LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Ascetério, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Juvêncio de Araújo Figueredo, Poesias,
Florianópolis: ACL, 1966.
ÍNDICE
À Maria
Toda a minha vida em certos dias
Era mais triste do que céus cobertos
De desolantes nostalgias...
E mais que o luto de um corvo,
Por um luar terrivelmente torvo.
E mais que a quente mortalha
De fumo, a sepultar o horror de uma batalha.
E mais que um vento maldito
Que varresse uma estrela no infinito.
E mais do que um cemitério;
Mais do que esse misterioso Império...
Mais do que esse Império de cousas
Em plena transição, sob a mudez das lousas...
E mais, imagem querida,
Do que a voz que clama uma crença perdida,
Como a alma fria de um buda
Rezando à lua inteiramente muda.
Mas eis que me vens, Maria
Por um maio de sol, cheio de pedraria.
E bem que lembras um lótus
Vindo através de séculos remotos...
E abres em mim uma ânsia
De vivo, extremo amor, de consolo e fragrância;
Tu, tendal aberto em flores
Na estrada negra e atroz dos meus sonhos e dores;
Tu, ó fonte de água pura,
Onde lava o luar saudoso da amargura;
Tu, ó campo de perfumes,
No qual vivem meus sonhos e ciúmes;
Braço forte, forte e eterno
Braço, a amparar-me neste augúrio inferno,
E ao me amparares ao braço
Vejo no teu olhar um bálsamo ao cansaço.
E vejo misteriosas asas
De aves que eu nunca vi pelo beiral das casas.
Asas que eu só ao fitá-las
Nem sei com que outras compará-las.
Asas brancas, que me chamam
A outros céus que de outros sóis se inflamam.
Asas brancas como a prata
Dos altares dos quais o incenso se desata.
Asas brancas e benditas,
Descidas do alto azul das plagas infinitas.
Asas brancas, de concórdia,
Como as bandeiras da misericórdia.
De um vivo amaino de ninho;
E mais frescas que a própria flor do linho.
E tão repletas de encantos
Como as alvas liriais e fúlgidas dos santos.
E tão carinhosas como
A sombra que no chão desenha o cinamomo.
E tão banhadas de afagos
Como a alma estelar dos três Reis Magos.
Por certo as asas dos sonhos
Desses teus olhos garços e risonhos.
Dos sonhos no Amor vagando;
– Asas por sobre um mar divinamente brando.
Dos sonhos as asas de ouro
Que do aroma e da cor fazem fremente coro.
E então toda a minha lira
Lembra uma asa na Torre de Safira.
E ao tê-la junto ao peito
Nas suas cordas toco satisfeito.
E a minha lira se veste
Dos roseirais em flor da abóbada celeste!
Só um rei, na antiguidade,
Uma lira teria, na verdade.
E por ter tais esplendores
A minha lira nem recorda as dores!
Tudo que era sofrimento
Vê para longe rolar bem como a folha ao vento.
Então começo a sonhar;
E, no sonho, ajoelhado, eis-me, agora, a rezar.
E das preces a Primeira,
Vem do teu seio aberto em flor de laranjeira,
E vem depois, a Segunda,
A branca luz que os olhos teus inunda.
E a Terceira vem do aroma
Que tua boca eternamente assoma.
E a Quarta dos teus cabelos
Que me cercam de enleio e profundos desvelos.
E a Quinta, das mãos em palma,
Que rezam pelas ânsias da minha alma.
E, assim, uma por uma,
Vêm leves como é leve a branca espuma.
Orações do áureo sacrário
Do nosso grande amor profundo, extraordinário.
Orações do amor bendito,
Que é de tudo que é santo o mais fúlgido rito.
Que é de tudo quanto quero
O único altar que adoro, que venero.
O único altar onde estás
Agora, e em todo tempo te verás.
Tu, tendal aberto em flores,
Na estrada negra e atroz dos meus sonhos e dores.
Tu, ó fonte de água pura,
Onde lavo o luar saudoso da amargura.
E jamais voltou, querida.
A ser o que era dantes, esta vida.
E só tu bem sabes quanto
Amargo e cruel me fora na alma o pranto.
Só tu sabes com certeza
Em que brumas vivi, cavado de tristeza.
E tão banhadas de afagos
Como a alma estelar dos três Reis Magos.
Por certo as asas dos sonhos
esses teus olhos garços e risonhos.
Dos sonhos no Amor vagando;
– Asas por sobre um mar divinamente brando.
Dos sonhos as asas de ouro
Que do aroma e da cor fazem fremente coro.
E então toda a minha lira
Lembra uma asa na Torre de Safira.
E ao tê-la junto ao peito
Nas suas cordas toco satisfeito.
E a minha lira se veste
Dos roseirais em flor da abóbada celeste!
Só um rei, na antiguidade,
Uma lira teria, na verdade.
E por ter tais esplendores
A minha lira nem recorda as dores!
Tudo que era sofrimento
Vê para longe rolar bem como a folha ao vento.
Então começo a sonhar;
E, no sonho, ajoelhado, eis-me, agora, a rezar.
E das preces a Primeira,
Vem do teu seio aberto em flor de laranjeira,
E vem depois, a Segunda,
A branca luz que os olhos teus inunda.
E a Terceira vem do aroma
Que à tua boca eternamente assoma.
E a Quarta dos teus cabelos
Que me cercam de enleio e profundos desvelos.
E a Quinta, das mãos em palma,
Que rezam pelas ânsias da minha alma.
E, assim, uma por uma,
Vêm leves como é leve a branca espuma.
Orações do áureo sacrário
Do nosso grande amor profundo, extraordinário.
Orações do amor bendito,
Que é de tudo que é santo o mais fúlgido rito.
Que é de tudo quanto quero
O único altar que adoro, que venero.
O único altar onde estás
Agora, e em todo tempo te verás.
Tu, tendal aberto em flores,
Na estrada negra e atroz dos meus sonhos e dores.
Tu, ó fonte de água pura,
Onde lavo o luar saudoso da amargura.
E jamais voltou, querida.
A ser o que era dantes, esta vida.
E só tu bem sabes quanto
Amargo e cruel me fora na alma o pranto.
Só tu sabes com certeza
Em que brumas vivi, cavado de tristeza.
Hoje vives ao meu lado,
Neste Ascetério espiritualizado.
Em cuja luz, em tumultos,
Passam suavemente os vultos;
Os vultos de asas douradas
Das nossas filhas para sempre amadas!
De nossas filhas formosas;
– Almas feitas de luz e de rimas gloriosas
Que a morte chamou da terra,
E em seu grande solar eternamente encerra.
De onde todas, todas elas,
Sob o clarão bendito das estrelas,
Virão, mais tarde, ou mais cedo,
A este triste, medonho e sinistro degredo
Afim de nos amparar
Na hora em que tivermos de viajar
Para onde, as nossas filhas,
Sob uma luz que perenal flutua,
Rumaram a umas ilhas,
Na misteriosa gôndola da lua.
De cabelos nevados como os montes,
E mão tremente, pálida e enrugada,
Meu pai guiava às cristalinas fontes
De suas vacas mansas a manada.
Ao sol que fulge e aclara os horizontes.
Meu pai fazia retinir a enxada;
E, de olhos bons, espirituais, insontes
Andava às rosas, pela madrugada.
Ah! que hoje, da Mansão da Paz e Gozos,
Viva ele, mais que um rei, pelos ditosos
Campos de tanta sementeira de ouro!
E, assim velhinho, e de cabeça calva,
Ande às rosas de luz da Estrela Dalva,
E nelas colha o melhor tesouro.
Velhinha de cabelos cor dos linhos,
Meiga velhinha que no mundo andavas
Pelas urzes e cardos dos caminhos,
E tão sentidas lágrimas choravas.
Tu que nunca magoaste os passarinhos,
Tu que as feras sinistras abrandavas,
Pois dos teus olhos escorriam vinhos
Com os quais os corações purificavas...
Onde estarás depois que me deixaste,
Depois que os olhos límpidos fechaste
Da morte no amoroso pesadelo?
É meu desejo que Jesus te desse
Toda a carícia que nos céus floresce,
Todo o flavo esplendor do Sete-Estrelo.
Ia o meu coração cheio de encantos, ia
Pleno do que de amor um pássaro sonhasse
Na fulva irradiação puríssima de um dia
Que de flóreos trigais os campos alastrasse.
Dentro em meu coração seguidamente havia
A doçura do mel, que um favo derramasse
Para me ver gozar a mais viva alegria,
Para que, assim, minha alma um bálsamo gozasse.
E a dor? O que era a dor nos sublimes arcanos
Desse gozo? E os letais, venéficos, insanos
Vermes verdes do tédio, o símbolo do horror?
Mas agora, que todo esse gozo anda longe,
Veste o meu coração o atro burel de um monge,
E, para então viver, vive na própria dor.
À alma torturada de Carlos de Faria
Quem pregou nessa cruz esses teus frágeis braços?
Quem te lançou à boca a esponja da tortura?
E sobre o teu anseio a mudez dos espaços?
E diante dos teus pés uma planície escura?
Quem te rasgou do peito, a execrandos lançaços,
Todo esse coração onde a tua alma, pura,
Sonhava a doce paz bendita dos regaços;
Todo o meigo e efluvial clarão de uma ventura?
Ah! quando o fundo olhar nesses tormentos cravo,
De tudo me recordo; e essas tristezas cavo,
Como quem cava o chão frio de um cemitério.
Numa hora de repouso, e de recolhimento,
Eu sei o que é a dor, de momento a momento,
Passando sobre ti no seu carro funéreo.
Misteriosas estrelas das alturas,
Cristalinas estrelas misteriosas!
Ânforas de ouro, de guardar doçuras!
Encantadoras ânforas custosas!
Refúgios que minha alma, de entre as duras
Lancinações sanguíneas, dolorosas,
Busca do Azul nas doces curvaturas,
Em horas roxas, vagas e saudosas!
Refúgios eucarísticos, benditos,
Da noite lenta e amarga dos meus gritos,
Enchei-me o triste coração de lendas...
Ah! que a minha alma seja em luz velada:
Seja no nosso encanto amortalhada,
E conduzida pelas nossas tendas.
Na tua boca há vagos marulhejos
De violinos vibrados na quietude
Abençoada e sã dos lugarejos,
Onde tudo palpita de saúde.
Na tua boca o roseiral dos beijos
Espalha o pólen de ouro da virtude,
E pairam cantos, diáfanos adejos
De risos que jamais contá-los pude.
Boca formosa, de dourados favos;
A tua boca embriaga e faz escravos
Os rudes corações, por mais insanos...
E lembra, faz lembrar a água corrente,
À flor da terra, embora ao sol ardente,
Numa jornada de esquecidos anos.
Para que a vida seja um grande mar de rosas
Faz-se mister que a gente, em êxtase, se inflame
No que existe de luz nas crenças vigorosas,
E ame o próprio inimigo, e as próprias pedras ame.
A vida sem o amor vaga nas tenebrosas,
Sinistras ilusões. E se há céu que derrame
Por sobre nós a luz das crenças vigorosas,
A vida sem o amor é um mar que em trevas brame.
É o inferno tenebroso a nossos pés se abrindo;
E a nossos pés, medonho e em blasfêmias rugindo,
A cada hora chegada, ou a cada momento.
A vida sem o amor é um eterno mar morto,
Sem flâmulas, sem paz, sem faróis, e sem porto;
Mar por onde nem passa a ânsia alada do vento!
De que altura descido ele teria
A este mundo de anseios e tormentos?
E em que ventos, tempestuosos ventos,
Ou em que auroras rútilas viria?
E, antes disso, quem sabe, o que seria
Ele, nos infinitos firmamentos,
Ou no mistério atroz dos augurentos
Mares de alguma lua fria... fria?
Ah! de onde baixarias lentamente?
Dize, ó meu pobre coração doente,
Dos anseios nos dédalos eternos?
– Um coração, assim triste, tão triste,
Por certo veio do que em fel existe
Nos segredos de todos os infernos!
Quem me dirá o que esta vida seja?
– Um punhado de terra, num deserto
Onde um Abutre eterno a asa rasteja,
Negro e sinistro, de olho rubro aberto...
Quem me dirá o que esta vida seja?
– Uma lâmpada acesa, vindo perto
Um vendaval que ruge, que esbraveja,
Para apagá-la num momento, é certo.
E o Abutre – o Tédio; e o Vendaval – a Morte,
Andarão juntos, em redor da vida,
Ambos do extremo sul ao extremo norte?
Mas o Tédio, e essa Morte, que assim vagam,
Consigo levarão, pelo ar, perdida,
A alma que os vinhos da esperança embriagam?
O que é triste me atrai; o que é triste me chama;
E então pela tristeza os sonhos vou gozando.
Nos brumais da tristeza a alma sinto cantando:
– Ave em busca da luz meiga que o azul inflama.
O que é triste me atrai, e em minha alma derrama
Vinhos de almo frescor. E em vez de ir tateando,
Pela tristeza, vou, serenamente andando,
Como quem anda, altivo, à conquista da fama.
A tristeza é o meu bem; é o meu eterno encanto;
É o meu dia feliz; é o meu fúlgido manto;
É tudo quanto aspiro; é tudo quanto adoro...
E é na tristeza em fel, do meu amigo – o Tédio,
Que eu busco para a vida o supremo remédio,
Principalmente quando anseio, ou quando choro.
Se por uma infinita noite escura
Um clarim percorresse um céu profundo,
E chamasse de lá todo este mundo
Que anda cheio de dor e de amargura...
Se nessa noite, a cândida ventura;
Essa crença, que existe ainda no fundo
Da alma, tombasse a um pélago iracundo,
Tombasse como a uma sepultura;
Se em nosso olhar a lágrima rolasse;
E dessa amarga lágrima brotasse
Uma ansiedade eternamente fria,
Dize tu, dize tu, mulher amada,
Se por essa sinistra e longa estrada,
Dize se eu nos teus braços me acharia.
A minha vida é urdida de ansiedade,
E de desejos incompreensíveis!
Ora, na minha vida, há suavidade;
Ora revoltas trágicas, horríveis!
Ora, na minha vida, a claridade
Do céu abre rosais imarcescíveis;
E ora, da dor sangrenta, a crueldade
Vibra fortes lançaços invisíveis!
Mas um gozo supremo a alma me enlaça,
Numa força de abrir, pleno de graça,
O coração aos corações tristonhos...
Abundante quermesse espalharia,
Espalharia o pão de cada dia,
Sob o pálio bendito dos meus sonhos.
Neste mundo não há reminiscências
Do que a vida em si resume em dores,
Desde as suas primeiras florescências;
Desde as mais negras, venenosas flores.
O lírio branco, ideal, das inocências
Dos virgens corações trava amargores!
Trava a vinagre a essência das essências;
O imaculado afeto dos amores!
Tudo, na vida, é um lancinar de chagas;
Um revolver de imponderáveis pragas;
Um secreto tormento eterno... eterno...
Mas tudo isso seria, com certeza,
Mais negro, mais fatal, e mais tristezas
Se não corresse o pranto neste inferno.
Para quem traz o olhar profundamente aflito,
Nas violetas da dor, de uns olhos que parecem
Em cada pranto ter a atra expressão de um grito;
E em cada grito ter ânsias que à cova descem...
Para quem traz o olhar nesse anseio infinito,
E o sente à viva flor dos olhos que se aquecem
Nos incêndios fatais de um tormento maldito,
Cavado num mistério onde os sonhos fenecem.
Para quem traz o olhar nesse atroz desatino,
Não há prazer na terra, embora o mais divino
Em resumos de amor tranquilo como os lagos.
Para o olhar que assim vaga, anda por toda a terra,
A própria luz do sol, espiritualizada, encerra
Os desígnios fatais dos dias aziagos.
O amor, um dia, ao se encontrar com a morte
Teve o momento de lhe perguntar:
– O que fazeis, em rumo sul e norte,
Por esses campos e por sobre o mar?
E a morte respondeu-lhe, ereta e forte:
– Ando os corpos dos homens a ceifar.
Com esta ceifadeira de atroz corte,
Que friamente ceifa, sem cessar...
– E o que fazeis, amor? Dizei-me, agora.
Vós que nascestes ao nascer da aurora
Que os tesouros dos sóis enriqueceram?
E o amor lhe disse, abrindo-lhe o regaço!
– Levo no sonho, para o azul do espaço.
As almas que por mim na dor viveram.
Ah! que tumultuar tenebroso de ideias!
Mas a ideia pior era a de ver-me andando
Por um deserto atroz, de báratros e teias,
A penumbra da luz de um sol agonizando...
Um frio glacial corria-me nas veias;
E eu nem mesmo sabia onde andava, cambaleando...
Pois dos meus pobres pés fugiam as areias.
Desse deserto atroz, que a dor ia cavando...
E, finalmente, achei-me, ao todo, amortalhado:
– Mãos em cruz sobre o peito atramente gelado:
E em minha boca roxa o fel abria espumas...
Hora do ocaso vago e triste da saudade.
Em que eu via morrer a minha mocidade
Na agonia augural de um luar entre brumas.
Vou pelo tédio doloroso e amargo
Como quem vai, assim, tristonhamente,
Por um mar sempre largo, sempre largo.
Longe da terra verde e florescente.
Vou pelo tédio doloroso e amargo,
Sem levar na alma um cântico esplendente.
E enterrado num trágico letargo
Sinto o meu coração todo doente.
E não me canso de ir por essas vagas
Que não sei a que plagas, a que plagas
Sobem, revoltas, sob céus tristonhos!
O mar do tédio! o único dos mares
Capaz de amortalhar campos e lares,
E de vencer e amortalhar os sonhos!
Para sempre lembrados os que choram
Profundamente, com o peito em lanças...
Mas os que choram pelas esperanças
Que os altos céus olímpicos enfloram.
Para sempre lembrados os que imploram
Mares cheios do azeite das bonanças,
E têm o espírito como os das crianças
Que as próprias feras com piedade adoram.
Ah! pelos que nesse clarão se aquecem,
Todas as ânsias que em dilúvio descem,
Toda gota de lágrima que passa,
Nada mais são que, continuamente,
Diante dos olhos de quem se vê doente,
Os Santos-óleos da divina graça.
Eis-me junto de um túmulo fechado,
Onde reclino a fronte quase fria.
Quero escutar, digo eu, a litania
De um coração que aqui jaz enterrado.
Nisso, de dentro, parte um som magoado,
De uma profunda e vaga nostalgia.
Quem és? E o som responde-me: — Maria,
A tua filha, o teu amor sonhado!
Um frio, então, tragicamente horrendo,
Passa-me os ossos; e me vai roendo
As carnes que afinal se espedaçavam!
Mas fiquei por saber se o som tristonho
Era o dessa ovelhinha, n'algum sonho,
Ou era o dos vermes que de mim zombavam!
Quando eu, num dia, pelo Espaço a fora,
Por esse Espaço intérmino voar,
Em que florida e luminosa aurora
Terei a ave dos sonhos a cantar?
E este meu coração, que geme e chora,
Que tem contas de pranto a desfiar
A cada hora que chega, ou a cada hora
Que passa, em que caixão verei tombar?
Terá minh'alma a paz sempre querida
Pelos que passam nesta negra vida;
Passam buscando as límpidas distâncias?
E este meu pobre coração de limo
A que outra alma dará, mais tarde, arrimo?
Ou continuará nas mesmas ânsias?
Corvo sinistro, que se me apresentas,
Melancólica ave taciturna,
Que tens nas penas a visão noturna
Das frias luas-novas agourentas!
Corvo, corvo sinistro, das nevoentas
Plagas não sei de que esquecida furna,
Onde jamais cantava a luz diurna,
E sim a treva augúrea que alimentas!
Ó ave triste, que nas penas trazes
Todo o luto fatal dos satanases
Que buscam devorar um peito ansiado!
Responde, ó ave triste! ó luto eterno!
Serás um sonho que surgiu do inferno?
Serás o tédio corporificado?
A paz que os corações tanto desejam
Jamais encontrarão! Jamais! Jamais!
Neste mundo de anseios que gotejam
Mortíferos venenos infernais!
A paz é um campo em cujo chão alvejam
Flores mais luminosas que os cristais.
E de onde para a Via Láctea adejam
Encantadoras aves virginais.
Mas se a paz existisse! Ah! se existisse
Nesse campo de amarguradas flores,
Talvez ninguém, para encontrá-la, visse
O coração rolar no chão da mágoa;
O coração alvionar as dores,
Ou não tivesse os olhos rasos d'água!
Que um dia tombarás à sombra de um jazigo,
Bem sei, meu coração. Saudoso tombarás.
Da morte no regaço eterno, nesse abrigo
De tudo quanto é sonho, ou convulsivos ais!
Mas tu, meu coração, sempre leal amigo
Da eleita da tua alma ainda continuarás?
Dela que te quer tanto e anda sempre contigo,
Por estradas de sol, ou de trevas letais?
Calado ficarás, ao veres-me calado...
Pois toda a tua essência há de ao céu constelado
Evolar-se, sutil, em busca do Mistério...
E se não fosse assim, que profunda agonia!
Chorarias por ela, aflito, noite e dia,
Na atra desolação do frio cemitério.
Amem-se os corações. Encantadoramente
Vibrem sob um tendal de inefável conforto;
E subam no esplendor das estrelas do oriente.
Que orvalham toda fé ajoelhada num horto.
Amem-se os corações, que o eterno amor ardente
A todos, pela vida, abre o amaino de um porto
Onde a paz desenrola a flâmula esplendente.
Sem encontrar, sequer, um grão de areia morto.
E vivam, nessa paz, os corações humanos.
Esquecendo a miséria, os negros desenganos,
Onde a alma sem fé em si própria se encerra...
E o que ficar, que fique... Há de ficar, por certo,
A tristeza augural de algum inferno aberto:
Há de ficar na terra o que só for da terra!
Tenda agasalhadora! Aqui a luz gorjeia
Como se fora uma ave assaz maravilhosa
E o aroma da baunilha aberta ao sol ondeia.
E ondeia o aroma casto e emocional da rosa.
Aqui, quando do campo a curva toda cheia
De uma concentração de prece fervorosa,
Há tudo o que no amor a alma, tranquila, anseia:
Os eflúvios do bem que a todos revigora...
Era neste lugar, fora de tudo quanto
Fosse miséria humana, ou fosse um negro manto
De atra desilusão, ou de revolto agouro.
Que eu quisera viver como um pastor de ovelhas;
Rins cingidos de pele; e à boca o mel de abelhas,
Como o que vem do sol que é um lindo favo de ouro.
Sombras da noite, leves como as aves;
Aconchegos e frêmitos de amores,
Que em nossas asas de esquisitas cores
Subam para o Alto os meus anseios graves.
Sombras flébeis, tenuíssimas, suaves.
Emigras de um chão de negras flores.
Levai-me as mágoas e as secretas dores
Pelas mais altas e silenciosas naves...
Ascendendo às alturas das montanhas,
Que os meus anseios de ferais entranhas.
Que todo esse clamor de ansiedade,
Erre junto de nós, sombras da noite,
E numa estrela rútila se acoite,
Em busca de repouso e de piedade.
De volta ao nosso lar, a este ninho aromado;
A esta casa que a aurora abençoa, amorosa,
Já não mais sou quem era — o mísero exilado
Numa terra sem pão nem fonte marulhosa.
Flores em profusão sobre o linho alvejado
Da nossa mesa em festa! E, na sala espaçosa,
A áurea luz a cantar! E a minha alma ao teu lado,
Sob o pálio do bem da tua alma piedosa.
Pelo lindo beiral curvo das nossas telhas
Que músicas nos dão as douradas abelhas
Que amam como nós dois, felizes, nos amamos!
E os tenros corações dos nossos dez filhinhos,
Bem recordam, Maria, os meigos passarinhos
Na alegria emocional de um Domingo de Ramos!
Esta incerteza que me assalta, às vezes,
Vem de uma roxa e fria noite aziaga;
De uma noite sinistra, que me esmaga,
Por horas, por semanas, e por meses.
Nessa incerteza os fúnebres reveses
De um destino fatal minha alma traga.
E a minha vida é uma contínua vaga
Verde, como se fora de atras fezes!...
Esta incerteza, que me assalta e leva,
Esta visão tristíssima, da treva,
É por demais a inquisicional tortura
De quem vai, de quem vai, agonizante,
Com suas próprias mãos, instante a instante,
Cavando a sua própria sepultura!
Ah! quando o sino, emocional, bimbalha:
Blim-de-blim! Blim-de-blim! divinamente,
(Se é manhã) pelo calmo azul se espalha
Uma alegria de encantar a gente.
Ah! quando o sino, emocional, bimbalha:
Blim-de-blim! blim-de-blim! divinamente,
(Se é à tarde) o nosso peito se agasalha
Nos eflúvios do Angelus, fremente!
Mas quando o sino de uma igreja tange:
Dlom-dlom! dlom-dlom! Toda a nossa alma abrange
Uma roxa saudade indefinida!
É que o dlom-dlom do sino de uma igreja
Lembra o bater de uma ave que voeja
Sobre os últimos dias desta vida!
As nossas santas mães! Dizei-me se há na vida
Almas mais joviais, e mais cheias de encantos...
Almas que pelo amor, pela estrada florida,
Soltam na asa do beijo os mais vivos quebrantos!
Junto delas não há esperança perdida;
Não morre a luz polar, fria, dos nossos prantos;
Nem sangra a rubra flor virgem de uma ferida;
Nem se perde o carinho ao amaino dos seus mantos.
As nossas santas mães! No amor assinaladas,
São, no entanto, da dor cruel das Sete Espadas,
Todo o emblema; e ninguém na dor excedê-las.
Amemos, pois, quem são, por tão divina sorte,
As únicas no amor; e que, mesmo na morte,
Ainda rezam por nós no tendal das estrelas.
Paira diante desse espelho de aço,
E olha os teus olhos ansiosos; e olha
Essa boca torcida de cansaço,
Cuja língua de tanto fel se molha...
Que o teu olhar, embora vivo, ou baço,
Ele que tantas lágrimas desfolha,
Em si recolha a dor, como um palhaço;
Recolha à dor a sua luz, recolha...
Que a tua dor, de uma alma amargurada,
Nesse espelho se veja assinalada,
Clara, flagrante, sem mentira fusca.
E dir-me-ás, então, triste criatura,
Se haverá mais fantástica tortura
Do que a de quem reconhecer-se busca...
Ó mãe abençoada dos meus filhos,
Que desse mar mediterrâneo vieste,
Toda a ventura que no olhar trouxeste,
Trouxeste-a de um verão de eternos brilhos.
Queira o meigo Jesus que, pelos trilhos
Da vida, o grande amor que, então, me deste,
Continue a florir, sem que se creste
Como as ervas se crestam nos ladrilhos...
Que as nossas almas, sempre assim, unidas;
E os nossos sonhos, sempre satisfeitos;
E as nossas esperanças, definidas,
E os bens do céu, em clara luz desfeitos,
E todo o bem de searas florescidas;
Vivam nos nossos corações eleitos.
Sempre te quis, essa velhinha amada.
Essa velhinha amada te queria
Como a si própria, toda iluminada,
Pelo sol da mais límpida alegria.
Ninguém ficava mais alvoroçada
Do que ela, quando ao som da Ave-Maria,
O teu vulto, entre as árvores da estrada,
Lá longe, todo branco, aparecia...
E em sua casa, satisfeito, entravas...
Porém, num dia em que tão triste estavas,
Ela, por ti, que lágrimas chorou!
E morreu, depois disso, essa velhinha.
Mas, mesmo assim, da morte te acarinha;
E foi quem, hoje, os teus olhos te enxugou.
Quem tem uns braços como protetores,
Como amparos na vida irresoluta,
Não sente mágoas e não sente dores,
Abre o peito sereno para a luta.
Avança como os rijos gladiadores,
Pelejando no campo da disputa;
E não recua ao toque dos tambores,
E ao retinir da forte espada astuta.
Assim, jamais recuarei, se tenho
Em vós, da fortaleza todo o engenho;
Se de vós vem o arrimo aos meus cansaços;
Se em vós possuo a proteção mais forte;
Se em vós confio, até na própria morte,
Ó braços protetores dos meus braços!
Olho as estrelas límpidas do espaço,
De um agasalho de divino manto,
E a todas ergo o meu cansado braço,
Sem poder alcançá-las, entretanto!
E eu clamo, aflito, cheio de cansaço;
Clamo a luz de uma delas, que o meu pranto
Venha enxugar, num lenço branco, em laço,
Em seu amparo piedoso e santo.
Mas nem uma sequer, casta, impoluta;
Nem unia apenas, mística, me escuta;
Nem uma apenas me responde às ânsias.
Por isso fico a meditar na sorte
Que terá a minha alma após a morte,
Quando se achar perdida nas distâncias...
Nossa Senhora, um dia, me encontrou
Na tenebrosa Rua da Amargura,
E como eu soluçasse, soluçou,
Plena da mais dulcíssima ternura.
Os olhos tristes, tristes, me fitou,
De uma maneira piedosa e pura;
E, depois de uma pausa, perguntou
Se a minha vida era noite escura...
E eu lhe disse que sim, a soluçar
Como soluça junto à praia o mar,
Quando dos astros não se estende o brilho.
Nisso, Nossa Senhora respondeu,
De mãos erguidas para o azul do céu:
Chora e soluça, ó meu querido filho!
A princípio, era o seu amor a labareda
De unia grande fogueira, em campo raso, ao vento.
E o seu corpo trigueiro, ardente e penugento,
Vestia franjas de ouro, e urdiduras de seda.
Encontrando Jesus, na aromada alameda
Dos olivais em flor, sentiu no pensamento
Um tremor de volúpia, assanhado e violento;
Mas recuou, depois, e mudou de vereda.
Encontrando Jesus, quis lhe beijar a boca,
Porque por Ele andava ansiosamente louca,
E sentia no sangue uns venenos cruéis...
Mas, nessa tarde azul, calma e serena,
Por não poder beijar-lhe a boca, Madalena,
Ajoelhada no chão, buscou beijar-lhe os pés.
Por que razão nós dois nos encontramos,
E nos unimos apaixonadamente?
E de que mundo, então, nós dois baixamos,
Cada qual mais saudoso e mais ardente?
E teríamos gozado o que gozamos
Logo, ao primeiro encontro, de repente?
Ambos, as almas místicas juntamos;
E um beijo fez-se ouvir, longo e fremente.
E Deus sabe a razão por que no mundo
Assim nos encontramos, e um profundo
Amor tivemos, rebentando em flores...
E, para nós, segundo o que ora vemos,
Deus deseja, Deus quer que nos amemos
Cada vez mais, sem queixas, sem clamores...
Presos...
Iremos sempre assim, mãos unidas, seguras,
De maneira que a fé jamais; jamais se acabe,
Mesmo que sobre nós a distância desabe
Muitos dias sem sol, muitas noites escuras.
Os olhares abrindo à atração das alturas,
Que prendem os corações, em forma de arrecabe,
Todo o teu coração profundamente sabe;
E o meu próprio, também, como as tristes criaturas
Vivem no turbilhão dos atros sofrimentos,
No redomoinhar de formidáveis ventos
Que são, às vezes, fogo acesso...
Mas iremos por essa Estrada do Destino,
Que prende o mundo ao céu mais alto e cristalino;
Irás presa à minha alma; e eu à tua alma preso.
Essas meninas gêmeas! Que graciosas,
Quando, à tarde, se encontram debruçadas
As curvas das janelas luminosas
Das tuas lindas pálpebras rosadas!
Vejo-as seguido, assim maravilhosas!
Mas, muitas vezes, vejo-as encerradas
Por que são duas monjas lacrimosas
Que aos céus levantam suas mãos nevadas.
E quando as vejo, ocorre-me à lembrança
Um silêncio de prece, na esperanças
De ficar ajoelhado perto delas,
Como se eu fosse o pobretão de um monge
Que chegasse de longe, muito longe,
Para morar na solidão das celas.
Ocaso triste! Ocaso triste! Há violetas magoadas
Nas lonjuras do céu, e goivos há na altura
Das montanhas, ao pé das águas, debruçadas;
Espelhando no mar toda a sua verdura.
Ao correr do areal poeirento das estradas
Cruzam, tingindo o ar de agoirenta negrura,
As asas dos anus – todas aceleradas,
Numa atra procissão de infinita amargura.
Ao sopé de uma cruz erguida numa praia,
Uma mulher soluça, e entre anseios desmaia;
Fecha os olhos à dor, e ergue-se ao céu divino...
Há um silêncio enorme em derredor de tudo.
E até o próprio mar tornou-se quedo e mudo,
Para escutar a voz nostálgica de um sino.
Se a sombra que te segue, noite e dia,
Ora ao teu lado esquerdo, ora ao direito;
Ora diante do teu próprio peito;
Ora atrás dos teus ombros, fugidia...
Se a sombra que te segue, noite e dia,
Ora alegre, talvez! Ou com o aspecto
De causar medo, de causar respeito,
Uma vez te falasse, o que diria?
Ah! essa sombra que, dessa maneira,
Te segue o corpo, pela vida inteira,
Desde a infância à velhice, ao extremo norte...
Ela nunca diria cousa alguma,
Como a tua alma que não sabe, em suma,
Por que caminhos andará na morte.
À noite, da janela os astros conto
Seguidamente. Conto-os devagar,
Esquadrinhando o azul, ponto por ponto,
Perdendo nesse espaço o próprio olhar.
Às regiões longínquas me remonto,
Buscando um astro para me amparar,
Quando eu, ébrio, embriagado, tonto,
Vir a morte amorosa me acenar...
Busco, dos astros belos, o mais belo.
Na glorificação do Sete-Estrelo,
Pelos séculos a fora, definida...
Mas um assombro frio se me ocorre,
Sobre o fatal destino de quem morre
Sem haver compreendido a própria vida.
Muito desejas a felicidade
Que os outros gozam, no rolar eterno
Do mundo vão! E vives na ansiedade
De tudo teres, até mesmo o inferno...
Nos bruscos murmurejos da cidade,
Quer haja estio abrasador, ou inverno,
Buscas fremente, em plena liberdade,
Das orgias a taça do falerno.
No entanto eu busco, para meu encanto,
Da luz do sol um pequenino manto,
Numa praia... num campo... na montanha...
E o único vinho, então, que me embriaga,
Bebo-o no amor de uma alma casta e maga,
Que há cem milhares de anos me acompanha.
Para eu te ver seguidamente basta
Pensar em ti. Todo o teu corpo assoma
Entre carícias fluídicas de aroma;
E o teu olhar derrama a luz mais casta...
É a visão radiosa, que me arrasta,
Que me seduz, que me entontece e doma,
Transfigurando-me a vida atra e nefasta,
Num suave ambiente de redoma.
Fico, então, a te olhar serenamente;
E, num momento dado, de repente,
Abro-te os braços, mádidos de anseios,
E como, assim, te fito, assim te vejo;
E como a boca em flor, louco te beijo;
E como beijo os pomos dos teus seios!
Tanta alegria emocional guardaste
Como num cofre guarda-se um tesouro;
Tanto sonho de vida e amor sonhaste
Como os que sonham numa cama de ouro;
Tanta voz de esperanças escutaste
Em derredor de ti; cantando esse coro;
Tanta crença abençoada alimentaste,
Tanta fé transformaste em trigo louro...
E quantas lutas bárbaras sentiste
Neste da vida mar de anseios, triste,
Quando te vias desolado e só!
No entanto, agora, o que és tu no mundo?
És na mudez de um túmulo profundo,
Uns restolhos tristíssimos de pó!
A tua boca, em curvas vaporosas,
De uma beleza feita num segredo,
Possui o aroma emocional das rosas,
E os misteriosos sons de um citaredo.
A tua boca, em curvas vaporosas,
Faz abismar o próprio passaredo
Que nela escuta as árias mais saudosas,
De uma alma que cantasse num degredo...
E ontem de tarde, quando estavas perto
De quem te quer, de coração aberto
As carícias do amor que é a própria vida,
A tua boca lhe contou, fremente,
Toda a história de um longo beijo ardente,
Dado numa hora triste, de partida.
Essa que ao coração me fala, quando
Me vejo triste, imensamente triste,
Não desceu a este mundo miserando
Senão na luz que no alto céu existe.
E, portanto, feliz, e peito brando,
É quem as ânsias da minha alma assiste,
Afastando-a do assalto formidando
Da dor que fere como lança em riste.
Vejo-a na estrada aspérrima do mundo,
Sempre bondade, sempre amor fecundo,
Sempre a pedir a luz desses espaços...
E ao vê-la, assim, nessa ideal beleza,
Não maldigo esta vida, na certeza
De me ver amparado nos seus braços.
Pelos degraus da escada indefinida
De um sonho, fui subindo... fui subindo...
E os meus olhares que se iam abrindo
Viram todo o esplendor de uma outra vida.
Afastado da terra, umedecida
De tantas, tantas lágrimas caindo
De cada peito trágico, fui indo
Ainda mais longe, de alma em luz ungida,
E subi mais, tonto de sol, durante
Uma porção de séculos, confiante
No que os meus olhos viam na amplidão...
Mas, numa queda assaz vertiginosa,
Desci, e vim morar — alma saudosa,
Perto do soluçar de um coração!
Eu sempre disse que por essas plagas
Sem limites, sem termo, no infinito,
Sob noites tristíssimas, pressagas,
Meu coração errou como um proscrito.
Nessas regiões, a muitos olhos vagos,
Meu coração errou, de grito em grito;
Mas, entrando na luz, viu cousas magas:
Viu almas virgens, num solar bendito.
E quando teve que voltar, num dia
Que lhe fora marcado, na harmonia
Do destino, voltou... E de lá veio,
Ao lado dele, o seu olhar tão franco;
E a sua boca em mel, e o colo branco,
Com um botão de rosa em cada seio.
Ruge, brame, blasfema, dize as cousas
Mais pesadas que as pedras dos caminhos,
Ou leves, leves como as mariposas,
E as aladas carícias dos arminhos.
Levanta, ou fecha, ao mesmo tempo, as lousas
Onde dormem crianças e velhinhos...
Alma inimiga, que jamais repousa,
Transforma em fel até os próprios vinhos,
Faze tudo, portanto, o que quiseres,
Contra os homens, também contra as mulheres;
Contra as flores e as aves do verão...
Mas não me queiras afastar do sonho
Dentro do qual, em êxtase, deponho
A hóstia branca e sublime do perdão.
Aquela estrela que lá está, aquela
Que primeiro brilhou no firmamento,
É a nossa confidente. Ao vê-la,
Ficamos loucos de contentamento.
Defronte, bem defronte da janela
Do nosso quarto, lê o pensamento
De todos nós; e cada vez mais bela,
Mais luminosa de florescimento.
Ó sacrossanta estrela das alturas!
Conta do meu rosário de venturas;
Farol, nas minhas longas caminhadas,
Que sejas sempre, pelas noites calmas,
A estrela do pastor das nossas almas
Quando as mesmas se virem transviadas.
Deve ter asas negras, tenebrosas,
Esse nefasto e trágico morcego
Que, à noite, desce às almas criminosas
Que procuram nas trevas um sossego.
Visão, dentre as visões misteriosas,
Desce do mais indescritível pego,
Avassalando as ânsias silenciosas,
Roubando a tudo os mantos de aconchego.
Mas, mesmo assim, por toda a imensidade,
Quem ao remorso negará piedade;
Quem ao remorso negará o intento
De nos levar, na curva dos seus braços,
A alma plena de mísero cansaço,
A luz formosa do arrependimento?
Não vaciles uma hora, um só momento,
Se o bem desejas encontrar na estrada
Que vai da terra ao azul do firmamento,
E é de tantas estrelas marchetada...
Ergue teu coração, e o pensamento;
E assim terás a paz por ti sonhada,
Sem soluços, sem ais, e sem lamento,
Lá, nessa eterna e fúlgida morada.
Mas não maldigas cruamente a terra,
Essa que o gérmen do teu corpo encerra,
E te avigora a força, no trabalho...
Pois uma mãe, por mais austera e bruta,
É sempre mãe; e ao filho sempre escuta,
Dando-lhe os sentimentos do agasalho.
...E terei que subir, de cruz aos ombros,
Essa escabrosa e trágica montanha,
De vão em vão, beirando esses escombros,
Da tarde triste sob a luz estranha.
E quem me seguirá, nessa tamanha
Desolação, quando eu, cheio de assombros,
Essa escabrosa e trágica montanha
Mais tiver de subir, de cruz aos ombros?
Eu contigo serei, nessa jornada...
É o que me dizes, minha doce amada,
Plena de crença, e de esperanças plena...
No teu amor, portanto, visto,
Ao subir da montanha, como um cristo;
E tu serás Maria Madalena!
Ah! contra a dor que assalta horrivelmente o mundo,
Vives tu a rugir, e contra o céu reclamas...
E assim, revel, tua alma arde em dantescas chamas;
E arde o teu coração, dos infernos no fundo.
Contra a dor tens o olhar de pantera, iracundo:
Fogo que pela terra atrozmente derramas,
Quando diante de ti, dos monturos, das lamas,
Brota o lírio da cor do largo céu profundo!
No entanto a dor arrasa o mundo, unicamente,
Porque o teu coração, que nascera inocente,
Em vez de florescer, numa vida eternal,
Dentro da própria fé, e da crença irradia,
Passou a florescer na fragrância do dia,
Na atra vala comum da podridão do mal.
Clamando...
Há corações que nunca floresceram;
E muitos há que nunca deram frutos...
E, no entanto, dos astros impolutos
Vieram para o mundo, e aqui nasceram.
São corações malditos, que se encheram
De tenebrosos e sinistros lutos...
Vieram brutos e ficaram brutos;
E nem mesmo no amor se conheceram.
Por esses corações vivo clamando,
Vivo lágrimas cruas derramando,
Porque não sei se o meu, também, num dia,
Veio de luto lúgubre vestido,
Ou se na terra já viveu florido,
Ou se teve alguma hora de alegria.
Para sempre feliz o homem que pensa
Achar abrigo na Mansão Etérea,
Na harmoniosa e viva luz intensa,
Afastada da terra deletéria.
Longe da negra, da pesada e densa
Nuvem de poeira, da fatal miséria,
Do alto dos altos torreões da Crença,
O homem sente um rio em cada artéria.
O homem que pensa nesse abrigo, embora
Passe a chorar desde o clarão da aurora
Ao entardecer; e à noite passe, aflito,
É o mais feliz de todos, porque sente
Deus a lhe dar a mão, doce e clemente,
Através das escadas do infinito.
Nossa Senhora da Consolação,
Abre o teu manto azul e me agasalha,
Pois és o arrimo do meu coração
Que no mundo, entre lágrimas, trabalha.
E me estende, Senhora, a tua mão
Que tantas bênçãos pelo mundo espalha;
E que eu não ande, pelo mundo, em vão,
Como no outono ressequida palha.
Que o teu consolo seja um copo de água
A boca rubra de quem sente a mágoa
De não ter água, em dias de verão,
Quando se veja trôpego e cansado,
Depois de haver mil léguas caminhado
Pelos desertos da desilusão.
Para as estrelas vão as nossas ânsias;
Todas as ânsias que na Dor sentimos...
São aves que se perdem nas distâncias;
E, nas asas dos sonhos, as seguiram.
E lá, mais delicadas que fragrâncias
Dos liriais que no caminho vimos,
Todas elas, vestidas de flamâncias,
São as árias da luz, que no ar ouvimos.
Mas as ânsias que vão, serenamente,
Para as estrelas, e por lá, na albente
Doçura casta das estrelas ficam,
São, com certeza, aquelas que, no mundo,
Neste sinistro báratro profundo,
Nos cadinhos do amor se purificam.
Quis uma alma, depois de haver deixado
O coração na rasa sepultura,
Vê-lo de novo. Então, da excelsa altura,
Desceu à terra num clarão sagrado.
Desejou encontrá-lo ainda guardado,
E repleto da mística doçura
Da mocidade em flor; e na ventura
De se ver por um outro ainda amparado.
Ei-la, pois, a cavar a terra fria...
Mas, de real, o que na cova havia
Era, dos vermes, o banquete torvo;
Onde tudo se iguala; onde se iguala
O coração que veste a cor de opala
Ao coração que veste a cor do corvo.
Na hora extrema da vida há sempre um raio
Que, embora o homem não perceba, desce
Como se sobre a sua fronte houvesse,
De luz sublime um verdadeiro espraio...
É a piedade, no primeiro ensaio,
Na ventura amorosa de uma prece
Que não vacila, que não tem desmaio;
Que vive eterna, que jamais fenece.
E, sendo a piedade, é a luz mais bela,
Como diante de uma caravela
Um farol lhe mostrando um rumo ao norte.
Esse raio bendito é sempre aquele
Que, deste rumo a um outro nos impele,
Nos braços frios mas leais da morte.
Essas nas quais te sinto a alma continuamente
Afundada... afundada – essas são, com certeza,
As asas mais febris, e de um brilho mais quente,
Que hão de te levar à Suprema Beleza...
Os prazeres, Maria, enganam muito a gente,
Porque são como o pó que vai na correnteza
Dos ventos, e, talvez, a nuvem reluzente
Que se apaga do céu na imensa redondeza.
Mas, as torturas, não! Se é que subir desejas
A Suprema Beleza, em asas benfazejas,
Deixa que, nesse voo, as ocultas torturas
Da tua alma gentil ascendam, sempre francas,
Pois de torturas são feitas as almas francas,
E os nobres corações de todas as criaturas.
Mágoa! Equimose atroz! Quem nunca a teve?
E quem nunca a terá, na indefinida
Estrada tenebrosa desta vida,
Entretanto, tão célere e tão leve?
E por menor que seja, ou por mais leve,
Ela nos traz a alma sacudida
Desde a hora do berço à da partida
Onde, na morte, a nos seguir se atreve.
E até o meu filho, assim, tão pequenino,
Que não sabe o que seja um mau destino,
Se falasse, diria o que é a mágoa
Que eu sei que existe já, flagrantemente,
Da sua alma no espelho refulgente,
Nessa luz dos seus olhos rasos de água!
Ver-te é todo o maior contentamento
De um coração que ao amor versos escreve...
Ver-te, assim, delicada, leve... leve...
Quase uma pluma no correr do vento.
Nos fluidos de ouro do meu pensamento
O sonho, por mais amplo, nem se atreve
A seguir-te de longe; e nem descreve
Da tua forma o alado movimento!...
Ver-te é todo o meu peito abrir-se em dias
De sol claro, flamando pedrarias,
Nos campos, pelas flores, pelas parras,
Pelo mar, pelos rios, pelas fontes,
Pelos azuis prismáticos dos montes,
E ouvir cantar as aves e as cigarras.
Se a Estrela-d'alva, de clarões de prata,
Lírio que vai o espaço perfumando;
E no mar, e nos rios se retrata,
Por tudo um pólen de ouro derramando.
Se a Estrela-d'alva, da branália-elata
Do céu, abrisse o lindo seio brando,
E viesse escutar toda a sonata
De um coração que vive soluçando...
Se aquela Estrela me escutar quisesse,
Talvez dos longes em que se vê viesse,
Viesse escutar, no tempo que hoje corre,
Quem tanto nela fala ansiosamente,
Como, na hora da morte, um justo, um crente
Fala na Virgem do Socorro, e morre.
Quem morre solta, da misteriosa argila,
Do peito frio, um pássaro proscrito,
Que as asas abre, em rumo do infinito,
Às regiões da eterna luz tranquila.
Quem morre dessa forma, não vacila,
Embora a carne ruja, e solte um grito,
Pois que observa um largo céu bendito,
No pranto que lhe corre da pupila.
De quem amou com largo entendimento;
De quem sofreu aspérrimo tormento;
De quem orou com fé nos astros belos,
O delicado espírito, ascendendo,
Vai, pouco a pouco, se compreendendo,
Distante da Babel dos Pesadelos.
Desta montanha de tão frescos ares,
Circundada de campos enflorados,
Abro, saudoso, às amplidões dos mares,
Os meus sonhos formosos e adorados.
Vão-se com eles meus febris olhares,
Como uns festivos pássaros alados,
Do céu buscando os límpidos luares,
E os abrigos dos astros encantados.
Mas não sei a razão por que, tristonhos,
Voltam eles, cheios de um pesar profundo,
Quando voaram tão leves e risonhos,
Para um solar ubérrimo, fecundo!
É que os meus sonhos, adorados sonhos
Não pertencem senão ao próprio mundo!
I
Olhos que sois os límpidos riachos
Dos sonhos, das quimeras, dos encantos...
Uvas de Samos, de misteriosos cachos,
Para alucinamentos e quebrantos...
Olhos que sois os sedutores fachos
Da luz do afago, que se desfaz em mantos...
Olhos que, quando merencóreos, baixos,
Lavam-se, castos, em piedosos prantos.
Dizei-me, riachos de inefáveis vinhos,
Se os vossos leves, fluídicos carinhos
Algum dia terão de andar no etéreo,
Ou, tristes, tristes, dolorosamente,
Nos dois buracos da caveira algente,
Na irônica mudez do cemitério!
II
Boca da cor da flor do cardamomo,
Para a gente beijar... beijar... beijar...
Num fervoroso e extasiante assomo
De quem beija a toalha de um altar!
Boca de salmos misteriosos como
Os dos Missais da branca luz do luar...
Leve, precioso, delicado tomo
Para ser lido por quem saiba amar.
Lótus de sangue! bizantina taça
De doçuras, de aromas e de graça;
Encantadora ânfora sagrada,
Que de vós será feito, quando um dia,
Baixardes, boca, à cova fria... fria,
Pelos vermes sinistros assaltada?
III
Delicados, tenuíssimos novelos
De emocionais aromas vaporosos,
Sobem da noite desses teus cabelos,
Ou descem como afagos amorosos.
Aromas erram, que dá gosto tê-los
A taça ideal dos sonhos vaporosos!
E minh’alma, aflitíssima, ao sorvê-los,
Enche-se toda de emotivos gozos...
Esses aromas, límpidos, divinos,
Leves, efluviais, vibrando os hinos
Das sensações – aromas requintados –
Esses aromas, minha Flor querida,
Serão na morte o que hoje são, na vida?
Serão na morte, então, abandonados?
IV
Turris eburnea, de um luar velado,
Quando de maio o espaço é uma turquesa!
Torre a cujo sopé, alucinado,
Depus beijos de amor e de pureza!
Pescoço – torreão iluminado
Pelos brilhos de toda a natureza;
Coluna branca, de um farol sagrado,
Aberto ao mar dos sonhos da beleza!
Todos os nossos resplendores de arte
Que na voz dos clarins, por toda a parte
Errou como asas de águia pela altura.
Todos, todos os nossos resplendores
Terão eternamente as mesmas cores,
Nos soturnos brumais da sepultura?
V
Seios ebúrneos, pomos tentadores,
Do encantado pomar das primaveras,
Virgens e novos e fascinadores,
Mordidos das abelhas das quimeras.
Redomas raras, de opalinas cores!
Taças lembrando o resplendor das eras,
E que embriagam de ideais licores
As próprias almas no viver austeras!
Nas vossas fontes, delicados seios
De sangue novo, tentadores seios,
O que ora passa de emotivo gozo;
O que ora passa e como as chamas arde,
Dizei-me, seios, passará mais tarde,
Dos vermes no banquete tenebroso?
VI
Não vos calcem senão os brancos lírios
Nos seus cálices de ouro e alvos, linhos.
Não sois pés para as urzes e martírios,
Não sois pés para, as pedras dos caminhos.
Saltitem outros, cheios de delírios,
Saltitem por espinhos... por espinhos...
Não vós, que sois tão alvos como os círios
Da sacrossanta ermida dos carinhos.
Ah! que os lírios vos calcem, pés de fada,
Enquanto andais da vida pela estrada,
Pois que afinal em que vereis os vossos
Traços da cor dos ricos alabastros,
Quando vos virdes pelo chão, de rastros,
E mais não fordes que uns nojentos ossos?
VII
Ó mãos que recordais a branca espuma
Das ondas, quando as ondas vão bater
De encontro à praia em curva, uma a uma,
Desde a manhã dourada ao entardecer.
Ó lindas mãos que recordais, em suma,
Duas rocas que vivem a estender
Seguidas os fios da ilusão, se alguma
Cousa fatal vos vir acontecer?
Se, por exemplo: — cedo, muito cedo,
Num doloroso e trágico segredo,
Tiverdes de vos ver junto dos mochos?!
Tiverdes de vos ver em cruz no peito,
Que deixou de pulsar, na dor desfeito
Ó lindas mãos, sereis uns lírios roxos!