Textos literários em meio eletrônico
Versos antigos, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,
Florianópolis: ACL, 1966.
Dias longos, nostálgicos, sombrios...
Nem mesmo eu sei quando eles amanhecem!
Nem mesmo eu sei quando eles anoitecem,
Por sobre os campos e por sobre os rios.
Apagados aos doces murmúrios
Das cores, e aos perfumes que entontecem;
E aos campos férteis, que de luz se aquecem;
E às aves de alma cheia de amavios...
Dias fechados, como a chaves de aço
Fechados são cofres de um judeu
Cujo egoísmo mata-o de cansaço,
São os por mim perdidos, penso eu;
São aqueles em que não ergo o braço,
Para implorar o teu perdão, ó Céu!
Reza
Passo as noites em claro, hora por hora,
Pensando em ti, pensando em mim; pensando
Na nossa vida atroz, que não melhora,
Chore eu, e chores tu, aos céus clamando.
Continuamente, num tristonho bando,
As nossas esperanças vão-se embora,
Como as aves no inverno horrível, quando
Nem rosas há pelos vergéis da aurora
Tudo um montão de trágicas ruínas
Em derredor de nós, como colinas
Que se houvessem ruído ao som dos ventos...
Mas, para que um grão de areia possa
Ficar, reza ajoelhada, reza à Nossa
Senhora Amparadora dos Tormentos.
Aflito
Para a luz dos teus olhos corro aflito;
Corro nas ondas das profundas mágoas,
Como corri nas torturosas águas
Do mar, de encontro às rochas de granito.
Gemo, anseio, soluço, choro e grito...
E como o triste náufrago, nas fráguas,
Essas ânsias revejo; na alma trago-as,
Sob a mudez sombria do infinito.
Mas, ao correr à luz de uns olhos belos
Quais são os teus, percebo-lhe os desvelos;
Busco-lhe a meiga e clara suavidade,
Bem como se eu de novo naufragasse,
E ao sol pedisse a luz, que me amparasse
O peito, as mãos, e os pés, por caridade.
Aonde estarão as lágrimas, choradas
Desde o princípio, pela humanidade?
Estarão pelo mundo derramadas,
Sem os amparos da felicidade?
Serão poeira pela imensidade
Das montanhas, dos campos, das estradas,
Ou desolantes pérolas queimadas,
Ou gotas de água ao afago da impiedade?
Aonde estarão as lágrimas, vertidas
Dos olhos roxos do desolamento,
Das criaturas pela dor ungidas?
Aonde estarão? Ao deus-dará? Ao vento?
E serão pobres flores ressequidas?
Ou serão os clarões do firmamento?
Cristo!
Apagados serão todos os crimes,
Para sempre apagados... apagados...
Diante dos céus olímpicos, sublimes,
Dos virgens céus azuis, estrelejados.
E tu, ó Cristo, que no amor redimes,
Pois tens ainda os braços levantados,
Não como frágeis, flexíveis vimes,
Mas como uns galhos de árvore, orvalhados...
Tu, Redentor dos corações humanos,
Virás varrer os negros desenganos,
E nos mostrar sem urzes o Caminho.
Transformarás a pedra em grão de trigo...
E, nesse tempo, se eu estiver contigo,
Verei a água transformada em vinho.
Morram todas as flores deste mundo,
Mordidas por um sol impenitente;
Desde os campos ao grande mar profundo,
Desde o Levante às plagas do Ocidente.
E morra o mar, também, manso ou iracundo;
E os montes morram convulsivamente,
E morra o trigo; torne-se infecundo;
E as aves morram, morram num repente.
E a luz do sol, que morra soluçando;
E a lua albente que se vá finando,
Como se fosse bolha de sabão...
No entanto ficará de pé, no espaço,
A alma branca e feliz, erguendo o braço...
Pois morrerás, também, ó coração!
A alma justa
A alma que é justa, quando sobe ao Empíreo,
Veste as alvas dalmáticas da lua,
E é mais leve do que do branco lírio
O aroma que no zéfiro flutua.
Se sofreu os espinhos do martírio,
Como se andasse sobre espinhos, nua;
Se andou atrás das ânsias, em delírio,
Ei-la subindo a sacrossanta Rua...
Ei-la do pó do frio chão despida...
Ei-la, portanto, na suprema vida,
Que é a dos seres bem-aventurados;
Dos que na terra andaram de joelhos,
Lendo e cumprindo os Santos Evangelhos,
Com os braços no Amor crucificados.
Amor eterno
Para andarmos assim, os dois, unidos,
Quer faça sol de inverno, ou sol de estio,
É que fomos, ó meu amor, descidos
A este da dor tantalizado rio.
Andemos, pois, no mundo, convencidos
Que tudo que, em macabro rodopio,
Anda em roda de nós, ruge gemidos,
Como esses ventos de um luar doentio.
Mas não importa que tudo isso seja;
E o próprio sol do estio de nós fuja,
Ou que vejamos esse sol de inverno
Afastado de nós, como uma sombra...
Basta do sonho a carinhosa alfombra;
Basta, na nossa estrada, o amor eterno.
Rios
Estes rios que vão, assim, rolando
Por estes campos, em redemoinhos,
E em vozerios de leões uivando,
Bravos, sinistros, trágicos, daninhos...
Estes são almas se despedaçando,
Negros de ódios cruéis, que os claros vinhos
Dos sonhos vão em fel transfigurando...
Rios em cujas margens não há vinhos...
Mas aqueles, no entanto – aqueles rios
Como são tão cobertos de amavios;
Em delicada música embalados...
Como na vida azul dos sonhadores,
Por eles desçam ofélias, entre flores,
Sob o esplendor dos céus imaculados!
Esquecido!
Esquecido de tudo que obtivera
Em glórias, no caminho do passado,
O homem de agora clama e vocifera,
E os braços gesticula, rebelado.
E contra a Luz que o acena, desespera,
E nuvens lança, de um olhar vibrado
Com crueldade, com paixão austera,
Como se fosse um rústico soldado.
Esqueceu, do passado, as armaduras
Com as quais combatia as desventuras,
Vencendo a todos com devotamento!
E não deseja ser, hoje, esquecido,
Quando vive, tristíssimo, escondido
Nos brumais do seu próprio esquecimento!
A uma visão
Trajando dos rosais os alvos linhos,
E o ouro do trigo quando amadurece,
Entre estrelas, teu vulto me aparece,
Vindo de outras regiões, de outros caminhos...
Do teu piedoso olhar, todo carinhos,
A exuberante e prometida messe
Da luz do amor sobre o meu peito desce
E suaviza-lhe o golpe dos espinhos.
Mas de onde vens, de que regiões tão belas
Teu vulto vem? Teu vulto, entre as estrelas,
É mais alado que o condor na serra.
Desce teu vulto dessas granjas de ouro
Que Deus concede às mães que o trigo louro
Do amor souberam semear na terra!...
Egoísmo!
As asas negras, trágicas, abriste
Por sobre o mundo, de maneira tal,
Que todo o mundo se cobriu, tão triste,
Das sombras funestíssimas do mal.
E desde essa manhã que, odiando, viste,
Deixou, no mundo, de existir o sal;
E nem tão pouco da alegria existe
O claro e doce vinho original.
Tudo à sombra ficou das tuas asas:
O mar, o rio, o campo, e as próprias casas;
E, ainda, muito mais, o coração...
És, portanto, ó tristíssimo egoísmo,
O vampiro surgido do atro abismo
Da alma banida e tétrica de Adão.
Ao partir
Parto! Não chores mais! Não te consumas
Como a formosa Catarina, quando
Partiu-lhe o amante, límpido, sulcando
Do mar revolto as vagas e as espumas.
Essas tranças que tu ao colo arrumas,
Não quero ver em pranto se banhando;
Nem teu lenço alvadio me acenando
Longos adeuses, através das brumas...
Que te serve chorar um pranto amargo,
Se não te escuta o mar, profundo e largo;
Se não responde, ingrato, aos teus desvelos?
Chorar, eu! porque além de ti, que és minha,
Deixo doente, a um canto, uma velhinha
Que ainda agora beijou os meus cabelos!
Vestido de negro
Quem se vestiu de negro? e à minha porta
Bateu neste momento? Quem bateu,
Quando da noite a triste neve corta
O campo, e o vasto mar, e o vasto céu?
Quem tanta negridão em si suporta
Que até faz recordar que se escondeu
Na asa de um corvo? Olá! Quem não se importa
De me dizer quem é? Mas, respondeu,
O fantasma sombrio, horrível, tredo;
Respondeu, esgueirado num segredo,
Do qual fazia o seu famoso cetro...
E muito mais medonho que os medonhos
Vampiros, repetiu: – Eu sou, dos sonhos
Dos que não amam, o fatal espectro!
Vã conquista
Um dia amanheceste na opulência,
Tu que vivias pobre como Jó;
Mas não tendo de Jó toda a inocência,
Tu te vestiste de doirado pó.
Mantos tiveste, de uma resplandecência
De sóis; e foste, neste mundo, só
No orgulho, na vaidade, na inclemência,
Sem possuíres um ceitil de dó.
Conquistaste, portanto, o que no mundo
Julgavas ser todo um trigal fecundo;
Mas hoje, que morreste, bem que dista,
Dos desejos que tinhas, a ventura...
Hoje, enganada vives, na loucura
Dos desesperos de unir vã conquista.
Basta...
Fita as Estrelas límpidas do espaço;
Vê como fulgem, como são brilhantes!
Ergue para elas o teu pobre braço;
E procura tocá-las, por instantes.
Mas sentirás tristíssimo cansaço,
Horas e horas de anseios fatigantes!
Que longe está do azul todo o regaço!
Como estão as estrelas tão distantes!
Ah! entretanto, para a gente tê-las,
Para a gente sentir essas estrelas,
E por elas viajar bem satisfeito,
Basta esperar, basta ter fé e crença,
E ter a alma na luz do amor suspensa,
E as mãos hirtas cruzadas sobre o peito.
A inveja
Percorro o mundo, vagarosamente;
Negra, sombria, trágica e velada.
Sou, às vezes, a tétrica serpente,
No alvo vale de uns seios enroscada.
Outras vezes, porém, sou a fulgente
E aterradora lâmina afiada
De um punhal; outras vezes, o inclemente
Fel, numa beca assaz imaculada.
Afastai-vos de mim... Mas de que jeito, e como
Se os corações na terra inteira domo;
Se percorro do mar todos os portos?
Se ninguém sabe, como eu sei, na terra,
Viver? Quem mais do que eu a força encerra?
Persigo os vivos e persigo os mortos...
Mares das mágoas
Vivo a sonhar com mares procelosos,
Que das curvas das praias alvadias
Sobem sinistramente aos alterosos
Montes, e às mais altivas penedias...
Ventos rugem, fantásticos, irosos,
Torcendo as ondas que se vão, bravias
Pelas nuvens adentro, aos céus formosos,
Hoje cheios, porém, de asas sombrias.
Mares negros, revoltos, para cima
Rolando, desde os campos da vindima,
Desde os rosais às escarpadas fráguas.
Mares, assim, em convulsões rolando,
Convulsionando a terra, convulsando...
Feitos de todas as humanas mágoas.
Saudosa
Bates? De onde vieste, assim vestida
De branco, e assim coroada de alvas flores
De laranjeira, se fugiste à vida,
Se não vives do sol sob os fulgores?
Bates? De onde vieste, indefinida
Mulher, que andavas gorjeando amores,
Como uma ave, que, agora, na esbatida
Noite da cova vive, entre pavores?
Vieste da cova fria... fria? Vieste
Da sombra simbolista do cipreste,
Ou das alturas? Para lá subiste?
– Eu vim de percorrer mundos e mundos;
Vim da estrada dos páramos profundos...
Vim com saudade da tua alma triste.
Olhos
Aqueles têm a cor do azul celeste,
Meigos, suaves, límpidos, tão belos
Que os corações por mais austeros ao vê-los,
De uma doçura original se veste.
Estes são como o lindo mar de leste,
Dos montes frios sem os camartelos...
Muitos lembram topázios amarelos,
E outros são sombras mudas, de cipreste.
A todos quero bem, porque no fundo
Desses olhos eu vejo sempre um mundo
De mistérios de amor, de sentimentos...
Mas muito maior bem quero aos teus olhos,
Que, assim negros, penetram nos escolhos
Negros, dos meus tristíssimos tormentos.
Nunca sorriu!
Nunca sorriu! Jamais na sua boca
Um sorriso, que é luz cantante, um dia
Alou, como a dourada e linda e louca
Borboleta, na rosa que inebria.
E a sua voz era sinistra e rouca
Como a da água descendo a penedia.
Pouca importância dava às outras, pouca,
Numa expressão de gélida ironia.
Nunca sorriu! Nunca sorriu! Jamais!
E também nunca teve aflitos ais,
Soluços, gritos de emoção veemente!
No entanto, agora, pelo cemitério,
Ei-la a sorrir, assim, no atro mistério
Da morte; e vai sorrindo eternamente!
Depois de morto
O que fazes aí, por estas horas
Taciturnas, sombrias, sossegadas,
Quando ninguém percorre estas estradas?
O que fazes aí, e por que choras?
A quem a paz para a tua alma imploras?
A quem pedes sossego, às torturadas
Ânsias? E o que desejas, das cansadas
Almas que moram onde aflito moras?
Hão de passar por ti ouvidos moucos;
E não os poderás chamar de loucos,
Pois os teus, quando sobre a terra andavam,
Nunca se abriram para ouvir os gritos
Dos desolados corações aflitos
Que nos mares do pranto se afogavam!
O inferno
Não te constranjas com pavor do inferno
Que dá ranger de dentes e convulsões,
Porque onde existirem corações,
Ele aí estará, quase que eterno.
Será fogueira equatorial, ou inverno;
Será gelos ocultos, ou clarões;
Será verdades, creias, ou ilusões;
Será remorsos, ou será falerno.
Ah! tudo isso será o inferno, tudo,
Enquanto houver um sentimento mudo
Dentro da alma da mísera criatura.
E nos seus tristes emparedamentos,
Os nossos sonhos e padecimentos,
Vivem numa só rua de amargura.
O orgulho
Ei-lo que chega, o rei Sardanapalo,
Com toda sua excelsa vassalagem.
Unta-lhe as botas prateadas um vassalo,
E outro lhe dá perfumes bons à imagem.
Muitas são as pessoas que a cavalo
Chegam! Todas repletas de voragem,
Para vê-lo glorioso, e acompanhá-lo,
Que o rei chegou de flórida viagem.
Mas que ilusão tristíssima, nefasta,
O eterno rei Sardanapalo arrasta!
Pois não há quem não veja em torno dele,
Senão sapos coaxando, e frias lesmas;
Almas nojentas, neste mundo — as mesmas
Que amam a quem de um rei só tem a pele!
À meia-noite
Tudo, ao soar das doze badaladas,
Tudo emudece: – o mar, o campo, o rio...
Ficam, na noite, as árvores, caladas;
Nem há no espaço um leve murmúrio.
Unidas ficam as aves, sossegadas.
Como se houvesse um formidável frio!
E as almas ficam como que apagadas,
Num sentimento trágico e sombrio.
É meia-noite! O espírito das cousas
Dorme na densa solidão das lousas,
Dorme sinistramente, no momento
Em que por sobre o mundo nos parece
Descer, como de fato, desce... desce...
Dos céus um fundo e amargo esquecimento.
Transfiguração
Sempre a pensar em ti, sempre voltado
Para onde vives tão distante, creio
Sentir, mesmo de longe, o perfumado
Calor do vale do teu róseo seio.
Sempre a pensar em ti, horas parado
Fico, como se visse, num anseio,
O teu formoso olhar imaculado,
Que outrora vinha me bater em cheio.
E se me deito, para ter descanso,
Ó minha linda flor, somente o alcanço
Quando um clarão de fluídicos lampejos,
Vem lentamente se transfigurando
Nuns braços mornos, que me vão pegando;
E numa boca mádida de beijos.
Eterno conforto
O estranho ser que às vezes me aparece,
E concita-me à porta, solitário,
De olhar medonho, em fogo temerário,
Ah! esse estranho ser das trevas desce.
Temendo, então, recorro à paz, na prece;
A esse eterno conforto extraordinário,
E, como um novo Cristo, no Calvário,
Peço ao meu Pai, que está nos céus, a messe
Do amor bendito, desse trigo louro,
Que nas granjas azuis os moinhos de ouro
Do sol trituram, para o real conforto
Dos corações assim atormentados,
Dos corações que passam, fatigados,
Pelas ondas sinistras do mar-morto!
Vê como canta, nos floridos ramos
Do espinheiral, a linda passarada!
Assim cantamos nós, assim cantamos,
Quando subimos por aquela estrada.
Nós cantamos bem como a passarada
Que está cantando nos floridos ramos.
Bem felizes, no mundo, pela estrada,
Almas abertas, gárrulas cantamos...
Mas como nós estamos enganados!
Cantam, assim, os pássaros alados;
Só eles cantam com felicidade.
Nós, não! Tristonhos corações humanos,
Só cantamos, ao pé dos desenganos,
A eterna barcarola da saudade.
Comparação
Eu te quero, Maria, entre os meus braços,
Para que junto ao teu cheiroso peito,
Possa o meu coração achar um leito
Como uma freira amainando-lhe os cansaços...
E eu vim de percorrer largos espaços;
Vim de errar pelos campos, de tal jeito,
Que já senti o coração aflito
Aos abrasantes, cálidos mormaços...
E quem procura achar um leito morno,
Sente, em redor de si, de si em torno,
Uma esperança as asas espalmando...
E embora morra (Que bonita morte!)
Fecha os olhos, sereno, de tal sorte,
Que até mesmo parece estar sonhando.
Ódio!
Ódio! ódio fatal! Imponderável
Ódio de assaltos de sinistra fera!
De onde vieste, mísero, execrável?
– Talvez dos antros de uma nova esfera.
E quem te trouxe ao mundo, ó miserável
Ódio execrando, cuja voz impera
De tal maneira brusca, incomparável,
Que até sonha as carícias à quimera?
Não desceste de um antro? Não desceste?
Ou tristemente lúgubre te ergueste
Da podridão dos pântanos sombrios?
Do qual brotou o coração do homem,
Para viver nas ânsias que o consomem,
Mais formidáveis que uns sangrentos rios?
Notícias
Cedo ou tarde, nós dois, que nos amamos,
Iremos para o azul da imensidade,
Em procura das árvores, dos ramos
Do divino pomar da felicidade...
Nós, que na mesma estrada nos achamos,
Do mundo sobre as ondas da ansiedade,
Muitos mais sonhos, do que, então, gozamos,
Gozaremos na eterna claridade...
Mas um de nós irá primeiro... E quando
Isso aconteça, e seja eu que, alando,
Suba da luz nas dúlcidas carícias,
Esperarás, tranquila, pois num sonho
Leve, suave, límpido e risonho,
Dos nossos filhos dar-te-ei notícias.
Caravana do destino
À minha mulher
Diz-me a Verdade que eu de ti me ausente,
E vá, por essas plagas tumultuosas,
Ver se peitos encontro, à luz fremente,
Que acolham minhas ânsias silenciosas.
Vá em busca do que jamais, contente,
Pude encontrar entre jasmins e rosas,
Na nossa terra... E vá, portanto, crente
Noutras almas mais doces e piedosas.
E tu sabes do que, como um mendigo,
Eu vou em busca: – busco a água e o trigo
Nas mãos de quem, num esplendor divino,
Saiba ver, através de tantos trilhos,
O quanto sofro, por amor aos filhos,
Na negra Caravana do Destino.
Soluços
Esses altos soluços vêm das vagas
Do mar revolto, desse mar sanhudo,
Que, nas noites veladas e aziagas,
Parecem vir para acabar com tudo.
E as dos rios a encher, sob as pressagas
Chuvaradas de inverno tredo e mudo,
Que matam tanto como as sete pragas
Mataram todo o campo de veludo...
E esses das nuvens trágicas, sombrias,
Caindo sobre as longas penedias;
E os dos ventos bramindo seus soluços.
Todos esses soluços, soluçados
Dessa maneira, assim, desesperados,
Não se parecem com os meus soluços.
O homem que ri, assim, às gargalhadas,
Ri de si mesmo, de maneira bruta.
Não atende um momento, nem escuta
As verdadeiras lágrimas choradas...
Ri de si mesmo, ao longo das estradas,
Onde haja uma alma límpida, impoluta,
Ou haja, como as cousas desprezadas,
Uma alma negra, merencória e astuta.
Todo homem que ri, dessa maneira,
Tem em si próprio a rude vida inteira
De um esquisito e formidável sapo,
Quando de dentro de um paul coaxa,
E em vira-voltas no paul se agacha,
Ou mostra à luz do sol o grosso papo.
Alma antiga
Todo o amaino que encontras nesta cama,
Nestes lençóis tão alvos e aromados,
Vem de uma clara e misteriosa chama
Que te segue, dos tempos já passados...
E não a vês, na delicada trama
Da sorte! Não a vês, nos teus cuidados!
Mas ei-la neste leito; e se derrama
Como por sobre o mar óleos sagrados...
É que, por certo, um dia, um leito deste
A quem, passando num lugar agreste,
Sentira as pernas bambas de fadiga.
E se buscares todos os segredos
Do teu passado, encontrarás os ledos
Florescimentos da tua alma antiga.
Infinito mudo
Quando te sentes loucamente aflito,
Pelas urzes da dor atormentado,
Tremes, por que te lembras do infinito
No qual te vês de todo abandonado.
Quando te julgas só como um proscrito,
De olhar à luz santíssima vedado,
Sentes no coração o inferno escrito,
E aos pés o inferno; e o inferno lado a lado,
Quando, vertendo lágrimas, soluças,
E ao chão convulsamente te debruças,
Nesse areal de todas as torturas,
Perdes até a crença, a fé, e tudo,
Porque o Infinito te parece mudo
Ás infindáveis ânsias das criaturas.
Ovelha desgarrada
Eu bem procuro me esquecer do dia
Em que partiste para outros lares,
Eu que à tua funérea cova fria
Tanto rego de prantos e pesares...
Eu bem procuro me esquecer, Maria,
Mas cada vez que me recordo, os mares
Da mágoa roxa e da melancolia
Levam-me a alma saudosa pelos ares...
E quando os teus queridos irmãozinhos
Perguntam-me por ti, e aos passarinhos
Dizem que foste para os céus levada,
Eu, a beber as lágrimas que escondo,
Nem sei o que, nem como lhes respondo,
Ó minha branca ovelha desgarrada!
Numa torre
Numa torre bem alta, assim, bem alta,
Perto da Estrela, e, como a Estrela, branca,
Que de clarões de prata o espaço esmalta,
As auroras sorrindo, doce e franca.
Numa tarde bem alta, assim, bem alta;
Maravilhosa luz que a treva espanca,
É onde mora o meu sonho, o que te exalta,
O que da treva mísera te arranca.
E contigo em meus braços; boca unida
A tua boca, em flor enfebrecida,
Nessa torre bem alta, os meus desejos
Têm, unidos aos teus, toda a alegria
Dos pombos quando, ao despertar do dia,
Arrulham nos telhados, entre beijos...
Transformação
Ninguém julgue que a ovelha humilde, a minha filha
Essa que morta está, tão fria, tão gelada,
Não continue a ser a mesma ovelha, amada
Nas redondezas desta encantadora ilha.
Ela apenas cerrou o olhar, que oculto brilha
No mundo, para abri-lo, então, glorificado,
Noutra vida melhor, que é luz de madrugada;
Que é branca Estrela d'alva, e eterna maravilha
Choro. Mas vá que a sua aromada epiderme
De banquetes, no barco, à voragem do verme,
Quando dela, e do verme, hão de surgir, no barro,
Os lírios, os jasmins, as rosas, as violetas,
Os alvos bogaris, e as fiavas borboletas:
Todo um florido abril lindamente bizarro.
Iniciado
Com o espírito feito claridades,
Faróis benditos, límpidos luzeiros,
Atravessas os campos e os outeiros,
Desertos, vales, escabrosidades...
Nas aldeias e vilas e cidades,
Andas com passos firmes e altaneiros,
Com os passos dos fortes, dos guerreiros
Que tudo vencem sem dificuldades.
És um ser iniciado, um ser bendito,
Porque voltas os olhos ao infinito,
As imortais grandezas dos espaços...
E assim, ó poeta, ó coração augusto,
Caminhas sem vacilações, sem susto,
Na cruzada do amor abrindo os braços.
Laços
Sei que duvidas da paixão que alento
Dentro do coração, e dentro da alma.
É que, afinal, não lês meu pensamento,
E o bem que em mim um sonho azul espalma...
Vivo a pensar em ti todo o momento,
Sempre e sempre feliz, de mãos em palma
Como se eu estivesse num convento
De Franciscanos, a rezar com calma.
E me ocorre a certeza de que, um dia,
Já nos vimos unidos na alegria,
Ou das paixões nos revoltados mares...
E não há laços que nos prendam tanto
Como os que ficam, úmidos de pranto,
Às saudosas janelas dos olhares.
Almas livres
Se as desoladas pedras dos caminhos
Vivem seguidamente a se encontrar,
Através da poeira, ou dos espinhos,
E às vezes pelas praias, junto ao mar.
Se de outra forma, cheias de carinhos,
Buscam intimamente se falar,
Ora sob o clarão de céus de arminhos,
Ora à chuva que cai, para as cavar...
Ah! quanto mais as almas das criaturas,
Emigradas das límpidas alturas
Ou para lá seguindo, em plena graça.
E as nossas almas, livres, se encontraram;
E, dos sonhos felizes que sonharam,
Fez-se na terra o amor que as entrelaça.
Bênçãos
Pobres não somos, na fatal desdita,
Embora falte o pão em nossa toalha,
E seja, a nossa vida, toda aflita
Como a de quem se vê numa batalha.
Pobres não somos, pois a luz bendita,
Que orvalha os campos de esmeralda, e orvalha
Todos os astros de ouro, da infinita
Plaga celeste, a sua bênção espalha...
Por nós espalha a sua bênção, em mantos
Que têm todos os fulgíssimos encantos
Da piedade, sobre as carnes frias...
Ah! se fôssemos pobres! (Negro inferno)
Eu não teria o teu amor eterno,
Nem tu, por certo, o meu amor terias.
Sonha...
Sonha se queres que esta vida seja,
De tanto lodo, em flores transformada.
Sonha, sonha feliz! Sonha e deseja
A paz que o sonho dá à alma cansada.
No sonho, que alegria benfazeja
Nessa do mundo indefinida estrada!
E que a tua alma, nesse sonho, veja
Os fulgores de uma outra madrugada.
Sonha feliz, contemplativamente,
Porque no sonho viverás contente,
Na alacridade do melhor falerno...
Sonha, de olhos voltados aos espaços;
Sonha no amor, abrindo os largos braços;
Sonha na morte, e até no próprio inferno.
Purificados
Ah! quantos corações como os rochedos
São assim tão frios e tão duros!
Todos ao chão por séculos seguros,
Penetrados de aspérrimos segredos!
Esses ficam nos longes dos degredos;
Abandonados nos painéis escuros,
Como espectros da treva, dos monturos,
Funambulescos, taciturnos, tredos...
Ah! quantos corações, de abismo em abismo,
Passam por esse eterno transformismo;
E, mudos, mudos, sepultados ficam...
Mas um dia virá, talvez, quem sabe?
Em que a mudez dos corações se acabe,
Pois todos sob a dor se purificam.
Ave morta
Morta a ave querida, a idolatrada
Ave que sempre gorjeava à porta
Da nossa casa! Para sempre morta
Aquela que era uma ave imaculada!
A dor austera, a negra dor velada
Nas incertezas – essa dor que corta,
Certo a tua alma ansiosa não suporta...
Mas o que hás de fazer, mulher amada?
Como soluças! Como choras tanto!
Que plenilúnios! Que marés de pranto!
Desses olhos tristíssimos transvazas!
Mas não prossigas, para que a nossa
Filha, que é hoje uma ave alegre, possa
Voar, sem peso nas franzinas asas.
Prepara-te
Dessa forma prepara-te, e prossegue.
Nessa do espaço, intérmina viagem....
Que o teu sonho a este mundo não se apegue,
Nem saudades vincule na paisagem.
Vai destemido. Os pés o céu te regue
De lágrimas de unção; e, à tua imagem,
Salva tudo que a fé de Deus consegue,
Sem os tristes enganos da miragem.
Na mansão das estrelas, entretanto,
Verás nas faces te escorrer o pranto;
E terás inda mil vacilamentos
Se recuares o teu peito às águas
Do dilúvio das ânsias e das mágoas,
De encontro aos vendavais dos sofrimentos.
Última morada
Teu coração, que recordava a ermida
Da nossa aldeia, toda aberta aos cultos,
E à paz gloriosa, à branca paz querida,
Que só se encontra longe dos tumultos.
Teu coração, que tanto amou na vida,
Saturado no sangue dos singultos,
E como uma falange destemida,
Venceu dos tufos os sombrios vultos.
Teu coração, tão nobre e tão perfeito,
Talvez sonhasse com um flóreo leito,
Para guardá-lo, cheio de ternura...
No entanto, a Morte, a tua noiva amada
Deu-lhe, apenas, por última morada,
Os Sete-palmos de uma sepultura!
O bêbado
De pernas bambas, trêmulas, iguais
Aos vimes, quando o zéfiro o sacode,
Lá vai o pobre bêbado, que aos ais
Busca fugir, nas raias do pagode.
Pensa transfigurar em madrigais
Todo o tormento que à sua alma acode;
E, por isso bebeu... bebeu... Demais,
Que tem que o corpo seu nas ruas rode?
Ê que o vinho lhe dá (Que fantasia!)
As noites da alma uns claros de alegria;
Tira-lhe a alma dos fatais escolhos...
Como se engana o bêbado, coitado!
Continua o seu corpo torturado,
E a alma ainda chora-lhe nos olhos!
Terra!
Como é ingrata, para sempre, a gente!
Pois contra ti, ó terra virginal,
Lança da raiva o vesgo olhar tremente,
Toda a sombra tristíssima do Mal.
No entanto, ó terra, do teu seio ardente,
Brota, para florir, o roseiral,
E escorre o rio, rútilo e dormente;
E o pão nos vem, na espiga do trigal.
E, no entanto, na seiva que palpita
No teu seio fecundo, é que se agita
Toda a vida do Amor, toda a grandeza;
Todos os sonhos de felicidade,
Em voos para a paz na eternidade
Por essa torre de astros e turquesas.
Do amor os belos, sazonados frutos
Só os que amam poderão gozar...
Os corações lavados, impolutos,
Que intimamente sabem o que é amar.
Os sofrimentos?! Que cansaços brutos!
(Dirão os que não sabem caminhar!)
Eles sobem, no entanto, resolutos,
Escadas de topázios, de luar...
Mas os que amam e sofrem, nesta vida,
Terão a glória eterna, definida?
Terão, nos céus, alívio aos ais, aos gritos?
Mas não nos basta amar, nem da alma termos
Os sofrimentos, nos caminhos ermos:
Precisamos orar, também, contritos.
Nos mesmos laços
Que tarde bela, recortada de asas
De andorinhões e garças! Que frescores
Pelos caminhos que vão dar às casas
Brancas e alegres dos agricultores!
O céu na grimpa das montanhas brasas
Estende. E o rio é todo de fulgores
Serpenteando nas campinas rasas,
E nas lavouras de abundantes flores.
Recordo a tarde de ouro, em que me viste,
E dentro da alma um grande amor sentiste,
Porque afinal, no além de onde baixamos,
Nos mesmos laços de fraternidade,
Nos mesmos sentimentos de amizade,
Ligar os nossos corações sonhamos.
À hora final
Que não se crestem já os roseirais
Dessas lindas e límpidas estradas
Por onde andei rimando madrigais
Nos olhares das minhas bem-amadas.
E não se crestem esses laranjais,
E as madressilvas brancas, perfumadas;
Nem emudeçam esses sabiás,
E as águas dessas fontes sossegadas.
Nada, à luz desse sol, nada se creste,
Nem emudeça, no lugar agreste
Em que, feliz, passei a mocidade.
Ah! que tudo isso fique me esperando,
Na hora em que eu for do mundo me afastando,
Embora cheio da maior saudade.
Nessa jornada
Eu me julgava quase abandonado
Num campo de urzes e cruéis tormentos.
Sobre o meu pobre coração cansado
Hieroglafavam corvos augurentos.
Cada passo que eu dava era arrimado
À própria dor e aos fundos desalentos.
Cego tateava um túmulo cavado
Numa rua varrida pelos ventos.
Nessa jornada, totalmente à míngua
Senti o coração; e a minha língua
De todo retalhada à sede louca.
Nisso teu vulto assoma, e é quando, pasmo,
Encontro nos teus seios um pão asmo;
E uma fonte corrente em tua boca.
Talvez!
Toda a tristeza amarga e misteriosa
Que impenitentemente te lacera,
Talvez viesse da plaga tenebrosa
De um mundo sem rosais de primavera.
Talvez de um mundo assim, viesse, assombrosa
Essa tristeza que em teu peito impera,
E como um polvo másculo o devora,
Numa tortura por demais austera.
Talvez de um antro frio ela viesse,
E entre brumais tantálicos trouxesse
O requinte das formidáveis ânsias
Nas quais, no entanto, tu te purificas,
Para voltares às paragens ricas,
A paz espiritualizada das distâncias.
Grãos de trigo
Foste tu mesma que a prisão fizeste
Para o teu corpo fluídico habitar...
E agora queres para o azul celeste,
Rufiando as asas, célere, voar...
E quando à vida terreal vieste,
Por acaso estarias a sonhar?
E o que do espaço olímpico trouxeste?
E amaste como a gente deve amar?
Prendeste as asas à prisão sombria
Da carne, e queres ter toda a alegria
De uma ave solta à luz da madrugada!
Mas não queiras voar, dessa maneira,
Porque, jamais! na hora derradeira,
Grãos de trigo terás para a jornada.
Lótus dos séculos
Morto há centenas de anos inda é o Belo,
Inda o Maravilhoso, inda o Sublime.
E eu não me canso de buscá-lo e vê-lo,
Que o seu olhar todo doçura exprime.
Trato de amá-lo, e trato de compreendê-lo,
Porque o seu coração almas redime,
Afugentando o frio pesadelo,
E as rajadas tristíssimas do crime.
Não é visão (nem eu sou visionário)
Esse Ser que me diz, extraordinário,
Palavras de carícias de cetim...
E o que Ele, então, me diz, digo-o ajoelhado...
Ele me diz, sereno e iluminado,
Ser o Lótus dos séculos sem fim.
A um poeta
Era o teu peito urdido de cuidados,
De carícias suavíssimas, de afagos;
E era, poeta, a tua alma como os lagos
Onde se espelham céus azuis e prados
Junto dos pobres peitos desolados
Nunca os teus passos foram vagos... vagos...
Quer pelos dias de ametista, aziagos,
Quer pelos dias de ouro, onde florados.
E por seres, assim, no amor um forte
Nem mesmo a águia espectral da morte,
No seu carro fantástico, medonho,
Pôde (embora matasse a fria argila)
Matar-te a branca monja, na pupila
Onde morava, a orar, dentro do sonho!
O pranto
Vives voltado simplesmente às dores;
E das dores te envolves no sudário
De atras, sombrias, magoadas flores,
Como o coração nas ânsias, solitário.
Solitário nas ânsias, os fulgores
Do mundo amargo, deste mundo vário,
Deixas rolar como senectas flores;
E a tua vida tange a campanário.
Somente as dores ao teu ser humano
Dão com certeza o sacrossanto arcano
Da doce paz que o belo céu recolhe.
Faz-se mister que ao teu olhar, no entanto,
Para purificar-te, suba o pranto,
E esse teu coração nele se molhe.
As estrelas
Misteriosas estrelas das Alturas,
Moradas alvas e misteriosas,
Sois, para as noites da alma, iluminuras,
Faróis acesos, lâmpadas custosas.
Eu vos busco, em silêncio, dentre as duras
Lancinações sangrentas, dolorosas,
Da vida atroz nas vagas de amarguras;
E em vós confio, estrelas amorosas,
E vós todas, no claro espaço infindo,
Sois uns refúgios que se vão abrindo
A proporção que vamos nós ao espaço
Erguendo os olhos frios de saudade
Na hora em que a morte, cheia de piedade,
Divinamente nos segura o braço.
O coração
Na dor o coração se purifica,
Sacode a poeira negra da miséria;
E, igual a um astro misterioso, fica
Eternamente na região sidérea.
Transfigurado numa luz mais viva,
O coração, distante da matéria,
Só as purezas o sentido aplica;
E ondas de eflúvios sente em cada artéria.
Tanto assim é que, numa sepultura,
Fria, gelada, e silenciosa e escura,
Por mais que a gente busque um coração,
(Um coração que tantas dores teve)
Não pode, nem de leve... nem de leve,
Encontrá-lo, ainda, feito coração!
Seios brancos
Nas curvas desses seios lactescentes
Segues, tranquilamente, sossegado,
Por este mundo de paixões ardentes,
Mais que as ondas de um mar bravio, irado...
Segues de olhos fechados às frementes
Dores, porque em seus seios amparado,
Teu coração é todo florescentes
Vinhos, num verde e luxuriante prado.
É dessa forma, bem feliz na vida,
Pois quanta gente, por aí perdida
Vive, tão só, nas ânsias, nos arrancos,
Sem ter quem lhe agasalhe o peito aflito
Num punhado de cal, ou de granito...
Ah! quanto mais naqueles seios brancos!
A alegria
A que parece que jamais se apaga,
A que dentro de nós toda irradia.
Maravilhosa – e que nos embriaga,
Essa é a mais santa e límpida alegria.
É o azeite por cima de uma vaga
Encapelada, em plena ventania.
E, toda exuberante, à luz que afaga,
Como a que vem da fluidez do dia.
Nem sabe a alma humana compreendê-la;
Nem sabe de onde vem — se de uma estrela,
Se do sol, se do além, do firmamento;
Se de si mesma, noutras existências,
Ou desta, nas douradas florescências;
Ou se é a ilusão do próprio pensamento.
Saudoso e triste
Ergui-me, calmo, às regiões celestes,
E fui galgando as límpidas estrelas
Que, cada vez, de perto, eram mais belas
Que as rosas brancas dos vergéis agrestes.
E vós, mulheres, que no amor me destes
Todas as forças – e que, nessa hora, delas
Em derredor viveis, a percorrê-las,
Ao meu encontro com saudade viestes...
Senti-me bem nesse solar, ouvindo
As nossas almas, que se iam abrindo
Em harpas de ouro da mais rica gema.
Mas tive que voltar, saudoso e triste,
Porque no mundo uma mulher existe,
Para fechar-me os olhos na hora extrema.
Recordação
I
No seu triste caixão, no seu último leito
Não havia uma flor! Mas se eu ali estivesse,
Teria o coração mais do que satisfeito,
Porque do roseiral que por ali floresce
Nem uma rosa só, de perfume desfeito,
Ficaria no pé. Depois, a minha prece,
Dar-lhe-ia, por certo, o santíssimo efeito
De um azeite de unção, que na crença se aquece.
E eu mesmo, sem ninguém ousar falar de mim,
As suas lindas mãos mais alvas que o marfim,
Cruzaria por sobre o seu peito gelado...
E eu mesmo, dentre toda a gente do caminho,
Seria capaz de levá-la, sozinho,
E enterrá-la, a chorar, e enterrar-me ao seu lado.
II
Entretanto, não choro, agora, a sua ausência,
(Morresse ela tão pobre, e sem o meu olhar)
Porque, da luz do sol à flava resplandência,
Ou quando a noite desce, encontro-a sem cessar.
E o seu vestido é todo iriada florescência
Fluídica, sutil, rarefeita, do luar...
E o seu corpo possui ainda a mesma inocência;
E há músicas no seu acariciante falar.
Penso seguidamente, então, na borboleta
Branca, de poeira de ouro, e de asa irrequieta,
Que me bate à janela, e eu, entre as mãos osculo...
Assim, a alma de quem, de uma tuberculose
Atacada, morreu, e em plena transmorfose,
Como outra borboleta, irrompeu de um casulo.
Alucinado
Fugi alucinado, e amaldiçoei a vida
De um pobre coração emparedado numa
Ânsia eterna de amor sem paz, e sem guarida,
Como por sobre a vaga o lírio de uma espuma.
E fugi a correr, em fúria desabrida,
Por uma praia triste; e fui a um monte... Em suma
De lá de cima olhei uma estrada comprida,
Sem cor, sem flor, sem luz, sem claridade alguma.
Mas, parado, depois de andar convulsamente,
Do tédio arremessado à tortura inclemente,
Madruguei, afinal, num campo solitário.
E só retrocedi, ao contínuo chamado
Da tua voz febril, que ecoara ao meu lado,
Através das canções saudosas de um canário.
Seu vulto
Vejo-lhe o lindo e acariciante vulto,
Delicado, sutil, sereno, em pluma
De ninho a balouçar; ou como espuma
Vejo-o surgindo de onde estava oculto.
E ao vê-lo, as ânsias, num fatal tumulto,
Surgem-se-me, assim, no peito, uma por uma...
É que ela é morta, já descera à bruma
Da sepultura, dentro de um singulto.
E, mais a mais, seu vulto me aparece;
Sobre o meu peito lentamente desce;
Ante os meus olhos ávidos assoma,
Todas as vezes que eu revejo o lenço
De lembranças do seu amor intenso,
Embalsamado do mais casto aroma.
Convencido
Por que torturas vais passando, agora,
Por que negras torturas vais passando,
Tu, que possuías dentro da alma a aurora,
Que ia em brancos rosais se desfolhando.
E a esperança, que toda dor minora,
Vai, no entanto, na dor te aprofundando;
E a tua alma soluça, geme e chora,
Como quem vai por báratros passando.
É que, no mundo, o teu ideal mais santo,
Terá de ser seguidamente ungido
No soluço, gemido, e amargo pranto.
Mas vai, segue com crença, destemido;
Busca dos sonhos o bendito manto,
E chegarás, das glórias convencido.
A esperança
Sem a flâmula verde da esperança,
Ninguém procure viajar, ninguém!
Onde não há o azeite da bonança,
Todas as vagas mil soluços têm.
Sem a flâmula verde da esperança,
Quem poderá seguir rumos do Além?
Ou, quem nada espera, nada alcança:
Lembra, no fim da vida, Pedro Cem.
Sem essa verde flâmula no cimo
Da montanha da vida, qual o arrimo
A tantas aflições, tantos cansaços?
Sem a flâmula verde da esperança,
Ninguém, na vida, nem sequer alcança
O que sente agarrado aos próprios braços.
Para o mesmo chão
Lágrimas há, profundamente amaras,
Vindas dos mais recônditos arcanos,
Dos miseráveis corações humanos;
Das almas para todo o sempre avaras...
Outras lágrimas há, doces e claras,
Sem anseios letais, sem desenganos,
Sem soluços cruéis, tredos, insanos: —
Lágrimas raras, neste mundo raras...
Amarguradas lágrimas choramos,
Nós que com ansiedade nos amamos...
Mas não sei explicar porque razão.
Bem como as nossas lágrimas, sentidas,
As miseráveis lágrimas mentidas
Rolam, convulsas, para o mesmo chão!
Saudade
I
Naquela casa que ameaça ruínas,
Cujo telhado cobre-sede limo,
Vi as primeiras rosas matutinas;
Deram-me uns seios o mais forte arrimo.
Parece que ainda sinto, entre as cortinas
Do meu berço de linho no alto cimo,
O aroma do alecrim, nas mãos divinas,
De minha mãe de quem eu era um mimo.
Mas, como todo o ser, ao vir à vida,
Verte uma triste lágrima sentida,
Nessa casa verti-a. E, então, jamais,
Jamais esquecerei, na vida inteira,
Que ali verti a lágrima primeira,
Inicial das contas dos meus ais.
II
Venho de ver o meu saudoso ninho,
Onde nasci – a casa que ainda existe
Naquela rua, tão sombria e triste
Que até parece um lúgubre caminho.
Ei-la no fim da rua, num cantinho...
E a picareta, à qual nada resiste,
Irá bater-lhe, como lança em riste,
Às velhas portas de canela e pinho.
Ao recordar-me disso é que hoje venho
Pedir-vos, cheio do maior empenho,
Por uns olhos que ali me foram célicos,
Que tenhais um momento de piedade,
Vós, operários – de quem tem saudade
Da antiga Rua dos Artigos Bélicos.
Emparedado
Por planícies e aspérrimas montanhas
Andei errando como um beduíno,
E contei ao luar o meu destino,
Velado por dragões de atras entranhas.
E a ti, ó sol, que de purezas banhas
Os campos verdes, num clarão divino,
Contei, também, chorando, o desatino
Das minhas ânsias trágicas, estranhas...
Mas não contei ao mar as minhas ânsias,
Ao largo mar perdido nas distâncias,
Para não vê-lo, dessa vez, cavado...
Pois esse mar é um coração doente,
Igual ao meu, e vive eternamente,
Eternamente triste e emparedado.
O Anjo do Sono
O Anjo do Sono assim me fala, se me deito,
Se procuro cerrar as pálpebras cansadas:
"Não julgues tu que irás descansar, satisfeito,"
"Nas carícias da paz da noite, desejadas..."
"Não pode descansar, no sono, quem no peito"
"As revoltas possui das ondas torturadas"
"Do grande mar do tédio, onde tudo é desfeito:"
"Até o próprio amor de asas imaculadas!"
"Ah! se eu te desse a paz de um belo seio amigo:"
"O teto, o vinho, a água, e unia granja com trigo,"
"Da estrela do pastor à estrela da manhã,"
"Certo que nunca mais teus olhos se abririam,"
"Nem desse coração as fibras pulsariam..."
"Eu para ti seria a morte, a minha irmã."
Madrugada de Abril
Madrugada de Abril, poeirada de diamantes!
Florescimento de um sagrado manto real,
De que mundos do além, de que mundos distantes,
Que lembram, cá debaixo, um eterno rosal...
De que mundos do além, de brilhos ofuscantes,
Onde da dor não bate asas o vendaval,
Desceu meu filho aos meus braços febricitantes,
De tanta luta neste alto oceano do mal?
Se ele, agora, desceu, por acaso, do mundo
De onde desci na dor, no tormento profundo,
Para tanto chorar meus males, noite e dia,
Madrugada de Abril, sejas-lhe a protetora,
E lhe desça à cabeça o azul da tua aurora,
Do qual nos céus se fez o manto de Maria.
São Francisco de Assis
Dos canteiros da Úmbria era Francisco o Lótus,
De cujo pólen fez-se a mais límpida luz.
E amou, como ninguém, as chagas de Jesus;
E ao senti-las nas mãos, teve sonhos ignotos.
Todo o seu coração seivou ardentes votos,
E deles viu surgir, sentiu surgir à flux,
O lendário esplendor do símbolo da Cruz,
De onde sobem da Fé os infinitos brotos.
Corpo, trilhava a terra; alma, festiva e nobre,
Vestia-se do azul bendito que nos cobre;
E, sem nunca sentir os passos fatigados,
Ei-lo, o meigo Francisco, o Pedinte das graças,
Pelos campos e pela ostentação das praças,
A pedi-las a Deus para os desamparados.
Quando não vens
Quando não vens, que séculos contados
À cada hora que passa, e a cada instante!
Toldam-se os ares; tornam-se pesados,
Para o meu coração febricitante.
Meus olhares tristíssimos, cansados,
Vão à rua, e à janela do mirante;
E, se não chegas, ficam desolados,
Porque moras tão longe, tão distante!...
Mas eu sei quando vens dobrando a estrada,
Para me veres, toda iluminada,
Dos resedás pela cheirosa estufa...
Sei, porque, nesse instante, alegre, sobre
O meu telhado de casinha pobre,
Uma carriça canta, e as asas rufa...
Gata Borralheira
Abrem-se as rosas, quando vens chegando;
E as açucenas tornam-se celestiais...
Pelas ramadas, pássaros trinando,
Soltam rimas de guizo, em madrigais.
À luz doce do sol, que vai poeirando
De ouro e prata a esmeralda dos matais,
Corre um perfume acariciante e brando,
Como o de um vinho em ânforas reais.
Tudo se prende à vida, nesse instante,
No afã de te render homenagem.
Religiosamente verdadeira.
E eu, que te espero, sou o rei triunfante,
Alucinado pela tua imagem,
Ó misteriosa Gata Borralheira!
Ter crença
Ter crença é procurar, na noite escura
Do mundo, a luz mais clara de uma estrela.
Entretanto, nossa alma, para tê-la,
Não necessita da menor tortura.
Basta, nas ruas tristes da amargura,
Procurá-la, e senti-la, e compreendê-la
E, aberta em flores, na consciência tê-la,
Banhada de carinhos e doçura...
Ter crença é ter o coração vestido
De dalmáticas de ouro o mais subido,
Como se fosse, o coração, na vida,
Um Santo Estevão que, ajoelhado, orasse
Uma prece que nunca se acabasse,
No silêncio emotivo de uma ermida.
No escuro
Vive no escuro, para sempre, eterno,
Profundamente, o ser a quem a descrença
Envolve em toda a sua nuvem densa,
De atormentante, pavoroso inverno.
Escuro deve ser, também, o inferno,
Todo cavado numa dor imensa.
Leito do tédio, da fatal doença!
Boda negra, sem gotas de falerno!
Escuro, escuro, para sempre escuro,
Há de o caminho ter quem, mais seguro
Ao pessimismo, do que a um baraço
Vai, deste mundo, pela longa estrada,
Com a própria cabeça acorrentada,
Jungida aos pés, e braço contra braço!
Louco de paixão
Quando Maria, a linda flor da aldeia,
Fechou os olhos para nunca mais
Abri-los neste mundo, a lua cheia
Era uma floração de roseirais.
Houve um rumor de pranto em toda a aldeia;
E a vizinhança repetia, aos ais:
Ah! jamais ouviremos a sereia
Que cantava a toda hora uns madrigais...
E quando amanheceu (que manhã bela!)
Ei-la deitada num caixão estreito,
De mãos cruzadas sobre o frio peito!
Com certeza, ao clarão do sol a pino,
Levá-la-iam, assim, ao Deus-Menino,
Que andava louco de paixão por ela!
Mudo!
Conto na vida muitos desenganos;
Profundas ilusões, vagos lampejos,
Que me amortalham todos os desejos,
Mesmo na rubra e bela flor dos anos.
Passam junto de mim, abrindo os panos,
As galeras das ânsias, em bordejos...
Lembram, no mundo, lúgubres adejos
De tenebrosos pássaros insanos.
São os meus sonhos, rútilos e castos,
Que assim vão a rolar por esses vastos
Mares revoltos... Vai-se tudo... tudo.
E eu a pedir ao coração que chame
Pela esperança, e em sua luz se inflame...
E ele, na praia da descrença, mudo!
A um irmão
Nunca a esmola por ti seja negada;
Nunca feches os olhos à pobreza,
Porque tu andas pela mesma estrada,
Pois uma só é a imensa natureza.
Quer busques a montanha, ou a esplanada;
Quer as praias do mar; quer a beleza
Dos campos; quer a abóbada azulada,
Quer da terra a sombria profundeza...
Não sairás da estrada dos pedintes,
Embora o mundo de outra forma pintes,
Embora o vejas cheio de matizes...
Quantos pedintes! (Há-os em abundância)
Sem viverem na austera mendicância,
E parecendo aos outros uns felizes!
Pelo caminho branco
Pelo caminho branco da bondade,
É que terás de ver os astros brancos,
Que se perdem no azul da imensidade,
Cada vez mais sublimes e mais francos.
Assim dizem, do amor na claridade,
Os que rompem da terra os largos flancos,
E vão, felizes de serenidade,
Sem da tortura os rústicos arrancos.
Assim dizem os que, num belo assomo,
Todos vestidos de purezas como
Os lírios, os jasmins, as açucenas,
Buscam do espaço esse caminho lindo,
Sem se voltarem para trás, ouvindo
O carrilhão das ilusões terrenas.
Alma cansada e cheia de cuidados,
Vai em busca da luz branda e piedosa
Desses céus para sempre imaculados;
Busca dos céus a curva luminosa.
E para que nas asas uns lembrados
Sonhos possas levar, ó alma amorosa,
Voa bem como os pássaros, alados
Voam por sobre a terra silenciosa.
E eu quando durmo é para te ver solta,
Ó alma cansada, a fim de que, envolta
Na claridade desses céus benditos,
Possas ver apagados, por momentos,
Os teus imponderáveis sofrimentos,
E os gritos soluçados dos teus gritos.
Simbólico
Dizem teus olhos cousas que as estrelas
Nunca, nem mesmo em sonho, me disseram.
Sou o único, portanto, a percebê-las;
Pois os teus olhos para os meus vieram,
Cousas misteriosas e tão belas,
Para o mundo outros olhos não trouxeram...
Por isso fico satisfeito ao vê-las,
E lhes conto as venturas que me deram.
Eu, na meiguice eterna, que os invade,
Leio toda a pureza e castidade
Que prendem num só laço os corações.
É que os teus olhos, nessa glória imersos,
Têm a sagrada limpidez dos versos
Do meu sagrado livro de orações.
Uma graça
O teu feliz destino! Alguém te diz ao ouvido,
Quando cismas, à noite, e procuras saber
Toda a origem do teu destino, percorrido
Até esta hora, desde o seu alvorecer...
Alguém, baixo, te diz: — Ficarás convencido
Que o teu destino foi, e continuará a ser
O de um alveonador robusto e destemido,
As misérias vencendo, em pleno entardecer...
E para que não possa o teu peito vergar
Ao cruel desalento; e a tua alma chorar,
Nem perderes o olhar na abóbada estrelada,
Uma graça terás, num divino clarão,
De encontrares a água, e encontrares o pão,
Nessa eterna e formosa e sacrossanta estrada.
Viver cumprido
Na terra ficará o meu corpo, dormindo
Até que se desmanche ou se transforme em lama...
Enquanto isso, no Azul, campos irão se abrindo,
Na eterna floração que de prata os recama.
A cada hora chegada irei mais subindo,
Orvalhado da luz que dos céus se derrama,
Para me abençoar com perfumes, e ungindo
Minhas mãos, e meus pés, e a minha fronte em chama.
É que de Deus será a maior recompensa
Aos meus gritos de mágoa, e à minha dor imensa!
A tudo quanto tenha a minha alma sofrido
Na profunda mudez dos profundos sigilos,
Dos sempre, sem cessar, com seus olhos tranquilos,
Firmes de haver na crença o seu viver cumprido.