LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Alexei Bueno (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, 883 p.
Obra completa
Augusto dos Anjos

EU

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
— Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!
Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma —
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio.
Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,
Trazendo no deserto das ideias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na ideia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.
Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!
Será calor, causa ubíqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!
E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
— Engrenagem de vísceras vulgares —
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.
É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável dos micróbios!
Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.
Brancas bacantes bêbadas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar domeretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.
No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.
Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do aríete
E os arremessos de uma catapulta.
Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descarnada de um duende,
Que tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!
Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su’alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epiléticos esforços,
Acorda, com os candeeiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.
É o despertar de um povo subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
— Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.
As alucinações táteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
Continua o martírio das criaturas:
— O homicídio nas vielas mais escuras,
— O ferido que a hostil gleba atra escarva,
— O último solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!”
Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!
Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imenso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!

AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das ideias, percorro, como um gênio,
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

A IDEIA

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

O LÁZARO DA PÁTRIA

Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.
Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes.
Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.
Riem as meretrizes no Cassino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
— Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais!
Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!
Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...
E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

SONETO

Ao meu primeiro filho
nascido morto com 7 meses incompletos.
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

VERSOS A UM CÃO

Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!
Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar,
Dos teus antepassados vermiformes.
Cão! — Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...
E irás assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos seus pais!

O DEUS-VERME

Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

DEBAIXO DO TAMARINDO

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!
Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

AS CISMAS DO DESTINO

I

Recife, Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.
Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.
A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.
É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh’alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
Era antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!
E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!
Na alta alucinação de minhas cismas,
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebatada pelos aneurismas.
Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!
Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!
Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!
Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.
Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os açoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.
Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!
Em tudo, então, meus olhos distinguiram,
Da miniatura singular de uma aspa
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!
Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista de cachorro
A alma embrionária que não continua?!
Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se na laringe,
Escapando-se apenas em latidos!
Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!
Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!
Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!
Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigmeias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopeias carolíngias!
Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos pólipos.
Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.
A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!
Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!
E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!
Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!
A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos sêmens!
Enterravam as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.
Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.
Fabricavam destarte os bastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.
Prostituição ou outro qualquer nome,
por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!
Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!
Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria embele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!
E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!
Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino;

III

“Homem! por mais que a Ideia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Ideia
Dás ao sôfrego estudo da ninfeia
E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião, que na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopeias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projeções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tífon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira meteórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço — esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes,
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranquila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!”

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o Rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentor de mil línguas insurretas,
O convencionalismo das Pandetas
E os textos maus dos códigos recentes!
Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.
Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sustenidos de uma endecha,
Vinha-me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.
O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!
O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!

BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

SONHO DE UM MONISTA

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pro-dinâmica infinita,
Na inconsciência de um zoófito tranquilo.
A verdade espantosa do Protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus — essa mônada esquisita —
Coordenando e animando tudo aquilo!
E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,
Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e é a mãe das outras energias!

SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio, e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —
Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

MATER ORIGINALIS

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;
O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.
Nenhuma ignota união ou nenhum sexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...
Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!
É o afrodístico leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,
Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!
Nesse caixão iam, talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmmânicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!
A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...
Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!
Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...
Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!
Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

INSÂNIA DE UM SIMPLES

Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;
Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar enfim na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!
E enquanto arremedando Éolo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,
Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio de minha pequenez!

OS DOENTES

I

Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de bilhões de raças
Que há muitos anos desapareceram!

II

Minha angústia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do Desconsolo,
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!
Convulso, o vento entoava um pseudosalmo,
Contrastando, entretanto, com o ar convulso
A noite funcionava como um pulso
Fisiologicamente muito calmo.
Caíam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem velas,
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.
Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em cima de um túmulo, um cachorro
Pedia para mim água e socorro
À comiseração dos transeuntes!
Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava. Além jazia os pés da serra,
Criando as superstições de minha terra,
A queixada específica de um burro!
Gordo adubo de agreste urtiga brava,
Benigna água, magnânima e magnífica,
Em cuja álgida unção, branda e beatífica,
A Paraíba indígena se lava!
A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
E a câmara odorífera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus espalha à beira do seu tálamo!
Nos de teu curso desobstruídos trilhos,
Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,
O hidrogênio e o oxigênio que tu choras
Pelo falecimento dos teus filhos!
Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,
A incógnita psique das massas mortas
Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,
Na esteira igualitária do teu leito!
O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico hissope
Em seu fantasmagórico galope
A abundância geométrica do espaço.
Meu ser estacionava, olhando os campos
Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!

III

Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.
Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros,
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.
Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!
Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!
E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!
Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.
Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta onívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!
Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!

IV

Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!
Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.
Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!
Como quem analisa uma apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça
Na tumba de Iracema!...
Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
À ultrajante invenção do telefone.
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!
Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua
Que progredia sobre os seus despojos!
Mas, diante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,
Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!

V

Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.
As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,
Batia com o pentágono dos dedos
Sobre um fundo hipotético de chagas!
Diabólica dinâmica daninha
Oprimia meu cérebro indefeso
Com a força onerosíssima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.
Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra,
E quase a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bêbedos da rua.
Hereditariedades politípicas
Punham na minha boca putrescível
Interjeições de abracadabra horrível
E os verbos indignados das Filípicas.
Todos os vocativos dos blasfemos,
No horror daquela noite monstruosa,
Maldiziam, com voz estentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.
Como que havia na ânsia de conforto
De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,
Uma necessidade de suicídio
E um desejo incoercível de ser morto!
Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de nux-vômica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
De, com o auxílio especial do osso masseter,
Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.
Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.
Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!
Com o horror tradicional da raiva corsa
Minha vontade era, perante a cova,
Arrancar do meu próprio corpo a prova
Da persistência trágica da força.
A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não dorme
É a absorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.
Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
A vida vem do éter que se condensa
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a estirpe radiolar chamada Actissa.
Quando eu for misturar-me com as violetas
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra
Reviverá, dando emoção à pedra
Na acústica de todos os planetas!

VI

À álgida agulha, agora, alva, a saraiva
Caindo, análoga era... Um cão agora
Punha a atra língua hidrófoba de fora
Em contrações miológicas de raiva.
Mas, para além, entre oscilantes chamas,
Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
Se extenuavam nas camas.
Uma, ignóbil, derreada de cansaço,
Quase que escangalhada pelo vício,
Cheirava com prazer no sacrifício
A lepra má que lhe roía o braço!
E ensanguentava os dedos da mão nívea
Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria bárbara que cobre
Os saracoteamentos da lascívia...
De certo, a perversão de que era presa
O sensorium daquela prostituta
Vinha da adaptação quase absoluta
À ambiência microbiana da baixeza!
Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,
Não tínheis ainda essa erupção cutânea,
Nem tínheis, vítima última da insânia,
Duas mamárias glândulas estéreis!
Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violência, no horizonte,
O sol malvado que secou a fonte
De vossa castidade agora finda!
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
E estais velha! — De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Frequentam diariamente vosso quarto!
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes!

VII

Quase todos os lutos conjugados,
Como uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de óleo
Na arquitetura arcaica dos sobrados.
Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha ilusão de moço,
Como a boca de um poço artesiano!
Atabalhoadamente pelos becos,
Eu pensava nas coisas que perecem,
Desde as musculaturas que apodrecem
À ruína vegetal dos lírios secos.
Cismava no propósito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da igreja,
E vai depois levá-lo ao cemitério!
E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciência terrível desse inseto!
Regougando, porém, argots e aljâmias,
Como quem nada encontra que o perturbe,
A energúmena grei dos ébrios da urbe
Festejava seu sábado de infâmias.
A estática fatal das paixões cegas,
Rugindo fundamente nos neurônios,
Puxava aquele povo de demônios
Para a promiscuidade das adegas.
E a ébria turba que escaras sujas masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.
O ar ambiente cheirava a ácido acético,
Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
Apareceu, escorraçando a festa,
A mandíbula inchada de um morfético!
Saliências polimórficas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo
Tamanho aberretório das orelhas.
O fácies do morfético assombrava!
— Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!
Era todo o meu sonho, assim inchado,
Já podre, que a morfeia miserável
Tornava às impressões táteis, palpável,
Como se fosse um corpo organizado!

VIII

Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,
E o cemitério, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede,
Pela degradação dos que o povoam.
Quanta gente, roubada à humana coorte
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;
E nua, após baixar ao caos budista,
Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1$200 ao lojista!
Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabelos se arrepiaram.
Os evolucionismos benfeitores
Que por entre os cadáveres caminham,
Iguais a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer às flores!
Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!
É possível que o estômago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o antropófago apetite,
Comendo carne humana, à meia-noite!
Com uma ilimitadíssima tristeza,
Na impaciência do estômago vazio,
Eu devorava aquele bolo frio
Feito das podridões da Natureza!
E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;
Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
À sodomia indigna dos moscardos;
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!
Na evolução de minha dor grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indenização dos meus serviços,
O benefício de uma cova fresca.
Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,
Como o íncola do pólo ártico, às vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.
Nunca mais as goteiras cairiam
Como propositais setas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que sofriam!
Do meu cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a luz restituir o antigo crédito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possui um sol dentro de casa.
Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!

IX

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!
O gênio procriador da espécie eterna
Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Uma sobrevivência de Sidarta,
Dentro da filogênese moderna;
E arrancara milhares de existências
Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.
Um céu calamitoso de vingança
Desagregava, déspota e sem normas,
O adesionismo biôntico das formas
Multiplicadas pela lei da herança!
A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria!
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluídas, corre,
Parecia também desagregar-se!
Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna
O vagido de uma outra Humanidade!
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!

ASA DE CORVO

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!

UMA NOITE NO CAIRO

Noite no Egito. O céu claro e profundo
Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.
Os mastins negros vão ladrando à lua...
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.
O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!
Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa a alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.
Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epilético de injúria!
Em derredor duma ampla mesa preta
— Última nota do conúbio infando —
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.
Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.
Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranquilo...
Apenas, como um velho stradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

DUAS ESTROFES

(À memória de João de Deus)
Ahi! ciechi! il tanto affaticar che giova?
Tutti torniamo alla gran madre antica
E il nostro nome appena si ritrova.
— Petrarca
A queda do teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que um dia no ano trágico de mil
E setecentos e cinquenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!
A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

O MAR, A ESCADA E O HOMEM

“Olha agora, mamífero inferior,
“À luz da espicurista ataraxia,
“O fracasso de tua geografia
“E do teu escafandro esmiuçador!
“Ah! Jamais saberás ser superior,
“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o vastíssimo vapor,
“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade da Escada íngreme:
“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”
E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!

DECADÊNCIA

Iguais às linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!
A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!
Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,
Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
E a armação funerária das clavículas!

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÙ

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidade de menina:
“— Não, não fora ela! —“ E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

A UM MASCARADO

Rasga essa máscara ótima de seda
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!
Sem que te arranquem da garganta queda
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!
A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo...
E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!

VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra — a mãe comum — o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por que?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

CONTRASTES

A antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!
O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!
Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,
Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...

GEMIDOS DE ARTE

I

Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também gira e redemoinham.
Os pães — filhos legítimos dos trigos —
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra...
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!
Quisera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!
Barulho de mandíbulas e abdomens!
E vem-me com um despreza por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

II

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!
Reúnam-se em rebelião ardente e acesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!
O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!
Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.
Ladra furiosa a tribo dos podengos.
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.
Um pássaro, alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.
Em grandes semicírculos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pêlos,
Voam à semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.
Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleia a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntário.
Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!

III

Pelo acidentadíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.
Uma atmosfera má de incômoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Fede. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos vales,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta à casa do finado Toca!
Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava canas para o engenho!
Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flores! Agora, em vez de flores,
Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam caretas verdes nas taperas.
Na bruta dispersão de vítreos cacos,
À dura luz do sol resplandecente,
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.
O cupim negro broca o âmago fino
Do teto. E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino.
O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas, dos esconderijos,
Estão olhando aquelas coisas mortas!
Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um anel enorme de aliança,
Une todas as coisas do Universo!
E assim pensando, com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!
Gosto do sol ignívomo e iracundo
Como o réptil gosta quando se molha
E na atra escuridão dos ares, olha
Melancolicamente para o mundo!
Essa alegria imaterializada,
Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,
É o pedaço já podre de pão duro
Que o miserável recebeu na estrada!
Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Alemanha pediu a Jules Favre...
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!
Seja este sol meu último consolo;
E o espírito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com a misericórdia de um tijolo!...
Tudo enfim a mesma órbita percorre
E as bocas vão beber o mesmo leite...
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma forma que o homem morre.
Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado da minh’alma!
Sol brasileiro! queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,
De pé, à luz da consciência infame,
À carbonização dos próprios ossos!

VERSOS DE AMOR

A um poeta erótico
Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!
Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo,
Possam todos os homens compreendê-lo!
Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!

SONETOS

I

A meu pai doente
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

II

A meu pai morto
Madrugada de Treze de Janeiro,
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o!” deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

III

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

DEPOIS DA ORGIA

O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,
Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!

A ÁRVORE DA SERRA

— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma!...
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

VENCIDO

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.
Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!
Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
À vontade do vômito plebeu...
E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

O CORRUPIÃO

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!
Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!
A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.
Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

NOITE DE UM VISIONÁRIO

Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!
— “Que esta alucinação tátil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias,
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.
Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.
E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!
Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como um cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.
A essa hora, nas telúrias reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.
E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!
Bolia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.
As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.
E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!
E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!
A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elegias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.
Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.
Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu — coetâneo do horrendo cataclismo —
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!

ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadamente ribombava!
Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemárica da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!
Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,
No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenados à Morte, assim como eu!

VANDALISMO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

A ILHA DE CIPANGO

Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito...
Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Para, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!
Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!
Mas de repente, num enleio doce,
Qual num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
À cuja sombra descansou Colombo!
Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dois realejos
Estão chorando meus amores mortos!
E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!

MATER

Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!
E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éfebos de Esparta. —
Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!
Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas coisas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.
Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer, há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.
Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!
Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
À sombra dos sicômoros eternos!

POEMA NEGRO

A Santos Neto
Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!
Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!
Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajes pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!
E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam!
Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros:
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosso o atrito de dois ferros!
Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quanto eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!
Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A trava invade o obscuro orbe terrestre
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.
Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de S. Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte
Recomeça o barulha das matracas.
A desagregação da minha Ideia
Aumenta. Como as chagas da morfeia,
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.
Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos.
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E pedaço de cera derretida!
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensanguento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
Meu coração, como um cristal, se quebre;
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrase,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma cassa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!
Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

ETERNA MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

QUEIXAS NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.
O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!
Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação...
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto:
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!
Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração — esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!—
Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!
Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que fugi de casa!

INSÔNIA

Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...
Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito adentro?!
— Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ao mapa-múndi estranha.
A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
Desde os Cristãos até Giordano Bruno!
Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vício não faísca!
Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!
Por que cumpri o universal ditame?!
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Por que não evitei o precipício
Estrangulando minha carne infame?!
Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!
À proporção que a minha insônia aumenta
Hieróglifos e esfinges interrogo...
Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
Toda a alvorada esplêndida se ostenta.
Vagueio pela Noite decaída...
No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando sobre os campos largos
O derradeiro fósforo da Vida.
O Sol, equilibrando-se na esfera,
Restitui-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorfose
Nas minhas arcas cerebrais se opera.
O odor da margarida e da begônia
Subitamente me penetra o olfato...
Aqui, neste silêncio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!
Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corimbos,
Recordam santos nos seus próprios nichos.
Com o olhar a verde periferia abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
As maravilhas reais do meu Pau d’Arco!
Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinário.
Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!

BARCAROLA

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.
Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.
Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.
Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.
Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...
Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.
Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.
Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.
A Lua — globo de louça —
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!
Ouço do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.
Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.
É como um requiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.
“Fecha-te nesse medonho
“Reduto de Maldição,
“Viajeiro da Extrema-Unção,
“Sonhador do último sonho!
“Numa redoma ilusória
“Cercou-te a glória falaz,
“Mas nunca mais, nunca mais
“Há de cercar-te essa glória!
“Nunca mais! Sê, porém, forte.
“O poeta é como Jesus!
“Abraça-te à tua Cruz
“E morre, poeta da Morte!”
— E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!
Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!

TRISTEZAS DE UM QUARTO MINGUANTE

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro...
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! Não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
— Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: — Uma...
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse...
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!
Então dois ossos roídos me assombram...
— “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram”.
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rolo no tapete,
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!

MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.
Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psique humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!
E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
— “Cinza, síntese má da podridão,
“Miniatura alegórica do chão,
“Onde os ventres maternos ficam podres;
“Na tua clandestina e erma alma vasta,
“Onde nenhuma lâmpada se acende,
“Meu raciocínio sôfrego surpreende
“Todas as formas da matéria gasta!”
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!
Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!
E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.
Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!
É o caos da ávita víscera avarenta
— Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! —
Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
É a flor dos genealógicos abismos
— Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. —
Depois, é o céu abscôndito do Nada,
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!
Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!
Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.
Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!
Em cismas filosóficas me perco
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco.
Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;
Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!
Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!
O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar,
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!
Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida
Na abjeção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!

OUTRAS POESIAS

O LAMENTO DAS COISAS

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!
E a dor da Força desaproveitada,
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

O MEU NIRVANA

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Ideia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebeias —
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Ideias!

CAPUT IMMORTALE

Ad poetam
Na dinâmica aziaga das descidas,
Aglomeradamente e em turbilhão
Solucem dentro do Universo ancião,
Todas as urbes siderais vencidas!
Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas.
Sobre a pancosmológica exaustão
Reste apenas o acervo árido e vão
Das muscularidades consumidas!
Ainda assim, a animar o cosmos ermo,
Morto o comércio físico nefando,
Oh! Nauta aflito do Subliminal,
Como a última expressão da Dor sem termo,
Tua cabeça há de ficar vibrando
Na negatividade universal!

APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes do meu rosto,
Pressinto o fim da orgânica batalha:
— Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...
E o Homem — negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,
Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!

LOUVOR À UNIDADE

“Escafandros, arpões, sondas e agulhas
“Debalde aplicas aos heterogêneos
“Fenômenos, e, há inúmeros milênios,
“Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!
“Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,
“Com essa intuição monística dos gênios,
“A hirta forma falaz do aere perennius
“A transitoriedade das fagulhas!”
— Era a estrangulação, sem retumbância,
Da multimilenária dissonância
Que as harmonias siderais invade...
Era, numa alta aclamação, sem gritos,
O regresso dos átomos aflitos
Ao descanso perpétuo da Unidade!

O PÂNTANO

Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!...
Mas, para mim que a Natureza escuto,
Este pântano é o túmulo absoluto,
De todas as grandezas começantes!
Larvas desconhecidas de gigantes
Sobre o seu leito de peçonha e luto
Dormem tranquilamente o sono bruto
Dos superorganismos ainda infantes!
Em sua estagnação arde uma raça,
Tragicamente, à espera de quem passa
Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta...
E eu sinto a angústia dessa raça ardente
Condenada a esperar perpetuamente
No universo esmagado da água morta!

SUPRÊME CONVULSION

O equilíbrio do humano pensamento
Sofre também a súbita ruptura,
Que produz muita vez, na noite escura,
A convulsão meteórica do vento.
E a alma o obnóxio quietismo sonolento
Rasga; e, opondo-se à Inércia, é a essência pura,
E a síntese, é o transunto, é a abreviatura
De todo o ubiquitário Movimento!
Sonho, — libertação do homem cativo —
Ruptura do equilíbrio subjetivo,
Ah! foi teu beijo convulsionador
Que produziu este contraste fundo
Entre a abundância do que eu sou, no Mundo,
E o nada do meu homem interior!

A UM GÉRMEN

Começaste a existir, geleia crua,
E hás de crescer, no teu silêncio, tanto
Que, é natural, ainda algum dia, o pranto
Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o... O espanto
Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento continua!
Antes, geleia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...
Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir, como o gérmen de outros seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!

NATUREZA ÍNTIMA

Ao filósofo Farias Brito
Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A Natureza olhou-se interiormente!
Baldada introspecção! Noumenalmente
O que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!
E a Natureza disse com desgosto:
“Terei somente, porventura, rosto?!
“Serei apenas mera crusta espessa?!
“Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
“Quando mais em mim mesma me aprofundo,
“Menos interiormente me conheça?!”

A FLORESTA

Em vão com o mundo da floresta privas!...
— Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieróglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!
Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!
Há uma força vencida nesse mundo!
Todo o organismo florestal profundo
E dor viva, trancada num disfarce...
Vivem só, nele, os elementos broncos,
— As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!

A MERETRIZ

A rua dos destinos desgraçados
Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se, em coréas doudas,
Uma mulher completamente nua!
É a meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma esteira pública, recebe,
Entre farraparias e esplendores,
O eretismo das classes superiores
E o orgasmo bastardíssimo da plebe!
É ela que, aliando, à luz do olhar protervo,
O indumento vilíssimo do servo
Ao brilho da augustal toga pretexta,
Sente, alta noite, em contorções sombrias,
Na vacuidade das entranhas frias
O esgotamento intrínseco da besta!
E ela que, hirta, a arquivar credos desfeitos,
Com as mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos, por fim, a âmbulas moles,
Sofre em cada molécula a angústia alta
De haver secado, como o estepe, à falta
Da água criadora que alimenta as proles!
É ela que, arremessada sobre o rude
Despenhadeiro da decrepitude,
Na vizinhança aziaga dos ossuários
Representa, através os meus sentidos,
A escuridão dos gineceus falidos
E a desgraça de todos os ovários!
Irrita-se-lhe a carne à meia-noite.
Espicaça-a a ignomínia, excita-a o açoite
Do incêndio que lhe inflama a língua espúria.
E a mulher, funcionária dos instintos,
Com a roupa amarfanhada e os beiços tintos,
Gane instintivamente de luxúria!
Navio para o qual todos os portos
Estão fechados, urna de ovos mortos,
Chão de onde uma só planta não rebenta,
Ei-la, de bruços, bêbeda de gozo
Saciando o geotropismo pavoroso
De unir o corpo à terra famulenta!
Nesse espolinhamento repugnante
O esqueleto irritado da bacante
Estrala... Lembra o ruído harto azorrague
A vergastar ásperos dorsos grossos.
E é aterradora essa alegria de ossos
Pedindo ao sensualismo que os esmague!
É o pseudo-regozijo dos eunucos
Por natureza, dos que são caducos
Desde que a Mâe-Comum lhes deu início...
É a dor profunda da incapacidade
Que, pela própria hereditariedade
A lei da seleção disfarça em Vício!
É o júbilo aparente da alma quase
A eclipsar-se, no horror da ocídua fase
Esterilizadora de órgãos... É o hino
Da matéria incapaz, filha do inferno,
Pagando com volúpia o crime eterno
De não ter sido fiel ao seu destino!
É o Desespero que se faz bramido
De anelo animalíssimo incontido,
Mais que a vaga incoercível na água oceânea...
É a Carne que, já morta essencialmente,
Para a Finalidade Transcendente
Gera o prodígio anímico da Insânia!
Nas frias antecâmaras do Nada
O fantasma da fêmea castigada,
Passa agora ao clarão da lua acesa
E é seu corpo expiatório, alvo e desnudo,
A síntese eucarística de tudo
Que não se realizou na Natureza!
Antigamente, aos tácitos apelos
Das suas carnes e dos seus cabelos,
Na óptica abreviatura de um reflexo,
Fulgia, em cada humana nebulosa,
Toda a sensualidade tempestuosa
Dos apetites bárbaros do Sexo!
O atavismo das raças sibaritas,
Criando concupiscências infinitas
Como eviterno lobo insatisfeito;
Na homofagia hedionda que o consome,
Vinha saciar a milenária fome
Dentro das abundâncias do seu leito!
Toda a libidinagem dos mormaços
Americanos fluía-lhe dos braços,
Irradiava-se-lhe, hírcica, das veias
E em torrencialidades quentes e úmidas,
Gorda a escorrer-lhe das artérias túmidas
Lembrava um transbordar de ânforas cheias.
A hora da morte acende-lhe o intelecto
E à úmida habitação do vício abjecto
Afluem milhões de sóis, rubros, radiando...
Resíduos memoriais tornam-se luzes,
Fazem-se ideias e ela vê as cruzes
Do seu martirológio miserando!
Inícios atrofiados de ética, ânsia
De perfeição, sonhos de culminância,
Libertos da ancestral modorra calma,
Saem da infância embrionária e erguem-se, adultos,
Lançando a sombra horrível dos seus vultos
Sobre a noite fechada daquela alma!
É o sublevantamento coletivo
De um mundo inteiro que aparece vivo,
Numa cenografia de diorama,
Que, momentaneamente luz fecunda,
Brilha na prostituta moribunda
Como a fosforescência sobre a lama!
É a visita alarmante do que outrora
Na abundância prospérrima da aurora,
Pudera progredir, talvez, decerto,
Mas que, adstrito a inferior plasma inconsútil,
Ficou rolando, como aborto inútil,
Como o ........... do deserto!
Vede! A prostituição ofídia aziaga
Cujo tóxico instila a infâmia, e a estraga
Na delinquência ....... impune,
Agarrou-se-lhe aos seios impudicos
Como o abraço mortífero do Ficus
Sugando a seiva da árvore a que se une!
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Enroscou-lhe aos abraços com tal gosto,
..........Mordeu-lhe a boca e o rosto...
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Ser meretriz depois do túmulo! A alma
Roubada a hirta quietude da urbe calma
Onde se extinguem todos os escolhos:
E, condenada, ao trágico ditame,
Oferecer-se à bicharia infame
Com a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!
Sentir a língua aluir-se-lhe na boca
E com a cabeça sem cabelos, oca...
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Na horrorosa avulsão da forma nívea
Dizer ainda palavras de lascívia...
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GUERRA

Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte...
E a dramatização sangrenta e dura
Da avidez com que o Espírito procura
Ser perfeito, ser máximo, ser forte!
É a Subconsciência que se transfigura
Em volição conflagradora... É a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cósmica, descendo
À irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!

O SARCÓFAGO

Senhor da alta hermenêutica do Fado
Perlustro o atrium da Morte... É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!
Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
De dor profunda, acérrima e latente,
Que o sarcófago, ereto e imóvel, sente
Em sua própria sombra sepultado!
Dói-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrível,
Que em toda a sua máscara se expande,
À humana comoção impondo-a, inteira...
Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível,
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!

HINO À DOR

Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam...
És suprema! Os meus átomos se ufanam
DE pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!
Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tato
Prendo a orquestra de chamas que executas...
E, assim, sem convulsão que me alvoroce,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!

ULTIMA VISIO

Quando o homem, resgatado da cegueira
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!
A impérvia escuridão obnubilante
Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gasofiláceo de diamante!
Nessa última visão já subterrânea,
Um movimento universal de insânia
Arrancará da insciência o homem precito...
A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!

AOS MEUS FILHOS

Na intermitência da vital canseira,
Sois vós que sustentais (Força Alta exige-o...)
Com o vosso catalítico prestígio,
Meu fantasma de carne passageira!
O vulcão da bioquímica fogueira
Destruiu-me todo o orgânico fastígio.
Dai-me asas, pois, para o último remígio,
Dai-me alma, pois, para a hora derradeira!
Culminâncias humanas ainda obscuras,
Expressões do universo radioativo,
Íons emanados do meu próprio Ideal,
Benditos vós, que, em épocas futuras,
Haveis de ser no mundo subjetivo,
Minha continuidade emocional!

A DANÇA DA PSIQUE

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!
E então que a vaga dos instintos presos
— Mãe de esterilidades e cansaços —
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.
Subitamente a cerebral coreia
Para. O cosmos sintético da Ideia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...
Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

O POETA DO HEDIONDO

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência,
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!
Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

A FOME E O AMOR

A um monstro
Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!
Amor! E a satiríases sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!
Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois
Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!

HOMO INFIMUS

Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular,
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!

MINHA FINALIDADE

Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!
Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
Na canonização emocionante
Da dor humana, sou maior que Dante,
— A águia dos latifúndios florentinos!
Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno,
A fórmula de todos os destinos!

NUMA FORJA

De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica violência de um braseiro.
Dentro, a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando centelhas transitórias,
No horror da metalúrgica batalha
O ferro chiava e ria!
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura,
Da qual, bruta, provinha
Como de um negro cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha!
Ria com essa metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa,
Uma consciência eternamente obscura!
O ferro continuava a chiar e a rir.
E eu nervoso, irritado,
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir,
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!
Era um cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal bruto ou na geleia informe
No parto primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
— O ígneo jato vulcânico
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares sóis acesos
Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico,
Escravos da Coesão!
Repuxavam-me a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria de alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo esse cosmos potencial,
Preso aos mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se na estreiteza bronca
De um bloco de metal!
Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava, em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
Ao clangor de tais carmes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez do que a onda atlântica
Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!

NOLI ME TANGERE

A exaltação emocional do Gozo,
O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de combustíveis à ira acesa
Das tempestades do meu ser nervoso!
Eu sou, por consequência, um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
Choram as forças más da Natureza
Sem possibilidades de repouso!
Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas...
Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!

O CANTO DOS PRESOS

Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,
O epitalâmio da Suprema Falta,
Entoado asperamente, em voz muito alta,
Pela promiscuidade dos reclusos!
No wagnerismo desses sons confusos,
Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta,
Uiva, à luz de fantástica ribalta,
A ignomínia de todos os abusos!
É a prosódia do cárcere, é a partênea
Aterradoramente heterogênea
Dos grandes transviamentos subjetivos...
É a saudade dos erros satisfeitos,
Que, não cabendo mais dentro dos peitos,
Se escapa pela boca dos cativos!

ABERRAÇÃO

Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.
Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!
Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como a cancro, a exigir que os sãos enfermem...
Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!

VÍTIMA DO DUALISMO

Ser miserável dentre os miseráveis
— Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psique biforme, O Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!

AO LUAR

Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...
Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!

A UM EPILÉPTICO

Perguntarás quem sou?! — ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!
Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!
Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,
Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!

CANTO DE ONIPOTÊNCIA

Cloto, Átropos, Tifon, Laquesis, Siva...
E acima deles, como um astro, a arder,
Na hiperculminação definitiva
O meu supremo e extraordinário Ser!
Em minha sobre-humana retentiva
Brilhavam, como a luz do amanhecer,
A perfeição virtual tornada viva
E o embrião do que podia acontecer!
Por antecipação divinatória,
Eu, projetado muito além da História,
Sentia dos fenômenos o fim...
A coisa em si movia-se aos meus brados
E os acontecimentos subjugados
Olhavam como escravos para mim!

MINHA ÁRVORE

Olha: E um triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos a face degradada!
Entre os pedrouços maus dessa morada
É que, às apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar as gerações futuras
Só, minha árvore humana desfolhada!
Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão que, rábido, remoinha...
Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Hão de encher outras árvores! Somente
Minha desgraça há de ficar sozinha!

ANSEIO

Quem sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
— Trinta trilhões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.
Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumatúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!
Alta noite, esse mundo incoerente,
Essa elementaríssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...
Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
Não poder dar-lhe vida material!

À MESA

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!...
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a Terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também!

MÃOS

Há mãos que fazem medo,
Feias agregações pentagonais,
Umas, em sangue, a delinquentes natos,
Assinalados pelo mancinismo,
Pertencentes talvez...
Outras, negras, a farpas de rochedo
Completamente iguais...
Mãos de linhas análogas a anfratos
Que a Natureza onicriadora fez
Em contraposição e antagonismo
Às da estrela, às da neve, às dos cristais.
Mãos que adquiriram olhos, pituitárias
Olfativas, tentáculos sutis,
E à noite, vão cheirar, quebrando portas,
O azul gasofiláceo silencioso
Dos tálamos cristãos.
Mãos adúlteras, mãos mais sanguinárias
E estupradoras do que os bisturis
Cortando a carne em flor das crianças mortas.
Monstruosíssimas mãos,
Que apalpam e olham com lascívia e gozo
A pureza dos corpos infantis.

REVELAÇÃO

I

Escafandrista de insondado oceano
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita,
Penetro a essência plásmica infinita,
— Mãe promíscua do amor e do ódio insano!
Sou eu que, hirto, auscultando o absconso arcano,
Por um poder de acústica esquisita,
Ouço o universo ansioso que se agita
Dentro de cada pensamento humano!
No abstrato abismo equóreo, em que me inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a escuridão dos cérebros medonhos,
Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma
Sob a forma embriológica de sonhos!

II

Treva e fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia; feto vivo e aborto...
— Tudo a unidade do meu ser resume!
Sou eu que, ateando da alma o ocíduo lume,
Apreendo, em cisma abismadora absorto,
A potencialidade do que é morto
E a eficácia prolífica do estrume!
Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta
Dos limites orgânicos estreitos,
Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia,
Sinto bater na putrescível crusta
Do tegumento que me cobre os peitos
Toda a imortalidade da Substância!

VERSOS A UM COVEIRO

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
— Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

TREVAS

Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
Dentro da noite cavernosa e enorme
Minhas trevas anímicas serenas?!
Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na abismal substância informe,
Para convulsionar a alma que dorme
Todas as tempestades são pequenas!
Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Do éter em branca luz transubstanciado,
Rotos os nimbos maus que a obstruem a esmo...
A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!

AS MONTANHAS

I

Das nebulosas em que te emaranhas
Levanta-te, alma, e dize-me, afinal,
Qual é, na natureza espiritual,
A significação dessas montanhas!
Quem não vê nas graníticas entranhas
A subjetividade ascensional
Paralisada e estrangulada, mal
Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!
Ah! Nesse anelo trágico de altura
Não serão as montanhas, porventura,
Estacionadas, íngremes, assim,
Por um abortamento de mecânica,
A representação ainda inorgânica
De tudo aquilo que parou em mim?!

II

Agora, oh! deslumbrada alma perscruta
O puerpério geológico interior,
De onde rebenta, em contrações de dor,
Toda a sublevação da crusta hirsuta!
No curso inquieto da terráquea luta
Quantos desejos férvidos de amor
Não dormem, recalcados, sob o horror
Dessas agregações de pedra bruta?!
Como nesses relevos orográfícos,
Inacessíveis aos humanos tráficos
Onde sóis, em semente, amam jazer,
Quem sabe, alma, se o que ainda não existe
Não vibra em gérmen no agregado triste
Da síntese sombria do meu Ser?!

APOCALIPSE

Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.
É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!
São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,
Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!

A NAU

A Heitor Lima
Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,
Zarpa. A íngreme cordoalha úmida fica...
Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica
E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro!
Na glauca artéria equórea ou no estaleiro
Ergue a alta mastreação, que o Éter indica,
E estende os braços de madeira rica
Para as populações do mundo inteiro!
Aguarda-a ampla reentrância de angra horrenda,
Para e, a amarra agarrada à âncora, sonha!
Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...
E não haver uma alma que lhe entenda
A angustia transoceânica medonha
No rangido de todas as enxárcias!

VOLÚPIA IMORTAL

Cuidas que o genesíaco prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!
Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!
Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descarnados,
Em convulsivas contorções sensuais,
Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!

O FIM DAS COISAS

Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!
Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o íntimo do orbe, invente
A lâmpada aflogística de Davy!
Em vão! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!

VIAGEM DE UM VENCIDO

Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio...
E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio!
O Céu estava horrivelmente preto
E as árvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!
Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,
Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.
Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.
Mas o que meus sentidos apreendiam
Dentro da treva lúgubre, era só
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam!
Reboava, num ruidoso borborinho
Bruto, análogo ao peã de márcios brados,
A rebeldia dos meus pés danados
Nas pedras resignadas do caminho.
Sentia estar pisando com a planta ávida
Um povo de radículas e embriões
Prestes a rebentar, como vulcões,
Do ventre equatorial da terra grávida!
Dentro de mim, como num chão profundo,
Choravam, com soluços quase humanos,
Convulsionando Céus, almas e oceanos
As formas microscópicas do mundo!
Era a larva agarrada a absconsas landes,
Era o abjeto vibrião rudimentar
Na impotência angustiosa de falar,
No desespero de não serem grandes!
Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos párias,
Como o protesto de uma raça invicta,
O brado emocionante de vindicta
Das sensibilidades solitárias!
A longanimidade e o vilipêndio,
A abstinência e a luxúria, o bem e o mal
Ardiam no meu orco cerebral,
Numa crepitação própria de incêndio!
Em contraposição à paz funérea,
Doía profundamente no meu crânio
Esse funcionamento simultâneo
De todos os conflitos da matéria!
Eu, perdido no Cosmos, me tornara
A assembleia belígera malsã,
Onde Ormuzd guerreava com Arimã,
Na discórdia perpétua do sansara!
Já me fazia medo aquela viagem
A carregar pelas ladeiras tétricas,
Na óssea armação das vértebras simétricas
A angústia da biológica engrenagem!
No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
Brilhava, vingadora, a esclarecer
As manchas subjetivas do meu ser
A espionagem fatídica dos astros!
Sentinelas de espíritos e estradas,
Noite alta, com a sidérica lanterna,
Eles entravam todos na caverna
Das consciências humanas mais fechadas!
Ao castigo daquela rutilância,
Maior que o olhar que perseguiu Caim,
Cumpria-se afinal dentro de mim
O próprio sofrimento da Substância!
Como quem traz ao dorso multas cargas
Eu sofria, ao colher simples gardênia,
A multiplicidade heterogênea
De sensações diversamente amargas.
Mas das árvores, frias como lousas,
Fluía, horrenda e monótona, uma voz
Tão grande, tão profunda, tão feroz
Que parecia vir da alma das cousas:
“Se todos os fenômenos complexos,
Desde a consciência à antítese dos sexos
Vem de um dínamo fluídico de gás,
Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade botânica das algas
De que grandeza não será capaz?!
Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua força cognitiva
Fenomenalidades que hão de vir,
Se a contração que hoje produz o choro
Não há de ser no século vindouro
Um simples movimento para rir?!
Que espécies outras, do Equador aos pólos,
Na prisão milenária dos subsolos,
Rasgando avidamente o húmus malsão,
Não trabalham, com a febre mais bravia,
Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia
A última etapa da objetivação?!
É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres
Na química genésica dos ventres,
Porque em todas as coisas, afinal,
Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
A esfinge do Mistério Universal!
A própria força em que teu Ser se expande,
Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te (oh! mistério que se não traduz!)
Neste astro ruim de tênebras e abrolhos
A efeméride orgânica dos olhos
E o simulacro atordoador da Luz!
Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos desterrados, rimos
Das vãs diatribes com que aturdes o ar...
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça que de ti ressuma
É quase a mesma coisa que chorar!”
As vibrações daquele horrível carme
Meu dispêndio nervoso era tamanho
Que eu sentia no corpo um vácuo estranho
Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!
Na avançada epiléptica dos medos
Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,
A voz cavernosíssima de Deus,
Reproduzida pelos arvoredos!
Agora, astro decrépito, em destroços,
Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,
Tinha necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos!
Restava apenas na minha alma bruta
Onde frutificara outrora o Amor
Uma volicional fome interior
De renúncia budística absoluta!
Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!

A NOITE

A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.
A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.
À custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa...
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,
Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva onímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!

A OBSESSÃO DO SANGUE

Acordou, vendo sangue... Horrível! O osso
Frontal em fogo... Ia talvez morrer,
Disse. Olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! Certamente não podia ser!
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão...
E amou, com um berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!

VOX VICTIMAE

Morto! Consciência quieta haja o assassino
Que me acabou, dando-me ao corpo vão
Esta volúpia de ficar no chão
Fruindo na tabidez sabor divino!
Espiando o meu cadáver ressupino,
No mar da humana proliferação,
Outras cabeças aparecerão
Para compartilhar do meu destino!
Na festa genetlíaca do Nada,
Abraço-me com a terra atormentada
Em contubérnio convulsionador...
E ai! Como é boa esta volúpia obscura
Que une os ossos cansados da criatura
Ao corpo ubiquitário do Criador!

O ÚLTIMO NÚMERO

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Ideia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.
Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Como o reflexo fúnebre do Incriado:
Bradei: — Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: “E tarde, amigo!
Pois que a minha autogênica Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!”

POEMAS ESQUECIDOS

SAUDADE

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.
À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
P’ra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.
E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

ABANDONADA

Ao meu irmão Odilon dos Anjos
Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusões tão bela;
O brilho se pagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!
Sombras que passam, sombras cor-de-rosa
— Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gárrulos voando
— Resta somente um’alma tristurosa!
Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!
Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noute de saudade
A luz mortiça d’um olhar nublado.

CETICISMO

Desci um dia ao tenebroso abismo,
Onde a Dúvida ergueu altar profano;
Cansado de lutar no mundo insano
Fraco que sou, volvi ao ceticismo.
Da Igreja — a Grande Mãe — o exorcismo
Terrível me feriu, e então sereno,
De joelhos aos pés do Nazareno
Baixo rezei em fundo misticismo:
— Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.
Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,
Não sei se viva pra morrer na terra,
Não sei se morra p’ra viver no céu!

MÁGOAS

Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.
Mais tarde da existência nos verdores
Da infância nunca tive as venturosas
Alegrias que passam bonançosas,
Oh! Minha infância nunca teve flores!
Volvendo à quadra azul da mocidade,
Minh’alma levo aflita à Eternidade,
Quando a morte matar meus dissabores.
Cansado de chorar pelas estradas,
Exausto de pisar mágoas pisadas,
Hoje eu carrego a cruz de minhas dores!

O CONDENADO

“Folga a Justiça e geme a natureza.”
— Bocage
Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
— Ei-lo que passa — réprobo maldito.
Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.
E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.
O mundo é um sepulcro de tristeza.
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.

SONETO

Ouvi, senhora, o cântico sentido
Do coração que geme e s’estertora
N’ânsia letal que o mata e que o devora
E que tornou-o assim, triste e descrido.
Ouvi, senhora, amei; de amor ferido,
As minhas crenças que alentei outrora
Rolam dispersas, pálidas agora,
Desfeitas todas num guaiar dorido.
E como a luz do sol vai-se apagando!
E eu triste, triste pela vida afora,
Eterno pegureiro caminhando,
Revolvo as cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e glacial, senhora,
Como um coveiro a sepultar quimeras!

TRISTE REGRESSO

A Dias Paredes
Uma vez um poeta, um tresloucado,
Apaixonou-se d’uma virgem bela;
Vivia alegre o vate apaixonado,
Louco vivia, enamorado dela.
Mas a Pátria chamou-o. Era soldado,
E tinha que deixar pra sempre aquela
Meiga visão, olímpica e singela?!
E partiu, coração amargurado.
Dos canhões ao ribombo, e das metralhas,
Altivo lutador, venceu batalhas,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela.
E voltou, mas a fronte aureolada,
Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da loura virgem bela.

INFELIZ

Alma viúva das paixões da vida,
Tu que, na estrada da existência em fora,
Cantaste e riste, e na existência agora
Triste soluças a ilusão perdida;
Oh! tu, que na grinalda emurchecida
De teu passado de felicidade
Foste juntar os goivos da Saudade
Às flores da Esperança enlanguescida;
Se nada te aniquila o desalento
Que te invade, e o pesar negro e profundo,
Esconde a Natureza o sofrimento,
E fica no teu ermo entristecida,
Alma arrancada do prazer do mundo,
Alma viúva das paixões da vida.

SONETO

N’augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.
São minhas crenças divinais, ardentes
— Alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos,
Quando da vida, no eternal soluço,
Eu choro e gemo e triste me debruço
Na lájea fria dos meus sonhos pulcros,
Desliza então a lúgubre coorte,
E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.

NOIVADO

Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser?! O noivo então dizia
E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.
E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser?! E os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.
Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.
Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos, soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!

SONETO

No meu peito arde em chamas abrasada
A pira da vingança reprimida,
E em centelhas de raiva ensurdecida
A vingança suprema e concentrada
E espuma e ruge a cólera entranhada,
Como no mar a vaga embravecida
Vai bater-se na rocha empedernida,
Espumando e rugindo em marulhada
Mas se das minhas dores ao calvário,
Eu subo na atitude dolorida
De um Cristo a redimir um mundo vário,
Em luta co’a natura sempiterna,
Já que do mundo não vinguei-me em vida,
A morte me será vingança eterna.

A MÁSCARA

Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.
Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.
E entre a mágoa que másc’ra eterna apouca
A Humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! quantos
Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!
No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o Céu se alara.
E Deus lhe disse: “És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto”.

SONETO

Ao meu prezado irmão Alexandre Júnior pelas nove primaveras que hoje completou.
Canta no espaço a passarada e canta
Dentro do peito o coração contente,
Tu’alma ri-se descuidosamente,
Minh’alma alegre no teu rir s’encanta.
Irmão querido, bom Papá, consente
Que neste dia de ventura tanta
Vá, num abraço de ternura santa,
Mostrar-te o afeto que meu peito sente.
Somente assim festejarei teus anos;
Enquanto outros que podem, dão-te enganos,
Jóias, bonecos de formoso busto,
Eu só encontro no primor de rima
A justa oferta, a jóia que te exprima
O amor fraterno do teu mano
Augusto.

O COVEIRO

Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: “Eterno companheiro
Da morte, quem matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Depois, tomando a enxada, gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
— “Ai! foi por isso que me fiz coveiro!”

PECADORA

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o símb’lo do pecado.
Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.
No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,
Do destino fatal, presa, morria,
Uma noute entre as vascas da agonia,
Tendo no corpo o verme do pecado!

NO CLAUSTRO

Pelas do claustro salas silenciosas,
De lutulentas, úmidas arcadas,
Na vastidão silente das caladas
Abóbadas sombrias tenebrosas,
Vagueiam tristemente desfiladas
De freiras e de monjas tristurosas,
Que guardam cinzas de ilusões passadas,
Que guardam pét’las de funéreas rosas.
E à noute quando rezam na clausura,
No sigilo das rezas misteriosas,
Nem a sombra mais leve de ventura!
Sempre as arcadas ogivais, desnudas,
E as mesmas monjas sempre tristurosas,
E as mesmas portas impassíveis, mudas!

IL TROVATORE

Canta da torre o trovador saudoso
Addio, Eleonora! oh! sonhos meus!
E o canto se desprende harmonioso
Na vibração final do extremo adeus.
Repercute, dolente, mavioso,
Subindo pelo Azul da Inspiração;
Assim canta também meu coração,
Trovador torturado e angustioso.
Ai! não, não acordeis, lembranças minhas!
Saudade d’umas noutes em que vinhas
Cantar comigo um doce desafio!
Mas, pouco a pouco, os sons esmorecendo,
Perdem-se as notas pelo Azul morrendo,
Addio, Eleonora, addio, addio!

A LOUCA

A Dias Paredes
Quando ela passa: — a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.
Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário da mágoa sepultada.
Eu sei a sua história. — Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
— O segredo d’um peito torturado —
E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça — o coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

PRIMAVERA

A meu irmão Odilon dos Anjos
Primavera gentil dos meus amores,
— Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!
Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!
Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,
Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!

A ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro — avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar: descansa!

SONETO

Senhora, eu trajo o luto do Passado,
Este luto sem fim que é o meu Calvário
E anseio e choro, delirante e vário,
Sonâmbulo da dor angustiado.
Quantas venturas que me acalentaram!
Meu peito, túm’lo do prazer finado,
Foi outrora do riso abençoado,
O berço onde as venturas se embalaram.
Mas não queiras saber nunca, risonha,
O mistério d’um peito que estertora
E o segredo d’um’alma que não sonha!
Não, não busques saber por que, Senhora,
É minha sina perenal, tristonha
— Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.

SOFREDORA

Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora — o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.
Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.
Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso à flor da boca.
Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença,
Como Jesus a soluçar no Horto.

ECOS D’ALMA

Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!
Longe das tristes noutes tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplandor das Primaveras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares;
Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça,
Quem me dera morrer então risonho,
Fitando a nebulosa do meu Sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

AMOR E CRENÇA

“— E sê bendita!”
— H. Sienkiewicz
Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?
Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?!
Ah! se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!
Deus é o Templo do Bem. Na altura Imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a Crença,
Ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!

ARIANA

Ela é o tipo perfeito da ariana,
Branca, nevada, púbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essência que de si dimana.
As níveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.
Dorme talvez. Em flácido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana,
Enquanto o amante pálido, a seu lado
Medita, a fronte triste, o olhar velado,
No Mistério da Carne Soberana.

TEMPOS IDOS

Não enterres, coveiro, o meu Passado,
Tem pena dessas cinzas que ficaram;
Eu vivo dessas crenças que passaram,
E quero sempre tê-las ao meu lado!
Não, não quero o meu sonho sepultado
No cemitério da Desilusão,
Que não se enterra assim sem compaixão
Os escombros benditos de um Passado!
Ai! não me arranques d’alma este conforto!
— Quero abraçar o meu Passado morto,
— Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!
Deixa ao menos que eu suba à Eternidade
Velado pelo círio da Saudade,
Ao dobre funeral dos tempos idos!

SONETO

(Lendo o “Poema de Maio”)

Na rua em funeral ei-la que passa,
A romaria eterna dos aflitos,
A procissão dos tristes, dos proscritos,
Dos romeiros saudosos da desgraça.
E na choça a lamúria que traspassa
O coração, além, ânsias e gritos
De mães que arquejam sobre os pobrezitos
Filhos que a Fome derrubou na praça.
Entre todos, porém, lânguida e bela,
Da juventude a virginal capela
A lhe cingir de luz a fronte baça,
Vai Corina mendiga e esfarrapada,
A alma saudosa pelo amor vibrada
— A Stella Matutina da Desgraça!

SONETO

Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No badalar monótono dos sinos.
— Hermeto Lima
Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.
Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.
Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! — eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.
Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!

A AERONAVE

Cindindo a vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço, devassando a terra,
A aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.
E na esteira sem fim da azúlea esfera
Ei-la embalada n’amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares
Vencendo o azul que ante si s’erguera.
Voa, se eleva em busca do Infinito,
É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.
Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

LIRIAL

Porque choras assim, tristonho lírio,
Se eu sou o orvalho eterno que te chora,
P’ra que pendes o cálice que enflora
Teu seio branco do palor do círio?!
Baixa a mim, irmã pálida da Aurora,
Estrela esmaecida do Martírio;
Envolto da tristeza no delírio,
Deixa beijar-te a face que descora!
Fosses antes a rosa purpurina
E eu beijaria a pétala divina
Da rosa, onde não pousa a desventura.
Ai! que ao menos talvez na vida escassa
Não chorasses à sombra da desgraça,
Para eu sorrir à sombra da ventura!

A MINHA ESTRELA

A meu irmão Aprígio A.
Eu disse — Vai-te, estrela do Passado!
Esconde-te no Azul da Imensidade,
Lá onde nunca chegue esta saudade,
— A sombra deste afeto estiolado.
Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,
Minh’alma que de longe a acompanhava,
Viu o adeus que do Céu ela enviava,
E quando ela no Azul foi se sumindo
Surgia a Aurora — a mágica princesa!
E eu vi o Sol do Céu iluminando
A Catedral da Grande Natureza.
Mas a noute chegou, triste, com ela
Negras sombras também foram chegando,
E nunca mais eu vi a minha estrela!

AVE LIBERTAS

Ao clarão irial da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.
É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro
Da República a nova sublimada.
E ali, do despotismo entre os escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;
Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A Liberdade assoma majestosa,
— Estrela d’Alva imaculada e pura!
É livre a Pátria outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.
Não! que esse ideal puro, risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!
Esplende, pois, oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.
Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,
Caia do santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A bênção do valor dos vossos filhos!

SONETO

A praça estava cheia. O condenado
Transpunha nobremente o cadafalso,
Puro de crime, isento de pecado,
Vítima augusta de indelével falso.
E na atitude do Crucificado,
O olhar azul pregado n’amplidão,
Pude rever naquele desgraçado
O drama lutuoso da Paixão.
Quando do algoz cruento o braço alçado
Se dispunha a vibrar sem compaixão
O golpe na cabeça do culpado
Ele, o algoz — o criminoso — então,
Caiu na praça como fulminado
A soluçar: perdão, perdão, perdão!

VERSOS D’UM EXILADO

Eu vou partir. Na límpida corrente
Rasga o batel o leito d’água fina
— Albatroz deslizando mansamente
Como se fosse vaporosa Ondina.
Exilado de ti, oh! Pátria! ausente
Irei cantar a mágoa peregrina
Como canta o pastor a matutina
Trova d’amor, à luz do sol nascente!
Não mais virei talvez e, lá sozinho,
Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho
D’onde levo comigo a nostalgia
E esta lembrança que hoje me quebranta
E que eu levo hoje como a imagem santa
Dos sonhos todos que já tive um dia!

SONETO

Ao meu prezado irmão Alexandre Júnior, pelo término dos seus estudos neste ano, em troféu de homenagem ao grande aproveitamento que deles soube tirar; a aplicação será sempre a “alma mater” da inteligência humana, e o caminho mais perfeito que nos pode levar à tortuosa via da Ciência.
Ergue, criança, a fronte condorina
Que é tua fronte, oh! genial criança,
É como a estrela-d’alva da esperança,
Do talento sagrado que a ilumina!
Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina
Do Sol da Ciência, o rútilo tesouro
Do Estudo — o Grande Mestre — que te ensina,
Chova sobre ela suas gemas d’ouro!
E hoje que colhes um laurel bendito,
Aceita a saudação que num contrito
Fervor, eleva, qual penhor sincero
Um peito amigo a outro peito amigo,
A um gênio que desponta e que eu bendigo,
A um coração de irmão que tanto quero!

A ESMOLA DE DULCE

Ao Alfredo A.
E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem-amada,
A esmola dum carinho apetecido.
E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
— Senhora dai-me u’a esmola — e estertorada
A minha voz soluça num gemido.
Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.
Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.

AVE DOLOROSA

Ave perdida para sempre — crença
Perdida — segue a trilha que te traça
O Destino, ave negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!
Dos sonhos meus na Catedral imensa
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça,
Onde o teu vulto lúrido esvoaça,
Seja-te a vida uma agonia intensa!
Vives de crenças mortas e te nutres,
Empenhada na sanha dos abutres,
Num desespero rábido, assassino...
E hás de tombar um dia em mágoas lentas,
Negrejada das asas lutulentas
Que te emprestar o corvo do Destino!

SONETO

Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me,
Leva-me o esp’rito dessa luz que mata,
E a alma me ofusca e o peito me maltrata,
E o viver calmo e sossegado tolhe-me!
Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me
N’asa da Morte redentora, e à ingrata
Luz deste mundo em breve me arrebata
E num pallium de tênebras recolhe-me!
Aqui há muita luz e muita aurora,
Há perfumes d’amor — venenos d’alma —
E eu busco a plaga onde o repouso mora,
E as trevas moram, e, onde d’água raso
O olhar não trago, nem me turba a calma
A aurora deste amor que é o meu ocaso!

NIMBOS

Nimbos de bronze que empanais escuros
O santuário azul da Natureza,
Quando vos vejo, negros palinuros
Da tempestade negra e da tristeza,
Abismados na bruma enegrecida,
Julgo ver nos reflexos de minh’alma
As mesmas nuvens deslizando em calma,
Os nimbos das procelas desta vida;
Mas quando o céu é límpido, sem bruma
Que a transparência tolde, sem nenhuma
Nuvem sequer; então, num mar de esp’rança,
Que o céu reflete, a vida é qual risonho
Batel, e a alma é a Flâmula do sonho,
Que o guia e o leva ao porto da bonança.

O MAR

O mar é triste como um cemitério;
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num albor etéreo.
Ah! dessas vagas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do amor; lá, só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!
Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,
Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a Saudade envolta nesta espuma!

ANSEIO

Nessas paragens desoladas, onde
O silêncio campeia soberano
Morreram notas do bulício humano,
Nem vibra a corda que a saudade esconde.
Anseios d’alma aqui se perdem. Donde
Fluiu outrora a luz dum doce engano,
Hoje é trevas, é dor, é desengano,
E eu ergo preces que ninguém responde.
Triste criança virginal, quem dera
Voar est’alma a ti, longe dos laços
Dessa jaula de carne que a encarcera!
Ah! que unidos assim, lá nos espaços,
Cantarias do amor a primavera,
Tendo a minh’alma presa nos teus braços!

SONETO

Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura
Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte
E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,
O grande Sol de afeto — o Sol que as almas doura!
Fugiu... e em si levou a Luz consoladora
Do amor — esse clarão eterno d’alma forte —
Astro da minha Paz, Sirius da minha Sorte
E da Noute da vida a Vênus Redentora.
Agora, oh! minha Mágoa, agita as tuas asas,
Vem! rasga deste peito as nebulosas gazas
E, num Pálio auroral de Luz deslumbradora,
Ascende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro,
Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;
Aurora morta, foge — eu busco a virgem loura!

NO CAMPO

Tarde. Um arroio canta pela umbrosa
Estrada; as águas límpidas alvejam
Como cristais. Aragem suspirosa
Agita os roseirais que ali vicejam.
No Alto, entretanto, os astros rumorejam
Um presságio de noute luminosa
E ei-la que assoma — a Louca tenebrosa,
Branca, emergindo às trevas que a negrejam.
Chora a corrente múrmura, e, à dolente
Unção da noute, as flores também choram
Num chuveiro de pétalas, nitente,
Pendem e caem — os roseirais descoram
E elas bóiam no pranto da corrente
Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.

SONETO

Canta o teu riso esplêndida sonata,
E há, no teu riso de anjos encantados,
Como que um doce tilintar de prata
E a vibração de mil cristais quebrados.
Bendito o riso assim que se desata
— Cítara suave dos apaixonados,
Sonorizando os sonhos já passados,
Cantando sempre em trínula volata!
Aurora ideal dos dias meus risonhos,
Quando, úmido de beijos em ressábios
Teu riso esponta, despertando sonhos...
Ah! num delíquio de ventura louca,
Vai-se minh’alma toda nos teus beijos,
Ri-se o meu coração na tua boca!

CRAVO DE NOIVA

Ao Dias Paredes
Cravo de noiva. A nívea cor de cera
Que o seu seio branqueja, é como os prantos
Níveos, que a virgem chora, entre os encantos
Dum noivado risonho em primavera.
Flor de mistérios d’alma, sacrossantos,
Guarda segredos divinais que eu dera
Duas vidas, se duas eu tivera
P’ra desvendar os seus segredos santos.
E tudo quer que nessa flor se enleve
O poeta. E que dessa concha armínea,
Da lactescência angélica da neve,
Se evolam castos, virginais aromas
De essência estranha; olências de virgínea
Carne fremindo num langor de pomas.

PLENILÚNIO

Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe serve de alvíssimo sudário
Respira essências raras, toda a cálida
Mística essência desse alampadário.
E a lua é como um pálido sacrário,
Onde as almas das virgens em crisálida
De seios alvos e de fronte pálida,
Derramam a urna dum perfume vário.
Voga a lua na etérea imensidade!
Ela, eterna noctâmbula do Amor,
Eu, noctâmb’lo da Dor e da Saudade.
Ah! como a branca e merencória lua,
Também envolta num sudário — a Dor,
Minh’alma triste pelos céus flutua!

INSÂNIA

No mundo vago das idealidades
Afundei minha louca fantasia;
Cedo atraiu-me a auréola fugidia
Da refulgência antiga das idades.
Mas ao esplendor das velhas majestades
Vacila a mente e o seu ardor esfria;
Busquei então na nebulosa fria
Das Ilusões, sonhar novas idades.
Que desespero insano me apavora!
Aqui, chora um ocaso sepultado;
Ali, pompeia a luz da branca aurora.
E eu tremo e hesito entre um mistério escuro:
— Quero partir em busca do Passado
— Quero correr em busca do Futuro.

DOLÊNCIAS

Oh! lua morta de minha vida,
Os sonhos meus
Em vão te buscam, andas perdida
E eu ando em busca dos rastos teus...
Vago sem crenças, vagas sem norte,
Cheia de brumas e enegrecida,
Ah! se morreste p’ra minha vida!
Vive, consolo de minha morte!
Baixa, portanto, coração ermo
De lua fria
À plaga triste, plaga sombria
Dessa dor lenta que não tem termo.
Tu que tombaste no caos extremo
Da Noute imensa do meu Passado
Sabes da angústia do torturado...
Ah! tu bem sabes por que é que eu gemo!
Instilo mágoas saudoso, e enquanto
Planto saudades num campo morto,
Ninguém ao menos dá-me um conforto,
Um só ao menos! E no entretanto
Ninguém me chora! ah! se eu tombar
Cedo na lida...
Oh! lua fria, vem me chorar,
Oh! lua morta de minha vida!

O BANDOLIM

Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas
Choram todas as cordas do Passado!
Guardas a alma talvez d’um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão às bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.
Quando alta noute, a lua é triste e calma,
Teu canto, vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d’alma!
Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!

ARA MALDITA

Como um’ave, cindindo os céus risonhos,
Meiga, tu vinhas a cindir os ares,
E, qual hóstia caindo dos altares,
Foste caindo n’ara dos meus sonhos.
E eu vi os seios teus virem inconhos,
— Esses teus seios que os cerúleos lares
Branquejaram de eternos nenufares,
Para nunca tocarem negros sonhos!
Caíste enfim no meu sacrário ardente,
Quiseste-me beijar a ara do peito,
E eu quis beijar-te o lábio redolente.
E beijei-te, mas eis que neste enleio,
Tocando n’ara negra o níveo seio,
Caíste morta ao celestial preceito.

SONETO

Na etérea limpidez de um sonho branco,
Lúcia sorriu-se à bruma nevoenta,
E a procela chorou n’um fundo arranco
De mágoa triste e de paixão violenta.
E Lúcia disse à bruma lutulenta:
— Foge, senão co’o o meu olhar te espanco!
E eu vi que, à voz de Lúcia, grave e lenta,
O céu tremia em seu trevoso flanco.
Fulgia a bruma para sempre. A vida
Despontava na aurora amortecida
À rutilância mágica do dia.
Aquele riso despertava a aurora!
E tudo riu-se, e como Lúcia, agora,
O sol, alegre e rubro, também ria!

TREVA E LUZ

Neste pélago escuro em que te afundas,
Longe das sombras aurorais e amadas,
Sentes o peito em ânsias revoltadas,
Diluis teu peito em sensações profundas.
Mas, eis que emerges, luminosa, às fundas
Águas do mar das glórias obumbradas,
E, ante o branco estendal das madrugadas,
Nua, em banho ideal de amor te inundas.
Agora, à luz das alvoradas santas
Ungem-te o corpo redolências tantas,
Que, ao ver-te nua, o Mundo se concentre,
E a lua, a Virgem Mãe dos céus escampos,
Que beija a terra e que abençoa os campos,
Beije-te o seio e te abençoe o ventre!

SONETO

O Templo da Descrença — ei-lo que avisto. A imensa
Cruz da Dor lá está serena como um lírio!
E vejo o pedestal que sustenta o Martírio;
E vejo o pedestal que sustenta a Descrença!
— A colunata exul do Sonho Morto — o círio
Da Quimera Falaz, o túmulo da Crença,
Tudo! até o altar onde a Angústia vibra intensa
Numa fúria assombral de feras em delírio!
Penetro louco enfim o abismo funerário,
E a rasgar, a rasgar o lúrido sacrário,
Em mim como no Templo a Angústia se condensa,
E em mim como no Templo, urnas de Sonho; e, em bando,
Flores mortas da Aurora, e, eu sombrio chorando
Ante a imagem fatal do Sepulcro da Crença!

A PESTE

Filha da raiva de Jeová — a Peste
Num insano ceifar que aterra e espanta,
De espaço a espaço sepulturas planta
E em cada coração planta um cipreste!
Exulta o Eterno, e... tudo chora, tudo!
Quando Ela passa, semeando a Morte,
Todos dizem co’os olhos para a Sorte
— É o castigo de Deus que passa mudo!
— Fúlgido foco de escaldantes brasas
— O sol a segue, e a Peste ri-se, enquanto
Vai devastando o coração das casas...
E como o sol que a segue e deixa um rastro
De luz em tudo, ela, como o sol — o astro —
Deixa um rastro de luto em cada canto!

QUADRAS

Embala-me em teus braços,
De amores bons à sombra —
Quero em cheirosa alfombra
Pousar os sonhos lassos!
Teus seios, oh! morena
— Relíquias de Carrara —
Têm a ambrosia rara
Da mais rara verbena.
Aperta-me em teu peito,
E dá-me assim, divina,
De lírios e bonina
Um veludíneo leito.
Assim como Jesus,
Eu quero o meu Calvário
— Anelo morrer vário
Dos braços teus na Cruz!
Por que não me confortas?!
Bem sei, perdeste a olência,
Morreu-te a redolência,
Alma das virgens mortas —
Mas não! Apaga os traços
De tão funéreo aspeito...
Aperta-me em teu peito,
Embala-me em teus braços!

IDEAL

Quero-te assim, formosa entre as formosas,
No olhar d’amor a mística fulgência
E o misticismo cândido das rosas,
Plena de graça, santa de inocência!
Anjo de luz de astral aurifulgência,
Etéreo como as Willis vaporosas,
Embaladas no albor da adolescência,
— Virgens filhas das virgens nebulosas!
Quero-te assim, formosa, entre esplendores
Colmado o seio de virentes flores,
A alma diluída em etereais cismares...
Quero-te assim... e que bendita sejas
Como as aras sagradas das igrejas,
Como o Cristo sagrado dos altares.

CÍTARA MÍSTICA

Cantas... e eu ouço etérea cavatina!
Há nos teus lábios — dois sangrentos círios —
A gêmea florescência de dois lírios
Entrelaçados numa unção divina.
Como o santo levita dos Martírios,
Rendo piedosa dúlia peregrina
À tua doce voz que me fascina,
— Harpa virgem brandindo mil delírios!
Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
E a Noute afeia corno num sarcasmo
E agora a sombra vesperal morreu...
Chegou a Noute... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!

SÚPLICA NUM TÚMULO

Maria, eis-me a teus pés. Eu venho arrependido,
Implorar-te o perdão do imenso crime meu!
Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o teu vencido,
Açucena de Deus, lírio morto do Céu!
Perdão! e a minha voz estertora um gemido,
E o lábio meu p’ra sempre apartado do teu
Não há de beijar mais o teu lábio querido!
Ah! quando tu morreste, o meu Sonho morreu!
Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho!
— Irei agora, assim, pelo mundo, para onde
Me levar o Destino abatido e tristonho...
Perdão! e este silêncio e esta tumba que cala!
Insânia, insânia, insânia, ah! ninguém me responde...
Perdão! e este sepulcro imenso que não fala!

AFETOS

Bendito o amor que infiltra n’alma o enleio
E santifica da existência o cardo,
— Amor que é mirra e que é sagrado nardo,
Turificando a languidez dum seio!
O amor, porém, que da Desgraça veio
Maldito seja, seja como o fardo
Desta descrença funeral em que ardo
E com que o fogo da paixão ateio!
Funambulescamente a alma se atira
À luta das paixões, e, como a Aurora
Que ao beijo vesperal anseia e expira,
Desce para a alma o ocaso da Carícia
Ora em sonhos de Dor, supremos, e ora
Em contorções supremas de Delícia!

MARTÍRIO SUPREMO

Duma Quimera ao fascinante abraço,
Por um Cocito ardente e luxurioso,
Onde nunca gemeu o humano passo,
Transpus um dia o Inferno Azul do Gozo!
O amor em lavas de candência d’aço,
Banhou-me o peito... Em ânsia de repouso,
Da Messalina fria no regaço,
Chora saudades do terreno pouso!
Como um mártir de estranho sacrifício,
Tinha os lábios crestados pela ardência
Da luz letal do grande Sol do Vício!
E mergulhei mais fundo no estuário...
Mas, no Inferno do Gozo, sem Calvário,
Cristo d’amor, morri pela Inocência!

SOMBRA IMORTAL

— E tu velas, a sós, no pó da fulgurância
Como uma velha cruz vela na sombra morta!
Fora, a noute é tumbal... e a saudade da infância,
Como um’alma de mãe, me acalenta e conforta!
Noute! E somente tu velas a rutilância...
Lua que já passou e que hoje ainda corta
O penetral que guia à derradeira estância,
O penetral que leva à derradeira porta!
Revejo em ti, mulher, num lânguido smorzando
A sombra virginal qu’eu adoro chorando
E há de um dia amparar-me na luta morrendo...
Ah! que um dia da Vida, estes dardos acúleos
Caiam, também da Dor, lá dos braços hercúleos,
Domados pela meiga Onfale a que me rendo!

CORAÇÃO FRIO

Frio e sagrado coração de lua,
Teu coração rolou da luz serena!
E eu tinha ido ver a aurora tua
Nos raios d’ouro da celeste arena...
E vi-te triste, desvalida e nua!
E o olhar perdi, ansiando a luz amena
No silêncio noctívago da rua...
— Sonâmbulo glacial de estranha pena!
Estavas fria! A neve que a alma corta
Não gele talvez mais, nem mais alquebre
Um coração como a alma que está morta...
E estavas morta, eu vi, eu que te almejo,
— Sombra de gelo que me apaga a febre,
— Lua que esfria o sol do meu desejo!

NOTURNO

Para o vale noital da eterna gaza
Rolou o Sol — imenso moribundo —
E a noute veio na negrura d’asa,
Santificada pela Dor do Mundo!
U’a luz, entanto, no negror me abrasa,
E um canto vai morrer no vale fundo...
Que luz é esta que das brumas vaza,
Que canto é este, virginal, profundo?!
Rumores santos... e no santo harpejo,
Somente tristes os teus olhos vejo,
Para o Infinito e para o Céu voltados!
Cantas, e é noite de fatais abrolhos...
Choras, e no meu peito estes teus olhos
Como que cravam dois punhais gelados!

SEDUTORA

Alva d’aurora, e em lânguida sonata
Vinhas transpondo a margem do caminho,
Branca bem como empalecido arminho,
Alvorejando em arrebol de prata.
— Bendita a Santa do Carinho, inata!
E, ajoelhando à imagem do Carinho,
O roble altivo entreteceu-te um ninho,
Alva d’aurora, te acolheu a mata. —
Pérolas e ouro pela serrania...
No lago branco e rútilo do dia
O azul pompeava para sempre vasto.
Chegaste, o seio branco, e, tu, chegando,
Uma pantera foi se ajoelhando,
Rendida ao eflúvio do teu seio casto!

PELO MUNDO

Ânsias que pungem, mórbidos encantos,
Crepitações de flamas incendidas
N’alma explodindo como fogos santos,
Vão pelo mundo ensanguentando as Vidas.
Eflúvios quentes e fatais quebrantos
Crestam a alma das virgens adormidas...
E as brumas velam nos sinistros mantos
E as virgens dormem nas tumbais jazidas!
Súbitos fremem ’spasmos derradeiros...
E a paixão morre e os corações coveiros
Vão como duendes pelos céus risonhos,
Chorando auroras, músicas perdidas,
Na estrada santa ensanguentando as Vidas,
Nos campos-santos enterrando os Sonhos!

SONETO

E o mar gemeu a funda melopeia
À luz feral que a tarde morta instila,
Triste como um soluço de Dalila,
Fria como um crepúsc’lo da Judeia.
Já Vésper, no Alto, e lânguida, cintila!
Naquela hora morria para a Ideia
A minha branca e desgraçada Deia,
Qual rosa branca que ao tufão vacila.
E o mar chamou-a para o fundo abismo!
E o céu chamou-a para o Misticismo.
Nesse momento a Lua vinha calma
E céu e mar num desespero mudo
Não viram que num halo de veludo
À alma de Deia se evolava est’alma.

O RISO

“Ri, coração, tristíssimo palhaço.”
— Cruz e Souza
O Riso — o voltairesco clown — quem mede-o?!
— Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Látea fria do Nirvana,
Alenta a Vida que tombou no Tédio!
Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,
E ergue à sombra da dor a que se irmana
Lauréis em sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho em nimbos de epicédio!
Bendito sejas, Riso, clown da Sorte
— Fogo sagrado nos festins da Morte,
— Eterno fogo, saturnal do Inferno!
Eu te bendigo! No mundano cúmulo
És a Ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas dum desgosto eterno!

SONETO

Vamos, querida! Já é Ave-Maria
— A hora dos tristes e dos descontentes.
Desfaz-se o peito em vibrações dormentes
E o Fado geme sob a névoa fria!
Que eu sinta n’alma o que tu n’alma sentes!
Nesta Missa de Atroz Melancolia
Bebes chorando o Vinho da Agonia!
— Consagração das almas padecentes!
Foi numa tarde assim que nos amamos.
Silfos morriam... No ar, os gaturamos
Num recesso de névoa, adormecida...
Punge-me o peito da Saudade o cardo,
Enquanto um mocho, sonolento e tardo,
Canta no espaço a maldição da vida!

A UMA MÁRTIR

Alma em cilício, vem, enrista a clava,
Brande no seio o espículo e o acinace
E unjam-te o seio que d’auroras nasce
Sangrentas bênçãos eclodindo em lava!
Nossa Senhora te unge a face escrava,
Cristo saudoso te abençoa a face,
Monja, — violeta que do Céu baixasse
À Virgem Santa Natureza brava!
Vais caminhando para a terra extrema,
Rosa dos Sonhos! e o teu galho trema
E a tua crença, o desespero mate-a...
E em nuvens d’ouro ascende enfim ao plaustro
Da Neve Eterna, estrela azul do claustro,
Levada para o Azul da Via-Látea!

VÊNUS MORTA

A Via-Sacra Azul do amor primeiro
Veste hoje o luto que a desgraça veste
No miserere do meu desespero...
— Lótus diluído n’alma dum cipreste!
Como um lilás eternizando abrolhos
Tinge de roxo o arminho da grinalda,
Rola a violeta santa dos teus olhos,
— Tufos de goivo em conchas de esmeralda.
No vácuo imenso das desesperanças
E dos passados viços,
Recordo o beijo que te dei nas tranças
Emolduradas num florão de riços.
E como um nume de pesar, plangente,
Guarda a saudade que levou do Marne,
Eu guardo o travo deste beijo ardente
E a Nostalgia desta Pátria — a Carne!
Sonho abraçar-te, pálida camélia,
Mas neste sonho, langue e seminua,
Pareces reviver a antiga Ofélia,
À opalescência trágica da lua!
Tu, oh! Quimera, de reverberantes
E rubras asas de heliantos pulcros,
Crava-lhe n’alma o tirso das bacantes,
Brande-lhe n’alma o frio dos sepulcros.
Reza-lhe todo o cantochão memento
Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo meu tormento
E consagrada pela sepultura.
E que ela suba na serena gaza
Dos mistérios doirados e serenos
À terra Ideal das púrpuras em brasa
E ao Céu doirado e auroreal de Vênus!

RÉGIO

Festa no paço! Noute... e no entretanto
Luzes, flores, clarões por toda a festa
E há nos régios salões, em cada aresta,
Credências d’ouro de supremo encanto.
No baldaquino a orquestra real se apresta
E o áureo dossel finge um relevo santo...
— Bissos egípcios d’alto gosto, a um canto,
Flordelisados de nelumbo e giesta.
Morreu a noute e veio o Sol Eterno
— Âmbar de sangue que desceu do Inferno
No turbilhão dos alvos raios diurnos...
Brilham no paço refulgências de elmo
E a princesa assomou como um santelmo
Na realeza branca dos coturnos.

PELO MAR

Manhã em flor. O mar é um policromo
E imenso lago d’íris e alabastros...
A aurora é branca e ao sol, o mar é como
Um pálio imenso que caiu dos astros.
Longe, bem longe, no alvoral assomo
Ergue um navio os altanados mastros
E o Oceano dorme, — alourecido pomo
Num leito irial de pérolas e nastros.
A alma da Mágoa vai pelo seu dorso,
Em sonhos geme... Um coração de corso
Geme no mar, vibra no mar, entanto,
Colma-lhe o seio a opala das esponjas...
E à noute morta, choram vagas — monjas —
Purificadas no cristal do pranto!

PALLIDA LUNA

És do Passado! Vieste d’alvorada
N’asa dos elfos pela Morte espalma...
Cantas... e eu ouço esta berceuse calma
Da harpa dos mundos ideais do Nada!
Ergue o Missal brilhante de tu’alma,
Mas nessa elevação mistificada,
Vem, que eu te espero, Deusa constelada,
Desce, anêmona exul que o Céu ensalma!
Venhas e desças, Lua dos Martírios,
Desças, mas venhas pela unção dos lírios,
Visão de Ocaso de enluaradas comas,
Vaso de Unção descido dos espaços,
Para ungirmos, nós dois, os nossos paços,
Na tule idealizada dos aromas!

A MORTE DE VÊNUS

Velhos berilos, pálidas cortinas,
Morno frouxel de nardos recendendo
Velam-lhe o sono... e Vênus vai morrendo
No berço azul das névoas matutinas!
Halos de luz de brancas musselinas
Vão-lhe do corpo virginal descendo
— Abelha irial que foi adormecendo
Sobre um coxim de pérolas divinas.
E quando o Sol lhe beija a espádua nua,
Cai-lhe da carne o resplendor da Lua
No reverbero dos deslumbramentos...
Enquanto no ar há sândalos, há flores
E haustos de morte — os últimos clangores
Da música chorosa dos mementos!

MÁRTIR DA FOME

Nesta da vida lúgubre caverna
De ossos e frios funerais que eu sinto
Como um chacal saciando o eterno instinto
Vou saciando a minha Fome Eterna.
— Fome de sangue de um Passado extinto,
De extintas crenças — bacanal superna,
Horrível assim como a Hidra de Lerna
E muda como o bronze de Corinto!
Ânsias de sonhos, desespero fundo!
E a alma que sonha no marnel do Mundo,
Morre de Fome pelas noutes belas...
E como o Cristo — o Mártir do Calvário.
Morre. E no entanto vai para o estelário
Matar a Fome num festim de estrelas!

IDEALIZAÇÕES

A Santos Neto

I

Em vão flameja, rubro, ígneo, sangrento
O sol, e, fulvos, aos astrais desígnios,
Raios flamejam e fuzilam ígneos,
Nas chispas fulvas de um vulcão violento!
É tudo em vão! Atrás da luz dourada,
Negras, pompeiam (triste maldição!)
— Asas de corvo pelo coração...
— Crepúsculo fatal vindo do Nada!
Que importa o Sol! A Treva, a Sombra — eis tudo!
E no meu peito — condensada treva —
A Sombra desce, e o meu pesar se eleva
E chora e sangra, mudo, mudo, mudo...
E há no meu peito — ocaso nunca visto,
Martirizado porque nunca dorme
As Sete Chagas dum martírio enorme,
E os Sete Passos que magoaram Cristo!

II

Agora dorme o astro de sangue e de ouro
Como um sultão cansado! As nuvens, como
Odaliscas, da Noute ao negro assomo,
Beijam-lhe o corpo ensaguentado d’ouro.
Legiões de névoas mortas e finadas
Como fragmentações d’ouro e basalto
Lembram guirlandas pompeando no Alto,
Eterizadas, volatilizadas.
E a Noute emerge, santa e vitoriosa
Dentre um velarium de veludos. Atros,
Descem os nimbos... No ar há malabatros
Turiferando a negridão tediosa.
Além, dourando as névoas dos espaços,
Na majestade dum condor bendito,
Subindo à majestade do Infinito,
A Via-Láctea vai abrindo os braços!
Áureas estrelas, alvas, luminosas,
Trazem no peito o branco das manhãs
E dormem brancas como leviatãs
Sobre o oceano astral das nebulosas.
Eu amo a noute que este Sol arranca!
Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noute Branca.

III

De novo, a Aurora, entre esplendores, há-de
Alva, se erguer, como tombou outrora,
E como a Aurora — o Sol — hóstia da Aurora,
Abençoada pela Eternidade!
E ei-lo de novo, ontem moribundo,
Hoje de novo, curvo ao seu destino,
Fantástico, ciclópico, assassino
Ébrio de fogo, dominando o mundo!
Mas de que serve o Sol, se, triste, em cada
Raio que tomba no marmel da terra,
Mais em meu peito uma ilusão se enterra,
Mais em minh’alma um desespero brada?!
De que serve, se, à luz áurea que dele
Emana e estua e se refrange e ferve,
A Mágoa ferve e estua, de que serve
Se é desespero e maldição todo ele?!
Pois, de que serve, se, aclarando os cerros
E engalanando os arvoredos gaios,
A alma se abate, como se esses raios
N’alma caindo, se tornassem ferros?!

IV

Poeta, em vão na luz do sol te inflamas,
E nessa luz queimas-te em vão! És todo
Pó, e hás de ser após as chamas, lodo,
Como Herculanum foi após as chamas.
Ah! Como tu, em lodo tudo acaba,
O leão, o tigre, o mastodonte, a lesma,
Tudo por fim há de acabar na mesma
Tênebra que hoje sobre ti desaba.
Ninguém se exime dessa lei imensa
Que, em plena e fulva reverberação,
Arrasta as almas pela Escuridão,
E arrasta os corações pela Descrença.
Ergue, pois, poeta, um pedestal de tanta
Treva e dor tanta, e num supremo e insano
E extraordinário e grande e sobre-humano
Esforço, sobe ao pedestal, e... canta!
Canta a Descrença que passou cortando
As tuas ilusões pelas raízes,
E em vez de chagas e de cicatrizes
Deixar, foi valas funerais deixando.
E foi deixando essas funéreas, frias,
Medonhas valas, onde, como abutres
Medonhos, de ossos, de ilusões te nutres,
Vives de cinzas e de ruinarias!

V

Agora é noute! E na estelar coorte,
Como recordação da festa diurna,
Geme a pungente orquestração noturna
E chora a fanfarra triunfal da Morte.
Então, a Lua que no céu se espalha,
Iluminando as serranias, banha
As serranias duma luz estranha,
Alva como um pedaço de mortalha!
Nessa música que a alma me ilumina
Tento esquecer as minhas próprias dores,
Canto, e minh’alma cobre-se de flores
— Fera rendida à música divina.
Harpas concertam! Brandas melodias
Plangem... Silêncio! Mas de novo as harpas
Reboam pelo mar, pelas escarpas,
Pelos rochedos, pelas penedias...
Eu amo a Noute que este Sol arranca!
Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial da Noute Branca!

SONHO DE AMOR

Sobre o aromal e amplo coxim de Flora,
Que os vapores da tarde inda incensavam
E que um incenso tênue e bom vapora,
Os namorados lânguidos sonhavam.
A alma do Ocaso entrava o céu agora
E havia pelas tênebras que entravam
Ora estrangulamentos surdos, ora
Ruídos de carnes que se estrangulavam.
E sonharam assim durante toda
A noute, e toda a alva manhã durante!
— O Sol jorrava largos raios longos.
E em roda, víride e nevado, em roda,
Lembrava o campo um colorido ondeante
De vidros verdes e cristais oblongos!

ODE AO AMOR

Enches o peito de cada homem, medras
N’alma de cada virgem, e toda a alma
Enches de beijos de infinita calma...
E o aroma dos teus beijos infinitos
Entra na terra, bate nos granitos
E quebra as rochas e arrebenta as pedras!
És soberano! Sangras e torturas!
Ora, tangendo tiorbas em volatas,
Cantas a Vida que sangrando matas,
Ora, clavas brandindo em seva e insana
Fúria, lembras, Amor, a soberana
Imagem pétrea das montanhas duras.
Beijam-te o passo as multidões escravas
Dos Desgraçados! — Estas multidões
Sonham pátrias doiradas de ilusões
Entre os tórculos negros da Desgraça
— Flores que tombam quando a neve passa
No turbilhão das avalanches bravas!
Tudo dominas! — Dos vergéis tranquilos
Aos Capitólios, e dos Capitólios
Aos claros pulcros e brilhantes sólios
De esplendor pulcro e de fulgências claras,
Rendilhados de fulvas gemas raras
E pontilhados de crisoberilos.
Sobes ao monte onde o edelweiss pompeia
N’alma do que subiu àquele monte!
Mas, vezes, desces ao segredo insonte
Do mar profundo onde a sereia canta
E onde a Alcíone trêmula se espanta
Ouvindo a gusla crebra da sereia!
Rompe a manhã. Sinos além bimbalham.
Troa o conúbio dos amores velhos —
As borboletas, os escaravelhos
Beijam-se no ar... Retroa o sino! E, quietos,
Beijam-se além os silfos e os insetos
Sob a esteira dos campos que se orvalham.
E em tudo estruge a tua dúlia, — dúlia
Que na fibra mais forte e até na fibra
Mais tênue, chora e se lamenta e vibra...
E em cada peito onde um Ocaso chora
Levanta a cruz da redenção da Aurora
Como Judite a redimir Betúlia!
Bem haja, pois, esse poder terrível.
— Essa dominação aterradora,
— Enorme força regeneradora
Que faz dos homens um leão que dorme
E do Amor faz uma potência enorme
Que vela sobre os homens, impassível!
Esta de amor ode queixosa, Irene,
Quedo, sonhei-a, aos astros, ontem, quando
Entre estrias de estrelas, fosforeando,
Egrégia estavas no teu plaustro egrégio
Mais bela do que a Virgem de Correggio
E os quadros divinais de Guido Reni!
Qual um crente de asiático pagode,
Entre timbales e anafis estrídulos,
Cativo, beija os áureos pés dos ídolos,
Assim, Irene, eis-me de ti cativo!
Cativaste-me, Irene, e eis o motivo,
Eis o motivo porque fiz esta ode.

SONETO

(A um poeta morto, aos 25 anos, numa noute de orgia).
A orgia mata a mocidade, quando
Rugem na carne do delírio as feras,
E o moço morre como está sonhando
Nas suas vinte e cinco primaveras!
Em cima, — o oiro sem mancha das esferas,
Embaixo oiro manchado de execrando
Festim dos sibaritas, das heteras
Lubricamente se despedaçando!
Em cima, a rede do estelário imáculo
Suspensa no alto como um tabernáculo
— A orgia, embaixo, e no delírio doudo
Como arvoredos juvenis tombados
Os moços mortos, os brasões manchados,
E um turbilhão de púrpuras no lodo!

FESTIVAL

Para Jônatas Costa
Címbalos soam no salão. O dia
Foge, e ao compasso de arrabis serenos
A valsa rompe, em compassados trenos
Sobre os veludos da tapeçaria.
Estatuetas de mármore de Lemnos
Estão dispostas numa simetria
Inconfundível, recordando a estria
Dos corpos níveos de Afrodite e Vênus.
Fulgem por entre mil cristais vermelhos
O alvo cristal dos nítidos espelhos
E a seda verde dos arbustos glabros,
E em meio às refrações verdes e hialinas,
Vibra, batendo em todas as retinas,
A incandescência irial dos candelabros.

A VITÓRIA DO ESPIRITO

Era uma preta, funeral mesquita
Abandonada aos lobos e aos leopardos
Numa floresta lúgubre e esquisita.
Engalanava-lhe as paredes frias
Uma coroa de urzes e de cardos
Coberta em pálio pelas laçarias.
Uma vez, aos lampejos derradeiros
Das irisadas, vespertinas velas,
Feras rompiam tojos e balseiros.
E pelas catacumbas desprezadas,
Mochos vagavam como sentinelas,
Em atalaia às gerações passadas!
Um crepúsculo imenso nunca visto
Tauxiava o Céu de grandes vidros roxos
Da mesma cor da túnica de Cristo.
Fulgia em tudo uma estriação violeta
E um violáceo clarão banhava os mochos
Que em torno estavam da mesquita preta.
Já na eminência da amplidão sidérea
Como uma umbela, se desenrolava
A esteira astral da retração etérea.
Os astros mortos refulgiam vivos
E a noute, ampla e brilhante, rutilava
Lantejoulada de opalinos crivos.
Súbito alguém, o passo constrangendo,
Parou em frente da mesquita morta...
— Um vento frio começou gemendo.
Era uma viúva, e o olhar errante, a viúva
Em passo lento, foi transpondo a porta,
Eternamente aberta ao sol e à chuva.
A Lua encheu o espaço sem limites
E, dentro, nos altares esboroados,
Foram caindo como estalactites
Sobre o oiro e a prata das alfaias priscas
Um dilúvio de fósforos prateados
E uma chuva doirada de faíscas.
Fora, entretanto, por um chão de onagras
Vinha passeando como numa viagem
Um grupo feio de panteras magras.
E havia no atro olhar dessas panteras
Essa alegria douda da carnagem
Que é a alegria única das feras.
E ardendo na impulsão das ânsias doudas
E em sevas fúrias infernais ardendo
Todas as feras, as panteras todas
Avançam para a viúva desvalida
E raivosas, contra ela, arremetendo,
Tiram-lhe todas ali mesmo a vida.
Morria a noute. As flâmulas altivas
Do sol nascente erguiam-se vermelhas,
Como uma exposição de carnes vivas,
E iam cair em pérolas de sangue
Sobre as asas doiradas das abelhas,
E sobre o corpo da viúva exangue.
A Natureza celebrava a festa
Do astro glorioso em cantos e baladas
— O próprio Deus cantava na floresta!
Nos arvoredos rejuvenescidos,
Estrugiam canções desesperadas
De misereres e de sustenidos.
Além, entanto, na redoma clara
Que envolve a porta da região etérea,
O espírito da viúva se quedara
Ao contemplar dessa fulgente porta
E dessa clara e alva redoma aérea
No desfilar de sua carne morta
A transitoriedade da matéria!

NOTURNO

Chove. Lá fora os lampiões escuros
Semelham monjas a morrer... Os ventos
Desencadeados, vão bater, violentos,
De encontro às torres e de encontro aos muros.
Saio de casa. Os passos mal seguros
Trêmulo movo, mas meus movimentos
Susto, diante do vulto dos conventos,
Negro, ameaçando os séculos futuros!
De São Francisco no plangente bronze
Em badaladas compassadas onze
Horas soaram... Surge agora a Lua.
E eu sonho erguer-me aos paramos etéreos
Enquanto a chuva cai nos cemitérios
E o vento apaga os lampiões da rua!

SONETO

Ao sétimo dia do seu falecimento
E ele morreu. Ele que foi um forte
Que nunca se quebrou pelo Desgosto
Morreu... mas não deixou na ara do rosto
Um só vestígio que acusasse a morte!
O anatomista que investiga a sorte
Das vidas que se abismam no Sol-posto
Ficaria admirado de seu rosto,
Vendo-o tão belo, tão sereno e forte!
Quando meu Pai deixou o lar amigo
Um sabiá da casa muito antigo
Que há muito tempo não cantava lá,
Diluiu o silêncio em litanias...
E hoje, poetas, fazem sete dias
Que eu ouço o canto desse sabiá!

CANTO DA AGONIA

Agonia de amar, agonia bendita!
— Misto de infinda mágoa e de crença infinita.
Nos desertos da Vida uma estrela fulgura
E o Viajeiro do Amor, vendo-a, triste, murmura:
— “Que eu nunca chore assim! Que eu nunca chore como
Chorei, ontem, a sós, num voluptuoso assomo,
Numa prece de amor, numa delícia infinda,
Delícia que ainda gozo, oração, prece que ainda
Entre saudades rezo, e entre sorrisos e entre
Mágoas soluço, até que esta dor se concentre!
No âmago de meu peito e de minha saudade,
Amor, escuridão e eterna claridade...
— Calor que hoje me alenta e há de matar-me em breve,
Frio que me assassina, amor e frio, neve,
Neve que me embala como um berço divino,
Neve de minha dor, neve de meu destino!
E eu aqui a chorar nesta noute tão fria!
Agonia, agonia, agonia, agonia!”
— Diz, e morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
O Viajeiro vai, e vê a luz e vendo
Uma sombra que passa, uma nuvem que corre,
Caminha e vai, e, louco, abraça a sombra e... morre!
E a alma se lhe dilui na amplidão infinita...
Agonia de amor, agonia bendita!

VAE VICTIS

Para o Alcides Baltar
A Dor meu coração torça e retorça
E me retalhe como se retalha
Para escárnio e alegria da canalha
Um leão vencido que perdeu a força!
Sobre mim caia essa vingança corsa,
Já que perdi a última batalha!
E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,
A Dor meu coração torça e retorça!
Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!
Os vibriões, os vermes vis, os sapos
Encontrem nele pábulo eviterno...
— Repositório de milhões de miasmas
Onde se fartem todos os fantasmas,
Primavera, verão, outono, inverno!

A DOR

Chama-se Dor, e quando passa, enluta
E todo mundo que por ela passa
Há de beber a taça da cicuta
E há de beber até o fim da taça!
Há de beber, enxuto o olhar, enxuta
A face, e o travo há de sentir, e a ameaça
Amarga dessa desgraçada fruta
Que é a fruta amargosa da Desgraça!
E quando o mundo todo paralisa
E quando a multidão toda agoniza,
Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno,
De agonizante multidão rodeada,
Derrama em cada boca envenenada
Mais uma gota do fatal veneno!

TERRA FÚNEBRE

Aqui morreram tantos poetas! Tanta
Guitarra morta este lugar encerra!...
Aqui é o Campo-Santo, aqui é a Terra
Em que a alma chora e em que a Saudade canta!
O caminheiro que o Pesar desterra,
Pare chorando nesta Terra Santa,
E se cantar como a Saudade canta,
O caminheiro fique nesta Terra!
À noute aqui um trovador eterno
Chora, abraçado às campas dos poetas,
— Esse sombrio trovador é o Inverno!
Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoute,
Carpem na sombra pássaros ascetas,
Gemem poetas — pássaros da Noute!

SONETO

O sonho, a crença e o amor, sendo a risonha
Santíssima Trindade da Ventura,
Pode ser venturosa a criatura
Que não crê, que não ama e que não sonha?!
Pois a alma acostumada a ser tristonha
Pode achar por acaso ou porventura
Felicidade numa sepultura,
Contentamento numa dor medonha?!
Há muito tempo, o sonho, do meu seio
Partiu num célere arrebatamento
De minha crença arrebentando a grade,
Pois se eu não amo e se também não creio,
De onde me vem este contentamento,
De onde me vem esta felicidade?!

MEDITANDO

Para o Celso Mariz
Penso em venturas! A alma do homem pensa
Sempre em venturas! Sorte do homem! O homem
Há de embalar eternamente a Crença
Sem ter grilhões e sem ter leis que o domem!
Punjam-no os vermes da Desgraça, assomem
Descrenças, surjam tédios na Descrença,
Luta, e morrem os vermes que o consomem,
Vence, e por fim, nada há que o abata e o vença!
Por isso, poeta, eu penso na Ventura!
E o pensamento, na Suprema Altura
Sinto, no imenso Azul do Firmamento
Ir rolando pelo ouro das estrelas,
E esse ouro santo vir rolando pelas
Trevas profundas do meu pensamento!

SONETO

(Feito no decurso de dois minutos, em homenagem ao aniversário natalício de Alexandre Rodrigues dos Anjos — 28 de abril de 1905.)

Para quem tem na vida compreendido
Toda a grandeza da Fraternidade
O aniversário dum irmão querido
A alma de alegres emoções invade.
Depois quando no irmão estremecido
Fazem aliança o gênio e a probidade,
Atinge o amor um grau nunca atingido
No termômetro santo da Amizade.
O Alexandre dos Anjos merecia
Grandes coroas nesse grande dia,
Tesouros reais, auríferos tesouros...
Terá no entanto indubitavelmente
A admiração do século presente
E a sagração dos séculos vindouros!

SONETO

A Frederico Nietzsche
Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?!
— Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...
A loucura destruiu tudo que arquitetaste
E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!...
De que te serviu, pois, estudares, profundo,
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!
Pois, para penetrar o mistério das lousas,
Foi-te mister sondar a substância das cousas
— Construíste de ilusões um mundo diferente,
Desconheceste Deus no vidro do astrolábio
E quando a Ciência vã te proclamava sábio,
A tua construção quebrou-se de repente!

O NEGRO

Oh! Negro, oh! filho da Hotentótia ufana,
Teus braços brônzeos como dois escudos,
São dois colossos, dois gigantes mudos,
Representando a integridade humana!
Nesses braços de força soberana
Gloriosamente à luz do sol desnudos
Ao bruto encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito tempo a alma africana!
No colorido dos teus brônzeos braços,
Fulge o fogo mordente dos mormaços
E a chama fulge do solar brasido...
E eu cuido ver os múltiplos produtos
Da Terra — as flores e os metais e os frutos
Simbolizados nesse colorido!

HISTÓRIA DE UM VENCIDO

Para o Aprígio dos Anjos

I

Sol alto. A terra escalda: é um forno. A flama oriunda
Da solar refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o mar e por tudo se estende
E arde em tudo, mordendo a atra terra infecunda.
E o Velho veio para o labor cotidiano,
Triste, do alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para aí, desoladoramente
A revolver da terra o atro e infecundo arcano.
Por seis horas seu braço, empenhado na luta,
Fez reboar pelo solo, alta e descompassada
A dura vibração incômoda da enxada,
Rasgando do agro solo a superfície bruta.
Mas o braço cansou! Trabalhou... e o trabalho
— Do Eterno Bem motor principal e alavanca —
Arrancara-lhe a Crença assim como se arranca
De um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!
Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!
— O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido viu que um abismo se erguera
Entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!
Pois havia de, assim, nesta maldita senda
De sofrimento ignaro em sofrimento ignaro
Ir caminhando até tombar sem um amparo
No tremendo marnel da Desgraça tremenda?!

II

Noute! O silêncio vinha entrando pelo mundo
E ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleando
Foi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas fatais dum precipício fundo!
Quis um momento ainda olhar para o Passado...
E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreo,
Horrorizado viu como num cemitério
Cadáveres de um lado e cinzas de outro lado!
De súbito, avistando uma frondosa tília
Julgou, louco, avistar a Árvore da Esperança...
E bateram-lhe então de chofre na lembrança
A casa que deixara, os filhos, a família!
Não morreria, pois! Somente morreria
Se da Vida, sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era viver! Portanto, viveria!
Viveria! E a fecunda e deleitosa seara
Verde dos campos, onde arde e floresce a Crença,
Compensaria toda a sua dor imensa
Tal qual o Céu a dor de Cristo compensara!
E aos tropeços, tombando, o Velho caminhava...
Caminhava, e a sonhar, bêbado de miragem,
Nem viu que era chegado o termo da viagem,
E amplo, a rugir-lhe aos pés, o precipício estava.
Num instante viu tudo, e compreendendo tudo,
Quis fazer um esforço, — o último esforço, e o braço
Pendeu exangue, o peito arqueou-se, o cansaço
Empolgara-o, e ele quis falar e estava mudo!
Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!
E trágico, no horror bruto da despedida
Abraçou-se com a Dor, abraçou-se com a Vida
E sepultou-se ali no coração das águas!
Cantavam muito ao longe uns carmes doloridos!
Eram tropeiros, era a turba trovadora
Que assim cantava, enquanto a Terra Vencedora
Celebrava ao luar a Missa dos Vencidos!
E o cadáver, à toa, a flux d’água, flutua!
Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta...
Somente, entre a negrura atra da terra poenta
Alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!

BEIJO MALDITO

Da Fantasia nos itinerários

Beijei teu lábio de veneno e insídias...
— Rosa de outono aberta em dois nectários,
— Mirra enganosa dos turibulários,
— Vaso de Sèvres recendendo a orquídeas.
Beijei teu lábio de veneno e agruras
E o beijo trouxe-me o fatal ressábio
Dos desesperos e das amarguras...
E vou rolando para as sepulturas
E nunca mais hei de beijar teu lábio!

SONETO

À memória do meu colega Caldas Lins
Vinhas trilhando gárrulo a Avenida
Onde Deus manda que todo homem goze,
Quando o fantasma da tuberculose
Pediu-te, em ânsias, o óbolo da Vida!
Recordo agora a nossa despedida
Na Estação do Cobé, — santa nevrose
Que com fios de ferro as almas cose
Principalmente se uma está ferida!
Das tuas dores na procela brava
Não soubeste talvez que eu te estimava!
Mas a amizade oculta não se finda...
Embora oculta, ela subiu, no entanto...
E subiu tanto e subiu tanto e tanto
Que hoje que és morto, — ei-la que sobe ainda!

ESTROFES SENTIDAS

Para o Neves Filho
Eu sei que o Amor enche o Universo todo
E se prende dos poetas à guitarra
Como o polipo que se agarra ao lodo
E a ostra que às rochas eternais se agarra.
O Amor reduz-nos a uniformes placas,
Uniformiza todos os anelos
E une organizações fortes e fracas
Nos mesmos laços e nos mesmos elos.
Por muito tempo eu lhe sorvi o aroma,
E, desvairado, sem prever o abismo,
Fiz desse amor um ídolo de Roma,
Eleito Deus no altar do fetichismo!
Tudo sacrifiquei para adorá-lo
— Mas hoje, vendo o horror dos meus destroços,
Tenho vontade até de estrangulá-lo
E reduzi-lo muitas vezes a ossos!
Todo o ser que no mundo turbilhona
Veja no Amor, à luz das minhas frases,
Uma montanha que se desmorona,
Estremecendo em suas próprias bases.
E em qualquer parte do Universo veja —
Sombrias ruínas de um solar egrégio
E o desmoronamento duma Igreja
Despedaçada pelo sacrilégio.
A Natureza veste extraordinárias
Roupagens de ouro. Além, nas oliveiras,
Aves de várias cores e de várias
Espécies, cantam óperas inteiras.
A compreensão da minha niilidade
Aumenta à proporção que aumenta o dia
E pouco a pouco o encéfalo me invade
Numa clareza de fotografia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis...
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancando fósseis.
Observo então a condição tristonha
Da Humanidade, ébria de fumo e de ópio,
Tal qual ela é, e não tal qual a sonha
E a vê o Sábio pelo telescópio.
O Sábio vê em proporções enormes
Aquilo que é composto de pequenas
Partes, construindo corpos quase informes
Daquilo que é uma parcela apenas.
Da observação nos elevados montes
Prefiro, à nitidez real dos aspectos,
Ver mastodontes onde há mastodontes
E insetos ver onde há somente insetos.
A inanidade da Ilusão demonstro
Mas, demonstrando-a, sinto um violento
Rancor da Vida — este maldito monstro
Que no meu próprio estômago alimento!
Nisto a alma o oficio da Paixão entoa
E vai cair, heroicamente, na água
Da misteriosíssima lagoa
Que a língua humana denomina Mágoa!
Dos meus sonhos o exército desfila
E, à frente dele, eu vou cantando a nênia
Do Amor que eu tive e que se fez argila,
Como Tirteu na guerra de Messênia!
Transponho assim toda a sombria escarpa
Sinistro, como quem medita um crime...
E quando a Dor me dói, tanjo minha harpa
E a harpa saudosa a minha Dor exprime!
Estes versos de amor que agora findo
Foram sentidos na soidão de uma horta,
À sombra dum verdoengo tamarindo
Que representa a minha infância morta!

O ÉBRIO

Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava,
Em verdes nuanças de miragens, ver
Se nesta ânsia suprema de beber,
Achava a Glória que ninguém achava!
E todo o dia então eu me embriagava
— Novo Sileno, — em busca de ascender
A essa Babel fictícia do Prazer
Que procuravam e que eu procurava.
Trás de mim, na atra estrada que trilhei,
Quantos também, quantos também deixei!
Mas eu não contarei nunca a ninguém,
A ninguém nunca eu contarei a história
Dos que, como eu, foram buscar a Glória
E que, como eu, irão morrer também!

O CANTO DA CORUJA

A coruja cantara-lhe na porta
Sinistramente a noite inteira! Indício
Mais certo não havia! — Era o suplício!...
Daí a pouco, ela seria morta.
Saiu. O Sol ardia. A estrada torta
Lembrava a antiga ponte de Sublício...
Havia pelo chão um desperdício
De folhas que a áurea xantofila corta.
Nisto, ouve o canto aziago da coruja!
— Quer fugir, e não vê por onde fuja —
Implora a Deus como a um fetiche vago...
— Se ao menos voasse! — E o horror começa! Rasga
As vestes; uma convulsão a engasga
E morre ouvindo o mesmo canto aziago!

SENECTUDE PRECOCE

Envelheci. A cal da sepultura
Caiu por sobre a minha mocidade...
E eu que julgava em minha idealidade
Ver inda toda a geração futura!
Eu que julgava! Pois não é verdade?!
Hoje estou velho. Olha essa neve pura!
— Foi saudade? Foi dor? — Foi tanta agrura
Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!
Sei que durante toda a travessia
Da minha infância trágica, vivia,
Assim como uma casa abandonada.
Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...
Sei que na infância nunca tive auroras,
E afora disto, eu já nem sei mais nada!

ANDRÉ CHÉNIER

Na real magnificência dos gigantes,
Grave como um lacedemônio harmoste
André Chénier ia subir ao poste
A que Luís XVI subira dantes!
Que a sua morte a homem nenhum desgoste
E incite o heroísmo das nações distantes!...
Por isso, ele, a morrer, canta vibrantes
Versos divinos que arrebatam a hoste.
Não há quem nele um só tremor denote!
— Continua a cantar, a alma serena...
Mas, de repente, pressentindo a lousa,
Batendo com a cabeça no barrote
Da guilhotina, diz ao povo: — “É pena!
— Aqui ainda havia alguma cousa...”

MYSTICA VISIO

Vinha passando pelo meu caminho
Um vulto estranhamente iluminado...
Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado
E desde então, não andei mais sozinho!
Abraçou-me, beijou-me com um carinho
Que a um ser divino não seria dado...
E eu me elevava, sendo assim beijado,
Muito acima do humano burburinho!
Falou-me de ilusões e de luares,
Da tribo alegre que povoa os ares...
— Assombrava-me aquela claridade!
Mas através daquelas falsas luzes
Pude rever enfim todas as cruzes
Que têm pesado sobre a Humanidade!

ILUSÃO

Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!
Assim, em Tebas — a tumbal cidade,
A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!
Quem vê o herói, inda com o braço altivo,
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...
Bem como tu, que nessa crença infinda
Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz!

CANTO ÍNTIMO

Meu amor, em sonhos, erra,
Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano
E do gemido da terra!
O Sol está moribundo.
Um grande recolhimento
Preside neste momento
Todas as forças do Mundo.
De lá, dos grandes espaços,
Onde há sonhos inefáveis
Vejo os vermes miseráveis
Que hão de comer os meus braços.
Ah! Se me ouvisses falando!
(E eu sei que às dores resistes)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.
Que mal o amor me tem feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vem cá, olha estas feridas,
Que o amor abriu no meu peito.
Passo longos dias a esmo...
Não me queixo mais da sorte
Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
Meu amor, em sonhos, erra,
Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano
E do gemido da terra!

A LUVA

Para o Augusto Belmont
Pensa na glória! Arfa-lhe o peito, opresso,
— O pensamento é uma locomotiva —
Tem a grandeza duma força viva
Correndo sem cessar para o Progresso.
Que importa que, contra ele, horrendo e preto
O áspide abjeto do Pesar se mova!...
E só, no quadrilátero da alcova,
Vem-lhe à imaginação este soneto:
— “A princípio escrevia simplesmente
Para entreter o espírito... Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
Do que por uma propulsão consciente.
Entendi, depois disso, que devia,
Como Vulcano, sobre a forja ardente
Da Ilha de Lemnos, trabalhar contente,
Durante as vinte e quatro horas do dia!
Riam de mim os monstros zombeiteiros.
Trabalharei assim dias inteiros,
Sem ter uma alma só que me idolatre...
Tenha a sorte de Cícero proscrito
Ou morra embora, trágico e maldito,
Como Camões morrendo sobre um catre!”
Nisto, abre, em ânsias, a tumbal janela
E diz, olhando o céu que além se expande:
“ — A maldade do mundo é muito grande,
Mas meu orgulho inda é maior do que ela!
Ruja a boca danada da profana
Coorte dos homens, com o seu grande grito,
Que meu orgulho do alto do Infinito
Suplantará a própria espécie humana!
Quebro montanhas e aos tufões resisto
Numa absoluta impassibilidade!”
E como um desafio à Eternidade
Atira a luva para o próprio Cristo!
Chove. Sobre a cidade geme a chuva.
Batem-lhe os nervos, sacudindo-o todo,
E na suprema convulsão o doudo
Parece aos astros atirar a luva!

GOZO INSATISFEITO

Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo,
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o circulo infinito.
Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabilidade desse gozo!

NOME MALDITO

Das trombetas proféticas o alarde
Falou-lhe, por seus onze augúrios certos:
— “É maldito o teu nome! E, aos céus abertos,
Não há divina proteção que o guarde!”
Dúvidas cruéis! Momentos cruéis! Incertos
E cruéis momentos! Ânsias cruéis! E, à tarde,
Saiu aos tombos, como um cão covarde
A percorrer desertos e desertos...
E, assombrado, com medo do Infinito,
Por toda a parte, onde, aos tropeços, ia,
Por toda a parte viu seu nome escrito!
Vieram-lhe as ânsias. Teve sede e fome...
E foi assim que ele morreu um dia
Amaldiçoado pelo próprio nome!

DOLÊNCIAS

Eu fui cadáver, antes de viver!...
— Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!
Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer, existo...
Existo!... — E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!
Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando,
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
— O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer!

A LÁGRIMA

— Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorureto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
— “A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina. —“
— O farmacêutico me obtemperou. —
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia...
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!

À CARIDADE

No universo a caridade,
Em contraste ao vício infando,
É como um astro brilhando
Sobre a dor da humanidade!
Nos mais sombrios horrores
Por entre a mágoa nefasta
A Caridade se arrasta
Toda coberta de flores!
Semeadora de carinhos,
Ela abre todas as portas
E no horror das horas mortas
Vem beijar os pobrezinhos.
Torna as tormentas mais calmas
Ouve o soluço do mundo
E dentro do amor profundo
Abrange todas as almas.
O céu de estrelas se veste
E em fluidos de misticismo
Vibra no nosso organismo
Um sentimento celeste.
A alegria mais acesa
Nossas cabeças invade...
Glória, pois, à Caridade
No seio da Natureza!

Estribilho

Cantemos todos os anos
Na festa da Caridade
A solidariedade
Dos sentimentos humanos.

LAGO ENCANTADO

Vamos, meu desgraçado tamarindo,
Por esta grande noite abandonada...
As árvores da terra estão dormindo
E a mãe da lua já cantou na estrada!
Quantos laboratórios subterrâneos
E heterogêneos mecanismos vários
E ruínas grandes e montões de estrago
E decomposições de muitos crânios
Não foram, porventura, necessários
Para formar as águas deste lago!
Às suas atrações ninguém resiste:
Este é o lago de todos os Destinos.
O luar o beija. O círculo dos matos
Abrange-o, e ele é mais triste e ele é mais triste
Do que a porta fatal dos Mogrebinos
Que levou Cristo à casa de Pilatos!
Rola no mundo um canto de saudade!
Tamarindo de minha mocidade,
Vamos nele saber nossos destinos?!...

VERSOS DE CIRCUNSTÂNCIA

BILHETE POSTAL

Ilustre professor da Carta Aberta: — Almejo
Que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo
Lhe fortaleça o corpo, e assim lhe fortaleça
As mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.
Continue a comer como um monstro no almoço,
Inche como um balão, cresça como um colosso
E vá crescendo e vá crescendo e vá crescendo,
E fique do tamanho extraordinário e horrendo
Do célebre Titão e do Hércules lendário;
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,
Cheio do cheiro ruim de fétidos resíduos;
As barrigas então de cinquenta indivíduos
Não poderão caber na sua ampla barriga.
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,
O seu nome também não será mais Antônio.
Todos hão de chamá-lo o colosso, o demônio,
A maravilha das brilhantes maravilhas.
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,
Diante do seu vigor recuarão e diante
Do estrídulo metal de sua voz atroante
De certo, correrão mansas e espavoridas.
Se as minhas orações, forem, pois, atendidas,
O senhor há de ser o Teseu do universo.
Seja um gigante, pois; não faça, porém, verso
De qualidade alguma e nem também me faça
Artigos tresandando a bolor e a cachaça,
Ricos de incorreções e de erros de gramática,
Tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,
Que somente possui o seu cérebro obtuso —
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso
Da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.
Os tolos, em geral, são tidos como sábios
Quando querem calar-se e reprimir-se sabem,
O senhor é papalvo e os papalvos não cabem
No centro literário e no centro político.
Respeite-me, portanto!
O Poeta Raquítico.

P.S.

Para o dia 17.

Análise dos erros de gramática, cometidos pelo professor de B, A — BÁ, autor dumas cartas que têm feito sucesso num grupo de sábios.

A BORBOLETA

Qualquer festa, onde Momo se intrometa,
Brônzeo, quebrando o ramerrão frequente,
Possui, possui incontestavelmente
Necessidade duma borboleta.
Sou este inseto esplêndido e insolente
De asa impecabilíssima e faceta...
Mas, em torno de mim, quanta careta
Feia, capaz de arrepiar a gente!
Adejo aqui. Adejo ali. Adejo
Além... Nutro um desejo e outro desejo
E, às vezes, faço bem e faço mal...
Polichinelos vis da Humanidade,
Eu represento a volubilidade
Das borboletas deste carnaval.

A ROSA

Eu, sendo a rosa rubra e principesca
Destas carnavalescas alegrias,
Tenho nesta estação carnavalesca
O privilégio de durar três dias.
A vida humana é uma ópera burlesca.
Quem me vê, goza logo, entre harmonias,
A sensação de um banho de água fresca
E o brando afago ideal das duchas frias.
Sou bela. Grandes graças desenvolvo.
Com o meu perfume faço, como um polvo,
Um só nariz desses narizes todos...
Canto e atraio, como a arca dos nababos,
O olhar mefistofélico dos diabos
E o miolo ruim dos beija-flores doudos...

NONEVAR (1908)

Senhora Virgem-Mãe — Surjo hoje em vossa festa
Como na Ásia surgiu outrora o Zend-Avesta
Que achou intérprete em Anquetil-Duperron.
Sei vibrar toda a escala hierárquica do som,
Transmitindo minh’alma aos dedos dos pianistas.
À ciência da imortal grei dos gimnosofistas
Alio o alto saber da indiana Trimourti.
Maior que Michelet, sou Rabelais que ri
E arrebenta com o riso a máscara malvada
Com que Deus achincalha a geração inchada
Dos que trazem no sangue a herança de algum mal.
Gozo, além de tudo isto, a virtude especial
Da fluidificação imponderabilíssima
Que reduz a óleo suave e a suave água tenuíssima
A substância malsã da agra injúria mordaz.
Tal um ferro, batendo o osso dos animais
Com a força da impulsão, depressa o pulveriza,
Igualmente a este sol que as plantas carboniza
E ao rígido rigor da xantofila má
Reduz os vegetais receptáculos a
Vírgulas de carvão, glóbulos graniformes,
Eu reduzo também as saudades enormes
A fumaça, a farelo e a outras fragmentações...
Eu venho encher de luz os vossos corações:
Igual ou superior a Zermane-Akerene,
Substituindo o ódio infrene e a atra diatribe infrene
Pela necessidade altruística de amar,
Virgens de minha terra, eu sou o Nonevar.
— Aquele rouxinol feito de sentimento
Que nunca precisou de diabo de instrumento
E nem de outra inferior coadjuvação qualquer,
Para cantar o Amor e as graças da Mulher.
Filha única do Céu, Mulher Paraibana,
Eu celebro nesta hora a dignidade humana,
Que eternamente em vós se consubstanciou.
Vós sois Nossa Senhora em pedaços, e eu sou
A neve que caiu por sobre esta cidade
Para simbolizar a vossa virgindade,
E servir de tapete à flor dos vossos pés.
Não receeis, pois, de mim, as broncas frases cruéis
Que, pronunciadas, ao fulgor destas gambiarras
Caem sobre o coração como oitocentas barras
De bronze bruto ou como ágil tigre, a morder
Deixa na carnação mortal de cada ser,
Toda perpetuidade infame de uma nódoa.
A legião de homens maus — azorrago-a, incomodo-a
Com o hórrido aspecto dum energúmeno a rir,
A palavra que vai dos meus lábios sair
E a palavra que sai da boca de um gigante
E na onda ascensional da acústica triunfante
Galga num jato o ar alto e vai bater no Céu.
Burgueses! Ante mim, tirai vosso chapéu.

PERFIS CHALEIRAS

O oxigênio eficaz do ar atmosférico,
O calor e o carbono e o amplo éter são
Valem três vezes menos que este Américo
Augusto dos Anzóis Sousa Falcão...
Engraçado, magríssimo, pilhérico,
Quando recita os versos do Tristão
Fica exaltado como um doente histérico
Sofrendo ataques de alucinação.
Possui claudicações de peru manco,
Assina no “Croquis” Rapaz de Branco
E lembra alto brandão de espermacete...
Anda escrevendo agora mesmo um poema
E há no seu corpo igual a um corpo de ema
A configuração magra de um 7.
Zé do Pátio

DESPEDIDA

A luz do “Nonevar” hoje se apaga,
Muito embora a saudade horrenda ruja
Como uma loba hedionda que escabuja
Numa explosão enormemente aziaga.
Canta hoje essa fealdade atra que estraga
A humanidade — esta infeliz coruja
A nutrir-se da própria roupa suja
Como um moscardo dentro duma chaga.
Na veemência medonha da mandinga
Não generalizou essa catinga
Que aos estômagos bons causa receios.
Interpretou assim a Natureza,
Começou em concurso de Beleza
E terminou, apoteosando os feios.

NONEVAR (1909)

Padroeira soberana: Eis-me, hoje, em vossa casa
Outra vez. Outra vez um fragmento da ampla asa
Materna, com que o kchátria e os sudras protegeis,
Ajoelhado, eu vos peço... Eu vos peço, outra vez,
Com a cabeça oprimida e triste dos que pensam,
A neve tutelar e a bondade da bênção
Que em minha trajetória hão de sempre cair!
Represento, talvez, mais do que o Desatir
A consubstanciação dos tradicionalismos,
O princípio de luz que esclarece os abismos,
O facho acidental caído sobre o caos,
O fogo redentor e útil que os germens maus
Consome, com a eficácia especial duma esponja.
Sem saber declinar os verbos da lisonja,
Eu sou o Nonevar do vosso coração,
— O livro ubiquitário e único de oração,
Em que as virgens do mundo, à hora da tarde, rezam,
Quando a Saudade chega, e os vegetais se enfezam,
E elegíaca, ante o astro ígneo que já se pôs
Estruge a irracional fonética dos bois
Numa canção de instinto, ainda mal educada,
Que a gente ouve, a tremer, com a alma muito apertada,
E uma vontade enorme e íntima de morrer.
Virgens da Paraíba, eu vou aparecer,
— Ênea tiorba, a anunciar, alto e por toda parte
A eternidade do Eu, e a independência da Arte;
Universalizando a emoção singular,
Invariável no tempo, hei de sempre vibrar
Na estática fatal das emoções humanas.
Os gregos com a Odisseia e os hindus com os Puranas,
A máxima figura antiga de Moisés,
A Idade Média com todos os menestréis
E todas as canções que a sua noite encerra,
Tudo que tem erguido e engrandecido a terra,
A lira de Saul e os salmos de David:
Tudo isto, como um Deus, eu trago para aqui.
Sou a revelação do nôumeno absoluto.
Somente eu sei, somente eu conheço, eu perscruto
O mistério do tato e o segredo do som.
Tenho a penetração de Edouard Pailleron
Que para devassar toda a alma feminina
Nunca necessitou de intervenção divina
E artifícios brutais de jogral ou segrel.
Tocaram minha fronte os dedos de Daniel.
E eu, profeta, com a unção desses sagrados dedos,
Agarro a Natureza e lhe arranco os segredos
Um por um, como quem uma autópsia faz.
Homero me emprestou seus versos imortais,
Destarte, irmão da musa hierática de Homero
Assombrando Voltaire e enxotando Lutero
Sem a Maia falaz dos antigos hindus,
Vendo na própria treva a gênese da luz,
Abraçado com o Grand-Être da Humanidade,
Cravando o iatagã terrível da verdade
Na fictícia Omoroka ancestral dos Caldeus
Igual ao coração legítimo de Deus,
A que o Universo inteiro o seu império empresta,
Foi assim que hoje eu vim cair na vossa festa
Como a neve que cai às vezes numa flor...
....................................................
Adeus, Nossa Senhora! Adeus, Nosso Senhor!

A. DA S.

Sua magreza de faquir encerra
Como o algodão, ainda na maçã,
Uma organização de Emanuel Kant,
Pontificando a crítica da terra!
Tales de Mileto

R. DE C.

Este poeta que canta as coisas leves
O Mucuripe, os pássaros e as crianças,
Vai realizar no festival das Neves
O consórcio das Musas com as Finanças.
Tales de Mileto

R. M.

Ao ver o seu pindárico semblante
Iluminando a escuridão espessa
Eu penso que ele leva na cabeça
Uma caixa de música ambulante.
Tales de Mileto

A. F.

Fazendo mesmo o esforço mais insano
A fonética humana não define
O sentimento deste Lamartine
Que, entretanto, nasceu paraibano.

FOTOGRAFIAS

Ei-la, a máxima sílfide impoluta
— A plenipotenciária da Beleza
Que a própria gente bárbara traz presa
À sua egrégia estética absoluta.
Canta, e a gente a davídica harpa escuta!
Ah! tamanha harmonia é, com certeza,
Toda a objetivação da Natureza
Rendida ao Som, no término da luta.
E Norme liame ideal a ela nos prende;
Quando ela chega, oculto gênio acende
Na imensidade a elipse ígnea dos sóis...
Seu canto é o Niebelungen da Germânia
E o homem extraordinário da Lituânia
Talvez chorasse, ouvindo a sua voz.
Tales de Mileto

A. B.

Je pense comme un ange dans son rêve
Que a misericordiosa mão divina
Desta delicadíssima Angelina,
De tão perfeita que é, não se descreve!
Que ignoto e audaz psicólogo se atreve,
Com a sua aristotélica doutrina
A perscrutar essa alma feminina
Filha da luz do luar e irmã da neve?!
Com a subserviência búdica de um pária,
Vejo, na irradiação extraordinária
Dos seus olhos, de um fúlgido ônix bom,
Duas reproduções de um quadro heleno
Onde Safo se vê com o olhar sereno
Suspirando na lira por Faon.
Tales de Mileto

AP. DOS A.

Este endemoniado e único tipo
— Bisneto espiritual de Satanaz,
Lembra, na sua crítica mordaz,
As sátiras modernas de Menippo.
Tales de Mileto

E. P.

Pretende publicar um Ramaiana
Cujo herói principal o intuito nutre
De, com a raiva específica do abutre,
Estrangular a canalhice humana.
Tales de Mileto

J. L.

Seu monóculo hierático de smart
Exportado da Rua do Ouvidor,
Sanciona este projeto de doutor
E o torna bacharel por toda a parte...
Tales de Mileto

P. F.

Esta é a autêntica Erato prazenteira
Que, vestida de sol vibrando a lira,
Mil rapsódias dulcíssimas inspira
Ao coração da humanindade inteira.
Na veemência afetiva derradeira,
Também, por seu amor com Dejanira,
Hércules, do alto monte Eta se atira,
À meia-noite, às chamas da fogueira!
Terníssima Terpsícore pulquérrima,
Descida da montanha íngreme e aspérrima
Dentro de um carro heráldico de luz...
Quando ela vem, com as mãos cheias de lírios,
Param na terra todos os martírios,
Quebram-se os braços trágicos da cruz!
Tales de Mileto

L. S.

Com a impassibilidade de Epicuro,
Diz que será (e o foi, em tempos idos,)
Exaltar os prazeres dos sentidos
Toda a filosofia do futuro!
Tales de Mileto

D. C.

Austero, superior, quase de beca,
Escavaca, remexe as livrarias,
E para aproveitar horas vadias
Faz paródias na própria Biblioteca.
Tales de Mileto

D. S.

O livro de Manu e o Zend-Avesta
E toda a ciência estética do mundo
Não têm, consoante um crítico profundo,
Concepção de Arte mais perfeita que esta!
É a flor aristocrática da festa.
O sol, que é da atração cósmica oriundo,
Aos seus olhos — dois céus de amor fecundo,
Policromias dióptricas empresta.
Com uma sonoridade de harpa avoenga,
Sobreexcedendo a própria arte flamenga,
Todo o ano, inédita e única, ressurges,
Lembrando à alma unitária dos poetas —
Uma Nossa Senhora que os estetas
Foram roubar na Catedral de Bourges!
Tales de Mileto

ATENÇÃO!

Aquele último quarteto
Da seção “Tipos”, excele,
Não foi Tales de Mileto
Que o escreveu, mas Bernadelli.

OR. S.

É o Petrônio de nossa Paraíba,
Faz artigos, sentado num divã
E tem, como o smartíssimo Rostand
Todos os requisitos de um escriba.
Tales de Mileto

OS. S.

Como um impetuosíssimo siroco,
Rolam no seu encéfalo as ideias,
Conhece as carolíngias epopeias
E é um Maupassant que nunca há de ser louco.
Tales de Mileto

J. L.

Com um tecido adiposo que me admira
Deseja, sem nenhum intuito espúrio,
Roubar ao mitológico Mercúrio
A prioridade na invenção da lira.
Tales de Mileto

N. R.

Quando, na radiosíssima viagem,
Pela poeira telúrica passeia,
A íntima e própria ânsia afetiva ateia
Nos emocinalismos de um selvagem.
Olha-a do alto, invejosa, a Lua Cheia,
O milagre de luz de sua imagem
Deixa, como lembrança da passagem,
Uma sequência de astros sobre a areia.
Treme, no abalo inteiro dos neurônios,
O coração de todos os Petrônios,
Com as sístoles e as diástoles ansiosas,
Quando ela balbucia, de mansinho,
Como o cisne encantado do caminho,
A oração específica das rosas!
Tales de Mileto

AL. DOS A.

Indubitavelmente não me queimas
Mau grado seres crítico e elegante,
O cáustico de cada homem pedante
E o flagelo de todas as toleimas.
Tales de Mileto

A. E.

Feito com toda a fleugma e toda a calma,
A sua reportagem superior
Não omite a minúcia de uma flor
Nem o segredo mínimo de uma alma.
Tales de Mileto

J. C. L.

Pontífice de arcádias amorosas,
Trata todas as moças com carinho
E gosta mais do cálice das rosas
Do que mesmo de um cálice de vinho.
Tales de Mileto

R. P.

Não perpetrou, horrendo e sanguinário,
O fraticídio trágico de Remo,
Dele diatribe de jogral não temo
Nem pedras negras de fundibulário.
Tales de Mileto

V. L.

Vibram na sua voz clara de criança,
Com o canto dos boukolos sicilianos
Todos os sentimentos sobre-humanos,
Dos nômades musards da antiga França!
Deus a conserve assim, por muitos anos,
Muito alva, muito meiga e muito mansa
Dando aos desesperados a esperança
De algum dia destruir seus desenganos!
Vem, mas vem, como Vésper, vem rasgando
Todas as tardes, com o seu brilho brando,
A última obscuridade e o último véu...
E, vindo inteiramente iluminada,
Parece que caiu sobre a calçada
Um pedaço magnífico do céu!
Tales de Mileto

M. B.

Com a abundância, a fartura e a demasia
Das suas reais e egrégias graças, certo,
A vacuidade de qualquer deserto
Piedosissimamente ela encheria!
Tudo, quando procede da tristeza
E em abraços recíprocos se agrega,
Desde os olhos estéreis de uma cega,
Às mais negras criações da Natureza,
Tudo, unânime, ante ela, duma vez,
Diria, recobrando a luz perdida,
Como numa canção agradecida:
— “Bendita sejas tu, por toda a vida,
Misericordiosíssima Mercês!”
Tales de Mileto

DES. H. C.

Vi-o ontem, na tarefa atabalhoada
De arranjar votos, nesta capital,
Para uma divindade nacional
Que possui um denguinho que lhe agrada.
Tales de Mileto

D. P.

Traz à lapela esplêndidas orquídeas
E surge, loquacíssimo e contente,
De monóculo e anel, rindo alvarmente,
Com a imponência do Júpiter de Fídias.
Tales de Mileto

J. F.

A tempestuosa e atra alma byroniana
Que no Sardanapalo e no Manfredo
Apreendia, terrível e sem medo,
As convulsões da natureza humana,
Talvez, estuando estúpida e atra, em face
De sua estonteadora forma helena,
Sentindo-se de súbito serena,
Como a vaga vencida, se acalmasse.
Por defini-la, Arquitas ou Arquíloco
Um século infeliz trabalharia,
Safo insuficientíssima seria
E Píndaro seria muito pouco!
Destarte o defini-la é inútil. Basta
Ser ela uma rainha de ouro raro
Aos pés da qual, como um batráquio ignaro,
A Humanidade humílima se arrasta.
Tales de Mileto

E. P.

Tosquiou-se ultimamente, e assim tosquiado
Parece um singular beneditino
Amarelo, feíssimo, mofino
A lembrar-se dos tempos de barbado.
Tales de Mileto

S. DA N.

É deputado, e admirador confesso
Da orientação política do Nilo,
Quando ouve qualquer valsa de Camilo
Soluça com saudade do Congresso.
Tales de Mileto

ALINE M.

Justo é que fulja, a vez última, inteira
Com a vibratilidade de um instante,
A alma de todo cósmico brilhante,
Nesta fotografia derradeira.
Fragmentos astronômicos, pedaços
De céus e luar, tudo isso, envolto em neve
Para fazer-te a alva estrutura leve,
Veio imediatamente dos espaços.
Veio, e todos os dias vem de novo
E há de ficar ninguém sabe até quando
— Ubíqua tiorba hierática, vibrando,
Nas emoções anônimas do povo.
Tales de Mileto

NONEVAR (1910)

Alma da Filipeia, ignorada e esquecida
Na mais alta expressão dinâmica da Vida.
Sangue, estuando, a alardear rubros glóbulos bons,
Surge hoje o “Nonevar” de vossas tradições
— Esta privilegiada e grande boca de ouro,
De onde jorra a ilusão que mata a água do choro
Na nascente infeliz das fontes lacrimais.
Não sou como os papéis que, com raiva, rasgais,
— Condensadores maus de obsoletas ideias,
Onde, lúgubres, vêm todas as odisseias
Da dor hereditária e negra de cada um.
O lírico David e o assombroso Naum
Ficam diante de mim agachados colossos!
A energia motriz de meus músculos moços
Lembra o Vândalo e lembra o Alano medieval.
Às vezes, estrangulo a rede neuronial —
De horrendos harpagões, de espírito já pretos
Traçando-lhes visões, pondo-lhes esqueletos
No fundo da consciência infecionada e má.
Mas, para vós eu sou o anacreôntico Eloá
De Alfredo de Vigny — o rouxinol da França.
Pareço muita vez uma ave muito mansa;
—Helênica ave ideal, apolínica flor
Oriunda de qualquer semente superior
Plantada pelas mãos magníficas de Safo.
íncola íntimo do amplo empíreo ático, abafo
Nesta terra de poeira e de implacável sol.
Desejo com veemência ególatra, em meu prol,
Comer neve, beber ânforas de falerno
E num dia de Abril, dormir o sono eterno
No berço maternal de vosso coração.
Oh! abençoado seja o estado de incoesão
Da matéria inicial de onde, um dia, radiante
Nasceu, como de um deus, a célula gigante —
Que fez a majestade enorme de meu ser!
Mefistófeles cruel, maligno e atro, a morder,
Cravando a aspérrima unha incisiva na gleba,
Alucinadamente, a irmanar-se com a ameba,
Arranhando, a tombar e a erguer-se a um tempo só,
Com a língua inchada e horrenda estirada no pó
— Expressão modelar de energúmeno exausto,
Toda a tragicomédia autêntica do Fausto
E as medonhas criações diabólicas da Fé
E o Satan miltoniano e o diabo de Grasset
E os ritos ancestrais de Lao-Tseu e Mafoma,
Tudo isto, na coerência integral de uma soma
São microcosmos vis, comparados a mim.
Dançam agora no ar visagens de cetim.
Sou eu que, reduzido a um flóculo de neve
Imponderável como a molécula leve
Que a sensação visual não pode descobrir
Na ara de vossas mãos, venho ansioso cair!
Tales de Mileto

I. MONTEIRO

Esta é a irmã da alvorada, é a deusa grega
Que, motivando esplêndidos assombros,
De pé, sorrindo, a cabeleira aos ombros,
No áureo coche imperial da estrofe chega.
Vem fugida dos céus!... E à forte e nédia
Quadriga que de lá, da empírea altura,
Rápida a trouxe à terra, ainda segura
Com as sacras mãos pulquérrimas a rédea!
Vede-a: — os olhos ascendem-nos desejos,
A boca é um cálice de flor macia,
— Um fruto de coral que desafia
Os pássaros quirópteros dos beijos.
Ah! quando assoma o seu perfil bizarro,
Na conquista de todos os sentidos,
—Rolam-lhe aos pés os corações feridos,
Ensanguentando as rodas do seu carro!
Mercúrio

SMARTS

Dilui-se em vários círculos de agrado
Este que, oferecendo um chapéu novo,
Dá à vista curiosíssima do povo
O aspecto de um reclame vertebrado.
Tem a aparência elipsoidal de um ovo,
Bebe champagne num cíato dourado!
Contra o seu carioquismo requintado
Versos epigramáticos não movo.
A idolatria ideal das moças goza,
Este miniaturesco Rui Barbosa
Que anda fazendo eternamente roda.
Mas, mostrando-se sempre economista,
Prefere à propaganda civilista
A propaganda dos chapéus da moda.
Petronius

H. C.

Celebrem sua intrínseca realeza
Para que a humanidade unânime o ouça
Os scólios helênicos e o Pean...
Expressão superior da Natureza,
Promessa harmoniosíssima de moça
Sob a forma de estrela da manhã.
Festejem-lhe inda o olhar de deusa etérea
O canto legendário do rapsodo
E as órficas, esplêndidas canções.
Ah! certamente, a força da matéria
Atingiu na escultura do seu todo,
A mais perfeita das agregações!
Receba ela por fim, de fronte erguida,
As comburentes dádivas de fogo
E a superabundância celestial
Que o sol — o pai monístico da Vida,
Dando começo ao matutino jogo
Atira em sua forma escultural.
Ovidius

A. SÁ

Verdade ou não! O fato é que se achava
Entre as supertições de um povo prisco
O Basilisco — um sáurio que matava
Com o olhar! — Teus olhos são de Basilisco...
Verdade ou não! Mas da Sereia diz-se
Que no alto-mar, noites de lua cheia,
Atraía com a voz o nauta!... — Alice,
A tua voz é como a da Sereia...
Verdade ou não! Contam de Vênus que ela,
O sonho de estatuária dos helenos,
Usando o Césto se tornou mais bela!
— Tu tens o Césto mágico de Vênus...
Eis porque é que de joelhos às tuas plantas
Lanças humilde a humanidade, a um gesto:
— Matas com o olhar, prendes com a voz e encantas
Com as mágicas virtudes do teu Césto...
Mercúrio

M. L.

Não tem o ar democrático de acólito.
Para integralizar-lhe a imorredoura
Glória, faltam-lhe a altura de Zé Moura,
E algumas banhas de Manoel Hipólito.
Deixa escapar às vezes, muito digno
Na caudalosa fluência da conversa,
Alguns períodos bons de prosa tersa
Que em meus arquivos ótimos consigno.
E é um gosto vê-lo de óculos, e escura
Roupa, julgando com prazer profundo
Que é dele que depende, neste mundo,
O progresso da estética futura.
Petronius

D. S.

Dúlcida, abrindo, áurea e alva, a galeria
Das que, da excele e hierática hierarquia,
Fazem parte, trazendo, alto, a olhos nus
À absconsa e sepulcral cripta de Ellora,
Nos raios caloríficos da aurora,
Contribuições celígenas de luz.
Da horrenda escuridão das Silvas bastas
Emergindo com as pretas tranças vastas,
Misericordiosíssima, a cantar,
É como se surgisse, de repente,
Em noite tropical, cerrada e quente,
Um pedaço brilhante de luar.
Ovidius

J. GUIMARÃES

Esta que o ebúrneo corpo, altivo, apruma
E, coroada de pétalas de rosas,
Vem transformando a estrada em que anda numa
Via-Láctea de flores perfumosas:
Ótimo aroma suave e imorredoiro
Em torno exala! E, trêmula e convulsa,
Em sua voz, corda por corda, a de oiro
Lira de Safo apaixonada, pulsa.
E o alvo óleo suave, o brando óleo piedoso
Que um sofrimento jóbico aliviando
Unta, de leve, as chagas de um leproso,
— É-lhe menos que o olhar, piedoso e brando!
Fúlvido, ante ela, o Sol, ígneo, descerra,
Por merecê-la, o cofre áureo no espaço!...
— E o coração magnânimo da Terra
Bate mais forte lhe escutando o passo!
Mercúrio

M. HlP.

Em sua obesidade soberana
De gordalhufo senador do Império
Há uma concentração de Buda sério
Meditando, alta noite, no Nirvana.
Se a pernosticidade atual se dana
Ele, como Calígula e Tibério,
Tem vontade de pôr no cemitério
Todos os monstros da sandice humana.
Com a força tartarínica dos braços
Conservando até método nos passos
Detesta as demostênicas arengas...
Não anda recitando misereres
— E em matéria de queijos e mulheres
Só manda ver flamengos e flamengas.
Petronius

A. MOREIRA

Chega, e todas as vezes que ela chega
A vibração de monocórdios hinos
Enche, em concertos repetidos, o ar...
Como que a alma da prisca gente grega
Se ergue, ouvindo-lhe os risos argentinos
Para, ainda, admiradíssima, a admirar.
E a gente, olhando-a, sente, súbita a ânsia
De, do estreitíssimo orbe, em que ela habita
Ignorada dos mundos celestiais,
Levá-la, acima da terráquea estância
Até onde a massa cósmica infinita
Rola por sobre as noites sepulcrais!
Ovidius

M. B.

Eurípedes — o maior fisiologista
Introspectivo das heterogêneas
E atras paixões humanas imortais
.................................................
Nas tragédias, nos iambos, nas partênias,
Nos ditirambos e outros versos mais,
Que, aprofundando a natureza brava,
Sem que o tornasse o extremo esforço exangue,
Parecia que, abrindo os corações,
Tragicamente, em ânsias, arrancava
Um lenço molhadíssimo de sangue,
Para mostrá-lo, à noite, às multidões.
Pois bem! Se o arcaico Eurípedes, hoje ainda
Viesse, e a este festival 30 de Julho
Consagrasse seu poético mister,
Lamentaria a própria glória finda
Por sentir-se incapaz de em seu orgulho
Pintar tua beleza de mulher.
Então, das femininas hierarquias,
Deusa coroada, sem que alguém pintar-te
Pudesse após Eurípedes, talvez,
Tu para todo o sempre ficarias
Monopolizadora de minha Arte
E credora de todas as mercês.
Ovidius

ALZ. BASTOS

Esta a quem doce olhar, tímido, furtas,
De régio entono e de perfil bizarro,
Vem, coroada de pâmpanos e murtas,
Alegoricamente no seu carro.
Um punhado de pérolas lhe enfeita
A cabeleira esplêndida e o vestido!
— Empunha, altiva, um cetro à mão direita
E esmaga aos pés um coração ferido!
Ondeia ao vento a clâmide vermelha
No ombro alvo e nu, de rosa e leite, morno,
E a víbora da Inveja olha-a de esguelha,
Com a língua preta babujando em torno!
O tigre do Ódio vê-se brando ante ela
E a serpente da Cólera ígnea, em calma!
— Dormem quietas, em suma, às plantas dela
Todas as feras que nós temos n’alma! —
Mercúrio

A. DOS A.

Não possui o arqueológico arcabouço
Dos megatérios desaparecidos...
São seus dedos magríssimos, compridos,
Tentáculos de um polvo muito moço.
A humanidade atual para ele é um osso
Exposto aos paladares atrevidos...
Ah! Somente a dentuça dos sabidos
Há de roer o quinhão que for mais grosso.
É promotor, há muito tempo, advoga,
Não consente que o mofo lhe encha a toga
Sob a exótica forma de estopim.
E ao cabo disto, tempo ainda lhe resta
Para todas as noites ir à festa
Comer unicamente amendoim.
Petronius

A. FILHO

Baixíssimo, de brancas mâos peludas,
De olhos esbugalhados de pitomba,
Com os seus juvenalescos risos, zomba
De todas as pessoas barrigudas...
Papa coroado de tertúlias mudas
Em versos decassílabos de arromba,
Apoteosou a companhia Tomba
E fez um poema inteiro sobre Judas.
A íntegra ideia dá, com a cara chata,
De alva e esquisitíssima batata
Nascida num terreno estéril e agro.
Deseja ter os músculos de um núbio
E faz harmoniosíssimo conúbio
Com a musa superior de um poeta magro.
Scopas

C. TOSCANO

Climéria é todo o sonho da arte helena
Esculpido nos mármores de Paros,
Raios de sol num cálix de açucena
São-lhe no rosto os grandes olhos claros!
“Está naquela idade duvidosa”
Que um poeta em versos rútilos descreve:
— Menina e moça! Entrefechada rosa!
Entreaberto botão de flor de neve!
Recende-lhe a palavra sobremodo
A um perfume de sândalo e bonina!
E a impecabilidade do seu todo
Pede uma estátua criselefantina!
Quando ela surge, e em torno os olhos vaga,
Turba as estrelas no alto espaço infindo:
— Também o sol com o olhar lúcido apaga
Todos os astros quando vem surgindo!
Mercúrio

ALEX DOS A.

Dentre a camaradagem dos janotas
Como um peru anda fazendo roda
E com os seus semicírculos, engoda
Os chicos, as chiquinhas e as chicotas...
Chamaram, noutro dia, borra-botas
A esse Mané científico da moda,
Cujo ar aristocrático incomoda
A pose má das multidões idiotas...
Tem desejos danados de ir à França,
Satisfazer unicamente a pança,
E ler no original Edmond Rostand...
De regresso, smartíssimo, tenciona
Recostado em jacíntica poltrona
Comer pão com manteiga de manhã...
Petronius

D. C.

Há um movimento intrínseco e profundo
Na Natureza, para festejá-la;
E ela recebe, no âmbito da sala
A oblação panegírica do mundo.
Deuses desconhecidos superiores
Trazem todos os dias à su’alma
Numa conjugação plácida e calma
Açafates pleníssimos de flores.
E ela dos deuses áticos, acima
Há de ficar, hierática, adorada
E para todo sempre perpetuada
Na ênea memória póstuma da rima.
Ovidius

O. XAVIER

Quando Olívia aparece o orbe se acende
Todo, num brilho intenso e policromo,
E o tépido ar ambiente arde e recende
A nardo, a incenso, a mirra e a cinamono!
Descem do Olimpo os deuses para vê-la;
O sol canta-lhe esplêndida, ígnea, loa;
Um anjo rindo assoma em cada estrela
E êneo timbale célico reboa.
Depois da festa do Éter, do áureo bando
Dos astros a correr no espaço infindo:
Na terra, asas batendo... aves cantando...
Urnas de aroma, flóreas, se partindo!...
Mãos de róseo veludo e unhas de opala
Sacudindo-lhe pétalas em cima...
— E os poetas, ajoelhados, a incensá-la
Com os doirados turíbulos da Rima!
Mercúrio

AF. DOS A.

Este que em rimas ásperas debuxo
Sem lhe votar o mínimo respeito,
— Espécie de anacreôntico sujeito
Que não liga importância alguma ao luxo,
Aguenta tudo: pândegas, repuxo,
Inalteravelmente satisfeito,
Não receia ter febre, dor de peito,
Nem solitária a lhe crescer no bucho.
Faz diabólicas coisas, esperneia,
Satiriza com gosto a gente feia,
Julgando-se por isto homem feliz.
E desde o Prata às plagas do Amazonas
É o remorso ambulante das trintonas
Com o seu cabulosíssimo nariz.
Petronius

ALINE M.

No atro mármore mau dos versos meus
Gravo hoje esta que, adstrita a áureo pináculo,
Lembra o privilegiado receptáculo
Das prodigalidades de algum deus.
Vezes, possui, esta Valquíria sã
O aspecto de uma rosa muito fresca
Desabrochando, alva e miniaturesca,
Numa paradisíaca manhã.
Bendita a estrela de oiro que a conduz,
E a cujos imperiosos magnetismos,
Desaparecem todos os abismos
Transformados em tálamos de luz.
Ovidius

ALAÍDE MONTEIRO

Salve, deusa que em Pafos se cultua!
Que estranha ave do céu, gárrula, canta
Dentro do ninho de coral da tua
Bela, suavíssima, ótima garganta?!
A caçoila da minha estrofe exale
A mirra e o incenso arábico mais brando
A ti que, assim como Hércules Onfale,
Puseste aos pés a humanidade fiando!
E que, bem como a água de um lago imundo
A alvíssima asa imácula dos cisnes,
Atravessas os pântanos do mundo
Sem que a diáfana alvura da alma tisnes.
Diante o esplendor da tua maravilha,
Beijando as tuas tranças de veludo,
Flor da espuma do mar de Chipre, filha
Do sol e irmã do luar: — Eu te saúdo!
Mercúrio

LEON. SM.

Este tipo, muito alto e muito louro,
Espécie de Voltaire contemporâneo
Tem lampejos satânicos no crânio
E o próprio Mefístófeles no couro.
Areopagita assíduo deste foro
Arruine-o, esmague-o, enforque-o e, em suma, esgane-o
Todo aquele, Mané, Chico ou Libânio,
Que recear seu talento imorredouro.
Olhem como ele agora faz caretas,
Vê neste mundo extraordinárias tetas
Que a gente deve, sôfrega, mamar.
E ao cabo disto, num café urbano,
Achincalhando o sentimento humano
Põe-se estrondosamente a gargalhar.
Petronius

PUPU F.

Quando ela vem, cheirando a nardo santo,
Luminosa coluna no ar se eleva
E o reino demoníaco da treva
Desaparece como por encanto.
Força é que extraordinária ode encomiástica
Melhor que o Pean e o canto das sereias
Celebre suas régias graças, cheias
Dos magníficos dons da força plástica.
E tudo ante ela, envolta em nítido halo,
Como uma subserviente vassalagem
Venha trazer-lhe, à guisa de homenagem,
A alma reconhecida de vassalo.
Ovidius

SAF. OLIVEIRA

Esta que arrastaria a alma pristina
Dos gregos, inclusive Homero — o mestre,
Por ser na crosta rígida terrestre
Um milagre de gênese divina:
Dá a quem crava sobre ela o amplo olhar fundo
A ilusão psicológica do enleio!
— Asa paradisíaca que veio
Para voar nove noites, sobre o mundo.
Agora, adstrita à unânime harmonia,
Altares lhe erga a humanidade serva,
Como os pagãos do templo de Minerva
Na nevrose feliz da idolatria.
E o luar lúcida esteira, ao som das liras
Estenda, embora escuro esteja, desde
Que ela apareça em cheio, enchendo o 3 de
Agosto, de Oliveiras e Safiras.
Ovidius

ALICE S. CARVALHO

A humanidade unânime e alto a aplauda!
Porque a esta irmã da aurora, quando desce
O sol, seu noivo, na celeste lauda
Epinícios de togo áureo oferece!
Erguem-se em roda do seu vulto lindo
Nuvens claras de incenso muito brando...
Há por tudo um rumor de asas se abrindo
E um barulho de pérolas rolando.
Um deus doce licor do céu lhe oferta
Numa rosa de pétalas vermelhas:
— Rosa paradisíaca entreaberta
Para os beijos da aurora e das abelhas!
E a estátua da Anadiômene, alva e bela,
Diante de quem toda beleza é pouca,
Os níveos braços move para ela,
Com um sorriso de mármore na boca!
Mercúrio

ALTARES

“Estes sinceros cânticos dispersos
À Musa Inspiradora dos meus versos”
Quero que o povo ante esta deusa austera
Ajoelhado lhe oscule o pó do rastro!
E a espere ansioso, como quem espera
A passagem magnífica de um astro!
Fugida das paragens luminosas
Ainda a engrinalda, acesa, a última réstia...
Calçam-lhe os pés dois cálices de rosas
E o sol com o manto do seu oiro veste-a!
Alvo colar de pérolas pequenas
Guarda no estojo de coral da boca,
Seu passo é leve como o das camenas
E a estrada em que anda de magnólias touca.
Envergonhado o rouxinol se cala
Lhe ouvindo a voz: — que a sua voz de santa
Povoa a terra de aves, quando fala,
Povoa o céu de estrelas, quando canta!
Os olhos são-lhe quietos lagos onde
Seu luminoso espírito se espelha
E o coração, que a hóstia do amor esconde,
Aurilavrado artóforo semelha!
A asa que ao sol, cortando águas serenas,
Como um leque de prata, um cisne espalma,
Tem nódoas e tem máculas nas penas,
Comparada à brancura de su’alma!
Anima-a celestial, vivido sopro...
Rondam-lhe beijos rútilos os flancos!
Ah!... Certo foi um deus com um sacro escopro,
Quem lhe esculpiu os belos braços brancos!
Quando ela surge em meio de secretas
Harmonias e brilhos singulares,
— Cantam todos os pássaros e poetas
E iluminam-se todos os altares!
Mercúrio

AVANI M.

Esta deusa infantil que hoje vos mostro,
Ajoelhado, com a citara em sossego,
Lembra um miniaturesco ídolo grego
Diante do qual, como um pagão, me prostro.
Nítidas, do céu côncavo e alto, jorrem
Numa caudalosíssima fluência
Sobre sua arcangélica inocência
As línguas de oiro que no espaço correm.
A Humanidade, estúpida, de rastros
Contemple-a... Toda a Flora se desfolhe
Vendo-a, e do Alto, com raiva ofídica, a olhe
O ígneo exército etéreo e áureo dos astros.
Ovidius

ED. P.

Este valente espírito infernal
De expressão fisionômica jucunda
Que satiriza com ironia funda
Nossa grande sandice regional,
Sobre a espinha (refiro-me à dorsal)
Da pernosticidade vagabunda
Aplica, rindo, formidável tunda
Afora uma injeção intraventral.
A acreditar-se na metempsicose
Para que a gente fantasias goze
E veja aberrações que nunca viu...
Este endiabrado smart Eduardo Pinto,
É o espírito profano de Jacinto
Que no Espírito Santo ressurgiu.
Petronius

IVONE L.

D’“O Nonevar” no número último, é esta
Germânica e louçã sílfide leve
Que vem fechar com a sua mão de neve
O Calendário rútilo da Festa.
Ah! com certeza, sem que o orgulho a entrone,
Ceres, Vesta, Minerva, Juno e Elêusis
E a corte mitológica dos deuses
São escórias do céu, junto de Ivone.
Tentam da Inveja os ínfimos ofídios
Mordê-la. E em vão! Espera-os o hiante ocaso.
Ivone, adeus! Publius, Óvidius Naso
(Que é o nome inteiro) ou simplesmente:
Ovidius

J. A. F.

Baixíssimo, de mãos miudinhas, anda
Como um ventilador, sem ter descanso,
Seu pescoço magérrimo de ganso
Surge sempre roscofe na quitanda.
Para a tábua o mundo inteiro manda
Quando à goela lhe vem o ardor do ranço
Mas tem meiguices de carneiro manso,
E usa muito nos pés Sebo de Holanda.
Faz reportagens de valor enorme,
Quando a lua é minguante pouco dorme,
Há poucos dias, o Álvaro Monteiro
Lhe perguntou assim quase em segredo:
“Com que então, seu Totonho Figueiredo,
Seu maganão, V. é escopeteiro?!”
Petronius

VERSOS CARNAVALESCOS

Digno, como um presidente
— CLOWNESCO, tangendo guisos
Abro a válvula dos risos
Para alegrar esta gente.
Meu povo, não seja leso!
Reparem Manoel Hipólito
Das bricadeiras acólito
E peru de roda obesa.
Vejam como ele está teso!
O seu olho não balança.
Mas o que nele a esperança
Estrangula, e o põe de molho,
Não é, meus senhores, o olho
É o promontório da pança.
Boas-noites, seu Mesquita,
Deixe de fazer esgares,
Olhe a seta dos olhares
Daquela moça bonita!
Para que se precipita?!
Coma presuntos e engorde,
Mesquita, não durma, acorde,
V. é lá criancinha?
Agora uma perguntinha:
Seu Mesquita, V. morde?
Que fenomenais arranjos,
Que impulsos de bode esperto,
Será aquele de certo
Dr. Odilon dos Anjos?
Em matéria de marmanjos
Ninguém o excede, em verdade.
Possui tudo: — a exiguidade
Dos seus bigodes de gato;
E aqui não há nenhum rato
Que o vença em sagacidade.
Olhe o Benjamim Fernandes,
Sujeito de mãos gorduchas
Que é fabricante de buchas
E tenta transpor os Andes.
Usa umas pernas tão grandes,
Que até me causam receio,
É forte no bamboleio,
Tem pestanas de estopim,
Toma figa, Benjamim,
Vá de retro, bicho feio!
Possuo a harpa de David,
E embora, senhores, peque
Eu faço um salamaleque
À elegância de Nini.
Ninguém me expulsa daqui,
Não há ninguém que me expulse,
Faltam-me as rimas em ulce,
Que sorte aziaga e mesquinha,
Bravos de D. Donzinha
E da elegância de Dulce!
D. Áurea aceite deveras
Meus parabéns, olhe, aceite,
Eu peço que não enjeite
Estas palavras sinceras.
Rasgue as máscaras austeras,
Isto lhe não dá trabalho.
D. Nevinha Carvalho,
Responda, não vá embora,
Diga, por que é que a senhora
Não faz versos para O Malho?
Vamos fazer da Folia
Um alegórico mastro!
É D. Eurídice Castro
Quem no-lo fazer devia,
Mas fica para outro dia
Esta exótica incumbência,
A absurda resplandecência
Do carnaval continue
Que o povo, quando se influi
Não interrompe a alegria.
Como um soberbo paxá
Aqui termino. Aqui fico
(Entre parênteses) Chico
Solon ou Chico de Sá.
Como ele, talvez não há,
Raspou noutro dia o andó.
Às vezes, resmunga só
Premeditando atitudes
De elegância, come grudes
E escreve Dulce com O.
Chico das Couves

IMPROVISO

No ardor de ingenuidades folgazãs
Vive entre fartas ilusões travessas,
Parece que possui duas cabeças
E é a mais formosa das maracanãs.

QUADRA

De caras que inspiram tédio
A humanidade está cheia.
Para uma cara tão feia
Precisa haver um remédio.

QUADRAS COMERCIAIS

1
Certo ninguém se incomoda
Nem corre aziagos perigos,
Comprando os belos artigos
Lá da Rainha da Moda.
2
É maior que, juntamente,
O grande Etna e o Chimborazo
O Vesúvio do Vicente
Mais do Angelo Rattacaso.
3
Eu hoje em versos levanto,
Como uma hóstia na patena,
Todo o brilho e todo o encanto
Da notável Casa Pena.
4
Vem-me agora, com certeza,
A enormíssima vontade,
De proclamar a riqueza
Da formosa Casa Andrade.
5
Sonoridade de sino,
E vibrações estridentes
Proclamam as excelentes
Boas novas do Avelino.
6
Se a minha Musa não erra,
É um celestíssimo dom
Que Deus presenteou à terra
A Mediana de Aragon.
7
Apregoamos a eficácia
Contra as humanas morboses
Das profiláticas doses
Da Silva Lemos Farmácia.
8
O Observatório de Sagres
Predisse, como sabemos,
Os muitíssimos milagres
Da Farmácia Silva Lemos.
9
Nesta cidade onde o atraso,
Lembra uma cara morfética,
Fez monopólio da estética
A Loja do Rattacaso.
10
Garantimos, num assomo,
Não há remédio tão bom
E eficacíssimo como
A Mediana de Aragon.
11
Se, doente, por vezes andas,
Arrastando horrendos tédios
Vai à Farmácia Varandas
Que tens todos os remédios.
12
Sei que um chinês de rabicho
Lendo a búdica doutrina,
Fez propaganda na China
De tudo que há n’O Capricho.
13
Estrela não há que atraia
Mais do que os bicos e as rendas
E as finíssimas fazendas
Da loja de Antônio Maia.
14
Avantesmas e duendes,
Gênios maus da Natureza,
Fogem, perante a beleza
Do Capricho, de seu Mendes.