo da
inocência e da candura. E foi lá que tu foste buscar minha filha!
-
Tua filha! Tua filha! Mas fala! Eu não te entendo.
-
Covarde! Tu me dizias ainda há pouco que eu me escondia para conspirar! E que
fazes agora? E que fizeste tu?
O
príncipe recuou dous passos, subjugado pelo olhar do Satanás.
E
este continuou ainda, imprecativamente:
-
Sim, eu te odiava e te acompanhava, colava-me a ti como a tua sombra, porque
quero saber onde ocultas a minha filha, a pálida e meiga filha dos meus amores,
que todos deviam adorar de joelhos, e que tu profanas com o teu hálito
envenenado de crápula.
-
Mas eu não sei de tua filha, e nem sabia que ela era tua...
-
Tanto te rebaixaste que chegas a mentir! Amar Branca deveria ser entretanto a
purificação das almas perdidas. Aquela criança tem tanta inocência e tanta
candura, que o seu amor deve chegar para o perdão de Deus caindo sobre os
infernos como bálsamo caindo sobre feridas. Mas tu, miserável que és, e
miserável que nasceste! tu não pudeste te redimir nas asas brancas daquele
anjo, que sempre e sempre parece remontar-se para os céus. E te acovardas, e
tremes perante a voz vingadora do pai que se ergue contra ti, como a verdade
possante da justiça.
-
Cala-te, bradou d. Pedro. - Por Deus! Cala-te,
Satanás!
-
Ah! tens medo de me ouvir! Tens medo que eu te escarre ao rosto toda a tua
infâmia!
-
Cala-te, repetiu o príncipe desembainhando a espada e investindo contra o
outro, cala-te!
O
Satanás precaveu-se a tempo e aparou o bote com a sua arma de boa lâmina
florentina.
E
a luta começou então hercúlea e titânica. Mestres ambos e conhecedores dos
segredos da esgrima, eles digladiavam-se silenciosamente, muito calmos, na
grande exuberância vital das suas paixões.
Ouvia-se
apenas o estuar das respirações arquejantes.
Mas,
de repente...
XII
FERIDO!
...
Branca apareceu à porta, com os olhos desmedidamente abertos, os cabelos soltos
sobre o vestido malcuidado e roto. Muito pálida, de olheiras roxas, aparecendo
de súbito na moldura da porta, a filha de Pallingrini parecia um fantasma.
Por
detrás dela, percebia-se a fisionomia de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando
no queixo, e os bigodes arrepiados por um calafrio de medo.
Assim
que terminara, dissolvida pelo príncipe, a sessão do Apostolado, d. Bias
fora um dos primeiros a sair. Pusera-se a caminho para o Carmo, onde Branca
continuava prisioneira. E, ruas afora, d. Bias pensava nela, monologando:
-
Amo-a! (levantava um braço), idolatro-a (e levantava o braço), idolatro-a! (e
levantava uma perna), venero-a (e agachava-se todo).
De
espaço a espaço, um lampião de azeite projetava na rua uma larga toalha de luz.
E a sombra de d. Bias estendia-se fantástica, desconjuntada, sacudida de gestos
frenéticos, numa pantomima macabra.
-
O flor mimosa! pérola divina! (punha os dedos na boca, enviando através da
noite um longe beijo apaixonado) o meu peito é uma frágua! (dava um murro no
peito). Ah! como é que eu, que tenho vencido tantos homens (segurava a
durindana), não te consigo vencer! (abria os braços desoladamente).
Um
homem que passava gargalhou, vendo a gesticulação de d. Bias:
-
O borracho! vai cozinhar a bebedeira!
O
fidalgo espanhol tornou a si: estava diante da tasca do Trancoso. Por hábito,
as suas pernas tinham-no trazido até ali, ao Piolho, quando o seu destino era o
Carmo. D. Bias, porém, não quis perder a viagem. Parou de pernas abertas,
passou três vezes a mão pela testa, suspirou:
No bay como una libación,
A un aflito corazon.
E
entrou na bodega, onde ficou duas horas afogando os suspiros no pichel.
Quando
saiu, fraqueavam-se-lhe as pernas. Andava tudo à roda.
-
Caramba! que há um terremoto! Mas não tremas, terra, que não te faço nada!
E,
ao luar, cai aqui, levanta acolá, caminhou para as bandas do Carmo, mandando ás
estrelas a sua voz avinhada:
Si de tu hermosura quieres
Una copia con mil gracias,
Escucha, porque pretendo
Yo pintarla!
Amor labró de tus cejas
Dos arcos para su alaja,
Y debajo ba descubierto
Quien lo mata!
Eres dueña...
- Em guarda!
berrou ele, interrompendo a cantiga, e recuando, ao ver um vulto negro postado
na rua, à sua espera.
Sacou
da bainha a durindana. Mas o vulto continuava imóvel. D. Bias tremeu:
-
Nobre fidalgo! eu não faço mal a ninguém... deixe-me passar em paz!
Como
o vulto não se mexesse, d. Bias animou-se a caminhar um pouco. O vulto era um
poste de lampião. D. Bias gingou, destemido e bravo:
- Caramba! que se fuera un
hombre...
E seguiu.
Eres duena del lugar,
Vandolera de las almas,
Iman de los alvedrios,
Linda albaja...
Abo! abo! abo!
Un rasgo de tu hemosura,
Quisiera yo retratarla,
Que es estrella, es cielo, es sol;
No, es sino el alva...
Abo! Abo! abo!
Ao
chegar ao Carmo, d. Bias enveredou às cambalhotas pelos corredores. De repente,
estacou. Uma voz triste cantava, no vasto silêncio do convento adormecido. Era
a voz de Branca:
E nas asas de um suspiro,
Que te vai meu coração...
D.
Bias ficou quieto, na treva, muito furioso consigo mesmo por estar se
comovendo.
Mandei cercar de saudades...
Uma
lágrima caiu no bigode de d. Bias.
Mandei cercar de saudades
As bordas do teu caixão...
Um
soluço irrompeu do peito de d. Bias.
Fica em tua sepultura
Velando minha paixão...
E
d. Bias, chorando como um cabrito desmamado, abriu a porta e entrou na prisão
de Branca, murmurando:
-
Pela senhora de Valladolid! nunca mais bebo, caramba! Que eu, quando bebo, é
isto: fico um bolas!
Branca,
assim que viu d. Bias entrar, correu para ele, de braços abertos:
-
Paulo! Paulo! Paulo!
D.
Bias abriu também os braços, com um grande derretimento amoroso na face. Ela abraçou-o:
ele deixou-se abraçar. Ela beijou-o: ele deixou-se beijar.
-
Amo-te! amo-te!... murmurou a louca.
D.
Bias não pôde mais. Atirou-se de joelhos, mas embaraçou a espada nas pernas, e
estirou-se no chão a fio comprido.
-
Eu também te amo, donzela!
Levantou-se,
agarrando-se às saias da moça, pôs-se de joelhos, e com a voz embargada pelos
soluços:
-
Donzela! vamos procurar teu pai! Que ou meu tetravô não foi lugar-tenente do
Cid ou tu te hás de chamar d. Branca de Bias! Vamos, donzela, vamos procurar teu
pai!
E,
sem refletir, bêbado de amor e de Cartaxo, arrastou a moça para fora do quarto.
Sim!
ele não era homem para essas bandalheiras. Ora, já se tinha visto? um fidalgo
das Espanhas fazer sofrer uma donzela que amava! nada! ia ao pai! ia ao pai! O Satanás
devia estar no Paço, com o príncipe. Chegava lá, entregava-lhe a filha,
desmanchava toda aquela pouca vergonha, atirava-se aos pés do príncipe e
bradava-lhe. - Perdão! O príncipe perdoava-lhe, ele pedia ao Satanás a
mão da filha, o Satanás concedia-lha, casavam, seriam felizes,
amar-se-iam, teriam muitos filhos... Oh! muitos filhos! muitos filhos! e a sua
família não morreria com ele, e aquele nome de Bias, tão célebre na história da
Espanha e nas bodegas dos Mansanares, continuaria a sua marcha triunfal,
através dos séculos, boquiabrindo as gerações faturas!
Era
este o sonho que bailava, entre os vapores do vinho, na cabeça de d. Bias,
enquanto arrastava Branca pelos corredores do Carmo.
Na
rua, quis dar-lhe o braço: ela desatou a correr pela rua do Carmo.
D.
Bias voava:
-
Oh! não me fujas, sonho de poeta!
Era
uma cousa fantástica, pela rua deserta aquela corrida vertiginosa de uma mulher
de cabelos soltos e de um fantasma negro, que berrava como um possesso:
-
Donzela! virgem! menina!
Branca
tropeçou e caiu. D. Bias tomou-a nos braços, e seguiu para o Paço. Agora,
Branca continuava a abraçá-lo, a chamá-lo de Paulo.
D.
Bias encontrou aberta a pequena porta lateral, muito sua conhecida, por onde o
príncipe costumava entrar a desoras. Dessa porta partia um corredor que ia ter
a uma sala do rés-do-chão. Havia luz nessa sala. E, mesmo de longe, d. Bias
ouviu um retinir de armas.
À
porta, pararam. Muito pálida, de olheiras roxas, com os olhos desmedidamente
abertos e os cabelos soltos sobre o vestido malcuidado e roto, a filha de
Pallingrini parecia um fantasma: e, por detrás dela, percebia-se e fisionomia
apavorada de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando no queixo, e os bigodes
arrepiados por calafrio.
D.
Pedro e Satanás não tiveram tempo de suspender o combate. Branca
atirara-se para eles. Mas, d. Bias muito cansado e muito excitado, atirara-se
também, agarrando-a. E a espada de d. Pedro cravou-se no ombro direito do
fidalgo espanhol, que se deixou cair, urrando:
-
Estou morto!
O Satanás, reconhecendo
a filha, tomou-a nos braços, de um salto, e fugiu com ela. E só ficaram na sala
o príncipe de pé, imóvel, sem saber o que devia fazer, e d. Bias estendido no
chão, sem dar acordo de si.
Não
foi longa a hesitação do príncipe. Fez vibrar uma campainha. Um criado fiel
apareceu.
-
Vai já buscar curativos.
E,
ficando só, d. Pedro abaixou-se, levantou d. Bias, estendeu-o no sofá.
O
descendente do lugar-tenente de Cid voltou a si, jurando que tinha morrido. O
criado curou-o. A ferida não era muito grave: a lâmina tinha encontrado a
omoplata e não pudera penetrar muito. Mas d. Bias afirmava que tinha morrido, e
enchia a sala de lamentações.
-
Ouve, servidor fiel: ficas agora autorizado a dizer a todo o mundo que viste d.
Bias às portas da morte e que não o viste tremer. Somos todos assim na família:
morremos todos por amor e sem chorar. Meu tetravô, lugar-tenente de Cid, morreu
na batalha de Bácaras. Viu-se cercado por quatro bárbaros, que lhe vibraram quatro
estocadas, que se lhe meteram todas quatro no coração; pois o herói não caiu.
Mandou chamar o tabelião, fez testamento, confessou-se, e só morreu quando
achou que já podia morrer.
-
Bem! mas durma, sossegue!
-
Ouve! digo-te eu que me ouças!
-
Foi esse o único meu avô que não morreu por causa do amor: minto - morreu por
causa do amor da pátria. Meu pai, por exemplo, morreu mártir do amor: amava
minha mãe, queria casar com ela, não pôde casar, e morreram os dois virgens um
do outro!... Oh! o amor! o amor! o amor!
E,
já quase adormecido, prostrado de fadiga, d. Bias tartamudeou ainda com uma voz
chorosa:
-
Homem não há nada por aí que se coma?
XIII
ESTÁTUAS
O
Satanás ao sair do Paço, levando consigo a filha, parou um momento no
largo, procurando apertar o coração para lhe conter as palpitações.
Ah!
parecia incrível aquilo... tê-la de novo, louca embora, embora desonrada, mas
tê-la enfim, poder de novo apertá-la nos braços, purificá-la com o batismo dos
seus beijos, tentar à força de carinhos e de afetos restituir-lhe a razão e a
felicidade.
O
outro vencera... que importava? O essencial para ele era possuir de novo a
filha.
Amanhecia.
Perto o mar cintilava espumando contra o cais. Passavam negros descalços, nus
da cintura para cima, carregando os tigres, barris cuidadosamente fechados e
ainda assim empestando o ar. O largo começava a encher-se de trabalhadores e
catraieiros.
O
Satanás compreendeu que era preciso sair dali. Podia causar suspeitas a
sua presença naquele lugar, ao lado de uma mulher, cujo estado de loucura se
via logo no desvario do olhar, no desalinho das roupas, no desordenado dos
gestos.
E,
arrastando consigo a filha, caminhou para o cais.
Um
catraieiro acorreu logo:
-
Uma canoa, patrão?
-
Sim e depressa.
Mas,
o catraieiro um brutamontes espadaúdo e barbado, de camisa de flanela branca
listrada de azul, olhava agora com desconfiança para o Satanás. Via-se
que hesitava, com receio de se ver comprometido em algum crime: receava
conduzir aquele homem suspeito e aquela mulher de fisionomia estranha e de
vestido ensangüentado, porque o pouco sangue perdido por d. Bias caíra sobre
ela.
-
Então! que é que esperas?
-
Eh! patrão! quem é você?
-
Homem, vamo-nos embora e deixa-te de falar, bruto! - gritou-lhe o escultor,
metendo-lhe na mão uma moeda de ouro.
Não
hesitou mais o catraieiro. Saltou para a canoa e ajudou a descer Branca e o
pai.
-
Pr'a onde arriba, patrão?
-
Para a Lapa. Depressa.
Daí
a pouco, saltavam os dous, pai e filha, na praia da Lapa, e entravam, por uma
porta baixa, numa casa espaçosa, cheia de janelas.
Era
o atelier do Satanás.
Sentia-se,
desde a entrada, um cheiro incômodo de mofo, um ar abafado de casa longo tempo
fechada, onde ninguém mora, onde ninguém vai. Ao entrar na sala principal, foi
necessário que o escultor corresse imediatamente a abrir as janelas, tão forte,
tão sufocante era o cheiro do gesso mofado.
Havia
muito tempo que o Satanás não entrava ali. O seu tempo andava ocupado em
outras cousas, nas correrias noturnas com o príncipe, nas conjurações, nas
vigílias vagabundas pelas tavernas e pelas casas de batota. Pallingrini era um
nevrótico. Passava meses inteiros na convivência única do copo e da espada,
numa boêmia infernal, cheia de bebedeiras e de duelos, sem se lembrar da sua
arte. De repente, vinha ao atelier, fechava-se lá oito dias, começava
com entusiasmo uma estátua, um busto, trabalhava com ardor, numa impaciência
febril, numa alucinação doentia, aborrecia-se, atirava ao chão a pá de
modelagem, dava um pontapé no camartelo, e voltava a atirar-se à vida airada,
deixando a obra incompleta.
A
sala era toda envidraçada. Enchiam-na, cobertos de pó, estragados pela umidade
e pelo sol, os esboços do escultor.
Nada
acabado, nada completo. Aqui um projeto de digladiador, sem cabeça,
levantava-se, cheio de manchas de mofo, esticando os músculos atléticos.
Adiante, uma cabeça de mulher, anjos de asas quebradas, grupos disformes,
misturados com instrumentos de trabalho, ossos humanos, caveiras e manequins.
Uma estátua do príncipe, modelada em gesso, estava atirada a um canto, partida
pelo meio.
Foi
para aí, para essa casa povoada de estátuas, que o escultor levou a filha: e
ela também parecia uma estátua tão fria e tão branca como as outras,
arrastando-se pelo atelier, durante os dous dias que se seguiram ao do
malogrado duelo.
Foi
debalde que o Satanás formou em torno da filha uma atmosfera de cuidados
e de carinhos. A vida desaparecia aos poucos, visivelmente, daquele corpo
consumido pela febre. E era o que torturava mais o escultor: ver que ela teria
de morrer, sem voltar à razão, sem conhecê-lo, sem pela última vez chamá-lo -
pai!
No
terceiro dia, mais fraca do que nunca, Branca amanheceu ardendo em febre. Tinha
a pele abrasada, os olhos vermelhos, o corpo sacudido de calafrios.
-
Paulo! meu Paulo! gemia de instante a instante...
O
Satanás torcia as mãos, alucinado, à beira do leito. Ao cair da tarde, a
febre baixou: e ela ficou serena, com um longo filete de sangue ao canto da
boca, murmurando sempre:
-
Paulo! meu Paulo!
O
Satanás abriu as janelas: extinguia-se já o fogo do ocaso. A noite
crescia sobre o mar. Um dilúvio de cinzas invadiu o céu. Tudo cinzento. Longe,
no ponto em que o céu beijava as águas, a primeira estrela erguia a pálpebra de
ouro. E uma grande tristeza saía de tudo, velando tudo para os funerais do dia.
Ainda uma vez a voz de Branca suspirou dentro:
-
Paulo! meu Paulo!
O
Satanás, à janela, soluçava, com o rosto escondido nas mãos. Mas, de
repente, uma gritaria confusa soou lá fora. Um magote do povo aproximava-se
entre aclamações: a alma brasileira andava na rua, exultando e cantando, na
aurora da emancipação. E aos ouvidos do escultor chegou distintamente a
aclamação popular:
-
D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!
-
Paulo! meu Paulo! - gemia a pobre louca na sua agonia.
O
Satanás foi ajoelhar-se aos pés do leito. Oh! era demais! era demais! o
outro vencia, aclamado e forte, enquanto ela, a sua filha, morria!
-
D. Pedro! D. Pedro! - gritava o povo mais perto.
-
Paulo! meu Paulo! - ouviu-se a voz de Branca, ainda uma vez.
A
voz saía-lhe agora difícil e fraca, soluçante, como um gemido, da boca que a
hemoptise pintava a carmim, e que na alvura polar da sua face parecia a poética
e misteriosa flor das neves da Lapônia.
-
D. Pedro! D. Pedro!
Todo
o corpo da moribunda estremeceu, inteiriçaram-se-lhe os braços, vidraram-se-lhe
os olhos. Um último suspiro lhe saiu da boca:
-
Paulo! - e ficou imóvel.
O
Satanás atirou-se de bruços, com um grande grito de desespero. E o povo
passava justamente sob as janelas do atelier: e a aclamação troou,
violenta e vitoriosa, invadindo a sala:
-
D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!
O
temperamento do Satanás reagiu logo contra a sua grande dor sagrada.
Morta...
Que lhe restava fazer? renunciar a luta, fugir para longe, para muito longe da
terra maldita onde sofrera tanto, e ir preparar nas trevas do seu exílio
voluntário, a obra sinistra da vingança, fazê-la amadurecer longamente, até que
soasse a hora oportuna para fazê-la rebentar aos pés do príncipe... Mas não
quis partir sem levar a filha consigo. Não a levaria viva, mas modelada na
pedra dura, que, nas suas alucinações ele procuraria aquecer e animar, a custa
de beijos e de abraços.
E
atirou-se desesperadamente ao trabalho. Todo o seu talento, estragado e
consumido pelo ócio e pelas orgias, voltou como por encanto, ao apelo da dor
suprema que lhe vergastava a alma. Ao toque dos seus dedos, o gesso dócil se
submetia, obedecendo-lhe aos caprichos da inspiração.
Toda
a noite e toda a manhã seguinte, o escultor trabalhou sem descanso. O atelier,
abandonado e poeirento, encheu-se de alegria e de vida. O sopro do trabalho
animava tudo aquilo; e quando, de madrugada, o sol entrou vitoriosamente pelas
janelas, vindo encontrar o artista embebido na sua obra piedosa, as estátuas
pareciam sorrir...
Pouco
a pouco, da massa informe do gesso, Branca saia, ressuscitada pelo amor do
artista. Cercaram-lhe a fronte as ondas do cabelo, rasgaram-se-lhe os olhos,
arqueou-se-lhe a boca dum sorriso inocente, empinou-se-lhe o colo virginal.
E
ela aparecia assim aos olhos do escultor e ao coração do pai, tão pura e tão
bela, como naqueles tempos felizes em que o alcoviteiro do príncipe ia
purificar-se, ao seu lado, no pequeno santuário da rua do Conde...
Quando
a estátua ficou pronta, o estatuário ajoelhou-se. Duas lágrimas rolaram pelas
suas faces: e ele rezou, talvez pela primeira vez na vida.
Mas,
acabada a oração, o Satanás transfigurou-se: era outra vez o mesmo
espírito forte, o mesmo ousado e diabólico espírito da vingança e do ódio.
Levantou-se,
olhou para o mar que se estendia infinito e calmo, ergueu o braço num juramento
solene de nunca esquecer e nunca perdoar...
No
outro dia, o Satanás fazia-se de vela, a bordo de um navio negreiro,
para longe das terras do Brasil; e Branca ficava sob a lápide fria de uma
sepultura do cemitério do Carmo, transformando a sua carne moça na seiva que
mais tarde rebentaria em rosas na terra que ela purificara com a sua rápida
passagem.
XIV
O ESQUELETO
Assim
muito aclamado pelas massas populares que lhe iam agradecer a carta de
liberdade, d. Pedro desanuviou-se das tristezas que por alguns momentos o
ensombraram com o caso de Branca.
De
toda essa história tenebrosa que o fizera cruzar armas contra o Satanás não
percebia grande cousa. Ficava-lhe apenas na memória o vago delineamento incerto
de uma criança que ele supusera amante do escultor e que fora sua por uma noite
sombria e treda como nas aventuras daquele tempo. E ficava-lhe principalmente
nos quartos baixos do palácio o magro fidalgo das Espanhas que se aproveitava
da ferida para prolongar o seu apetite e as suas bravatas.
D.
Bias fortunava-se de fato um homem feliz. Servia-se do ferimento como indelével
e irrecusável atestado de bravura inscrito no pergaminho da sua pele. E
servia-se mais ainda do cozinheiro do Paço a quem estava constantemente pedindo
bifes e bifes e outras esquisitas guloseimas.
Gesticulava,
gritava e berrava.
Inimigo
da solidão, rodeava-se dos criados a quem vivia contando as aventuras
complicadas em que se metera. E tanta fertilidade tinha a sua irrequieta
imaginação de espanhol, que conseguia sempre forjar mais um caso para o serão
de cada noite, e mais um episódio para a conversa de cada dia.
E
tantas fez que em torno dele formou-se uma reputação de espírito e bom humor.
D.
Pedro quis vê-lo.
Entrou-lhe
no aposento muito sério, com a compostura solene e grave de um imperador que
também gosta da troça, mas deseja conservar a sua força moral.
Falou
no ferimento, mostrando-se muito sentido com o acontecimento, lamentando-se do
ocorrido, mas sem uma alusão ao Satanás.
-
Ora senhor, ora senhor, isto não foi, não foi nada, explicou d. Bias. - O ferro
entrou-me apenas dez polegadas no braço. Uma ninharia!
-
Sim. Não foi nada, mas podia ser fatal.
D.
Bias respondeu com um forte oscilar desprezível de ombros. Que não se
importava. Que já estava acostumado àquelas cousas.
-
Em todo caso posso garantir-te que não tinha vontade nenhuma de te matar.
-
Ora senhor! Por quem é não falemos mais nisso. Eu até já vou me esquecendo de
que fui ferido. A força do hábito, sabe, a força do hábito!
-
Com que então tens sido ferido muitas vezes?
-
Nem contas há que as possa enumerar.
E
narrou:
-
De uma, lá nas Espanhas, voltava eu muito sossegado de três duelozinhos
pequeninos em que tinha morto os quatro adversários quando me saiu à frente um
piquete de cavalaria comandado pelo irmão dos cinco rapazes que eu acabava de
remeter para os infernos.
-
E brigaste contra todo o piquete?
-
Qual briguei! qual nada! Matei-os a todos sem exceção de um cavalo.
-
Mas então não foste ferido!
-
Fui, sim, senhor! Quando não havia mais adversários contra quem pelejar, caiu
uma tempestade e veio um raio com tanta força que...
-
Foste queimado?
-
Qual queimado! Senhor! Feri-me eu mesmo com a minha espada indo a desviar-me do
raio.
-
E onde?
-
Já não me recordo mais. Mas, caramba! que aquilo, sim, foi um golpe bem dado e
de mão de mestre. Voou um braço para aqui, uma perna p'ra ali e a cabeça não
sei para onde.
-
Diabo! Pois tu te fizeste assim em pedaços?
-
Qual eu! qual nada! Senhor. Foi o inimigo.
-
Mas que inimigo?
-
Ah! Eu não sei.
D.
Pedro não pôde conter uma gargalhada e saiu.
Saiu,
alegre da vida, cantarolando umas cantigas brejeiras. E teve uma idéia. A idéia
de fazer uma caçoada com d. Bias, de pregar-lhe um bom susto. Deviam ser
interessantes a cara e as falas do aventuroso cavaleiro das Espanhas, quando
lhe aparecesse diante de si um fantasma ameaçador e tétrico que contra ele
investisse numa encenação apavorante de tragédia. E, nas boas disposições de
espírito em que estava, d. Pedro tratou logo de preparar a pilhéria.
Vieram-lhe
a princípio dúvidas para escolha entre diversos projetos que se lhe
apresentaram à imaginação. Mas, à noite, quando se despedia da cigana, lá no
circo do Valongo, resolveu-se, enfim, e pediu ao Vampa que lhe vendesse um
esqueleto articulado, que havia a um canto da parede e de que o saltimbanco se
servia nas suas mágicas e pantomimas.
Trouxe-o,
ruas afora por aquela noite escura, debaixo da capa, como um mistério, bem
junto a si, como uma profanação.
E,
quando entrou no Paço, antes de cear, foi logo ao quarto de d. Bias.
Segurando
o esqueleto pela coluna vertebral, mal envolveu-o na capa, o bastante para
esconder-se a si e para permitir que o descendente do soldado de Cid Campeador
pudesse ver toda a horrível conformação espetral do fantasma.
D.
Bias dormia.
Uns
pratos vazios, muito lambidos e uma garrafa escorropichada, atestavam que o
valente cavaleiro andante das aventuras contadas acabara de cear; lautamente,
mais lautamente do que era permitido supor a quem o visse magro e esgalgado, um
esqueleto ele mesmo. Acordou e gritou.
Sobre
o peito descansa-lhe a ossadura descarnada da mão do esqueleto. E a olhá-lo,
com o grande olhar tenebroso e mau das caveiras, estava um vulto bem junto a
si, debruçado sobre o seu leito. Gritou.
Gritou
e retorceu-se todo na cama, nu e esquelético, envolto na mortalha alvadia do
lençol, fantasma contra fantasma.
D.
Pedro ria-se.
E
largou o esqueleto que então caiu todo inteiro sobre d. Bias.
Foi,
nesse momento, um espetáculo diabolicamente nunca visto e nunca sonhado até
então.
Por
entre os lençóis e a capa, no belo contraste do preto e branco, debatiam-se os
dous. D. Bias a contorcer-se todo, a querer desvencilhar-se desse novo
companheiro de dormida, animava-o, fazia-o viver, emprestava-lhe movimento.
-
Por Dios! choramingava o espanhol, por Dios! Não me faça nada!
Deixe-me em paz, tenha pena de mim!
E
fazia-se súplice, e queria erguer-se para ficar de joelhos, para pedir piedade,
para comprometer-se a tudo quanto o fantasma quisesse, para tornar-se submisso
e escravo, enfim, com tanto que o deixasse viver.
E
com os movimentos que tentava, o esqueleto movia-se também, recolhia o braço
num amplexo que horripilava o outro, intrometia a perna entre as do fidalgo das
Espanhas, ligava-se-lhe enfim numa bela conjunção amorosa.
D.
Bias soluçava. A voz desaparecia-lhe até.
Foi
preciso que o príncipe, já farto do espetáculo, interviesse e separasse os
dous.
-
Caramba! fez d. Bias. Eu tinha medo porque era um esqueleto e não havia contra
quem lutar!
E
mais calmo depois, achou uma boa compensação no convite para a ceia de d. Pedro
que este tinha mandado trazer para o quarto.
Não
comia entretanto com toda a sua habitual voracidade. O esqueleto, que ficara
sobre o leito, incomodava-o.
Levantou-se,
e escondeu-o dentro de um armário.
-
Se o esquecem agora, e se o descobrem daqui a cem anos... lembrou o príncipe.
D.
Bias mastigou barulhentamente um grande naco de carne; e depois, olhando muito
sério para o armário, disse:
-
Caramba! que boa peça vou eu pregar às gerações futuras!
Núcleo
de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística