LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Novenas de maio, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,
Florianópolis: ACL, 1966.
ÍNDICE
Antífonas
Encheram-se as velas brancas
De rajadas as mais francas.
Partiram, numa enfiada,
As canoas da enseada.
Foram-se todas às vagas,
Sem tristezas aziagas.
Sem negros pressentimentos
De virem medonhos ventos.
É que o sol todo floria,
De rosas e pedraria
A verde encosta dos montes,
E afagava os horizontes.
Sobre o alto Cambirela
Havia luz amarela.
E havia nas suas fraldas
Liquescentes esmeraldas;
E nas suas cachoeiras,
Claridades de poncheiras
E muita luz de berilos
Pelos seus rios tranquilos.
E além, fulgurantes listas
De safiras e ametistas!
E sobre as folhas do mangue
Derrames de vivo sangue.
E sobre a Ilha das Vinhas
Gaivotas e andorinhas.
E um forte perfume de erva,
Que as fibras do peito enerva,
Derramava-se por tudo,
Como em mantos de veludo.
As Tipitingas sorriam
Às ondinas que se abriam....
Ia-lhes um sorriso brando
Divinamente embalando...
E de lado a lado, as casas
Eram brancas como as asas
Das garças, quando paradas
Pelas praias perfumadas.
E agora a noite é um manto
De veludilho o mais santo.
Desceu crivada de estrelas
Que a gente se alegra ao vê-las.
Como o teu manto, Senhora
De prata a noite se enflora,
Tal qual teu manto sagrado
Todo o céu é salpicado
De encantadores pórfiros:
– Urnas dos nossos suspiros;
Segredos das nossas ânsias
Que se vão pelas distâncias.
Em procura de refúgios,
Bem distantes dos efúgios;
Bem distantes dos insanos
Tormentos e desenganos,
Dos quais o mundo se alastra
Numa tortura de adastra.
E como desceu a noite
Sem um gemido de açoite,
Do vento no mar luzindo,
No mar que se vê tão lindo!
............................................
Permite, Virgem Maria,
Que não venha à calmaria
Das ondas um vento solto,
E o mar se torne revolto;
Ou se torne o mar bem como
Um leão cheio de assomo...
Que o mar se conserve ameno
Como o olhar do Nazareno.
E por esses arredores
Fiquem bem os pescadores,
Lançando ao mar as braçadas
Das suas redes talhadas;
E cantem, junto às canoas,
Seus ditirambos e loas,
Que são, à luz das estrelas,
As antífonas mais belas...
E que tu, Virgem Maria,
Plena de graça e alegria,
Possas ouvi-los cantar,
Do largo espaço sem fim,
Onde vives a viajar
No teu barco de marfim.
Socorrendo os náufragos
A tarde, toda azul, era um lírio orvalhado,
Dentro do qual o sol parecia um besouro
Poeirado de ouro.
E quando o sol rolou de dentro dessa flor,
Como se lhe tivesse alguém, com mãos estranhas,
Jogado para trás da curva das montanhas,
Fez-se ouvir, muito ao longe, um som repercussor,
Bem parecido com o de um grande canhão.
Era a repercussão de um longínquo trovão
Pejando a nuvem que, ao sul, se levantava,
Pouco a pouco se aproximava...
Até então,
Todo o campo verduengo; e as praias; e a planura
Do mar aveludado; e todos os riachos
Da esplanada da vila;
Tudo, tudo isso ardia em diamantinos fachos,
Em completa iluminura,
Numa luz suavíssima e tranquila.
Até então,
Tudo quanto se via em derredor da Ilha
Era uma maravilha de esplendores
De variadas cores;
E de gritos infinitos
De luxúrias, nas ervas e nas flores,
E no arvoredo à beira dos caminhos,
Por sobre o qual trinavam passarinhos,
E zumbiam abelhas...
Da casaria nas recurvas telhas,
E pelas vidraças das janelas,
Os reflexos do sol abriam-se em tecidos
De aranhol.
Pela fita das praias
Em dalmáticas, fúlgidas alfaias,
Que pinceladas amarelas,
De óleos batidos com topázios diluídos!...
Até então,
Todos os corações achavam-se vestidos
De tranquilidade,
Sob o vivo esplendor, a viva claridade
Do sol de ouro,
Que, no lírio do céu, parecia um besouro.
Mas a nuvem chegou,
E tudo que era belo se nublou.
Fez-se uma escuridão
Como se fosse um monte de carvão.
Despencaram-se do ar rolos de ventos
Sinistros, tenebrosos, agourentos...
E outro trovão rolou, entre línguas de fogo,
E logo a chuva se alastrou,
Peneirada de lado, ao correr das lufadas.
Que alvoroço e temor, pelas estradas!
Mas o muito maior e fremente alvoroço
Deu-se na praia do mar grosso,
Quando a lancha do João,
Vinda da pescaria,
Apanhando o tufão,
Ora às ondas subia, ora às ondas descia,
Com a vela molhada a rastejar nas ondas,
Sobre um fundo sem termo, onde não vão as sondas...
Sendo o barco afinal, levado,
De quilha para cima, às rochas do pontal
De onde, peito aflitivo, alucinado
Uma pobre mulher fazia-lhe um sinal.
Vinha ao leme, o João; e o Pedro, vinha à escota
De vela toda rota...
Porém, nem mesmo assim, o barco não deixou
De virar-se, e alijar
Os rapazes ao nado... E eles, os dois, coitados!
Com os remos desprezados,
E braços fatigados,
Ao se verem no mar e tamanha fadiga,
Nessa luta inimiga,
Lembraram-se de ti, Nossa Senhora.
Nessa hora
A treva fez-se luz; e fez-se, o mar bravio.
Um rio...
E num momento,
Acabou-se também toda a fúria do vento.
Os rapazes lutaram
Mas à praia chegaram
Com salvamento.
Ah! que instante feliz para os rapazes,
Para esses crentes corações audazes!...
E a tia Margarida,
Uma velhinha que levava a vida
A rezar... a rezar
Pelos que viviam, tristes, a lutar
Contra as ondas do mar,
Muito admirada ficou, muito admirada,
Porque nem tu, Senhora dos Navegantes,
Nem o teu barquinho,
De bujarrona de cetim e arminho,
Durante esse momento
De tanto mar furioso e tanto vento,
Foram vistos por ela em teu florido altar!
Esperando o inverno
Por ora, os dias são lindos
Pelo mar e céus infindos.
Surgem cheios de esplendores.
E são cobertos de flores.
São dias embalsamados
De aromas purificados.
Que rumor por sobre os ramos
Onde trinam gaturamos!
Pelos bosques solitários
Que gorjeios de canários!
E brilha a água das fontes
Desses campos, desses montes...
E há dulcíssimos afagos
Na superfície dos lagos.
Cobrem-se os lagos de brilhos
De encantadores vidrilhos:
Às suas águas afluem
Berilos que se diluem...
Veem-se, através das folhagens,
Chamalotes e miragens.
A luz, por sobre os caminhos,
É feita de óleos e vinhos.
E quando ela se derrama,
A terra inteira se inflama.
Tudo canta a bizarria
Doa bandolins da alegria.
Tudo se acorda em divinos
Acordes de violinos.
E há sons de anafis e harpas
Pelo sopé das escarpas.
E a tarde, a tarde é tão doce
Como se de seda fosse.
Como se fosse das sedas
Da ervagem das alamedas,
Dos espinheiros floridos
Juntos aos rios adormidos...
E vêm as noites formosas,
Pespontadas de alvas rosas.
E há uma carícia branda
Em quem pelas noites anda...
Cada espírito parece
De joelhos, numa prece.
Deita-se a gente, no leito,
De coração satisfeito.
Sonha a gente lindas cousas,
Sem pensar nas frias lousas.
É que de maio o céu vasto
É de todos o mais casto.
É todo de luz serena,
E tem pólen de açucena.
E é todo cheio de encantos
Como os altares dos santos.
E é todo um céu de carícias,
E de inefáveis primícias.
Lindo céu que, sobre as almas
Se desfolha como as palmas.
Mas vai ficar no abandono
Esse lindo céu de outono.
Vão-se-lhe extinguir as folhas,
Como do sabão as bolhas...
Virá o frio inverniço
Para lhe apagar o viço.
Hão de vir, em junho, os gelos,
Com seus grandes pesadelos.
Virão os mordentes frios
Da neve, cobrindo os rios...
Virão as noites geladas
Por essas longas estradas.
Virão as asas dos ventos
Trazer trágicos lamentos.
Virão as chuvas miúdas
Arrancar da seara as mudas.
Virão enchentes de sobra,
Em voltívolos de cobra.
E é quando estarei bem triste,
Pela ideia que me assiste:
– Calculo, na minha vila
O frio que a lua destila.
Pois quando há luar a gente
Um frio dobrado sente.
E há, na vila, gente pobre
Que não come e nem se cobre.
Que não possui, no borralho,
Uma lasca de carvalho.
E não come, coitadinha!
Senão pirão de farinha.
E só bebe, ardendo em mágoa,
Um pouco de mel com água.
E tem o quarto em buracos,
E as telhas em muitos cacos.
Gente que retesa os braços
E os pés, cheia de cansaços.
E é dessa gente, Senhora,
Que eu me lembro a toda hora,
Dessa que terá, em junho,
Dos frios o testemunho.
Que terá dias medonhos,
Apavorando-lhe os sonhos.
Então, com benevolência,
Venho pedir a clemência
Dos teus olhos adorados,
Que vivem sempre molhados...
Acolhe-a, ó Virgem Maria,
Toda a noite, e todo o dia,
Com todo esse olhar tão terno,
De forma que, nesse inverno,
Sob o fulgor do teu nome,
Que de estrelas se esculpiu,
Não haja quem sinta fome,
Não haja quem sinta frio.
Amparo
I
Quero o amparo dos teus braços
Aos meus contínuos cansaços,
Pois eu ando neste mundo,
Neste degredo profundo,
Como anda o Judeu lendário
Cada vez mais solitário,
Cada vez mais aflitivo,
Com o coração cativo
A mais tristíssimas ânsias
Tão grandes como as distâncias
Dos desertos africanos
Onde no atro sol dos anos
Só podemos ver miragens
Nas suas tristes paisagens
De areais escaldadores,
Que têm por brisa os furores
E os formidáveis lamentos
Dos tredos, pesados ventos...
Quero o amparo dos teus braços
Aos meus contínuos cansaços,
Pois eu, na estrada em que sigo,
Preciso de um peito amigo,
Que me dê a fortaleza
Da sua alma sempre presa
Às asas da Caridade
Que é o maior bem, na verdade,
Que ainda na terra existe,
Para não vê-la tão triste,
Abrindo às almas as covas
Da atroz descrença, onde as trovas
Sinistras dos vermes vagam,
E em nenhum tempo se apagam.
Amparado nos teus braços,
Deixarei de ter cansaços,
E de ter grande saudade
Do tempo da mocidade,
Onde jamais tive amores
Senão cortado de dores,
E de amarguras de tédio,
Para as quais não há remédio.
Mas como sei que me queres,
Ó rainha das mulheres,
O amparo por mim pedido
Deve ser por ti ouvido,
Porque não te peço mais
Do que (na Estrada dos Ais,
Que é ainda cheia de sonhos
Os mais belos e risonhos),
Pede o infeliz do mendigo
Que não tem água nem trigo,
Nem manto a cobrir-lhe os ombros,
E, assim, percorre os escombros
Pelos dias invernais,
Na triste Estrada dos Ais...
II
Sem a luz dos teus olhares
Vivo em campo de pesares.
Sem o mel da tua boca,
A minha alma faz-se louca.
Sem o amoroso agasalho
Dos teus seios, que trabalho!
Sem os dúlcidos carinhos
Das tuas mãos, que caminhos!
Sem o olor dos teus cabelos
De seda, que pesadelos!
Sem a voz das tuas falas
Que silêncio de senzalas!
Sem o calor da tua pele
A dor à morte me impele.
Sem teu amor, com certeza,
Quem será a minha mesa?
E assim vivendo, minha alma
Por acaso terá calma?
Terá, por acaso, vida
No meio desses cansaços,
Se não me deres, querida,
O amparo dos teus braços?
Para perdoar
Meu querido e belo amigo
Por que não tens outro abrigo?
Do mundo onde caminhaste,
Ainda não te separaste?
Por que não fechaste os olhos
Aos teus trágicos escolhos?
Por que não fechaste o ouvido
À voz de qualquer gemido?
Por que razão a tua alma
Dos tormentos colhe a palma?
Tens a cruz dos renegados
Por sobre os ombros cansados?
E te coroas de espinhos
Por estes ínvios caminhos?
E tens os braços e os pulsos
Profundamente convulsos?
E sentes a testa exangue
Nos gotejas do teu sangue?
E vês abrir-se, em destroços,
O teu coração de moço?
E vês cravado o teu peito
Pelas lanças do despeito?
Por que andas pelos cardos,
E enfrentas chuvas de dardos?
Por que soluças e choras,
Mesmo ao clarão das auroras?
Por que lágrimas derramas,
Quando no sonho te inflamas?
Por que não dormes, não dormes,
Pelas noites desconformes?
Por que no chão não te assentas,
Pelas noites de tormentas?
Por que não buscas um teto
Bom, igual ao teu afeto?
Por que não buscas um astro
Onde não se anda de rastro?
Por que não sobes e ficas
Numa estrela das mais ricas?
Por que andas, Cruz e Sousa,
No mundo que é fria lousa?
Por que, de noite e de dia,
Não vens com a Virgem Maria?
– Com Ela é que eu desço à terra
Que tantas lamas encerra.
– Desço à terra, em companhia,
Da Virgem Santa Maria,
– Para encontrar, nas estradas,
Os que me deram pedradas,
– E ampará-los nos meus braços,
Sem nenhuma prevenção;
E levá-los aos espaços
Nas asas do meu perdão.
Ingratidão
Pelos olhos tristes que hoje vi passar
Junto à minha porta, é que eu vim rezar...
Pelos olhos tristes que já foram cheios
De sonhos álacres e de galanteios.
Vendo-os, hoje, tristes como nunca os vi
Por eles senti
Uma tal tristeza, que me lembrei logo
Do amor profundo do teu coração
Que é o vivo fogo,
O perenal clarão
Dos que sentem n'alma uma tristeza assim,
Que não têm na vida um venturoso fim.
Vendo-os, hoje, tristes como nunca os vi,
Por eles senti
Toda a alma voltada para a mocidade
Que tão longe vai,
Sem me ouvir o ai
Que eu às vezes solto, cheio de saudade,
Pois os meus cabelos já de neve são,
Brancos como a neve que dos montes cai.
Triste de quem vê a mocidade longe...
Veste-se, portanto, de burel de monge,
E senta-se, cansado,
Numa praia imensa, a fitar, coitado!
Um ocaso roxo, ou um luar velado,
Ou um barco branco, que além se perde
Na eterna ondulação das vagas do mar verde.
Vendo-os, hoje, tristes como nunca os vi,
Por eles senti
Coisas que nem sei!... Mas por fim das contas
Pus-me a recordar
Que esses olhos tristes, que hoje vi passar
São os que outrora me fizeram andar
Seguidamente às tontas...
Ah! tanto os queria,
Tanto os adorava,
Que não se passava
Um único dia,
Que eu não fosse vê-los...
Olhos que hoje são
Os meus pesadelos!...
– Olhos meus, castanhos,
Sois uns céus estranhos,
Era o que eu dizia...
E não lhe estão só tristes esses olhos, não!
Que tristeza tem a sua boca! Vejo
Sua boca triste como nunca a vi!
Nunca mais lhe dei um perfumoso beijo,
Nem jamais ouvi
O seu trino de ouro, todo o seu cantar,
Que me parecia
O da cotovia
Quando tece o ninho na ramada agreste,
Para aí noivar,
Sob o azul celeste.
Boca que já fora uma flor vermelha,
A mais fresca e bela,
Que até mesmo a abelha
Vinha muito vezes espojar-se nela!
Mas, agora, como
Essa boca está! (Coitadinha dela!)
Nem parece um gomo
De laranja cravo, nem de tangerina,
Nem de bergamota, nem de fruta alguma!
E os seus dentes eram de marfim, em suma.
Numa casa branca, coberta de parras,
Cercada de rosas e verdes salgueiros,
Ouvindo o chiar das lindas cigarras,
Ouvindo o cantar dos belos coleiros,
Ouvindo do mar as ondas saudosas,
Ouvindo dos rios as águas maviosas,
Em horas sem contas, eu sempre dizia:
– Espera por mim, até que, num dia
De maio florido, o nosso noivado
Encante em festanças todo este povoado...
Serei todo teu, e minha serás...
Entretanto, depois de uma manhã de beijos,
Saciante de desejo,
E do meu coração fazer mil juramentos,
Um barco me levou, velas pandas aos ventos...
E desse dia então (Há quantos anos!)
Tem sido a minha vida uni mar de desenganos.
Mas, ó Virgem Senhora da Conceição,
Devo rezar por esses olhos tristes
Que eu vi, e vistes,
Ou pela minha ingratidão?
Coração crente
Tarde de inverno. A chuva tamborila
De uma maneira atroz por sobre a vila...
E o vento vai as árvores vergando,
E, lépido passa, entre elas, soluçando...
Cobriu-se o céu de nuvens pardacentas
Como se fossem asas agourentas,
De muitos, muitos pássaros tristonhos
Que viessem abafar os nossos sonhos.
E as estradas tornaram-se ribeiros;
E os campos verdes, negros atoleiros...
Correm pelas estradas velhos troncos
Da água a subir, em formidáveis roncos.
Os bois, as vacas, e as gráceis ovelhas
Correm com os jumentos, em parelhas...
E sob os ramos curvos do balcedo
Tremem todos os pássaros, de medo.
Parece tudo se acabar nas águas
Que abrem sinistras, desolantes fráguas.
Ouvem-se rezas tristes, soluçadas,
Vindas de algumas casas destelhadas.
E o povo julga que é chegado o instante
De morrer todo o mundo agonizante.
Mas, entretanto, numa casa existe
Um coração que não se encontra triste;
Que, diante das águas não se aterra,
Antes na crença a alma branca encerra;
Antes na crença excelsa permanece,
E vê a verde esperança que floresce
Para sempre bendita e alvissareira,
Como se fosse um ramo de oliveira.
E assim, em vez de soluçar aos gritos,
Eleva as mãos em palma aos céus benditos
De olhos por toda a fé iluminados,
E pela crença excelsa abençoados,
Desfraldando o estandarte da esperança
Que tudo quanto espera sempre alcança.
É que em redor de si teus olhos vendo,
Foi a tua bondade compreendendo,
Pois lhe disseste que esperasse a hora
Do seu filho querido se ir embora,
Ele que estava já com os pés bem juntos,
E morar iria com os defuntos...
E o pobrezinho do rapaz morrera
De manhã cedo, e entre clarões de cera
Ali se achava à espera que o levassem
À cova fria, e nela o enterrassem...
E ao escutares a prece terna e casta,
Tu, cujo coração sempre te arrasta
À pratica do Bem, Nossa Senhora,
Ao teu filho rogaste que, nessa hora,
Toda a chuva cessasse, e o próprio vento;
E o sol rasgasse o espaço pardacento,
E viesse com clarões e com carinho
Secar as grandes águas do caminho...
E assim aconteceu, gloriosamente:
– Tornou-se a tarde bela e resplandente.
E, quando o rapazinho entrou na cova,
Surgiu no espaço azul a lua nova,
Em linhas curvas de galera de ouro,
Na qual, Nossa Senhora, regressaste,
Entre saudosos cânticos em coro,
Indo contigo Aquele que buscaste.
Asa guiadora
Maria, em troca dos meus tormentos
Que são tão frios, que são tão frios,
Iguais aos ventos em rodopios
No mar do sul,
Dize, Maria, se eu nesse Azul
Terei a graça de me encontrar
Contigo, no mesmo Abrigo,
Na Turris eburnea do luar.
E se eu entrar no teu Abrigo,
Na Turris eburnea do luar,
Terei a imensa felicidade
De te beijar as mãos piedosas,
As mãos formosas, miraculosas,
Muito mais plenas de castidade
Do que as rosas?
E se eu beijá-las
Encontrarei alívio a todos os meus prantos,
E aos meus ais, que são tantos
Como os grãos do areal da praia nua
Por onde correm os vendavais?
Dizes que eu suba ao Bergantim da lua,
Que é o teu bergantim de marfim,
E não tema viajar por entre os sóis,
E as formosas estrelas diamantinas,
Nas regiões divinas
Onde existem milhares de faróis...
Mas quem me estenderá
A mão banhada de doçuras?
E quem me levará a essas grandes alturas
Onde o teu bergantim de marfim
Ao nosso olhar saudoso, esplêndido aparece?
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“— Busca
A asa amorosa, a asa feliz, a asa sagrada
Da Prece
Que é uma ave azul;
E ela te levará aos longínquos espaços,
Na bendita cruzada, onde nada se ofusca,
Porque Jesus lá está no Cruzeiro do Sul,
E a todos abre os braços...”
E por quem devo orar, sob o fulgor dessa asa
Guiadora, através dos longes infinitos?
— “Ora pelos aflitos”.
No além
Aonde vais com tanta pressa,
Ó minha velha querida?
— Vou pagar uma promessa
Há bom tempo prometida.
— A que santa a prometeste,
E por quem? dize, Maria.
— Pois então já te esqueceste?
Foi naquele triste dia...
— À Virgem Nossa Senhora,
Que é a nossa linda Estrela,
No dia em que foste embora,
Fiz promessa de uma vela.
— Ah! bem me lembro, Maria!
Foi naquele triste dia...
Pediste para que eu voltasse
A mornura dos teus braços,
E entre carinhos gozasse
O aperto de tantos laços...
— Foi mesmo naquele dia,
Em que aflita te dizia:
Não te esqueças de Maria,
Que morrerá de saudade
Se não tiveres piedade
Do seu amor de quinze anos.
Mas que tristes desenganos,
Que ilusão neste mundo,
Neste abismo tão profundo!
Foste embora, e só vieste
Quando te viste casado,
Que amarguras me trouxeste
Ao coração desprezado.
– Mas, velhinha, se te vejo,
Ainda graças te desejo.
E eu que sou também um velho,
Dou-te, velhinha, um conselho:
Implora à Virgem Maria,
Que no Além, num belo dia,
Possamos nos encontrar,
E, por certo, nos casar;
Pois assim te pagarei
O amor que me tiveste,
E o quanto por mim sofreste,
Quando moça, que nem sei
Se haverá, no tempo de hoje,
Que é nuvem que ao vento foge,
Quem, da flórea mocidade
A velhice, o gozo esqueça
E impoluta permaneça
Na mortalha da saudade.
Todas as mães
Todos dizem que o seu filho
Não tem nos olhos o brilho
Que noutros olhos corusca;
Nem na boca a cor vermelha
Da rosa em que loura abelha
Doçuras e aromas busca.
Nem tem nas maçãs das faces
Das belas maçãs vivaces
A tinta que é cor do sangue;
Antes a cor macilenta
Que a febre contínua e lenta
Produz no organismo langue.
Nem tem sedosos cabelos
Encrespados, em novelos,
Em derredor do pescoço;
Nem uns ombros delicados,
Antes ambos transformados
Num tronco mal feito e grosso.
O seu nariz não se mede,
Nem outro nariz o excede
Em contornos singulares...
E tem nas linhas do queixo
O formidável desleixo
Dos artistas populares.
Suas orelhas caídas
Se apresentam retorcidas
Como os caracóis no pasto;
E a larga testa parece
Uma pedra que se aquece
Ao relento do céu vasto.
E os seus convulsivos braços
Lembram bem os dos palhaços
Nos circos de cavalinhos;
E as suas mãos convulsivas
Têm as falanges cativas
Como as que estão nos anjinhos.
Ventre redondo e disforme,
Lembra o de um sapo que dorme
Em frente da sua casa;
E as suas pernas esguias
São as desse sapo, frias,
Quer o dia seja brasa...
E, além de tudo, tudo,
O seu filho é surdo-mudo,
E também não tem juízo;
Nem anda de corpo terso:
– Vive deitado num berço
Todo o tempo que é preciso...
Filho feio, o da Josefa;
Mas vive ela na tarefa
De lhe dar frementes beijos,
E os carinhos e os afagos
Dos seus negros olhos magos,
De sonhares benfazejos.
.......................................................
Assim são, no mundo vário,
Todas as mães que o rosário
Dos sofrimentos desfiam,
E com a maior verdade,
Ó Virgem da Piedade,
Nas tuas graças confiam.
O mais belo destino
Maria, o meu vizinho
Acaba de perder o seu meigo filhinho,
O mais humilde cordeirinho
Deste lugar.
Esse humilde cordeirinho
Possuía no olhar uma doçura tal
Que parecia a da água de um riacho
A correr, e a cantar por baixo
De um florido roseiral.
A sua boca recordava
Uma fruta sazonada,
Muito encarnada,
Que ele próprio trincava
De uma maneira singular.
Ao vê-la, os colibris, cansados de voar,
Procuravam-na sugar.
E que mãos tão bonitas tinha ele!
E do seu rosto a pele
Lembrava os jambos quando amadurecem
Sob os raios do sol, que do alto descem
Em centelhas
Como se fossem rútilas abelhas,
Para mordê-los.
E os cabelos
Caiam-lhe na nuca, desmanchados,
Aos punhados...
E quando o vento os sacudia,
A luz clara e puríssima do dia,
A gente se lembrava dos trigais
E do mel das abelhas.
Eram louros assim, e muito mais
Do que as asas
Do canário das telhas
Das nossas casas.
Ao encontrá-lo na estrada, à sombra dos pinheiros,
Onde trinam coleiros,
Eu me sentia bem, diante do seu olhar,
E não tinha vontade
De sair de onde estava, na verdade.
O seu olhar possuía
A doçura da água de um riacho
A correr e a cantar,
Por baixo de um florido roseiral.
Pelas manhãs azuis, muito cedinho,
Ele, o filhinho do meu vizinho,
Era encontrado já pelas coivaras,
A retinir a enxada,
Entre o veludo verde das searas.
Antes, porém, deixava
No balouçante ramo
De uma árvore, na estrada,
Sua gaiola dependurada,
Dentro da qual cantava, prisioneira,
A alma bizarra e alvissareira
De um gaturamo.
E, de guilhada atravessada
Por trás da nuca, e braços em balança,
E balanceios no andar,
Ele, embora criança,
Já sabia guiar uma junta de bois.
Pelos morros acima,
Aos solavancos, entre os matagais,
Guiava os animais
Com o guizo de prata de uma rima
A vibrar-lhe na boca; e com aquele olhar
Que parecia a água de um riacho,
A correr e a cantar
Por baixo de um florido roseiral.
E lhe queriam bem, aqueles bois!
Não tinha, o meu vizinho,
Senão esse filhinho;
O seu melhor amigo, o que já trabalhava,
A cantar satisfeito, para o monte...
Mas, ao descer cansado,
A frente dos seus bois, meteu-se numa fonte,
No caminho,
E, por isso, apanhou uma constipação
Que o levou para a cama, de tal jeito
Que lá está, o cordeirinho,
De mãos postas ao peito,
Todo gelado...
E não lhe bate mais, o coração!
Dessa virgem corola
De açucena, evolou-se o aroma casto...
Sobem a estrada florida do pasto,
Os meninos da escola,
Que, ao saberem da nova,
Vieram buscá-lo para a fria cova...
...........................................................................
Vim apenas orar, com piedade e carinho,
Pelo seu pai, o meu vizinho.
Enxuga-lhe, Maria, o amargo pranto,
Com os lenços brancos do teu amor
Tão santo;
E que toda a aflição
Do seu magoado coração
Mergulhe no esplendor
Do teu sublime espírito divino,
Para que ele possa imaginar,
Sem blasfemar,
Que o mais belo destino de um menino,
Com uma Estrela ao norte, está na morte.
Um pão de trigo
Nossa Senhora, os meus filhinhos,
Que eram implumes passarinhos
Sem o sol do verão,
Num certo dia tiveram fome.
E eu, em vez de soluçar, e blasfemar,
Contra a sorte, (o que seria em vão)
Lembrei-me então de te chamar.
Não chamei a morte para os meus filhinhos
Porque eu sabia, como ainda sei,
Que nos caminhos
Ínvios do mundo há sempre um dia
Para cada noite,
E um lenitivo para cada açoite.
Não solucei, pois não valia soluçar;
Porque a vida é mesmo assim:
– Para uns, um manto
De alvo cetim;
Para outros, trapo,
Velho farrapo;
Noites sem beira,
Dias sem eira,
Contínuo alquebranto;
Para uns cuidados de felicidade;
Para outros, recanto, ou longos caminhos
Em praia deserta, toda coberta
De atros espinhos, duros espinhos...
Que praia triste!
Para uns existe o loiro trigo;
Farta toalha...
Para outros, palha...
– Coma-a o mendigo.
A vida é assim, dessa maneira:
– Vem uma noiva toda vestida
De flores alvas, de laranjeira.
Que noiva bela!
Abre-se a capela,
Abre-se a ermida
Para recebê-la.
Lindo noivado!
Abre-se um leito, de rendas alvas,
Para recebê-la...
E a noiva pisa cheirosas malvas,
Lírios e rosas e açucenas;
E o seu amado
É um pastor tocador de avenas,
Iluminado.
Noiva tão rica, meiga e louçã,
Só a Estrela da manhã!
E, à mesma hora, parte daqui,
Uma outra noiva, também vestida
De alvas flores de laranjeira.
Gelou-lhe a morte, no entanto, a tez;
Deu-lhe a cor da própria cera,
Depois de angústia de quase um mês...
Gelou-lhe as mãos, gelou-lhe o peito;
Tornou-a branca como o jasmim.
Mas esta noiva dorme num leito
De pano azul, todo fechado...
Ei-lo levado, pelos barrancos,
Aos solavancos.
Abre-se a cova, abre-se a cova
Para recebê-la.
Pálida estrela!
E logo à noite, a lua nova,
Lhe mostrará uma aliança
Que se retrata, feita de prata,
Num fundo negro, sepulcro escuro...
Eis o futuro
Desta outra noiva, também vestida
De alvas flores de laranjeira.
Toda contraste, a nossa vida;
A vida inteira!...
E tudo mais no mundo é assim...
Mas todas as cousas têm um fim.
Findou então,
Nossa Senhora da Conceição,
A triste fome dos meus filhinhos.
Porque o teu nome me veio à mente,
E, de repente, vi que baixaste,
E me escutaste.
Nessa hora, então, um velho amigo,
Lançou-me à mesa um pão de trigo.
Na ermida da crença
Da ermida onde nós oramos
Os horizontes fitamos...
A ermida da nossa crença
Está numa altura imensa.
É-lhe a fé toda a argamassa;
E nas torres se entrelaça,
Como um Arco de Aliança,
A bandeira da Esperança,
Desfraldada aos quatro ventos
Dos nossos padecimentos,
Para que eles se transformem
Em alegrias, e formem
O halo das nossas frontes,
Pela luz dos horizontes...
Da ermida onde nós oramos
Os horizontes fitamos;
E nas suas lindas cores
Bendizemos nossas dores.
Nossas lágrimas, choradas
Pelas mais negras estradas.
Nossos clamores convulsos,
E os elos dos nossos pulsos.
Nossos olhos apagados;
Nossos ouvidos fechados;
E os nossos próprios cabelos
No polvo dos pesadelos;
Nossa boca no vinagre;
E nossas faces no ozagre.
Nossas linhas do pescoço
Na algema de um calabouço.
Nossos corações pulsando
Em mágoas, de quando em quando;
Nossos frágeis, flébeis braços
Estendidos aos espaços.
Nossos rins sem energias;
Nossas pernas doentias.
Nossos pés todos feridos
Nos cascalhos esquecidos
No chão dos ínvios caminhos
Atapetados de espinhos.
Mas, da ermida onde oramos,
Os horizontes fitamos;
E, unidas, nossas almas
Como veem floridas palmas
Nesses largos horizontes
Que dão halo às nossas frontes
Para que um dia possamos,
Sim, nós dois que nos amamos,
Subir, ao clarão de um dia,
Aos pés da Virgem Maria,
E receber os afagos
Dos seus lindos olhos magos,
E pedir-lhe, eternamente,
Com sentimento profundo,
Não se esquecer dessa gente
Que anda sem crença no mundo.
Carregando uma cruz
Quando eu era rapaz,
Alma alegre e fremente, e coração audaz,
Amava loucamente os pássaros e as flores
Dos matagais.
Pelas lindas manhãs
Coroadas de fulgores,
Eu e as minhas irmãs
Corríamos ao campo, e o campo nos enchia
De diamantes de orvalho...
Galgávamos a encosta, e, lá em cima, nos morros,
Gozávamos os jorros
Da luz que, para nós, era a unção do trabalho.
O que, pelas manhãs, os nossos olhos viam
Nas searas em flor, nas árvores, nos rios,
Em tudo, enfim, só recordando
Um ano inteiro.
E o que ouvíamos cantar!
Cantava a luz do sol, na alma ideal das aves,
Umas canções suaves;
Cantava a luz do sol, nas rútilas cigarras,
Umas canções bizarras;
Cantava a luz do sol, no áureo pólen das rosas,
Umas canções cheirosas;
Cantava a luz do sol, nos verdes laranjais,
Canções cheias de amor, outras só cheias de ais!
Cantava a luz do sol, nas carícias do mar,
E nas velas que o vento enchia de esperanças.
Nos simples corações das meigas pombas mansas
Cantava a luz do sol! Só mesmo recordando
Um ano inteiro.
E é o que ontem recordei, à sombra de um pinheiro.
Vi passar por ali, de quando em quando,
As mesmas aves, com seus cantos suaves;
E as searas em flor, essas mesmas searas,
Pelas róseas manhãs, dulcíssimas e claras;
E aqueles rios com os mesmos amavios...
E, desse mar azul, as marulhosas ondas,
Eram, na mesma praia, as vedetas, as rondas...
E ainda recordei as rumorosas mondas,
E a fartura nas granjas,
Sentindo em derredor o aroma das laranjas,
E o da polpa febril dos ananases,
Que eu trincava, sedento, e mais outros rapazes.
E recordei também as roças trabalhadas
Nas várzeas do sertão; e essas longas jornadas
A frente dos meus bois, de dia, ou à luz do luar,
Pelas brancas estradas,
E, às vezes, junto do mar, onde, já homem feito,
Comecei a sentir, nas entranhas do peito,
Uma louca paixão pela minha
Vizinha, uma rapariguinha
Que era a mais bela rosa do lugar!
Recordei os engenhos,
Nas farinhadas alvoroçadas,
Nas quais havia empenhos
Para eu com essa rosa me casar.
E eu tinha um coração para adorá-la!
A sua casa branca era a melhor das granjas,
Onde eu, muito feliz, nos carinhos da sala,
Ou nos terraços,
Unido à rósea cruz dos seus formosos braços,
Chupava, em gomos d'ouro, o suco das laranjas.
Mas tudo se acabou por que, na flor dos anos.
Tive de ir para a guerra
Dos desenganos, longe da minha terra...
E que saudades havia a toda hora do dia!
Que saudade das árvores, dos rios,
E dos seus murmúrios!
Que saudade das aves,
E dos seus cantos suaves!
Que saudade dos morros e das searas,
Pelas manhãs claras!
E dos meus bois, de tão humilde olhar!...
Que saudade das praias e do mar!
E, das minhas irmãs,
Que, comigo, ao clarão dessas manhãs,
Aos altos morros íngremes subiam,
Que saudade!
E que saudade da velhinha triste
Que eu deixara a chorar, e que hoje não existe!
Mas a minha maior saudade, nessa guerra
De tantos desenganos,
Na virgem flor dos anos,
Era por ela, a mais faceira rosa
Do lugar!...
Seus lindos olhos me seguiam
Como dois passarinhos, pelo ar...
Dois passarinhos que os meus olhos viam
Como se os vissem neste almo lugar,
Onde eles, coitadinhos! se molharam
De um pranto amargo e atroz, quando eu parti.
E quantas vezes, quantas, lá os vi,
Nos desertos campos profanos
Dos desenganos, na guerra atroz.
Nessa luta titânica, feroz!
À noite, eram dois lindos pirilampos;
De dia, dois misteriosos sóis!
As suas mãos formosas me acenavam
Como se fossem flâmulas de linho...
Eu via, então, o branco do caminho;
E os meus braços na luta descansavam.
Sua boca cantava umas canções
De tal maneira meigas, e suaves,
Que eu nelas via um livro de orações,
Ou quem sabe? se o cântico das aves.
Suas tranças viviam a prender
Os flagelos que me atormentavam.
E muitos, muitos deles vi morrer
Quando essas tranças sobre mim voavam...
Seu peito era, na guerra, onde eu me via,
Uma couraça que jamais quebrou-se
Por isso, uma esperança sempre havia
P'ra consolar-me, fosse como fosse.
Pensando nela, assim, é que eu vivia.
Horas inteiras, dias e semanas,
Não me faltando n'alma uma alegria,
Mesmo junto das lutas mais tiranas.
Anos depois voltei,
E vi tudo mudado, que nem sei!
Desceu-me, então, ao coração
Uma amargura que me compungia,
Pois em todas as coisas só eu via
Desolação...
E já não existia
A mais faceira moça do lugar!
Morrera, a pobrezinha, em plena mocidade,
Sem se casar!...
................................
Ao recordar-me dela, dessa flor
Que fora neste mundo o meu primeiro amor,
É que me vês, Senhora, de mãos postas,
Carregando uma cruz por sobre as costas,
De minuto a minuto, hora a hora,
Porque fui eu, Senhora,
Quem, ingrato, a matou de profunda saudade...
Diálogo no lar
— Para o nosso filho que vem de nascer,
Mostra-me a camisa que fizeste, Amada.
— Ei-la; - é rosa e azul, toda perfumada,
E eu pedi à aurora para ma fazer.
— Para a cabecinha desse nosso filho
Quem faria, Amada, a pequenina touca?
— Fê-la, meu querido, o sacrossanto brilho
Das lhamas dos beijos da minha alma louca.
— Para esse pimpolho que, daqui a um ano,
Andará nas praias, quais os sapatinhos?
— Ora, que pergunta! Pois serão de pano?!
Dar-mos-á a pluma dos cheirosos ninhos.
— A esse que, sorrindo, veio ver o mundo,
Que berço daremos, para o embalançar?
— Dar-lhe-emos a asa de um amor profundo,
Vasto como o espaço, e como o verde mar.
— Para esse cordeiro que estes nossos olhos
Hão de apascentar, que aprisco daremos?
— Dar-lhe-emos um, entre os cheirosos molhos
Das tulipas virgens, que nos sonhos vemos.
— E esses seus lençóis onde foram urdidos,
Eles, defumados à alfazema e à malva?
— Nos áureos teares, só por nós conhecidos,
E quem os urdiu foi a Estrela-d'alva.
— Com que banharemos o nosso filhinho
Que nos trouxe à alma o clarão do dia?
— Com perfumes doces, do mais claro vinho
Dos vinhedos de ouro da nossa alegria.
— Como todo filho de gente ricaça,
Quem pudesse vê-lo com guizos na mão.
— Ora, não precisa: para nos dar graça,
Basta que chocalhe com meu coração.
— A Virgem Senhora, que do Altar te escuta,
Que o destine ao Bem, que lhe dê bom fado.
— Que lhe dê uma alma límpida, impoluta,
E lhe dê dos sonhos todo o sol dourado.
— A Virgem Senhora, Flâmula da Glória,
Que lhe dê no mundo o mais feliz destino.
— Que lhe torne a vida eternamente flórea;
E o seu peito um cálice de licor divino.
— Que lhe guie os passos neste mundo insano,
Onde se renega a própria luz do Amor.
— Que lhe dê na vida um coração em flor,
Sem os ventos frios do fatal engano.
.................................................................
— Ana, que olhos tristes os do nosso filho!
Vejo-lhe nos olhos uma grande mágoa...
— São iguais aos teus, que através de um brilho
Vago... muito vago... vivem rasos de água.
Minha mãe
Se me ensinaste a orar,
Numa casinha branca, muito branca,
Porque razão não hei de me lembrar
Da tua alma tão franca,
Tão pura, tão leal, tão boa e tão formosa,
Como se fosse, assim, uma pedra preciosa,
Um rico talismã, um sagrado amuleto
Que rolasse da Estrela da Manhã
Para dentro do meu peito?
Se me ensinaste a orar, numa casinha branca
Junto do mar que docemente orava
Conosco, pelas tardes azuladas
Em que as praias iluminadas
Pareciam de prata, e por onde chilreava
A gaivota feliz, na largueza dos ares,
Em liberdade,
Porque não hei de me lembrar de orar
Com humildade,
Sempre e sempre por ti,
A Essa cuja imagem
Baixa à ermida aromal da minha grande fé,
Cada vez mais graciosa e alvissareira
Como a pomba que trouxe à Barca de Noé
Um ramo de oliveira?
Quase sempre à tardinha, à hora do sol descer
Às linhas sinuosas dos penhascos,
Entre pompas de damascos, e trompas
De alaridos de cores,
Gostávamos de ver
O teu sublime olhar, ó minha mãe querida,
Voltado à sideral, esplêndida paisagem
Na qual tua alma via a encantadora Imagem
Da Senhora das Dores.
E quantas flores
A Ela pedias para a nossa vida!
Mas não pedias só por nós, querida,
Ó minha mãe estremecida!
– Também pedias
Pelos demais filhos,
Filhos de outras mulheres,
Que andassem, coitadinhos! pelos trilhos
Escuros desta vida, onde Ceres
Escasseia de dar mãos cheias do trigal,
Ou para nosso bem, ou para nosso mal.
Se um barco, navegando a velas pandas,
Entrava no mar-alto, em busca de outras bandas,
Em que sobressalto teu coração se via,
E se via tua alma impressionada!...
E a tua prece era então acompanhada
Pela prece dos teus filhos,
Na mesma estrada de soturnos trilhos,
Para que o barco lograsse o marco
Desejado, por cima dessas vagas
De tantas, tantas horas aziagas.
Se um velhinho apontava no caminho,
E chegava-se até nós,
Não havia quem risse do velhinho,
Porque tu nos dizias:
– Um dia chegará em que vocês, meus filhos,
Hão de andar desse jeito...
E quem sabe? maltrapilhos...
Pois ninguém conta o fim do seu destino
Neste mundo imperfeito,
Embora lhe bafeje um sol tão cristalino!
E ninguém ria, minha mãe, dos velhos,
Pois ouvíamos bem os teus conselhos.
Não querias que nós, os teus filhos queridos,
Atirassem pedras ao vizinho,
E dizias, confiante, a cada instante:
– “Quem faz mal ao seu vizinho
Já vê o seu no caminho...”
Não nos deixavas atirar pedradas
Às aves das estradas,
Que muitas eram mães abençoadas;
E outras, filhas estremecidas;
E outras, noivas sonhadoras:
– Almas alegres e cantadoras.
E não querias que os teus filhos nunca
Negassem a água que nasceu p'ra todos;
Nem tivessem, por certo, garra adunca
Diante do trigo que se espalha aos rodos,
Quando o orvalho dos céus o amadurece
E ele se torna em messe...
E sempre nos dizias:
– “Não são nossos os dias,
“Nem sabemos contá-los...
“E quem nega será neste mundo negado,
“Porque tudo que existe é uma cousa só,
“Seja a luz fulgurante, ou seja o próprio pó.
“Desde os lírios dos vales
“Às rosas do cercado;
“Desde a violeta modesta
“Ao esplendor da floresta;
“Desde os rios silenciosos
“Aos oceanos tenebrosos;
“Desde as areias das praias
“Às fúlgidas alfaias
“Dos astros misteriosos;
“Desde o inseto ao condor,
“Seja em que lugar for;
“Na terra e nesses céus, onde haja luz ou pó.
“Tudo, tudo que existe é uma cousa só:
“É Deus! Unicamente a Natureza! É Deus!”
Ora, se eu tive assim, no princípio da vida
Indefinida,
Uns conselhos tão belos,
E continuo a tê-los,
Porque me vens olhar serenamente;
Porque me vens falar suavemente;
E me vens abraçar veementemente...
Se eu recebi de ti tão bonitos conselhos,
Eis-me aqui de joelhos
E mãos postas, a orar... a orar...
E orarei toda a vida
Por ti, sempre por ti, ó minha mãe querida!
A lua
Que luar! Que lua branca
Rolando no espaço, franca!...
Mas a luz que ela derrama
Não é forte, não tem chama.
Não é luz de labaredas,
Como a que, nas alamedas,
Nos campos, no mar, nos rios
Acende o sol dos estios.
É suave, branda, morna,
E em carícias se contorna;
Tem inefáveis doçuras
Nas suas castas alvuras;
Tem dolências e dolências
Pelas suas florescências,
Floresce todos os meses
Sem se importar dos reveses...
Rola... rola... nos espaços,
Sem fadigas, sem cansaços;
Ora surge, à nossa vista,
Como uma pedra ametista.
Ora surge, cristalina,
Como anel de pedra fina.
E, crescendo, lembra um barco
Com suas linhas em arco.
Se está virada p'ra cima,
O bom tempo se aproxima;
Se está virada, em contrário,
O tempo nos chega vário;
E depois fica redonda
Como o alvo pão da monda.
Pelo céu de tons de malva
Parece, às vezes, a salva,
Onde, há séculos remotos,
Alguém, cheia de atroz votos,
Expôs, num festim profano,
O sangue de um ser humano.
É quando ela se enrubesce,
E sanguínea nos parece.
Mas, outras vezes, a lua
Muito doce, se habitua,
Na sua rondagem franca,
A parecer cera branca,
E nesse estado, risonho
Que eu vejo-a sempre no sonho...
Ontem, pela madrugada,
Eu vi a lua velada...
Olhei a distantemente,
E ela me chamou, contente.
Abriu-se em portas, aos pares,
E lhe vi todos os lares.
Julgando-a toda de neve,
Ei-la de pluma, a mais leve...
Era leve como a pluma
Da garça, e bem como a espuma
Do mar, quando o mar soluça,
E na praia se debruça.
Nunca vi solar mais lindo
Nesse céu azul, infindo.
E a lua me disse: – “Entra,
E de joelhos te concentra...”
Entrei, e fiquei de joelhos
Ante aqueles bons conselhos.
Era a lua um corpo vivo,
Espiritual, mas cativo...
Ouvi-lhe as suaves falas,
Pronunciadas em opalas,
E em perfumes de alvas rosas
Cada vez mais perfumosas.
Mas antes de entrar na lua
Deixei fora o pó da rua;
Deixei no mundo, na terra,
A miséria que ela encerra,
Pois tinha de entrar bem puro,
Bem lavado, e bem seguro
De encontrar, lá dentro dela,
A vida mais santa e bela...
E com efeito lá dentro,
Dessa lua no alvo centro,
Encontrei, em flébeis ninhos
De delicados arminhos,
Muitas crianças felizes,
Sem as fundas cicatrizes
Dos sofrimentos do mundo,
Que é dos mais o mais profundo,
Perdido pelas distâncias,
Na negra estrada das ânsias.
E a lua me disse, ainda,
Cada vez mais doce e linda:
– Quando cresço, quando cresço,
À terra tristonha desço
Os meus fluídos... Mas, no entanto,
Quantas mães cheias de pranto,
Dizem de mim tantas cousas!
Se algum dia, para as lousas,
Levei-lhes os filhos?! Quando?
E se veem os filhos chorando,
Também dizem: – “Foi a lua,
Que viu as fraldas na rua...”
E a alva lua ainda me disse,
Toda cheia de meiguice:
– As criancinhas que morrem
Lá embaixo, se socorrem
Da minha força atrativa,
Forte, veemente, emotiva...
Eu mesma é que vou buscá-las,
Para aqui agasalhá-las,
E dar-lhes, no céu divino,
O farol do seu destino,
Abençoado por Aquela
Bendita e serena Estrela,
Que aqui vem todos os dias,
Vestida de pedrarias;
Que aqui vem, dentro de um raio
De encantos, no mês de maio,
Trazer-lhes um pão de trigo,
Água fresca, e um manto amigo.
O que a minha alma deseja
Como está formoso, como está tão belo
Esse céu da tarde, tinto de amarelo!
Dir-se-ia todo pincelado a ouro,
E a topázios quentes, do melhor tesouro...
E outras pedras há, nesse céu tão lindo,
Que parece um templo que se vai abrindo...
Refundem-se a prata e os cristais em rama,
E uma nuvem branca transformou-se em chama.
Muitos os sardônios, muitos os berilos,
Faiscando alguns, outros mais tranquilos.
Turmalinas róseas, outras azuladas,
Descem docemente das regiões veladas.
Ágatas sublimes, de um valor sem preço
São, dos altos morros, todo o adereço.
E os rubis sangrentos, – brasas que esfriaram –
Como sobre as serras todos se alastraram!
Chocam-se no espaço de safira clara,
Esmeraldas frescas, de um frescor de seara.
Ametistas abrem mil visões nas fontes
Cujo leito espelha toda a cor dos montes.
Orgias nervosas, de brilhantes raros,
Gritam pelos campos cânticos bizarros.
Muitas outras joias de variadas cores,
Erram, nesta tarde, rebentando em flores.
Abrem-se damascos, e veludos, sedas,
Por sobre as florestas cheias de alamedas.
Abre-se nas ondas fluídica escumilha,
E dela surge a nossa encantadora Ilha:
– Berço balouçando no frouxel das ondas
Que lhe fazem, meigas, continuadas rondas;
– Berço de alegrias feitas de esperanças,
Onde dormem velhos, e onde sonham crianças;
– Berço de almos sonhos para as raparigas
Que só dormem rindo, e a desfiar cantigas...
– Berço para a alma dos febris rapazes,
E para a alma casta dos pombos torquazes.
– Berço onde os meus olhos, quando se entreabriram
Tantas coisas lindas e tão ricas viram.
– Berço onde inda, agora, os meus tristes olhos
Veem divinamente tudo sem abrolhos.
..............................................................................
Nesse berço aberto às tardes de ouro fosco,
É que a minh'alma, num recanto tosco,
Muito quer me ver, mãos em cruz no peito,
No momento extremo, quando, satisfeito,
De haver cumprido todo o bem no mundo,
Eu cair num sono por demais profundo,
E alcançar, Maria, nos teus lindos braços,
O consterno para os meus cansaços.
Visitando o meu filho
Senhora, foste ver o meu querido filho
Que tão doente está,
Prestes, (Quem sabe lá?)
A fechar para o mundo as pálpebras tranquilas,
Dentro das quais existe o amortecido brilho
Dos luares de junho a encher-lhes as pupilas
De um palor que se espalha
Como se fosse, assim, uma triste mortalha?...
E foste ver um coração materno
Como o teu, igual ao teu,
Tão terno,
Que junto ao filho seu
Passa noites inteiras a fitá-lo,
E a velá-lo,
Sem dormir, sem comer, sem beber água,
Sem descanso nenhum, como é comum
Às mães que sentem n'alma o vinagre da mágoa?
E foste ouvir, Senhora,
Aquele coração que tanto chora
Aflitamente,
Há dois anos seguidos,
Junto ao filho querido,
Não por vê-lo morrer, mas por vê-lo sofrer
Lentamente?
Contemplaste, Senhora, o roxo das olheiras,
As violetas machucadas
Dos olhos pensativos, doloridos
Dessa mulher que passa horas inteiras.
Muitos dias compridos.
A te enviar o triste olhar
Que é a mais viva expressão do clamor, dos anseios,
E das rezas concentradas e abafadas
No vale branco e cândido de seus seios?
E viste-lhe no rosto os lívidos traços
De um profundo desgosto?
E viste-lhe os braços
Estendidos ao céu que ela vê através
Dos buracos das telhas,
Crivado de centelhas?
Desse céu todo azul, refúgio dos tormentos
Os quais são como os ventos
Que arrastam pelo campo as rosas e os junquilhos?
E os nossos filhos
Que mais são, no mundo, ao nosso lado,
Do que rosas e junquilhos?
Viste-lhe o cálice torturado
Da boca, e lhe provaste o mosto esverdinhado,
Bem como o de um licor feito do fel
Tristíssimo e cruel,
Só bebido por quem mora na própria dor?
Assim, de joelhos trêmulos no chão,
Em mãos juntas,
Fiz essas perguntas
À Nossa Senhora da Conceição.
E Ela, tão meiga, e de tão lindo olhar,
Companheira de todos os fiéis,
Deixou-me ver, então,
Nos floridos degraus do seu altar,
Entre lírios nevados,
E entre o Pão e o Vinho,
A marca dos seus pés ainda molhados
Das lágrimas do orvalho do caminho...
No Campo Santo
Do Campo Santo, e dentro dele,
Na dor que impele o amargo pranto,
Uma mãe vi chorar a sorte
De quem, na morte, morava ali:
Chorava o filho, que o lindo brilho
Do olhar perdera, como perdera
A linha rosa de primavera,
Casta e cheirosa, da meiga boca
Que ela beijava seguido, e louca,
Quando, ansiosa, o amamentava.
Mesmo o menino, era o divino
Retrato amado de um querubim,
Com os cabelos sempre em novelos
De fios de ouro e de cetim.
Em cada face, uma vivace
Papoula havia, toda orvalhada
Da luz dourada de um claro dia.
Uma covinha engraçadinha
Ei-la no rosto, de lado a lado,
No sazonado fruto de agosto.
– Graça lhe dava, quando ele, rindo,
Cantarolava... cantarolava...
Bem crescidinho, fez-se roceiro;
E, no caminho, de quando em quando,
Cantarolava... Cantarolando
Ia deixando, na paz dos vales;
Pelas escarpas, ais de atabales,
Gemidos de harpas, soluços de harpas...
Livre dos tombos, caçava pombos,
Pelas coivaras; e, nas florestas,
Ardendo em festas, caçava araras...
De manhã cedo vagava ledo,
Numa canoa... E quantas vezes
Guiava as reses para a lagoa.
Do carro à frente sempre imponente,
Chamava os bois; e, pelo barro,
Ouvia o carro chiar depois...
E, no terraço, a mãe ao vê-lo,
Erguia o braço para prendê-lo,
Porque no mundo só ele havia,
Na poesia do amor profundo...
E meditava: – “Se acaso a morte
Um dia viesse, e lhe trouxesse
Uma mortalha, das que espalha
No mundo inteiro, dentro da mesma
Corpo de lesma ela seria,
Porque ninguém cismar podia
No grande bem que ela nutria
Por esse filho, por esse filho.
Mas veio a morte, faca de corte,
E o lindo brilho do olhar do filho
Querido, amado, ei-lo cortado
De uma maneira traiçoeira...
E então a alma da mãe, sem calma,
Sem um sossego, viu-se no pego
Dos sofrimentos... E os seus lamentos
Negros, estranhos eram tamanhos
Dos próprios ventos agourentos.
E aquela pobre mãe tão tristonha
Ajoelhada sobre o frio chão,
Como quem sonha parece estar:
– Olhos fechados, amortalhados,
Na compaixão de um triste luar...
Luar funéreo que ao cemitério
Profundo desce como uma prece.
........................................................
E como eu tenho a convicção
Da alma voar para a Mansão
Celestial, na ocasião
Em que a morte, faca de corte
Nos corta a vida bem definida,
Bem material... E como tenho
Toda a certeza que amor igual
Ao maternal não há no mundo;
Por isso venho, Nossa Senhora
Pedir, nesta hora, o almo consolo
Que no teu colo é ninho eterno
E nos teus lábios, doces ressábios
De áureo falerno; e nos teus olhos,
Luz infinita, para os escolhos;
E em tua mão, a direção
Que necessita, no mundo vão,
Nosso triste coração.
Vai até lá ao Campo Santo,
E reviver...
Nossa Senhora, e com teu manto
Enxuga o pranto dessa infeliz
Que não quis ouvir dizer,
Que a gente nasce para morrer.
A Capela da Piedade
Da vida; nas grandes lutas
Do trabalho, dia e noite,
Sempre teve o frio açoite.
Dos vendavais da desgraça
Que sobre as cabeças passa
Sem lhes permitir sossego,
E nem lhes dar o aconchego
Que tanto amaina e consola,
Como nas mãos uma esmola...
Em rapaz, viu-se sem pai;
E, um ano depois, lhe cai
Outra orfandade, de sorte
Que ele quis chamar a morte
Para livrá-lo do mundo
Que lhe era negro e profundo
Em saudades doentias;
Em pesadas nostalgias...
Mas recuou, sem coragem,
Por lhe perceber a imagem
Sempre vaga e sempre triste
Como nenhuma outra existe.
Receando, do cemitério,
Todo o trágico mistério;
E toda a velada vida
Do Além, sempre indefinida.
Ficou, então, no caminho
Do mundo; e, agora, velhinho.
Recordava o que sofrera
Nesta vida passageira;
Passageira de tormentos
Em todos os seus momentos...
E passageira, bem certo,
Por lhe ser o fim incerto.
Recordava a juventude
Dormindo num ataúde;
Vendo-a dentro da mortalha
Que a mão do destino talha.
Recordava a mocidade
Que é força e vivacidade,
E é Lótus que, na existência,
Só tem uma florescência.
Passou-a, britando a pedra,
Num trabalho que não medra;
Não temendo o sol do estio,
Nem o fogo, e o vento frio.
Fez-se também carpinteiro,
Trabalhando o ano inteiro.
Construiu casas formosas,
Por entre tufos de rosas.
Construiu uma num monte,
De onde se via o horizonte;
E outra, junto de um riacho
Que, à tarde, lembrava um facho...
E, em filas, nas praias francas,
Construiu casinhas brancas.
E construiu, nas ilhotas,
Outras mais, onde as gaivotas
Iam, meigas e serenas,
Sacudir as suas penas.
E construiu, na montanha
Da vila, uma casa estranha
Em belezas singulares,
Que dava encanto aos olhares,
Porque, quando a lua vinha
Surgindo da onda marinha,
Logo a sua luz tão bela
Lhe entrava pela janela...
E quem, de longe, a fitava,
Alegremente afirmava
Haver outra luz estranha
Na casinha da montanha.
Entre lírios e entre goivos
Construiu casas para noivos.
Para uma velha aleijada
Construiu uma na estrada.
Dando-lhe as tábuas e as telhas,
E um lugar para as abelhas.
Para um pobre lazarento
Construiu outra, num momento.
Entretanto nunca, nunca
Construiu uma espelunca
Onde os anos, acabasse,
Quando a morte lhe chegasse...
E ainda agora, bem velhinho,
Construía, junto ao caminho
(Sua última vontade)
A Capela da Piedade.
Junto da qual, fatigado,
Viu-se, no entanto, parado.
Amortecidos os braços.
Fugindo-lhe o chão aos passos;
Sem, por certo, perceber
Que era ali que ia morrer!...
Ei-la, vai passando. Que velhinha asseada,
De bandós de neve, e fulgurosos brincos!
E ainda há pouco estava toda fatigada
A colher cachopas de algodão nos zincos
Estendidos junto aos roseirais da estrada!
Vai passando alegre, sem temer barrancos,
Sem temer as pedras da subida agreste.
Os seus pés estalam dentro dos tamancos;
E se agita ao vento, numa cor celeste,
Sua saia nova, de babados brancos.
Vai passando alegre, tendo nos olhares,
Doçuras de arminho, de veludo e rosas,
Que trocou na vida, pelos seus pesares,
Pelas mágoas roxas, mais que tenebrosas,
Quando norteada por outros pensares.
A princípio, o seu coração chorando,
Muitas ânsias teve, atravessado a lanças
Pelo seu filhinho que morrera quando
Toda a vida lhe era um marulhar de esperanças
Que recordam pombos pelo ar voando.
Só pensava, é justo, na vida terrena
Que do berço vai à sepultura, e... finda.
Nunca ouviu pastor tocador de avena,
A chamar ovelhas para a vida infinda,
Onde não se chora, nem se sente pena.
Mas, por uma feita, bem deitada estava
Num colchão de musgo com lençóis de linho
Quando, ao ver alguém que no quarto entrava,
Viu-se beijocada pelo seu filhinho
Que lhe disse coisas que ela ignorava.
Desde então lembrou-se de que tudo quanto
Neste mundo existe (menos a maldade),
Tem de Deus, que é Pai, o bafejo santo...
E quem sabe lá se, na mocidade,
Lhe daria, o filho, amargurado pranto?...
Ei-la, vai passando, como sempre passa,
Toda uma beleza de encantar a gente.
Vai orar na ermida, e receber a graça
Que Maria dá ao coração do crente
Que, ao seu, no mundo, com fervor se abraça.
I
Por que parti? Certamente
Porque no Azul florescente
De luxuriosas estrelas,
Eu te vi, do meio delas,
Partir, com saudade, à terra
Que agora o teu corpo encerra
Nas suas ânsias e mágoas,
Tão revoltas como as águas
De um rio a rolar de bruços
Pelo Vale dos Soluços...
E como ficasse eu triste,
No momento em que partiste,
Parti também, desse jeito,
Para te ver junto ao peito,
E beijar os teus cabelos
Aveludados e belos:
E beijar teus olhos pretos,
Esses ricos amuletos;
E beijar a flor graciosa
Da tua boca cheirosa;
E beijar as tuas faces,
Da frescura das alfaces;
E beijar tuas orelhas,
Como as rútilas abelhas
Beijam loucamente as flores,
E lhes sugam seus olores;
E beijar, com alvoroço,
O marfim do teu pescoço;
E beijar, mudo de anseios,
Os liriais dos teus seios;
E beijar sempre os teus dedos,
As chaves dos meus segredos;
E beijar as curvas doces
Dos teus pés, como se fosses
Uma encantada princesa,
Alma branca de pureza;
Alma branca e alvissareira
Como a Gata Borralheira,
Chegada de uma viagem
Na qual eu fosse o seu pajem.
II
E partimos... (Deus o quis)
Mas como foste infeliz!
Pois na terra cujas mágoas
São revoltas como as águas
De um rio a rolar de bruços,
Pelo Vale dos Soluços,
Entre soluços te viste,
Sempre triste, sempre triste!
E como me procuravas,
E o meu nome reclamavas,
Em completo desatino,
No caminho do Destino.
Sem poderes encontrá-lo
Nem no mais sombrio valo!
É que te achavas perdida,
Ó minha prenda querida.
III
Perdido, eu também me via,
Toda a noite, e todo o dia.
Em busca dos teus cabelos
De encantadores novelos;
E desses olhos tão pretos
Como dos chupins irrequietos:
E da linda flor graciosa
Da tua boca amorosa;
Em busca das tuas faces
Divinamente vivaces;
Em busca dessas orelhas
Que de rubis aparelhas;
Em busca desses teus seios,
Campos dos meus devaneios;
Em busca desses teus dedos,
Cardamomo entre arvoredos;
E das curvas muitos doces
Dos teus pés, como se fosses
Uma encantada princesa,
Alma branca de pureza;
Alma branca e alvissareira
Como a Gata Borralheira.
Chegada de uma viagem
Na qual eu fosse o seu pajem.
IV
Ambos perdidos, chamando
Um ao outro, em quando, em quando
No Caminho do Destino,
Cada qual em desatino,
Por muitas sombras passamos,
E que pesos carregamos,
Sem que os nossos olhares,
Pela terra, e pelos ares,
Pudessem, sequer de leve,
Encontrar uma hora breve.
De amorosa confidência
Na Ermida da Penitência.
Em prol dos nossos pecados,
Nos tempos antepassados,
Em que nós dois, nos espaços,
Entrelaçados os braços;
Unidas as nossas bocas,
Fomos as almas mais loucas
Na volúpia nupcial.
Sob as árvores do Mal.
V
Mas Deus, ao pensar, depois,
Teve pena de nós dois.
E sendo Ele o grande amigo,
Que não tira um grão de trigo
No Caminho do Destino.
Onde a gente, em desatino.
Vencendo rios e escombros,
Carrega uma cruz aos ombros.
Fez com que, prenda querida,
Ao raiar de uma outra vida,
Nossas almas se encontrassem,
E ardentemente falassem
Do Amor sublime e forte,
Banhado de um sol divino;
Vencedor da própria morte.
No Caminho do Destino.
Valésia
Valésia, lembrei-me agora
De orar à Nossa Senhora
Pelo que tanto padeces...
E não há nada como as preces
Que a gente faz de joelhos.
Ao receber os conselhos
Da própria alma enternecida
Pelos tormentos da vida.
As preces da alma se evolam,
E são fluidos que consolam.
Minhas preces são perfumes
Que se transformam em lumes.
Minhas preces são tão belas
Como a prata das estrelas.
São óleos, as minhas preces;
E tu que bem as mereces...
Óleos de unção, óleos bentos
Por todos os Sacramentos.
São asas amparadoras;
E, por certo, guiadoras...
Da tua alma pelo espaço
Ao qual ergues o teu braço;
Ao qual, aflita suplicas
Amparo, e amparada ficas.
São clarões pelos caminhos
Atapetados de espinhos.
Por onde passas descalça
Sob a luz que te realça.
São uns leves lenços brancos
Para te enxugar os prantos.
São os meus próprios olhares
Aliviando os teus pesares.
São meus braços, e meu peito,
Servindo aos teus, desse jeito...
São meus lábios e meus beijos
Na taça dos teus desejos.
São grãos de trigo dourado,
Germinando com cuidado.
As minhas preces são águas
Ao encontro das tuas mágoas
E são remédios de flores
Ao encontro das tuas dores.
Quando de mim estás longe,
Oro mais do que um monge.
Ergo aos céus as mãos em palma.
E me ponho a orar com calma,
Porque sei quanto padeces...
E não há nada como as preces
Erguidas a qualquer hora.
À Virgem Nossa Senhora
Que muito mais que os seus filhos,
Sabe quais lhes são os trilhos
Por onde passam, coitados!
Quase sempre fatigados.
Como se aos ombros levassem
Muitas cruzes que pesassem
Mais do que os montões de areia
Das praias da luz cheia.
A meu pai
Como meu pai morresse
Por uma noite assim, de claros alabastros
Transformados em lâmpadas suspensas,
(Tais eram os atros
Nas regiões imensas)
Aos céus ergo uma prece.
E procuro indagar
Do destino feliz, ou infeliz da sua alma,
Que, ao lado da alegria,
Tantas horas passara a soluçar;
E, das horas de calma.
Tantas horas passara a derramar
Gotas de pranto, no mundo vário,
Iguais às negras contas de um rosário.
Do destino feliz ou infeliz da sua alma
Que às vezes era calma
Como uma fonte aberta entre montanhas;
E, às vezes, parecia
Um mar batido pelos vendavais,
Vindos não sei de que fantásticas entranhas,
Só tu, Virgem Maria,
Umas notícias poderás me dar
Porque tu, afinal, Virgem Maria,
Sempre andaste no Mundo, e continuarás
A andar, resplandecente
Para encher de consolo o coração da gente.
Quando meu pai morreu, toda a sua cabeça
Era tão branca como a neve
Que cai de leve
Sobre a floresta espessa,
Ou sobre o campo; ou sobre o rio, ou sobre o lago,
Num dia pressago
De chuvas tristes e continuadas.
Em que as estradas, e os terreiros
Barrentos
Ficam da cor do sangue nas batalhas,
Quando os guerreiros
Fazem do próprio sangue as trágicas mortalhas
Para os seus corpos pestilentos.
Quando meu pai morreu, já lhe haviam passado
Pelos curvados ombros.
Temeridades de assombros
De um viver atormentado:
E houvera ele galgado
Um calvário de escombros;
E chorado, talvez, como Jó, o lendário
Que, recolhido a um canto, Solitário,
Contava e recontava as gotas do seu pranto,
Como se fossem contas de um rosário.
E ele, triste, me disse, à hora extrema da vida:
– “Meu filho, o céu azul é uma Casa Infinita,
Com Moradas nos sóis e nas brancas estrelas...
Mas não sei que será desta minh'alma aflita,
Que, na terra, deixou de olhá-las e compreendê-las,
Pela grande amargura em que viveu metida.
Entretanto, confiante, irei por todas essas
Lonjuras siderais, dulcíssimas, serenas...
Abrirei minha crença às divinas promessas,
Só levando por ti a alma cheia de penas...”
.........................................................................
Amortalhei-lhe o corpo, e deitei-o de costas,
Num florido caixão, com os pés para a rua;
E beijei-lhe, a chorar, as mãos geladas, postas
Em cruz por sobre o peito.
A essa hora a lua
Parecia, no azul bendito das Alturas,
A porta de marfim e prata de um sacrário.
Absorto, então, fiquei, recordando as doçuras
Do teu Filho, Maria,
De cima do Calvário,
Que noite e dia
Conta, seguido, as contas do rosário
Do nosso pranto amargo, e dos nossos pesares,
E as nossas grandes mágoas
Que são mais do que as águas
Dos rios e dos mares...
E, desde essa hora, penso
Na Felicidade da alma dos quem tanto
Derramaram por sobre o mundo triste e vário,
Tantas gotas de pranto,
Como se fossem as contas de um rosário Imenso!...
Depois de encher a manjedoura
De palha loura
Que era a ração da sua vaca baia,
Lindo animal de saboroso leite E pelo luzidio
Como se fosse de veludo e azeite,
A tia Rosa endireitou a saia
E subiu o caminho da praia.
O alto sino da ermida repicara,
Enchendo de sons d'ouro a tarde clara.
Viam-se além, na curva das montanhas,
Ondulações estranhas,
Tonalidades singulares,
Pinceladas de sangue, e roseirais em flor;
E púrpuras e sedas, rendas e franjas
Nas alamedas...
A tarde era um primor!
Pintalgavam-se de ouro as primeiras laranjas.
E de longe chegava a música das harpas
Misteriosas de um rio cristalino.
Aberto nas escarpas...
Já lá em cima, no adro, muita gente
Espera a novena, alegremente.
E que novena!
Dentre as lindas morenas do lugar,
Nossa Senhora, que era a mais morena
Tinha uns encantos fluídicos no olhar!...
Para as velhinhas.
Não era imagem feita por ninguém,
A da Nossa Senhora!
Que olhares infindos!
Que boca linda! Que cabelos lindos!
E que frescura nas linhas
Das suas mãos piedosas,
Feitas talvez de pétalas de rosas
Orvalhadas de luz!
Não era imagem feita por ninguém,
A da Mãe de Jesus!
Certo baixara da luz clara
De um divino luar, ou subisse do mar...
E eu, que adoro as velhinhas do lugar
Onde nasci e vivo há tantos anos,
Afirmava também:
— Não era imagem feita por ninguém.
E para que lançar uns desenganos
Nas almas simples das velhinhas? Não!
Pela última vez o sino, ao repicar
Encheu de sons de ouro o azul do ar.
E a lua de marfim
Bruxuleou
No azul que parecia de cetim...
No belo altar, no florescido altar,
A luz sagrada do piedoso olhar
Da Imagem de Maria, parecia
Outro luar...
Porém mais doce, e muito mais cheiroso,
E mavioso.
E a meiga Imagem se apresentava
Entre brancos jasmins e crisântemos.
...........................................................
Como eu me lembro bem dessa noite sublime
Em que toda essa gente
Começara a rezar, alegremente.
Sem os laivos do crime!
De joelhos em terra, essa gente rezava:
— À Virgem Mãe dos corações aflitos, oremos!
— Àquela que nos ouve os ais e os gritos, oremos!
— Àquela que, nas revoltas águas,
É a lavandeira que nos lava as mágoas, oremos!
— Àquela que nos dá, no seu regaço,
Travesseiros cheirosos ao cansaço, oremos!
— Àquela que, puríssima, compreende
as nossas ânsias, por demais austeras, oremos!
— Àquela que até mesmo as próprias feras defende,
oremos!
— À que não deixa que dos próprios ninhos
caiam com frio os tenros passarinhos,
oremos!
— Àquela que se lembra do jumento e da
meiga vaquinha, que se encheram de eterno sentimento,
na hora em que nasceu Jesus, o amado
filho do seu amor, seja o nome louvado
no maior esplendor!
..........................................................................
E logo que a novena se acabou
E essa gente se levantou,
À Rosa perguntei:
Por quem oraste,
Ó querida velhinha?
“— Orei... orei... cheia de fé, orei
Pela minha vaquinha
Que ficou na manjedoura
Tesourando a palha loura”.
— E por quem oraste, Armanda,
Que vieste da outra banda?
—“Orei pelo meu burrico
“Que, se morre, morta fico”.
— Aninhas, por quem oraste,
Tu que aflita te ajoelhaste?
— “Orei, de alma ardendo em brasa,
Pelo meu galo dourado,
Relógio da minha casa,
Que me desperta, coitado!
Com sua voz bem cantada,
As quatro da madrugada”
— E por quem oraste, Zefa?
— “Pela contínua tarefa
De subir, dias inteiros,
Outeiros e mais outeiros,
Carregando lenha aos ombros,
Sem temer tantos escombros”.
— Vicença, por quem oraste,
Tu que os olhos levantaste
Dos céus à doce pureza?
“Orei
Pela profunda tristeza,
Em que me deixou um noivado;
Pois percorro a vida inteira
Sem ter alguém ao meu lado;
E nem sei se sou viúva,
Se sou casada, ou solteira”.
– “E eu orei, disse Maria,
Pelos que andam no alto mar,
Em noites de ventania,
Com saudades do seu lar”.
– “E eu orei, disse Florença,
Por tudo quanto é doença”.
E a meiga e formosa Alice
Divinamente me disse:
– “Eu orei pelos que choram,
E nas ânsias se apavoram...”
– E tu, poeta? (perguntaram
As que dessa forma oraram):
– Por quem oraste, de palmas
Das mãos unidas ao peito?
– “Orei, muito satisfeito,
Pela paz das nossas almas”.
I
Lá ficou no caminho
Um trêmulo velhinho
Cuja cabeça está coberta de alvo linho.
Perguntei-lhe porque não vinha à tua ermida
E ele me respondeu:
– Porque não posso andar;
Tenho a perna direita atrozmente partida;
E a esquerda adoeceu
Nas friagens do mar, nas labutas do mar...
Mas ficarei rezando,
No caminho,
Uma oração
Na qual irá voando
Todo este aflito coração,
Até ficar juntinho
Do altar
Dessa que é nossa Mãe, por ser Mãe de Jesus:
Dessa que nos conduz
Eternamente os passos,
Sob a piedosa cruz, a misericordiosa cruz
Para sempre bendita dos seus braços.
E prosseguiu, depois, o trêmulo velhinho:
– Dize à Nossa Senhora
Que eu não vou,
Porque a minha perna se quebrou.
E não subo sozinho
Esse caminho
Cheio de tanto espinho...
II
Alma Impoluta.
Virgem Nossa Senhora,
Escuta
O que o velhinho te mandou dizer.
Lá debaixo, do caminho.
..............................................
– Mas o que vejo junto à tua Imagem,
No altar?
– Sombra?! Visão?! Miragem?!
Tudo o que vejo é a pura realidade:
– Das espirais tenuíssimas do aroma
Do incenso, uma ave assoma.
E faz-se claridade...
III
A prece do velhinho
Que ficara no caminho.
De repente,
Fluidicamente,
Leve, tão leve e franca, muito franca.
Aparece
Transfigurada numa pomba branca!
Ouve, Senhora,
O que eu ouvi lá fora,
No caminho brusco, pedregoso trilho,
Da boca de um cego ao seu pequeno filho.
E o que este lhe dizia.
Senhora,
Dir-me-ás, depois,
Se escutaste, um dia,
Um diálogo
Análogo
Ao desses dois,
Sendo a um roubada toda a luz dos olhos,
E dados ao outro os mais cruéis escolhos...
Diálogo triste.
O cego:
– De que cor é o sol, ó meu filhinho amigo,
O sol dos espaços?
O filho:
– É da cor do trigo
Quando sazonado,
E à mó levado,
Pelo qual a gente morre de cansaços,
Numa eterna lida,
Nesta acerba vida.
O cego:
– E eu nunca pude lavorar o trigo;
Tenho de comê-lo vindo de outra mão!
Não há dor mais funda para um coração,
Não há dor mais funda, não há dor mais triste,
Só na alma dum cego enormemente existe!
O filho, à parte:
– Chora a alma humana, quando encarcerada
Numa casa velha, sem janela aberta...
O cego:
– De que cor é a lua que no céu desperta,
Que do céu espia?
De que cor é a lua?
O filho:
– É da cor da pura, branca eucaristia; Dir-se-ia a hóstia... E pelo azul flutua,
Vive a flutuar.
Tendo por Altar
A montanha verde onde eu vou brincar...
O cego, em êxtase:
– Se é da cor da hóstia, que beleza, a lua!
E, por certo, a terra é o seu florido Altar,
Pois não há quem negue que Jesus encerra
A sua alma em lótus a florir da terra.
O filho:
– Ai! pobres dos homens se Jesus não fosse
Para as suas almas um clarão tão doce.
O cego:
– De que cor é o lírio que perfuma a toalha
Da capela branca da Nossa Senhora,
Dessa Mãe sublime que nos agasalha Como a luz da aurora?
O filho:
– É da cor das almas dessas criancinhas
Que o seu Filho adora como as ovelhinhas. O cego:
– Ao rebanho santo dessas ovelhinhas
Que Jesus te chame com saudosa avena,
E te queira, ó filho, no seu grande Aprisco, Onde nunca, nunca te verás em risco,
Antes de alma aberta como uma açucena.
O filho:
– Que a tua alma veja eu pastoreando assim.
O cego:
– De que cor é o céu, dize-me, criança.
O filho:
– É da cor mais linda do Arco da Aliança
Que jamais tem fim;
Desse para onde as nossas ânsias vão, Para onde vão as aflitivas ânsias,
Asas a bater...
O cego:
– Mas as minhas, filho, hão de se perder
Sem consolação,
Por essas distâncias...
O filho:
– Não te lembres disso, ó meu querido pai;
Não se perde a areia quanto mais o ai...
O cego:
– De que cor é a vaga, quando está dormindo
Ao sopé da terra? Dize, meu amor.
O filho:
– É da linda cor
Que lhe empresta a terra, sol a sol tão lindo;
É da cor da esperança...
Mas, do mar, às vezes, num cruel momento,
Essa cor se perde...
O cego:
– Ah! nem sempre é verde?!
O filho:
– Nem sempre é verde, se a fustiga o vento.
O cego:
– Dessa forma, filho, no meu pensamento,
Muda a cor a esperança...
(ouvindo o filho chorar)
– És ainda criança,
E já sofres tanto por sofrer me veres,
Quanto mais se um dia, quando eu morrer, souberes
Que não tive graças para t'as deixar...
Choras, filho amado? Para que chorar...
O filho:
– Deixa que eu no pranto lave as minhas mágoas...
Desde pequenino dentro da alma trago-as.
O cego, acariciando o filho:
– E essa noite fria, cheia de neblinas,
Sem a luz dos astros, sem a luz do luar,
Toda amortalhada de mortalhas finas;
Dessa noite fria, amargurada noite,
Dize, meu filhinho, se eu conheço a cor...
O filho:
– É da cor profunda das melancolias
Da alma que soluça, vive a soluçar,
Como se ela fosse um revoltoso mar,
Pelas invernias,
De um vento medonho no terrível açoite,
Que estremece os próprios escarcéus e abrolhos...
O cego:
– Já eu sei, meu filho, de que cor é a noite,
Pois a tenho dentro dos meus pobres olhos.
Ainda guardo em memória
Uma pequena história
Que minha mãe contou, ao serão, numa noite
Em que o vento sul era um contínuo açoite
No telhado do engenho onde se farinhava
No frio mês de julho,
Ao trêmulo barulho
Da almanjarra a rodar, e o fogo no forno,
Em torno
De pedaços de mangue.
A minha mãe contou:
“Havia nesta aldeia um velho, o Constantino,
De cem anos talvez,
Embora de tez langue,
Possuía a lucidez
De um menino...
Entretanto ninguém dele se avizinhava
Porque a sua usura era descomunal:
Não queria ninguém junto à sua morada,
Nem mesmo consentia
As aves lhe pousar na cerca do quintal;
E lhes armava sempre uma grande esparrela,
Na qual, durante o dia,
Descuidoso caía
Um chupim,
Que lhe dava, ao jantar, um suculento prato,
Com farinha de aipim.
Coração sempre ingrato.
Se lhe pedia um pobre um mísero vintém,
Ei-lo a mandá-lo andar, e a pedir noutra porta.
Ignorava, portanto, as primícias do Bem,
Que começa na luz que o sol no azul recorta.
E para acumular mais moedas de prata,
Nem perdia da lua o pálido esplendor;
E junto da cascata
Que além formava um rio,
Ei-lo no rude afã,
Trabalhando de enxada
Até de madrugada,
Até surgir no morro a estrela da manhã.
Certo dia, porém, encontraram-no frio
Sobre a curva de um rio...
E o Constantino
Lá se foi, pela tarde, a fora, à voz do sino
Da ermida do lugar, conduzido, num carro
De bois, até à cova entalhada no barro
De um cemitério triste, à sombra de ciprestes.
Eram-lhe as vestes
Uns trapos, na miséria a mais original;
E o seu caixão
Era tão negro, igual
A uma montoeira de carvão.
E da prata do Constantino
Ninguém soube o destino.
Mas passados uns anos, toda a gente
Começou a dizer que na casa em ruínas
Que ele havia deixado aos ratos e às aranhas,
À noite, sob a gaze das neblinas,
Uma luz se mostrava; e umas coisas estranhas
Faziam, nessa casa, um barulho estridente.
Como ainda revejo na memória
Essa pequena história,
Que minha mãe contou, ao serão, nessa noite
Em que o vento sul era um contínuo açoite
No telhado do engenho, O meu maior empenho
É orar... orar...
Pelo Constantino
Que ainda não saiu de cima do lugar
Onde se acha escondido
O seu tesouro, adquirido
Com tanto desatino,
À luz do sol, à luz do luar, à luz dos astros...
E dos barcos que vêm, com flâmulas nos mastros
Fazer a guarda nesse rio,
A maruja lhe escuta o rude murmúrio,
Nas suas águas vendo a velada figura
Do Constantino a olhar a sua própria usura.
Ah! Virgem Senhora da Conceição,
Aonde está a miséria
Deletéria,
Aí, na mesma cova, está o coração!
Tristes dessas mulheres
Que a vida passam junto às fontes cristalinas:
– Umas da cor das lívidas boninas;
Outras da cor dos malmequeres.
São tão tristes que a gente ao vê-las pensa
Não existir no mundo uma dor mais intensa
Do que a que lhes sobe às estranhas pupilas!
No entanto, são tranquilas:
– Almas cheias de claridade,
Almas suaves como se fossem aves,
Ora ao belo esplendor do sol no mês de agosto;
Ora ao vivo faiscar da soalheira de outubro;
Ora ao fogo vermelho, ao forte fogo rubro
De dezembro;
Ora à chuva inclemente, ou às grandes geadas
Que bordam de cristal a fita das estradas.
Eu muito que me lembro
Dessas pobres mulheres
Que passam sem cessar toda a vida ajoelhadas
Junto às pedras da fonte. Ai! delas coitadinhas!
Pois muitas são tristíssimas velhinhas
Cujos cabelos
Parecem feitos dos mais brancos gelos,
Quem nem mesmo o calor dos sóis, por mais vibrante,
Será capaz de derretê-los!
Eu muito que me lembro,
Principalmente de uma... Era, a Laurinda,
Uma alma tão linda
Como nunca encontrei, no tempo de rapaz,
Nem mesmo agora, em que tenho os pés para a cova,
Corpo vergado ao chão, mas alma sempre nova.
Assim que as rosas de cristal do dia
Abriam-se no morro, ei-la na paz
De Jesus e Maria.
– Era o que ela repetia.
Quando se levantava
Dos cheirosos lençóis e travesseiros
Corados ao luar,
Nas ramadas em flor dos jasmineiros.
Ela se levantava,
Quando o seu galo punha-se a cantar,
E cantava três vezes. Que relógio bom!
Nenhum outro havia
Com tão saudoso e cristalino som.
Ao clarear do dia, a velhinha corria
E lavava, na fonte, no gramado:
– Primeiro, o seu rosto enrugado,
E alquebrantado;
Segundo, os braços nus; o pescoço, o cabelo,
Que há muitos anos já era poeirado de gelo.
Ajoelhada, depois, ei-la a lavar p'ra fora,
P'ra casa de um doutor, cuja mulher lhe dava
Quatro mil réis por mês, sem lhe dar o sabão!
E a Laurinda, alma tão linda,
Não se queixava não!
E a mulher do doutor embirrava com ela,
Pois não queria ver a roupa na barrela,
Para não se estragar.
E o rapazio ao vê-la, repetia,
Na mais doida ironia:
– Toca, velhinha, a lavar,
Com as forças que teus... Lava ao sol, lava à chuva,
Lava à geada, e ao vento. É o teu destino, lava...
Lava, viúva!
E ela, de joelhos, lavava e cantava,
Sempre alegre e vivaz, na doce paz
De Jesus e Maria,
Não lhe importando a rústica exigência
E a impertinência,
De quem quatro mil réis só lhe dava por mês,
Nem as blasfêmias dos rapazes,
Incapazes
De atingi-la sequer uma única vez.
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Adorável velhinha,
De quem hoje me lembro e hei de me lembrar
Por toda a minha vida, o teu formoso olhar
Fora o encanto do meu, porque eu nele via
A verde cor do mar,
Sempre da cor da esperança indefinida,
Nunca clamaste contra o teu destino;
Nunca choraste pranto a não ser cristalino,
Porque uma alma sã não pode chorar mágoas,
Que sempre são da cor da tinta de escrever,
Com a qual, entretanto, não se escreve,
Nem de leve,
As ânsias de quem vive a padecer.
Mas agora te vejo, entre nimbos, no Espaço,
Na irradiação da prece que te faço.
Que o mundo cheio está de frementes rancores,
De misérias cruéis, e blasfêmias à Luz,
Eu sei, mãe de Jesus.
Por isso vim orar ao pé do teu altar
Tão coberto de flores;
E, enfim, te perguntar umas coisas
A respeito dos que, da escuridão das lousas,
Buscam ansiosamente em tua Casa entrar.
Responde-me Senhora,
Ó Luz Consoladora!
– Irá viver contigo o que matou o irmão?
– E o que foi, neste mundo, um trágico ladrão?
– E o que guardou vinagre e fel no coração?
– E o que nutriu o ódio em viva combustão?
– E o que teve da intriga os assaltos de cão?
– E o que da usura teve a fatal tentação?
– E o que da inveja via os abutres na mão?
– E o que imolou de um corpo as rosas em botão?
– E o que tirou ao pobre a lenha do fogão?
– E aquele que não deu ao mísero um tostão?
– E o que negou ao cego a sua própria mão?
– E o que nunca amparou os passos do ancião?
– E o que negou à criança um pedaço de pão?
– E o que a água guardou em dias de verão?
– E o que jamais pegou nas alças de um caixão?
– E o que sempre sentiu uma alma de vilão?
– E aquele que fechou os olhos à razão?
– E o que negou do Amor o divino clarão?
– E o que disse que andaste em toda a terra, em vão?
– E o que fincou a Cruz no duro e frio chão?
– E quem à Cruz pregou o Sol da Salvação?
– E quem te fez chorar o puro coração?
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Esses ficam na mais pesada escuridão;
Ficam na própria terra... Entretanto, se um dia
Desejarem subir, das torturas do inferno
A eterna limpidez dos altos firmamentos,
Pela estrada do amor, nos arrependimentos,
Certamente encontrarão
A sagrada alegria
De um coração materno,
Diante do qual não há pecados sem perdão.