LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Filhos e netos, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,
Florianópolis: ACL, 1966.
ÍNDICE
Filhos
Quem há que tenha filhos e não cante
E não chore também. Quando eles cantam
Noss'alma canta uma canção vibrante,
E os seus braços nos erguem, nos levantam.
Quando eles choram, num lugar distante.
Ou bem juntos de nós, nos alquebrantam...
E com eles choramos, todo o instante,
Prantos cruéis que o peito nos suplantam.
Com braços amparando os nossos filhos
Que são correntes fortes e cadilhos
Dos ansiosos corações paternos,
Rindo, iremos por eles aos espaços,
Sem tormentos, soluços e cansaços...
Chorando, desceremos aos infernos!...
Desdêmona
Por mais que nos amássemos, gozando
Do eterno amor os pomos sazonados,
Uma falta existia, em nossa casa. Eis quando
Vieste dum mundo dentre os mais sonhados.
Bem-vinda sejas! – Digo-te cantando...
E como uma ave, dos azuis banhados
De tanto luar, de luz me vais banhando
O peito, a alma e os braços fatigados.
E eu disse aos anjos: – Para a grande boda
Descei, ó anjos, todo o vinho, e toda
Essa luz que parece um trigo louro.
Pão asmo e vinho... E flores, as mais belas,
Na nossa mesa; e, no alto, as Sete Estrelas.
Lembrando sete candelabros de ouro!...
Smyrna
Tão simples e tão pobre a nossa casa,
Sem riqueza, a não ser a das roseiras
Que lhe dão as carícias mais fagueiras
Como os canários todo o afago d'asa.
Mas tu chegaste, e o teu olhar transvasa
Uma quentura como a das lareiras...
Trazes na boca a flor das romãzeiras;
E um sol nos olhos, que de amor me abrasa.
Por isso desde essa manhã de maio.
Eu nada vejo que não seja um raio
De esp'rança verde como o campo largo...
Chegaste, filha, para me amparares;
Chegaste, vinha, p'ra me transformares
Em vinho e aromas o que sinto amargo.
Elzebbad
Logo assim que nasceu, cobri-lhe o berço
De papoulas e rosas e boninas...
Pelas telhas as aves, em surdinas,
Tinham no aroma o coração imerso.
Sorrindo, dei-lhe a música de um verso,
A mais divina dentre as mais divinas.
Que brancuras as suas mãos franzinas.
Como as das velas no esplendor de um terço!
Vejo, porém, que os olhos do meu filho
Têm dos meus olhos o velado brilho:
Ambos são rios de revoltas águas...
Mas se o rapaz chegar ao ponto de homem,
Não no consumam, como me consomem,
Os vendavais tristíssimos das mágoas.
Antônio
Quando eu mais do que hei sido for lançado
Às calúnias horríveis, às intrigas,
Abre-me, filho, as tuas mãos amigas,
E eu me veja por elas amparado.
À luz do teu olhar seja eu guiado
Para os trigais do amor, de áureas espigas...
E que me sigas a cantar, me sigas
Se o caminho estiver abandonado!...
Como o Santo da Lenda, o meigo Santo
Que o próprio pai livrou da forca, enquanto
No púlpito rezava uma oração,
Livra a minh'alma aflita, por piedade,
Das esponjas molhadas na crueldade...
E ande eu velhinho pela tua mão!
Florisbela
Numa choupana esburacada e triste,
É que nasceste, ó minha filha, numa
Choupana esburacada, que ainda existe
Perto do mar de tão florida espuma.
A dor que as almas langues averruma,
A dor à qual um peito não resiste,
Ao recordar-me disso tudo, em suma,
Sinto-a no peito, como lança em riste.
Mas nisso eu não devia estar pensando;
E sim no nome, que de luz te cobre,
Nesse nome feliz, d'astros brotando,
De quem da terra nos sombrios trilhos,
Tendo vivido sempre humilde e pobre,
Era rica demais junto dos filhos!...
Debbora
Da minha vida as lágrimas flagrantes,
E todos os seus gritos e tristezas,
Bem como os dos riachos soluçantes,
Em contínuas, profunda correntezas...
Da minha vida as ânsias palpitantes,
E os mais negros segredos e asperezas,
Como do mar as vagas, aos possantes
Encontros dos tufões das incertezas...
De tudo enfim que me atormenta a alma
Verás nas linhas augurais da palma
Da minha mão, a afirmação mais justa.
Verás o meu passado e o meu futuro:
Um entre rosas; e outro em ais, no escuro,
No tenebroso leito de Locusta!
Luiz
Chegaste envolto no esplendor de um dia Maravilhoso!
A luz cantava em tudo...
Cantava num riacho que descia,
E cantava no mar, que era um veludo.
De tão grande emoção, tanta alegria,
Que eu nessa hora senti, tornei-me mudo...
Só a minh'alma, aflita, repetia:
– De um pai o filho é o mais ousado escudo.
Eu tive, meu filhinho, essa lembrança
Pequena, mas excelsa na esperança,
Que no pó dos caminhos jamais cai,
Nem mesmo pelo espaço se consome...
E dei-te, filho, ó meu querido! um nome
Igual ao nome do meu pobre pai!
Conceptta
De onde vieste, minha filha amada?
De que estrela vieste, dessas tantas
Que do espaço na cúpula azulada
Florescem meigas, luminosas, santas?
Era um rosal florido a madrugada!
No azul que rosas, e na terra quantas,
Pela brancura límpida da estrada
Da qual neste momento me levantas.
Vieste por certo da formosa Estrela D'Alva,
que maio abriu; viste daquela
Toda prata e cristal, que no alto brilha.
Como um relógio que me chama à vida,
Principalmente agora, ó alma querida,
Que tenho mais uma formosa filha!...
Dolorata
Da dor tirei o seu bonito nome,
Da dor que há nove meses consumia
As entranhas do teu ventre, Maria,
E que inda agora mesmo te consome.
Ah! que por isso a nossa filha dorme
A quem na dor não vê um claro dia
De redenção. E, cheia de alegria,
Como um anjo do bem, aos céus assome.
Mas a nossa filhinha, de pequena
Que era, não pôde suportar a dor
Que lhe vazava o coração de pena.
E na verdade é tudo assim, querida:
Quem sofre, sofre, seja como for!
E o que é a dor senão a própria vida?
Maria Conceptta
Estrela de eucarística aparência,
Espiritualizada Estrela Maga,
Pela tua sagrada florescência,
Dize por onde a nossa filha vaga.
Pela bendita e misteriosa essência
Que o teu urnário de cristal alaga,
Abre por nós o manto de clemência,
E nos retira d'alma a noite aziaga.
Pelas tuas safiras e teu ouro,
Por esse rico e fúlgido tesouro
Que eternamente lá por cima brilha,
Dize, Estrela Ideal, se nos teus prados
Existem anjos bem-aventurados,
E se com eles vive a nossa filha.
Zarina
Ah! para todo o sempre minha amada,
Meu sol eterno, minha Estrela d'Alva,
A tua luz é a luz da madrugada,
A que dos mares lúgubres me salva.
Dos longes dessa abóbada azulada
Que às vezes é da cor da própria malva,
Desces serenamente, imaculada,
A minh'alma que tanta dor escalva.
Desces e ao mesmo tempo ao céu te elevas.
Porque no mundo me encontraste em trevas.
Porque no mundo me encontraste triste.
E como então me queres loucamente,
Entre o meu peito aflito e o céu clemente,
Uma piedade imorredoura existe.
José
Que nome iluminado escolheremos
P'ra o nosso filho que há de vir ao mundo?
Um nome branco como os crisântemos,
Ou como os astros desse céu profundo?
Pela nossa alma um lindo nome vemos;
Eu já de rosas e clarões inundo...
Será José. Nós bem nos compreendemos.
No nosso amor de doce paz fecundo...
Mas o nosso amantíssimo filhinho
Não quis viver; voltou ao áureo caminho,
Onde Nossa Senhora e São José,
Nunca sentiram dentro d'alma as ânsias
Dos caminhos de lúgubres distâncias...
Lá não existe uma outra Nazaré!
Samaritana
O lindo nome de Samaritana
Ela teria, mas que sorte a sua!
Veio e voltou na mesma caravana,
Sob o palor tristíssimo da lua.
De onde a luz, nesse espaço azul, emana
Ela veio, e p'ra lá voltou. A tua
Alma veste-se então de dor insana,
E a minh'alma na mesma dor flutua.
Ah! se a nossa filhinha se criasse
Dar-nos-ia o maior contentamento,
Cada vez mais alegre e mais vivace,
Quando, nos dias de calor violento,
Desse água fresca e pura a quem passasse
De cruz aos ombros, cheio de tormento.
Paulo
Paulo, na flórea estrada de Damasco
Foi convertido ao amor do Nazareno.
Deixou, portanto, deste mundo o asco,
Extinguindo-lhe todo o atroz veneno...
Pedro limpava, nessa tarde, o casco
Do seu barco que para o mar, sereno
Iria. E Paulo amou-o, do penhasco,
Da altura excelsa de um clarão ameno.
E se a nascer chegasse o nosso filho,
O meu amor, que misterioso brilho
Nos seus lábios dulcíssimos traria...
Talvez, amor, dentro de poucos anos,
Morressem para sempre os desenganos...
E o que o mundo na fé então seria?...
Maria Cleofas
Nasceste e apenas neste mundo um dia
Pairaste. Mas que mal te fez a vida?
E para que nasceste então, Maria,
Por essa tarde de rosais florida?!
Dum astro de dulcíssima harmonia,
Como se for a da mais branca ermida,
Não trouxeste no olhar toda a alegria?
De ânsias tu'alma não desceu despida?
Pairaste apenas um momento, o quanto
Necessário talvez para que o meu pranto
Fosse pelo teu lenço de piedade,
Neste Saara tenebroso, enxuto...
É o que as almas me dizem, se as perscruto,
Quando te lembro, cheio de saudade.
Cirineu
Vindo que seja, e se for homem, há de
O nosso lindo filho ter um nome lindo.
Conosco ele andará pela cidade
E pelos campos que se vão florindo...
Mas o nosso filhinho (Que impiedade!)
Deixou de vir do sol, ou se foi indo
Para mais longe, para a imensidade
Onde outros sóis no azul estão luzindo.
Chamar-se-ia Cirineu. Que belo
Se chegasse a nascer, e bem juntinho
De nós ambos, Maria, e com desvelo
Nos ajudasse, amor, esse filhinho,
A carregar a cruz, que é o pesadelo
Maior que temos neste atroz caminho!
Pedro
Pedro seria o nome predileto
Deste que, coitadinho, nasceu morto.
Ah! Pedro, não! o Galileu, absorto,
Não deu ao Mestre um coração correto.
Outro nome teria esse dileto
Filho do nosso amor, do nosso horto...
Nem mesmo o nosso coração é um porto
Com barco a vela, de saudoso aspecto.
Mas o que digo? Pois ninguém na terra
Que tanta lama de miséria encerra,
Jamais deixou, no fundo dos reveses,
Ou na alegria que na vida o açoite,
De negar, dia e noite, dia e noite,
Mais do que Pedro, bilhões de vezes?!
Netos
Quem há que tenha netos e não sinta
No peito, uns sentimentos de bondade,
Iguais aos que a nossa mocidade
Encheram de clarões de luz e tinta...
Nessa quadra feliz porém extinta,
Na nossa casa que felicidade!
Mas hoje é a mesma casa, na verdade:
Basta que tu consintas e eu consinta
Dos nossos netos toda a traquinagem...
Pois eles são a verdadeira imagem
Dos nossos filhos, pássaros divinos...
E assim iremos tendo a vida inteira
Cada vez mais alegre e alvissareira...
Ah! nós também já fomos pequeninos!...
Newton
Já tive o estio dentro do meu peito
E todo ele era um lindo roseiral.
Vivia alegre e muito satisfeito
Sem os venenos trágicos do mal.
Dos rapazes eu era o mais eleito,
E o mais querido como o próprio sal.
Hoje, friorento, vivo no meu leito...
Ah! como a vida é toda original!
Mas não sinto pesar de haver perdido
O sol do estio: – Um outro sol me veio,
E mais outros virão, do florescido
Estio da tu'alma, em pleno eflúvio;
Dessa tu'alma que é o mais belo seio
Do Arco-Íris nas águas do dilúvio!...
Ondina
Quando João andava no deserto,
Nutrindo-se de mel e gafanhotos,
Isso nos tristes séculos remotos,
Num tempo que do céu anda bem perto...
Ele que tinha o largo peito aberto,
E os pés descalços, dos espinhos rotos...
Da fé floriam os verdurosos brotos,
Do amor mostrava o nosso campo, certo.
Mas não andava só pelo degredo;
Talvez tivesse algum pavor e medo;
E por isso chamou, num claro dia,
Uma ovelhinha muito casta e doce.
E ela, nesse deserto, talvez fosse
A que hoje tenho em minha companhia.
Lycurgo
Filha, não chores pelo teu filhinho
Porque a gente peca quando chora...
Será melhor prender um passarinho,
Ou deixá-lo voar espaço em fora?
Quando eras pequenina, no caminho,
A luz branca e puríssima da aurora,
Não ias tu em busca de algum ninho?
E o que vias na luz branca e sonora?
Vias encantos. E contente, ouvias
As ladainhas de ouro, e as litanias,
Dos pintassilgos joviais, faceiros.
Saibas tu, meu amor, que eles voavam
Alegremente livres, e cantavam
Nas ermidas em flor dos espinheiros.
Antônio
Antônio, se me vires bem velhinho,
Com as passadas trêmulas, não deixa
O teu avô cair pelo caminho;
E ouve-lhe, neto, a sua triste queixa...
E eu velhinho já sou, tenho a madeixa
Toda tão branca como o próprio linho.
E quantas mágoas a minh'alma enfeixa,
Como o rosário azul de um capuchinho.
E se eu chegar a ter oitenta anos,
Nessa quadra terás apenas vinte,
E ainda por ti, meu neto, os desenganos
Passado não terão. Por isso, quando
Eu os anseios últimos te pinte,
Irás entre os teus braços me amparando.
Juvêncio
Se soubesses em que estou pensando
Com certeza a tu'alma choraria...
Olha, meu neto, quando chega um dia,
E atrás desse outros dias vão chegando...
E a gente vê as faces se enrugando,
E o coração aberto à nostalgia,
E à luz do olhar a estrada se acabando,
E muito ao longe a branca casaria...
Estou pensando nisso tudo, nisso
Que nos arranca da saúde o viço;
E nos conduz, nas asas do mistério,
Aos sete palmos de um buraco imundo,
Onde se acaba o orgulho deste mundo,
Na ironia fatal do cemitério.
Urânia
Eu creio nos que vão para as Esferas,
Para as Esferas límpidas do Espaço,
Despidos todos do augural cansaço,
Sem a eclosão das lágrimas austeras.
Sei que por lá existiram primaveras;
E em cada luz um túmido regaço,
Que ampara o braço aflito quando o braço
Chega de andar lutando contra as feras.
Sei que nos tristes túmulos sombrios
Não existe mais que o corpo inanimado
Dos que se viram nos dantescos rios...
E crendo que dos pântanos imundos,
Possa brotar um lírio imaculado,
Creio que virás por diversos mundos!...
Nazarena
Depois de fatigante caminhada
Hei de deitar-me à sombra de um cipreste.
Vestido como a noite então se veste,
Quando não brilha a lua imaculada.
De olhos sem luz e fronte congelada,
Hei de dormir nessa mansão agreste,
Como quem dorme na mansão celeste,
Lá nessa paz do azul, iluminada.
E quando isso acontecer, que estejas,
Tu, que tanto me queres e me beijas,
Que estejas junto ao derradeiro leito
Do teu avô, que morrerá contente,
Se lhe cruzares piedosamente
As suas mãos geladas sobre o peito.
Clécio
Acham-te todos muito parecido
Com o teu triste e desolado avô!
Mas como estou na vida tão vencido;
Como na vida tão velhinho estou.
Deste meu peito, outrora tão florido
(E foi a mocidade que o enflorou)
Cai para um fundo lúgubre um gemido;
E o sonho branco para além voou.
Eu não acho que os teus formosos olhos
Tenham, iguais aos meus, negros abrolhos;
Nem tuas faces liriais os selos
Da tristeza que há tempos me atormenta,
Nem seja a tua boca flor sangrenta,
Nem sejam neve eterna os teus cabelos.
Léa
Sei que existes porém não te conheço
Se não por um retrato pequenino.
Mas mesmo assim na vida não te esqueço;
Vem-me lembrança o teu melhor destino.
Peço a Jesus o sonho que careço,
Dentro do qual, no seu fulgor divino,
(Linda estátua de mármore ou de gesso)
Passe o teu corpo ideal, meigo e franzino.
E o sonho desce, quase sempre à noite...
Desce da luz da limpidez do espaço;
E antes que o tédio do viver me açoite.
Ouço-te a voz repleta de fragrância,
Que ao coração me fala do cansaço
Das asas que se perdem na distância...
Jandir
Meu neto, a infância é um botão de rosa
Que se esconde entre as folhas da roseira.
Numa linda manhã alvissareira
Embalada na brisa silenciosa.
Não o inquieta a abelha vaporosa,
Nem o zangão lhe dá fatal canseira...
Deixa-o ali estar a vida inteira,
A ave daninha, a mais ambiciosa.
Mas flor aberta à viva alacridade
Do céu azul, será a mocidade,
Cheia de seiva em dias de verão.
E quando desfolhada (Eu já to disse)
Será por certo o emblema da velhice,
No atro caminho da desilusão.
Maria Helena
Nem quatro palmos tem, Maria Helena,
E eu já lhe vejo uma alma de eleição,
Meiga, suave, límpida e serena,
Como a água sagrada do Jordão.
Chama as bonecas, como ao som da avena
Chama a pastora a ovelha, no sertão,
E lhes dá mantos lindos, de açucena,
No aprisco de ouro do seu coração.
Permita todo o céu estrelejado
Que a minha neta veja-me ao seu lado
Ainda algum tempo, embora bem velhinho,
Trêmulas as pernas, trêmulos os passos,
Trêmula a fronte, e ambos os meus braços,
Mas todo ungido pelo seu carinho.
Mário
Tão pequenino, apenas com dois anos,
Sabe de cor a carta do A-B-C.
Logo, em ficando grande, já se vê,
Conhecerá das Letras os arcanos.
Fará nas Letras os mais lindos planos
De luminosos ideais, porque
Nos olhos dele, tão espertos, sei
Haver labutas contra os desenganos.
E os vencerá (Deus o permita), como
Vence o soldado, num febril assomo,
As muralhas fantásticas de um forte.
Ah! seja sempre, o meu querido neto,
Um coração boníssimo, correto,
Para vencer a vida e a própria morte.
Isabel
Em novembro floresce o jasmineiro,
De tal maneira que dá gosto vê-lo,
E esse que está florindo, no terreiro
Da nossa casa, lembra o Sete-Estrelo.
Mas muito mais floresce o peito inteiro
De um pai no amor, no íntimo desvelo
Por uma filha cujo olhar fagueiro
Ter-lhe d'alma um fundo pesadelo.
E tu nasceste para nosso encanto
Pois nessa boca, um sorriso santo
Vimos um sonho que não é da terra.
Ah! meu amor, um pássaro risonho,
Nossa Senhora que te conte o sonho
Que ainda a tua alma encantadora encerra.
Conceptta
Vejo-a sorrindo, encantadora e bela
Como a ave que vem no meu telhado
Cantar de tarde, à hora em que uma estrela
Fulge como um turíbulo doirado.
Vejo-a sorrindo, e me aproximo dela,
Devagarinho, cheio de cuidado...
― Não te vá magoar a tagarela
Alma do teu avô, digo assustado.
Mas Conceptta me escuta, e ainda sorrindo
Se transfigura no luar mais lindo,
Que é todo a luz misericordiosa
Dos seus olhares límpidos e ternos,
Junto da qual apagam-se os infernos
E vibra a alma, translúcida e formosa.
Marília
Se as hortênsias falassem, se as hortênsias
Contar pudessem como se vestiram
De azul celeste, e como as resplandecências
Do sol nas suas ânforas caíram.
Se as hortênsias falassem, se as hortênsias
Dissessem tudo quanto são, e viram
Do céu na comunhão das florescências
Das quais os campos verdes se cobriram.
Se as hortênsias falassem, certamente,
Ó minha neta amada, alma inocente,
Saberíamos todos de que mundo.
Teriam vindo as cândidas pupilas,
Meigas, graciosas, doces e tranquilas
Dos teus olhos azuis, de olhar profundo!
Hércio
Quando vês o vovô, dás gargalhadas
Que parecem tilintos de ouro e prata,
Ou a música d'água da cascata
Que corta os campos verdes e as estradas.
E dás palmas então, muito engraçadas,
Nas quais tua alma virgem se arrebata
A mundos que nem sei! Talvez à cata
De quem possa aplaudi-la, horas contadas.
Mas fico, às vezes, bem desconfiado,
Que estejas, meu formoso neto amado,
Rindo da branquidão dos meus cabelos,
Que é a neve que cai das invernias
Cheias de tédio e de melancolias,
Nas estepes cruéis dos pesadelos.