Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Versos antigos, de Araújo Figueredo


Texto-fonte:

Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,

Florianópolis: ACL, 1966.

ÍNDICE

Dias perdidos

Reza

Aflito

As lágrimas

Cristo!

Alma branca

A alma justa

Amor eterno

Rios

Esquecido!

A uma visão

Egoísmo!

Ao partir

Vestido de negro

Vã conquista

Basta...

A inveja

Mares das mágoas

Saudosa

Olhos

Nunca sorriu!

Depois de morto

O inferno

O orgulho

À meia-noite

Transfiguração

Eterno conforto

Barcarola da saudade

Comparação

Ódio!

Notícias

Caravana do destino

Soluços

O homem que ri...

Alma antiga

Infinito mudo

Ovelha desgarrada

Numa torre

Transformação

Iniciado

Laços

Almas livres

Bênçãos

Sonha...

Purificados

Ave morta

Prepara-te

Última morada

O bêbado

Terra!

Amar... Sofrer... Orar...

Nos mesmos laços

À hora final

Nessa jornada

Talvez!

Grãos de trigo

Lótus dos séculos

A um poeta

O pranto

As estrelas

O coração

Seios brancos

A alegria

Saudoso e triste

Recordação

Alucinado

Seu vulto

Convencido

A esperança

Para o mesmo chão

Saudade

Emparedado

O Anjo do Sono

Madrugada de Abril

São Francisco de Assis

Quando não vens

Gata Borralheira

Ter crença

No escuro

Louco de paixão

Mudo!

A um irmão

Pelo caminho branco

Vai...

Simbólico

Uma graça

Viver cumprido

 

 

Dias perdidos

Dias longos, nostálgicos, sombrios...

Nem mesmo eu sei quando eles amanhecem!

Nem mesmo eu sei quando eles anoitecem,

Por sobre os campos e por sobre os rios.

Apagados aos doces murmúrios

Das cores, e aos perfumes que entontecem;

E aos campos férteis, que de luz se aquecem;

E às aves de alma cheia de amavios...

Dias fechados, como a chaves de aço

Fechados são cofres de um judeu

Cujo egoísmo mata-o de cansaço,

São os por mim perdidos, penso eu;

São aqueles em que não ergo o braço,

Para implorar o teu perdão, ó Céu!

 

Reza

Passo as noites em claro, hora por hora,

Pensando em ti, pensando em mim; pensando

Na nossa vida atroz, que não melhora,

Chore eu, e chores tu, aos céus clamando.

Continuamente, num tristonho bando,

As nossas esperanças vão-se embora,

Como as aves no inverno horrível, quando

Nem rosas há pelos vergéis da aurora

Tudo um montão de trágicas ruínas

Em derredor de nós, como colinas

Que se houvessem ruído ao som dos ventos...

Mas, para que um grão de areia possa

Ficar, reza ajoelhada, reza à Nossa

Senhora Amparadora dos Tormentos.

 

Aflito

Para a luz dos teus olhos corro aflito;

Corro nas ondas das profundas mágoas,

Como corri nas torturosas águas

Do mar, de encontro às rochas de granito.

Gemo, anseio, soluço, choro e grito...

E como o triste náufrago, nas fráguas,

Essas ânsias revejo; na alma trago-as,

Sob a mudez sombria do infinito.

Mas, ao correr à luz de uns olhos belos

Quais são os teus, percebo-lhe os desvelos;

Busco-lhe a meiga e clara suavidade,

Bem como se eu de novo naufragasse,

E ao sol pedisse a luz, que me amparasse

O peito, as mãos, e os pés, por caridade.

 

As lágrimas

Aonde estarão as lágrimas, choradas

Desde o princípio, pela humanidade?

Estarão pelo mundo derramadas,

Sem os amparos da felicidade?

Serão poeira pela imensidade

Das montanhas, dos campos, das estradas,

Ou desolantes pérolas queimadas,

Ou gotas de água ao afago da impiedade?

Aonde estarão as lágrimas, vertidas

Dos olhos roxos do desolamento,

Das criaturas pela dor ungidas?

Aonde estarão? Ao deus-dará? Ao vento?

E serão pobres flores ressequidas?

Ou serão os clarões do firmamento?

 

Cristo!

Apagados serão todos os crimes,

Para sempre apagados... apagados...

Diante dos céus olímpicos, sublimes,

Dos virgens céus azuis, estrelejados.

E tu, ó Cristo, que no amor redimes,

Pois tens ainda os braços levantados,

Não como frágeis, flexíveis vimes,

Mas como uns galhos de árvore, orvalhados...

Tu, Redentor dos corações humanos,

Virás varrer os negros desenganos,

E nos mostrar sem urzes o Caminho.

Transformarás a pedra em grão de trigo...

E, nesse tempo, se eu estiver contigo,

Verei a água transformada em vinho.

 

Alma branca

Morram todas as flores deste mundo,

Mordidas por um sol impenitente;

Desde os campos ao grande mar profundo,

Desde o Levante às plagas do Ocidente.

E morra o mar, também, manso ou iracundo;

E os montes morram convulsivamente,

E morra o trigo; torne-se infecundo;

E as aves morram, morram num repente.

E a luz do sol, que morra soluçando;

E a lua albente que se vá finando,

Como se fosse bolha de sabão...

No entanto ficará de pé, no espaço,

A alma branca e feliz, erguendo o braço...

Pois morrerás, também, ó coração!

 

A alma justa

A alma que é justa, quando sobe ao Empíreo,

Veste as alvas dalmáticas da lua,

E é mais leve do que do branco lírio

O aroma que no zéfiro flutua.

Se sofreu os espinhos do martírio,

Como se andasse sobre espinhos, nua;

Se andou atrás das ânsias, em delírio,

Ei-la subindo a sacrossanta Rua...

Ei-la do pó do frio chão despida...

Ei-la, portanto, na suprema vida,

Que é a dos seres bem-aventurados;

Dos que na terra andaram de joelhos,

Lendo e cumprindo os Santos Evangelhos,

Com os braços no Amor crucificados.

 

Amor eterno

Para andarmos assim, os dois, unidos,

Quer faça sol de inverno, ou sol de estio,

É que fomos, ó meu amor, descidos

A este da dor tantalizado rio.

Andemos, pois, no mundo, convencidos

Que tudo que, em macabro rodopio,

Anda em roda de nós, ruge gemidos,

Como esses ventos de um luar doentio.

Mas não importa que tudo isso seja;

E o próprio sol do estio de nós fuja,

Ou que vejamos esse sol de inverno

Afastado de nós, como uma sombra...

Basta do sonho a carinhosa alfombra;

Basta, na nossa estrada, o amor eterno.

 

Rios

Estes rios que vão, assim, rolando

Por estes campos, em redemoinhos,

E em vozerios de leões uivando,

Bravos, sinistros, trágicos, daninhos...

Estes são almas se despedaçando,

Negros de ódios cruéis, que os claros vinhos

Dos sonhos vão em fel transfigurando...

Rios em cujas margens não há vinhos...

Mas aqueles, no entanto – aqueles rios

Como são tão cobertos de amavios;

Em delicada música embalados...

Como na vida azul dos sonhadores,

Por eles desçam ofélias, entre flores,

Sob o esplendor dos céus imaculados!

 

Esquecido!

Esquecido de tudo que obtivera

Em glórias, no caminho do passado,

O homem de agora clama e vocifera,

E os braços gesticula, rebelado.

E contra a Luz que o acena, desespera,

E nuvens lança, de um olhar vibrado

Com crueldade, com paixão austera,

Como se fosse um rústico soldado.

Esqueceu, do passado, as armaduras

Com as quais combatia as desventuras,

Vencendo a todos com devotamento!

E não deseja ser, hoje, esquecido,

Quando vive, tristíssimo, escondido

Nos brumais do seu próprio esquecimento!

 

A uma visão

Trajando dos rosais os alvos linhos,

E o ouro do trigo quando amadurece,

Entre estrelas, teu vulto me aparece,

Vindo de outras regiões, de outros caminhos...

Do teu piedoso olhar, todo carinhos,

A exuberante e prometida messe

Da luz do amor sobre o meu peito desce

E suaviza-lhe o golpe dos espinhos.

Mas de onde vens, de que regiões tão belas

Teu vulto vem? Teu vulto, entre as estrelas,

É mais alado que o condor na serra.

Desce teu vulto dessas granjas de ouro

Que Deus concede às mães que o trigo louro

Do amor souberam semear na terra!...

 

Egoísmo!

As asas negras, trágicas, abriste

Por sobre o mundo, de maneira tal,

Que todo o mundo se cobriu, tão triste,

Das sombras funestíssimas do mal.

E desde essa manhã que, odiando, viste,

Deixou, no mundo, de existir o sal;

E nem tão pouco da alegria existe

O claro e doce vinho original.

Tudo à sombra ficou das tuas asas:

O mar, o rio, o campo, e as próprias casas;

E, ainda, muito mais, o coração...

És, portanto, ó tristíssimo egoísmo,

O vampiro surgido do atro abismo

Da alma banida e tétrica de Adão.

 

Ao partir

Parto! Não chores mais! Não te consumas

Como a formosa Catarina, quando

Partiu-lhe o amante, límpido, sulcando

Do mar revolto as vagas e as espumas.

Essas tranças que tu ao colo arrumas,

Não quero ver em pranto se banhando;

Nem teu lenço alvadio me acenando

Longos adeuses, através das brumas...

Que te serve chorar um pranto amargo,

Se não te escuta o mar, profundo e largo;

Se não responde, ingrato, aos teus desvelos?

Chorar, eu! porque além de ti, que és minha,

Deixo doente, a um canto, uma velhinha

Que ainda agora beijou os meus cabelos!

 

Vestido de negro

Quem se vestiu de negro? e à minha porta

Bateu neste momento? Quem bateu,

Quando da noite a triste neve corta

O campo, e o vasto mar, e o vasto céu?

Quem tanta negridão em si suporta

Que até faz recordar que se escondeu

Na asa de um corvo? Olá! Quem não se importa

De me dizer quem é? Mas, respondeu,

O fantasma sombrio, horrível, tredo;

Respondeu, esgueirado num segredo,

Do qual fazia o seu famoso cetro...

E muito mais medonho que os medonhos

Vampiros, repetiu: – Eu sou, dos sonhos

Dos que não amam, o fatal espectro!

 

Vã conquista

Um dia amanheceste na opulência,

Tu que vivias pobre como Jó;

Mas não tendo de Jó toda a inocência,

Tu te vestiste de doirado pó.

Mantos tiveste, de uma resplandecência

De sóis; e foste, neste mundo, só

No orgulho, na vaidade, na inclemência,

Sem possuíres um ceitil de dó.

Conquistaste, portanto, o que no mundo

Julgavas ser todo um trigal fecundo;

Mas hoje, que morreste, bem que dista,

Dos desejos que tinhas, a ventura...

Hoje, enganada vives, na loucura

Dos desesperos de unir vã conquista.

 

Basta...

Fita as Estrelas límpidas do espaço;

Vê como fulgem, como são brilhantes!  

Ergue para elas o teu pobre braço;

E procura tocá-las, por instantes.

Mas sentirás tristíssimo cansaço,

Horas e horas de anseios fatigantes!

Que longe está do azul todo o regaço!

Como estão as estrelas tão distantes!

Ah! entretanto, para a gente tê-las,

Para a gente sentir essas estrelas,

E por elas viajar bem satisfeito,

Basta esperar, basta ter fé e crença,

E ter a alma na luz do amor suspensa,

E as mãos hirtas cruzadas sobre o peito.

 

A inveja

Percorro o mundo, vagarosamente;

Negra, sombria, trágica e velada.

Sou, às vezes, a tétrica serpente,

No alvo vale de uns seios enroscada.

Outras vezes, porém, sou a fulgente

E aterradora lâmina afiada

De um punhal; outras vezes, o inclemente

Fel, numa beca assaz imaculada.

Afastai-vos de mim... Mas de que jeito, e como

Se os corações na terra inteira domo;

Se percorro do mar todos os portos?

Se ninguém sabe, como eu sei, na terra,

Viver? Quem mais do que eu a força encerra?

Persigo os vivos e persigo os mortos...

 

Mares das mágoas

Vivo a sonhar com mares procelosos,

Que das curvas das praias alvadias

Sobem sinistramente aos alterosos

Montes, e às mais altivas penedias...

Ventos rugem, fantásticos, irosos,

Torcendo as ondas que se vão, bravias

Pelas nuvens adentro, aos céus formosos,

Hoje cheios, porém, de asas sombrias.

Mares negros, revoltos, para cima

Rolando, desde os campos da vindima,

Desde os rosais às escarpadas fráguas.

Mares, assim, em convulsões rolando,

Convulsionando a terra, convulsando...

Feitos de todas as humanas mágoas.

 

Saudosa

Bates? De onde vieste, assim vestida

De branco, e assim coroada de alvas flores

De laranjeira, se fugiste à vida,

Se não vives do sol sob os fulgores?

Bates? De onde vieste, indefinida

Mulher, que andavas gorjeando amores,

Como uma ave, que, agora, na esbatida

Noite da cova vive, entre pavores?

Vieste da cova fria... fria? Vieste

Da sombra simbolista do cipreste,

Ou das alturas? Para lá subiste?

– Eu vim de percorrer mundos e mundos;

Vim da estrada dos páramos profundos...

Vim com saudade da tua alma triste.

 

Olhos

Aqueles têm a cor do azul celeste,

Meigos, suaves, límpidos, tão belos

Que os corações por mais austeros ao vê-los,

De uma doçura original se veste.

Estes são como o lindo mar de leste,

Dos montes frios sem os camartelos...

Muitos lembram topázios amarelos,

E outros são sombras mudas, de cipreste.

A todos quero bem, porque no fundo

Desses olhos eu vejo sempre um mundo

De mistérios de amor, de sentimentos...

Mas muito maior bem quero aos teus olhos,

Que, assim negros, penetram nos escolhos

Negros, dos meus tristíssimos tormentos.

 

Nunca sorriu!

Nunca sorriu! Jamais na sua boca

Um sorriso, que é luz cantante, um dia

Alou, como a dourada e linda e louca

Borboleta, na rosa que inebria.

E a sua voz era sinistra e rouca

Como a da água descendo a penedia.

Pouca importância dava às outras, pouca,

Numa expressão de gélida ironia.

Nunca sorriu! Nunca sorriu! Jamais!

E também nunca teve aflitos ais,

Soluços, gritos de emoção veemente!

No entanto, agora, pelo cemitério,

Ei-la a sorrir, assim, no atro mistério

Da morte; e vai sorrindo eternamente!

 

Depois de morto

O que fazes aí, por estas horas

Taciturnas, sombrias, sossegadas,

Quando ninguém percorre estas estradas?

O que fazes aí, e por que choras?

A quem a paz para a tua alma imploras?

A quem pedes sossego, às torturadas

Ânsias? E o que desejas, das cansadas

Almas que moram onde aflito moras?

Hão de passar por ti ouvidos moucos;

E não os poderás chamar de loucos,

Pois os teus, quando sobre a terra andavam,

Nunca se abriram para ouvir os gritos

Dos desolados corações aflitos

Que nos mares do pranto se afogavam!

 

O inferno

Não te constranjas com pavor do inferno

Que dá ranger de dentes e convulsões,

Porque onde existirem corações,

Ele aí estará, quase que eterno.

Será fogueira equatorial, ou inverno;

Será gelos ocultos, ou clarões;

Será verdades, creias, ou ilusões;

Será remorsos, ou será falerno.

Ah! tudo isso será o inferno, tudo,

Enquanto houver um sentimento mudo

Dentro da alma da mísera criatura.

E nos seus tristes emparedamentos,

Os nossos sonhos e padecimentos,

Vivem numa só rua de amargura.

 

O orgulho

Ei-lo que chega, o rei Sardanapalo,

Com toda sua excelsa vassalagem.

Unta-lhe as botas prateadas um vassalo,

E outro lhe dá perfumes bons à imagem.

Muitas são as pessoas que a cavalo

Chegam! Todas repletas de voragem,

Para vê-lo glorioso, e acompanhá-lo,

Que o rei chegou de flórida viagem.

Mas que ilusão tristíssima, nefasta,

O eterno rei Sardanapalo arrasta!

Pois não há quem não veja em torno dele,

Senão sapos coaxando, e frias lesmas;

Almas nojentas, neste mundo — as mesmas

Que amam a quem de um rei só tem a pele!

 

À meia-noite

Tudo, ao soar das doze badaladas,

Tudo emudece: – o mar, o campo, o rio...

Ficam, na noite, as árvores, caladas;

Nem há no espaço um leve murmúrio.

Unidas ficam as aves, sossegadas.

Como se houvesse um formidável frio!

E as almas ficam como que apagadas,

Num sentimento trágico e sombrio.

É meia-noite! O espírito das cousas

Dorme na densa solidão das lousas,

Dorme sinistramente, no momento

Em que por sobre o mundo nos parece

Descer, como de fato, desce... desce...

Dos céus um fundo e amargo esquecimento.

 

Transfiguração

Sempre a pensar em ti, sempre voltado

Para onde vives tão distante, creio

Sentir, mesmo de longe, o perfumado

Calor do vale do teu róseo seio.

Sempre a pensar em ti, horas parado

Fico, como se visse, num anseio,

O teu formoso olhar imaculado,

Que outrora vinha me bater em cheio.

E se me deito, para ter descanso,

Ó minha linda flor, somente o alcanço

Quando um clarão de fluídicos lampejos,

Vem lentamente se transfigurando

Nuns braços mornos, que me vão pegando;

E numa boca mádida de beijos.

 

Eterno conforto

O estranho ser que às vezes me aparece,

E concita-me à porta, solitário,

De olhar medonho, em fogo temerário,

Ah! esse estranho ser das trevas desce.

Temendo, então, recorro à paz, na prece;

A esse eterno conforto extraordinário,

E, como um novo Cristo, no Calvário,

Peço ao meu Pai, que está nos céus, a messe

Do amor bendito, desse trigo louro,

Que nas granjas azuis os moinhos de ouro

Do sol trituram, para o real conforto

Dos corações assim atormentados,

Dos corações que passam, fatigados,

Pelas ondas sinistras do mar-morto!

 

Barcarola da saudade

Vê como canta, nos floridos ramos

Do espinheiral, a linda passarada!

Assim cantamos nós, assim cantamos,

Quando subimos por aquela estrada.

Nós cantamos bem como a passarada

Que está cantando nos floridos ramos.

Bem felizes, no mundo, pela estrada,

Almas abertas, gárrulas cantamos...

Mas como nós estamos enganados!

Cantam, assim, os pássaros alados;

Só eles cantam com felicidade.

Nós, não! Tristonhos corações humanos,

Só cantamos, ao pé dos desenganos,

A eterna barcarola da saudade.

 

Comparação

Eu te quero, Maria, entre os meus braços,

Para que junto ao teu cheiroso peito,

Possa o meu coração achar um leito

Como uma freira amainando-lhe os cansaços...

E eu vim de percorrer largos espaços;

Vim de errar pelos campos, de tal jeito,

Que já senti o coração aflito

Aos abrasantes, cálidos mormaços...

E quem procura achar um leito morno,

Sente, em redor de si, de si em torno,

Uma esperança as asas espalmando...

E embora morra (Que bonita morte!)

Fecha os olhos, sereno, de tal sorte,

Que até mesmo parece estar sonhando.

 

Ódio!

Ódio! ódio fatal! Imponderável

Ódio de assaltos de sinistra fera!

De onde vieste, mísero, execrável?

– Talvez dos antros de uma nova esfera.

E quem te trouxe ao mundo, ó miserável

Ódio execrando, cuja voz impera

De tal maneira brusca, incomparável,

Que até sonha as carícias à quimera?

Não desceste de um antro? Não desceste?

Ou tristemente lúgubre te ergueste

Da podridão dos pântanos sombrios?

Do qual brotou o coração do homem,

Para viver nas ânsias que o consomem,

Mais formidáveis que uns sangrentos rios?

 

Notícias

Cedo ou tarde, nós dois, que nos amamos,

Iremos para o azul da imensidade,

Em procura das árvores, dos ramos

Do divino pomar da felicidade...

Nós, que na mesma estrada nos achamos,

Do mundo sobre as ondas da ansiedade,

Muitos mais sonhos, do que, então, gozamos,

Gozaremos na eterna claridade...

Mas um de nós irá primeiro... E quando

Isso aconteça, e seja eu que, alando,

Suba da luz nas dúlcidas carícias,

Esperarás, tranquila, pois num sonho

Leve, suave, límpido e risonho,

Dos nossos filhos dar-te-ei notícias.

 

Caravana do destino

À minha mulher

Diz-me a Verdade que eu de ti me ausente,

E vá, por essas plagas tumultuosas,

Ver se peitos encontro, à luz fremente,

Que acolham minhas ânsias silenciosas.

Vá em busca do que jamais, contente,

Pude encontrar entre jasmins e rosas,

Na nossa terra... E vá, portanto, crente

Noutras almas mais doces e piedosas.

E tu sabes do que, como um mendigo,

Eu vou em busca: – busco a água e o trigo

Nas mãos de quem, num esplendor divino,

Saiba ver, através de tantos trilhos,

O quanto sofro, por amor aos filhos,

Na negra Caravana do Destino.

 

Soluços

Esses altos soluços vêm das vagas

Do mar revolto, desse mar sanhudo,

Que, nas noites veladas e aziagas,

Parecem vir para acabar com tudo.

E as dos rios a encher, sob as pressagas

Chuvaradas de inverno tredo e mudo,

Que matam tanto como as sete pragas

Mataram todo o campo de veludo...

E esses das nuvens trágicas, sombrias,

Caindo sobre as longas penedias;

E os dos ventos bramindo seus soluços.

Todos esses soluços, soluçados

Dessa maneira, assim, desesperados,

Não se parecem com os meus soluços.

O homem que ri...

O homem que ri, assim, às gargalhadas,

Ri de si mesmo, de maneira bruta.

Não atende um momento, nem escuta

As verdadeiras lágrimas choradas...

Ri de si mesmo, ao longo das estradas,

Onde haja uma alma límpida, impoluta,

Ou haja, como as cousas desprezadas,

Uma alma negra, merencória e astuta.

Todo homem que ri, dessa maneira,

Tem em si próprio a rude vida inteira

De um esquisito e formidável sapo,

Quando de dentro de um paul coaxa,

E em vira-voltas no paul se agacha,

Ou mostra à luz do sol o grosso papo.

 

Alma antiga

Todo o amaino que encontras nesta cama,

Nestes lençóis tão alvos e aromados,

Vem de uma clara e misteriosa chama

Que te segue, dos tempos já passados...

E não a vês, na delicada trama

Da sorte! Não a vês, nos teus cuidados!

Mas ei-la neste leito; e se derrama

Como por sobre o mar óleos sagrados...

É que, por certo, um dia, um leito deste

A quem, passando num lugar agreste,

Sentira as pernas bambas de fadiga.

E se buscares todos os segredos

Do teu passado, encontrarás os ledos

Florescimentos da tua alma antiga.

 

Infinito mudo

Quando te sentes loucamente aflito,

Pelas urzes da dor atormentado,

Tremes, por que te lembras do infinito

No qual te vês de todo abandonado.

Quando te julgas só como um proscrito,

De olhar à luz santíssima vedado,

Sentes no coração o inferno escrito,

E aos pés o inferno; e o inferno lado a lado,

Quando, vertendo lágrimas, soluças,

E ao chão convulsamente te debruças,

Nesse areal de todas as torturas,

Perdes até a crença, a fé, e tudo,

Porque o Infinito te parece mudo

Ás infindáveis ânsias das criaturas.

 

Ovelha desgarrada

Eu bem procuro me esquecer do dia

Em que partiste para outros lares,

Eu que à tua funérea cova fria

Tanto rego de prantos e pesares...

Eu bem procuro me esquecer, Maria,

Mas cada vez que me recordo, os mares

Da mágoa roxa e da melancolia

Levam-me a alma saudosa pelos ares...

E quando os teus queridos irmãozinhos

Perguntam-me por ti, e aos passarinhos

Dizem que foste para os céus levada,

Eu, a beber as lágrimas que escondo,

Nem sei o que, nem como lhes respondo,

Ó minha branca ovelha desgarrada!

 

Numa torre

Numa torre bem alta, assim, bem alta,

Perto da Estrela, e, como a Estrela, branca,

Que de clarões de prata o espaço esmalta,

As auroras sorrindo, doce e franca.

Numa tarde bem alta, assim, bem alta;

Maravilhosa luz que a treva espanca,

É onde mora o meu sonho, o que te exalta,

O que da treva mísera te arranca.

E contigo em meus braços; boca unida

A tua boca, em flor enfebrecida,

Nessa torre bem alta, os meus desejos

Têm, unidos aos teus, toda a alegria

Dos pombos quando, ao despertar do dia,

Arrulham nos telhados, entre beijos...

 

Transformação

Ninguém julgue que a ovelha humilde, a minha filha

Essa que morta está, tão fria, tão gelada,

Não continue a ser a mesma ovelha, amada

Nas redondezas desta encantadora ilha.

Ela apenas cerrou o olhar, que oculto brilha

No mundo, para abri-lo, então, glorificado,

Noutra vida melhor, que é luz de madrugada;

Que é branca Estrela d'alva, e eterna maravilha

Choro. Mas vá que a sua aromada epiderme

De banquetes, no barco, à voragem do verme,

Quando dela, e do verme, hão de surgir, no barro,

Os lírios, os jasmins, as rosas, as violetas,

Os alvos bogaris, e as fiavas borboletas:

Todo um florido abril lindamente bizarro.

 

Iniciado

Com o espírito feito claridades,

Faróis benditos, límpidos luzeiros,

Atravessas os campos e os outeiros,

Desertos, vales, escabrosidades...

Nas aldeias e vilas e cidades,

Andas com passos firmes e altaneiros,

Com os passos dos fortes, dos guerreiros

Que tudo vencem sem dificuldades.

És um ser iniciado, um ser bendito,

Porque voltas os olhos ao infinito,

As imortais grandezas dos espaços...

E assim, ó poeta, ó coração augusto,

Caminhas sem vacilações, sem susto,

Na cruzada do amor abrindo os braços.

 

Laços

Sei que duvidas da paixão que alento

Dentro do coração, e dentro da alma.

É que, afinal, não lês meu pensamento,

E o bem que em mim um sonho azul espalma...

Vivo a pensar em ti todo o momento,

Sempre e sempre feliz, de mãos em palma

Como se eu estivesse num convento

De Franciscanos, a rezar com calma.

E me ocorre a certeza de que, um dia,

Já nos vimos unidos na alegria,

Ou das paixões nos revoltados mares...

E não há laços que nos prendam tanto

Como os que ficam, úmidos de pranto,

Às saudosas janelas dos olhares.

 

Almas livres

Se as desoladas pedras dos caminhos

Vivem seguidamente a se encontrar,

Através da poeira, ou dos espinhos,

E às vezes pelas praias, junto ao mar.

Se de outra forma, cheias de carinhos,

Buscam intimamente se falar,

Ora sob o clarão de céus de arminhos,

Ora à chuva que cai, para as cavar...

Ah! quanto mais as almas das criaturas,

Emigradas das límpidas alturas

Ou para lá seguindo, em plena graça.

E as nossas almas, livres, se encontraram;

E, dos sonhos felizes que sonharam,

Fez-se na terra o amor que as entrelaça.

 

Bênçãos

Pobres não somos, na fatal desdita,

Embora falte o pão em nossa toalha,

E seja, a nossa vida, toda aflita

Como a de quem se vê numa batalha.

Pobres não somos, pois a luz bendita,

Que orvalha os campos de esmeralda, e orvalha

Todos os astros de ouro, da infinita

Plaga celeste, a sua bênção espalha...

Por nós espalha a sua bênção, em mantos

Que têm todos os fulgíssimos encantos

Da piedade, sobre as carnes frias...

Ah! se fôssemos pobres! (Negro inferno)

Eu não teria o teu amor eterno,

Nem tu, por certo, o meu amor terias.

 

Sonha...

Sonha se queres que esta vida seja,

De tanto lodo, em flores transformada.

Sonha, sonha feliz! Sonha e deseja

A paz que o sonho dá à alma cansada.

No sonho, que alegria benfazeja

Nessa do mundo indefinida estrada!

E que a tua alma, nesse sonho, veja

Os fulgores de uma outra madrugada.

Sonha feliz, contemplativamente,

Porque no sonho viverás contente,

Na alacridade do melhor falerno...

Sonha, de olhos voltados aos espaços;

Sonha no amor, abrindo os largos braços;

Sonha na morte, e até no próprio inferno.

 

Purificados

Ah! quantos corações como os rochedos

São assim tão frios e tão duros!

Todos ao chão por séculos seguros,

Penetrados de aspérrimos segredos!

Esses ficam nos longes dos degredos;

Abandonados nos painéis escuros,

Como espectros da treva, dos monturos,

Funambulescos, taciturnos, tredos...

Ah! quantos corações, de abismo em abismo,

Passam por esse eterno transformismo;

E, mudos, mudos, sepultados ficam...

Mas um dia virá, talvez, quem sabe?

Em que a mudez dos corações se acabe,

Pois todos sob a dor se purificam.

 

Ave morta

Morta a ave querida, a idolatrada

Ave que sempre gorjeava à porta

Da nossa casa! Para sempre morta

Aquela que era uma ave imaculada!

A dor austera, a negra dor velada

Nas incertezas – essa dor que corta,

Certo a tua alma ansiosa não suporta...

Mas o que hás de fazer, mulher amada?

Como soluças! Como choras tanto!

Que plenilúnios! Que marés de pranto!

Desses olhos tristíssimos transvazas!

Mas não prossigas, para que a nossa

Filha, que é hoje uma ave alegre, possa

Voar, sem peso nas franzinas asas.

 

Prepara-te

Dessa forma prepara-te, e prossegue.

Nessa do espaço, intérmina viagem....

Que o teu sonho a este mundo não se apegue,

Nem saudades vincule na paisagem.

Vai destemido. Os pés o céu te regue

De lágrimas de unção; e, à tua imagem,

Salva tudo que a fé de Deus consegue,

Sem os tristes enganos da miragem.

Na mansão das estrelas, entretanto,

Verás nas faces te escorrer o pranto;

E terás inda mil vacilamentos

Se recuares o teu peito às águas

Do dilúvio das ânsias e das mágoas,

De encontro aos vendavais dos sofrimentos.

 

Última morada

Teu coração, que recordava a ermida

Da nossa aldeia, toda aberta aos cultos,

E à paz gloriosa, à branca paz querida,

Que só se encontra longe dos tumultos.

Teu coração, que tanto amou na vida,

Saturado no sangue dos singultos,

E como uma falange destemida,

Venceu dos tufos os sombrios vultos.

Teu coração, tão nobre e tão perfeito,

Talvez sonhasse com um flóreo leito,

Para guardá-lo, cheio de ternura...

No entanto, a Morte, a tua noiva amada

Deu-lhe, apenas, por última morada,

Os Sete-palmos de uma sepultura!

 

O bêbado

De pernas bambas, trêmulas, iguais

Aos vimes, quando o zéfiro o sacode,

Lá vai o pobre bêbado, que aos ais

Busca fugir, nas raias do pagode.

Pensa transfigurar em madrigais

Todo o tormento que à sua alma acode;

E, por isso bebeu... bebeu... Demais,

Que tem que o corpo seu nas ruas rode?

Ê que o vinho lhe dá (Que fantasia!)

As noites da alma uns claros de alegria;

Tira-lhe a alma dos fatais escolhos...

Como se engana o bêbado, coitado!

Continua o seu corpo torturado,

E a alma ainda chora-lhe nos olhos!

 

Terra!

Como é ingrata, para sempre, a gente!

Pois contra ti, ó terra virginal,

Lança da raiva o vesgo olhar tremente,

Toda a sombra tristíssima do Mal.

No entanto, ó terra, do teu seio ardente,

Brota, para florir, o roseiral,

E escorre o rio, rútilo e dormente;

E o pão nos vem, na espiga do trigal.

E, no entanto, na seiva que palpita

No teu seio fecundo, é que se agita

Toda a vida do Amor, toda a grandeza;

Todos os sonhos de felicidade,

Em voos para a paz na eternidade

Por essa torre de astros e turquesas.

 

Amar... Sofrer... Orar...

Do amor os belos, sazonados frutos

Só os que amam poderão gozar...

Os corações lavados, impolutos,

Que intimamente sabem o que é amar.

Os sofrimentos?! Que cansaços brutos!

(Dirão os que não sabem caminhar!)

Eles sobem, no entanto, resolutos,

Escadas de topázios, de luar...

Mas os que amam e sofrem, nesta vida,

Terão a glória eterna, definida?

Terão, nos céus, alívio aos ais, aos gritos?

Mas não nos basta amar, nem da alma termos

Os sofrimentos, nos caminhos ermos:

Precisamos orar, também, contritos.

 

Nos mesmos laços

Que tarde bela, recortada de asas

De andorinhões e garças! Que frescores

Pelos caminhos que vão dar às casas

Brancas e alegres dos agricultores!

O céu na grimpa das montanhas brasas

Estende. E o rio é todo de fulgores

Serpenteando nas campinas rasas,

E nas lavouras de abundantes flores.

Recordo a tarde de ouro, em que me viste,

E dentro da alma um grande amor sentiste,

Porque afinal, no além de onde baixamos,

Nos mesmos laços de fraternidade,

Nos mesmos sentimentos de amizade,

Ligar os nossos corações sonhamos.

 

À hora final

Que não se crestem já os roseirais

Dessas lindas e límpidas estradas

Por onde andei rimando madrigais

Nos olhares das minhas bem-amadas.

E não se crestem esses laranjais,

E as madressilvas brancas, perfumadas;

Nem emudeçam esses sabiás,

E as águas dessas fontes sossegadas.

Nada, à luz desse sol, nada se creste,

Nem emudeça, no lugar agreste

Em que, feliz, passei a mocidade.

Ah! que tudo isso fique me esperando,

Na hora em que eu for do mundo me afastando,

Embora cheio da maior saudade.

 

Nessa jornada

Eu me julgava quase abandonado

Num campo de urzes e cruéis tormentos.

Sobre o meu pobre coração cansado

Hieroglafavam corvos augurentos.

Cada passo que eu dava era arrimado

À própria dor e aos fundos desalentos.

Cego tateava um túmulo cavado

Numa rua varrida pelos ventos.

Nessa jornada, totalmente à míngua

Senti o coração; e a minha língua

De todo retalhada à sede louca.

Nisso teu vulto assoma, e é quando, pasmo,

Encontro nos teus seios um pão asmo;

E uma fonte corrente em tua boca.

 

Talvez!

Toda a tristeza amarga e misteriosa

Que impenitentemente te lacera,

Talvez viesse da plaga tenebrosa

De um mundo sem rosais de primavera.

Talvez de um mundo assim, viesse, assombrosa

Essa tristeza que em teu peito impera,

E como um polvo másculo o devora,

Numa tortura por demais austera.

Talvez de um antro frio ela viesse,

E entre brumais tantálicos trouxesse

O requinte das formidáveis ânsias

Nas quais, no entanto, tu te purificas,

Para voltares às paragens ricas,

A paz espiritualizada das distâncias.

 

Grãos de trigo

Foste tu mesma que a prisão fizeste

Para o teu corpo fluídico habitar...

E agora queres para o azul celeste,

Rufiando as asas, célere, voar...

E quando à vida terreal vieste,

Por acaso estarias a sonhar?

E o que do espaço olímpico trouxeste?

E amaste como a gente deve amar?

Prendeste as asas à prisão sombria

Da carne, e queres ter toda a alegria

De uma ave solta à luz da madrugada!

Mas não queiras voar, dessa maneira,

Porque, jamais! na hora derradeira,

Grãos de trigo terás para a jornada.

 

Lótus dos séculos

Morto há centenas de anos inda é o Belo,

Inda o Maravilhoso, inda o Sublime.

E eu não me canso de buscá-lo e vê-lo,

Que o seu olhar todo doçura exprime.

Trato de amá-lo, e trato de compreendê-lo,

Porque o seu coração almas redime,

Afugentando o frio pesadelo,

E as rajadas tristíssimas do crime.

Não é visão (nem eu sou visionário)

Esse Ser que me diz, extraordinário,

Palavras de carícias de cetim...

E o que Ele, então, me diz, digo-o ajoelhado...

Ele me diz, sereno e iluminado,

Ser o Lótus dos séculos sem fim.

 

A um poeta

Era o teu peito urdido de cuidados,

De carícias suavíssimas, de afagos;

E era, poeta, a tua alma como os lagos

Onde se espelham céus azuis e prados

Junto dos pobres peitos desolados

Nunca os teus passos foram vagos... vagos...

Quer pelos dias de ametista, aziagos,

Quer pelos dias de ouro, onde florados.

E por seres, assim, no amor um forte

Nem mesmo a águia espectral da morte,

No seu carro fantástico, medonho,

Pôde (embora matasse a fria argila)

Matar-te a branca monja, na pupila

Onde morava, a orar, dentro do sonho!

 

O pranto

Vives voltado simplesmente às dores;

E das dores te envolves no sudário

De atras, sombrias, magoadas flores,

Como o coração nas ânsias, solitário.

Solitário nas ânsias, os fulgores

Do mundo amargo, deste mundo vário,

Deixas rolar como senectas flores;

E a tua vida tange a campanário.

Somente as dores ao teu ser humano

Dão com certeza o sacrossanto arcano

Da doce paz que o belo céu recolhe.

Faz-se mister que ao teu olhar, no entanto,

Para purificar-te, suba o pranto,

E esse teu coração nele se molhe.

 

As estrelas

Misteriosas estrelas das Alturas,

Moradas alvas e misteriosas,

Sois, para as noites da alma, iluminuras,

Faróis acesos, lâmpadas custosas.

Eu vos busco, em silêncio, dentre as duras

Lancinações sangrentas, dolorosas,

Da vida atroz nas vagas de amarguras;

E em vós confio, estrelas amorosas,

E vós todas, no claro espaço infindo,

Sois uns refúgios que se vão abrindo

A proporção que vamos nós ao espaço

Erguendo os olhos frios de saudade

Na hora em que a morte, cheia de piedade,

Divinamente nos segura o braço.

 

O coração

Na dor o coração se purifica,

Sacode a poeira negra da miséria;

E, igual a um astro misterioso, fica

Eternamente na região sidérea.

Transfigurado numa luz mais viva,

O coração, distante da matéria,

Só as purezas o sentido aplica;

E ondas de eflúvios sente em cada artéria.

Tanto assim é que, numa sepultura,

Fria, gelada, e silenciosa e escura,

Por mais que a gente busque um coração,

(Um coração que tantas dores teve)

Não pode, nem de leve... nem de leve,

Encontrá-lo, ainda, feito coração!

 

Seios brancos

Nas curvas desses seios lactescentes

Segues, tranquilamente, sossegado,

Por este mundo de paixões ardentes,

Mais que as ondas de um mar bravio, irado...

Segues de olhos fechados às frementes

Dores, porque em seus seios amparado,

Teu coração é todo florescentes

Vinhos, num verde e luxuriante prado.

É dessa forma, bem feliz na vida,

Pois quanta gente, por aí perdida

Vive, tão só, nas ânsias, nos arrancos,

Sem ter quem lhe agasalhe o peito aflito

Num punhado de cal, ou de granito...

Ah! quanto mais naqueles seios brancos!

 

A alegria

A que parece que jamais se apaga,

A que dentro de nós toda irradia.

Maravilhosa – e que nos embriaga,

Essa é a mais santa e límpida alegria.

É o azeite por cima de uma vaga

Encapelada, em plena ventania.

E, toda exuberante, à luz que afaga,

Como a que vem da fluidez do dia.

Nem sabe a alma humana compreendê-la;

Nem sabe de onde vem — se de uma estrela,

Se do sol, se do além, do firmamento;

Se de si mesma, noutras existências,

Ou desta, nas douradas florescências;

Ou se é a ilusão do próprio pensamento.

 

Saudoso e triste

Ergui-me, calmo, às regiões celestes,

E fui galgando as límpidas estrelas

Que, cada vez, de perto, eram mais belas

Que as rosas brancas dos vergéis agrestes.

E vós, mulheres, que no amor me destes

Todas as forças – e que, nessa hora, delas

Em derredor viveis, a percorrê-las,

Ao meu encontro com saudade viestes...

Senti-me bem nesse solar, ouvindo

As nossas almas, que se iam abrindo

Em harpas de ouro da mais rica gema.

Mas tive que voltar, saudoso e triste,

Porque no mundo uma mulher existe,

Para fechar-me os olhos na hora extrema.

 

Recordação

I

No seu triste caixão, no seu último leito

Não havia uma flor! Mas se eu ali estivesse,

Teria o coração mais do que satisfeito,

Porque do roseiral que por ali floresce

Nem uma rosa só, de perfume desfeito,

Ficaria no pé. Depois, a minha prece,

Dar-lhe-ia, por certo, o santíssimo efeito

De um azeite de unção, que na crença se aquece.

E eu mesmo, sem ninguém ousar falar de mim,

As suas lindas mãos mais alvas que o marfim,

Cruzaria por sobre o seu peito gelado...

E eu mesmo, dentre toda a gente do caminho,

Seria capaz de levá-la, sozinho,

E enterrá-la, a chorar, e enterrar-me ao seu lado.

II

Entretanto, não choro, agora, a sua ausência,

(Morresse ela tão pobre, e sem o meu olhar)

Porque, da luz do sol à flava resplandência,

Ou quando a noite desce, encontro-a sem cessar.

E o seu vestido é todo iriada florescência

Fluídica, sutil, rarefeita, do luar...

E o seu corpo possui ainda a mesma inocência;

E há músicas no seu acariciante falar.

Penso seguidamente, então, na borboleta

Branca, de poeira de ouro, e de asa irrequieta,

Que me bate à janela, e eu, entre as mãos osculo...

Assim, a alma de quem, de uma tuberculose

Atacada, morreu, e em plena transmorfose,

Como outra borboleta, irrompeu de um casulo.

 

Alucinado

Fugi alucinado, e amaldiçoei a vida

De um pobre coração emparedado numa

Ânsia eterna de amor sem paz, e sem guarida,

Como por sobre a vaga o lírio de uma espuma.

E fugi a correr, em fúria desabrida,

Por uma praia triste; e fui a um monte... Em suma

De lá de cima olhei uma estrada comprida,

Sem cor, sem flor, sem luz, sem claridade alguma.

Mas, parado, depois de andar convulsamente,

Do tédio arremessado à tortura inclemente,

Madruguei, afinal, num campo solitário.

E só retrocedi, ao contínuo chamado

Da tua voz febril, que ecoara ao meu lado,

Através das canções saudosas de um canário.

 

Seu vulto

Vejo-lhe o lindo e acariciante vulto,

Delicado, sutil, sereno, em pluma

De ninho a balouçar; ou como espuma

Vejo-o surgindo de onde estava oculto.

E ao vê-lo, as ânsias, num fatal tumulto,

Surgem-se-me, assim, no peito, uma por uma...

É que ela é morta, já descera à bruma

Da sepultura, dentro de um singulto.

E, mais a mais, seu vulto me aparece;

Sobre o meu peito lentamente desce;

Ante os meus olhos ávidos assoma,

Todas as vezes que eu revejo o lenço

De lembranças do seu amor intenso,

Embalsamado do mais casto aroma.

 

Convencido

Por que torturas vais passando, agora,

Por que negras torturas vais passando,

Tu, que possuías dentro da alma a aurora,

Que ia em brancos rosais se desfolhando.

E a esperança, que toda dor minora,

Vai, no entanto, na dor te aprofundando;

E a tua alma soluça, geme e chora,

Como quem vai por báratros passando.

É que, no mundo, o teu ideal mais santo,

Terá de ser seguidamente ungido

No soluço, gemido, e amargo pranto.

Mas vai, segue com crença, destemido;

Busca dos sonhos o bendito manto,

E chegarás, das glórias convencido.

 

A esperança

Sem a flâmula verde da esperança,

Ninguém procure viajar, ninguém!

Onde não há o azeite da bonança,

Todas as vagas mil soluços têm.

Sem a flâmula verde da esperança,

Quem poderá seguir rumos do Além?

Ou, quem nada espera, nada alcança:

Lembra, no fim da vida, Pedro Cem.

Sem essa verde flâmula no cimo

Da montanha da vida, qual o arrimo

A tantas aflições, tantos cansaços?

Sem a flâmula verde da esperança,

Ninguém, na vida, nem sequer alcança

O que sente agarrado aos próprios braços.      

 

Para o mesmo chão

Lágrimas há, profundamente amaras,

Vindas dos mais recônditos arcanos,

Dos miseráveis corações humanos;

Das almas para todo o sempre avaras...

Outras lágrimas há, doces e claras,

Sem anseios letais, sem desenganos,

Sem soluços cruéis, tredos, insanos: —

Lágrimas raras, neste mundo raras...

Amarguradas lágrimas choramos,

Nós que com ansiedade nos amamos...

Mas não sei explicar porque razão.

Bem como as nossas lágrimas, sentidas,

As miseráveis lágrimas mentidas

Rolam, convulsas, para o mesmo chão!

 

Saudade

I

Naquela casa que ameaça ruínas,

Cujo telhado cobre-sede limo,

Vi as primeiras rosas matutinas;

Deram-me uns seios o mais forte arrimo.

Parece que ainda sinto, entre as cortinas

Do meu berço de linho no alto cimo,

O aroma do alecrim, nas mãos divinas,

De minha mãe de quem eu era um mimo.

Mas, como todo o ser, ao vir à vida,

Verte uma triste lágrima sentida,

Nessa casa verti-a. E, então, jamais,

Jamais esquecerei, na vida inteira,

Que ali verti a lágrima primeira,

Inicial das contas dos meus ais.

  

II

Venho de ver o meu saudoso ninho,

Onde nasci – a casa que ainda existe

Naquela rua, tão sombria e triste

Que até parece um lúgubre caminho.

Ei-la no fim da rua, num cantinho...

E a picareta, à qual nada resiste,

Irá bater-lhe, como lança em riste,

Às velhas portas de canela e pinho.

Ao recordar-me disso é que hoje venho

Pedir-vos, cheio do maior empenho,

Por uns olhos que ali me foram célicos,

Que tenhais um momento de piedade,

Vós, operários – de quem tem saudade

Da antiga Rua dos Artigos Bélicos.

 

Emparedado

Por planícies e aspérrimas montanhas

Andei errando como um beduíno,

E contei ao luar o meu destino,

Velado por dragões de atras entranhas.

E a ti, ó sol, que de purezas banhas

Os campos verdes, num clarão divino,

Contei, também, chorando, o desatino

Das minhas ânsias trágicas, estranhas...

Mas não contei ao mar as minhas ânsias,

Ao largo mar perdido nas distâncias,

Para não vê-lo, dessa vez, cavado...

Pois esse mar é um coração doente,

Igual ao meu, e vive eternamente,

Eternamente triste e emparedado.

 

O Anjo do Sono

O Anjo do Sono assim me fala, se me deito,

Se procuro cerrar as pálpebras cansadas:

"Não julgues tu que irás descansar, satisfeito,"

"Nas carícias da paz da noite, desejadas..."

"Não pode descansar, no sono, quem no peito"

"As revoltas possui das ondas torturadas"

"Do grande mar do tédio, onde tudo é desfeito:"

"Até o próprio amor de asas imaculadas!"

"Ah! se eu te desse a paz de um belo seio amigo:"

"O teto, o vinho, a água, e unia granja com trigo,"

"Da estrela do pastor à estrela da manhã,"

"Certo que nunca mais teus olhos se abririam,"

"Nem desse coração as fibras pulsariam..."

"Eu para ti seria a morte, a minha irmã."

 

Madrugada de Abril

Madrugada de Abril, poeirada de diamantes!

Florescimento de um sagrado manto real,

De que mundos do além, de que mundos distantes,

Que lembram, cá debaixo, um eterno rosal...

De que mundos do além, de brilhos ofuscantes,

Onde da dor não bate asas o vendaval,

Desceu meu filho aos meus braços febricitantes,

De tanta luta neste alto oceano do mal?

Se ele, agora, desceu, por acaso, do mundo

De onde desci na dor, no tormento profundo,

Para tanto chorar meus males, noite e dia,

Madrugada de Abril, sejas-lhe a protetora,

E lhe desça à cabeça o azul da tua aurora,

Do qual nos céus se fez o manto de Maria.

 

São Francisco de Assis

Dos canteiros da Úmbria era Francisco o Lótus,

De cujo pólen fez-se a mais límpida luz.

E amou, como ninguém, as chagas de Jesus;

E ao senti-las nas mãos, teve sonhos ignotos.

Todo o seu coração seivou ardentes votos,

E deles viu surgir, sentiu surgir à flux,

O lendário esplendor do símbolo da Cruz,

De onde sobem da Fé os infinitos brotos.

Corpo, trilhava a terra; alma, festiva e nobre,

Vestia-se do azul bendito que nos cobre;

E, sem nunca sentir os passos fatigados,

Ei-lo, o meigo Francisco, o Pedinte das graças,

Pelos campos e pela ostentação das praças,

A pedi-las a Deus para os desamparados.

 

Quando não vens

Quando não vens, que séculos contados

À cada hora que passa, e a cada instante!

Toldam-se os ares; tornam-se pesados,

Para o meu coração febricitante.

Meus olhares tristíssimos, cansados,

Vão à rua, e à janela do mirante;

E, se não chegas, ficam desolados,

Porque moras tão longe, tão distante!...

Mas eu sei quando vens dobrando a estrada,

Para me veres, toda iluminada,

Dos resedás pela cheirosa estufa...

Sei, porque, nesse instante, alegre, sobre

O meu telhado de casinha pobre,

Uma carriça canta, e as asas rufa...

 

Gata Borralheira

Abrem-se as rosas, quando vens chegando;

E as açucenas tornam-se celestiais...

Pelas ramadas, pássaros trinando,

Soltam rimas de guizo, em madrigais.

À luz doce do sol, que vai poeirando

De ouro e prata a esmeralda dos matais,

Corre um perfume acariciante e brando,

Como o de um vinho em ânforas reais.

Tudo se prende à vida, nesse instante,

No afã de te render homenagem.

Religiosamente verdadeira.

E eu, que te espero, sou o rei triunfante,

Alucinado pela tua imagem,

Ó misteriosa Gata Borralheira!

 

Ter crença

Ter crença é procurar, na noite escura

Do mundo, a luz mais clara de uma estrela.

Entretanto, nossa alma, para tê-la,

Não necessita da menor tortura.

Basta, nas ruas tristes da amargura,

Procurá-la, e senti-la, e compreendê-la

E, aberta em flores, na consciência tê-la,

Banhada de carinhos e doçura...

Ter crença é ter o coração vestido

De dalmáticas de ouro o mais subido,

Como se fosse, o coração, na vida,

Um Santo Estevão que, ajoelhado, orasse

Uma prece que nunca se acabasse,

No silêncio emotivo de uma ermida.

 

No escuro

Vive no escuro, para sempre, eterno,

Profundamente, o ser a quem a descrença

Envolve em toda a sua nuvem densa,

De atormentante, pavoroso inverno.

Escuro deve ser, também, o inferno,

Todo cavado numa dor imensa.

Leito do tédio, da fatal doença!

Boda negra, sem gotas de falerno!

Escuro, escuro, para sempre escuro,

Há de o caminho ter quem, mais seguro

Ao pessimismo, do que a um baraço

Vai, deste mundo, pela longa estrada,

Com a própria cabeça acorrentada,

Jungida aos pés, e braço contra braço!

 

Louco de paixão

Quando Maria, a linda flor da aldeia,

Fechou os olhos para nunca mais

Abri-los neste mundo, a lua cheia

Era uma floração de roseirais.

Houve um rumor de pranto em toda a aldeia;

E a vizinhança repetia, aos ais:

Ah! jamais ouviremos a sereia

Que cantava a toda hora uns madrigais...

E quando amanheceu (que manhã bela!)

Ei-la deitada num caixão estreito,

De mãos cruzadas sobre o frio peito!

Com certeza, ao clarão do sol a pino,

Levá-la-iam, assim, ao Deus-Menino,

Que andava louco de paixão por ela!

 

Mudo!

Conto na vida muitos desenganos;

Profundas ilusões, vagos lampejos,

Que me amortalham todos os desejos,

Mesmo na rubra e bela flor dos anos.

Passam junto de mim, abrindo os panos,

As galeras das ânsias, em bordejos...

Lembram, no mundo, lúgubres adejos

De tenebrosos pássaros insanos.

São os meus sonhos, rútilos e castos,

Que assim vão a rolar por esses vastos

Mares revoltos... Vai-se tudo... tudo.

E eu a pedir ao coração que chame

Pela esperança, e em sua luz se inflame...

E ele, na praia da descrença, mudo!

 

A um irmão

Nunca a esmola por ti seja negada;

Nunca feches os olhos à pobreza,

Porque tu andas pela mesma estrada,

Pois uma só é a imensa natureza.

Quer busques a montanha, ou a esplanada;

Quer as praias do mar; quer a beleza

Dos campos; quer a abóbada azulada,

Quer da terra a sombria profundeza...

Não sairás da estrada dos pedintes,

Embora o mundo de outra forma pintes,

Embora o vejas cheio de matizes...

Quantos pedintes! (Há-os em abundância)

Sem viverem na austera mendicância,

E parecendo aos outros uns felizes!

 

Pelo caminho branco

Pelo caminho branco da bondade,

É que terás de ver os astros brancos,

Que se perdem no azul da imensidade,

Cada vez mais sublimes e mais francos.

Assim dizem, do amor na claridade,

Os que rompem da terra os largos flancos,

E vão, felizes de serenidade,

Sem da tortura os rústicos arrancos.

Assim dizem os que, num belo assomo,

Todos vestidos de purezas como

Os lírios, os jasmins, as açucenas,

Buscam do espaço esse caminho lindo,

Sem se voltarem para trás, ouvindo

O carrilhão das ilusões terrenas.

Vai...

Alma cansada e cheia de cuidados,

Vai em busca da luz branda e piedosa

Desses céus para sempre imaculados;

Busca dos céus a curva luminosa.

E para que nas asas uns lembrados

Sonhos possas levar, ó alma amorosa,

Voa bem como os pássaros, alados

Voam por sobre a terra silenciosa.

E eu quando durmo é para te ver solta,

Ó alma cansada, a fim de que, envolta

Na claridade desses céus benditos,

Possas ver apagados, por momentos,

Os teus imponderáveis sofrimentos,

E os gritos soluçados dos teus gritos.

 

Simbólico

Dizem teus olhos cousas que as estrelas

Nunca, nem mesmo em sonho, me disseram.

Sou o único, portanto, a percebê-las;

Pois os teus olhos para os meus vieram,

Cousas misteriosas e tão belas,

Para o mundo outros olhos não trouxeram...

Por isso fico satisfeito ao vê-las,

E lhes conto as venturas que me deram.

Eu, na meiguice eterna, que os invade,

Leio toda a pureza e castidade

Que prendem num só laço os corações.

É que os teus olhos, nessa glória imersos,

Têm a sagrada limpidez dos versos

Do meu sagrado livro de orações.

 

Uma graça

O teu feliz destino! Alguém te diz ao ouvido,

Quando cismas, à noite, e procuras saber

Toda a origem do teu destino, percorrido

Até esta hora, desde o seu alvorecer...

Alguém, baixo, te diz: — Ficarás convencido

Que o teu destino foi, e continuará a ser

O de um alveonador robusto e destemido,

As misérias vencendo, em pleno entardecer...

E para que não possa o teu peito vergar

Ao cruel desalento; e a tua alma chorar,

Nem perderes o olhar na abóbada estrelada,

Uma graça terás, num divino clarão,

De encontrares a água, e encontrares o pão,

Nessa eterna e formosa e sacrossanta estrada.

 

Viver cumprido

Na terra ficará o meu corpo, dormindo

Até que se desmanche ou se transforme em lama...

Enquanto isso, no Azul, campos irão se abrindo,

Na eterna floração que de prata os recama.

A cada hora chegada irei mais subindo,

Orvalhado da luz que dos céus se derrama,

Para me abençoar com perfumes, e ungindo

Minhas mãos, e meus pés, e a minha fronte em chama.

É que de Deus será a maior recompensa

Aos meus gritos de mágoa, e à minha dor imensa!

A tudo quanto tenha a minha alma sofrido

Na profunda mudez dos profundos sigilos,

Dos sempre, sem cessar, com seus olhos tranquilos,

Firmes de haver na crença o seu viver cumprido.