Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

A MORTE DE

D. IGNEZ DE CASTRO,
 
 
CANTATA.
POR
MANOEL MARIA BARBOSA DU BUCAGE;

A QUE SE AJUNTA O EPISÓDIO,

AO MESMO ASSUMPTO, DO IMMORTAL
LUIZ DE CAMÕES.
 
 
 

LISBOA, NA TYPOGRAPHIA ROLLANDIANA.

1824.

Com a licença da Meza do Desembargo do Paço.

As Filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo, chorando, memorarão.

Camões, Lusíad. Cant. 3.

A MORTE DE

D. INÊS DE CASTRO,
CANTATA.
 
 
 

A ULINA,

SONETO.
 

Da miseranda Inês o caso triste,

Nos tristes sons que a magoa desafina,

Envia o terno Elmano à terna Ulina,

Em cujos olhos seu prazer consiste.

Paixão que se a sentir não lhe resiste

Nem nos brutos sertões Alma ferina,

Beleza funestou quase divina,

De que a memória em lágrimas existe.

Lê, suspira, meu Bem, vendo um composto

De raras perfeições aniquilado

Por mãos do Crime, à Natureza oposto.

Tu és cópia de Inês, encanto amado,

Tu tens seu coração, tu tens seu rosto…

Ah! Defendam-te os Céus de ter seu Fado.

CANTATA.

Longe do caro Esposo Inês formosa

Na margem do Mondego,

As amorosas faces aljofrava

De mavioso pranto.

Os melindrosos, cândidos Penhores

Do Tálamo furtivo,

Os Filhinhos gentis, imagem dela,

No regaço da Mãe serenos gozam

O sono da Inocência.

Coro subtil de alígeros Favónios,

Que os ares embrandece,

Ora enlevado afaga

Com as plumas azuis o Par mimoso,

Ora, solto, inquieto

Em leda travessura, em doce brinco,

Pela Amante saudosa,

Pelos tenros Meninos se reparte,

E com ténue murmúrio vai prender-se

Das áureas tranças nos anéis brilhantes.

Primavera louçã, Quadra macia

Da ternura, e das flores,

Que à bela Natureza o seio esmaltas,

Que no prazer de Amor ao Mundo apuras

O prazer da existência,

Tu de Inês lacrimosa

As mágoas não distrais com teus encantos.

Debalde o Rouxinol, cantor de amores,

Nos versos naturais os sons varia,

O límpido Mondego em vão serpeia

C'um benigno sussurro, entre boninas

De lustroso matiz, almo perfume;

Em vão se doira o Sol de luz mais viva,

Os Céus de mais pureza em vão se adornam

Por divertir-te, ó Castro:

Objetos de alegria Amor enjoam

Se Amor é desgraçado.

A meiga voz dos zéfiros, do rio

Não te convida o sono:

Só de já fatigada

Na luta de amargosos pensamentos,

Cerras, mísera, os olhos;

Mão não ha para ti, para os Amantes

Sono plácido, e mudo;

Não dorme a fantasia, Amor não dorme:

Ou gratas ilusões, ou negros sonhos

Assomando na ideia, espertam, rompem

O silencio da Morte.

Ah! Que fausta Visão de Inês se apossa!

Que cena, que espetáculo assombroso

A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!

Em marmóreo salão de altas colunas

A Sólio majestoso, e rutilante

Junto ao régio Amador se crê subida;

Graças de neve a púrpura lhe envolve,

Pende augusto Dossel do teto de oiro;

Rico Diadema de radioso esmalte

Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;

Nos luzentes degraus do Trono excelso

Pomposos Cortesãos o orgulho acurvam;

A Lisonja sagaz lhe adoça os lábios,

O Monstro da Política se aterra,

E se Inês perseguia, Inês adora.

Ela escuta os extremos,

Os vivas populares, vê o Amante

Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;

O prazer a transporta, Amor a encanta;

Prêmios, dádivas mil ao Justo, ao Sábio

Magnânima confere,

Rainha esquece o que sofreu Vassala:

De sublimes ações orna a Grandeza,

Felicita os Mortais, do Cetro é digna,

Impera em corações… mas Céus! Qu'estrondo

O sonho encantador lhe desvanece!

Inês sobressaltada

Desperta, e de repente aos olhos turvos

Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.

Ministros do Furor, três vis Algozes,

De buídos punhais a destra armada,

Contra a bela Infeliz bramindo avançam.

Ela grita, ela treme, ela descora,

Os Frutos da ternura ao seio aperta,

Invocando a piedade, os Céus, o Amante;

Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,

Á suave atração da formosura,

Vós, bruto Assassinos,

No peito lhe enterrais os ímpios ferros.

Cai nas sombras da Morte

A Vítima de Amor, lavada em sangue,

As rosas, os jasmins da face amena

Para sempre desbotam.

Dos olhos se lhe some o doce lume,

E no fatal momento

Balbucia, arquejando: "Esposo, Esposo."

Os tristes Inocentes

Á triste Mãe se abraçam,

E soltam de agonia inútil choro.

Ao suspiro exalado,

Final suspiro da formosa Extinta,

Os Amores acodem.

Mostra a Prole de Inês, e a tua, ó Vênus,

Igual consternação, e igual beleza:

Huns dos outros os cândidos Meninos

Só nas azas diferem,

(Que jazem pelo campo em mil pedaços

Carcases de marfim, virotes de oiro)

Súbito voam dois do Coro alado:

Este, raivoso, a demandar vingança

No Tribunal de Jove,

Aquele a conduzir o infausto anúncio

Ao descuidado Amante.

Nas cem tubas da Fama o grão desastre

Irá pelo Universo:

Hão de chorar-te, Inês, na Hircânia os Tigres,

No torrado Sertão da Líbia fera

As Serpes, os Leões hão de chorar-te.

Do Mondego, que atônito recua,

Do sentido Mondego as alvas Filhas

Em tropel doloroso

Das urnas de cristal eis vem surgindo,

Eis, atentas no horror do caso infando,

Terríveis maldições dos lábios vibram

Aos Monstros infernais, que vão fugindo.

Já c’roam de cipreste a Malfadada,

E, arrepejando as nítidas madeixas,

Lhe urdem saudosas, lúgubres endechas.

Tu, Eco, as decoraste,

E, cortadas dos ais, assim ressoam

Nos côncavos penedos, que magoam:

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, Amores,

Que Inês morreu.

Mísero Esposo,

Desata o pranto,

Que o teu encanto

Já não é teu.

Sua alma pura

Nos Céus se encerra:

Triste da Terra

Porque a perdeu!

Contra a cruenta

Raiva ferina

Face divina

Não lhe valeu.

Tem roto o seio,

Tesouro oculto,

Bárbaro insulto

Se lhe atreveu.

De dor, e espanto

No carro de oiro

O Nume loiro

Desfaleceu.

Aves sinistras

Aqui piaram,

Lobos uivaram,

O chão tremeu.

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, Amores,

Que Inês morreu.

FIM DA CANTATA.

 

 

 

EPISÓDIO DO GRANDE

LUIZ DE CAMÕES.
À MORTE DE
D. INÊS DE CASTRO.

CXVIII.[1]

. . . . . . . . . .

O caso triste, e digno de memória,

Que do sepulcro os homens desenterra,

Aconteceu da mísera, e mesquinha,

Que despois de ser morta foi Rainha.

CXIX.

Tu só, tu puro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua,

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres áspero, e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano.

CXX.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,

De teus anos colhendo doce fruito,

Naquele engano da alma, ledo, e cego,

Que a fortuna não deixa durar muito;

Nos saudosos campos do Mondego,

De teus formosos olhos nunca enxuito,

Aos montes ensinando, e às ervinhas,

O nome que no peito escrito tinhas.

CXXI.

Do teu Príncipe ali te respondiam

As lembranças que na alma lhe moravam;

Que sempre ante seus olhos te traziam,

Quando dos teus formosos se apartavam;

De noite em doces sonhos que mentiam,

De dia em pensamentos que voavam;

E quanto enfim cuidava, e quanto via,

Eram tudo memórias de alegria.

CXXII.

De outras belas Senhoras, e Princesas,

Os desejados tálamos enjeita;

Que tudo enfim, tu puro Amor, desprezas,

Quando um gesto suave te sujeita.

Vendo estas namoradas estranhezas

O velho pai sisudo, que respeita

O murmurar do povo, e a fantasia

Do filho, que casar-se não queria:

CXXIII.

Tirar Inês ao Mundo determina,

Por lhe tirar o filho que tem preso;

Crendo co'o sangue só da morte indina,

Matar do firme amor o fogo aceso.

Qual furor consentiu, que a espada fina,

Que pôde sustentar o grande peso

Do Furor Mauro, fosse alevantada

Contra uma fraca dama delicada!

CXXIIII.

Traziam-na os horríficos algozes

Ante o Rei, já movido à piedade,

Mas o povo com falsas e ferozes

Razões à morte crua o persuade.

Ela com tristes e piedosas vozes,

Saídas só da mágoa, e saudade

Do seu Príncipe, e filhos, que deixava,

Que mais que a própria morte a magoava:

CXXV.

Para o Céu cristalino alevantado

Com lágrimas os olhos piedosos;

Os olhos, porque as mãos lhe estava atando

Um dos duros ministros rigorosos:

E despois nos meninos atentando,

Que tão queridos tinha, e tão mimosos,

Cuja orfandade como mãe temia,

Para o avô cruel assim dizia:

CXXVI.

Se já nas brutas feras, cuja mente

Natura fez cruel de nascimento;

E nas aves agrestes, que somente

Nas rapinas aéreas tem o intento;

Com pequenas crianças viu a gente,

Terem tão piedoso sentimento,

Como co'a mãe de Nino já mostraram,

E co'os irmãos que Roma edificaram:

CXXVII.

Ó tu, que tens de humano o gesto, e o peito,

(Se de humano é matar uma donzela

Fraca, e sem força, só por ter sujeito

O coração a quem soube vencê-la)

A estas criancinhas tem respeito,

Pois o não tens à morte escura dela:

Mova-te a piedade sua, e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha.

CXXVIII.

E se vencendo a Maura resistência

A morte sabes dar com fogo, e ferro;

Sabe também dar vida com clemência

A quem para perdê-la não fez erro.

Mas se to assim merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente.

CXXIX.

Põe-me onde se use toda a feridade;

Entre leões, e tigres; e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei.

Ali co'o amor intrínseco, e vontade,

Naquele por quem mouro, criarei

Estas relíquias suas que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste.

CXXX.

Queria perdoar-lhe o Rei benino,

Movido das palavras que o magoam;

Mas o pertinaz povo, e seu destino,

Que desta sorte o quis, lhe não perdoam.

Arrancam das espadas de aço fino,

Os que por bom tal feito ali pregoam.

Contra uma dama, ó peitos carniceiros,

Ferozes vos mostrais, e Cavaleiros?

CXXXI.

Qual contra a linda moça Policena,

Consolação extrema da mãe velha,

Porque à sombra de Aquiles a condena,

Co'o ferro o duro Pirro se aparelha:

Mas ela os olhos, com que o ar serena,

(Bem como paciente e mansa ovelha)

Na mísera mãe postos, que endoudece,

Ao duro sacrifício se oferece:

CXXXII.

Tais contra Inês os brutos matadores,

No colo de alabastro, que sustinha

As obras com que amor matou de amores

Àquele que despois a fez Rainha,

As espadas banhando, e as brancas flores,

Que ela dos olhos seus regadas tinha,

Se encarniçavam férvidos, e irosos,

No futuro castigo não cuidosos.

CXXXIII.

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,

Teus raios apartar aquele dia,

Como da seva mesa de Tiestes,

Quando os filhos por mão de Atreu comia.

Vós, ó côncavos vales, que pudestes

A voz extrema ouvir da boca fria,

O nome do seu Pedro que lhe ouvistes,

Por muito grande espaço repetistes.

CXXXIIII.

Assim como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida, e bela,

Sendo das mãos lascivas maltratada,

Da menina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido, e a cor murchada;

Tal está morta a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas, e perdida

A branca e viva cor, co'a doce vida.

CXXXV.

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram;

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram:

O nome lhe puseram, que ainda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são água, e o nome amores.

CXXXVI.

Não correu muito tempo que a vingança

Não visse Pedro das mortais feridas;

Que em tomando de Reino a governança,

A tomou dos fugidos homicidas:

De outro Pedro cruíssimo os alcança;

Que ambos imigos das humanas vidas,

O concerto fizeram duro, e injusto,

Que com Lépido, e António fez Augusto.

FIM DO EPISÓDIO.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] N. B. Os números das oitavas são relativos ao 3º Canto, de que são extraídas, etc.