LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Praias de minha terra, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,
Florianópolis: ACL, 1966.
ÍNDICE
Para o coração de Maria
I
Veladamente o sol vestiu todo o sudário
De quem vai para a sombra esguia dos ciprestes...
E sobe da planície, aos espaços celestes,
O réquiem de um velho e triste campanário.
Desce, saudoso o sol, antes extraordinário
De luxúrias de luz; mas, agora, com vestes
Roxas de monge; e mãos por sobre o peito, prestes
A se esconder, além, num campo solitário.
E descerá, assim, (Caminheiro do Mundo),
Por um ocaso triste, em silêncio profundo,
A uma cova gelada, um coração vencido...
Mas, no afago, no enleio e na calma da noite,
Durma tranquilamente e entre sonhos acoite
A crença de se ver, mais tarde, ressurgido.
II
Manhã clara! Manhã de púrpuras franjadas
De ouro e álacres rubis luminosos sangrando...
Alvoroça-se a terra, ao correr das quebradas,
E sobre o mar se estende um clarão doce e brando.
Ao terreal que esvoaça há velas enfunadas:
Umas indo... outras vindo... outras se preparando...
Chia, zine a cigarra entre as verdes ramadas,
E as águas de cristal das fontes vão cantando...
É que o sol ressurgiu. Assim, também, um dia,
Há de o meu coração ressurgir, na harmonia
Das horas que tiver de cantar com fervor.
E cada hora virá com mais deslumbramentos,
Com mais luz, com mais fibra e mais fortes alentos.
E mais seiva de vida e mais sonhos de amor.
III
Sim, há de ressurgir, feito da mesma lama,
Feito do mesmo pó, dessa eterna argamassa
Da qual tudo se faz e na vida se inflama,
Ora no tédio amargo, ora na luz da graça.
Ressurgirá num lírio aberto ou numa chama;
Num divino clarão; ou no verme que passa,
Oculto, a rastejar no veludo da grama
Da sepultura e sobe e aos ciprestes se abraça.
Ou será borboleta em chamalotes de ouro,
Ou ave cantadeira; ou rútilo besouro;
Ou poeira de cristal, para qualquer efeito.
Mas, depois disso tudo, há de ser o que fora
Nos segredos do amor e na dor rugidora...
– Há de ser coração, para pulsar num peito.
IV
Por esse tempo o teu, depois de transformado,
Depois de haver sentido igual transformação,
Que é dada, neste mundo, ao humano coração,
Seja ao de um peito bom, seja ao de um desgraçado;
Por esse tempo o teu há de ser encontrado
Pelo meu, minha amada; e, com justa razão,
Os dois, num laço só, numa mesma união,
Hão de ter certamente um destino abençoado.
E nele ficarão, para, de novo unidos,
Sob o flavo esplendor dos amplos céus tranquilos,
Sobre esse mesmo mar, através das distâncias,
No mesmo sonho ideal viver a mesma lida,
Na conquista do pão e da fonte da vida,
Soluce, embora, a voz do carrilhão das ânsias!
Ilhéu que sou, que graça e que contentamento
Sinto eu, quando te vejo e te percorro, ó Ilha!
És, dos mares do sul, a eterna maravilha;
E parece que tens um certo movimento!
Embalam-te, num gozo, as carícias do vento;
E outras vezes o vento os teus mares fervilha...
Pelos teus campos toda a luz do sol rastilha;
Dá-lhes todo o vigor dum puríssimo alento!
Como eu te quero bem, ilha dos meus amores!
Com os teus laranjais, tuas vinhas e flores;
Teus riachos de prata, abraçados em nastros...
E tuas praias são esteiras de alvo linho,
Que se estendem a um solde inefável carinho,
Palpitantes de luz, de proas e de mastros!
As praias onde vive e dorme e sonha o mar!
Praias de minha terra, elas são uns regaços
Aos quais a gente atira, ansiosamente, os braços,
Com desejos febris de neles descansar...
Ébrio do resplendor que se derrama no ar,
Nesses longes sem fim, nos profundos espaços,
E vem como um amparo a todos os cansaços,
Eu junto às praias, sinto a alma sempre a cantar.
Pelas praias vivi e delas ainda guardo
Muitas recordações de amores em que ardo,
Quando as cobre da tarde o áureo fulgor do manto...
Ah! numa tarde assim, eu te abracei, amada!
À hora do ocaso, à hora suave, à hora calada,
Com lenços de saudade alagados de pranto.
Amavam-se, através de uma existência radiosa,
Esses dois corações, firmes, ardentemente...
E, ei-los em pleno abril, na luz de luar e rosa
De um noivado... Porém, que destino inclemente!
Vinham de se casar. E que hora deliciosa
De perfumes e canção. Mas, o mar, num repente,
Começou a rugir com veemência raivosa...
E a lancha naufragou... E os noivos? Na torrente
Das ondas, sob um vento horrível, se afundaram.
Mas ainda lá está a encantadora ermida
Onde os dois, para o mundo, alegres se casaram.
E ainda lá está a ilha, aromada e florida,
De onde os dois para a vida eterna se evolaram,
E subiram do céu a estrada indefinida.
Valésia, um bem me dá ao coração e à alma
Esta nesga de praia, assim iluminada
Por esse rosicler! Que deliciosa calma!
Como me sinto bem, ó minha doce amada!
Jesus, por certo, andou por esta praia e a palma
Verde do seu condão deixou aqui plantada...
Valésia, tudo é lindo e tudo alegre; e espalma
Por tudo, a primavera, uma força abençoada.
Em cada grão de areia eu vejo a miniatura
De um mundo... Mas, na vaga, a bater no rochedo,
Vejo a eterna paixão, a profunda amargura
Dos que não têm, Valésia, a alma no olivedo
Do amor, como nós dois, que vemos na ventura
Do sonho a própria vida e o seu próprio segredo!
Para a alma de Cruz e Sousa
Recordas? Esta praia é a mesma onde viveste
Longos anos comigo. É a mesma na brancura,
A mesma na alegria, a mesma na frescura;
E se espelha no mar o mesmo azul celeste.
Os versos virginais que sempre lhe fizeste,
E os que eu também lhe fiz, rimados de doçura,
Correm por esse mar, pela imensa planura:
São perfumes sutis de um roseiral agreste.
Recordas? Esta praia é sempre a mesma praia,
E quando morre o sol, e quando a luz desmaia,
Continua a embalar, entre os ventos dispersos,
Esse anseio de amor, que sonhamos outrora,
E que palpita e vibra, e que renasce e chora,
E vive a soluçar nos meus e nos teus versos.
Luz doce, a desse sol: — trigo em pó, peneirado
Sobre os campos em flor e sobre o mar... Bendito
Trigo da eterna mó do moinho sagrado,
Para alento de quem na fome vive aflito.
E é todo um vinho bom, um vinho perfumado,
A água verde do mar; e a que sobre o granito
Dos morros corre, à sombra; ou sobre o descampado,
Na harmonia suprema e eterna do infinito.
Com tanto trigo em pó e tanto vinho claro,
Só se alegram, no entanto, em pleno mundo avaro,
Os simples corações dos humildes, dos justos,
Que na praia, ou no campo, alegremente vejo
Cheios de amor e crença e cheios do desejo
De subirem, depois, aos altos céus vetustos.
Querido amor! Que eu vá e volte, para, um dia,
De novo recordar as praias marulhosas,
Por onde andei e por onde ando, na alegria
Do sol e desse luar, pelas noites saudosas.
E volte para ouvir as aves na arcaria
Dos verdes angelins, e ouvir fontes cheirosas...
E se ainda existir, na antiga freguesia,
A casa onde nasci, sob um tendal de rosas,
(Mas hoje cheia de hera e bastante arruinada)
Que eu veja nela o abrir de uma outra madrugada;
E encontre, ao renascer, nesse solar risonho,
O teu corpo também renascido e formoso:
— Lírio de sangue e luz, para sempre ditoso;
E a tua alma a cantar dentro do mesmo sonho.
Sim, fiquemos aqui. Olha as ilhas tão belas,
Cujas praias o mar, serenamente, beija...
Lá longe, no horizonte, as alvacentas velas,
Umas vão, outras vêm... E aquela outra bordeja...
Na Ilha das Vinhas há pinturas amarelas
Que parecem alfaia às portas de uma igreja,
E, em filas, lá por baixo, as casinhas singelas
Lembram riscos de giz num pano verde. Adeja
Dentro do céu que é todo uma imensa turquesa,
A gaivota bizarra, asa aberta à beleza
Da luz que se transforma em seda, nos espaços...
Sim, que a tarde recorda aquela em que eu contigo,
Nesta praia, aqui mesmo, encontramos o abrigo
Dos flóreos laranjais, para os nossos abraços.
Não lastimes a vida, ó meu querido amigo!
Pois se comes um pão, rega-o Jesus, de vinho.
Ele anda todo o dia e de noite contigo;
Na tua casa humilde e no mesmo caminho...
Se te achares com fome, Ele te dará trigo;
Se lhe pedires água, Ele virá, sozinho,
E água fresca terás, sob o bendito abrigo
Do seu amor, do seu olhar, do seu carinho.
E vai ao mar, embora o grande mar te seja
Tristíssimo e cruel! Que Jesus te proteja
Como bem me protege, em todos os momentos...
Pois vivo a soluçar como esse mar soluça,
E me debruço como esse mar se debruça,
Tendo aos ombros a cruz de todos os tormentos!
Tarde contemplativa. O azul é flor nas águas
Do mar, que lembra um lago enorme, adormecido.
Não fervilha a maré, nem se arrepela em fráguas
Num rochedo que está entre as algas metido.
Quantas recordações! Dentro do peito trago-as
Como dentro de um cofre um tesouro escondido.
Quantas recordações, exiladas das mágoas...
Sem um ai... sem um grito... um soluço... um gemido.
Por uma tarde, assim, de turquesa e damascos,
De topázios de fogo e cristal nos penhascos
Do alto do Cambirela, é que te ouvi rezar...
E rezavas por quem? Valésia, tu rezavas
Por mim, pois há que tempo, ansiosa, me esperavas,
Clamando a Deus, clamando ao céu, clamando ao mar!
Perto do filho, morto à bala, na emboscada
Que lhe fizera, à noite, o filho da Galdina,
Quando descia à praia, a alma martirizada
De Maria soluça e em pranto se amofina.
E, sob a luz do luar, suavíssima e nevada,
Que se estende no mar, na serra e na campina,
Uma sombra torneia as árvores da estrada:
Desce, chorando, a mãe daquela alma assassina.
Uma chora o que vai para a cova sombria;
E a outra, o que desceu às grades da enxovia,
Ambas da mesma dor no sangrento rastilho...
Mas, como mães que são, uma diz soluçando:
— "Maria, que o teu filho aos céus suba cantando",
A outra, absorta, responde: "E eu perdoo o teu filho!"
Meia noite. Silêncio. O relógio da igreja.
Martela devagar, no triste campanário,
E a sua voz parece a de uma ave que adeja
E sobe, misteriosa, ao espaço solitário.
Silêncio de pavor. Nem mesmo o ar arqueja;
Nem fulgura, no céu, o branco relicário
De um astro! Nem no campo o alvo lírio branqueja!
Nem se enrolam, talvez, as contas de um rosário!
Tudo dorme, na noite, em trágico mistério...
Menos na solidão daquele cemitério,
Os ciprestes que ao céu erguem as verdes palmas.
E ossadas, ao luar, rolam de lado a lado;
E em cada cova ruge o cantochão magoado
Da eterna procissão tradicional das almas.
À Conceptta
Vieste da linda Itália, em cujas praias treme
Um mar dentro do qual há céus sempre azulados,
E de lá me trouxeste uns sonhos adorados,
Ó meu amor! Ó meu amor! Querido amor!
Toda a voz desse mar, quando o teu peito freme
De desejos febris, escuto com cuidados.
Tua boca é uma concha; e os teus lábios, rosados,
Fazem lembrar corais que não mudam de cor.
E se na Itália é doce o luar sobre as ondas;
E é doce o sol na rica abastança das mondas
Do trigo, e nos vinhais de pródigas raízes;
Meu amor! Meu amor! Nos teus olhos, com calma,
O luar bate em cheio; e o sol te bate na alma,
Na aliança eternal de dois peitos felizes.
— "Bebo para matar a mágoa que me invade
E me tortura a alma. E bebo sem cessar.
E se o vinho acabasse, eu beberia o mar,
Sempre assim, sempre assim, cheio desta ansiedade:
O que ele repetia a pura verdade...
E continuando, ao balcão, os copos a emborcar,
Ao sol, à chuva, em noite escura, à luz do luar,
De blasfêmias enchia o azul da imensidade.
Tropeçando, uma noite, em que a poeira do gelo
Retalhava-lhe os pés, as faces, o cabelo,
Ei-lo do velho engenho em meio da lareira.
Ressurgida a manhã, fomos ver o Isaltino...
E a sua mãe nos disse: — "Aqui está o destino
De quem lhe vê fugir, num dia, a companheira"!
O mar! E sempre o mar! Vejo-o todos os dias,
E me embalo nos seus feiticeiros encantos!
O mistério do mar! Que soluços e prantos
Às vezes ele encerra. E, às vezes, que alegrias!
Cinge-o o crepe augurai das densas invernias.
Mas, ei-lo agora, o mar, coberto de áureos mantos...
Certas vezes entoa alucinantes cantos;
Mas, às vezes, derrama as lágrimas mais frias!
E vai, de vaga em vaga, às praias e aos rochedos;
E conta-lhes do sonho os íntimos segredos;
E fala-lhes, talvez, dum sofrimento insano...
É lago e, ao mesmo tempo, é temeroso abismo;
É um recuo de medo e, ao mesmo tempo, heroísmo...
Ó coração do mar! Ó coração humano!
Repica alacremente o sino da capela,
Numa torre de pau, a um ferro pendurado.
Sobe a estrada do morro o vigário, apressado,
No seu carro de mola ao qual um burro atrela.
Dobra o pontal da barra uma canoa, à vela.
Chega o filho do João, para ser batizado,
Sob o esplendor do sol, sob o clarão doirado
Do sol no ocaso, além do altivo Cambirela.
Entretanto lá vai, por essa mesma estrada,
Em procura da paz, numa cova isolada,
Um velho que morreu na ramada, entre os bois.
Mudada embora, a voz do sino, de repente,
O filho do João vem descendo contente...
Mas, qual será, Maria, o mais feliz dos dois?
A Maria da Praia humildemente vive
Ainda no engenho, ao pé daqueles dois outeiros.
Ontem, pela manhã, no velho engenho estive,
Em companhia de uns saudosos marinheiros.
Não há no sítio quem com mais graça cative
Os nossos corações! Ainda são tão brejeiros
Os seus olhos azuis! E eu com ela entretive
Longas recordações do amaino dos salgueiros.
A Maria da Praia é cada vez mais moça...
E ao recordar-se bem dos fandangos na roça,
Muito falou em ti, desse tempo querido...
E os seus olhos então ficaram rasos de água...
É que nunca esqueceu a desolante mágoa
Do seu amor por ti jamais correspondido.
Que amarga provação, a minha, agora! E, quando
Eu nisso penso, sinto a alma toda assaltada
De sombras, como as de uma ermida abandonada...
De sombras que eu não sei como irão me deixando!
Amarga provação de tristezas! Gozando
Por acaso andarei, neste mundo, a ambicionada
Messe de florescência azul, iluminada,
Dos trigais da Esperança? Eu pelas sombras ando...
Mas, mesmo assim, não sou infeliz, entretanto.
Moro neste casebre, entre rosas, num canto
De praia amiga, de onde, à luz meiga do luar,
Meu pobre coração muitas vezes se aquece
De piedade por quem grandes ânsias padece,
Como esse coração misterioso do Mar!
Antônio, a tua terra, além-mar, que formosa
Terra de amores! Quem pudesse visitá-la,
Por uma tarde toda azul e perfumosa,
Descida sobre o Tejo, em praias cor de opala.
Quem fosse a tua terra e ouvisse a murmurosa
Água do Tejo! Quem corresse a contemplá-la!
Também, da Estrela-d'alva a luz maravilhosa!
E quem pudesse, ainda, entre sonhos, gozá-la!
Eu, que te quero tanto, Antônio, passearia
Contigo, entre os trigais e as vinhas, na alegria
De te escutar, ao fado, à sombra de um carvalho...
E virias, depois, à hora em que desmaia
O sol da minha terra, a esta florida praia,
Onde vibro a viola e canto o sarrabalho.
Junho. Que frio atroz! Que noite de tormento
Para quem da velhice os estragos possui!
Que frio atroz, lá fora! E, às lufadas do vento,
Para maior frieza, o gelo se dilui...
E me ocorre, nesta hora, à luz do pensamento,
Um casebre, na praia, onde uma vez eu fui.
Nele mora o Joaquim, um corpo sem alento,
Que nem leito, nem pão, nem fresca água possui.
Mas, nunca se rebela o Joaquim, nas noites
Em que os ventos bramindo e as chuvas são açoites
De encontro ao seu telhado e aos furos da parede.
O Joaquim é bom, humilde e resignado...
E vemo-lo, ao romper das manhãs, levantado,
Tomando sol na praia e consertando a rede.
O antigo marinheiro está quase morrendo
No seu rancho de palha. Ai! pobre do velhinho!
Setenta anos já fez. E viveu percorrendo
Das tristes ilusões o infindável caminho.
E agora, à luz do sol, que se vai distendendo
Pelas praias e campos, existe um burburinho
De povo que o deplora. E o povo vai correndo
Para a morte assistir do seu melhor vizinho.
Numa lancha que dobra, então, toda a enseada,
Velas brancas ao vento, aos beijos da nortada,
Cinge o vigário ao peito a sua linda estola.
E, logo, pela praia encantadora e bela,
Numa voz de oração, o povo segue, a Umbela,
– Flor de sangue entreabrindo a rútila corola.
Casa de tábua, casa humilde. E o sol, a pino,
Baixa fulgurações de metais. Pelas parras
Chiam, rusticamente, as rútilas cigarras;
E a passarada entoa as músicas de um hino.
Perto, um rio parece um manto diamantino
Estendido num fundo azul. Flores bizarras
Abrem corolas de ouro, encantadoras, raras,
Nos veludos da relva. E o mar fulge, divino.
Cheguei. Então escuto um retinir de louça...
E, de mim para mim, ao vento que balouça
As árvores, indago a hora do jantar...
E, chegado que fui à porta da varanda,
Vejo um pão sobre a mesa... E a velhinha Fernanda,
de mãos postas ao céu, começava a rezar.
Tempo de pescaria. A praia do mar-grosso
É uma concha de prata, à luz suave da tarde
Que, entre sedas em fogo e áureos veludos, arde...
E corre pela praia um bizarro alvoroço.
Já retiradas são do amoroso balouço
As redes dos varais, que o tempo frio encarde.
E ali mais adiante, a lancha Deus te Guarde
Beija as ondas que, então, formam na costa um poço.
Deitados na alva areia, os rudes pescadores
Contam, tranquilamente, os seus sonhos de amores,
E olham, de quando em quando, o sinal do vigia.
E, quando no alto morro o sinal aparece,
Descem todos ao mar e vão colher a messe
Que enche as mesas de paz e límpida alegria.
Dormias nessa praia, assim, como ninguém
Dorme em brancos lençóis cheirando a cardamomo.
Ora, quanto carinho e quanto afago tem
A praia, quando o luar surge num vivo assomo!
E sonhavas talvez, sem fadigas e sem
Tristes lamentações. Sempre sonhavas como
Todo aquele que espalha as sementes do bem,
E colhe desse bem o prometido pomo.
O teu leito era a praia; e o travesseiro, a espuma;
E o teu fresco lençol, a escumilha da bruma;
E o teu teto bendito, a curva dos espaços...
E agora, que morreste, ainda estarás dormindo?
Aonde estarás sonhando? E aonde estará florindo
A tua alma de Jó, tão cheia de cansaços?
Todo o céu recordava um nelumbo poeirado
De pólen de ouro; e a lua, uma rosa nevada...
Estávamos na praia. O mar, iluminado,
Deixava ver, ao longe, uma sombra velada.
Era o vulto de um barco há tempo naufragado,
De um barco que, na fúria horrível da lestada,
Fora contra o pontal bruscamente atirado,
Sem uma vela branca, alvíssima e tufada.
Tremeste ao vê-lo; e à flor dessa boca tiveste
Uma interrogação, porque afinal soubeste
As vezes que esse barco, alçando as grandes velas,
Sobre vagas de azeite ou sobre um mar fremente,
Navegara bem como a alma de tanta gente
Navega, quando sonha, em busca das estrelas.
Morreria? Não creio. Ela fugiu apenas
Por uns dias, talvez... Mas para onde iria
A nossa filha amada? A que plagas serenas,
Ela toda de branco e alegre, subiria
Seu corpo ao frio chão, coberto de açucenas,
Entretanto desceu... Era ao findar do dia.
Cruzavam pelo espaço as aves e as falenas;
E de mantos de prata o campo se cobria.
Emigrada do mundo, ela subiu, por certo,
A um outro mais feliz, entre os mundos, aberto,
Que os há por esse céu que tanta luz espalma...
Mas, para nos matar do peito as grandes ânsias,
Nossa filha não mede as longínquas distâncias
E desce, pomba branca, ao pombal da nossa alma.
Como és rica! No entanto andas a propalar
Uma pobreza austera! E quantas vezes dizes
Não serem neste mundo os teus filhos felizes,
Por não terem nem pão, nem mantos no seu lar!
Mas, à noite, onde está o divino luar
Senão perto de ti, com seus matizes?
E o teu amor não tem tão profundas raízes?
E a tua alma não sabe o que é sofrer e amar?
Há dias o teu filho, o mais pecurruchinho
Bateu asas, morreu, bem como um passarinho,
E lhe beijaste, a olhar o céu, as mãos tão belas...
Pois eu perfeitamente ouvi dizer à porta:
— Como é rica uma mãe que humílima suporta
A partida de um filho à mansão das Estrelas!
Quando eu parti de casa era a nossa filhinha
Tão tenra como um lírio e era da mesma altura
De uma garoa marinha, uma garça marinha,
Dessas que têm do arminho a imaculada alvura.
Hoje por certo está muito mais taludinha,
Pois já sabe pular na esteira de verdura,
Pelas mãos de quem é a sua vida e a minha,
E para quem eu sou o trigal da ventura.
Mas, como a vida é fel para quem vive ausente!
E eu me vejo sozinho, ante o mar inclemente,
Sozinho nesta praia, a olhar o espaço, em vão...
Ah! visse eu essa filha eternamente amada,
E tê-la-ia então contra o peito, abraçada,
Como a ovelhinha humilde à cruz de São João.
Para a alma de meu Pai
Não te vejo, porém te sinto e é quanto basta...
E, ao te sentir, recordo o teu sereno vulto,
Às vezes muito claro e outras vezes oculto
Entre as sombras nas quais a morte nos arrasta.
É que a tua alma, embora imaculada e casta,
Das glórias imortais no supremo tumulto,
Desce à gleba do mundo atroz, do mundo inculto,
Que das asas do amor, tão trágico, se afasta.
Acompanho-a, no entanto, aos campos enflorados,
Aos bosques, aos vergéis, às florestas, aos prados;
E dos morros azuis aos caminhos mais planos.
E compreendo, então, quando os ombros me voltas,
Que em tudo, neste mundo, há lágrimas revoltas,
De tédio e de amargura enchendo os oceanos!
Que a paz dos altos céus estrelados te venha
A alma aflita buscar, é o meu maior desejo...
A alma dentro da qual a mágoa se desenha
Como na escuridão a nódoa de um lampejo.
Trezentos e sessenta e seis degraus da Penha
São os dias por ti sempre contados! Vejo
Sem pão a tua mesa; e o teu fogão sem lenha,
Enquanto muitos pães no mundo há de sobejo!
Desde o dia em que o mar, que é sempre austero e forte,
Chamou o teu marido aos mistérios da morte,
Tua vida tem sido uma eterna invernia...
E o que responde o luar, quando triste lhe falas?
"Nada, nada responde". E quando então te calas?
"Sacode ao meu silêncio uns risos de ironia"
Mulher, há quanto tempo humildemente lavas
Nas pedras dessa fonte! És uma pobre viúva,
E, para teres pão, lavas ao sol e à chuva,
Tu que o lótus do amor no peito acariciavas.
Moça, pelas manhãs de sol, como cantavas!
Eras linda e feliz. Frescas doçuras de uva
Possuías na boca. E o teu corpo, da luva
Possuía a maciez... E quando me abraçavas?
Mas, foi-se a tua branca e alegre mocidade
No torvelinho atroz da negra tempestade
De uns ciúmes de amor, nos profundos abrolhos.
Velha, vives, agora, a lutar nessa fonte
Que não parece vir das entranhas do monte,
E sim do pranto amargo e triste dos teus olhos.
A noite faz lembrar a abóbada sagrada
De um templo em cujo altar, diante do lampadário
Aceso, e todo de ouro, a Virgem do Rosário
Suas contas desfia e reza concentrada...
Que silêncio profundo e emotivo na arcada
Nave de onde rutila, ao triste mundo vário,
Cada estrela de prata. E a porta do sacrário
E essa lua saudosa, espiritualizada...
E o campo em flor, o campo imenso, o campo largo,
E o rio e o vasto mar, que, num fundo letargo,
Pareciam morrer, reviveram nesta hora...
E tudo ajoelhado está, na noite calma:
O campo, o rio e o mar — porque tudo tem alma
Para ouvir, em silêncio, orar Nossa Senhora!
Meu amor! meu amor! os canários, nas telhas
Da nossa casa, são alados guizos de ouro;
E, sempre num concerto, as rútilas abelhas
Vibram pelos rosais seus anafis, em coro.
Tremem junto de nós, pelas nossas orelhas,
As antenas de prata e fio, de um besouro.
E balam, docemente, as humildes ovelhas
Que nos dão do alvo leite o saboroso soro.
Gozemos, desta casa, os frescores da tarde
Que entre pompas de luz, e ondas de aromas arde...
E, pela praia acima, o mar que vibra e freme;
Esse mar nos dará sonhos alvissareiros
Debruçado que está junto aos altos coqueiros
De palmas de esmeralda e cachos cor de creme.
Que bruscas convulsões, que gestos, que estertores
No enregelado peito e músculos do Armando!
E o seu olhar torcido era a expressão das dores
Que lhe cavavam na alma uns ais, de vez em quando.
Suas faces, à luz dos ricos esplendores
Da tarde, num céu largo e lindamente brando,
Pareciam iguais às desoladas flores
Que se vão, pelo outono fora, desfolhando...
Não queria morrer! Mas, aos poucos, sua alma
Desprendia-se, assim como da verde palma
De Santa Rita, a cor se desprende, no altar...
Não queria morrer tão moço (ele dizia),
Deixando quem o amava e tanto o estremecia,
A chorar como chora, aflitamente, o mar.
As duas
Flora amava o José com enternecimento;
E o rapaz, de feliz, era um dia de sol.
Trazia a rapariga atada ao pensamento,
Como a uma ramada os fios do aranhol.
Mas, chegada que foi Andrésia, num momento,
E ao ver-lhe do cabelo o fulvo caracol,
E os olhos de um contínuo e doce movimento,
Eis o rapaz lembrando um peixe num anzol.
Alma toda ideal, alma-flâmula branca,
Aberta, desfraldada e eternamente franca,
Estendeu, a cantar, a curva dos seus braços;
E às duas foi mostrando, alegre, satisfeito,
O segredo do amor, guardado no seu peito,
Onde o seu coração se abrira em dois pedaços!
Olho o passado e como a vida me parece
Formosamente azul! Vejo-a em redor de mim
Com a mesma pureza. O sol é o mesmo. Desce
Sobre a minha cabeça um manto de cetim.
A lua encantadora é flor que não fenece
No meu peito infantil. E, ao recordar, assim,
Toda a infância feliz, a minh'alma se aquece
De um prazer que não sei se um dia terá fim.
Recordo a nossa casa (hoje toda arruinada)
De porta aberta para o mar e para a estrada...
Mas a recordação que no meu sonho cai,
Vem das tardes em que eu rezava a ladainha
Perto de minha mãe, uma humilde velhinha,
E sob o firme olhar piedoso de meu pai.
Ora, a melhor riqueza, é, por certo, a saúde...
E é por isso que eu vim morar muito juntinho
Do teu casebre. E, agora, a noite inteira, pude
Dormir, como se fosse entre os frouxéis de um ninho.
Dizem que o mar nos dá um sentimento rude,
E nos transforma o peito em áspero cadinho...
Mas eu penso o contrário. E a crença que me ajude
A ficar por aqui, perto do teu carinho.
Foi o mar quem te deu saúde à cor trigueira;
E aos lábios o frescor do fruto da aroeira;
E te doirou a trança, essa que ao colo arrumas...
E o suave clarão dos teus olhos castanhos
Tomou, deste lugar, os encantos estranhos;
E os teus seios em flor o sabor das espumas.
Aos meus braços encostas o teu peito, Maria,
E vamos até lá que o mar está tão lindo,
Que parece um altar feito da pedraria
Do ocaso que se vai, entre pompas, abrindo...
E o mar, sempre ao cair da tarde, ao fim do dia,
Tem cousas a contar à gente! Estás sorrindo?
Ele está a dizer que nesta freguesia,
Dois peitos num só laço existem, reflorindo...
Vamos ouvir o mar que não está tão longe...
E lhe diremos, flor, como ao mais velho monge
Do Convento do Amor, no Adro da Imensidade,
Tudo quanto palpita em redor de nós ambos.
De nós dois, que apesar dos nossos passos bambos,
Ainda nutrimos na alma a mesma mocidade!
Que mais linda mulher possui o encanto e a graça
De uma ave que no mar gorjeia, iluminada?
Dessa forma é que Hortência, o meu amor, me passa
Pela frente da casa e abre clarões na estrada.
Houve por esse sítio uma grande devassa,
Desde o morro ao pontal, para ver, na esfolhada
Do milho, quem faria e ainda agora faça
Andar tonta de amor toda a rapaziada.
E aconteceu que fora o seu nome apontado:
— O primeiro capaz de trazer arrastado
Um homem, como o pó pelo brusco favônio!
E quando Hortência está no rol das raparigas,
Perde o encanto a guiné, da qual se fazem figas,
E até não nos socorre o próprio Santo Antônio!
Na praia triste, triste, um cemitério em ruínas.
Aqui, cruzes ao chão, caídas de cansaços;
E até, cruzes erguendo ao céu os frágeis braços,
Servindo-lhes de manto as frígidas neblinas.
À sombra do verdor das altas casuarinas,
E às vezes, pela luz dos mórbidos mormaços,
Rola a caveira branca; e, em largos estilhaços,
Bolam pela poeira as vértebras franzinas.
Plena desolação no antigo cemitério!
E o mocho cujo olhar é um fúnebre mistério,
Nem mora ali! Nem vai, ali, ninguém rezar!
Ah! triste esquecimento! Ah! triste esquecimento!
Entre as cruzes, porém, ouço rezar o vento,
E ouço rezar, na praia, a alma verde do mar!
O rude som de um búzio cria de praia em praia
Ao doirado clarão da tarde. Evocativa,
Para além da montanha azul, a luz desmaia;
E faz-se, de rosais, no mar, florida estiva...
Como acossada por uns dardos de azagaia,
Passa uma ave pelo ar, medrosa e fugitiva,
E se esconde através da sombra, onde a atalaia
Traz na torre de pedra a flâmula cativa...
Corre a lancha que vem transbordada de peixe.
Muita gente da aldeia... E antes que o Paulo deixe
Bicar a embarcação de altos bordos de cedro,
Lindas moças estão já de longe gritando:
— Ó rapazes do mar, passaremos dançando,
Em redor da fogueira, a noite de São Pedro!
"Pela estrela do mar, pela Nossa Senhora,
Que me conduzirá ao fim desta viagem,
Juro que serei teu, por toda a vida fora;
E levarei no olhar a tua linda imagem".
Assim disse o Florêncio. E, à rubra luz da aurora
Um barco fez-se ao mar, aos beijos da bafagem
Do almejado terral, que levemente enflora
As ondas, de uma cor doirada, de miragem...
"E eu serei sempre tua, eternamente tua".
Diz-lhe a noiva formosa, em cujo olhar flutua
A divina expressão do amor e da saudade.
Jamais voltou, porém, quem tal jura fizera:
Tragara-o o mar, tragara-o a vaga rude e austera...
Mas a jura dos dois vive na eternidade...
"Quando eu morrer, dizia a pobre velha Armanda,
O meu desejo é ter o meu corpo enterrado
Na sepultura em que meu filho muito amado
Dorme, na Ilha do Largo, ali, naquela banda":
Os dias foram vindo... E a pobre velha Armanda,
Numa flórea manhã de céu imaculado.
Fechou, para este mundo, o seu olhar cansado...
Mas não foi enterrada ali naquela banda.
Por isso, nessa praia em curva, toda a gente
Vive cheia de horror... É que, na praia, rente
Aos sulcos das marés de lua, desolada,
Do silêncio da noite entre as neblinas frias,
Nos chamalotes de ouro em pó das ardentias,
Passa, como uma sombra, aquela alma penada...
Encontrei-a de laço azul nas tranças de ouro,
E unia rosa vermelha à boca e outra no seio.
E era, à luz cristalina, a sua trança um louro.
Sazonado trigal, para o meu devaneio.
Chegara de escutar, no fundo ancoradouro,
As ondas, cuja voz inspirava receio,
Prometera a Jesus umas preces, em coro;
— Salva-o meu adorado! em ti creio! em ti creio!"
E, como o vendaval aos poucos amainasse,
E o noivo, são e salvo, a enseada alcançasse,
Cumprira o que, em dor e angústia, prometera.
Pela tarde que se despetala em fulgores,
Lá vai ela, feliz, entre risos e flores,
À capela levar uma vela de cera.
Todo o horizonte escuro e as montanhas escuras...
Rolos de escuridão vêm do espaço caindo.
E a floração astral onde estará luzindo?
Seria para sempre extinta nas alturas?
Aonde estarão também as límpidas alvuras
Das garças dos mangais? Foram-se difundindo
Nas trevas desse mar que se encrespa, rugindo,
Abalando de chofre a alma das criaturas.
Tremo de medo. A fé em meu peito se apaga...
Esta noite medonha, aflitiva e pressaga,
Leva-me o coração, que na angústia estremece...
Mas entro, sem rumor, na tua casa e vejo,
Da candeia de folha ao mortiço lampejo.
Os teus dedos desfiando um rosário de preces.
Sonambúlica e triste e cheia de pesar,
A tia Madalena, arrastando a passada,
Todas as tardes vai às carícias do mar,
Pelo crivo de luz das árvores da estrada.
Ela que irá fazer? Dizem que vai rezar,
Porque de dores sente a alma toda atulhada.
Essa velhinha tem ladainhas no olhar...
Mas o seu peito lembra uma ermida fechada.
Desce e vai ao sopé de uma cruz, num rochedo,
Onde soluça o mar, num profundo segredo,
Aspergindo rosais e ondulações de luz...
E a tia Madalena, entre lágrimas, reza...
Vive ao noivo, que é morto, há muitos anos, presa,
Num amor como alguém já tivera a Jesus!
Da tua casa humilde, onde ao beiral trinavam
Canários de asas de ouro, ainda sinto saudade!
Que aromas os rosais das cercas evolavam!
Que formosas manhãs! Que sol! Que alacridade!
Ali, dois corações no mesmo amor sonhavam.
Duas almas, ali, cheias de virgindade,
Viviam para o bem e todo o bem gozavam...
E não há bem maior do que a mocidade!
Mas hoje, a tua casa, amor, já não existe;
Tudo, tudo por terra... E o campo, morto e triste!
Menos o laranjal, que em plena primavera,
Na alva fita da praia, em flor, de lado a lado,
Nos sorri benfazejo, evocando o passado,
Como um leito feliz, Maria, à nossa espera!
De olhos quase sem luz e lábios macilentos,
E mãos como as de quem as regelou a morte,
Vejo num carro, pelo escabroso recorte
De um caminho que a tarde enche de tons nevoentos.
Amortalhada jaz nos desfalecimentos
De uma moléstia atroz, sem confiar na sorte
De afastar do seu peito a funesta coorte
De tanta dor, ansiando em tristes pensamentos...
Estendida, depois, numa velha canoa
Ruma ao velho hospital, envolta na garoa
Que se alastra, gelada, às campinas agrestes!
Pensa num filho e encharca as pálpebras de pranto,
No pavor que lhe dá, de longe, o Campo Santo,
Com brancuras de ossada à sombra dos ciprestes.
A tua boca rubra e o teu olhar tão belo!
A tua boca mordo e em teu olhar me inflamo,
Cheio de ânsias, febril, alma eivada de zelo,
Porque te quero, assim, e te desejo e te amo.
É noite de veludo o teu lindo cabelo.
Que de beijos estrelo e, abrasado, reclamo,
Às vezes a sentir as torturas de Otelo,
E outras vezes tão bom, que de ovelha me chamo.
E dessas mãos de jaspe os delicados dedos
São as chaves leais dos múltiplos segredos
Que guardo no meu peito, a formidáveis cunhas...
E em cada dedo tens a atração misteriosa
De uma lua a crescer nas linhas cor de rosa
Das conchas sensuais e brunidas das unhas
Ó Ilha! Ó minha mãe! Campo do meu trabalho!
Como eu te quero bem, pelo rolar dos dias!
Sinto que vêm de ti todas as energias,
E o melhor e o mais santo e divino agasalho!
Ó Ilha amada! És tu quem o bendito orvalho
Derramas nos rosais das minhas alegrias!
E quando triste estou, nas belas sinfonias
Da tua luz sublime, as tristezas espalho...
Vim de ti e de ti veio a mulher querida,
Que é linda flor de trigo e flor de minha vida;
E vieram de ti meus filhos e meus netos
Quem mais feliz do que eu, Ilha verde e aromada,
Se uma tenda construí, numa praia abençoada,
Lendo ao mar inebriante os meus poemas diletos?
Ouro em barra, cristais, sardônicas, berilos,
Nas orgias da luz... Eis a tarde que desce
Por sobre a nitidez dos riachos tranquilos
E por sobre a esplanada, onde a relva floresce.
À sombra do arvoredo, ouvem-se alegres trilos
De aves, dessas que o ninho empenujado aquece.
O vagalume esvoaça; e despertam-se os grilos...
Tange o sino da ermida, evocando uma prece.
E a tarde vem descendo, amorosa, amorosa,
Como se fosse uma asa enorme e silenciosa,
Para tudo abranger, desde os campos ao mar,
E, piedosa, envolver as almas dos eleitos,
Que se esquecem da luta e vivem satisfeitos
Na glorificação da luz crepuscular!
Pelos furos que havia ao correr do telhado
De urna casa de estuque, é que a lua espiava
Para dentro do quarto onde há dias se achava,
Numa cama sem colcha, o meu filho adorado.
E nessa cama pobre, o meu filho, assaltado
De um ataque febril, quase de morte, ansiava...
Nem candeia de azeite uma luz projetava;
Nem vela de vintém, para eu vê-lo, coitado.
E se não fosse o branco e acariciante brilho
Dessa luz piedosa, ó meu querido filho,
Eu, que te via assim ante a minha alma louca,
Nem pudesse levar, talvez, cheio de tédio,
De momento em momento, as gotas de um remédio
À rosa ainda em botão da tua linda boca.
Chego de percorrer tristíssimas estradas;
Ergástulos a prumo e trágicas montanhas;
Praias de areia ardente, imensas, desoladas;
E mares que nos dão verdadeiras campanhas...
E, como um desvairado, entre sombras pesadas,
Desci da própria terra às flamantes entranhas;
E percorri, depois, as plagas consteladas;
Da Via-láctea de ouro as devesas estranhas.
Mas, de todo esse andar, perdido nas distâncias,
Pude apenas trazer amaríssimas ânsias,
Pude apenas trazer fundos desolamentos...
Entretanto encontrei, na curva dos teus braços,
Toda a paz para os meus formidáveis cansaços,
Toda a consolação para os meus sofrimentos...
Por que razão o Alfredo é de todo inclemente
Diante dos seus bois, de olhares compassivos,
Se eles lhe são, no carro, os seus fiéis cativos,
Se lhe dão do trigal a pródiga semente?
E não é, desses bois a força permanente
Que lhe traz, da manhã à tarde, os emotivos
Prazeres do conforto, ora à sombra tremente
Dos ramos, ora ao sol de abrasamentos vivos?
O rapaz dá-lhes toda a espécie de torturas.
Fisgando-lhes o dorso, e os faz puxar alturas
Formidáveis de lenha, ou de pedra ou de barro.
Mas como unia ironia às silenciosas dores
Dos pobres animais, na relva, aberta em flores,
Cantam bizarramente as chavetas do carro!
Que lindas rendas faz a saudosa rendeira,
Que horas passa sentada ao correr do portal,
De onde escuta a carriça a chilrear na lareira,
E o canário a chilrear no flóreo laranjal!
Aprecio-lhe o gosto e a sublime maneira
Com que faz tanta renda, assim, para o enxoval.
Vai casar-se na ermida alegre da ladeira,
E fez, duma camisa, um lírio original.
No momento em que a vi, a tarde feiticeira
Era uns veios de luz piedosa, espiritual...
E chegava da pesca uma leve baleeira.
Houve, então, um rumor de beijos no quintal...
E em cada humilde e bom olhar dessa rendeira
Cantava a rima azul de um sonho virginal.
— Eis o emotivo fim de uma pequena história:
O Agostinho, ao morrer de febre de sezões,
Disse à pobre mulher: — "Não percas da memória
O que vou te pedir, nas minhas orações.
Se desejas que eu vá para a suprema glória,
Dá a minha coberta ao Paulo dos Lanchões;
E uma vela de cera à Virgem da Vitória,
Prometida num dia inteiro de aflições".
Mas como o Paulo fosse um mísero sujeito,
E nunca fosse à igreja orar, por tal respeito
Deram toda a coberta ao rapaz das Sabinas.
E está nisso a razão que faz o Paulo, agora,
Errar por essa estiada e pelo mar afora,
Ocultando a nudez na gaze das neblinas.
Percorro ainda saudoso os engenhos ruidosos,
Com resignados bois à canga da almanjarra
E a do carro, que lembra uma enorme cigarra,
A chiar, quando desce os morros argilosos...
Do que me pertenceu, em tempos trabalhosos,
Ainda vejo no mar, no aconchego da barra,
Os barcos em balouço, entre os laços da amarra,
Com saudades, talvez, de outros portos ditosos.
E ainda me associo aos capotes nos montes
De mandioca, e bebo a água fresca das fontes;
E os largos tipitins são por mim sobraçados...
E, à noite, junto ao forno onde a farinha estala,
À lembrança me vêm os seios cor de opala
De quem fora a primeira a encher-mede pecados.
Sopra rijo o nordeste. Anselmo vem à popa
De um leve batelão. Vem, contente, a cantar...
Nem se lembra que está sobre as ondas do mar;
E, destemido, d'água o largo pano ensopa.
A leve embarcação embaraços não topa,
Metida a quilha ao vento... É um pássaro a voar...
Rumo da praia irá, num seio descansar,
De bojo para cima, embutido de estopa.
Mas, junto ao Cambirela, onde há um precipício
Que a tanta gente dá o eterno sacrifício
Da morte, ei-la emborcada, a leve embarcação.
E nunca mais ninguém viu o pobre do Anselmo;
Menos quem tanto o amou, e, na luz do santelmo,
Parece vê-lo sempre... E crê nessa ilusão!
De bordo do lanchão pôs-se a fitar o espaço,
Que tão cheio de luz se achava! Quantos astros,
Quantos mundos rolando, enlaçados em nastros,
Da eterna vibração, no infinito compasso!
Quis estender ao céu o seu pequeno braço,
Mas recuou porque, muito distante, os rastros
Desses mundos de luz lhe dariam cansaços;
E eles não são, por certo, os santelmos nos mastros...
— Quem pudesse morrer! (Disse ele) e, nesse instante,
Olha as águas do mar e vê um céu faiscante;
E dentro desse céu, a gôndola da lua...
Arroja-se de chofre, então, ao mar e morre.
Mas, por toda a enseada, uma lenda ainda corre:
Dizem que a alma do Zé nas ânsias continua...
Que mais desejarei, no mundo, se me vejo
Tão querido por ti, por ti sempre abraçado,
A ouvir, seguidamente, o marulho de um beijo,
Ora na tua boca, ora na minha, alado?
Que mais desejarei? Que mais forte desejo
Poderá se alentar no meu peito, amparado
Pelo teu, que é por certo o grande e benfazejo
Abrigo que encontrei, e jamais igualado.
Nada mais, nada mais desejarei no mundo
Senão, do amor eterno, esse laço profundo
Que nos prende a nós dois, nos mesmos sentimentos,
Que não se apagam como as nuvens pelos ares;
Nem como os roseirais das espumas dos mares;
Nem como o soluçar das ondas e dos ventos...
À memória de Santos Lostada
Agora como está o fiar! Parece um lago
Por onde nem sequer uma aragem rasteja,
A encrespá-lo, toldá-lo e tirá-lo do afago
Do céu, nesta manhã que a luz do sol alveja...
O mar recorda, agora, a Estrada de Santiago,
Tão poeirado está de cristais. Da peleja
Das ânsias sossegou, fez-se tranquilo, mago,
E corre um barco ao mar... E que Deus o proteja,
Porque nele viaja um coração que, um dia,
Tornou-se humilde e bom, banhado da alegria
De um sonho benfazejo, em procura de um porto...
E esse barco, nesta hora, é o sonho de quem sente
A verdadeira fé e a esperança latente
De encontrar noutra praia o mais amplo conforto!
Para a alma de M. M.
Dize, por que razão me vens bater à porta,
Altas horas da noite, assim, de olhar tão triste,
Que não sei como, ao vê-lo, a minha alma o suporta,
Se há muito tempo já da terra te sumiste?
E o que desejas tu, se há muito tempo és morta,
Se, com certeza, ao lindo e largo céu subiste
Como uma águia de luz, que as amplidões recorta,
E sobe, e por lá fica, e à paz do céu assiste?
E ela, os olhos volvendo, as mãos alevantando,
E abrindo a boca em flor e a cabeça meneando,
Pôs-se, então, a falar da nossa mocidade...
Disse que à terra vinha, unicamente, apenas,
Para as suas unir as minhas grandes penas,
No consolo bendito e humano da saudade.
I
Num galho de figueira, aberto sobre a estrada
Que esse sábado enchia, estivava de luz,
Bizarramente, toda a alegre meninada
Via a imagem de quem atraiçoara Jesus.
Era um Judas de pano. A cara mal pintada,
E a cabeça, metida em nojento capuz,
Davam toda a expressão de uma alma abandonada,
Como a de um mocho sobre os braços de uma cruz.
E, quando a luz do sol desceu do espaço, a pino,
E, álacre, repicou na alva capela o sino,
Toda essa meninada, esquecendo o perdão,
Tratou de apedrejá-lo e arrastá-lo e queimá-lo,
Sem, no entanto, pensar que devemos amá-lo,
Porque Judas, na terra, é também nosso irmão.
II
Assim pensava a tia Eufrásia, uma velhinha
Da cabeça da qual a neve não caía,
Servindo-lhe de touca, a noite inteira e ao dia.
Mesmo rente ao calor do fogo, na cozinha.
E acrescentava, a orar: — "Em toda a vida minha
Nunca pude saber a razão da alegria,
Do Judas se malhar, dessa forma daninha,
E reduzi-lo a gente a pó de cinza fria...
É que o amado, o querido, o inefável Jesus.
Ao morrer, como nós sabemos, numa cruz,
A todos perdoou, de olhos fitos na altura.
E, se a todos perdoou, porque eles não souberam
O que, cheios de fel e vinganças fizeram,
Judas viu-se na luz dessa mesma ternura...
III
E quando a tarde veio e o alto sino da ermida
De novo repicou, e a sua voz dolente
Fez-se ouvir até longe, além duma comprida
Estrada pela qual descia muita gente...
E, quando junto ao altar de toalha guarnecida
De cravos e jasmins, à luz resplandecente,
O vigário cantou uma prece sentida
Nos arroubos da fé, e ouviu-se um coro ardente...
Nessa hora abençoada e límpida, nessa hora,
Entre luzes, no altar, clara, Nossa Senhora,
Tinha no doce olhar os mais suaves brilhos...
E, parecendo abrir os braços, balbuciava:
— Eu sou do amor a força, e ao mesmo tempo, a escrava,
E, pelo amor perdoo a todos os meus filhos.
Nuvens... flocos de linho... escumilha... fumaça...
No alto do Cambirela há nuvens cor de lodo,
É o pampeiro que desce e bruscamente passa
Bramindo, em convulsões... Esse pampeiro é um rodo:
Leva diante de si, como uma enorme massa,
O mar que eriça o colo e espuma e cospe e todo
O espaço faz tremer. E aonde está a barcaça?
Levou-a o vento sul, como o melhor engodo.
E lá vai a barcaça, aos trancos, emborcada...
Corre à mercê do mar, no Pontal da Enseada,
Nas ondas que se vão, em derrota, do norte.
Mas não há que temer do quadro extraordinário:
A barcaça parece um grande dromedário
Eu cujo dorso o André zomba da própria morte!
Saudoso, vim te ver e de novo gozar
Os aromas sutis dos teus seios morenos:
E ouvir, neste casebre, aqui, à beira-mar,
Da tua boca fresca os suavíssimos trenos.
Nas léguas de distância, eu me punha a cismar,
No entanto desta praia e nos dias amenos
Que passei, minha prenda, à luz do teu olhar,
Tão bela como a luz dos páramos serenos.
E o teu casebre é o mesmo, ainda todo aromado
De floridos rosais na curva do telhado;
E canta-lhe o canário à sombra do arvoredo.
Que ninho, o teu casebre, onde nos encontramos
Pela primeira vez e felizes sonhamos,
Junto do altar em flor do primeiro segredo!
Tarde tradicional. A safira do espaço
Espelha-se no mar, nas ondas cor de chumbo
Que na encosta da pedra estouram, num retumbo
De pandeiros nas mãos nervosas de um palhaço.
E o sol se ostenta rubro, em rutilâncias de aço,
Ao fundo do horizonte azul, como um nelumbo.
Entretanto, no tédio, eu sinto que sucumbo...
E nem posso me erguer, nem levantar o braço.
É que eu vejo num campo em flor, em pleno maio.
Um soberbo animal, um bonito garraio,
Quase morto, de língua inchada de tormentos.
No suplício da vara, em meio de rapazes
Sem alma e coração, certamente incapazes
De serem, como os bois, tão bons e pachorrentos.
— Lá vai, velas ao vento, o brigue Flor das Águas;
Lá vai, garbosamente, em procura do Norte.
E alegre chegará? Quem sabe lá das mágoas
Da sua gente? E quem já lhe notou a sorte?
"Mágoas! Quem nunca as teve? Eu, pelo menos trago-as
Desde o dia fatal em que, olhando a morte,
O meu noivo vagara aflito, envolvido nas fráguas,
Dos bruscos vagalhões em terrível coorte:
Assim falava Rosa às queridas amigas...
E dentre o lindo rol das meigas raparigas,
Rita pôs-se a cismar na vida do Lourenço.
Vira-o no mar profundo e revolto de um sonho,
Nas angústias fatais de um naufrágio medonho,
A gritar e a acenar convulsamente um lenço.
Praia de Itaguaçu... Pedras em montoeiras;
Umas altas, ao pé do mar; outras na estrada;
E mais outras à sombra esquiva das figueiras,
Sobre as quais noiva e canta a linda passarada.
Cercados de cipós de álacres trepadeiras,
A margem de um riacho... E, na verde esplanada
Tapetes de mentrasto; e mádidas roseiras,
Cuja flor faz lembrar a neve derramada...
E, como o sol faiscante, entre púrpura desce
E desce entre rubis, Itaguaçu parece
Mergulhar-se de todo em chamas luzidias...
Mas quando a noite vier, surgirá, apagado,
Só deixando rolar no escuro mar velado,
Como uns restos de incêndio, as fulvas ardentias.
Esgueirado na sombra escura dos pinheiros,
O Francisco desceu ao velho dormidouro,
Onde deitado estava, a ruminar, um touro
De olhares de ametista e altos chifres franqueiros.
Chegou e aos pontapés sobre os quartos traseiros
Desse humilde animal, de aveludado couro,
Fê-lo erguer-se do chão, num terrível estouro,
E no chão esfregou os seus braços mateiros.
Vinha ao touro pedir, dos músculos de guaxo
A rigidez, para jamais viver por baixo,
Para jamais recuar de façanhas audazes...
E, já pela manhã e nas sombras da tarde,
O Francisco, que, até então, era um covarde,
Ficou sendo o terror de todos os rapazes.
Bem velhinho que estou, meus filhos, bem velhinho,
De cabeça nevada e passos vacilantes...
Mas a minha alma ainda é a mesma, no caminho
Da vida, sobre o qual há sombras torturantes...
Como outrora bebi, bebo seguido o vinho
Da alegria feliz e dos emocionantes
Sonhos que, em derredor de mim, são o carinho,
O afago, o bem estar e as bênçãos palpitantes.
Como outrora, a minha alma ainda vibra e se veste
Dos resedás em flor de um largo campo agreste;
E ainda canta, porque, dos sóis e do luar,
Deus aos ombros lhe estende a doçura de um manto,
E lhe dá, todo o instante, o fulgor sacrossanto
Das rimas a rolar na harpa verde do mar.
Nesse recanto agreste, onde foi sepultado
O corpo de teu filho, o que virá nascer?
Nascerá, certamente, um salgueiro aromado,
A cuja sombra o teu amor há de viver...
Jamais esquecerás esse lugar sagrado,
E ali, teu coração há de sempre bater,
Porque no amor não há um coração parado,
A dormir sem sonhar, ou sem mágoas sofrer.
O amor de que te falo é o grande amor materno,
Que, quando necessário, até ao próprio inferno
Vai, em busca dum filho, em todos os momentos...
Quanto mais, quanto mais nessa praia saudosa,
Onde vives clamando, onde vives chorosa,
Mas confiando na paz dos altos firmamentos!
Morto de fome, embora, um negro cão felpudo,
Era, do velho Antônio, a melhor companhia.
Dava-lhe o cão amigo afagos de veludo,
E os espirituais eflúvios da alegria.
Quando a tarde formosa espalhava por tudo
A floração da luz, numa perene orgia,
Num destino fatal, o magro cão, sisudo,
Unido ao velho, a estrada inteira percorria.
Na taverna da praia, o velho se embriagava
De urna maneira tal, que junto ao mar ficava,
Ao comprido na areia, ao comprido no chão...
E a noite chegou, coberta de lestada.
Em que o velho, ao morrer, nessa praia isolada,
Viu ungi-lo de afago o carinhoso cão.
Deixa que o mar, de encontro aos rústicos rochedos,
Convulsamente ruja e, pelas praias, ruja,
Com toda a sua força hercúlea, nos enredos
De urna dor sobre a qual estremece a maruja.
Deixa que o mar, nos mais temíveis arremedos,
Busque galgar o céu maravilhoso, em cuja
Curva existe o fulgor dos astros, nos segredos
Do Divino Poder que as almas sobrepuja.
O mar que geme, o mar que brame e que soluce,
E, em blasfêmias, em pé se ponha ou se debruce;
Ou se alastre, a fremir, por todas as distâncias,
Deixando para trás a linha das montanhas...
É que esse mar possui as sensações estranhas
De um revel coração, no mistério das ânsias.
Tudo neste lugar agreste é puro e santo.
De maneira que tu achas na própria terra
Toda a consolação que não conhece o pranto,
E não conhece a dor, a grande dor que aterra...
Toda a tua alma afeita às emoções, encerra
A luz, o aroma e o som, num mágico quebranto,
Desde as praias do mar às florestas da serra,
Desse céu de cristal sob o bendito manto.
Nunca fugiste à vida, antes buscas senti-la
Porque na vida vês a luz meiga e tranquila
De um divino farol na praia da esperança.
E soltas, mar a fora, o bergantim dos sonhos.
E vais, por esse mar, em busca dos risonhos
Dias de sol, na unção do azeite da bonança.
Num funéreo caixão vejo-a em paz, sossegada...
E o seu vestido branco é leve como a pluma
De uma garça que vem, na tarde perfumada.
Rever, saudosamente, o espírito na espuma.
Das moças do lugar era a mais delicada!
Que boca virginal! E olhos assim, nenhuma
Outra moça possuía! Era a flor na esfolhada
Do milho e era, na praia, em maio, a graça, em suma.
"De todo esse redor, chamavam-na bondade",
Exclamou um rapaz, em cujo olhar pairava
Uma funda expressão de dor e de saudade.
E, momentos depois, ao largo mar calado,
Desesperadamente, o Antônio se atirava...
E o céu, aberto em luz, floria, constelado!
Rita fora tirar mariscos ao mar-grosso,
Para dar de comer aos pequeninos filhos
Que eram, do seu amor, os mais fortes cadilhos
Numa pobreza atroz, de sombras de arcabouço.
Prendeu um samburá à curva do pescoço,
E buscou do rochedo os últimos rastilhos,
Temendo o grande mar que, em cada vaga, trilhos
Abre a cada momento. E cada vaga é um poço.
Mas uma vaga veio; e mais outras... Montanhas
De água vieram... E treme o seu peito de estranhas,
Profundas emoções! Ei-la, agora, rolando
Por esse mar revolto! (Ah! tristíssima cena!)
Com um trapo da saia ela, cheia de pena,
Diz aos filhos adeus, e estes choram, gritando!...
Quando eu para este mundo os meus olhos fechar,
Que os feche para o pó, num frio esquecimento.
Menos para o esplendor dos campos e do mar,
Para não ter, na morte, um grande sofrimento.
Eu desejo morrer numa noite de luar...
(E o luar para mim é um florescimento)
Aberta a porta irei, todo em ânsias, pelo ar,
Para a sublime paz azul do firmamento.
E o divino luar, que tanto eflúvio espalha,
Seja-me a branca e leve e sagrada mortalha;
E sejam minha unção os perfumes agrestes...
E se existir quem reze antífonas e salmos,
Quero lhe ouvir rezar sobre os meus sete-palmos,
Uma oração de amor, na ermida dos ciprestes!
I
Com a humilde ovelhinha entre os braços cativa,
Eis sorrindo, no altar, São João do deserto.
E o fundo de cristal da noite evocativa
Parece, no horizonte um neorama aberto...
Corre, vagas afora, uma encantada estiva
De bergantins... E um coração, a descoberto,
Em cada um a cantar, numa esperança viva...
Mas, ai do que tiver um rumo vago e incerto!
Pequeninos clarões, brancas luzes acesas,
Vão pelo mar afora, ao léu das correntezas...
É uma frota veleira, em busca de outras plagas.
Quem de tantos clarões contempla a quantidade,
Do alto do morro, sente uma grande ansiedade
De acompanhá-la sobre a ondulação das vagas.
II
Desci do alto do morro, e, célere, apressado,
Fui falar a Valésia, onde ela me esperava.
Ai! seio morno! Ai! seio em flor! Ai! seio amado!
E era um favo de mel a boca que eu beijava...
Fomos depois à praia... E a praia do povoado,
De alegres corações, toda repleta estava!
E o luar parecia um óleo derramado
Sobre o espelho do mar que os astros retratava.
Viam-se em plena esteira azul das vagas mansas
Uns barcos de papel... Ah! quantas esperanças,
Da praia virginal no amoroso recorte...
Calçadas de ardentia, as belas raparigas
Pareciam visões legendárias, antigas...
E os rapazes, então, riam da própria sorte.
III
E Valésia me disse: "O meu pequeno barco,
Feito de casca de laranja tangerina,
Vejo-o também no mar, pois ele se destina
A procurar na vida o mais seguro marco".
E o leve bergantim, de esvelta proa em arco,
Tendo por bujarrona uma luz cristalina,
Desceu e fez-se ao mar, nessa noite divina...
E aonde se achava o meu? Aonde estava o meu barco?
O meu, bem junto ao dela, ei-lo tranquilamente,
Pelas vagas afora... (E uma porção de gente,
Ao vê-lo assim, mordia indiscretas perguntas...)
Mas, todo o nosso olhar não via senão uma
Luz, muito distante... ao longe... além... na bruma...
Eram, no mesmo sonho, as nossas almas juntas!...
Olá gente da praia! Olá! gente da salga
Do peixe que reluz na areia!... Que folia
Anda pelo Pontal, e os altos morros galga,
E contorna, ao clarão do céu, a freguesia!...
Lá vem, caminho abaixo, e um burrico cavalga,
Todo bamboleante, o filho da Luzia.
Vem uns peixes comprar, para pô-los à malga,
Com rodas de cebola e salsa, ao fim do dia.
E o sol, nessa manhã inefável e bela,
Punha em toda a extensão das linhas da aquarela,
Fulgidíssimos tons de lumaréus sangrentos...
E, no tostão da praia, as vagas rumorosas,
Abriam-se de quando em quando, em grandes rosas,
Sob as asas sutis e céleres dos ventos.
Morta que está, no seu caixão de pano preto,
Vejo-lhe um lenço ao queixo; as mãos hirtas, cruzadas
Por sobre a rigidez desolante do peito,
Onde alguém desfolhara umas rosas nevadas.
Adormeceu, enfim, nesse funéreo leito,
Para não despertar! As pupilas, fechadas,
De azuis que eram, lhe são, agora, de outro jeito:
Muito tristes, assim como as monjas veladas...
Mas, parece que ri! Vejo-a rir! Vejo-a rindo!
E, então, não há de rir quem se encontra dormindo
Entre rosas, de pés voltados para a rua.
Prestes a viajar para o descanso eterno,
Fechadas, de uma vez, as pupilas ao inferno
Da fome cruel, da sede atroz, da carne nua?
Meu pai e minha mãe passam pelo caminho...
É uma touca de neve a cabecinha dela!
E a dele também é! Talvez não haja linho
Mais alvo numa fonte, enxaguado em barrela.
Lembra um vime a tremer, o corpo do velhinho
E o dela também treme... Ambos vão à capela
Do Senhor do Bonfim levar, devagarinho,
Um coração de massa e uma bonita vela.
Eles querem morrer tranquilos, sossegados;
Não querem ser, na paz da morte, despertados
Por dívida qualquer, que lhes ensombre a sorte.
Pois toda alma que deve anda de cruz aos ombros,
Nos abismos fatais, nos rústicos escombros
Do caminho da vida, ou no da própria morte.
Entram pela janela uma luz outoniça
E o perfume da relva orvalhada. Na sala,
Junto à porta, chilreia uma alegre carriça,
Cuja asa aberta, em leque, em plena luz estala.
A saúde no olhar da Anselma é luz mortiça,
E as suas lindas mãos já têm a cor da opala...
Mas, de formosa que é, no passeio ou na missa,
Não há moça com quem a gente compará-la.
Nesta hora em que ela está sentada ao pé da porta,
E uns xadrezes de crivo ao bastidor recorta,
Para o seu enxoval, mal percebe, no entanto,
O que Raquel nos diz, quando as cartas espalha:
"É mais uma a coser sua própria mortalha.
Para cedo dormir na paz do campo santo".
Cada vaga coleava a laia de serpente
De áurea escama, a luzir nos flancos do rochedo,
Na imensa praia triste! E o sol, topázio ardente,
Desenhava clarões nas folhas do arvoredo!
E eu corria num barco, afoito e sorridente:
Alma aberta, sem susto, afastada do medo;
Eis quando uma rajada, um látego veemente,
Me atira desse mar ao trágico segredo!
Mas só tu, meu amor, nessa hora, me amparaste,
No fundo desse mar e de lá me arrancaste...
Pois ali quanta gente à morte não se esquiva!
Pude então ver no teu olhar que tudo aquece
Quanto vale o ter fé nas asas de uma prece
Que assim me socorreu nessa luta aflitiva...
Todos os dias vivo em sonhos embriagado...
E mais vinho desejo a cada hora que chega.
Bebo o vinho do sol e bebo o imaculado
Vinho da luz que vem dos lagares de vega.
Mas o vinho melhor é o que bebo a teu lado.
Numa misteriosa e puríssima adega:
Bebo o teu olhar santíssimo e adorado;
Bebo-o cheio do amor que as almas puras rega.
E se a nuca te beijo avidamente e beijo
O teu seio macio, em cujos traços vejo
Um bonito casal de pombos amorosos,
Muito maior porção de um outro vinho trago,
Aos goles, lentamente, entre sonhos e afago,
Na taça aberta em flor dos teus lábios cheirosos.
Eia não quis ficar na casa onde morava,
Nessa casa que o estio enfeitava de flores,
Para não ver o mar que apenas lhe ofertava
Nostalgias cruéis, e lágrimas e dores...
Olhando a praia branca, ah! só nela encontrava
À luz flava do sol e aos fluídicos palores
Da lua, uma tristeza atroz, que a dominava
E dominava a flor dos seus lindos amores.
Como ficar ali, nessa casa isolada,
Se a sua alma não era a mesma, iluminada
Como dantes, ao tempo em que, nesse lugar,
Não existia a cruz tristíssima e sombria,
Que lhe marcava, agora, a cova onde dormia
O sono eterno, o seu amor, junto do mar?
Para a alma de Carlos de Faria
Carlos, como me vem à idéia o que sofreste,
Na praia da amargura aspérrima da vida,
Desde a quadra infantil, em que só mereceste
Como prova da sorte, a terra ressequida...
Carlos, vêm desde a infância, as urzes que colheste...
E, pela mocidade, em vez de embevecida
De sonhos, a tua alma andou (e não tremeste!)
Desvairada, a chorar, quase louca e perdida!
Eu me lembro de ti, Carlos, seguidamente,
Porque comigo andaste e em minh'alma somente
Vias, como num lago, os teus sonhos imersos...
Os mesmos que ainda vês, nas horas em que cismo
No nosso atormentado e sinistro batismo
De ânsias, pela tortura artística dos versos!
Ele vinha da pesca e ao sair da tormenta,
Que, em novelos, rolava em rumo da enseada,
Virou lá no Pontal. Envolveu-o a cinzenta
Gaze da cerração, sob a rija lestada.
Noite de ânsias e de ais, na procela agourenta
Da fria lua nova, uma lua nevada.
E o corpo do rapaz, já matéria visguenta,
Boiava, agora, sobre a vaga encapelada.
Mas, a praia que é sempre um venturoso abrigo,
Um seio sempre aberto, um grande seio amigo,
Ao vê-lo de roldão, disse ao mar que o trouxesse...
E uma vaga foi vindo... e mais uma.., e mais uma...
E estendeu-se um colchão alvíssimo, de espuma,
Sobre o qual o rapaz para sempre adormece...
Tarde de procissão da Virgem do Rosário.
E, como o sol faiscasse, a vila parecia
Todo o vivo esplendor de uma ourivesaria
De um preço nunca visto, excelso, extraordinário.
Rebimbalhava alegre, o velho campanário;
E o povo, em derredor da imagem de Maria,
Como contente estava, em perene alegria,
Sem se lembrar talvez do triste mundo vário.
Mas, nos olhos leais, puríssimos, da imagem,
Que violetas de dor! E que amarga linguagem
Na sua boca em flor, impregnada de aroma!
Chora a imagem porque, desde os passados anos,
A vila é sempre a mesma; e os corações humanos
Os mesmos, como outrora, há séculos, em Roma!
Cor de cimento, o mar! E o céu, cor de cimento!
Mar e céu, céu e mar se confundem na cor
De um túmulo fechado, onde houvesse um clamor
De almas a soluçar, de momento em momento.
E eu, que desejo vê-la, o meu soluço aumento;
E faz-se ave molhada, a minha própria dor,
Longe do manso olhar, do místico esplendor
Dos seus olhos que são todo o meu pensamento.
E o mar e o céu, assim, continuam fechados...
E a chuva torrencial não cessa, nos telhados,
De correr, de correr, lentas horas a fio.
E cai, continuamente, a chuva impiedosa,
Sem que uma vela surja, a balouçar-se, airosa,
Para me transportar quase morto de frio!
Minha querida, o nosso adorado filhinho
Está que já não pode os braços levantar!
E era tão forte como o inquieto cabritinho
Que assim que nasce pula e se alegra em pular...
Mas nem lhe serve, agora, o teu colo, de ninho,
Porque ele vive assim, a gritar... a gritar...
E como diminui! Como está tão magrinho!
Que roxos tons de dor possui no próprio olhar!
Certo, tomou-o a lua, ao ver-lhe as camisinhas
De rendas e cetim, e as fraldas, e as touquinhas...
Mas isso passará, se disseres ao luar
Dessa lua de abril, de tão suave brilho:
"O luar! O luar! vem ver este meu filho,
Que tão doente está, e mo ajuda a criar!"
Caminho escuro, aberto à sombra de espinheiros
Rugidores ao vento a uivar como um cachorro...
E o André tinha que vir dos engenhos no morro,
Deixando para trás, na safra, os companheiros.
E desceu, o rapaz, ora a passos ligeiros,
Ora com lentidão. Noite alta. Nem um jorro
De luz pela amplidão... E o André, metido o gorro
Ao sovaco direito, alou, galgando outeiros...
Mas afinal, parou, na encruzilhada, a custo...
E, para dominar o miserável, susto,
Começou a cantar, banhado de esperanças.
E, chegado que foi à casa, o pai lhe disse:
— Enquanto fui rapaz, nunca fiz a tolice
De acordar, desse jeito, os velhos e as crianças!
Olho o mar, olho o rio, olho o campo, olho a serra,
E olho espiritualmente a abóbada celeste...
Do que fulge no espaço e se irisa na terra
Em belezas reais, a minha alma se veste.
Vejo, sonhando assim, que o meu destino encerra
Amplos dias de luz doirada em campo agreste...
O medonho tropel das lutas não me aterra!
Duma tranquila paz meu sonho se reveste.
Homem, fico, de pé, na crença de que existe
Em tudo o olhar de um Deus Universal, que assiste
Ao amor e do amor as flâmulas desfralda;
Deus que faz duma estrela a excelsa maravilha
De um mundo, a refletir nas tuas águas, Ilha!
Como num misterioso espelho de esmeralda!
Praia amorosa, aquela. E, sob o céu doirado,
De um maio todo em flor, em carícias desfeito,
O Domingos dormia, afoito, sossegado,
Como se a praia fosse o seu macio leito.
Dormia o pescador, de um velho rancho ao lado,
E as suas rijas mãos, cruzadas sobre o peito,
Eram como as de quem, num leve sonho alado,
Reza cheio de fé profunda; satisfeito,
Chegara de arriar muitas braças de rede...
E enquanto a luz do sol não subisse à parede,
No aconchego da praia a dormir ficaria,
Descansando na areia, umas horas, à fresca,
Para voltar de novo ao trabalho da pesca,
Na conquista febril do pão de cada dia.
Faceira, de uma forma encantadora, a Rita
Ia comigo à praia e comigo cantava...
Para lhe ouvir, então, a voz clara e bonita
Quanta gente na praia, em cheio, se agrupava...
De tamancos de ourelo e vestido de chita,
E tranças sobre a espádua, e uma flor que brotava
Na linda boca, e aquele olhar de luz bendita,
Ela, a flor singular da praia, se julgava.
Ainda há quem tenha n'alma, esbatida em saudade,
A noite em que ela foi, à mansa claridade
Da lua, à pescaria, o peito unido ao meu...
Desprendidos, depois, de samburá às costas,
Corremos pela sombra, em contínuas apostas...
Mas quem ganhou, beijando-a, as apostas, fui eu.
A tarde desce, a tarde alastra-se, cortada
De gaivotas voando, em contínuos rumores...
As copas dos ipês são ouro velho, em flores;
E a água do rio lembra uma harpa dedilhada...
Um féretro aparece e sobe a larga estrada
Sobre a qual, num repente, um turbilhão de cores,
Vindas do ocaso em luz, bordado de esplendores,
Beija, de uma criança a face macerada.
E outras, chorando, vão lhe pegando nas alças
Do caixão de paninho azul, todas descalças
E rotas, sem chapéu; mas num silêncio enorme,
Porque lhes vai, ao lado, o austero mestre-escola,
De cuja alma, no entanto, uma prece se evola
Por aquele que junto à fria morte dorme.
Eis chegados da serra os dois filhos da Iria:
O mais velho, o Patrício, inda à larga cintura
Traz um grande punhal, e, veemente, murmura
Bruscas imprecações de trágica ironia.
O mais moço, porém, o André, da alma irradia
Uma serena paz de mística doçura.
E a velhinha ali está, numa choupana escura,
Onde não entra luar e a própria luz do dia
Mas, os olhos abrindo, ao clarão de uma vela,
A velhinha lhe diz "Filhos, ide à capela
Orar sempre por quem vos deu sérios conselhos..."
Nisso, sob um silêncio afetivo e sagrado,
Enquanto o André beijava as mãos do ser amado,
Quebrava o outro o punhal na curva dos joelhos.
Feliz quem pela fé, sem vacilar, caminha,
Seja-lhe o próprio mundo um deserto medonho.
Temos na fé sublime a luz do nosso sonho,
E nenhum coração diante dela definha...
Cresça, em redor de nós, a onda brava e daninha,
Do temeroso mar das dúvidas, tristonho,
E andaremos, na fé, de semblante risonho,
Como quem bebe o mosto aromado da vinha.
A fé em si resume a magia suprema
De nos levar, do anseio atroz da hora extrema
Da vida, a um porto aberto, às regiões mais calmas...
Esvelta caravela, a fé, abrindo os panos,
Através da amplidão dos largos oceanos,
Busca o consolo e a paz para todas as almas.
Como voltou feliz! Como voltou cantando
Como uma patativa! E ela, alegre, voltou
Da igreja do Rosário, onde esteve rezando,
E onde, à Nossa Senhora, uma vela entregou.
Como voltou feliz, da alma crente vazando
A graça que no altar de Maria encontrou,
No momento em que o seu coração meigo e brando,
Do rosário da crença as contas desfiou...
De volta ao velho rancho onde morava, disse,
Toda cheia de paz, de sorriso e meiguice:
"Filho, a tua saúde, há de, em breve, voltar",
E assim aconteceu. À Flava madrugada
Do outro dia, saía o Paulo, da enseada
Remansosa, serena, às redes no alto mar!
Oh! Vem comigo. A praia é toda uma festança
De almas cheias de sol, de almas simples e boas.
Olha, depois da chuva, o arco da aliança
Estendeu-se por sobre as ondas e as canoas.
Enche o teu coração da mais viva esperança;
Enche-o de fé robusta, e vem ouvir as loas
Dessa gente feliz, que, entre sonhos, alcança
Tudo, tudo na terra, e ruma como as proas
Dos altos bergantins, ao grande mar da vida...
Vem ter comigo aqui, ó alma estremecida,
Que hás de me conduzir à sombra do cipreste...
Passaremos, então, de mãos dadas, Maria,
Por debaixo desse arco-azul que, na harmonia
Desta tarde, recorda o Caminho Celeste.
A luz do sol recorda uma teia de aranhas...
Tessituras de prata estendem-se às florentes
Ilhas da minha terra... E o mar se enche de estranhas
Asas brancas, de garça, a esvoaçar, trementes...
Do lugar onde estou, vejo ao longe as gadanhas
Ceifando a seara e vejo os riachos dormentes!
Maria, como é bela a vida entre montanhas,
Nestes vales em flor, junto às águas correntes!
E maio como está com fartura nas granjas!
Cheira a farinha a estrada e doiram-se as laranjas;
Aves descem da mata, em festivo alvoroço...
Mas, a vida, na praia é, para mim, mais bela!
Repara como vai galhardamente a vela
Daquela lancha, para a pesca no mar-grosso!
Jaz de todo esquecido o filho da Constância,
Que há três anos morreu nas ondas. Linda flor!
Dos tanoeiros era a maior esperança,
E seria, por certo, o melhor pescador.
Estivesse a baía azul, toda bonança,
Ou bravia estivesse, ele, cheio de ardor,
Embora fosse ainda uma simples criança,
Já sabia enxaguar a vela, sem pavor.
Mas como? Então ninguém se lembrará, ao menos
Um momento sequer, dos olhares serenos,
Daquele que enfrentava a fúria dos quadrantes?
Só aquela velhinha, entretanto, soluça,
E parece que até na praia se debruça,
Quando rolam na areia as ondas murmurantes!
Rancho aberto, na praia. O clarão da alvorada
Dá-lhe às telhas uns tons levemente sombrios...
E já à porta está uma velha assentada,
Sem temer da invernia os bruscos arrepios.
Cose a rede que fora, à noite, arrebentada
Nas pedras onde o mar é todo corrupios.
E o marido descansa a alma fatigada,
E o corpo cujos pés estão murchos e frios.
O silêncio, em redor, tem eflúvios de prece...
E a velha que ali cose, uma santa parece;
E o homem lembra a vida inefável de um santo
E pelo dia afora e quando chega a noite,
E renasce a manhã, não há mal que os açoite,
E os faça derramar uma gota de pranto.
Como vivemos bem, ambos tranquilamente,
No aconchego da praia em curva! Que poesia!
Desde a aurora ao sol posto, o coração da gente
Estremece, palpita, em constante alegria!
Descalços, pés na areia, a tarrafa pendente
Dos nossos braços, eis-nos na pescaria...
E a tainha, na malha, é prata refulgente,
Com a qual temos nós a abastança do dia.
E à tarde, então? À tarde ainda a gente trabalha
Para ter, à merenda, uma linda toalha,
E nela um caldo fresco, à luz de suaves brilhos.
E quando a noite desce e perfumes derrama,
Rezamos a Jesus, ajoelhados na cama,
E abençoamos, sorrindo, o rol dos nossos filhos.
Eis minh'alma, Valésia, ajoelhada a teu lado
Numa contemplação quase religiosa.
Bebe minh'alma todo o aroma imaculado
Da tua boca igual ao cálice da rosa.
Dos teus olhos contempla o clarão abençoado;
E essa cabeça altiva, esvelta e carinhosa;
E nos teus seios sente a frescura de um prado,
E beija as tuas mãos de opala primorosa.
Ora, tudo isso cabe em minh'alma; e mais tudo
Que no céu resplandece, em mantos de veludo;
E no mar, e no campo, e nas altas montanhas...
E minh'alma palpita, anseia, vibra e canta,
O meu amor! O meu ideal! O minha santa!
Quando por esta praia afora me acompanhas.
Volto da solidão dos campos e da serra,
Volto para te ver e para te escutar...
Meu pobre coração era um monte de terra,
Sem lampejos de sol ou afagos de luar.
Hoje um outro ideal toda a minh'alma encerra.
Bate o meu coração, de outro modo, a cantar...
É que te vejo e escuto, e nada então me aterra:
Durmo e acordo feliz junto de ti, ó Mar!
Perfeitamente sei, agora, que a tortura,
Que a tristeza, que o fel, e talvez a loucura.
Que me vinham do sonho os roseirais matar,
Era porque ninguém compreender poderia,
Como tu, meu amigo, a ânsia que me envolvia...
Pois só tu tens uma ânsia igual à minha, ó Mar!
Ó minha para sempre amada feiticeira,
Tem o aroma do trevo o vale dos teus seios!
E o teu formoso olhar é a luz numa lareira,
Que a alegria abençoa, em leves devaneios.
E, para me cobrir do leito a cabeceira,
Busco eu o teu cabelo, áurea noite de enleios,
Que rescende, querida, à flor da laranjeira,
E me desperta na alma emotivos anseios...
Faço da vida um sonho, o mais belo, o mais lindo;
E, como aos poucos vou o teu corpo sentindo,
Da volúpia do amor nos estremecimentos,
Nesse sonho feliz, de amparos benfazejos,
Subo e sobes também pelo rastro que os beijos
Vão deixando no azul dos largos firmamentos!
Muito velhinho, o tio Antônio já nem pode
Caminhar como há três anos, pelo caminho...
Uma doença atroz, inclemente, lhe acode
À perna esquerda e ao braço. Ai! pobre do velhinho!
Mas, quando a tarde é calma, uma idéia o sacode,
Dá-lhe o rubro vigor de uma taça de vinho.
E ele, então, pachorrento, a rir, repete: "Amode
Que estou melhor". E desce à praia, num carrinho.
Mas o que vai fazer, na praia? Quem soubesse!
Ora, imaginem só! Logo que a tarde desce,
O tio Antônio vai rezar as ladainhas
Que jamais esqueceu, em sua mocidade,
Quando, numa baleeira, à hora da Trindade,
Saía para o mar, à pesca das tainhas...
I
"Ana, o que hei de fazer para fugir ao medo
Que me sacode o dia inteiro, a noite inteira,
Dentro de minha casa, ou à sombra do arvoredo,
E mesmo à luz do sol cantando na lareira?"
"Ouço à concha do ouvido a toada de um segredo
Horrível, como a duma alma de feiticeira...
Talvez a voz da morte, a chamar-me ao degredo
Da cova, nesse chão, sem luz meiga e fagueira":
"Ora, deves beijar, Maria, os pés gelados
De um defunto qualquer, que eles te levarão
Todo o medo brutal... e viverás contente..."
E, três meses depois, entre prantos magoados,
De joelhos, Maria, ao lado de um caixão,
Beijava os pés do noivo, alucinadamente.
II
Agora, vejam como a rapariga passa
Tão bem, tão satisfeita, alegre, toda risos,
Com o formoso olhar resplendente de graça,
E a boca a tilintar como os mais leves guizos.
Nenhum medo, nenhum, a incomoda, a embaraça;
E os dois seios lhe são delicados narcisos
De seiva virginal. Com modos de ricaça,
Vive num campo em flor, sem passos indecisos...
É que vive com ela e ela a sente, extremosa,
A alma feita clarão, dulcíssima e piedosa
Daquele cujos pés beijara e que hoje em dia
Procura lhe dizer as cousas mais bonitas,
Encontradas no Além, nas plagas infinitas,
Na eterna floração dos Campos da Alegria.
Dobra o sino da ermida, e a sua voz plangente
Erra, saudosamente, ao longo das quebradas.
Vê-se, de lado a lado, uma porção de gente.
E as aves, pelo mar, são asas assustadas.
Quem morreria ali? Naquele rancho, rente
Ao rochedo, onde estão as canoas puxadas,
Acaba de morrer o velhinho Clemente,
O melhor pescador desde as eras passadas.
E, ao morrer, disse à esposa, à fiel companheira,
Que se achava chorando à sua cabeceira:
"Como me sinto bem depois de confessado!"
Confessara-se o velho (Alma límpida, franca)
Ao mar, que de onda em onda, em plena praia branca,
Orava ao sol, orava ao céu, sempre ajoelhado.
O pobre coração da humanidade canta
E ao mesmo tempo chora. E, quando canta, diz:
— Quem canta, neste mundo, os seus males espanta,
Para bem parecer um coração feliz.
E, no anseio letal que, aos poucos, o alquebranta,
O pobre coração ainda de novo diz:
— Quem canta, neste mundo, os seus males espanta.
Mas não há coração que não seja infeliz...
Prometeu da legenda, águias negras, em bando,
Em derredor de si, vai sempre contemplando.
E, muitas vezes, ri, para não soluçar...
Mas, sem pausa, soluça, ao fundo de um segredo,
Como por sobre a praia, ou de encontro ao rochedo
Soluça o coração tristíssimo do mar...
Como fosse distante o Campo Santo, os filhos
Da Maria da Praia acharam que deviam
Jungir ao rude carro a junta de novilhos;
E brejeiros, sorrindo, os quatro repetiam:
"Que fardo tão pesado!" E que medonhos trilhos,
Eles e os animais atravessar teriam!
Mas antes que da noite os puríssimos brilhos
Viessem, eles, por certo, a vila alcançariam.
E no carro partiu, pelos altos barrancos
Do alto morro vermelho, aos fatais solavancos
Do rodado que abria os mais fundos rastilhos.
Nesse carro partiu, pela vez derradeira,
Aquela que levara a triste vida inteira
A lutar e a rezar por esses quatro filhos!
Mar cavado, na costa... As ondas, murmurantes,
Debruçam-se na praia, açoitadas do vento.
Passa, por toda a gente, um brusco pensamento:
Não se fossem perder barcos e tripulantes.
Os barcos? Aonde irão parar esses errantes
Barcos de pescaria? Aonde irão no momento
Em que mais forte esteja esse mar agourento,
Caso desçam da noite as sombras torturantes?
Mas o vento amainou, já não sopra tão forte...
E os barcos, cada qual, num majestoso porte,
Correm, garbosamente, alvas velas escravas...
E as mulheres, na praia, agora, em altos gritos,
Vão louvando a Jesus, ao Senhor dos Aflitos,
Que, do azeite da paz cobriu as ondas bravas!
A escuna fez-se ao mar, ao clarão das seis horas
De uma tarde de abril. Que o vento desejado
A conduza e lhe dê fulgurantes auroras,
Dias cheios de sol, noites de luar doirado!
Mas, o que vejo aqui? Aninhas, por que choras?
Que mágoa te consome o peito apaixonado?
Teu noivo não falou da choupana onde moras,
Não disse que seria ali o teu noivado?
Há uma idéia, porém, tremeluzindo pela
Alma desiludida e triste como a estrela
Que primeiro, da noite, entre as sombras brilhou...
E, com efeito, à luz tíbia da madrugada,
A escuna Flor do Mar era despedaçada!
E o rapaz nem sequer, morto, à praia voltou!
Vejo, seguidamente, esplêndidas paisagens
De praias, onde o vento antífonas entoa...
E, num leve baloiço, ao léu, numa canoa,
Abro o peito e os pulmões ao frescor das aragens.
Pelas manhãs de maio alegram-se as viagens,
Quer haja luz fremente ou poeira garoa.
Florescem de cristal as praias da Lagoa,
E elas me dão à vida as mais ricas miragens.
Minha alma, por ali, de alvíssaras se alaga;
Reclina-se no leito amoroso da vaga,
Sentindo-lhe de perto o calor dos enleios...
E os cômoros que o vento eternamente abala.
Esses seios de praias, alvíssimos, de opala,
Esses seios me dão saudades dos teus seios...
Amortalhada
Para a minha filha Zarina
Ela nasceu em julho. E que frio fazia!
Lá fora, o vento sul as vagas encrespava...
Mas, a nossa filhinha, entre painas dormia
Tranquilamente, assim... e, sorrindo, sonhava.
E com quem nossa filha amada sonharia?
Sabe-o Deus, pois alguém das nuvens a espreitava,
Enquanto o vento sul lá por fora bramia,
E o nosso coração no seu berço cantava.
Mas seis meses, depois, por uma linda tarde
Em que o querido sol com mais flamâncias arde,
Dos olhos de Zarina os místicos fulgores
Fugiram para sempre... E, agora, ei-la num leito,
De espada ao coração e mãos em cruz no peito,
A lembrar, nossa filha, a Senhora das Dores!
Erra, de praia em praia, entre as frias neblinas
Das noites hibernais, vulto desconhecido,
Cujas passadas têm, pelas areias finas,
Um brusco, desolante e macabro ruído.
Treme a gente que o vê, alma errando em ruínas,
Em convulsões de dor, num contínuo gemido,
Blasfemando, feroz, às estrelas divinas,
E às orações do amor fechando o próprio ouvido.
Pensam ser o José, que, nas praias, em fora,
Jamais teve uma fé, e desespera, agora,
Procurando a mulher que, certa vez, ao luar,
Numa violência atroz, horrivelmente crua,
Mais branco que o cutelo impassível da lua,
Atirara, enciumado, aos segredos do mar.
Que belo estava o céu, na tarde imaculada
Que o mês de maio abria, entre rútilas franjas!
E todo o laranjal, doirado de laranjas.
E esses carros de bois chiando pela estrada!
Que faina trabalhosa, em plena farinhada,
Na abastança da sebe e das extensas granjas!
E tu, ó minha flor, que tão meiga te arranjas,
Como estavas bonita e toda perfumada!
Nessa tarde não sei que vislumbres de vida
Eu senti ao teu lado, ó Valésia querida,
Principalmente quando as tuas mãos nervosas
Se aninharam, sutis, nas minhas mãos, tremendo,
Durante o tempo em que nos quedamos, relendo
Do livro do passado as páginas saudosas!
Eu te quero na curva ansiante dos meus braços,
Junto do coração, e que possas ouvi-lo,
Quer no momento em que ele é pássaro tranquilo,
Ou um alvionador curvado de cansaços...
Vacilantes, embora, eu já tenha os meus passos,
Vacilante não sinto o peito, para uni-lo
Ao teu peito, no qual vive o amor, no sigilo
Da permanente união, através dos espaços.
Viveremos assim, nesta nesga de terra,
Neste humilde lugar que as carícias encerra,
Sem neblinas de inverno e anemias de outono.
E para longe, então, ficará, toda a sorte
De misérias do mundo... E teremos, na morte:
Para o espírito, o sonho, e para o corpo, o sono.
O oceano é um templo. Reza o sino da capela,
Rolando a sua voz, entre as serras de além...
E a lua de cristal, qual turíbulo, vem;
Surge para incensar de frente o Cambirela.
E a noite desce, numa encantadora umbela
Salpicada de prata. A noite é de Belém,
Em que não houve sobre a terra imensa quem
Não rezasse ao fitar a misteriosa Estrela...
Eu das montanhas faço os altares sagrados
Aos quais sobem de vez os frementes cuidados
Da minha alma emotiva, onde as ânsias se espalham...
E de onde estou rezando, humilde como um monge,
Ouço rezar o vento, e o mar, que reza longe,
Nesta hora em que na praia as ondas se ajoelham...
Débil como se fosse a haste verde de um lírio,
O seu corpo inspirava a maior compaixão.
Era-lhe neve o rosto, e o triste olhar um círio
Que estivesse a chorar ao lado de um caixão.
E a tosse, pela tarde? Ah! que horrível martírio!
Quem teria outro igual, dentro de uma aflição?
Sua cabeça ansiava em constante delírio,
E, muitas vezes, via almas em procissão...
Mas, três meses depois, encontrei-a na estrada:
— Bom dia, minha flor! Minha rosa orvalhada!
De tão gorda que estás, já nem te serve a saia!
Rapariga, por que tão depressa saraste?
— Sarei por que, num dia, aflito, me mandaste
Morar junto do mar, nas carícias da praia...
Suzana recordava uma garça alvadia,
Das que vêm, ao sol posto, espelhar-se no mar,
E ficam tristemente a cismar... a cismar,
Dentro da mais pesada e atroz melancolia.
Através da vidraça eu quantas vezes via
A cera do seu rosto! E o seu saudoso olhar
Tinha os velados tons do marfim de luar,
Quando num rio a lua adormece, doentia...
E as suas brancas mãos, tão brancas, mãos de neve,
E o veludo do seu cabelo ondeante e leve.
E aquela boca em febre, ardendo como o estio?
Isso tudo me vem à ideia, lentamente,
Se contemplo uma garça, assim, na praia albente,
Ou revejo luar sobre as águas dum rio...
Neste lugar, a gente esquece quase o mundo.
E sente o coração num êxtase bendito!
Fitando o largo mar que se arrepela, aflito.
A alma foge à tristeza e ao tormento profundo!
No mar, por mais austero e por mais iracundo,
Ou calmo como um lago onde não haja um grito,
Toda a nossa alma sente um sonho de infinito.
Sonho cheio de luz e dessa luz fecundo.
Brama a lestada ou corra o azeite da bonança,
As velas sobre o mar são todas de esperança...
E eu até aos faróis atentamente as sigo!
Vão, assim, pelo azul de todas as distâncias,
Como se vão pelo ar as nossas pobres ânsias.
Para os faróis do céu, à procura de abrigo!
Desce, desce comigo, à praia carinhosa.
Vem, que o luar é todo um manto de cetim.
Gozaremos, os dois, a paz maravilhosa
Desta praia que até parece não ter fim.
E que nunca se acabe a noite venturosa,
Dentro da qual serás feliz, junto de mim
Se a Gata Borralheira, um dia, foi ditosa,
Ditosa aqui serás, num leito de marfim.
Que a noite não se acabe, a noite não se acabe.
E eu sei porque razão e a tua alma bem sabe...
Da encantadora paz de uma praia tão bela,
Seguiremos, depois, em demanda da sorte,
Para além... para além... para os faróis da morte.
Do sonho na abençoada e esvelta Caravela.
Por um dia de abril, fez-se ao largo um patacho,
Velas brancas ao vento, às propícias rajadas...
E o sol, entre rubis, no ocaso, como um facho,
Entornava clarões nas amplas esplanadas.
Ali brilhava o mar; aqui brilhava o riacho;
E o poeirento areal das compridas estradas...
E a esmeralda da relva a florescer, por baixo
Das cercas, que primor! Mas, nas almas caladas,
De dois peitos que o amor unira, que tristeza!
Na que partira, a luz da própria natureza
Tinha uns laivos de dor e de desolamento...
E então, da que ficara ereta, a prumo, sobre
A pedra do pontal, a voz lembrava um dobre
De um sino no torreão sombrio de um convento...
Ainda me lembro bem da loura Rosalina,
Que era, deste lugar, a linda flor agreste.
Sua boca lembrava a romã purpurina,
E os seus olhos o azul da abóbada celeste.
Mas, a morte a levou. E a minha alegre sina
Transfigurada foi em noite de cipreste.
E vem dessa desgraça a dor que me amofina,
E este luto de que minh'alma se reveste.
Hoje, no entanto, vejo entre gozos de amores,
Outra boca, assim, e outros iguais fulgores
De olhar... Mas que mistério encontro neste povo
Que tão crente me diz maravilhosas cousas!
E passo a compreender que, da sombra das lousas,
As almas podem vir para se unir de novo...
Recordar é viver... E a mim se me parece
Ver, através do tempo, esse rancho de pinho
Onde, à sesta, eu dormia, o peito em desalinho.
Depois de erguer ao céu os olhos e uma prece.
Nada me despertava, embora, rude, houvesse
O estridente clamor do mar em rodamoinho.
Nem ouvia passar as águas do moinho,
Pois eu dormia bem, como quem tudo esquece.
Eu dormia em teu colo, amor querido! Quantas,
Quantas recordações! E à noite, às grandes mantas
Das tainhas corria, agilmente a batê-las...
E ninguém mais do que eu agilmente as batia,
Porque, em tudo, sempre, a minha alma te via,
Sob o branco silêncio eterno das estrelas!
Setembro. O céu esbate uns violáceos fulgores
Através dos franjais das nuvens... Tons magoados,
De ametista e berilo, estendem-se aos gramados,
Onde os lindos ipês se engrinaldam de flores.
Fujo ao profundo anseio emocional das cores
Do campo e desço, alegre, a passos apressados,
Aos regaços da praia... (Ah! lugares sagrados!)
Neles vejo Jesus junto aos seus pescadores.
E me atiro da areia aos cheirosos regaços,
E aí descanso o peito aberto de cansaços...
E quando a noite vem, eu passo, uma por uma,
A contemplar, saudoso, emocionado, as ondas
Do largo mar, nas quais há também ricas mondas
De alvo trigo do luar, sobre granjas de espuma.
A gente sofre assim e vem depois a morte,
E triste nos conduz no seu carro funéreo,
Até o negro chão do augúrio cemitério,
Onde em mágoas soluçam o vento sul e o norte.
A gente sofre assim, nessa medonha sorte
Que este mundo amortalha em profundo mistério,
Sob a fria mudez da curva azul do etéreo;
E não há outro ser que mais ânsias suporte...
Antes, porém, que chegue a morte, ó minha amada,
Deixa que eu sonhe e faça uns versos na abençoada
Ermida do teu peito em flor, em cujo altar
A tua alma recorda a estrela da alvorada
Quando sobe, gloriosa, a montanha escarpada
Daquele campo de onde a gente avista o mar.
De onde vieste, assim medrosa, assim tremendo,
Duvidando talvez do amor que em mim se inflama?
No entanto, vou nos teus negros olhos revendo
A ventura de quem há tantos anos ama.
Sou um grande faquir; vivo em teus olhos lendo...
Sinto nas tuas mãos a tua vida em chama.
Olha, vieste do Além; vieste aflita, descendo,
Pois o teu corpo fora, em outros tempos, lama...
Fazes parte da eterna e sublime falange
Dos seres imortais, que o céu sereno abrange.
Percorreste, comigo, outrora essas alturas...
Por isso é que, de novo, aqui nos encontramos,
Sem sabermos, talvez, o quanto nos beijamos
Sob as asas do amor ou de negras torturas!
Foi mesmo aqui. E o mar, como neste momento,
Lembrava a quietação esplêndida de um lago,
Sem um leve queixume, um suspiro, um lamento,
Manso como se fosse o coração de um mago.
Maio chegara. O céu era um florescimento!
Que rosais de cristal na estrada de Santiago!
Que divino luar e que deslumbramento!
Que lembranças de amor eu dessa noite trago!...
Nós dois, eu e mais tu, pela praia sozinhos...
Nisso uma garça branca abre o voo de arminhos,
E atravessa do luar a fluídica escumilha.
Estremece-te o peito e o meu peito estremece...
— Maria, nesse azul que, em maio, assim floresce,
Será garça também a alma de nossa filha?
Cobriram-se de crepe as montanhas distantes...
É o pampeiro que chega, em céleres rajadas...
Todas as velas são por ele arrebatadas,
E há, pela praia afora, almas febricitantes.
As nuvens colossais, com riscos ondulantes
De brasa viva, são rudemente abaladas...
Correm, pelo ar sombrio, as aves, assustadas;
Uivam nas praias os cães e mugem bois, errantes...
Um momento depois, para as bandas de leste,
De uma faixa escarlate o alto céu se reveste;
E largas franjas de ouro erram pelos penhascos...
Faz-se um belo clarão... Mas o medo é dobrado:
Vai pelo mar convulso um lanchão, naufragado,
E outros mostram, na praia, o contorno dos cascos.
Graças ao céu! Voltei a nossa velha casa,
Que é o ninho encantador dos nossos lindos filhos!
Maria, andei com frio e hoje o calor me abrasa;
Pelas trevas andei e hoje só vejo brilhos...
Sinto o calor que vem do seio dessa casa;
E os brilhos que ora vejo, esses vieram dos trilhos
Da mais robusta fé que as dúvidas arrasa,
E das dúvidas quebra os mais fortes cadilhos!
E essa que ora me abraça, a velha Catarina,
Foi quem pôde contar, ao certo, a minha sina,
Quando me disse que eu bem cedo voltaria.
E voltei, lindo amor, porque de onde eu me achava,
Todo o meu coração tristemente escutava
O relógio da mágoa a bater, noite e dia!
"Filho, não partas, olha o verde Cambirela.
Cinge-o urna faixa branca, o sinal dos pampeiros".
Mas o rapaz partiu, numa canoa, à vela,
Por se julgar o mais astuto dos tanoeiros.
E uns momentos depois, toda a vasta aquarela
De recortes do mar, de pedras e salgueiros,
Com leves tons azuis numa tinta amarela,
Era riscada a fogo e cheia de aguaceiros!
E junto dos Guarás, lá se foi a canoa
Por água abaixo e quilha à mostra, ao léu, à toa:
E lá se foi, na morte, o rapaz resoluto.
E agora, nesta praia em curva, em pleno maio,
Sob esta tempestade, ao flamejar do raio,
Eis outro coração de mãe também de luto!
Quem recorda é feliz, principalmente quando
Recorda o amor, recorda o sonho e a mocidade,
E vê tudo voltar, vê de novo voltando
Tudo isso, em plena luz, em plena claridade!
E eu me recordo bem de tudo... Na verdade,
Nessa recordação pareço estar olhando
A praia branca, o campo verde e a liberdade
Dos nossos corações que viviam se amando...
E recordo, Valésia, o teu primeiro beijo,
O teu primeiro abraço; e o primeiro desejo
De seres minha só, nos enlaces da sorte...
E veio desse alegre e bendito momento,
De todos o maior e firme juramento,
Que nos prende na vida e até na própria morte.
Para a alma de minha Mãe
Cheguei. Eis-me num astro. E vim para matar
Essa saudade, mãe, que em minh'alma deixaste!
Todo o meu coração, do dia em que voaste,
Guarda ainda o teu brando e soluçante olhar.
Cheguei. Como é sublime e claro este lugar
Que, entre festivos sóis, para sempre, buscaste!
Tiveste, enfim, da Fé o céu que procuraste.
Pudeste, enfim, de Deus no manto repousar.
De onde estou vejo a Terra. É uma pequena bola.
Um inseto talvez numa tulipa... E rola...
Lembra urna gota d'água. E pequenina, assim.
E a Terra me parece uma lágrima triste,
Solta no espaço, igual a que em minh'alma existe,
Para rolar também nesse espaço sem fim!
Noivos. Que lindo par, por todos invejado!
Ela, de cor trigueira, ele da mesma cor...
O olhar de Hortência tinha um resplendor sagrado,
E o de Paulo possuía um igual resplendor...
E se casaram sob um céu imaculado
Como o cálice de uma encantadora flor!
Houve uma grande festa em todo o povoado:
Cantigas à porfia e lembranças de amor.
E, à noite, na enseada, à luz clara dos astros,
Dos barcos a floresta ondulante dos mastros
Enchera-se, também, dessa imensa alegria...
Mas, uns dias depois, (ó triste realidade!)
Hortência era, na praia, a visão da saudade!
O corpo do rapaz em que praia estaria?
Tua casa recorda um ninho, numa estrada
Que o sol doira, através das árvores frondosas
Chilreia no beiral da telha a passarada,
E lhe sobe à varanda o perfume das rosas.
E a tua esposa casta, alma divinizada,
Ao surgir das manhãs, com orações piedosas,
Abençoa-te a vida aflita e trabalhada
No mar, ao sol, à chuva e em noites tormentosas.
Essa casa possui o encanto da beleza...
Rescendem seus lençóis à canela, e, na mesa.
Há sempre trigo louro e lenha no fogão.
Limpidamente, a vida, assim, se purifica.
E, para enriquecê-la, o amor cantando fica
Junto de cada sonho e cada coração.
O céu tomara a cor magoada das violetas...
Era de tarde. A luz do sol, entre as folhagens
Das árvores tremia... Em bando, as borboletas
Punham na água do rio esplêndidas miragens.
E o mar tranquilo estava, abrindo-se em palhetas
De esmeraldas e prata, ao pincel das aragens.
Tinham todo o rumor de alegres pandeiretas
As gaivotas pelo ar, prontas para as viagens.
A praia parecia uma lua em minguante,
Enorme, colossal, de ponta a ponta. Adiante,
Sobre as telhas de um rancho, um canário cantava.
E Maria me disse, à porta, sorridente:
— Vinhas tão longe ainda e eu te cuidava rente...
A tua alma a cantar perto de mim se achava!
José não vinha a casa há muito tempo. Agora,
Abraça a meiga esposa e os filhos. Os vizinhos,
Para vê-lo chegar, desde o raiar da aurora,
Cruzavam toda a praia e os extensos caminhos.
Quadra em que o pescador, venturoso, melhora
De mesa, quando o mar é coberto dos linhos
Das neblinas sutis, que se vão mar afora,
Tocadas do terral de inefáveis carinhos...
E, quando veio a noite, em chamalotes de ouro,
Santo Antônio de Pádua e o seu Menino Louro,
Pareciam sorrir, num quadro, na parede,
Como toda essa gente amiga, sempre a mesma,
Sorria ao recordar a pesca na quaresma,
Que é a que mais produz nas braçadas da rede...
Que temporal! O céu, ainda há pouco tão lindo
Como um lírio, tornou-se, agora, num momento,
Da tristíssima cor pesada do cimento,
E parece que vai por sobre o mar caindo.
Aves voam em tropel, asas bruscas abrindo,
A grasnar loucamente. E as rajadas do vento
Arrastam, de roldão, num soluço agourento,
Toda a massa do mar, que se enrosca, bramindo...
No entanto, uma canoa aparece no escuro,
Vela rinzada ao meio, e à popa traz, seguro
Na fé que transfigura o próprio vento e o mar,
Quem, nesta tarde, quando o céu surgir lavado,
Na capela estará num festivo noivado,
Com Teresa que é a flor mais linda do lugar.
Noite de Santo Antônio. Ao redor da fogueira
Que se alastra no chão, em meio do terraço,
As netas da Merença andam de braço em braço.
Cada qual mais feliz e mais alviçareira.
Rosa dá tentações! Na sua cor trigueira
A gente vê um jambo ardendo no mormaço.
Faz o pobre do Henrique estourar de cansaço,
Pois caminhou, só para vê-la, a tarde inteira.
E Amélia, para o Chico, é prenda sedutora:
Um sol primaveril a epiderme lhe doura:
E a sua boca é a flor-da-chaga, no verão.
Mas, para mim, das três, Vicência é a mais bonita!
Quanta graça possui, de vestido de chita,
E cabelos da cor da casca do pinhão!
Quando o Pedro partiu para os mares do norte,
Já toda a gente via uma grande desdita...
Lamentava-se, então, profundamente, a sorte
Da mulher do barqueiro... e que mulher bonita!
"Talvez sua alma tanta angústia não suporte!
Pois a separação sempre nos precipita
Numa saudade amarga, igual a que na morte
Tanto nos acabrunha e tanto nos agita".
E partiu o rapaz, depois de alguns abraços
E alguns beijos de fogo, e promessas de laços
De fitas a Jesus, se bem cedo voltasse...
Mas não voltou. Porém a mulher o procura,
Quer brilhe a pino o sol, quer caia a noite escura,
E lhe são um rosário as lágrimas na face.
Para ter sobre a mesa uma branca toalha
De linho e fresco pão, que é necessário à vida,
Cedo, à hora em que o céu, serenamente, orvalha
O campo, eu começava a dolorosa lida...
Nesta terra ninguém, que, entre espinhos, trabalha,
Sentirá, ao correr uma estrada comprida,
Onde a desolação, tristíssima, se espalha,
O que eu, então, senti na estrada indefinida.
Mas, ó trabalho rude, ao pé das penedias!
Ó calor de abrasar! E vós, chuvas doentias!
E vós, noites de inverno, em céus negros, estranhos!
Não mais éreis senão umas cousas de nada
Para quem tinha toda a alma iluminada
Pela bendita luz de dois olhos castanhos!
Recordando o passado, eu creio que revejo
A nossa moradia, à beira de um riacho
Que ainda corre sereno e límpido por baixo
De ramadas em flor, das brisas ao bafejo.
Abro as portas ao mar e ao belo e benfazejo
Campo cheio de sol... Pego depois o sacho...
E, à noite, vou à pesca, à luz tíbia de um facho;
E, no engenho, no morro, às vezes furto um beijo.
Recordando, ainda sinto em teu lindo pescoço
O saudoso frescor das ondas do mar-grosso;
E em teus seios em flor o perfume dos lírios...
E parece que escuto os delicados trenos
Da tua boca, e vejo os teus olhos serenos
Concentrados nos meus tristíssimos martírios.
De pé sobre o paneiro, alma franca e contente,
Cabelo solto ao vento, ei-lo a caminho da Ilha.
Desce, feérica, a luz do sol no grande poente.
E, sob o vento sul, o mar treme e fervilha.
E a leve embarcação, por sobre o mar, tremente,
Mostra de vaga em vaga, o largo bojo e a quilha.
"Não devemos temer". É o que diz toda a gente
Em cujo peito a fé junto à esperança brilha...
O Armando nunca teve arrepios de medo.
O valente rapaz bem parece um rochedo
Batido pelo mar... porém muito mais forte.
Assim pudesses tu, meu coração tristonho,
Francamente correr rumo às ilhas do sonho,
Quer nos mares da vida ou nos mares da morte!
Quem sonha dessa forma, olhos semi-cerrados
Como as ogivas de um castelo à beira-mar,
Certamente revive os seus dias passados,
E deixa-os docemente entre gozos passar...
E tu sonhas, assim... Passam por ti doirados
Dias de sol faiscante e noites de luar;
E os mares, em bonança ou então convulsionados.
Todos eles te dão um contínuo sonhar...
Mas, o sonho melhor é esse que ora a tua
Alma antiga revive à luz meiga da lua,
Recordada de que, ó velho pescador.
Camarada fiel, rotineiro das ondas,
Muitas vezes cantaste, em vigílias e rondas,
Nesse teu violão, as "Tiranas do Amor!"
Quando, na primavera, os laranjais floriam,
E ouvia-se o rumor dos ninhos nas estradas,
Os pássaros joviais, cantando, apareciam,
Se nos viam, na praia, almas entrelaçadas!
E os pássaros, dos teus olhos bem me diziam
Palavra de mistério... E nas asas iriadas
Da tua alma gentil, estes meus olhos viam
O esplendor das manhãs e das tardes doiradas.
Quem, volvendo ao passado, à virgem mocidade,
Não terá, como eu tenho, uma grande saudade
Pela vida de dois corações tão felizes?
E és tu que, embora morta, andas seguidamente
Desse tempo a rever a quadra florescente,
E do trigal do amor a regar as raízes...
A avozinha lá vai pela Praia do Meio,
Sacudindo a cabeça e as ancas sacudindo.
E sacode, por certo, o coração num seio
Ainda muito feliz, ainda em flores se abrindo...
Não receia do corpo o brusco bamboleio,
Vá, embora, de quando em vez ao chão caindo.
É que a domina um nobre e vigoroso anseio,
Apesar da cabeça em neve, reluzindo...
E quando chega a casa e a um canto o xale arruma,
Numa satisfação que a encanta, comovida,
(E nem outra talvez maior glória resuma)
A avozinha depara, alegre e enternecida,
Com dois netos a rir, ambos à espera duma
Bênção de amor, bênção feliz, bênção de vida!
Para o espírito de Emiliano Pernetta
"Queres subir e ver de perto os mundos de ouro
Principalmente aquele em que me vejo? Queres?
Medita então num belo e rápido pelouro
Que rompesse do espaço infindos rosicleres...
Ou medita também num rútilo besouro
Que, depois de voar por sobre malmequeres,
Pousasse neste imenso e claro campo louro,
Presidido por Flora e pela própria Ceres.
De longe, para ti, o mundo onde me vejo,
Bem parece esse inseto, ou, talvez, um lampejo
Quase extinto, a rolar nas profundas distâncias...
Entretanto, é o meu lar, entre os mundos diversos,
Este para o qual vim na harmonia dos versos,
E nas asas febris dos pássaros das ânsias".
Noite de junho. O gelo é vidro em pó, roçando
As mãos e os pés dos que, distendidos na areia,
Tranquilamente estão o café esperando,
E esperando a tainha assada para a ceia.
Outros, de uma canoa as velas vão soltando,
Sem perda de um momento, à luz da lua cheia,
Que tão aziaga está... E as ondas vão rolando...
E cada pescador, nessa labuta, anseia...
Correm todos ao mar, satisfeitos, felizes,
Sem nutrirem do mal as trágicas raízes,
Apenas da saudade envolvidos nas mágoas.
E que funda saudade, a dessas almas francas,
Sob as velas em cruz, as grandes velas brancas,
Da canoa que lembra uma ave à flor das águas...
Era a Estátua da Mágoa essa linda criatura,
Transfigurada assim numa dor eternal,
Do rochedo fitava a infinita planura
Do mar que se estendia em flores de rosal.
Aninhando no peito a triste noite escura
De uma notícia atroz, para sempre fatal,
Continuava Leonor na mesma compostura,
Como se a inanimasse a atra sombra do mal.
Nutria n'alma aflita assíduo pensamento:
"Há de acalmar o mar... há de acalmar o vento...
O meu filho é o melhor tanoeiro do lugar."
Mas o filho não veio. As ondas o tragaram.
Ai! quantos corações junto ao dela choraram!
Só não chorou o vento e não chorou o mar!
Relevos de luar através das ramagens
Das árvores que a noite enchia de perfumes.
Nas lagoas azuis, que límpidas miragens,
Na planície do mar, que pequeninos lumes!
Sombras de muita gente: as linhas das paisagens;
Estrelas sobre a terra: os ágeis vagalumes:
E as nuvens colossais: alígeras imagens
De elefantes descendo os alterosos cumes...
E nessa confusão de cousas assombrosas,
O vento galopava, em sanhas voluptuosas,
Através dos matais, dos campos, das videiras...
Nessa noite também, meu cavalo murzelo
Levava na garupa, a galopar, em pelo,
E a lhe trançar a crina, um rol de feiticeiras!
Maio chegou florido. Há perfumes e cantos.
E, logo à noite, irás, comigo, ó minha amada,
A novena praieira. Oraremos aos santos,
E à Virgem levarás urna vela enfeitada.
Havemos de pedir forças contra os quebrantos,
Pois nossa vida está bastante quebrantada,
Quanta inveja de nós! Andas cheia de prantos,
E eu corro da amargura a tenebrosa estrada.
Mas, a Virgem Maria, em maio, é sempre o amparo
Dos aflitos. Por isso a nossa vida, é claro,
Terá das suas mãos, tão puras e piedosas,
Todo o amparo do amor, que aos aflitos é dado.
Então, no mês de maio, há de nosso noivado
Realizar-se aqui, junto ao mar, entre rosas.
Longe um barco aparece, entre neblinas frias
De um pôr de sol de junho. E o mar recorda um rio,
De tão calmo que está. Nas praias alvadias
Corre um doce, um suave, um leve murmúrio.
Há fluidos de cristais por sobre as penedias...
O céu, quase sem luz, se arqueia ermo e sombrio,
Aves cruzam no espaço, ariscas, erradias...
E o vento vem chegando em brando rodopio.
"Vento, vinde trazer-me o barco mais depressa"
Diz Valésia na praia. E, célere, atravessa
Os cômoros, gritando, ardente de ansiedade.
E eu, que vinha chegando, em pé, no tombadilho,
Pude ver que não há faróis com tanto brilho
Como os olhos de quem espera com saudade.
O rude arpoador de golfins e baleias
Não queria que a filha amada se casasse,
Tão moça, ela lhe dava o encanto das sereias,
E outra, talvez, ao seu teto jamais baixasse.
No entanto, a rapariga, embalada nas teias
Do sonho, amava a Paulo, embora o pai buscasse
Dissuadi-la do amor que lhe é sangue nas veias,
E nem quisesse ouvir quem no rapaz falasse.
Certa tarde, porém, vejo-os numa canoa,
Ao léu de um temporal, sobre as vagas, à toa...
E caíram do mar nos piores perigos...
Nada o austero arpoador, para salvar a filha...
Mas o Paulo, que os vê, rompe as águas da Ilha,
E os leva à praia branca em seus braços amigos.
Há sempre, em derredor de um túmulo fechado,
Mistérios e visões e lendas... Na verdade,
Todo o povo da vila anda, agora, assombrado
Pelo que vê da lua em plena claridade.
Uma sombra aparece, à luz do luar velado,
Muito branca e sutil, na branda suavidade
Dos cômoros que são, nesse imenso esplanado,
Mortalhas de ilusão nas ânsias da saudade.
Mas lembrei-me de ti, ó meiga flor celeste,
Que, nesta vida atroz, tanto me prometeste
Seres minha... só minha... e jamais de ninguém!
E, como não cumpriste o juramento feito,
Por isso é que o teu vulto anda, assim, desse jeito,
E a tua alma infeliz tal penitência tem!
— Meus abraços, Miguel, e meus abraços, Rita,
Mil parabéns aos dois que acabam de casar,
E como a tarde está lindíssima, bonita,
Por esse campo afora e pelo verde mar!
— A tua alma, rapaz, anseia toda aflita!
(Di-lo a viva expressão do teu ardente olhar).
E a de tua mulher é alegre como a fita
Deixada, há pouco, ali, na toalha do altar...
Nunca vimos por esta praia um casamento
Mais cheio de esplendor e de florescimento!
Tudo parece rir na praia branca e calma...
Até mesmo o Tomás desce o largo caminho,
Certo para abafar, nos copos de um bom vinho,
O ciúme fatal que lhe devora a alma.
Só tu (e mais ninguém) sabes do que padeço;
Sabes de que se veste a minha vida inteira.
No meu leito de dor és a eterna enfermeira
E o manto que me cobre, o teu cabelo espesso.
Quando de febre intensa, escaldante, adoeço,
Vejo-te sempre e sempre à minha cabeceira.
E me dás leite e mel, fervidos em chaleira;
E sob as tuas mãos, docemente, adormeço...
Acordado que esteja, eu te vejo assentada
Ao lado do meu leito, ou te vejo ajoelhada,
A olhar Nossa Senhora, em seu nicho, num canto...
E, se melhoro, então, vamos os dois à praia,
Bem cedo, de manhã, ou quando o sol desmaia...
E toda a gente diz: — "Como se querem tanto."
Ó minha Amada! Ó minha Luz! Ó meu Abrigo!
Amada do meu peito e luz dos meus carinhos,
Por esta praia em jaspe e por esses caminhos,
Tu me dás água fresca e punhados de trigo!
Se me vejo feliz, é que tudo consigo
Do teu piedoso olhar mais doce do que os vinhos!
E dessas lindas mãos de veludos e arminhos,
E desse seio morno e eternamente amigo.
Coração, fez-se o teu para me dar socorro;
Alma, a tua parece um belíssimo jorro
De luz miraculosa... E os teus formosos dedos,
Esses serão, Maria, os sacrossantos selos
Dos meus olhos, na morte, ao pé dos teus desvelos,
Na hora em que eu te contar meus últimos segredos!
Alma triste, através de um nevoeiro denso,
O meu avô paterno olha o horizonte infindo,
E fica a meditar... Leva aos olhos um lenço,
Que nos recorda uma asa alvíssima se abrindo.
É que lembra, por certo, o seu país tão lindo,
Onde uma infância em flor, cheia de aroma intenso,
Ele tanto fruiu, como hoje está fruindo
Dessa recordação todo o fulgor imenso.
Perpassam-lhe, através dos olhares insontes,
As vinhas e os trigais, as campinas e as fontes,
E, à sombra do Mondego, o seu belo casal...
Pudesse ele voar e voaria nesta hora,
Pelo oceano afora, ondas verdes afora,
Por essas ondas que vão ter a Portugal!
Bem velhinho que estás e ainda trabalhas tanto,
Com a rede pesada, às costas, noite e dia.
Mas, às vezes, recorda a tua rede um manto
De ouro, onde a vaga azul deixou sua ardentia.
Que riquezas no mar! Mas és pobre, entretanto!
Tens o peito cansado, e nenhuma alegria
Pela tua alma voa! E ali, naquele canto,
A tua casa lembra uma velha enxovia...
Tenho pena de ti, meu querido velhinho.
E quando vais descendo esse austero caminho,
E entras do largo mar na formidável lida,
Fico logo a cismar que bem igual a tua
Pesadíssima rede é a minha cruz, na rua
Dolorosa e sem fim das misérias da vida.
Tarde. Vento geral. De velas enfunadas,
O brigue Santa Rosa abre no chão das vagas
Longos sulcos azuis, de onde brotam nevadas
Rosas brancas, de espuma, a resplender nas fragas.
Por semanas a fio, as céleres rajadas
Do sul hão de levá-lo a sonhadoras plagas,
Sob dias de sol e noites estreladas,
Sem as ânsias cruéis das horas aziagas.
Mas, quem vai para o mar, quem da praia se afasta,
Embora peito afoito, um sentimento arrasta:
Leva no coração uns gritos de ansiedade...
E os que ficam na praia? Os que na praia ficam
Choram... Mas, afinal, na dor se purificam...
É que a esperança mora onde mora a saudade.
Tremendo como o vime às rajadas do vento,
Pois contava, talvez, uns oitenta janeiros,
O Tomás da Rib'Alta acolhe ao pensamento
As viagens nos seus palhabotes veleiros.
Que amargura, porém, o punge no momento!
A sombra larga e fria e triste dos olmeiros
O Tomás da Rib'Alta escuta ainda o lamento
De uma bela mulher, na Praia dos Coqueiros.
E quanto tempo faz! Entretanto, saudoso,
Recorda-se do doce e belo olhar piedoso
Dessa que tanto o amara, em profundos cuidados,
Mas solteira morrera, entre as quatro paredes
De um rancho junto ao mar, onde fazia redes,
Como se fossem véus para alegres noivados...
Mês de outubro. Essa luz é de fornalha em brasas.
Alucina, estonteia, embriaga, adormece...
Mesmo sob o arvoredo, o telhado das casas,
À sua irradiação, cada vez mais se aquece.
Escondidas embora, as pequeninas asas
Tremem continuamente. O calor entorpece.
E, nas roças, no morro e nas campinas rasas
Triste da seara em flor, triste da verde messe!
E enquanto esse cristal de luz assim fulgura,
O gado desce à praia, a água do mar procura,
Como se ali houvesse o seu melhor abrigo...
E busca ver no sol, que se retrata à tona,
Uma pedra a rolar, igual a da atafona,
Que à noite lhe dará louras palhas de trigo.
Tão doente que estás, ó minha ovelha casta!
E é por isso que os meus olhos, seguidamente,
Vivem roxos de mágoa, em cujo mar se arrasta
Todo o meu coração tão triste e descontente!
E a causa desse mal que o teu corpo devasta
Dizei-me, lindo abril! E vós, água corrente!
E vós, marés de lua! Ah! mas isto não basta:
Pergunto a mim também porque vives doente.
Ah! como tenho na alma um grande sofrimento,
Mais rugidor até que um temporal violento
Que passasse a varrer meu sonho multicor!
Mas, estático fico, ante a idéia sublime
De que na dor tua alma humilde se redime...
Entretanto eu quisera, ó filha, a tua dor!
A lua será mesmo um sacrário adorado,
Com portas de marfim, cheio de álacres festas
Da Eucaristia, para as almas sãs, modestas,
Para as que rezam sob o Pálio Constelado?
E essas almas irão, num desejo inflamado
Como águias imortais a essas plagas, que arestas
De luz banham, num Céu transformado em florestas,
Onde em Jordãos de Amor, o sonho é batizado?
Quantas vezes, porém, a branca lua assiste
Indiferentemente à tragédia mais triste,
Cobrindo de desdém as almas torturadas!
Sobre as ondas do mar evoquei-a, chorando...
E, nessa noite, a lua era um barco viajando,
Transbordante o porão de trágicas ossadas...
Que mais desejas, flor de que vive aquela alma,
Se, pela tua porta, a luz entra, a cantar,
Quando a rósea manhã se estende, doce e calma,
Como um manto piedoso e vai da serra ao mar?
Que mais desejas, flor da mais virente palma,
Se, em teus alvos lençóis, como feitos de luar,
O perfume do trevo e do cravo se espalma,
E parece o teu corpo esvelto esculturar?
Que mais desejas, flor, ó lírio azul dos vales!
Se não sofres da vida os aflitivos males,
Antes ouves dessa alma a dúlcida linguagem?
Deixa que o palhabote enfune as velas brancas,
E vá por esse mar de alegres vagas francas,
E o comande quem leva ao peito a tua imagem...
Para um amigo
Sabes de onde te escrevo este simples soneto?
Escrevo-te do mesmo engenho, onde Maria,
Pela primeira vez, sentiu todo o seu peito
Nos afagos da mais espontânea alegria.
Nas eiras, lá por fora, era um cristal desfeito
O claríssimo luar. E a neve que caía,
Recordava a cortina alvíssima de um leito,
No laranjal em flor. E que frio fazia!
Deves, pois, te lembrar desse engenho, por certo:
Na farinhada, em junho, era um céu todo aberto
Nos encantos da paz que a tudo estende um brilho.
Moços vinham dançar, após o árduo trabalho;
E, no forno de cobre, ao calor do borralho,
Faziam ternamente uns lenços de polvilho.
O largo ocaso é todo umas rosas vermelhas
Desfolhadas na serra... E lá, ao longe, o rio
Recorda uma serpente enorme, junto às velhas
Casas da freguesia. Arfa por tudo o estio.
Tremem, como do mar as ondas, as ovelhas
Em rebanhos, no campo. O sol de ouro, erradio,
Brilha nos laranjais. Pelo ar, quantas abelhas!
E a cigarra parece a luz em murmúrio...
Mas, o que mais me encanta, entre tudo, querida,
É a casa toda branca, alegre e florescida,
Banhada do clarão dos teus olhos risonhos,
Onde teces, ó minha antiga tecedeira,
Véus de esperança para a nossa vida inteira,
No bendito tear dos teus e dos meus sonhos.
Atento, contemplei este jardim de rosas!
Mas, antes de morrer quem o plantou, não era
Ele tão belo assim! Nem mesmo a primavera
Lhe dava tanto orvalho em gotas luminosas!
E quem o plantaria? As mãos brancas, mimosas
De Hortência? As mãos de Antônia? A engraçada Valésia?
A encantadora Júlia? A Florença, que à espera
Do noivo sempre andou, nas praias silenciosas!
Quem o plantou morreu por uma tarde casta,
Como um lírio que, em seu perfume, a gente arrasta,
Arrasta um coração por mais emparedado...
E, se tão belo está, este jardim, agora,
Rega-o a linda Florença, entre os clarões da aurora,
Porque foi quem morreu no dia do noivado...
Fria noite de agosto, envolta no sudário
Melancólico de uma enregelante lua.
E porque não te vais deitar, se extenua
Teu peito, e meia noite ecoa o campanário!
Neste rancho de palha, a um canto, solitário,
Nossa Senhora desça, a sorrir, à alma tua.
Dorme, velhinha, dorme... O silêncio flutua...
Não confias, então, nas contas do rosário?
O teu filho há de vir logo que a pescaria
Acabe, no mar grosso... Abre o peito à alegria;
Faze do coração um abrigo tranquilo...
Ora, que ideia a tua! Então perdeste o sono
Simplesmente porque te julgas no abandono,
E ouviste, no telhado, o estrídulo de um grilo?
E ela, Valésia, urdia, em grandes bastidores,
Ora um peito de crivo, ora rodas de saia;
E outras vezes urdia, a olhar, da porta, a praia,
Toalhas para o altar da Senhora das Dores.
Vinha gente da vila e de outros arredores,
Para vê-la no crivo, à hora em que o sol desmaia,
Flechando, em arcos de ouro, a torre da atalaia,
Detrás da qual surgia o Paulo e os pescadores.
E na ermida, de noite, ei-la uma vez de joelhos,
A olhar Nossa Senhora e a lhe pedir conselhos,
Quando de leve ouviu uma voz soluçar:
"Valésia, o mais feliz e melhor casamento,
Faz-se na catedral azul do firmamento,
Entre almas brancas como as praias desse mar."
Corta o grande silêncio astral da noite bela
O festivo cantar estridente dos galos.
E vem do mar, e vem do campo, e vem dos valos
Um perfume sutil, enquanto o céu se estrela.
Tilinta, vibra e canta o sino da capela,
Corre, por todo o espaço, o som dos seus badalos;
E desce, alegre, em festa, em contínuos regalos,
Ruidoso, salta, ri, o povo tagarela.
É noite de Natal. E, na vila, nenhuma
Casa existe sem pão, sem vinhos derramados,
Em toalhas da cor da mais nevada espuma.
Menos esta na qual teus olhos angustiados
Choram, na imensa dor que o teu peito averruma,
A atroz separação dos teus filhos amados!
É meia-noite. Canta o galo no poleiro.
Ouves cantar? Cantou o galo do vizinho.
E, ao raiar da manhã gloriosa, bem cedinho,
Quantas exclamações por esse mundo inteiro!
No entardecer não viste, à sombra do salgueiro,
Perto dum batelão de altas velas de linho,
Um rapaz que possui uns olhos cor de vinho,
Cabelo em caracóis, espigado e trigueiro?
Namora loucamente, ousadamente, a filha
Mais moça do Sabino, e veio ontem da Ilha
Do Arvoredo, na qual viu todo o seu destino...
E, na verdade, quando amanheceu, na vila
Sempre boa e pagã, sempre humilde e tranquila,
Ninguém mais avistou a filha do Sabino.
Linda Estrela do Mar, Nossa Senhora, a tua
Miraculosa mão, a tua mão amiga,
Dos tristes corações toda a mágoa mitiga,
Do destino fatal na tenebrosa rua...
Virgem Nossa Senhora, está de luto a lua,
A lua nova, aziaga... E o vendaval fustiga
As ondas... E não há quem satisfeito siga
Por essa praia... E atrás de que, na praia nua?
A praia nua está, Virgem Nossa Senhora,
Porque toda essa gente ao seu rosário chora,
Nos ranchos que, ao bramir do vento, se fecharam.
E, lá longe, ao redor das ilhas desoladas,
Quantas ânsias e ais! Quantas quilhas viradas!
Mas chegaste, Senhora, e as ondas se acalmaram...
Olha, porém os seus olhares são velados
Como os longes nos quais fulge, de leve, o luar.
Mas, mesmo assim, recorda os seus dias passados
Ora por sobre a terra, ora por sobre o mar.
Ele diz recordar os prazeres gozados
Nas viagens em que andara a cantar... a cantar...
Quer os ventos do sul erguessem fortes brados,
Ou o navio se visse a correr num lagar.
É que com ele andava, ao calor das cantigas,
A jura, sempre fiel, das belas raparigas
Que lhe davam do sonho as ânsias e os desejos.
Quando voltava à terra (Oh! felizes momentos!)
Era para rever todos os juramentos
Dessas bocas em flor, saturadas de beijos.
A madrugada é toda uns recamos de prata,
E cada estrela lembra um branco lírio aberto,
Que, nas águas do mar tranquilo, se retrata.
A lua enche de luz todo o campo deserto.
Pela estrada da Barra, o aroma se desata
Dos aguapés em flor. Canta, murmura, perto
Da casa de Valésia a água de uma cascata.
Bate-me, com violência, o coração desperto.
Chego. Ausculto a parede. Ouço vozes lá dentro.
Rodeio então a casa, e, passos bambos, entro
Pela porta detrás. E a derrota prossigo,
Louco, ciumento, sob a pressão do meu zelo.
Mas, ó graças dos céus! Fugiu-me o pesadelo...
Valésia dorme e sonha, amorosa, comigo.
Foram-se à pescaria os barcos da enseada,
Do vento brando sob as asas invisíveis...
E, agora, é agitação funesta, desenfreada,
O mar! O vento e o mar são dois seres terríveis!
Mas, nos barcos que vão, às vezes, na calada
Das tardes, para o largo, há peitos insensíveis,
Que não creem que o mar lhes teça, na lestada,
Depois, uma mortalha e túmulos horríveis!
E a tempestade veio, ululando, ululando...
E quem diria, ó céus? Quantos barcos voltando,
E quantos, no costão, de chofre, naufragados!
Assim são, de minha alma, os incautos desejos:
Vivem sob a ilusão dos sonhos benfazejos,
Mas vivem muito mais contra a dor atirados!
Para matar da criança o trágico quebranto
Era logo chamada a minha velha tia.
E ela, cheia de amor pelas crianças, ia
Pelas léguas sem fim, ao último recanto...
Mas, antes de partir de casa, orava a um santo,
No oratório do quarto, e, alegre, repetia:
"Seja o meigo Jesus a minha companhia,
E o manto de Maria, o meu querido manto".
Toda a criança, então, florescia de novo.
Por isso, essa velhinha era amada do povo
Desse humilde lugar de alvas praias cheirosas.
Do povo que ainda agora, entre rezas, murmura:
— Velhinha, iremos sempre à tua sepultura,
Levar-te bogaris, margaridas e rosas.
A luz forte do sol queima como aguarrás.
Mas a velhinha Luísa, à beira do riacho,
A soalheira apanha... E ela, que é triste, traz
O puríssimo olhar seguidamente baixo.
A sua vida é toda uma chaga mordaz,
Como a de uma coivara em labareda, em facho.
Triste vida augural, de soluços e ais,
Espelhada na luz das águas do riacho!
E continua, a pobre, a lavar desde cedo,
Longe da sombra amiga e fresca do arvoredo,
De joelhos em terra. Entretanto, Luísa
Nunca pôde lavar (sabe-o Deus) nessas águas
O enorme turbilhão das suas tristes mágoas,
Nunca pôde lavar a dor que a martiriza!
Que saudades nos faz o sino da capela
Naquele morro triste! À plangência do sino
É que a vimos partir, a nossa filha, aquela
Que primeiro nos fez andarem desatino.
Vida de nossa vida, angélica e singela,
Num caixão de veludo, o seu rosto divino
Tinha o branco esplendor do azul que se constela,
A brilhar através do espaço cristalino.
Ia nesse caixão o seu corpo estendido...
E sua alma louçã em que leito florido
Dormiria nessa hora? E, se acaso, pelo ar,
Voasse? Ah! talvez fosse a ave que, neste instante,
Vimos ao sol, à luz da tarde agonizante,
Meiga e serena, abrindo as asas sobre o mar!
Dessa tarde recordo a profunda tristeza...
E porque não? Recordo a hora da despedida.
Eu te deixara só, meu sonho de beleza,
Ó meu lírio da serra, ò flor estremecida!
Nessa hora amargurada, a própria natureza
Parecia uma noiva, entre goivos, vestida
Para a morte. Do céu na límpida turquesa
Uma estrela surgiu, a resplender de vida!
Entre abraços, teu peito ao meu peito apertaste.
E eu para o mar parti. Mas de onde então ficaste,
Um rastilho de luz branca me acompanhou...
Seria o teu amor assim transfigurado?
Ou a saudade augural do teu peito magoado?
E onde o meu coração tristíssimo ficou?
O velho Estêvão conta uma enfiada de anos!
Mas como forte está! De calça azul e gorro.
Desce ou sobe, apressado, os caminhos do morro,
E nunca teve na alma os fatais desenganos...
Dos Farrapos e seus heroísmos soberanos,
Conta a história cruel. Toda a sua alma é um jorro
De alta clarividência. E eu aos seus braços corro
Para lhe perceber os milhares de arcanos...
Que vida singular, a dele! E que saúde,
Quando a sorte lhe fora austeramente rude,
Sobre as ondas do mar, numa eterna jornada!
Mas, forte que ainda está! É rijo como um feixe!
Rega, a tragos de pinga, o seu caldo de peixe
Preparado com salsa e farinha torrada.
Rodam na cana verde as filhas da Vicência,
Vindas do Ribeirão, das últimas Costeiras...
Belas almas febris, de rica florescência,
De seios rebentando em botões de roseiras.
Do diamantino luar na espiritual diluência,
Rodam como visões, graciosas e ligeiras,
Rodam, de par em par, em célere cadência,
Em vertigem feliz, alegres e brejeiras.
Fez-se então um rumor de remos nos toletes...
É que chegam do mar uns rapazes. Foguetes
Esfuziam no espaço... E vozeiam cantigas.
No terreiro do engenho a fogueira crepita...
E, ao vermelho clarão que, em derredor, se agita,
Mais feiticeiras são, agora, as raparigas.
Testemunha ocular, vira o filho brandindo
Uma adaga lavada em sangue, e, em pleno chão,
Um corpo escultural, exuberante, lindo,
De uma mulher que tinha em chaga o coração.
"Foge" (disse-lhe o pai). E a rude porta abrindo,
Na maior desventura e maior aflição,
Nas quais aos poucos ia, atrozmente, caindo,
Disse de novo ao filho: "Anda, busca o sertão".
No outro dia, porém, comparece em juízo
O desolado pai, para dar o preciso
Testemunho do fato... Então, frio, suspeito,
Sentiu passar-lhe na alma uma idéia sublime:
– Se dissesse a verdade, era provar o crime...
E, com a mesma adaga, atravessou o peito.
Ao prendê-la nos seus braços febricitantes,
Beijou-lhe a trança negra e a boca perfumada,
E as mãos... (Ah! como dói às almas dos amantes
Uma separação assim precipitada!)
Caía a tarde sobre as montanhas distantes,
E, na praia tão branca, alvadia e lavada,
Os rendilhos da espuma abriam-se, flamantes,
Sob a brusca pressão da rígida nortada.
E, num barco, a correr nas vagas buliçosas
Partiu... Quanta amargura e lágrimas custosas,
Naquele coração tristíssimo, inditoso!
No mar alto, porém, ao resplendor dos astros,
Num contínuo bailado, em derredor dos mastros,
Cada gaivota branca era um lenço saudoso!
I
Infância
Vejam que esquife azul, chamalotado de ouro,
Vai pelo morro, à luz do ocaso aceso! E vejam
Como o rodeiam, rindo, entre canções, em coro,
Os meninos da escola e os pássaros que adejam...
Da morte no cruel e eterno sorvedouro,
Lá em cima, no morro, os mochos que o protejam!
Proteja-o albente luar e sol faiscante e louro!
E as orações do mar que junto dele estejam!
Vai a enterrar-se o corpo esvelto e delicado
De uma criança e leva o peito marchetado
De rosas e jasmins de mádida fragrância...
Vão levá-lo os irmãos, a fim que a terra o guarde
Sob o fulvo esplendor dessa tão linda, tarde...
Mas não foi tão feliz a minha pobre Infância!
II
Quando morreu a minha infância, nesse dia
Nem sei mesmo quem foi levá-la à sepultura.
Ao seu peito caiu uma tarde sombria...
E, depois, uma noite escura.., escura... escura...
E, se alguém a levou, não sentiu alegria,
Antes desolação, lancinante tortura.
Nem um esquife azul, o mais simples, havia,
Nem meninos de escola e pássaros na altura...
Nem lírios e jasmins. E, agora, é que me lembro:
Minha infância morreu num dia de setembro,
Em que, de tarde, triste, olhando o céu e o mar,
De alma cheia de pranto e amargos desenganos,
Pela primeira vez, no dia de meus anos,
Não tive quem me desse um beijo e um terno olhar!
III
Mocidade
Era a força, era o sangue, era a vida e a coragem,
Era a glória do leão a minha mocidade;
Ora sonhando sob o abrigo da folhagem,
Ora escalvando o areal de uma qualquer cidade.
Heroína, no mundo, em meio da voragem
Das misérias, venceu o polvo da maldade.
Aos fortes pés calcou do sofrimento a imagem;
E foi sempre vencendo, em plena liberdade.
Venceu o ódio, a inveja, a vaidade, o egoísmo,
E a mentira fatal, em cujo eterno abismo
As almas rolam como as lesmas pelo chão.
E, assim, cheia de fé, entre sonhos diversos,
Começou a fazer os seus primeiros versos,
E neles encerrou, cantando, o coração!
IV
Mas, como tudo morre, assim também a minha
Mocidade morreu, ou, então, se transformou.
Morta, num campo raso há tempos se enterrou,
Ou transformada foi em célere andorinha.
Na quadra em que ela a força e os claros sonhos tinha,
Ela própria, ao clarão do sol, flores plantou.
E essas flores, depois, o flavo sol mirrou,
O sol que sempre e sempre acariciá-las vinha!
Morta, foi ser, na cova, o que a cova consome:
Unicamente pó, sem o mais simples nome,
Nos braços de urna cruz de consolo e piedade.
Mas, transformada, é toda uma ave delicada,
Que me vem ao beiral das telhas, descuidada,
Trazer, de quando em quando, a mais triste saudade!
V
Velhice
Ah! quando ela estiver para os olhos fechar,
Vendo aberto a seus pés um caixão mortuário,
E já correr no espaço o som do campanário
Que só foi feito para as almas evocar...
E, se nesse momento, o coração do mar,
Que é bem igual ao meu, assim, tão solitário,
Começar a rezar, – nas contas do rosário,
Reze por ela toda a gente do lugar.
Mas não chore por quem, diademada de branco.
Como uma santa irá, por um caminho franco,
Tendo na própria morte uns risos de meiguice...
Pois não há, neste mundo, uma cousa mais bela
Do que a prata que fica, a iluminar, singela,
A cabeça cansada e aflita da velhice!