Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Conversas, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Simplicidade

O telefone

Fraqueza

Desencanto

Virtude

Atitudes

Afetação

O dote

Os bárbaros

A mediocridade

A honra

Amavios

Finados

Utopia

Nômades

Mentiras

A moda

Servilismo

Timidez

Consciência

A felicidade

Monotonia

Solidão

Ideal

A fé

SIMPLICIDADE

    — Tiro das tuas palavras o conceito que elas sugerem.

    — E qual é ele? Vejamos...

    — É que em tudo quanto me tem ultimamente acontecido só vejo uma causa, uma única: minha bondade. Sou boa de mais.

    — És simples.

    — Simples? Porque não dizes francamente: tola?

    — Não; insisto no que disse: simples. Tens, como se costuma dizer, o coração na boca. A tua bondade transborda em ternura, mas essa bondade compromete pelo excesso e também por má aplicação.

    Um milionário que se pusesse à janela do seu palácio, entre cofres abarrotados de ouro, lançando moedas à rebatinha, seria tomado por doido e, desde logo, levado para um manicômio.

O que fazes com a tua excessiva ternura é tanto como isso. A bondade deve ser pesada na balança da ponderação, dando-se tanta quanta baste para que produza o benefício desejado. A demasia permitirá, a quem a recebe, o direito de a julgar segundo a própria maldade.

     És meiga, naturalmente carinhosa, incapaz de maltratar a quem quer que seja e, demais a mais, tímida.

    Tudo isto, que revela a perfeição da tua alma, concorre para expor-te aos males que tens sofrido — desde a ingratidão até quase a afronta e, entre tais extremos todos os abusos dos que, descobrindo a tua fraqueza sentimental, entram por ela causando-te os aborrecimentos de que te queixas.

    Quanto mais precioso é o tesouro maiores devem ser os cuidados no seu resguardo.

    Ninguém confia preciosidades a uma gaveta sem chave: guarda-as em cofre de ferro, com fechadura de segredo.

    Deve-se ser bom, visto que a bondade é a expressão divina d’alma, mas com cautela.

    A rosa não se nos nega, inclina-se toda na haste a oferecer-se, mas se a não colhemos com jeito fere-nos com os espinhos.

    Tu não recebes em tua casa, acolhendo-o na intimidade, ao primeiro transeunte que te bate à porta. E, se tens escrúpulos em dar entrada no lar ao estranho, como te abres em sorrisos com uma criatura com quem pela primeira vez te encontras em um salão e tens com ela confidencias que são segredos de tua alma?

    Se não consentes que violem as gavetas dos teus móveis, onde guardas fitas e enfeites, como expões abertamente a um estranho, cujo caráter desconheces, o que tens de mais íntimo e precioso: a alma?

    Fazes mal, arriscas-te a muito e o que tens sofrido dos ingratos, aos quais tens acolhido com tanta meiguice, bem pode ser um aviso da Providência para que te ponhas em guarda contra os infames.

    Afirmam os filósofos que a mulher é um ser enigmático em cuja alma, que é como um labirinto, quanto mais se aprofundam mais se acham confundidos. Esse labirinto, minha amiga, é a nossa única defesa.

    Façamos como a aranha que tece o fio da sua teia, não para que sirva de guia, mas para que enlice e prenda.

    Se dissermos o nosso segredo terrível perderemos a nossa força que é... nenhuma.

    Sim, nenhuma. Nós somos como esses animaizinhos frágeis que, por não disporem de presas nem de garras, servem-se da astúcia e, com ela, conseguem vencer os mais poderosos.

    O teu mal é a simplicidade. Caminhas entre inimigos completamente desarmada e, mais ainda, denunciando as próprias fraquezas. Fazes mal. Sê mulher, quero dizer: sê maliciosa e sutil.

    — Queres dizer: hipócrita e má...?

    — Nem hipócrita nem má: vive como devemos viver.

    — Transformando-me no que não sou...? Nasci assim...

    — Nasceste assim... Ora, minha amiga. Nós nascemos nuas, nem por isso aparecemos na sociedade como entramos na vida. Pois se trajamos o corpo, porque não havemos de vestir a alma com aquilo que chamamos discrição e enfeites de convencionalismo?

    Nem todos os nossos pensamentos saem em palavras porque se saíssem fariam escândalo. Compomos as nossas frases de acordo com o círculo em que elas têm de soar; vestimo-las, não é verdade? Tu, não. Há frases tuas que seriam despudores cínicos se não fossem ingenuidades. Não tens malícia e, como o pudor é filho da malícia, não havendo esta não pode haver aquele. Tais frases, porém, que, para nós, as tuas amigas, são inocentes e encantadoras como crianças travessas, os estranhos interpretam maldosamente e de tais interpretações tens tido ultimamente as provas; e se não te corrigires quem sabe o que ainda poderá suceder!

    Falo-te como amiga. Sou mais velha do que tu e ando há mais tempo nesse mundo complicado, cheio de enredos, entralhado de intrigas que se chama a sociedade, onde todos se festejam sorrindo, não por amizade, mas para que se lhes vejam os dentes. Arma-te, exercita- te, deixa essa simplicidade...

    — A minha pele de burro, como a da história...

    — Não, a tua pureza infantil e lembra-te que vives entre feras. Sê astuta e prudente, pesa bem as palavras que disseres e pratica a bondade de modo que te agradeçam a generosidade, mas que te não chamem de tola nem tomem o impulso do teu coração por uma fraqueza do teu caráter. Sê boa com altivez como o sol, que ilumina lá de cima.

O TELEFONE

     — Suprimiste o telefone?!

     — Sim. Mandei retirar.

     — Ávaro!

     — Não, não foi por economia nem como protesto contra as extorsões da “Light”. Sou brasileiro, portanto resignado, deixo-me explorar pela canadense como, segundo afirmam os ribeirinhos dos rios amazônicos, o jacaré se deixa passivamente devorar pela onça. Não foi por avareza e, queres que te diga? estou convencido de que a companhia, que é hoje, neste país submisso, a única força verdadeiramente poderosa e incontrastável, não sofre prejuízo algum porque há de achar meios de ressarcir, nas contas do consumo de luz, o que eu anteriormente lhe pagava, à boca do cofre, pelo telefone.

     — Então, porque foi?

    — Por higiene moral. O telefone, nesta cidade, é o veículo de todas as torpezas. É a injúria, é a calúnia, é a difamação, é a intriga, são todas as saburras das línguas maldizentes que te entram em casa pelo fio. Soltas os cães no jardim, aferras trancas às portas, pões o revólver à tua cabeceira, pagas ao vigilante para que te ronde o portão, defendes-te de todos os modos contra possíveis assaltos de malfeitores, tudo debalde porque tens a brecha por onde a infâmia penetra. O pior ladrão é o que te furta a tranquilidade e investe com a tua honra e, contra esse, meu caro, não há polícia nem defesa possível. Onde não chega o sol insinua-se a vilta, sai do aparelho como o fétido de um depósito de lixo. É incômodo e repugnante. Para que havia eu de ter na intimidade honesta da minha casa um esgoto a golfar espurcícias, poluindo os ouvidos de minha mulher e das minhas filhas? Era torpe demais. Mandei-o retirar.

    — E como te arranjas...?

    — Ora! Os nossos antepassados viveram perfeitamente sem o telefone.

    — Sim, viveram, não há dúvida, mas os tempos eram outros...

    — De acordo, mas a verdade é que viveram e com tranquilidade e asseio d’alma. O telefone é um serviçal misterioso, sempre pronto a atender-nos, será um gênio doméstico, mais expedito do que Hermes, o mensageira alipede do Olimpo... Não lhe nego a utilidade nem lhe desconheço as vantagens, apregoo-as e digo-te que muito me custa abster-me desse prestimoso correio, mas... por melhor que fosse o criado que tivesses: fiel, inteligente e ágil no serviço, tu não o conservarias contigo se, volta e meia, o surpreendesses em praticas obscenas, a estourar palavrões, a cuspinhar a casa, enlameando-a com os pés e atirando-lhe para os cantos pontas de cigarros. Pois o telefone fazia mais do que isso aqui dentro. Despedi-o...

    — E os negócios? a vida...?

    — Arranjo-me como posso. É mais trabalhoso, não há dúvida, mas tem vantagens: não me incômodo e forço os amigos a virem ver-me. Quanto aos negócios, trato-os no escritório, onde conservo o meu telefone comercial. O que eu não quero é a minha casa envilecida. Lá em baixo, pouco me importa. Quem atende aos chamados é o servente e depura todas as comunicações, respondendo apenas a conhecidos; a mim só transmite recados de interesse...

    — É o diabo... Às vezes, há casos...

    — Sim, sei o que queres dizer e seria tolice negar a utilidade do telefone, mas... Ora, ouve cá: Se, para ires de um lugar a outro tivesses dois caminhos: um, cortando direito ao teu rumo, mas através de um lamaçal atoladiço, fervilhante de bichos, de onde saísses coberto de lodo, com sanguessugas nas pernas e gias dentro das botas, e outro longo, sinuoso, mas seco e limpo, com sombras d’árvores para descanso sossegado e aromas de flores de silvedo, qual deles preferirias...?

     — Ah! isso...

     — Pois é o caso, meu amigo. O telefone abrevia a jornada, mas no melhor da travessia, lá nos afundamos num fojo. É um intruso que se nos mete de permeio e que, por impaciência, porque nos encontra no caminho, investe conosco desabridamente aos insultos em calão grosseiro e, se o repelimos com dignidade, assanha-se ainda mais e o chorrilho vai ao máximo da infâmia. Que se há de fazer? Como reagir? É um mistério depravado que se não denuncia; é uma voz anônima, uma injúria em circulação, errando como as infecções pestilentas que andam dispersas no ar, na luz, em tudo. Evita o morbos que te penetra pela inspiração, pelo tato; foge ao bacilo, defende-te do micróbio. Impossível! Dá-se o mesmo com o telefone.

     Para que havia eu de manter aqui dentro um instrumento de discórdia, a espalhar mentiras, uma trombeta de difamação soprada por mil bocas, um condutor de sordicies que me conspurcava a casa? Não!

    Para infamar temos o “apedido”, a mofina, a carta anônima, o comentário vadio das portas das lojas, o boquejo dos salões... Mas admitir o difamador no lar, tê-lo na convivência da família, sujeitando-a aos vexames com que se lembre de a injuriar o primeiro desocupado, não!

    Dirás que sou um esquisito, um “arcaico” que ainda me não adaptei ao que por aí chamam “civilização”. É possível. Mantenho ainda a pureza dos costumes antigos. Os nossos bons velhos diziam que as paredes tinham ouvidos e resguardavam os seus segredos. Agora, meu amigo, as paredes têm ouvidos e bocas, ouvem e falam...

    — E terão olhos, dentro em breve.

    — Tanto pior para a Honra, que agora se chama Audácia. Não conto chegar a esse tempo indiscreto, mas dos ouvidos e da boca das paredes, ao menos aqui em casa, estamos livres: eu e os meus.

    Quantas tragédias por aí devidas ao telefone — intrigas enredando a vida de famílias, incompatibilizando casais, gerando a discórdia em lares felicíssimos... Como evitar males tais?

    — É não dar atenção.

    — Não dar atenção... Isso dizes tu. A calúnia, meu amigo, é como a superstição. Sorrimos com superioridade da crendice dos simples e, todavia, não só nos deixamos enlear nos tais “casos misteriosos” como ainda evitamos, mais do que com repugnância, com medo, valendo-nos de signos cabalísticos e de amuletos, objetos e pessoas aos quais atribuímos influência nefasta. Repelimos a “superstição” ridícula, mas o terror persegue-nos, a preocupação flui e reflui como uma onda que vai e vem e que, não raro, esbarronda toda a nossa muralha filosofia, entra-nos assoladoramente pela alma levando no roldão todas as teorias positivas com que nos havíamos fortificado contra tais fraquezas... formidáveis. Abusões, tolices de que não escapamos, tu, eu, todos, enfim. Assim a calúnia. Surge, repelimo-la, mas o espírito fica abalado e, pelas abertas do aleive entra a suspeita, a terrível suspeita, à qual Otelo, no furor do ciúme, preferia a verdade ainda a mais monstruosa.

    A calúnia lembra-me esses “avisos” telepáticos que nos anunciam desgraças. Às vezes, quase sempre, nada acontece, mas a expectativa angustiosa persiste no espírito. A virtude mais límpida tisna-se se lhe cai em cima uma insinuação malévola e d'essas o telefone jorra-as a golfos. É um Pasquino domestico. E o pior - digo-te aqui, porque tenho provas verificadas, - é que os mais useiros e vezeiros nessas práticas nefandas não são, como por aí se assoalha, os vadios das ruas, os taberneiros sem brio. O povo não dá para tais coisas, tem lá os seus afazeres e a sua manga laxa é outra. Há por aí casas de muita prosápia nas quais, mal o chefe sai para o trabalho, logo a mulher e as filhas, em alvoroço de varejeiras famintas de carniça, atiram-se ao aparelho e começa o que por aí se chama “o trote”. É a infecção.

     Sabes o que me decidiu a mandar retirar o telefone? As lágrimas de minha filha. A pobrezinha fora na véspera a um chá dançante, onde estreara um vestido. Chamada, no dia seguinte, ao aparelho, foram tais as vilezas que ouviu que desatou a chorar e, corrida de vergonha, atirou-se-me nos braços em soluços. A infamadora, por mais que disfarçasse, foi traída pela voz e...

     — Quem era...?

     — Não a conheces, ou talvez conheças. Tem o nome do pai, que é puro. Respeito-o. É uma dessas criaturinhas fúteis que por aí andam à solta, na correnteza da vida. Essa não envenenará mais nunca a alma das minhas crianças, nem essa nem outras...

     — Muito bem... Agora ouve-me. Tens razão, não digo o contrário, mas ouve. Nós, que vivemos no torvelinho dos negócios; nós, que somos forçados a acompanhar o revoluteio do maestro não podemos dispensar o telefone. É um mal, dizes tu; de acordo: mas é a vibração nervosa, a atividade, a energia, a vida, enfim. Tu mesmo disseste há pouco. Essas infâmias que transitam pelo telefone são como átomos maléficos que andam dispersos no ar, que revoluteiam nos raios de sol. E porque o ambiente está infeccionado de elementos perniciosos deixas de respirar e fechas os olhos à luz? Não! Por quê? Porque no ambiente de morte está a vida, como na Árvore do Paraíso estavam o Bem e o Mal.

    Meu caro amigo, o Progresso aduba-se como os canteiros. Não te abaixes até o estrume, colhe apenas a flor na haste e... manda reinstalar o telefone porque, francamente, não compreendo uma casa decente sem telefone, tenho a impressão de que a coitada é surda-muda.

    Agora, por exemplo, eu jantaria contigo se pudesse telefonar à minha mulher, mas nestas alturas, a esta hora... Não, meu velho... Os cães também incomodam quando se põem a ladrar à noite... mas são necessários à casa. Que se há de fazer? Queres a perfeição... É impossível, meu amigo, ou antes, seria monótona. Assim pensava Ulisses e eu penso com ele; eu e toda a gente.

    Uma casa no alto da Tijuca sem telefone... Que absurdo!

FRAQUEZA

    — Porque o acusas? Que culpa tem ele?

    — Que culpa tem? Tem-na toda.

    — Como!

    — Ora... como...!

    — Mas é então um miserável!

    — Não. É um fraco...

    — Isso de fraqueza, meu caro...

    — É um fraco. É o mesmo ingênuo de outr’ora, com mais idade, já se vê, mais corpo e uma barbicha caprina, que é a sua única preocupação seria.

    Lembras-te dele no colégio, sempre friorento, encolhido na fardeta, empalidecendo à entrada     dos   professores, gaguejando lacrimosamente se o chamavam à pedra, estarrecido diante dos maiores, buscando-os de rasto como os cães buscam os donos, achegando-se-lhes à companhia, não por estima, mas por necessidade humilde de proteção? Pois bem, aquela alma débil, lassa, em vez de retemperar-se com o tempo, avigorando-se em caráter como que, ao dilatar-se, mais se diluiu. O que nela era timidez tornou-se pusilanimidade e, como sempre lhe faltou energia, para dar resistência à vontade, aí o tens reduzido a esse ser lânguido, frouxo, subserviência mole, de dobrez covarde, trambolhando à matraca pela vida como essas babugens que flutuam nas ondas.

    Aceita as situações, quaisquer que elas sejam, ainda as mais ignóbeis, como a atual, sem revolta, com a mesma passividade com que goza os dias de saúde e suporta as enfermidades, entendendo, lá no seu íntimo de fair, que tudo vem da mesma origem, com a mesma força incontrastável, contra a qual não há defesa possível.

    Um calo que lhe martirize o pé ou um mandado de despejo que o ponha na rua com os cacarecos e os canários, uma cólica ou um insulto são, para ele, coisas inevitáveis, decretos do Alto.

    Tudo na vida acontece porque tem de acontecer, diz ele. Ninguém detém as horas como não conjura a sina. Pare-se o relógio e o Tempo prosseguirá na sua marcha luminosa ou escura, pelos dias e pelas noites e, como o Tempo, o destino. Para que reagir? Não vale a pena. O melhor é a gente resignar-se, atirar-se debruços, com a cabeça em terra, até que passe a desgraça como fazem os beduínos no deserto quando o simum assopra sublevando as dunas. É o Bovary meu caro, um Bovary mais ridículo do que o outro e com maior capacidade de resignação.

     — Um cínico, é que me está parecendo que vai sair de tudo isto.

     — Não, não é...

     — Que é, então?

     — Sei lá. Tu nunca viste um carretel quando lhe pisam a linha que se vai desenrolando, desenrolando à medida que os passos se adiantam levando-a de rasto? Enquanto há fio a correr, a desenrolar-se o carretei baila, vai-se-lhe de todo a linha e ei-lo vazio, inútil, atirado a um canto da casa até que uma criança o apanha para brinquedo ou a vassoura o leva de roldão, para o lixo. Pois é isso, meu caro. Pisaram-lhe o fio, e ele foi-se deixando desenrolar, deu tudo que tinha, tudo e está no que hoje vês...

     — À espera da vassoura... E a mulher, afinal?

     — A mulher era uma criatura feita para a vida simples, uma dessas almas serenas que respiram bondade e enchem alegremente a casa de luz e de vida sonora com o sorriso cândido que abrem para todos e para tudo e, trabalhando, cantam como as abelhas zumbem quando se afanam em volta dá colmeia.

     Conheci-a solteira, no Andaraí. Criou-se em ambiente de modéstia e de religião. O seu pequeno mundo era a casa com o jardim todo plantado de rosas e de bogaris. Quando sabia à rua, para ir à igreja, era entre os pais. Com a beleza graciosa e cheia de inocência emoldurada pela severidade dos dois velhinhos, dava-me uma impressão de cena antiga, uma dessas gravuras nas quais se vê uma cabecinha de castelã na ogiva de um solar todo enramado de hera.

     O ideal da esposa, meu amigo, e seria um exemplo de virtude, uma dessas honras domésticas que faziam o orgulho dos seus maiores se outro marido a houvesse tomado a si... Mas ele era o primo, frequentava a casa como parente, sempre junto dela... Habituou-se com ele e o hábito, criando raízes, é possível que tenha dado essa planta que dizem nascer no coração e que outr’ora se chamava — amor. Ele tinha alguma coisa, como sabes, além do lugar de amanuense na secretaria. Ela, além do enxoval, trouxe uma casa e apólices, o bastante para viverem num paraíso. Mas o tempo de ventura foi breve: menos de um ano, talvez. Cedo começou a “corrida para o abismo”.

     Eram duas fragilidades lançadas na correnteza trágica: ele, um abúlico; ela, uma deslumbrada.

     Precipitaram-se de mãos dadas, correram para o “sabbat” sorrindo e foi tudo, meu amigo. Vi-os nesse tempo e adivinhei o que se está passando. Começou pelos teatros onde fizeram as primeiras relações: d’aí entraram pelos chás, abriram os salões, foram veranear nas montanhas, deixando-se arrastar por todos os desvairamentos da vida tentacular.

    Adquirido o impulso não foi mais possível sustar a queda. A corrida tornou-se vertigem — ele e ela.

    Um dia apartaram-se, cada qual a seu rumo. Às vezes avistavam-se no torvelinho, acenavam-se adeuses, tentavam deter-se arrependidos, estendiam-se de longe as mãos, mas o remoinho levava-os como àqueles bailarinos, de que nos fala Bernardes, que giravam, rodopiavam na dança de maldição, cavando com os pés a própria sepultura em que se enterravam.

    O dinheiro esgotou-se, mas o vício ficou como fica o lodo nas terras alagadas e lá iam eles, cada qual à sedução que o atraía: um ao jogo, outra... Encontravam-se em casa, na desordem do lar desmantelado, exaustos ambos. Mal se falavam, mal se viam. Ela não dava pela devastação do esposo, ele não via as joias que ela trazia... E hoje é o escândalo que todos comentam e que é assunto à tona das palestras mundanas.

    O mais interessante é que os dois encontram-se por aí... Sabes que ela tem agora automóvel, um lindo “Mercedes” que lhe deu o banqueiro? Pois há dias encontrei-os em Copacabana, ele e ela, no automóvel do terceiro, de mãos dadas, juntinhos como dois namorados. Foram-se, não deram por mim. O landaulet voltou com um passageiro apenas: ela. Ele deixou-se, naturalmente, ficar em algum recanto, beberricando aperitivos... para jantar com outra. É a vertigem... Não há salvação possível. O coitado foi sempre assim, desde o colégio — um fraco. Perdeu-se, por fraqueza, perdeu a mulher, a ventura, o brio.

    — Não! tudo que quiseres, menos isso. Ele não podia perder o que nunca teve: brio. E queres que te diga? essa tal fraqueza... é hoje a força de muita gente.

DESENCANTO

    — Conheces a história de Melusina?

    — O romance medieval de Jean d’Arras?

    — Não. A que sei não a li em livro: contou-me, na minha meninice, certa velhota, que era um fabulário vivo.

    — Naturalmente alguma paráfrase popular do romance.

    — Talvez. É o caso de uma princesa de formosura deslumbrante que um príncipe, que andava à caça, surpreende à beira de uma fonte penteando, com pente de ouro, os longos cabelos, luminosos como fios de sol.

    Tanto foi vê-la como, instantaneamente, se lhe acendeu o coração em amor e, tomando-a, em rapto, nos braços, lançou o cavalo a galope recolhendo ao castelo com a criatura misteriosa.

     Podendo, pelo direito da força, possuí-la, respeitou-a honesta e veneradamente, oferecendo-lhe a mão de esposo, as riquezas do seu feudo, a glória do seu nome e, mais que tudo: o seu amor. Aceitou a princesa impondo-lhe uma condição sem a qual, ainda que também o amasse, mais do que à própria vida, não poderia esquecer ao seu pedido.

     Quis o príncipe conhecer tais arras. E disse-lhe a princesa:

     — Dar-me-ei por vossa e para o todo sempre se consentirdes que de vós me aparte uma noite em cada mês, dormindo em aposento do castelo que eu mesma escolherei onde me convenha. E por mais estranho que vos pareça este capricho não poreis indústria em indagar o porque de tal procedimento. Há coisas que se não devem verificar sob pena de morte ou desengano. Confiai em mim certo de que em tudo que eu fizer mais se acendrará o meu amor e a virtude, que é o melhor dote que vos trago, mais crescerá em limpidez no meu coração e em honra para o vosso nome, que será o esplendor da minha vida. Se acordardes no que vos peço tereis em mim a esposa que mereceis; se, porém, por desconfiança ou zelo injusto, tentardes descobrir o motivo do meu apartamento, ai! de vós e ai! de mim...!

     Jurou alvoroçadamente o príncipe que tudo faria conforme lhe era pedido e realizaram-se as bodas com festas opíparas e suntuosas, como são sempre as celebradas... nas histórias.

    Correu o mês nupcial em doce lua de mel. Mas lá veio a primeira noite das que pedira a princesa.

    Não disse palavra o príncipe. Tanto, porém, que viu sair a amada para o destino a que se referira, indo pernoitar sozinha na torre mais alta do castelo, entrou-lhe a suspeita no coração. Não dormiu, perlongando agitadamente a câmara a largos passos, a imaginar traições, cenas lúbricas com súcubos e trasgos, visto que homem algum, ainda o mais ousado, se atreveria a atravessar os corredores do castelo guardados por sentinelas com ordem de matar quem quer que aparecesse em tais passagens.

    Que faria em tão alto e temeroso refúgio, habitação de estriges e morcegos que esvoaçavam chirriando e aos trissos, a tímida puelia que, em seus braços, regelava e tremia quando as corujas gargalhavam no silêncio?

    Que mistério haveria naquela fuga para tão alta solidão? Enfim... E ao romper d’alva, com o canto alegre dos passarinhos, regressou a princesa ao tálamo do esposo.

    Veio, porém, outra noite das tais e o príncipe não se conteve em si. Deixou ir a princesa e, pé ante pé, seguiu-lhe os passos cosendo-se com as paredes. Viu-a entrar no apo sento, ouviu ranger o ferrolho. Sabendo, porém, de uma fresta em certo ponto do muro decidiu-se a olhar por ela e viu o que nunca poderia imaginar.

     A criatura, toda beleza e meiguice, mal entrou no salão da torre arrancou violentamente as vestes e, nua, começou a retorcer-se em colubreios e, assim como se enroscava, ia-se-lhe a parte inferior do corpo transformando em cauda de serpente, grossa, coberta de escamas, a rabear coleantemente, flagelando as lajes às rabanadas. No auge do espanto em que o pôs a hedionda metamorfose o misero, desvairado, não pode conter um grito.

     Ouviu-o a princesa e, logo, aprumando-se na cauda, com torcicolos de agonia, nos quais lhe estalavam, em estrépito, não só os anéis serpentinos como todo o busto humano, bradou em grande desespero, compreendendo que fora vista pelo esposo perjuro:

     “Traíste-me! e, por tal desobediência curiosa, ó imprudente! perdes-me para o sempre!”

     Tais palavras não eram ditas quando se lhes lançaram das espáduas duas longas asas de vampiro e, fugindo em voo pela janela, perdeu-se na noite a princesa dos cabelos de ouro.

     — Mas a que vem essa história?

     — Vem em resposta à pergunta que me fizeste sobre a ruptura do meu quase noivado.

     — Como! Pois é possível?!... Aquela formosa criatura...?

     — Melusina, meu amigo. Não sei se o príncipe andou bem ou mal subindo à torre para verificar o que nela se passava com a sua esposa. Eu, francamente, em caso idêntico, faria o mesmo. E tu?

     — Eu?! Em princípio: não aceitaria a condição imposta. Isso de dormir fora de casa não é brincadeira que se permita a uma senhora a quem se dá o nome e o mais que esse nome envolve. Mas que houve contigo, afinal? Viste alguma coisa? Cauda de serpente?

     — Vi o bastante para justificar o meu procedimento e a viagem à Europa a que ele me vai forçar. Sabes que passei quinze dias na fazenda dos meus ex-sogros, propriedade que me viria às mãos em herança... se a não levarem os credores. Pois nessa quinzena bucólica, meu velho, desanuviaram-se-me os olhos.

     Ao príncipe da história foi a curiosidade que revelou o monstro híbrido; a mim bastou a intimidade de uns dias.

     Ah! meu amigo, a minha Melusina...! Felicita-me porque, em verdade te digo que escapei de boa. A minha ex-noiva...!

     Uma coisa é vê-la em salões e teatros, em chás e tertúlias, preparada para a sociedade, com o ar mundano e as maneiras convencionais; outra coisa é vê-la na intimidade, sem artifícios e rebuços de hipocrisia...

    — Horrenda, hein?

    — Não, as graças são autênticas, com uns toques de requinte aqui, ali, já se vê. A alma é que é outra. Melusina tinha da serpente a cauda, a minha ex-noiva tomara ao ofídio o que ele tem de pior: o veneno.

    Tudo o que nela, em público, é encanto, brandura e galanteio, polidez e meiguice transforma-se, na intimidade, em arrogância e grosseria. E a vaidade, meu amigo, e os caprichos...!

    O pai, para satisfazer-lhe as exigências, faz o que não deve, cavando a miséria que será o túmulo da sua velhice enferma. A mãe, coitada...! O que ela ouve se, por qualquer motivo, cansaço ou doença, recusa-se a acompanhar a mimosa senhorita aos saracoteios elegantes, aos cinemas e chás por aí além.

    Quinze dias de intimidade bastaram para livrar-me do sortilégio endemoninhado daqueles olhos verdes, do enfeitiçamento que me prendia àquela criatura, que é um misto de disfarces. E depois, meu caro: absolutamente inútil, sem a mais ligeira noção da vida: um cérebro que é um rolo de fitas, fitas de enfeites e de cinemas: futilidade, e só.

    A minha ida à fazenda valeu por uma estação de cura, porque salvou-me de um mal irremediável. Fiado na amostra que vira nos salões ia adquirir a “fatura” quando a minha boa estrela trouxe-me o convite para a tal caçada na fazenda, proporcionando-me o ensejo de ver de perto a serpente. Bendita intimidade...!

    — E agora?

    — Agora? Agora vou dar um giro pelo mundo, curar-me da dentada com que me abriu ferida no coração a minha Melusina.

    — Serpente, hein? e das tais de chocalho. Pois faze como eu que não me exponho a dentadas. Acautelo-me quanto posso, porque conheço o Butantã em que vivo.

VIRTUDE

    — A tua comparação não é feliz. Espelho, não. A virtude será o vidro puro, sem estanho; o vidro límpido, transparente, que não dissimula; o vidro que o olhar atravessa como a luz cinde o espaço.

    O espelho, se, por um lado, reflete o que se lhe antepõe, desde o átomo de pó até a mais vasta e profunda perspectiva, no verso é opacidade. Chora e sorri com igual indiferença, reproduzindo instantaneamente as mais antagônicas imagens. Imprime, com o mesmo brilho, todas as feições; retrata todos os aspectos com a impassibilidade fria.

    Superficial, como a hipocrisia, o espelho não tem fundo. O vidro, não: é o que é. O que através dele se vê existe. Nada esconde, como a luz.

    Com uma porta de espelho pode-se fechar e ocultar o que se queira: tanto um tesouro como as provas do mais nefando crime; com uma porta de vidro, não. Tudo aparecerá através da sua diafaneidade, como se nada se interpusesse à visão.

     A verdadeira virtude, como a inocência, deve ser assim como o vidro: clara, nítida, sem disfarce.

     — E em caso de ataque... como se defenderá?

     — Com a sua própria força.

     — Força...?

     — Sim. Força misteriosa como o prestígio atribuído aos gênios e às fadas, ou melhor: aos santos eremitas que, assediados pelos demônios, punham-se em ascese e, com uma palavra de exorcismo e um aceno da cruz, repeliam vitoriosamente as legiões adversas.

     Iludem-se, quase sempre, os que, por serem acolhidos por uma mulher, como algumas que conheço e que te não são estranhas, franca, prazenteira, trazendo o rosto sempre florido em sorriso, a alegria nos olhos, e nas palavras volúveis, mas sem malícia, a vivacidade da alma, julgam-se, desde logo, senhores do coração que se alvoroça, não por ser naturalmente jovial, mas por estouvamento de amor e, imediatamente, ousam tentar o assalto.

     São tais suposições errôneas, meu amigo, que nos fazem dizer que a mulher é uma esfinge, cujo enigma ninguém, até hoje, conseguiu decifrar.

    Enigma... A nossa vaidade, falta de tato, cegueira pretenciosa ou o que quiseres é que nos faz ver mistérios impenetráveis, arcanos fechados com selos mágicos onde tudo resplandece.

    A alma da mulher — refiro-me, já se vê, à mulher pura, não discuto com as exceções — a alma da mulher virtuosa é clara, límpida. A questão é estudá-la, entendes? estu...

    — Que estás olhando?

    — É curioso...

    — O que...?

    — O exemplo admirável com que o acaso me socorre. Ali o tens. Vês aquele besouro a revoar, a zumbir diante da janela, atirando-se aos impetuosos esbarros à vidraça?

    — Sim. Mas que tem isso com o nosso caso?

    — É o próprio caso, meu amigo. Por que insiste o inseto em investidas à vidraça? Porque imagina que há por ali passagem livre para o exterior, para o arvoredo, para o sol, para a liberdade, enfim. Como não vê o vidro, mas o que lhe aparece na transparência, atira- se às tontas, desnorteadamente e quanto mais o repele o diáfano mais se lhe acirra a teima, mais se lhe enfuria a obstinação. Quer passar em voo vencendo o que toma por aberta e encontra o vidro transparente, cândido, que se lhe opõe com tanta resistência como se fosse uma muralha de aço. Enigma... Naturalmente na alma do inseto...

    — Alma de inseto...?!

    — Admitíamos para o caso... Naturalmente na alma do inseto aturdido deve andar uma grande dúvida. Ele não compreenderá a resistência do que lhe parece uma passagem tão desimpedida como todo o imenso espaço, entre céu e terra, e é justamente essa dúvida que o faz persistir e que o assanha atirando-o em arremetidas inúteis à vidraça, inflexível na sua serenidade, alegre com o sol que nela bate em cheio.

    O que detém o besouro, um quase nada, e tudo, também deteve certo amigo meu, muito do meu coração que, seguro de uma vitória que lhe parecia fácil, simplesmente porque encontrou uma gentilíssima criatura de alma ingênua, mas sã com quem conversou intimamente durante uma hora na futilidade elegante de um “five ó clock”.

    O desembaraço, a franqueza da interlocutora fez-lhe supor erradamente que entre as palavras ligeiras e a virtude do coração não havia empeço algum e, dias depois, com afoiteza atrevida, atirou-se ao que supunha uma praça rendida e aconteceu-lhe o mesmo que está acontecendo agora àquele mísero besouro. Acolhido de boa sombra o meu amigo, que é um tanto estouvado...

    — Como o besouro...

    — Tu o dizes... Não perdeu tempo nem palavras e foi direito ao que pretendia...

    — E encontrou a vidraça...?

    — Sim, a vidraça e mais límpida, mais luminosa do que essa que o obstinado besouro tenta atravessar. E a vidraça que desnorteou o meu amigo foi o sorriso honesto e digno com que ela o repeliu sem afrontá-lo, como aquela ali repulsa o inseto sem feri-lo, sem magoá-lo sequer, mas intransponível.

    A essa “vidraça”, com que não contava, deu o meu amigo mais tarde, o nome de enigma... Enigma, entendes tu? É a tal coisa...

    — Meu caro, eu podia responder à tua alusão dizendo apenas que se os besouros conhecessem o diamante as vidraças não lhes resistiriam...

    — Isto agora é tolice.de besouro des peitado.

ATITUDES

    — Seria cômico, irrisório.

    — Como irrisório?!

    — Ora... como...! Digo-te mais: Esse pobre homem, quem quer que ele fosse, filósofo, poeta, guerreiro ou agonista, ressurgido da poeira secular, ainda que trouxesse à cabeça a cigarra de ouro dos eupátridas, não conseguiria caminhar cem passos na Avenida. Mal aparecesse solene, pisando firme nos coturnos clássicos, envolto nas dobras da túnica com que Platão, passeando lentamente entre os túmulos dos heróis e os plátanos, no Cerâmico, falava à sadia juventude ateniense de coisas altíssimas e puras, o garoto inexorável daria imediatamente o alamiré e a multidão, que aflui ao ridículo como as piranhas atiram-se em cardume ao animal que ousa atravessar os rios que elas dominam, principalmente se leva ferida aberta ou lanho em sangue por-lhe-ia cerco e o teu herói, com toda a sua graça apolínea, só conseguiria sair das aperturas se a Polícia, avisada, mandasse em seu socorro uma “viúva-alegre” guarnecida de praças de armas embaladas.

    Não te iludas, meu amigo. O que admiramos nos mármores da estatuaria antiga e nos famosos vasos pintados dos museus é realmente belo, mas...

    — Não há “mas”. A beleza, sendo eterna, como é, é invariável.

    — Em princípio, não em substância. A beleza — e tu mesmo disseste — é uma religião. As religiões têm todas o mesmo princípio — a Fé, mas os deuses ou ídolos variam, desde o “totem” até o nosso símbolo celestial, fundamento misericordioso da nossa crença — o Cristo.

    Há representações divinas que nos provocam o riso, outras que nos repugnam. Se fores dizer a um guebro que Deus não é o fogo que arde no seu grosseiro altar de pedras ou a um negro africano que o seu manitu vale tanto como a lesma que se arrasta visgosamente pelas folhas do chão, arriscas-te a ficar em postas no mesmo lugar em que proferires tais palavras sacrílegas.

    Na Beleza, como na Religião, há lugar para todos os deuses. Tu, por exemplo, proclamas veneradamente a Vênus, flor da espuma, Afrodite Anadiomena. Eu, homem do meu tempo, prefiro à filha do Egeu a filha do comendador Sardoeira, com todos os defeitos que lhe atribuis e mortal, como eu.

     Se a Beleza fosse uma verdade flagrante como a Luz seria uma e única para todos os homens, direi até — para todos os animais, mas não: o Belo é relativo, depende do sentimento de cada um, é a projeção do gosto deste ou daquele. O que nos enleva e entusiasma deixará indiferente o cafre, se não lhe escancelar as mandíbulas em cascalhada estrondosa.

     O mongol tem lá a sua estética de olhos amendoados e quimonos floridos; nos... é o que vês.

     Falas do garbo, do porte majestoso do homem antigo, da graça alada das mulheres espartanas que se adestravam nos ginásios e não deformavam a plástica com os arrochos contemporâneos; lembras o alor airoso das canéforas atenienses caminhando coroadas de rosas, com o cálato sagrado, nas procissões, panatenaicas... Isso hoje seria apenas suportado com música no palco do Municipal.

     Essas “atitudes” eretas são próprias do tempo.

     As Horas da mitologia, filhas de Zeus e de Themis eram criaturinhas trêfegas, alegres que percorriam o Zodíaco em passos coreográficos como se as conduzisse a própria Terpsichore, para quem a vida era um interminável bailado; as de hoje são o que tu sabes: vertigens. O grego contentava-se com pouco: jantava duas azeitonas e um fio de mel, ouvindo as cigarras nos limoeiros em flor. No verão, dormia ao tempo, sobre a erva cheirosa; no inverno cobria-se com uma pele de ovelha ou fazia um fogo ligeiro de gravetos deitando-se-lhe à beira, à espera do sol da manhã. Se era filósofo vivia preocupado com os mistérios do Além. Poeta, cantava as estrelas e as auroras ou enfeitava de lendas amorosas os cantos dos vergéis, as margens das ribeiras, o cimo dos outeiros. O próprio pastor, como Endymião, namorava a lua ou deixava-se namorar por ela.

    O grego vivia dentro de um suave sorriso, sem cuidados, sem ambições, sem terrores. A própria morte poetizada não era para ele mais do que um grande sono.

    De vez em quando uma troca de palavras de muro a muro.

    Tumulto na ágora, cantos patrióticos, armavam-se bandos e algum anotador, seguindo a lição de Heródoto, tomava apontamentos para uma logógrafa conversando com os heróis que enfardelavam queijo e broa e limpavam o ferro das lanças preparando-se para uma expedição gloriosa em terras barbaras, coisa aí de dez ou quinze mil homens, como os que fizeram a famosa retirada, cuja descrição imortalizou o chefe que a conduziu, que foi Xenofonte.

    Hás de convir que essas formidáveis massas que atroam estrondosamente as páginas da história antiga, em marcha para grandes guerras, fariam tristíssima figura em uma parada no Campo de São Cristóvão. O que essa boa gente chamava, com empasse, um reino ou império numeroso seria um povoado mesquinho ao lado de uma das nossas grandes capitais.

    Vida em começo, meu amigo, exageros da infância. A criança, que brinca com uma vintena de soldados de chumbo a um canto da mesa de jantar, julga-se capaz de levar as suas armas a Paris com êxito mais feliz do que tiveram os alemães. Tudo na infância é assim.

    As atitudes do homem estão sempre de acordo com as épocas. Nós mesmos modificamos sensivelmente o nosso porte e as nossas atitudes conforme as horas e a sorte que elas nos trazem. De manhã, frescos e repousados do sono, e com esperança de um dia feliz, caminhamos risonhos, de cabeça levantada, tanto, porém, que o dia se adianta trabalhoso, cortado de decepções e de aborrecimentos, assim como nos vamos afrouxando vai-se-nos o humor azedando. E fatigados, com os nervos lassos e o espírito nublado, como queres tu que mantenhamos essa atitude olímpica dos atenienses ou o ar cavalheiresco ou cortezão dos medievos ou dos fidalgos do grande século para os quais, uns e outros, a vida oscilava entre duas aventuras, ambas pitorescas — vencer inimigos e conquistar cidades ou dizer galanteios e tomar corações de assalto?

    O corredor de Maratona, para não perder tempo no recado em que ia, dobrava-se para a frente pondo todo o esforço no musculo sem preocupar-se com a beleza da sua figura e se, por acaso, lhe saísse à frente, interrompendo-lhe a corrida, alguma matrona ou donzela, não creio que parasse para dizer uma palavra gentil ou se desviasse para ceder o melhor caminho. Talvez até a empurrasse pouco se importando com o que lhe sucedesse. Tinha pressa, meu amigo.

    E nós, que vamos com mais ânsia do que o anunciador da vitória; nós que corremos estimulados pela ambição; nós, que não podemos perder um minuto porque sentimos na nuca o resfolgo do nosso adversário, podemos lá pensar em atitudes...

    Ao grito de “Salve-se quem puder”, que é a senha de todos os nossos dias, há lá quem se lembre de compor o trajo e de oferecer o braço à dama ameaçada de morte. O que a gente quer é salvar-se. Atitudes são coisas de quem não tem que fazer e nós, nós os do século do “radium”, nós, os homens rodopiantes, não nos podemos preocupar com futilidades, entendes? Olha, há ali uma mesa vaga. Vamos gozar um instante este encantador Alvear. É interessante isto, não achas? O diabo são estes espelhos indiscretos.

AFETAÇÃO

    — Que é isso que estás lendo?

    — É a “monstruosidade” que Voltaire taxou como “uma peça grosseira, que não seria suportada pela ralé mais vil da França e da Itália, obra que parecia o fruto da imaginação de um selvagem bêbedo”. Em uma palavra: “Hamlet”.

    — De Shakespeare?

    — Sim. Nos tempos que correm, de tanta incerteza e tão cheios de Polônios, não ha melhor companheiro e guia do que esse donzel.

    — Aposto que estavas às voltas com o tal monólogo dubitativo “To be or not to be...” espécie de manto filosófico em que se envolvem todos os literatos...?

    — Não. Estava a ouvir o príncipe na grande cena do 3° ato com Ofélia. Entendes o inglês?

     — Homem, para dizer verdade, do inglês tenho o que basta para o consumo esportivo e um ou outro termo de prato e copo: “roastbeef”, “plum-pudding”, “sandwich”, “soda-water”, “whisky”, e, como extraordinário: “yes”, que é pau para toda a obra. Se me queres impingir alguma citação põe-na em pratos limpos, pratos de boa louça portuguesa, que é a de que me sirvo. Mas afinal: De que se trata? Descobriste alguma novidade no poeta?

     — Sim: a melindrosa.

     — A melindrosa!?

     — É como te digo!

     — Pois já havia essa calamidade no tempo de Shakespeare?

     — Ouve as palavras de Hamlet a Ofélia:

     “Tenho ouvido falar do hábito que tendes de arrebicar-vos. Deu-vos Deus um rosto e vós o mudais em outro. Andais, ora às gingas, ora em deslize de sombra; fazeis trejeitos e momices, pondes alcunhas às criaturas de Deus dissimulando em ingenuidade a malícia em que sois solerte. Ide-vos! Por demais estou eu enfarado de tantas hipocrisias”, E então?

     — Não colaboraste com o poeta?

     — Eu!?

     — Traduziste honestamente as palavras do lúgubre justiceiro?

     — Tanto, quanto possível. E agora? Que dizes?

     — Digo que esse inglês tinha olho de ver ao longe. Era um “águia”! não há dúvida. O que ele pôs na boca de Hamlet — aliás com injustiça, porque a cândida Ofélia não merecia tais censuras — quantas e quantas vezes tenho eu tido ímpetos de bradar a certos alfenins de frivolidade que por aí andam, de cabelos ora negros, ora oxigenados, tão versáteis nas cores como certos políticos nas opiniões, rosto caleado e salmilhado de pintas de vários tamanhos e feitios, olhos bistrados, lábios sangrando a vermelhão, unhas em estiletes, como de harpias... que sei eu!

     — Pois é o caso.

     — Perfeito, não há dúvida.

     — A beleza é hoje uma falsificação que está a pedir vigilância dos fiscais do governo porque, se uma zurrapa, arranjada com baga de sabugueiro, nos arrasa o estômago, que nos não fará da vida uma mulher composta com tantas drogas? A menina que hoje vemos, com raríssimas exceções, e estas tão fora da moda que se envergonham de passar na Avenida em horas de mostra, é, toda ela, um manequim de artifício. E não é só o corpo que nos mente: mente-nos o olhar langoroso, mente-nos a voz balbuciente, mente-nos o sorriso mal aberto para não comprometer as pomadas e os polvilhos que acafelam o rosto, mente-nos a alma com aparências de ingenuidade...

    — A alma que se nos mostra é como certos bustos que nos encantam da janela em que se debruçam: cabeça formosa e bem tratada, colo gracioso e vestido de seda, mas o resto do corpo, que fica paredes a dentro, mal enjambrado em molambos até os pés sem meias, esparralhados em chinelas de ourelo.

    A mulher é planta de estufa que se não deve expor a intempéries: o sol ardente cresta-a, a chuva desfolha-a e nas rajadas do vento vão-se-lhe, esmaecidamente, os encantos da cor e do perfume: a inocência, a timidez, o pudor todos esses adornos d’alma que a tornam desejada pelo mistério em que a envolvem.

    O amor é discreto. À corte que se fazia à mulher dava-se o nome de aventura, porque nela entrava muito de audácia necessária a quem se ia afrontar com perigos para alcançar um prêmio ambicionado; aventura como as dos que sabiam em expedições marítimas à descoberta de tesouros e mundos.

    Hoje, o amor não tem segredos, é um oceano livre que se percorre em todos os sentidos, às vezes com tempestades, mas sem esperança de poder a gente, um dia, exclamar em alvoroço feliz, como o que sacudiu o coração e marejou de lágrimas os olhos de Ponce de Leon quando lhe surgiu, ante a proa da nau, a costa da Flórida, o “algo nuevo” que ele tanto pedia a Deus que lhe deparasse.

    Tudo que se nos apresenta é velho e, como precisa impor-se, por ser demasiadamente visto e conhecido, atavia-se, requififa-se, arma-se de mil embustes, afeta-se de vários modos dando-nos um espetáculo ridículo de mentiras.

    Se a mulher pudesse ler no coração do homem não empregaria tais ardis para vencê-lo. A geração que aí anda é da estirpe de Circe. Mas a afetação, que é o filtro da feiticeira contemporânea, já não tem prestígio e começa a degenerar em ridículo.

    Nos primeiros tempos, quando o cinema, como uma didascalia, impôs os esgares, os ademanes e os requebros, as discípulas da tela conseguiram certo êxito arrastando papalvos nos seus passos rebolidos, levando-os iscados nos olhares piscos com que os fisgavam. A imitação, porém, generalizando-se, deu à cidade o aspecto de enorme palco cheio de títeres de pedúnculos de arame, movendo-se aos coleios, tremelicando, ou aos pinchos como fantoches de engonço. E aí ficaram os trejeitos que substituíram na mulher a graça airosa de outr’ora.

    E o resto? as maneiras desabridas, o riso escarcalhado, as expressões de gíria, os exageros de trajo, o excesso de liberdade e as preocupações mundanas que fazem da mulher, que era a vestal sagrada, o nume domestico gênio tutelar da família um ornamento das ruas, flor errante como as que descem na correnteza dos rios para o mar.

      Se, em vez de pretender dominar os sentidos, a mulher procurasse, com mais firmeza, impor-se à alma, as vitórias que elas celebram não seriam efêmeras, como são, durando apenas o tempo de uma lua de mel. Falta o amor, o amor que se gera na virtude e nasce no coração e que, em vez de esmaecer com o tempo, enlanguescendo em tédio, viça em amizade e torna-se na velhice ainda mais forte, sustentando a vida em todas as suas fraquezas: nas dores, nas angústias, nas desilusões como a hera sustenta as ruínas.

    Mas esse amor, que acompanha fielmente a vida, meu amigo; esse amor que persevera e mais se acrisola na desventura, como o cardo mais reviça ao sol, nas dunas áridas, esse amor pede raízes para crescer, não é planta de vaso, que serve apenas para ornamentar, dando uma só flor e logo fenecendo.

    — E incomodas-te com isso?

    — Naturalmente. Dessas criaturinhas frágeis é que a pátria espera a geração futura.

    — Ora deixa lá! Não te preocupes... São crises, passam. De onde saiu a Inglaterra de hoje senão das tais melindrosas que Hamlet apresenta à meiga Ofélia, como se lhe mostrasse um espelho? Isso é assim mesmo. “Souvent feme varie”, dizia o rei galanteador, e nem sempre varia para o mal. Desses melindres saem, às vezes, heroísmos que assombram. Deixemos andar o mundo. Não há perigo. Deus está ao leme.

O DOTE

    — Casou rico? Tanto pior para ele que era um homem livre.

    — E achas que deixou de o ser?

    — Sem dúvida. Quem se vende deixa de ser senhor de si. E que foi esse casamento senão uma compra? A mulher viu-o, agradou-se dele achando-o conforme ao tipo que imaginara nos seus devaneios e, ante a mesa do Juiz e o altar de uma igreja, como compraria ao balcão um objeto para seu uso, comprou-o e levou-o consigo. Não é um marido, é uma aquisição a dinheiro. E hoje, meu amigo, com a carestia da vida, há até quem se venda a prazo pelo processo das prestações inaugurado, com tanto êxito, pelos ambulantes.

    — Pelo que vejo és contra o dote? Achas que a mulher deve ir para o marido de mãos abanando?

     — Vamos devagar. O homem só é verdadeiramente um chefe de família quando governa com autoridade, colocado em plano superior ao da mulher, até porque assim pode protegê-la do alto agasalhando-a à sua sombra e vigiando em volta para defendê-la de qualquer perigo que a possa assaltar. Aquele que recebe o dote das mãos da esposa, que deve apenas trazer o coração cheio de amor e de virtude, bens de muito mais valia do que a riqueza precária, fica sempre em posição inferior e mesquinha de mercenário a soldo. Com que entra ele na sociedade conjugal quando assigna o contrato de núpcias?

     — Com o nome.

     — Ora... o nome...! O nome é um zero que só se valoriza com o número que lhe fica à direita e o número, em caso tal, são os contos de reis, as propriedades, as apólices, etc. O dote é sempre ouro, em espécie ou em equivalência, e as algemas, sejam, embora, de ouro prendem e escravizam.

     — Não! Ponderemos... E o verbo vem aqui muito a propósito. Assim como para averiguarmos o valor do ouro levamo-lo à balança pondo-o em uma das conchas e na outra os pesos que o hão de estimar, assim também podemos opor à riqueza amoedada a que, se não vai cunhada em metal, nem por isso vale menos do que o seu contraste. Entre as centenas de contos de uma herdeira e um nome prestigioso facetado em gênio ou em heroísmo, se houver oscilação tendenciosa do fiel será, de certo, em favor da concha oposta à do ouro.

    — Falas como utopista. As riquezas do espírito que são, em verdade, as que não perecem e dão glória, pouco valem na praça. Não há aí mercador que troque uma peça de fita pelo mais admirável dos sonetos ou pela eloquência do mais facundo orador.

    As riquezas do cérebro estão ocultas como as da terra. Se disseres a um homem: “Tens aqui uma moeda de níquel, que vale um pão, e ali adiante, debaixo daquela rocha, uma mina de ouro, que vale um reino”, não creias que o homem prefira o que jaz na terra em ouro ao que lhe estendes, em metal reles, mas de curso, na palma da tua mão.

    É o prestígio do dinheiro, meu amigo. O próprio credito... — foi-se o tempo em que para caução do mesmo bastava um fio de barba. Hoje o que por aí se chama “um homem de boa firma” não é o tipo da virtude de D. João de Castro. Seja ele glabro como um sacerdote, mas tenha depósitos em bancos e imóveis bem alugados e será considerado um caráter sem jaça, ainda que, no fundo, seja um rematado patife. Ouro é ouro.

    Mas voltemos ao nosso caso. A mulher que entra em um lar levando a riqueza assume ares superiores de domínio e, como sabe o preço do que acarretou, olha sempre o homem como um favorecido. Se, por qualquer desastre ou desmando prodigo, vai-se o que veio, a mulher não lança à conta das dissipações da sua ostentosa vaidade o prejuízo, logo o atribui a esbanjamentos do marido, e são queixas, recriminações, arrependimentos, um inferno! Se, ao invés d’isso, por diligente e esforçado, aplicando com segurança, em bons negócios o capital recebido, o homem consegue dobrá-lo, multiplicá-lo em rendas sólidas, sempre a mulher dirá, com arrogância, que foi a sua fortuna que medrou, como boa semente em terra fértil, sem levar em conta o trabalho, o tino, os golpes de audácia com que o marido realizou o milagre.

    Eu, para mim, tenho que só há um dote para a mulher e nele é que os pais se devem apurar tanto quanto possam, e esse, meu amigo, é a educação doméstica.

    A escola da economia é a única em que se aprende a ciência de fazer fortuna.

    A menina rica, habituada, desde cedo, ao luxo, cuidando exclusivamente de exibições mundanas, quando se casa, trazendo o seu dote, não pensa em fazer com ele os alicerces da nova casa: recebe-o como um presente para gastá-lo, com mais largueza, então, porque já não é uma menina, mas uma senhora.

    E quando, de todo esgota-se a fortuna do açafate nupcial e começam a levantar-se as murmurações dos credores e o lar desmantela-se e enche-se de cuidados o marido, que casou rico, sente-se nas tralhas, reconhecendo que o que imaginara uma fortuna não é menos que um inferno.

    E dois infelizes defrontam-se odiando-se, tendo-se ambos como roubados: ela, no dinheiro que desbaratou a mãos rotas; ele na tranquilidade, que para o sempre perdeu, ficando-lhe ainda o labéu indelével com que todos o citam à execração das gentes: “Esse é o tal que se casou por dinheiro”.

    Temos de tais casamentos um claro espelho na comedia de Arthur Azevedo.

    — Com tais princípios negas à rica herdeira o direito de amar. Ah! meu amigo, felizmente para a vida nem sempre é assim. O amor, o verdadeiro amor não aviltaria o ser amado lançando-lhe em rosto as suas moedas. Garanto-te que se a filha de um desses milhardários, que há por esse mundo titânico de manipuladores de ouro, se apaixonasse, deveras, por um pobretão como tu ou eu e se, para desposá-lo, fosse obrigada a desistir de todos os seus bens, desceria contente da sua torre maravilhosa e, pelo braço do seu querido, afrontaria venturosa todas as vicissitudes da miséria, bastando-lhe para a sua fome os beijos e para o seu frio o calor dos braços adorados. O amor é desvairo, meu amigo. O amor é Julieta. O verdadeiro dote da mulher é o coração, isso sim.

    — Poesia...

    — Poesia... E se te aparecesse uma menina rica, amando-te verdadeiramente, sacrificando-se por ti... terias coragem de a repelir?

    — Ah! se me amasse verdadeiramente...

    — Seria ouro sobre azul, não?

    — Sim, como o sol num céu de primavera. Mas qual! Isso não é para mim... Não tenho sorte. Nasci para dez réis, meu amigo, não chegarei a vintém.

O CIÚME

    — Convenção?!

    — Pura convenção. Convenção de moral estreita. O homem é um ser livre e a sua ação fecunda não se deve limitar, como a dos rios, ao curso entre as margens de um leito. Ecce exit qui seminat seminare. Eis saiu (nota bem — saiu, diz o evangelista) o que semeia a semear. Não diz: ficou. Assim pois quem nos dá o habeas-corpus: é a própria Lei das leis.

    — Distingo.

    — Não há distingo. O homem é oceânico: flui e reflui em caprichos, que são as suas marés, ora sereno, ora tempestuoso, recebendo em si todos os rios e todas as águas do céu e da terra. Tentar prender o oceano, açudá-lo é ideia só comparável àquela do presumido persa que o quis submeter à força de flagelos. O oceano é livre, impetuoso, indomável, estende-se de polo a polo e não há sujeitá-lo com represas nem impor-lhe voltas como à azequia de horta. E que é o ciúme senão uma comporta do egoísmo feminino oposta à volubilidade, que é a fantasia da onda?

     — O ciúme: é humano: nasceu com o amor.

     — História! O ciúme só apareceu com a monogamia, isto é: quando a moral pôs freios ao instinto. Os antigos agasalhavam as concubinas nos próprios lares, com os animis domésticos. Temos a prova disto na Bíblia, onde Moisés nos mostra a veneranda Sara no papel de alcaiota, cedendo a Agar a sua parte no leito conjugal, junto a Abraão.

     Os espartanos de Licurgo, se recebiam um hóspede bem apessoado, não só o serviam à mesa como ainda faziam questão de que ele passasse a noite no próprio leito deixando-lhes, como paga, o gérmen sadio de uma descendência robusta.

     Catão, o virtuoso Catão de Utica, rascoeiro desabusado, esse emprestou a mulher e recebeu-a depois com a herança daquele a quem servira. Em nossos dias temos o exemplo da formosa Cosima, filha de Liszt e uma das paixões de Nietzsche, que se divorciou amigavelmente de Hans Bülow, por amor da arte, casando-se com Ricardo Wagner. E Bülow e Wagner continuaram amigos, comendo à mesma mesa, executando peças a quatro mãos, sem rusgas, como se nada houvesse entre eles.

E o turco? O turco, menos hipócrita do que os ocidentais, mantém harem de odaliscas e todas vivem em harmonia, esperando, sem ânsia, que lhes chegue a vez do lenço. A escolhida do capricho do sultão levanta-se do tapete, espreguiça-se, sorri maliciosamente e segue-o sem orgulho. As companheiras vêm-na partir sem inveja. “Não foi hoje, será amanhã. Há de chegar o meu dia”, dizem todas no coração sem despeito, sem o mais leve ressentimento. E esperam.

    — E acreditas que na escolha do sultão haja preferências sentimentais? Não creias. Ele tem-nas na mesma conta em que estima os objetos do seu uso madraço: o marguilch em que fuma o seu ópio ou a caçoula em que expiram as lânguidas resinas. Não são mulheres, são escravas de amor; não amam, obedecem a um aceno — vão para a volúpia eximo iriam para a morte.

    — Não sei. Quem sabe lá! Talvez amem mais do que as nossas mulheres. O amor é uma fantasia que se resolve em sensação; é um apetite que se disfarça em sentimentalismo, mas que, saciado, logo desaparece, como a fome. Os romanos nivelaram os dois prazeres, porque comiam reclinados em triclínio: o leito ao lado da mesa. Os requintados pedem ao amor o que pedem aos banquetes: iguarias finas, bem adubadas, com especiarias picantes. No sibaritismo em que excelem exigem o tablino bem iluminado e recendendo aromas excitantes, a mesa alva, florida e rutilante de baixelas, iguarias raras, vinhos preciosos, músicas e cantares, bailarinas circulando airosamente em volta, desfolhando rosas e enlanguescendo os olhos; tudo que excite a imaginação, que é o estímulo da carne.

     Outros contentam-se só com o prato, querem-no bem cheio, bem acogulado, que farte, pouco se lhes dando que a mesa tenha toalha de linho e flores ou mostre as tábuas engorduradas e, em vez de argentaria, escudelas e canjirões de barro. Em havendo que comer contentam-se. E ainda os há (conheço alguns) que se atascam em gamelas, esfocinham em cochos, à maneira suína, roncando espapadamente com delícia sórdida. À mulher compete o preparo do... festim e quanto mais agradável e convidativo ela o tornar aos olhos e ao paladar do comensal mais o prenderá à sua... mesa.

     No Oriente (é sabido) as mulheres porfiam em fazer-se belas e desejadas — usam de mil artifícios e atrativos, ensaiam-se em seduções as mais voluptuosas, tratam de por em realce os dotes naturais porque são muitas em competência e a emulação faz com que cada qual se esmere em encantos para chamar a atenção do senhor que as examina.

     No ocidente, com os nossos costumes aparentemente austeros, é o que vês. A mulher prende-se a um homem, é a monogamia honesta sob a vigilância da Religião e da Lei e mais: da sociedade que coscuvilha, indaga, espiona, esmiúça, rebusca o fio do escândalo e, quando o descobre vai tudo raso. Com tais garantias, certa de que o escravo não lhe escapará, a mulher pouco se interessa por ele: tem-no preso, é o que serve.

     Algumas há que até lhe negam o pão para a boca e se o desgraçado, por fome, vai a um hotel, escolhendo gabinete particular discreto ou a alguma casa de pasto de bairro modesto, onde não seja conhecido, para regalar-se à vontade, ai dele! A mulher desaba-lhe em cima como uma fúria e o tal ciúme estoura em explosões tremendas.

     Justifique-se, embora, o marido com a fome. A erinia não lhe perdoa o regabofe porque, diz ela: “Um homem sério não come fora de casa”.

     Tenho um amigo, tipo pacato, sem jeito algum para aventuras que, mal chega à casa, moído do trabalho, a mulher, sempre resmungona, acompanha-o ao quarto, fá-lo despir-se e, depois de examinar tudo que ele traz nos bolsos, fareja-lhe a roupa e, se sente cheiro de hotel, vem abaixo o mundo.

     Há dias dizia-me o desgraçado com lágrimas nos olhos:

     “Eu não entro em hotéis, palavra! Nunca entrei. Passo pelas comidas ou as comidas passam por mim, olho-as, mas não lhes toco. Às vezes fica-me na roupa um pouco de cheiro, só cheiro, e a mulher cai-me em cima com duas pedras na mão, a berrar que comi isto e aquilo. Pobre de mim! E o pior é que, além do escândalo que faz, ainda me recusa o prato e, se lh’o peço, vira-se furiosa dizendo-me que vá comer nos hotéis. E aí tens porque estou assim na espinha, magro, arado de fome que só Deus sabe.

    — Tudo que dizes do ciúme, como pilhéria...

    — Como pilhéria?! Ousarás, por acaso, defender o ciúme?!

    — E porque não? Defendo-o porque não admito o amor sem ele. Não o amor que reduziste ao que há demais material na vida, mas o amor princípio, o amor essência, o amor expressão máxima da vida, conjunto de corpo e alma: corpo no instinto, que o excita; alma no sentimento, que o sublima. Esse amor, cujo mistério, que reside no coração, não se traduz em palavras, ninguém define e só verdadeiramente se manifesta no silêncio que duas bocas encerram em um beijo. Nesse amor compreendo eu o ciúme. É uma sombra que se destaca para acompanhar um corpo alheio; é um olhar vigilante que se alonga através de todos os horizontes; é uma nuvem que nos segue a toda a parte, como a que Deus estendia no deserto, entre o sol e a terra, para proteger Israel e é coluna de fogo que nos adverte em nossos desatinos. É a oração amorosa que nos acompanha como a prece e a benção seguem os que se afastam dos lares. É um fio de ternura que se desenrola do coração e pelo qual nos guiamos para sair dos labirintos de perdição. O verdadeiro ciúme é um sentido misterioso em que se fundem todos os sentidos como se reúnem, formando a flor, todas as pétalas. É um dom divinatório, é, enfim, o próprio amor. Por mais que tentemos ocultar um pecado ao ciúme não há mentiras e dissimulações que o salvem. A mais esperta matilha rastreando uma caça pode perder-lhe a pista na floresta; a mulher seguindo o fio de uma suspeita não se engana jamais. Se visses o ciúme debulhar-se em lágrimas, descendo de uns olhos azuis pela meiguice de um sorriso...

     — Como se chama? Que é loura já sei. Dize-me o seu nome.

     — Que nome? Nome de quem?

     — Da criatura por quem estás apaixonado.

     — Apaixonado! Eu!? Gracejas.

     — Ah! meu amigo, se ainda não deste por isso é porque não olhas para dentro de ti. Pois convence-te de que estás perdido de amor... ou doido, porque só um namorado, ou um louco, seria capaz de defender... o absurdo.

OS BÁRBAROS

    — Petrônio a fazer o elogio de Trimalchão... Tem graça! Que o Jocelino os defenda, porque os explora, vá; mas tu...

   — Pois defendo-os, meu velho e o que mais é: admiro-os!

   — Falas sério?!

   — Muito sério.

   — Admiras essa horda que por aí se espalha em aluvião arrasando tudo...?

    — O Egito é um dom do Nilo, disse Heródoto (apelo para a tua memória, sempre pronta). E por que assim se exprimiu o historiador quando visitou a terra faraônica? porque observou a inundação do rio sagrado, acompanhou a cheia que alagava as terras secas e viu o lenteiro fecundo deixado pelas águas quando se recolhiam ao seu leito natural, entregando aos lavradores um solo pingue, refeito, pronto para receber a sementeira.

    — Perdão, mas as águas não destruíam — não entravam pelos templos, não passavam além dos pilonos nem perturbavam a vida urbana. Tinham lá os seus limites e não os transpunham. E os novo- ricos? Metem-se em tudo e, onde passam, tudo assolam e arruínam: — A beleza é profanada, o gosto, a distinção, a graça, a gentileza cedem à grosseria; ao espírito opõem a chalaça balorda e as salas perdem o encanto discreto porque, em vez da conversa sutil, sublinhada pelo sorriso, é o falário que atroa com explosões de cascalhadas estridentes.

    Onde chegas vês logo o invasor dominando atrevidamente, com arrogância de desafio, mostrando carteiras bojudas e agitando as mãos grossas para que se lhes vejam os anéis.

    Penso em Roma, meu velho, quando por ela arremeteram furiosamente os bárbaros com ânsia de saque, varejando os templos e os palácios dos patrícios, e, sem darem apreço ao tesouros artísticos que se lhes deparavam, nos edículos sagrados e nas câmaras das lânguidas romanas, enfardelavam tudo na mesma trouxa, ídolos e joias, objetos do culto e peças de joalheria galante, abalando para os acampamentos sórdidos, onde examinavam, sem sentimento, apenas com a intenção de lucro, o que haviam rapinado.

    Esses milionários da última hora lembram-me aqueles chefes bárbaros, em tendas estofadas de púrpura, cercados de coxins, entre pilhas de preciosidades que eles estimavam menos do que os aperos dos seus ginetes selvagens, que nitriam soltos nas pastagens. Para tal gente só tinham valor o ouro, as pedrarias, os panos rutilantes e armas.

     — És injusto com os bárbaros. Não te lembras de Chilpérico fazendo representar em Soissons uma comedia de Terêncio?

     — E os outros? Queres defendê-los também?

     — São explosões necessárias, meu amigo. A vida já teria cessado se não fossem as alternativas, que a revigoram. Os bárbaros chegaram a tempo de salvar a civilização.

     Infiltrada do vírus asiático, amolecida em volúpia, que era Roma? um enorme lupanar num esterquilínio. Enquanto os patrícios (lê Amiano Marcelino) enlanguesciam em prazeres lascivos o populacho miserável bradava pedindo pão, empilhava-se para dormir nas escadarias dos edifícios ou assaltava transeuntes desvalizando-os. As bolsas, as que tinham moedas, passavam das mãos dos debochados para as dos rufiões e os óbolos de cobre eram atirados aos pés das ambubaias.

     Os campos abandonados cobriam-se de erva silvestre, a vida era só o prazer.

     Que fizeram os bárbaros? Tomaram os lugares que a inércia ocupava, afastaram os inúteis, carrearam as riquezas acumuladas em cofres e, levando-as na bagagem da horda, foram com elas, como se fossem sementes, fazendo nascer cidades, que se desenvolveram e que aí estão para nosso gozo, como essa que tanto amas e que é a tua eterna saudade — Paris.

    Foram eles, os bárbaros, que refizeram a vida, que salvaram o mundo do apodrecimento. Passaram pelo império do ocidente como passa o Nilo pelas almargens egípcias — fecundando-o com o seu nateiro.

    Os nossos homens de outrora, nós mesmos, que nos criamos no luxo mole do tempo da escravidão, seriamos capazes de realizar as obras audaciosas que estão sendo feitas por esses bárbaros, como lhes chamas: os novos-ricos. Não. Defendo-os e admiro-os justamente porque os julgo superiores a mim. Fortes e de iniciativas audazes, empreendem com a mesma fúria com que os hunos de Atila investiam com uma cidade ou os visigodos de Alarico arrancavam atroadoramente dos seus pousios com a lança na mão direita e o facho na esquerda para a chacina e o incêndio.

Esses bárbaros, que surgiram com à Guerra, vieram dar novo surto à vida, despertar energias adormecidas, aplicar os tesouros que jaziam como enterrados em poder de avaros ou que corriam prodigamente de mãos lascivas para o girão da Vênus ou para o tapete da tavolagem.

    Eu, tu e outros, como nós, seriamos lá capazes de acometer empresas como as que por aí vão transformando a cidade, o país, dando-lhe beleza e desenvolvendo-lhe as forças naturais? Pois sim...

    Eu, de mim, confesso-te que não tenho animo nem ideia para tais coisas.

    Essas ações de força pedem pulso e bravura e os nossos pulsos... que valem eles comparados aos desses homens que vieram do trabalho, que se robusteceram no bracejo enérgico?

    Não, meu amigo, não sejamos injustos. A culpa é nossa que nos deixamos vencer.

    Tu não te revoltas contra o lavrador que leva o arado pela terra rasgando-a e revolvendo-a, para que a camada superficial, exausta, dessorada, seja substituída pelo torrão que jazia entranhado na profundeza e que vem ressumando húmus, cheio de viço, em plena fertilidade, receber a semente e reproduzi-la multiplicada aos centos.

    Pois é assim, meu amigo. A sociedade precisa, de vez em quando, ser revolvida como a terra: o que jazia embaixo está agora à tona e nós... Mas não receies pelas relíquias do passado, a arte, a tradição, os costumes, as boas maneiras — a terra profunda dá flores como a dos jardins.

    De onde saíram as grandes figuras e todo o esplendor do Renascimento senão das almas barbaras e da cultura clássica conservada pelos monges nos seus mosteiros?

    — Sim, mas nesse tempo havia monges... e hoje?

    — Meu amigo, em todos os dilúvios há sempre uma arca para a salvação das espécies. Deixa lá os bárbaros... São eles que nos estão civilizando, meu caro, eles...!

A MEDIOCRIDADE

    Não, não é paradoxo. Guio-me pelas lições da Natureza e pela Religião, dogmática em todos os seus ditames, incontestável em todos os seus exemplos. Não é só a Virtude que está no meio — “in medio stat virtus” — a própria onipotência divina manifestou-se ao mundo, no mistério da Encarnação, como uma flor colhida entre duas folhas.

    Deus, que encerra em si as três épocas — o princípio, o meio e o fim, como símbolos de uma única existência, de um Ser único, presos à mesma haste, que é a Eternidade, como se comunicou com o Mundo para estabelecer a harmonia, impor a ordem, criar o Amor entre os homens? Destacou da Trindade um dos extremos: o Padre ou o Espírito Santo? Não.

    O escolhido para a missão de misericórdia foi Aquele que, sendo o símbolo central, participava das duas outras essências opostas: a força estática, ou geradora — o Padre; e a força dinâmica, ou movimento: o Espírito Santo — e que, nascendo da Mulher, foi chamado Jesus.

    E tudo, todas as forças da vida, tudo que nos revigora, tudo que nos dirige, tudo que nos serve de apoio: a Razão, a Justiça, o Direito, o equilíbrio, enfim, tanto na vida física como na vida moral, assiste no meio, direito, retilíneo como o eixo em que giram as rodas.

    O que pende para um lado perde o aprumo ou a imparcialidade. A preferencia é sempre um desvio.

    O fiel da balança firma-se em meio dos braços que sustentam as duas conchas, um milímetro que ele se incline para uma delas é quanto basta para comprometer a equidade.

    O barco só vai em singradura direita se o leme é mantido em exata perpendicular à popa, cambe a um lado ou a outro e logo se lhe mudará o rumo, inflectindo na direção do esguelho. E em tudo mais é assim.

    O medíocre é que governa com segurança e acerto, sem surtos nem declínios porque a sua bússola é o bom senso. Tudo pondera e verifica, atendendo tanto a este como àquele, distribuindo a justiça como o foco luminoso, derrama a claridade; iluminando com brilho igual tudo que lhe fica em volta.

    O medíocre é prudente e cauto. Receoso de desastres não sobe nem desce: caminha na planície, "batida, preferindo sempre as veredas mais trilhadas e, se se lhe deparam tropeços — alcantil a vencer ou abismo a galgar, não se precipita airadamente: examina e sonda e, como não dispõe de unhas para agarrar-se nem de asas para voar, se de todo não lhe é possível ladear as dificuldades, tendo forçosamente de afrontar-se com elas, não investe d’arranque: vai de manso, apalpando o terreno, apegando-se: aqui a uma aresta, ali a um galho ou raiz; guinda-se ou deixa-se escorregar, sempre cauteloso, apoiando-se em todas as saliências, um pé aqui, outro ali até atingir a achada do rochedo ou firmar-se no fundo do algar.

    O ardego, esse não hesita: arremessa-se impetuosamente ao rochedo, indo-lhe pelo dorso acima sem buscar chanfradura a que se atenha; no despenhadeiro não procura saliências nem ramas e, confiando nas asas da genialidade, arroja-se atrevidamente à aventura e assim como pode sair dela triunfante, não é raro que nela encontre o mesmo fim desastroso que tiveram Ícaro no voo e Faetonte na corrida radiosa.

    O outro, esse não abandonaria jamais o seu latibulo.

    Os extremos perdem-se. A genialidade é como os altos cimos que topetam com as nuvens obscurecendo-se na própria magnificência.

    As alturas asfixiam como os subterrâneos: o ar é tão raro e infenso à vida nas cumeadas como no fundo das minas. No alto, é por demais fino e sutil; em baixo, é espesso e pesado. Em cima inflama-se em relâmpagos e raios; na profundeza explode em gazes.

    Ao excelso só ascendem as águias que têm os seus ninhos alcandorados nas cristas das cordilheiras e acolchoados de nuvens; nos labirintos só andam escavadoramente as toupeiras.

    O azul livre! é para a contemplação; a terra profunda é para a incubação. Só se anda com facilidade e segurança no solo firme, entre o esplendor do azul e a escuridão das entranhas em que a terra, na sua fecundidade maravilhosa, cria as riquezas e ressuma a seiva que alimenta as árvores, e abrolha as fontes que formam os mananciais, concorrendo copiosamente para a grandeza dos rios.

    O espaço só pode ser atingido pelo voo e as asas que o cindem são as da imaginação, essas mesmas, porém, para que triunfem, devem levar, entre os encontros, um sentimento, um ideal, e assim, na própria poesia, o que vence não e a força das remijes, extremos, mas o que arde no cérebro ou o que vibra no coração.

    As asas afiam ansiosas ou adejam serenas, mas quem vai no voo, entre elas, cantando na glória da luz em rumo ao azul, é o pássaro.

    A toupeira, essa não se sente bem ao sol, a claridade atordoa-a, deslumbra-a. Assim, meu amigo — nem águias, nem toupeiras.

    — Bacuraus... O bacurau é o símbolo da mediocridade — esvoaça.

    — Aí vens com a pilhéria. Na árvore, por exemplo: o que a nutre é a raiz e são as folhas que lhe dão alento. Mas a força da árvore é o tronco que se apoia nas raízes e sustenta a copa de folhagem airosa na qual desabrocham as flores, amadurecem os frutos e acolhem-se os ninhos. As raízes trabalham incessantemente. São elas que injetam no tronco a força vital, não há dúvida, mas é do tronco que se esgalham os ramos formando a cúpula verde e majestosa que é a beleza da árvore. E a distribuição com que o tronco atende à solicitação de todos os ramos, sem esquecer um só, arraçoando-os com igualdade rigorosa, seria um exemplo utilíssimo aos nossos administradores, tão empanturrados de economia, se eles pudessem ver, por pauta, o mistério da circulação vegetal.

    As raízes querem-se bem enterradas no seu úmido viveiro; do sol basta-lhes o calor. O tronco contenta-se com a claridade ambiente, mas o seu gosto é estar à sombra, gozando o ar tépido que o bafeja acariciadoramente. A fronde, não — é o heroísmo: recebe em cheio o sol e, nas tempestades, é ela que mais sofre dos vendavais. Se o raio fulmina a árvore e por ela que entra, queimando-a antes de fender o tronco.

    É ela a que mais ostenta, a que mais aparece e a que mais sofre. Pelas franças é que se conhece o vigor e que se percebe a decadência da árvore.

    Os povos começam a perecer pelas camadas superiores — são os aristocratas os que primeiro sentem o choque das revoluções e, com eles, os chamados “espíritos superiores”. Os medíocres resistem mais e as raízes, como não aparecem, continuam a viver e, às vezes, abatida a fronde, fendido de meio a meio o tronco, vê-se surgir à flor da terra um novedio, crescer sobre os restos apodrecidos da árvore morta: é o reviçar das raízes, o ressurgimento do povo...

    — E a mediocridade?

    — A mediocridade...

    — A mediocridade esfarela-se, meu amigo; o tal tronco reduz-se à terra mole, lodo, e o que fica, para reproduzir e perpetuar a árvore são as sementes que lhe caem da copa, e espalham-se vivazes; são as criações da genialidade, dessas franças altas que recebiam em cheio o sol e as tempestades e ressoavam cantos de passarinhos. Pode ser que os medíocres sejam excelentes para o governo dos povos, mas para fazerem a glória das nações e para as eternizarem são preferíveis os extremos, as franças altas, as genialidades que, na queda, como aconteceu na Grécia, por exemplo, disseminam em profusão as suas sementes, que renascem, formando florestas encantadas à cuja sombra a Humanidade ainda hoje sonha e há de sempre sonhar. Deixemos os medíocres no seu aprumo impassível de troncos. Eu prefiro a agitação alegre das frondes sussurrantes. Elas é que são a beleza da árvore.

    — E a vida...?

    — A vida sobe da profundeza. O tronco é bem a imagem da mediocridade esperta e petulante, que ostenta força e prestígio à custa dos humildes e, vivendo obscurecida pela fronde com ela se vanglória e ufana.

A HONRA

    — A honra, tal como a compreendes e praticas, é lima verdadeira renúncia. Vives à maneira ascética dos monges inclusos que se metiam ao deserto, enfurnavam-se em cavernas privando-se, não só dos gozos e do conforto da vida, mas até do necessário à existência porque, em tudo, sentiam, senão a presença, ao menos a influência daquele que chamavam o “adversário”.

    Andavam nus e cobertos de escaras de imundície, porque consideravam o banho um prazer voluptuoso e sofriam a adustão do sol na pele encoscorada ou o frio dos invernos geosos que lhes inteiriçavam e retransiam os membros; ciliciavam-se, avergoavam-se com tagantes de pontas aceradas, entendendo que, com o sangue que tiravam das carnes, expungiam-nas dos desejos impudicos; nutriam-se de ervas e raízes amargas, bebiam água salobra de pantanais ou as que recolhiam em algibes de preferência às das fontes límpidas porque em tudo viam “sensualidade”. E, para combaterem os pensamentos impuros, que os perseguiam como as moscas varejeiras revoam sobre as carniças, prostravam-se de joelhos, passando dias e noites em ascese penitencial. Viviam assim os ascetas. E chamas a isso vida? Achas que um homem, que assim se inutiliza, esterilizando-se em contemplação, martirizando-se em suplícios cumpre o destino que lhe deu o Criador? Não, de certo. Na própria sentença proferida no Paraíso Deus não impôs ao homem a inércia, não o isolou da vida, não o encerrou em uma lapa como se enclausura um galé em célula presidiaria: deu-lhe o mundo com tudo que nele há, desde a fertilidade das leiras regadias até o sáfaro das charnecas, as campinas viçosas e os desertos estéreis, o vale suave e a montanha em aclive, o rio e o mar, a tepe nua e a floresta frondosa e disse-lhe: Trabalha!

    E que fizeram os ascetas a pretexto de evitarem as tentações do demônio? entregaram-se à indolência.

    Não há honra em viver na honestidade que apregoas e preconizas, queixando-te sempre da sorte, nada ousando fazer, porque vês em todas as iniciativas o que chamas “falta de escrúpulo”, como não ha virtude em fazer-se um mancebo sadio e robusto anacoreta, furtando uma atividade à vida, um valor ao progresso para ganhar o céu e merecer a glória de ser santo.

    E que há de extraordinário nessas abstinências dos eremitas se eles, por não confiarem em si, sabendo-se fracos, fugiam do mundo, segregando-se nas solidões onde, se havia tentações que os perturbassem não eram, certamente, de demônios nem de trasgos infernais ou de espíritos elementares, mas dos seus próprios sentidos que neles acordavam instigados pelos nervos, ardendo na excitação do sangue, exigindo o que o instinto impõe.

    Virtuoso e forte é aquele que, assaltado por seduções, preso em um círculo de concupiscência, como se achou Parsifal no Jardim de Klingsor, entre os encantos das mulheres-flores, reage e livra-se puro. Tais heróis impõem-se-nos à admiração e ao respeito porque são, em verdade, fortes e atravessam o fogo como se fossem forrados de amianto, rompem as linhas do sabbat invulneravelmente. Mas que valem as celebradas vitórias de S. Bruno, S. Pacomio, Santo Antão e outros cenobitas que se isolavam no deserto, como foragidos, entre areias e cardos? Que inimigos combatiam eles? sombras, imaginações, delírios. Eram verdadeiros Quixotes do misticismo.

    A honestidade é uma bravura e o homem de honra prova-se como o guerreiro: no perigo. Assim como o valente só brilha rio entrevero das lanças, no furor dos assaltos, na violência das cargas, medindo-se peito a peito com o inimigo e dele triunfando, correndo, através de ferro e fogo, para o mais cerrado e cruento da batalha, assim o honesto não teme a proximidade do ouro, porque não é acessível a sedução e, ainda que se lhe estadeiem diante dos olhos centenas de cofres abarrotados de moedas e avultem pirâmides de barras de ouro, passará sereno, sem pensar, sequer, em sonegar uma pequenina moeda ou uma pisca insignificante. E se a sedução for a da carne irá por entre as mais desvairadoras choreas de mulheres com a mesma indiferença com que atravessaria um desfiladeiro de neve.

    Mas honesto nas dunas da Thebaida, onde nada havia que pudesse tentar a ambição ou a volúpia, isso, meu caro, será interessante na obra de Voragine ou em santorais para leituras místicas, mas bem encarado, bem analisado é até ridículo. Estranho seria que tais santos pecassem, isso sim! Isso é que seria, em verdade, admirável, mas como nô-los apresentam as legendas acho-os... sei lá! Hoje seriam tidos por malucos e, em vez de figurarem nas listas hagiográficas apareceriam no rol dos loucos, dos maníacos, dos visionários que povoam os manicômios.

    Tudo receias com os teus exagerados requintes de honradez, a tudo opões a repulsa do teu caráter porque não há negócio no qual não descubras má fé: ora é o receio de que te possam julgar prevaricador; ora é o escrúpulo de ferir interesses de terceiros. Vês em tudo violações e atentados, não há fortuna cuja origem não atribuas a crimes, a manobras ilícitas; e vês viúvas lesadas, empobrecidas pela ganancia deste ou daquele, órfãs em penúria, velhos ilaqueados por espertezas audaciosas, peculatos escandalosos, roubalheira... sei lá!

    No teu parecer o trabalho nada vale.

    Não, meu amigo. Eu tenho-me na conta de um homem de bem, entretanto, sempre que se me depara ensejo de fazer um bom negócio, atiro-me a ele como os que mais se atrevem, procurando sempre o posto onde haja maiores probabilidades de êxito, e, até hoje, apesar dos lucros, ainda não senti necessidade de purificar as mãos.

    Se aceitássemos a tua doutrina tímida nada faríamos no mundo porque, derrubando uma floresta para semearmos lavouras no seu terreno, usurparíamos às árvores o solo; varando um túnel na montanha para facilitarmos a comunicação lesaríamos a natureza; explorando uma mina de ouro ou de carvão prejudicaríamos o sítio em que ela jazesse com as escavações necessárias, e assim por diante. E não nos alimentaríamos senão de ervas e frutos, estes mesmos só depois que caíssem dos galhos e não atentaríamos contra a vida de animal algum para não nos macularmos com sangue inocente.

    Isto seria a perfeição, no teu entender, a vida de honra. Pois sim!

    Qual te parece mais digno do nome de homem: o que vence com a inteligência e o trabalho, tornando-se independente ou o inerte que, por escrúpulo, deixa-se ficar a um canto à espera de que lhe venha às mãos o pão que o Senhor mandava por um corvo a Elias? Eu, por mim, acho que a honra só pode existir na superioridade, só o que triunfa pode ser honrado. O que fica em baixo, nos degraus inferiores, a estender a mão a um e outro, ainda que seja um poço de virtudes, um espelho de pureza não passará de mendigo. A honra é uma condecoração e ninguém põe condecorações em farrapos.

    — Mas então negas a virtude? Achas que o homem honrado é um inútil, um...

    — Sim, o homem honrado, como o compreendes, porque nada faz, não é útil a si nem aos seus. Vale tanto como uma pedra que rola, talvez menos.

    — Queres dizer que hoje a honra...?

   — É, como já disse, uma comenda que se põe ao peito... em dias solenes. Na hora do trabalho, meu caro, ninguém se preocupa com futilidades decorativas, o que se quer é vencer, seja lá como for.

    — Não penso assim. Regulo-me ainda pela moral antiga.

    — Tanto pior para ti. Os tempos são outros, meu velho, outros os costumes, outra à moral. Com a tua honra nos dias que correm suceder-te-á o mesmo que te aconteceria se saísses a combater revestido da armadura de um paladino, de escudo, lança e montante. A pólvora inutilizou a bravura, como o interesse...

    — Acabou com a honra, queres dizer...? Não, meu amigo. Todas as invenções da guerra, por mais terríveis que sejam, não conseguiram matar o heroísmo. E a honra é o heroísmo da dignidade.

    — Dize antes: dos resignados.

AMAVIOS

    — Não há dúvida. A história, principalmente a literária, está cheia de, tais mistifórios e engrimanços e os que os atribuem às feiticeiras da Thessalia são injustos com as velhas lâmias da Ásia que foram as criadoras dessas ilusões.

    O que há por esses arquivos, cheios do pó dos séculos, em fórmulas cabalísticas, em segredos de simpatias, em diretórios mágicos, filtros de composições várias, produtos de receitas horripilantes pelos ingredientes que nelas entram, desde flores de aroma alucinante e folhas e raízes como o famoso hipomanes e a mandrágora, até pele de sapo pulverizada, terra de cemitério e, o que é mais grave: sangue de recém-nascido ainda pagão. A lista de amadouros é imensa e vem sendo acrescentada pela prática sortílega desde os celebres encantamentos de Medea, Circe, a feiticeira de Teócrito e da horrenda Locusta e ainda das erotomanas, de Ovídio e de Tibulo, até a da que combinou a formula misteriosa do elixir que desvairou Tristão e Isolda, e a adversa de Mefisto que lançou nos braços do Dr. Fausto o corpo juvenil e cândido de Margarida.

    E ainda os famosos feitiços das bruxas medievais que realizavam prodígios de amor espetando corações de cera ou amarrando bonifrates com fios de cabelo depois de os haverem batizado com os nomes dos inculcados à sugestão de amor. E as invocações à Hecate, os recados de que era mensageira a arveloa, as suplicas à lua feitas melancolicamente pelas índias do Amazonas para que o astro da noite infundisse, com os seus raios pálidos, a saudade no coração dos amantes fazendo-os regressar à tribo, onde a rede nupcial, enfeitada de flores de acácia, esperava-os para a ventura...

    E os nossos “pais de quimbande”, esses beiçudos africanos sornas, que se comprometem a reduzir os corações mais empedernidos... Tudo isso é velho, velhíssimo, porque é humano, como a superstição. Mas a verdade é que o diabo, sempre caluniado, entra nesses casos de amor que por aí, não raro, degeneram em tragédia, como Pilatos no Credo.

    — Falas de tais coisas como conhecedor. Até parece que praticas o sortilégio amatório...

    — Um pouco, para matar o tempo. A vida é tão enfadonha. Fiz da demonologia o meu esporte. Em vez de ir a corridas de cavalos ou a jogos de bola e força ou aborrecer-me, perdendo tempo e dinheiro, em tavolagens reles, meto-me no meu cubículo infernal, abro os meus livros negros, interpreto ou procuro interpretar o sentido esotérico das abracadabras, invoco súcubos e íncubos e assim passo as noites.

    — E já conseguiste alguma coisa?

    — Sim. Consegui criar um mundo à parte, um pequeno mundo fantástico onde vivo. Nele solto a imaginação e ela arranja-me espetáculos maravilhosos a que assisto sozinho, como o Rei Virgem gozava solitário, no imenso teatro bávaro, as primícias das operas de Wagner. Já é alguma coisa. Homem, a propósito: vou contar-te um caso curioso de enfeitiçamento, um prodígio de amavio.

    — Realizado por ti?

    — Sim. Conjurei, com a minha ciência magica, um sortilégio formidável. Não sei como chegou aos salões a notícia dos meus estudos de gabinete hermético. Estou convencido de que vivemos em uma cidade de vidro, de casas transparentes porque, tudo quanto nelas se passa, a portas fechadas e nos aposentos mais íntimos, horas depois estão no domínio público e dissecado impiedosamente a gume dos mais afiados comentários da maledicência.

    Um chamado urgente ao telefone, uma entrevista misteriosa e entrei a fundo no segredo de uma das casas mais elegantes de Botafogo.

    Já ouviste choro de mulher ao telefone? É curioso. Era uma senhora — e tu conhecê-la — que se queixava do abandono do marido que lhe fora arrebatado por uma das mariposas do Assírio, a Colete.

    Pediu-me que fosse vê-la, sabia do meu poder sobrenatural, da minha força prestigiosa e nela confiava para reaver o ingrato que se metera de muros a dentro com a alegre rapariga, como Tannhaüser com Holda na tal montanha de Vênus.

    Fui e queres que te diga? desde a entrada compreendi a razão da vitória de Colete sobre a desventurada esposa que, aliás, é uma linda mulher... Mas... Vamos ao amavio.

    Colete, como sabes, é uma artista exímia em voluptuosidades. Parece ter o curso completo de uma didascalia de Lesbos. Ninguém, melhor do que ela, conhece a arte de aparecer nua nos trajos mais leves e sedutores; ninguém sabe temperar tão bem o aroma de um ambiente e a luz discreta, estender tapetes que absorvem o rumor dos passos como as esponjas absorvem a humidade, espalhar alegria, alongar-se numa otomana, estirar languidamente os braços para que as mangas lhe escorram até as axilas. Não ha tedio que resista àquele demônio. É como se veste, como escolhe os tecidos e as cores, como sabe enlear em carícias o homem que dela se aproxime, com que arte sutil de aranha amorosa prepara a teia de volúpia que é... ela toda. Sempre que a vejo acho que admirar: é um timbre mais meigo na voz, mais languidez nos gestos, mais brilho ou dormência nos olhos, filtros novos, amavios de composição recente e assim a Circe não deixa entrar a monotonia no espírito do amante. É uma rosa que se não dá inteira, mas pétala a pétala e sempre fresca, guardando surpresas para os dias que se sucedem cada vez mais exigentes.

     E a esposa...? Não imaginas como a encontrei: pálida, com olheiras fundas, o ar fatigado das vigílias sofredoras e... arranjada com tão pouco esmero que... francamente. Quis, desde logo, dizer-lhe com franqueza o motivo da preferência do marido pela doudivanas do Assírio, mas, tu compreendes, é tão difícil dar a entender a uma senhora que ela se veste mal e que não tem a arte, tão preconizada por Ninon de Lenclos, de se fazer desejar hoje mais do que ontem, e amanhã mais do que hoje... Hesitei, ela insistiu e a piedade venceu-me: disse-lhe tudo, tudo: o que ela devia fazer para reconquistar o marido lutando com armas iguais às de que se servia a rival. Ah! meu amigo, foi um duelo admirável!

     — E o mestre d’armas foste tu?

     — Mestre d’armas? Não, eu fui o feiticeiro que compôs o filtro, o amavio vitorioso servindo-me dos próprios ingredientes que encontrei na linda criatura, que só não vencera com eles porque não os sabia dosar e utilizar. Hoje é um encanto. Como se veste, com que graça caminha, como volve os olhos, que até se tornaram maiores e mais negros, como abre covinhas nas faces quando sorri, como se senta dando um jeito gracioso ao corpo, como... É outra em tudo, absolutamente outra, graças aos meus conselhos.

     Se as mulheres soubessem compor os amavios, em que são tão hábeis as mariposas, não haveria tantos lares desfeitos, tantas tragédias intimas, tantas vidas desorganizadas... Mas qual! A amante sabe que precisa prender o homem e vale-se de todos os artifícios; a esposa, como se julga garantida pela Religião e pela Lei, abandona-se, descuida-se e é o que vês: casos inúmeros como esse em que entrei a chamado da vítima, que é hoje uma das elegantes mais cotadas em nossos salões.

     — E o marido? Voltou?

     — Se voltou? a todo o pano. E adora-a e com tal ciúme, meu velho... com tal ciúme que eu acho que não dosei bem o amavio e carreguei de mais em certas coisas porque o homem está uma fera. O diabo é que ela contou o seu caso às amigas e eu hoje não tenho mãos a medir com a fama que se fez em volta do meu nome, fama de feiticeiro mundano...

— Fama... só? sem proveito?

— Perdão: isto é segredo profissional.

FINADOS

    — E foste a três cemitérios?

    — Fui. Que queres? Visitas como outras quaisquer. Vou a tantos salões por formalidade, porque não havia de ir a esses hipetros, onde se está mais à vontade e livre das setas da maledicência que nos ferem pelas costas, setas ervadas em sorrisos escarninhos e despedidas pelos arcos formosíssimos, que são as bocas vermelhas das elegantes amazonas da dicacidade? Fui a três cemitérios, pois não. Levei flores e visitei mausoléus e túmulos, detendo-me junto deles com a mesma compostura grave com que me inclino diante de certas pessoas que me são apresentadas e que, para mim, valem tanto como defuntos.

    — Mas então não acreditas?

    — Em que?

    — Na alma?

    — Acredito, como não? Eu acredito em tudo que é mistério. Não discuto, aceito com a mesma docilidade com que me submeto às leis humanas. Não sou desses que, enfeixando em archote umas palhinhas débeis — que outras coisas não são as tais doutrinas esotéricas — atrevem-se a explorar profundezas as mais recônditas onde a razão desvaira e debate-se como em asfixia. Tenho horror à escuridão e respiro mal nos subterrâneos. Nasci à flor da terra, ao sol e, assim como não disputo o mar aos peixes nem o ar às aves, não penso em desvendar o segredo da sombra. Quero-me cá fora, à luz clara, ao ar livre, com o meu astro leal, que me guia seguramente os passos.

     Demais, meu amigo, não me consta que as almas habitem os cemitérios. A alma, se existe, sendo espírito, é volátil e, desde que se desprende do seu involucro, difunde-se, reintegrando-se no ambiente que lhe é próprio, o infinito; como o ar, contido na bolha, mal se liberta, espalha-se na atmosfera; como a gota d’água reverte ao oceano.

     No cemitério o que resta é o bagaço da vida, ou, digamos: a “ipueira” na qual assentou o poucochinho d’água vital que, absorvida pelo sol, subiu ao espaço, voltando a incorporar-se ao “mar” imenso, princípio e origem de tudo. Essa “alma”, identificada por mim à gota d’água, atraída pelo turbilhão, ascende para purificar-se na altura e tornar à vida, como em chuvas copiosas e orvalhadas serenas regressam à terra regadamente as águas do mar e dos rios, dos pantanais e lameiros e o rocio que aljofra as folhagens.

    As almas, no surto em que se elevam, redimem-se, perdem a consciência da vida anterior, renovam-se no Éter para outra existência, como se dessalgam as águas do mar e purificam-se as dos mais pútridos marneis caindo todas límpidas em chuvas portadoras de eflúvios, que são a fecundidade.

    No cemitério tudo é terra e tanto vale a que jaz em mausoléus suntuosos como a que entulha a vala comum. E, para prestar culto à terra, não é preciso ir ao Campo Santo, porque ela é a mesma em toda a parte. O culto dos mortos tem a sua poesia, não nego, mas daí a o quererem tornar uma religião vai muito. E o que por aí se faz chega a ser sacrilégio — exaltação de túmulos, que são jazigos, em altares de idolatria.

    — Como os das igrejas. Porque a verdade é que nesses também nós não veneramos outras coisas senão ídolos. A imagem ante a qual nos ajoelhamos, orando com fervor devoto, não é Deus, mas a nossa imaginação acaba por transfigurar esse convencionalismo em divindade, abstraindo tudo que nele ha de terreno, substancia e forma, para atribuir-lhe a essência do próprio Deus eterno.

    Aquele que ousasse, entre fanáticos, que são os levitas de todas as religiões, mostrar na imagem o lenho e ainda o trabalho do artista, seria tido como profanador e pagaria o pecado infame com a vida.

    E por que? por haver dito o que o próprio Jesus negou-se a dizer a Pilatos, porque, para a manutenção da Fé, não se deve, efetivamente, dizer a verdade. Sendo assim, não é demais que nos concentremos religiosamente à beira de um túmulo, ao qual vimos baixar o despojo de alguém que nos foi caro. No túmulo há, pelo menos, um pouco de verdade... em pó. E no altar? ficção apenas.

    — Sim, a imagem não é Deus e só um rude a terá por tal. Mas também as letras não são o Pensamento, são células de palavras e são as palavras que encarnam o Pensamento. A imagem é, pois, um. símbolo como a letra e, do mesmo modo que, com o alfabeto formamos toda a nossa ordem mental, condensando nas letras as ideais, com as imagens formamos o nosso devocionário, incutindo nelas a Fé.

    A letra, como o cadáver, é uma forma inerte. O que vale na letra é a expressão, a vida, e é o que delas nos fica no espírito. O que nos fica dos mortos é também a expressão do que eles foram, não a representação material; a parte do sentimento e não a dos sentidos; a saudade, e não a ossada.

    Diante de um grupo de letras ninguém se detém a examinar a forma de uma ou de outra — interpreta-as reunidas, tira-lhes a expressão e passa. Quando se decora um ditame impresso em livro não se lhe guarda a forma gráfica, conserva-se apenas a sentença em essência, ou expressão. O mesmo se dá à beira de um túmulo. Que ha nele? um esqueleto: resíduo. E é isso que buscamos? Não! Buscamos o que esse esqueleto nos recorda ou sugere: o corpo, a forma, o que foi alma, a vida, enfim, com a sua expressão própria.

    Assim não é pela morte que vamos aos cemitérios, como não é pelas imagens que procuramos as igrejas, como também não é apenas para olhar as letras que abrimos os livros: vamos aos cemitérios para recordar a vida, vamos às igrejas para pensar em Deus, lemos para absorver ideias. Tudo símbolos, gestos da imaginação.

    — Mas o mundo é só de aparências. Viver é existir, é ser; e o que é, meu amigo, mostra- se, exibe-se visível, sensivelmente. O mais...

    — O mais é tudo! O que se não vê nem se sente é o que, em verdade, existe. O tangível é material e sendo material é precário. O eterno é incorpóreo.

    — Sendo assim, que foste fazer aos cemitérios?

    — Fui por tradicionalismo. Era dia de Finados, fui. Deveres. Quando leio a notícia do aniversário de algum amigo, se, por qualquer motivo, não posso ir cumprimentá-lo à casa, mando-lhe um telegrama. Aos mortos não se telegrafa. É verdade que eu podia mandar flores por um criado. Fui. Mas se houve dia em que não pensei nos meus defuntos, esse foi o de ontem.

    — Por quê?

    — Distrai-me. Tanta gente alegre nos cemitérios. Quando estou só, no silêncio do meu gabinete, é que me recordo com saudade (oh! a saudade... essa é que é a visitadora dos túmulos... e, entretanto, não sai do coração!). Mas como eu dizia: quando estou só é que me recordo dos meus finados. Ouço-os, sinto-os, às vezes, até, como que os vejo e falo-lhes...

    — Em espírito? Mas o espírito é invisível, tu o disseste.

    — Não sei: ouço-os, sinto-os... vejo-os, tenho-os presentes: minha mãe, com aquele sorriso que irradiava bondade. Heloisa, loura... loura... Horácio. Enfim — todos! todos! Vivem comigo.

    — Se assim os sentes é porque eles revestem a forma material, nesse caso...

    — Não, não os sinto materializados. Certos perfumes, certas melodias, às vezes um leve som de voz, um murmúrio de folhagem transportam-nos, de repente, ao passado, repondo-nos em certo instante remoto da vida, entre seres queridos que nos envolvem em carinhos. Alguma coisa como um sonho. Pois é assim. Os meus mortos aparecem-me em sonhos tais, são eles que me visitam. Fui aos cemitérios retribuir-lhes a meiguice. Fiz bem.

     — Naturalmente. Dantes os cemitérios enchiam-se de multidões que se substituíam. Eram verdadeiras romarias! O dia de Finados era bem o da comunhão das almas, dia de culto piedoso e de suave saudade. Hoje...

     — E tu? Foste?

     — Aos cemitérios...?

     — Sim...?

     — Não. Sabes, os meus parentes viveram sempre ás turras e nem depois de mortos quiseram ajuntar-se — declaração expressa nos respectivos testamentos. Estão por aí espalhados: um em S. João Batista, outro no Caju: o meu avô em Maruhy, um tio em Inhaúma. Não me ficava bem visitar um sem visitar outros e para tanto não me sobrava tempo. Demais deitei-me às quatro da manhã e tive ontem um “five ó clock” (sem dança, já se vê) a que não podia faltar. São os tais deveres sociais. Mas entendo que o culto dos mortos deve ser praticado, não só porque é a mais antiga tradição da humanidade, como porque é piedoso, poético. Mas, que fazer? a sociedade dos vivos é mais exigente que a dos mortos.

    — E mais triste.

    — Isso é que não!

    — Entra-lhe no íntimo, meu amigo, entra-lhe no íntimo. Nos cemitérios há, pelo menos, tranquilidade e as covas fechadas não tresandam: recendem a flores. Enfim, deixemos os mortos em paz. Vamos ao chá, antes que esfrie.

UTOPIA

     A vida é uma combustão. Nós ardemos como as fogueiras abrindo clarões e espalhando calor, e o fumo que de nós se desprende, tênue ou espesso, é o que chamamos ideal, ou melhor: poesia.

     Diversas são as formas que esse fumo toma no espaço ou no tempo, para onde quer que flua ao vento: ora sobe em espiral, e é a aspiração; ora vai de rojo, aos coleios serpentinos, rastejando à flor da terra, e é a cobiça; ou forma esses halos lânguidos e caprichosos nos quais se nos vão os olhos e que se chamam amor ou glória, ilusões falazes, volutas efêmeras, círculos volúveis de fumo leve que a mais branda aragem dissipa. O nome dessa fogueira, que desabrocha em pétalas flamejantes, como uma flor, é... (já de certo adivinhaste): Ambição.

    — Assim... resumes a vida na ambição?

    — E não é ela o fogo infernal em que nos consumimos, em uns mais vivo do que em outros, mas sempre o mesmo fogo, chame-se ele desejo ou aspiração, apetite ou fé, avareza ou volúpia, orgulho ou ciúme, simpatia ou inveja? Nesse fogo vivemos, lutamos até que revertemos às cinzas tristes, que são os resíduos de todos os esplendores e misérias.

    — E essas fogueiras, que somos, com que ardem? que lenha queimam?

    — Em umas, são troncos; em outras, achas; ainda em outras, gravetos, ramalho, folhas secas, chamiço. A lenha... dizes a rir. Ela aí anda às carradas e os lenhadores não cessam de a derrubar na grande floresta eterna em cuja orla nos achamos e de onde nos vêm todas as forças, que é o Tempo, variável na aparência, como um rio que reflete paisagens diferentes, mas que é sempre o mesmo. São as ideias, são as virtudes e os vícios, é a vontade, tronco robustíssimo, são os caprichos, folhas secas; são os sonhos, flores; é a volúpia, raiz que se retorce e crepita e silva quando se inflama, é tudo, tudo! Todas as preocupações, todos os interesses, todos os ideais de beleza, o sublime, e o hediondo, desde a abnegação até a perfídia, desde a honra até o perjúrio e ainda ramúsculo de vaidade, que são os que mais crepitam e rechinam espirrando faíscas que parecem estrelas, não sendo mais que cinza.

    — Aí vem a mulher! Já estava tardando...

    — Não. A vaidade não é privativa da mulher. A vaidade, como direi? é um requinte de egoísmo, ou antes: é a flor do egoísmo, que não é só feminino: é humano.

    Flor... é muito espinhosa as vezes, valha a verdade.

    — Como a rosa.

    — Mas não nos desviemos das fogueiras, até porque, com a noite, fria, como está, é agradável a loura companhia das chamas. Dizias que tudo é lenha...

    — Tudo! A imaginação, que é? labareda que sobe esplêndida aclarando a noite tenebrosa, rompendo, devassando todas as escuridões, afugentando feras e malefícios.

    — E criando fantasmagorias trágicas com as sombras que agita, que, sem ela, ficariam no imenso chãos, na caligem do silêncio noturno.

— Assim, e estás comigo, foi a imaginação, a grande labareda, o pincel de fogo que debuxou na tela escura dos tempos as figuras dos trasgos elementares, pavores da noite primeva que se transformaram cm deuses. Foi nessa labareda que os sacerdotes acenderam o fogo dos holocaustos, as sibilas o lume das suas trípodes, os artistas e os mesteirais os seus fornos, as feiticeiras o braseiro em que ferviam os caldeirões dos seus filtros, Fausto o seu acanor, os vates os brandões com que alumiam o Futuro e Apolo, que é a Poesia, tomou a flama do seu estro, os numes subterrâneos as chamas dos seus estígios e as fagulhas que dela saltam em piscas espalham-se pelo universo como sementes e são as iniciativas que, umas vezes, as mais das vezes, apagam-se e pegam, de quando em quando, ateando outras fogueiras iluminadoras em volta das quais se assentam as gerações e gozam o conforto do calor; e o benefício formoso da claridade.

    — Quando não lavram em incêndios arrasadores...

    — As guerras...

    — E outras calamidades produzidas pelas faúlhas da tal labareda. Fazes a apoteose de Prometeu.

    — Sim, e com razão e justiça, porque o Titan, na sua aventura temerária, o que pretendia era trazer à terra o fogo celeste, o fogo que se não extingue, o fogo que arde por si mesmo, sem combustível, por ser eterno, para conservá-lo em uma lâmpada...

    — O crâneo.

    — Não, o crâneo, esse será o fornilho da forja em que amolgamos o pensamento para o afeiçoar em ideias: o coração, que é a lâmpada onde deve arder, em brilho suave, o lume celestial, luz que é uma prece continua, um conforto perene.

    — O amor?

       — Amor, sim, esse seria o seu nome se o, não houvessem abastardado tanto, tirando-o do sentimento para apelido do instinto. Eu chamo-lhe: Bondade. Se o Prometeu pagão não conseguiu, com o seu sacrifício na montanha, o grande sonho, outro o realizou na altura do Calvário e o lume aí está aceso, fulgurando irradiantemente nos três símbolos, que são as Virtudes Teologais.

    — Bem se vê que andas a ler os Padres. Estás infiltrado de Vieira, de Bernardes, de Frei Antônio das Chagas, de Thomé de Jesus. Acabas monge, em alguma cela, continuando a obra do oratoriano, tanto do apreço de Camilo, que se acha na corrente das tuas ideias, quando por mais não seja, pelo titulo: “Luz e calor”.

    — "Não, não me sobra tempo para leituras. Não é nos livros que me instruo, mas nos fatos. Falamos dos carvoeiros que devastam as florestas e, todavia, não são eles tão cruéis como os que andam pelo mundo através dos costumes, das leis, das tradições, de tudo que constitui a riqueza moral da Humanidade. O lenhador perdoa as árvores novas quando as vê cobertas de folhas verdes e desabotoadas em flores, poupa os pomares e os jardins, o arvoredo que resguarda as fontes e os. arbustos que se adensam formando os frescos agasalhos nos paramos. E na luta em que nos acirramos? a derrubada é feroz. Tudo a ambição reclama e devora e, quanto mais se lhe dá, mais exige a sua voracidade e o resultado é o que vemos: a assolação, o arrasamento de todos os escrúpulos, de todos os melindres e o mundo árido, em cinzas, sem um oásis para repouso d’alma, sem fé, sem o respeito, a generosidade de outr’ora, triste na indiferença, cético, desamorável. Que fazer? Ir ao santuário, como Prometeu pretendia ir ao céu, e tomar na lâmpada uma centelha do lume sagrado para restaurar na vida a Bondade, que é o esplendor da alma e o que a distingue do instinto, prendendo o homem a Deus pela essência que dele trouxe.

    — Acho difícil o que pretendes, meu velho, Dificílimo!

    — Por quê?

    — Porque as igrejas, acompanhando o século, iluminam-se agora à luz elétrica. As lâmpadas foram postas a um canto e o óleo que as alimentava foi lançado também na tal fogueira em que tudo arde, como disseste.

    — Homem, talvez tenhas razão.

    — Assim, pois, meu amigo, resignemo-nos. Vivamos na fogueira, como as salamandras. A Bondade é uma luz doce e meiga, luz de vigília e de consolação, luz de conforto, luz pequenina e as chamas débeis tremem e extinguem-se ao calor das fogueiras. A Bondade teve os seus dias, hoje governa a Ambição. A tua lâmpada é uma antigualha de Belchior, velharia de revenda.

    — Quem sabe lá! Também a de Aladino era velha e realizava prodígios. Ainda confio na Bondade para regenerar o mundo.

    — Faz, então, como o pregoeiro da história que oferecia lâmpadas novas a troco de lâmpadas velhas. É possível que assim encontres o talismã que procuras.

    — Sorris?

    — Que queres, meu velho, a culpa é tua. Descreveste tantas fumaças da fogueira humana e esqueceste a que se evola de ti.

    — Sim, tens razão... Esta, entretanto, vem de um fogo que se pode dizer alimentado com acendalhas do santo lenho, porque é todo de misericórdia.

    — De utopia, meu caro poeta.

NÔMADES

    — É como te digo: só me sinto bem na modéstia da minha “parva domus”, com os meus móveis, os meus livros, os meus objetos de arte, o raio de sol que me entra pela janela, aberta sobre o jardim, desce, desliza pelo tapete até a minha mesa de trabalho, sobe por ela e estira-se na pasta acariciando-me os dedos quando escrevo, como meu gênio domestico, mais belo do que python de Salambô, porque é de ouro e verdadeiramente divino, vindo do céu, como vem.

    À casa é pequena, não há dúvida, mas é minha, só minha, e das recordações que o Tempo vai nela acumulando.

    Quando entro no meu gabinete tenho a impressão de que tudo que nele há — bem pouco e que só tem o valor que lhe dá a minha amizade — agita-se alegremente, vive: as cabecinhas de bronze e mármore olham-me e sorriem, os velhos móveis rangem como se, movendo-se nos seus cantos, estalem as articulações emperradas, as paisagens das telas iluminam-se, ouço-lhes o sussurro das folhas e o murmúrio das águas... Ilusão! Sei lá! A verdade é que fico entretido e encantado a olhar uma coisa e outra — os quadros, as figurinhas, os bustos dos meus poetas e o de Jesus, de Larche, na atitude em que o Menino inspirado maravilhou os graves doutores do Sanhedrin. Abro uma estante, tomo um livro ao acaso, folheio-o, examino-o e, se encontro vestígio de traça, lá vou com ele para a mesa, trato-o como um enfermo, procuro o mal, esvurmo-o e, depois de demorada desinfecção, levo-o para o jardim, exponho-o ao sol e só o reponho na estante quando o tenho por são, inteiramente curado da peste que o devastava. É assim.

    A casa é tudo para mim. Não compreendo essa gente que inventa pretextos fúteis: — mau estômago, fígado empedernido ou falta de criados — para andar por aí, de mala às costas, em vilas balneárias, no desconforto de hotéis de montanhas, empilhada em aposentos, que são verdadeiras estufilhas, dormindo em colchões suspeitos, amassados ao peso de corpos sabe-se lá de quem... e quantos! História...! Isso é gente sem raízes, que flutua na vida como as ninfas nas águas — ao sabor da correnteza, que é a moda.

    Nada como o meu canto, o meu cubículo. Não nasci para viver como dibra. Quero-me quieto, no meu sossego, no meu silêncio, no meu pequeno mundo, entre as minhas quatro paredes, que são os meus pontos cardeais.

    — És uma exceção.

    — Como exceção?

    — Sim. O teu sedentarismo contraria a lei maior da natureza.

    — Em que?

    — Em tudo.

    — Explica-te, homem. Não te compreendo.

    — Todos nós somos nômades: tu, eu, toda a humanidade, todos os seres, o universo inteiro, tudo! a começar pelo pó, que é o princípio e o fim, que, ao sopro brando, levanta-se e vai pelos ares tora, até os astros e o tempo. A vida é movimento continuo, que não admite a mais breve pausa. Movemo-nos, caminhamos sempre com o ritmo da pêndula: para diante, como o sol, ou para traz, como a noite, que é um regresso ao Chão.

    — Caminhamos sempre... Homem, francamente, não havia dado por isto. Agora, por exemplo, neste delicioso “far niente” em que preguiçamos: tu, aí na poltrona; eu, nesta rede admirável...

    — Estamos caminhando, pois não. A bordo, quando viajas, sentes, por acaso, a distância que percorres? Não, o navio leva-te e se estiveres no salão, conversando, ou no teu beliche, deitado, e não ouvires o rumor das máquinas nem sentires o jogo do navio não te lembrarás que vais pelas ondas, alongando-te, à distância, com outras terras, não mais as da pátria, passando a outro clima e, se olhares o céu, à noite, não perceberás, de pronto, que as estrelas são outras.

    O mundo visível, enfim, sempre nos dá avisos dos seus caminhos, assinala-os de um modo ou de outro: aqui, um porto; ali, uma ilha; além, um rochedo com o farol a prumo. A viagem no invisível, mais rápida do que as que nos levam de uma a outra latitude, essa, se não a sentimos, é porque a fazemos no Tempo, pela necessidade que tem o espírito de progredir como tem o corpo de mover-se. A nossa marcha na terra pode ser verificada pelas pegadas ou rastro que deixamos; o mar sulca-se em talhos fundos, vestígios efêmeros, mas sempre vestígios, como um franzir de sobrolhos no relâmpago de uma suspeita.

    Procura, entanto, no espaço o deslize de um voo — e a ave, todavia, passou batendo as asas. Assim como a ave cinde o ar nós atravessamos o Tempo.

    Respirar é avançar no espaço, com o próprio alento que nos ele dá; imaginar é avançar no Tempo. E vês o que respiras? E alcanças o que imaginas?

    A bordo, olhando por uma das vigias do salão de jantar, vemos o céu imenso, de longe em longe, a ampola túmida de um vagalhão; às vezes a carneirada de velo espumoso correndo em tropel pelo oceano. E nós ali tranquilos, tomando, com delícia, a nossa sopa e conversando com um companheiro de mesa, amigo de ocasião, um desses flutuantes dos quais nos fazemos íntimos e que, logo ao desembarcarmos, esquecemos.

    E que impressão nos deixa esse espetáculo das ondas em debandada? Temo-las por fugitivas que passam diante de nós espavoridamente, como um rebanho acossado por tempestade ou perseguido por lobos em alcateia esfaimada. Não somos nós que caminhamos, é o oceano que foge. O oceano a fugir... Vaidade dos olhos! O oceano foge através da nossa ilusão como a paisagem passa vertiginosamente à nossa vista quando viajamos em caminho de ferro.

    São montanhas, florestas, rios, aldeias, ranchos que correm fantasticamente em levada de ciclone? Não, meu amigo — a paisagem mantem-se imóvel, nós é que vamos por ela no comboio que atravessa campinas, vinga serranias, galga despenhadeiros, vence os mais íngremes aclives, precipita-se de cumeadas, vareja túneis, rola estrondando em pontes sobre rios caudais e cachoeiras tumultuosas... somos nós, somos nós.

    A mesma ilusão faz-nos dizer que é o Tempo que passa... O Tempo...! Nós é que por ele vamos e os dias e as noites, as horas, enfim, aceleram-se diante de nós e passam como passam as ondas para os que as vêm pelas vigias do salão do transatlântico em que vai, e como passa a paisagem aos olhos dos que viajam em caminho de ferro.

    E a prova, meu amigo, é que os dias amanhecem sempre lindos, como o de hoje... E nós? Nós nos vamos curvando, engelhando, embranquecendo, cobrindo-nos da poeira dos caminhos ou das neves que se esfarinham ao alto. Ilusões...

    — Então achas que aqui, por exemplo, estamos caminhando?

    — Vertiginosamente.

    — É possível. Tudo é possível neste mundo em que as teorias são tão varias como os gostos. Para mim — é o meu modo de ver, desculpa-me — se, nesta rede, que faz honra às tecedeiras da tua terra, assim de pernas estendidas, estou caminhando, não é senão para um sono, que me promete sonhos deliciosos.

    — O sono é um túnel, dizem...

    — Na montanha pesada dos cuidados. E com este bocado de filosofia ponho-me a andar. Faze o mesmo aí na poltrona. Até logo.

MENTIRAS

    — Ora... a Verdade... A Verdade abandonou o mundo na hora em que a mulher, tendo comido, com o bagaço e até com a casca e todos os caroços, o fruto proibido, reconhecendo que se achava nua, o que, até então, lhe passara despercebido aos olhos inocentes, procurou cobrir-se com folhas de figueira. A Verdade, que também andava em pelo, porque não havia outra moda no Paraíso, revoltou-se contra a frandulagem farfalhosa e intimou a mulher a despi-la. A pecadora, porém, sentindo os olhos acesos de Adão, que a queimavam de longe, como dois raios, corou e resistiu. A Verdade, então, intransigente, declarou que se ela não se despojasse daquela cobertura subiria ao céu para denunciá-la ao Senhor. Eva manteve-se no seu propósito pundonoroso, não se desfolhando e a outra cumpriu a ameaça.

    Pouco depois, escurecendo tempestuosamente o céu que, até então, não fora toldado no seu límpido azul pela mais pequenina nuvem, entre flamejos de relâmpagos e estrondos de trovões, o Eterno desceu ao Paraíso e vendo, com os seus olhos magníficos, que tinha fundamento a denúncia que lhe fora feita, expulsou o casal do Éden, como, em nossos dias, os senhorios, garantidos pela Lei, lançam cá rua com os cacaréus miseráveis os inquilinos que não concordam com o aumento dos alugueres por serem superiores ao que lhes rende o trabalho em que se estafam.

    Despejo propriamente não houve porque os nossos primeiros pais não tinham que despejar; saíram apenas com as folhas de figueira em cima do corpo, arranjadas em fraldão, à maneira dos enduapes e das arassoias dos nossos índios.

    Desde essa hora o mundo passou a ser governado pela Mentira, espécie de demônio súcubo que gera o dolo, a fraude, a hipocrisia, a dissimulação, todos os enganos, todos os embustes e disfarces que são o Bem e o Mal, o encanto e o horror da Vida.

    A Verdade, por mais que os anjos lidassem com ela, procurando convencê-la a tornar à terra para combater a adversária que, por meios astuciosos, se havia apoderado da obra perfeita em que Deus, pacientemente, trabalhara durante seis longas eras, deixou-se ficar lá em cima, nua e amuada, e nunca mais foi vista entre os homens.

    Ultimamente, com os vestidos curtos, houve quem ingenuamente acreditasse que ela, apaziguada, tornasse à terra reaparecendo, formosa e triunfante, no dia em que o progresso da moda subisse tanto que as saias, que passaram acima dos joelhos, saíssem pela cabeça e Eva surgisse de novo ao sol tal como andava no Éden florido, entre os quatro rios, maravilhando a natureza com a sua esplêndida nudez.

    A Moral, porém, (filha da Hipocrisia e de certo demônio enfezado que se chama Bom Senso) opôs o seu veto e os vestidos já começam a descer, como o cambio, e, dentro em pouco, se Paris não mandar o contrario, em vez do simples cesto, como o de Vênus, ou nada, como queria a Verdade, veremos, de novo, as caudas roçagantes fazendo concorrência às vassouras da Limpeza Pública.

    A Verdade, austera e intransigente, afigura-se-me uma espécie de Esfinge, agachada na orla de um deserto, olhando espraiadamente o páramo infinito e sem sombra. Tudo que se lhe oponha à vista encobrindo-lhe um ponto no horizonte, — um simples grupo de palmeiras em oásis — será motivo bastante para que se irrite e brade. Quer tudo ao sol, em luz viva e flagrante para que o mais leve acidente não sirva de esconderijo a insidias nem o olhar seja traído por miragens enganadoras.

    Mas para que a vista corra rasa, sem empeço ou sombra que a perturbe é necessário que o campo sobre o qual se prolonga não tenha o mínimo relevo nem a mais breve sombra, que seja chato, vazio, monótono como um saara, seco e sem vida, claro, esplêndido, mas inerte.

    Foi para combater essa esterilidade desconfortável, essa luz intensa, deslumbradora que, por violenta, acabaria cegando, que o Gênio do Mal, no momento em que os dois expulsas deixavam as extremas do Paraíso, curvados humildemente ante a espada flamejante do Querubim, lançou-lhes no crânio, como em um vaso, o gérmen de certa planta prodigiosa, da qual os demônios extraem a essência com que perturbam as almas que intentam perder.

    Essa planta, meu amigo, nós a conhecemos com o nome de Imaginação, sempre desabotoada em flores de ilusões, flores efêmeras, mas que parecem eternas porque, para uma que se desfolhe e morra, logo desabrocham centenas e todas lindas, cercadas de folhas verdes, que são esperanças.

    E que flores são essas? são todas de essência poética: religiões, heroísmos, surtos para o alto, iniciativas para aventuras, amores, tudo que se prende ao ideal — mentiras que colhemos para nosso encanto e com as quais se ornamenta o mundo, a vida perfuma-se e os corações exornam-se.

    Essas são as mentiras — sonhos. Outras há, porém, que inutilizam e depravam levando, muitas vezes, a práticas criminosas. Não são as mentiras por palavras.

    Essas são velhas, conhecemo-las todas: começam em vozes macias nos protestos de amor e vão até a difamação que arrasa.

    Quero, porém, referir-me às mentiras por atos, tão comuns hoje em dia, no domínio pernicioso da vaidade, demônio dos piores, que está transformando os hábitos simples da tradicional honestidade da nossa gente em tudo que ha de mais ignominioso e ridículo.

    São as mentiras de ostentação que se vêm por aí nas ruas e nas casas, em público e na intimidade dos lares.

    São os rostos que mentem à idade. Meninas ainda impúberes que se dão ares de senhoras, rebolindo quadris que ainda se não curvaram, impando colos que apenas desabotoam, salmilhando-se de pintas, envesgando olhares langorosos, amolentando a voz em tom de queixa; e são matronas que se calafetam e besuntam de cosméticos, polvilham-se, ensangram a carmim as belfas, sarapintam os lábios moles. Os cabelos mudam de cor em horas e do branco da velhice regressam alfenados ao louro da mocidade, com o que mais evidentes se lhes torna no estrago das feições, vendo-se-lhes as rugas e os perigalhos como, com o sol, quando bate em cheio em ruinas, mais aparecem as fendas e as ripas escorchadas. E homens, meu amigo, rapazes que por aí andam às gingas, encalamistrados, disputando as graças próprias do outro sexo. Estas são as mentiras ridículas.

     Há as mentiras pedantes como as de certos possuidores de bibliotecas, lidos em catálogos e assíduos nos leilões e em todos os alfarrabistas. Entra-se-lhes no saneta sanetorum onde eles dizem viver enclausurados como beneditinos. Os livros forram as paredes, d’alto a baixo, muito arrumadinhos em vistosos armários. E há de tudo: brochuras comuns e incunábulos; in folios e tomos galantes em estojos de marroquim. E são mesas para a cartografia, leitores como os dos coros conventuais; e poltronas amplas com estantes, otomanas de repouso, todo o aparelhamento necessário ao estudo e à meditação. Tem-se que o dono de tal livraria é um sabedor profundo. Toma-se um volume ao acaso: está ainda por abrir; vai-se a outro e, se não há espátula à mão, contenta-se a gente em examiná-lo por fora,

     Como cavalheiros tais mentem certas damas que se arreiam de pérolas falsas e joias de doblete; outras, devotas, aparentadas com Tartufo, que mentem com rosários e Horas que nunca repassaram ou abriram; mentem outras, que se inculcam virtuosas como Lucrécia, com amuos de escrúpulo com que repelem certas conversas, mas trazendo na bolsa endereços comprometedores. Mas fiquemos por aqui porque descer mais em tal capítulo é perigoso.

    E as mentiras da vaidade? Se soubesses o que por aí se passa em certas casas onde o fogo é minguado e mal dá para fazer ferver uma chaleira para que, com o que poupa em lenha e viveres, possa a família estadear sedas nos salões mundanos... Se conhecesses, como eu conheço, as tragédias de certos lares, cujos chefes esgotam-se afanosamente em serões, sacrificam-se ate a vergonha, arrastam-se na mais degradante humildade, com subserviência de cães, para poderem satisfazer os caprichos absurdos da sua gente... Aqui mesmo, a dois passos de nós, há um caso de tais mentiras que me revolta e penaliza. Revolta-me pelo que nele há de ridículo e compunge-me pelo sacrifício que impõe a duas criaturas.

    Vês aquela casa ali defronte, fechada e em silêncio, com o jardim embravecido em mato? Julgas que está vazia? não: tem moradores — um casal e filha.

    O homem trabalha em um Ministério qualquer e é o único que aparece. As mulheres são profissionais da elegância: estão escondidas. Uma manhã a casa apareceu fechada correndo logo a notícia da partida das senhoras para Friburgo. Friburgo...! Estão ali trancadas e fazendo todo o serviço, porque despediram as criadas e, até Abril, viverão reclusas, economizando, para poderem dizer, na abertura da estação de inverno, nos intervalos das operas no Municipal ou entre um gole de chá e um biscouto nos salões elegantes: que: “não compreendem como se possa atravessar o verão nesta fornalha do Rio de Janeiro”. Triste, não é?

    — Triste?! Mas não acabaste de dizer que a mentira é o encanto da vida? que, sem ela, a existência seria insuportável?

    — Perdão, a mentira a que eu me refiro é a flor de sonho, vulgarmente chamada Fantasia, não essas que são misérias da Vaidade. Mentiras tais são dissimulações de sofrimento e causam-me tanta pena como o riso apático que se implanta no rosto dos idiotas.

A MODA

    Só não é versátil a morte. Na vida tudo se faz por mudanças. Mudam-se as horas que enchem o dia e a noite, muda-se o tempo em séculos, estes em anos, os anos em estações, estas em dias que, segundo as horas, variam entre claridade e treva e, com tais mudanças, como a dos passos no andar, é que a vida prossegue. A mesma repetição, que te parece uma prova de decadência ou esgotamento da imaginação criadora, é uma consequência natural do ritmo: o pêndulo vai e vem como a onda, como o dia e a noite, como tudo.

    Pudéssemos nós repetir-nos e seriamos eternos. Ainda assim, posto que não nos repitamos em ações, repetimo-nos em evocações.

    Que é recordar se não repetir? Que é a lembrança, ou melhor: a saudade senão uma volta da vida ao passado, um grito d’alma provocando o eco, entranhado no silêncio e que dele surge ao apelo da voz como rebenta das pedras a faísca quando as ferimos?

    Os dias são nus e como os vestimos? com o que neles pomos: umas vezes triunfos e hosanas, outras vezes derrotas e clamores desesperados — dias de gala e dias de luto.

    Progredir é mudar, seguir em frente em rumo ao horizonte, mas como o horizonte é uma ficção dos olhos, como a Fé é um horizonte d’alma, meta que se não atinge simplesmente porque... não existe, o que resulta dessa ilusão é que prosseguimos sempre, sempre! prolongando-nos com o tempo.

    Se existisse o horizonte seria uma como muralha, um termo diante do qual a vida estacaria. Assim como o vemos é um eterno precursor como a estrela dos Magos, avançando sempre na altura para um destino misterioso.

    Na marcha para o horizonte em que todos nós andamos os aspectos do trânsito variam a cada momento e essa variedade não está na vida, senão em nós: nós é que a criamos com os nossos caprichos, com os nossos prazeres e com as nossas dores, pondo tais aspectos de acordo com o estado da nossa alma.

    A luz é invariável e, no entanto, há dias tristes e dias alegres. Qualquer nuvem que encubra o sol, ainda a mais pequenina, fará um eclipse instantâneo.

    Não há nada mais suscetível do que a alegria. O riso é superficial como o brilho das águas e como a verdura do solo — o fundo do coração, como o dos abismos e o da terra, é escuro. Assim o riso é um atavio sobreposto à tristeza, galão de ouro em esquife, ilusão para os olhos, engano d’alma.

    O sorriso, esse, sim, é um enfeite discreto como os que usam as mulheres de bom gosto.

    Achas a moda extravagante, por vezes disparatada e ridícula, e, principalmente, absurda porque o homem deve ser simples, natural, espontâneo; reprovas as louçainhas, os recortes dos trajos, a exagerada abundância de plumas, peles, rendas, sedas e veludos, as joias, as superfluidades galantes, os penteados bizarros, os arrebiques a custa de águas venustas, unguentos, cosméticos, eletuários, pós e mil tafularias que dão viço e frescor à cútis, fulgor aos olhos, lustro e cor aos cabelos, brilho às unhas, graça às formas e encanto ao conjunto do corpo feminino.

    Entretanto, com o teu sentimento poético da natureza, paras em enlevo contemplativo diante de uma árvore florida, comoves-te com a magia de uma manhã luminosa ou de uma dessas nossas noites alvas de luar. Pois, meu amigo, que é tudo isso senão arranjos faceiros da natureza?

    Todas essas maravilhas em que te arrebatas são tão enganadoras, tão artificiosas como as tais mistificações de que se servem as mulheres para enganar-nos encantadoramente.

    Não acredites no apregoado poder inventivo da Vaidade. Tudo que se faz no mundo resulta das lições da Natureza. Nós limitamo-nos a imitar o que vemos nas eternas exposições com que se nos revela, cada vez mais admirável, a criadora da Beleza.

    Ai! de nós se não fosse a moda com os seus múltiplos aspectos, com as suas mutações constantes. Já nos teríamos enfarado do que existe, o mundo seria uma desenxabida monotonia, a vida seria igual à morte pela imutabilidade. Assim a moda é como uma ideia em marcha, um pensamento em progresso no corpo, a poesia ajustada à plástica, variando em concepções, em forma, em imagens e em ritmo e renovando a beleza, como o estatuário, com os mesmos modelos, cria agrupamentos novos, modificando a atitude e a expressão das figuras, como o poeta, retomando ideias antigas, dá-lhes forma mais retocada e rimas imprevistas.

    Há criaturas privilegiadas que trazem n’alma, cheia de graça, o dom da beleza como o verdadeiro poeta traz o dom da Poesia; criaturinhas que, com um nada fazem uma maravilha e ao lado de certos ídolos asiáticos, caricaturas monstruosas da moda, que se sobrecarregam de sedas e de joias, impõem-se com simplicidade graciosa, como um raio de sol no florão de um templo faz desaparecer a balbúrdia espalhafatosa de um ramalhudo candelabro, a escorrer cera das suas luzes linguajadas.

    Temos o exemplo de Mimi Pinson, que era a própria graça e que, entretanto, como disse o seu poeta:

Flle n'a qu’une robe au monde

Landerirette!

Et qu'un bonnet.

    Não é a moda que é ridícula, mas a falta de gosto. Entra a floresta e verás como a Natureza foi a mestra de Mimi Pinson.

    Verás árvores lindíssimas tendo apenas, enlaçada no tronco e emaranhando-se-lhe pela folhagem, a fita de um cipó florido; e rochedos do alto dos quais desce um nastro d’água espumosa, o bastante para enfaixá-los. E não precisam de mais as árvores e as pedras para nos encantarem a vista. O abuso, esse sim, esse é que é horrível! Mas a moda não tem culpa de que a não saibam usar. A paleta nas mãos hábeis de um verdadeiro artista dará aos pincéis todos os tons próprios para os efeitos d’arte, nas mãos de um pinta-monos não se refletirá senão em manchas e borrões.

    A mulher, ajustada na moda, ainda a mais atrevida, como essa dos vestidos curtos que nos trouxe a guerra e que, a princípio, tanto enfureceu a Moral, acabando por vencê-la e impor-se, não desperta jamais pensamentos impuros se nela há aquilo que eu chamo o “espírito da beleza”, que é a graça. Sem isso, sem o necessário senso estético, a moda só por exibição... não!

    A moda tem as suas exigências, as suas proporções de tempo e de espaço: corpo e idade. Há certas modas que não podem ser usadas por... certas criaturas. É como aquilo da fabula do “Cãozinho e o asno” querendo o segundo festejar o dono com a mesma intimidade com que o faz o primeiro. O resultado di-lo o fabulista:

Jamais un lourdaud, quoi qu'il fasse

Ne sauroit passer pour un galant.

    Em casos tais concordo contigo. Acho até que a moda deve ser proibida a certa gente.

    Há dias — achava-me eu com alguns amigos à porta do Alvear — quando se aproximaram de nós umas quinze arrobas de enxundia abalonada em um vestido de ramagens que lhe dava pelos joelhos. Palavra! Tive ímpetos de deter aquele toucinho bradando-lhe à cara que o calor atorresmava:

    “Senhora, quem tem tais penas esconde-as, não anda com elas em publico. Respeite a decência e as caras”.

    Mas que culpa tem a moda de tais contra-sensos? As “viúvas-alegres” deviam servir para a limpeza pública, retirando da circulação esses monstros que fazem mal aos nervos e comprometem a moda, que é a renovação graciosa da Beleza.

SERVILISMO

     — Chamas a isto devoção? Eu chamo-lhe subserviência, ou melhor, servilismo. Estou de acordo contigo quanto à virtude que a exorna, acho até que muitos dos santos, diante dos quais ela se prostra em ascese, se competissem com ela em pureza, seriam forçados a ceder-lhe a glória celestial.

     A sua bondade é das que não distinguem os seres e sentem o sofrimento das próprias coisas. Já a vi d’olhos marejados diante de uma árvore abatida. É um modelo, não há dúvida, mas, talvez por viver constantemente a lidar com as coisas do céu, com o pensamento nas alturas, desdenha de tudo que é terreno.

     É uma santa, mas as santas, por excesso de contemplação, trazendo os olhos sempre extasiados no mistério, não vêm o que se passa cá em baixo; e este mundo é tão cheio de abismos, tão pedregoso e espinhento que se a gente não anda por ele de olhos bem abertos, o menos que lhe pode acontecer é quebrar uma perna.

    É o caso do astrólogo da fabula, sempre preocupado com os astros, que, no enlevo cm que ia, adorando as constelações, não deu por uma cova que havia no caminho e trambolhou por ela dentro. Tu é porque não tens intimidade naquela casa. Aquilo é um moinho de orações, como os ha na China.

    Para não perder tempo o Chim levanta um poste, põe-lhe em cima uma espécie de gaiola encaixada em um pino e com arestas à maneira de asas, nas quais, dando d’esguelha o vento, põe em giro o aparelho de devoção.

    O Chim escreve o seu peditório em uma nesga de papel de arroz, atira-o na gaiola e vai-se. E lá fica o moinho às voltas pondo em movimento, como fariam os lábios, a prece depositada.

    É um processo cômodo, que mantem a devoção sem prejuízo da vida ativa.

    O crente, ouvindo ranger a tal tremonha mística, fica contente e continua a cavar a terra ou a fazer outro qualquer serviço certo de que os seus rogos irão ter ao céu levados pelos ventos.

    Naquela casa, que é um santuário, tudo depende do oratório, que é a caixa de devoção, mas que só realiza os milagres se nela vão ter as palavras humildes das preces sabidas diretamente do coração, pelos lábios.

    Tudo ali está á mercê dos santos e a vida naquele lar modelo regula-se pelo maior numero de rosários rezados e de velas e lamparinas consumidas.

    Já uma vez os bombeiros entraram estrondosamente pela rua com os seus automóveis, estenderam mangueiras e já se dispunham a inundar o prédio, de onde jorravam, pelas janelas, grossas nuvens de fumaça, quando um criado saiu a explicar que não havia incêndio e que aquela fumaça era de alfazema, incenso e mirra com que a senhora propiciava os santos.

    O aviso fora dado por um vizinho alarmado com a fumaceira que se despejava a golfos enuviando a rua.

    Os pequenos e o próprio Generoso tresandam a resinas e quando o pobre homem passa para o seu negócio de couros os vizinhos murmuram sorrindo:

    “La vai o turíbulo”.

    O pior, porém, é que naquela casa o trabalho não tem valor algum. Não há esforço que conte. Quando o filho mais velho prestou exame vestibular na Escola de Medicina, quem o fez passar não foi o estudo aturado em que o rapazola, até comprometendo o seu clube, porque não tomou parte em um dos mais renhidos jogos, emagreceu sobre os livros; quem o fez passar, na opinião da senhora, foi o seu devoto Santo Agostinho e se a filha, que é linda como os amores, conseguiu impressionar o Amâncio, que a pediu, não foi pela beleza dos olhos, nos quais há a doçura da alma materna e uma faísca petulante que os torna encantadores, mas porque Santo Antônio, com a promessa de umas tantas velas, influiu no Amâncio, obrigando-o a marcar o casamento para os primeiros dias de Abril, com as rosas.

    Generoso, esse, que é um trabalhador esforçado, um espírito ativo, sempre alerta, ainda que a senhora o ame hoje com o mesmo enlevo com que o amou no dia em que uniram, para o todo o sempre, em ventura, os seus destinos, não tem para ela, valor algum como... homem de negócios. Se realiza, com êxito, alguma operação na Bolsa, do que logo a senhora tem parte numa lembrança carinhosa, proporcional ao lucro: joia, apólices ou mais um prédio, pensas que ela, com o seu doce sorriso, lhe atribui a fortuna? Enganas-te. Foi sempre um santo que andou no caso como corretor, arranjando as coisas com habilidade, até, às vezes, trapaceando para obter o resultado próspero.

    A princípio Generoso irritava-se, discutia, deixava de comer, amuado, ameaçava os pequenos, despedia os criados. Agora, não — resigna-se. E quando aparece em casa, contente, com algum embrulho para a mulher, vai-lhe logo dizendo desde a porta:

    — Mais um milagre, minha velha. Foi algum dos nossos santinhos que me arranjou hoje um negócio da China. E, como adora a mulher e só se sente feliz quando a vê risonha, não só traz a prenda com que sempre lhe dá o dizimo dos interesses, como umas velas de cera e uma caixa de marcas de lamparinas, para os santos.

    — E o caso do Mendes? O Generoso queixou-se-me do nosso amigo, dizendo-me coisas atrozes. Que houve com ele?

    — Que houve! Um dos acessos de neurastenia do Mendes. Uma noite, disse-me ele, tarde e com água que Deus mandava, chamaram-no da casa do Generoso para ver um dos pequenos que estava com a garganta tomada e ardia em 40° de febre, delirando.

    Mendes vestiu-se às pressas, muniu-se de soro antidiftérico, mandou vir um automóvel e partiu. Era um caso gravíssimo. Mendes não perdeu tempo e, não só fez a injeção no pequeno, como impôs a toda a gente o tratamento profilático. No dia seguinte, indo à visita, encontrou o doentinho em excelentes condições, declarando, então, que ia comunicar o caso à Diretoria de Saúde para que mandasse desinfetar a casa. Foi nesse momento que se deu o choque: A senhora opôs-se: Que não! Não queria saber de desinfecções. Já mandara preparar os defumadores, abrira o oratório, acendera velas e rezara onze rosários, fora umas orações miúdas que tinha para casos urgentes.

    — Mas, minha senhora, eu também sou católico, vou à missa, comungo de vez em quando, mas quando há doenças, desculpe-me, prefiro a uma hóstia, que é remédio santo para a alma, o que Deus nos deu para cura do corpo, e engulo um comprimido de aspirina. É assim, minha senhora. O próprio Jesus disse: “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”. Cesar é o material, o corpo, digamos... Pois demos ao corpo o que ele pede e deixemos a hóstia para a alma.

    A senhora sorriu irônica e saiu-se com esta que pôs o Mendes fora de si:

    — Ora, Dr.... eu não lhe queria dizer, mas o senhor pensa que foi a sua injeção que curou meu filho?... Pois sim! Não lhe tivesse eu posto ao pescoço o cordão de S. Bento e, a esta hora, não sei...

    — Mas então porque me mandou chamar, minha senhora? Se tinha em casa o cordão de S. Bento porque me expôs a uma pneumonia ou coisa pior com uma noite daquelas...?

    — Ora, porque... Pois o senhor não é médico?

    — Sou, minha senhora, sou médico, mas aqui ponho mais os pés como clínico, para mão fazer concorrência aos meus colegas do oratório.

    Disse e cumpriu como me contou o Generoso indignado, repetindo-me o recado que ele mandou à boa Dona Eufemia que o chamara para ver um dos pequenos:

    “Entenda-se com S. Benedito, minha senhora”.

    Queres saber, meu amigo, a religião assim em excesso é vício e, como todo o vício, é pecado. Nem muito ao mar nem muito à terra, nem ateu nem carola. Deus quer a virtude, não o servilismo.

    Lá está no Convito, lembras-te?

    Iddio non vuole religioso di noi se non il cuore.

TIMIDEZ

    — Por que não os públicas?

    — Não tenho coragem. Os meus poemas são violentamente audaciosos. A frase é tua. A originalidade (ou excentricidade, como queiras) das concepções torna-se ainda mais escandalosa pela forma em que as encerro, pelo vocabulário com que as encorpo, pelos símbolos e imagens com que procuro representar as minhas ideias bizarras e as minhas visões ou alucinações doentias. O ritmo variado, irregular não se subordina à métrica oficial. A minha poesia, boa ou má, corre com a fluência natural das águas, sentindo-se dos meandros e empecilhos do leito — ora serena, ora férvida, tumultuosa; lisa ou acachoada; límpida ou turva espelhando o que lhe fica à margem. E as imagens que nela aparecem são como sombras n’agua, reflexos exatos dos meus mais íntimos sentimentos, das minhas impressões emotivas e, assim como se manifestam em minh’alma ou se me apresentam aos sentidos, assim as traduzo com a fidelidade com que a correnteza reproduz tudo que nela se mira — o céu alto, os ramos acenosos, rochas, barrancas; um pássaro, uma borboleta ou uma libélula que voa roçando nela as asas.

    Sou como os rios que não corrigem as sombras — assim como as recebem imprimem- nas.

    A natureza não obedece a regras, a sua mesma indisciplina é que a torna formosa, dando-lhe variedades e matizes.

    Há aspectos maravilhosos que são verdadeiros absurdos. Na natureza chamam-se caprichos, mas se aparecem em uma obra d’arte são logo taxados de asneiras. Um rochedo, por mais disforme e arestoso que seja, penso, escalavrado, com rebarbas de vegetação selvática e agressiva não perderá com isso. Uma árvore de tronco retorcido, de raízes à flor da terra em cordoveias ondulantes, roída em brocas, será admirável; um pântano coalhado de açucenas atrairá sempre o viajor. A obra poética, essa deve ser estreme, corrigida em todas as suas minúcias, sem um desvio, obedecendo ao cânon estético que, no meu caso é, umas vezes, a gramática, outras vezes o tratado de metrificação. Um pronome mal colocado é como a pedra angular de um edifício que se desloca — o primeiro sansonete, desses que trazem sempre o camartelo gramatical à mão, com uma pancada pora abaixo a obra ainda que dentro dela haja mais riqueza e beleza do que no templo de Salomão. A Crítica aceita e até exalta todas as monstruosidades da natureza — Deus, o poeta máximo, tem todas as licenças: os seus disparates são dogmas e maravilhas. Submete-se ao Criador, mas vinga- se na obra do Homem, e o mais leve deslize é pretexto para uma derrocada. Depois a estética é tão convencional, meu amigo; o gosto é tão relativo, há tantos caprichos... O juízo humano tem mais facetas do que os diamantes de Amsterdam.

    O que eu mais admiro em vocês, os literatos, não é o talento: é a coragem da publicidade. Eu, se queres que te diga, se, um dia, passando por uma vitrina, visse um livro meu exposto, creio que teria tanta vergonha como se, por um desastre, aparecesse nu no meio da rua. É que, no que escrevo, eu manifesto-me tal qual sou, mostro-me sem artifício, eu mesmo, ingenuamente, castamente como uma criança brinca com a própria nudez.

    A obra d’arte é sempre artificial, porque não ha esse que se atreva a escrever o que sente, a refletir o “eu” em um poema ou em uma pagina de prosa. Quando escreve pensa no público e, principalmente, na Crítica e trata de vestir os melhores trajos, encalamistra-se, perfuma-se, faz-se, enfim, elegante para parecer bem aos olhos da sociedade.

    Há casquilhos de salão como ha pelintras de livro. Eu sou um pobre diabo que não me rendo ao convencionalismo.

    Mentir a mim mesmo? Não! Seria ridículo. Prefiro viver no meu Paraíso como Adão vivia no Éden, antes do pecado. Sou um simplório, gosto de andar à vontade e o meu estilo é, em tudo, eu. Sendo assim verdadeiro, sincero, nu, compreendes que não devo sair a público. Fico em casa, contento-me com as quatro paredes do meu gabinete que, se têm ouvidos, como diz o adagio, devem saber de cor todos os meus versos porque eu os recito em voz alta. É um meio de os publicar intimamente, em exemplar único, edição de amador.

    — Porque não adotas um pseudônimo?

    — Não, nada de disfarces. E para quê? Seria pior. Imagina que um desses tipos que fazem “meetings” à porta dos cafés, ignorando que fosse eu o autor velado, investisse a fundo sobre a minha obra, desmantelando-lhe as estâncias, não deixando verso sobre verso... Não sei que faria. Sou um tímido. Não tenho nervos para a luta. E queres saber? Mais de uma vez já me tem acontecido encontrar em grandes autores ideias, imagens, frases completas, versos inteiros que me haviam anteriormente ocorrido e que eu me não atrevera a aproveitar por... sei lá! por medo.

    Em certa ocasião, ouvindo um dos nossos maiores oradores, estremeci a uma frase lançada por ele da tribuna. Segui-a comovido, acompanhando-lhe o desenvolvimento e quando, no entusiasmo do auditório, ele encerrou o formoso paragrafo com um símbolo perfeito, levantei-me d’ímpeto e pus-me a aplaudir como um louco, não a ele, mas a mim, a mim mesmo, porque naquilo que ele, com tão alta eloquência, levantara ao sublime, eu sentira, reconhecera um pensamento posto por mim em estrofe dias antes e que eu rejeitara por achá-lo extravagante. Aquela beleza nascera em minh’alma e, quem sabe! talvez dela se houvesse transmitido ao gênio, melhor terreno do que a minha pobre inteligência, desenvolvendo-se naquela maravilha possante, filha ou irmã da plantazinha da minha emoção e que eu desprezara e matara.

    — Homem, a propósito: tens aqui o grande livro — os “Ensaios” de Emerson. O teu caso acha-se nele previsto, no ensaio intitulado “Confiança em si”. Aqui. Ouve.

    Diz o filósofo:

    “Crer em nosso próprio pensamento, crer que o que é verdade para nós no fundo do nosso coração será verdade para todos, eis o gênio. Dize a tua convicção secreta e ela se tornará a opinião universal porque o tempo transforma as coisas interiores e torna-as exteriores, e o nosso primeiro pensamento nos é devolvido pelas trombetas do Juízo Final”. E adiante: “Em cada obra de gênio nós encontramos pensamentos que desprezamos e que tornam a nós com uma majestade e estranha”.

    Respeitemos todos os pensamentos que dimanam da fonte divina que temos em nós, que é a alma.

    “Sem isto, diz ainda o filósofo, outrem dirá amanhã, com a autoridade do bom senso, o que sempre pensamos e sentimos sem coragem de declarar e seremos obrigados a receber humildemente de alheios a nossa própria opinião que, anteriormente, rejeitamos”.

    — De acordo. O gênio não é só, como disse alguém, uma longa e pertinaz paciência, é, principalmente, audácia. E eu, meu amigo, não tenho coragem de impor-me, de afirmar coisa alguma, Se me perguntarem, em certo tom, se eu sou eu, não sei se responderei com; a afirmativa, porque duvido de tudo.

    — Principalmente de ti.

    — Principalmente de mim.

    — Pois, meu amigo, os que vencem não são, em geral, os mais fortes, senão os mais atrevidos. A vitória é alada e não será de rastos que a havemos de seguir, irias voando.

    — Com que asas?

    — Asas... asas fazem-se com qualquer coisa. Fá-las de aço e atira-te por cima de tudo e dominarás. Quem sobe, tenha ou não mérito, torna-se sempre superior.

    — Pois sim, mas se cai...

    — Ora, meu amigo, cair do azul é sempre mais belo do que escorregar em uma casca de banana. Aos que perecem rolando do espaço, por entre as nuvens, a própria altura engrandece e glorifica e a casca de banana é reles...

    — Tens razão, mas eu prefiro a casca de banana.

CONSCIÊNCIA

    — O que chamas Consciência é assim uma espécie de fantasma que, de quando em quando, nos aparece n’alma, como apareceu a Hamleto, em Elsenor, o espectro do rei.

    — Não. Se dissesses como apareceu a Macbeht o espectro de Banquo rastrearias a verdade.

    — Deixemo-nos de imaginações, meu amigo. Toda essa poeira que assenta na memória vale tanto como a que jaz, cá fora, dormida no solo, e que só se agita e levanta quando o vento a revolve. Resíduos, nada mais. Lembranças, recordações, reminiscências, todas essas pulverizações de ruínas, que também, lá de vez em quando, nos entram pelo presente, escurecem-no, toldando-o de melancolia...

    — Saudade...

    — Vá lá, seja saudade. Mas que valem, em suma? tanto como o pó da terra. O que chamas Consciência e que, sem erro, podias chamar Aleto, Tisiphone ou Megera, que eram os nomes das erinias pelágicas, é também poeira. Fosse a tal Consciência como a pintas e o mais puro e melhor dos homens andaria na vida tão perseguido e atormentado como foi, no Citheron, pela própria mãe e demais bachantes, o indiscreto Penteou. A vida é a vida. Porque a havemos de perturbar com as nossas superstições? Para tormentos já são demais os que temos.

    A árvore do Paraíso é um símbolo perpetuo. Toda eriçada de espinhos, por ela subimos rasgando dolorosamente as carnes para alcançar um fruto que, visto de longe, parece-nos formoso. Guindamo-nos dificilmente até o mais alto das franças, colhemo-lo — é o prazer. Partimo-lo para saboreá-lo e que achamos dentro, em vez de polpa? o mesmo que tinham os frutos das margens do Asfaltite: cinzas. Se é assim a vida porque ainda a havemos de agravar com tantas fantasias cerebrinas? Há, não nego, almas hiperestésicas, de sensibilidade vibrátil, que se comovem até as lágrimas com um simples aspecto da natureza: — o empalidecer da tarde, por exemplo, basta para enternecê-las; outras há, porém, e são em maior numero, da dureza fria do diamante, impassíveis, indiferentes. E essas são as que vencem, são as que valem, são as que se impõem e dominam. Consciência...

    — Negas, portanto, o remorso...?

    — Remorso!? Mas se existisse o remorso o criminoso, ainda o mais atrevido, correria a entregar-se à justiça para livrar-se de tal carrasco. Acreditas que um homem, a quem vestissem a túnica molesta, se deixasse queimar caladamente, sem pedir misericórdia, sem debater-se tentando apagar as chamas que o envolvessem?

    Os chamados Juízos de Deus, ou ordalias, praticados na Idade Média, e os suplícios da Inquisição dobravam inocentes a acusarem-se de culpas que não haviam cometido. Que não fariam os verdadeiros réus se, além dos tormentos, os estimulasse a Consciência?

    Pois o remorso, como o descrevem, deve ser mais torturante do que os braseiros, do que os escarpes e todos os pungitivos ou triturantes instrumentos empregados pelos generosos salvadores d’almas que constituíam o Santo Ofício.

    Visita um presídio e procura aproximar-te do mais perverso dos criminosos, examina-lhe o rosto, informa-te do seu viver, coscovilha-lhe a alma com um interrogatório hábil e não acharás vislumbre de arrependimento. Conversa, ri, come, diverte-se, dorme como o mais inocente e feliz dos homens.

    Onde a consciência? Que faz ela? Por que não o pune? Demais, se a Consciência, como afirmas na tua crença poética, é a zeladora da alma, por que não previne o mal com o conselho? Por que não evita o crime? Porque é uma sentinela de cárcere, dirás, e não polícia de ronda: o seu destino não, é percorrer o pensamento para dele afugentar as más ideias, mas ficar à porta da prisão à espera do condenado para torturá-lo. Não está direito, tem paciência.

    — Com tal lógica chegarás à negação de Deus... Sim, porque a Ele competia evitar, com a previdência, a ação injusta, conter o ímpeto do desvairado, trazer o impulsivo à ponderação, sustar o colérico, expungir do espírito todas as ideias impuras, suprimir o Mal, enfim, repondo a Vida na perfeição primitiva dos dias paradisíacos.

    — Homem, se queres que te diga...

    — Não. Isso seria escravizar o homem, pô-lo em rebanho, inerte e humilhado. Se as águas correm soltas porque não havia o Senhor de dar independência ao homem...?

    — Dar, é um modo de dizer: O homem conquistou-a com a rebeldia.

    — Pois bem; conquistou-a com a rebeldia, como dizes, tornou-se um ser de vontade, teve o livre arbítrio e dilatou essa conquista naquilo que chamas — iniciativa, que é o espírito de empreendimento.

    — E a Consciência?

    — Consciência é o dom que ele traz do Paraíso. Deus não condenou à pena eterna a sua criatura, tanto que lhe prometeu a redenção em dado tempo, e deu-lha. Mas para que o homem não fosse vencido pelo demônio e pudesse andar nas trevas do mundo deixou-lhe o Senhor no coração um pouco de essência divina para que dela se socorresse nas horas de dúvida, recolhendo-se em si mesmo.

    E foi com esse viatico que o homem veio desde os dias do pecado purificando-se no amor, aperfeiçoando-se na bondade, apurando-se em todas as virtudes, guiando-se por essa chama interior que resplandece quando premeia e flameja quando castiga.

    Não te fies na tranquilidade aparente dos maus. A árvore roída pelo caruncho às vezes toda se cobre de flores. Dá-lhe o vento, sacode-a, estala o tronco e, onde se julgava haver cerne vigoroso, não há mais do que polilha e vermes.

    Que divisas no fundo do abismo quando sobre ele te debruças de toda a altura do despenhadeiro? verduras que lhe cobrem as arestas e, muito embaixo, uma alvura silenciosa. Desce pelas escaleiras do alcantil, vai até a profundeza e verás que o que, olhado de cima, parecia serenidade cândida é um escachoo tormentoso, um referver bravio de rebatidos golfos, olheirões em tumultuosa cólera de espumas, tormenta de águas em convulsão sobre lajes e penhascais. Não te fies no que avistas ao longe. Pudesses tu descer às almas e terias, talvez, pena de as surpreender no horror em que padecem...

    — Essa Consciência que descreves como personagem de tragédia, do aspecto daquelas fúrias esquileanas que, ao surgirem no palco do teatro dionisíaco, faziam abortar as mulheres, é hoje uma entidade acomodatícia, razoável e, sobretudo, prática. Raiva, rebela-se, ameaça não há dúvida, mas com algum jeito e o aceno de uma bolsa agacha-se e lambe-nos os pés. Judas foi o primeiro que a domou e depois dele quantos a tem ficelado, trazendo-a à trela, à imitação do que fez Santa Marta com a tarasca do Ródano? Os dragões lendários amansavam-se com tributos. A Consciência cala-se com o suborno. Isso é próprio das feras — quanto mais vorazes mais investem: — um osso amansa-as.

    Que diabo! Estás pessimista como Salomão...

    — Vivo no meu tempo. Conheço os homens como Salomão conhecia as mulheres.

A FELICIDADE

    — Não, não me estou saturando de estoicismo. O meu Epiteto acha-se, há meses, em Teresópolis fazendo uma estação de cura.

    — Ah! sim? Pois reza-lhe pela alma.

    — Por quê?

    — Livro emprestado, meu amigo...

    — Não, não o emprestei. Pedi ao Lemos que o levasse para a montanha, a conselho de um bibliotécnico muito entendido em moléstias de livros...

    — E que tem ele?

    — Deu-lhe o bicho. Desinfetei-o, é verdade, mas... sei lá! Sempre escapa um gérmen metido em algum orifício ou refolhado em dobra; e é quanto basta para que, apesar do dilúvio de gasolina em que mergulhei o volume, a raça infesta se reproduza como se reproduziu a Humanidade da estirpe de Noé. É assim, meu amigo.

    No mundo dos livros dá-se o mesmo que vemos no nosso mundo. O cupim, como a calúnia, escolhe sempre os melhores exemplares e assim como o caluniado, por mais que se defenda e prove a sua inocência, sempre fica com a suspeição de alguém que não leu a defesa, só conseguindo fazer calar o boquejo se se retrai da sociedade, também o livro só se imuniza de todo (esta é, pelo menos, a opinião do meu bibliotécnico) mudando de ares. O Castro, sempre que vai à Europa, mete na mala os volumes do “Amadis” e outras relíquias literárias para expô-los ao frio áspero do Monte Branco. O meu Epiteto lá está, em Teresópolis.

    Assim, como vês, não é o filósofo que me inspira. O que eu digo da felicidade é o resultado de observação própria. Admiras-me? Pois é isto.

    Sou feliz, completamente feliz porque me adapto à minha genitora e a felicidade não é mais do que a adaptação perfeita de uma alma ao seu destino.

    Todo o segredo da ventura consiste em a gente contentar-se com o que tem, sem exigir da vida mais do que esta lhe pode dar.

    Que diabo! Se todos os homens se insurgissem contra o que chamam a sina, o mundo seria um vale tormentoso a atroar protestos de todos os insatisfeitos; e como não há um só homem que se julgue bem aquinhoado, porque sempre lhe falta a parte do vizinho, imagina as apoquentações de Deus tendo de despachar requerimentos e petições de várias graças. Não! A vida é o que é, com a feição que lhe dá o destino — feliz ou infeliz.

    Adate-se o homem ao que teve e viverá contente. O que chamamos desventura é, quase sempre, um vício — ambição ou vaidade.

    Lembras-te da lenda indiana daquele sultão que, sofrendo de lepra, mandou vir os sábios mais notáveis à sua presença, consultando-os sobre o mal que tanto o afligia e deformava? Um deles, o mais velho, garantiu-lhe a cura se ele vestisse a camisa de um homem completamente feliz. Sabes o resto, com certeza. Correios saíram espalhando-se por todos os cantos do reino em demanda de tal homem.

    Andaram, andaram, visitando palácios e choupanas até que, um deles, já desanimado, descobriu, no fundo de uma caverna, um pastorinho alegre sentado à beira do lume, guardando o sono das cabras. Entraram a falar da vida e, pelas respostas do pastor, o enviado do sultão convenceu-se de que achara o que buscava.

    Exultando em contentamento, disse-lhe o recado em que andava pedindo a camisa para o sultão. O pastorinho sorriu e, retirando dos ombros a pele de chibo, mostrou o peito nu. Não tinha, o mais feliz dos homens, uma camisa sobre a pele.

    — Podes também citar o caso do “Sapateiro e o milionário”, que nos conta o bom La Fontaine.

    — Sim. Contente-se cada qual com o que possui e não queira apanhar aves no voo nem peixes em deslize n’agua, não pense em minas nem em glórias e tudo que lhe vier às mãos será bem vindo e dar-lhe-á prazer ao coração. O que nos envenena a vida, turvando-lhe as delícias, é o querer de mais. Nós o que buscamos não é a felicidade, mais a sua sombra, que é a ilusão e, muitas vezes, sucede-nos o mesmo que aconteceu ao cão da fábula que, atravessando uma ponte com um pedaço: de carne à boca, viu-lhe o reflexo n’agua e parecendo-lhe maior e mais gordo o naco, que a corrente espelhava, para abocanhá-lo, largou o que levava, com o que perdeu o certo pela sombra do que ambicionara. Eu não largo o meu bocado e, como me basta, dou-me por satisfeito. Para que mais?

    O meu destino é como um estojo onde tenho o coração agasalhado — nem tão apertado que o oprima, nem tão ancho que o faça andar aos baldões, de um para outro lado, mas com a medida justa, como convém para que fique à vontade.

    De que servem ao milionário os milhões que lhe abarrotam o cofre. Terá ele mais capacidade de gozo do que tu ou eu? não. Depois, meu caro, na vida é necessário que entrem, para temperá-la e dar-lhe gosto, certas especiarias — o desejo, o amor, o capricho...

    Privar-se um homem de tais condimentos é tanto como pô-lo em dieta rigorosa.

    Ter tudo vale tanto como não ter nada: ao vazio da miséria opõe-se o vácuo da saciedade: são duas bocas abertas — uma que pede, outra que rejeita.

    Na mediania ou mediocridade, como dizia Horácio, é que se vive tranquilo.

    A inveja que ronda e arma assaltos aos tesouros, não os incomoda e como nos habituamos ao pouco qualquer coisa que nos venha a mais será sempre motivo de alegria, e dessas alegrias pequenas é que se faz o rosário da felicidade.

    O milionário anda constantemente em sobressalto: o sono foge-lhe das noites; o apetite, levam-no os cuidados; dos amigos desconfia, tendo-os por interesseiros; os carinhos, toma-os sempre por adulações; o próprio amor amarga-lhe porque o não acolhe como sentimento de coração sincero, mas como insidia de ambição hipócrita.

    O pobre, esse tudo que recebe é de lei, não pede contraste: a amizade é leal; o amor é d’alma e os carinhos, se vão com interesse, outro não é ele senão o da reciprocidade. Dorme tranquilo porque não precisa montar guarda a moedas.

    O rico vive exclusivamente para os haveres que tem; o pobre vive para si e para os seus. Em dias tristes fecha-se em si mesmo e deixa a alma à vontade no coração. As tempestades que estrondem lá fora, a alma está agasalhada e contente, cercada de sonhos, ou então, abrindo o cofre da saudade, tira o que lá     existe, que é um tesouro de lembranças, economias da memória com as quais, deixa lá, meu amigo, a gente vive, e vive bem. Celeiro de cigarra, dirás tu. Não sei! É muita melhor que o da formiga, ao menos há nele a alegria do canto. Já viste alguma formiga cantar? Mal o tempo lhe basta para pôr em dia as contas.

    Deus fez o seu mundo com muita arte, nós é que lhe estragamos a obra com o nosso insaciável querer.

    Eu, não. Estou satisfeito com a minha sorte, basta-me o que tenho. Digo-te que, se um dos correios do tal sultão me houvesse encontrado, quando andavam a procura do homem completamente feliz, eu teria ficado sem camisa e o sultão livre da lepra que, com certeza, o roeu até os ossos.

    Infelizmente, para mim e para ele, não consegui jamais ajuntar dinheiro para uma viagem à Europa, quanto mais para ir ao Oriente. Mas sou feliz, absolutamente feliz porque me adaptei à vida, aceitando contente o destino que Deus me deu. Tenho o bastante, o mais que viesse seria excesso e transbordaria em superfluidade...

    — Ou em bondade, como; a cheia dos rios que fertiliza a terra e as sobras dos ricos que mitigam o sofrimento.

    — História! Contente-se cada qual com o que tem — este é o segredo da felicidade... Olha... Espera-me aqui um instante.

    — Onde vais?

    — Ali defronte, conferir um bilhete que comprei ontem. Mas não penses que jogo por vício. Não! Só compro bilhetes de loterias grandes.

MONOTONIA

    — Pois é possível que alguém resista ao encanto de uma manhã como a de hoje? De que te serve morares aqui à beira-mar se não gozas o espetáculo que nos oferece a natureza? Abre a janela e contempla essa suntuosidade de luz e cor...

    — Prefiro a penumbra. A claridade incomoda-me como o rumor. Esses dias de sol intenso enervam-me. Sou um melancólico.

    — Faze-te monge. Vai para um convento.

    — E não digas brincando. Já tenho tido ímpetos de arrancar do corpo toda essa farraparia, substituindo-a por um simples burel monástico, que me dê direito a viver quietamente no fundo de uma cela.

    — E vens morar no Flamengo? Curioso ascetismo, não há dúvida.

    — Que queres! São as tais leis da sociedade que me impõem este sacrifício. Resido aqui pelo mesmo motivo que me força a tomar assinatura no Municipal, onde mantenho uma cadeira, que considero o meu pelourinho. Vou aos espetáculos, não para vê-los, mas para que me vejam. Se eu lá não for começarão imediatamente a ferver os comentários e tais comentários, bem sabes, são sempre temperados com mentiras e calúnias comprometedoras. Se soubesses como me custa suportar uma de tais operas...! Mas que hei de fazer? tenho negócios, preciso... Se fosse casado maior seria o meu sacrifício, porque teria de trazer o meu mostruário sempre em dia com sedas, plumas, joias e o mais que a moda exige, como acontece ao pobre do Leôncio, que dá saltos para vestir a mulher e a filha que, para o mundo, são os espelhos da situação comercial do desgraçado e fazem mais pelo seu credito do que os dois livros: o Diário e o Razão...

    — Esqueces o borrador, a sogra...

    — Pois é, meu amigo. Moro aqui porque preciso estar perto da cidade. Só por isto. Por meu gosto residiria na Tijuca: uma casa pequena, bem escondida no mato, onde não chegasse rumor algum disso que chamam “vida mundana”.

    — Entretanto, ainda ontem estiveste no chá de Madame Elisena.

    — Sim, e fui à noite à recepção do Honório. E hoje... Sei lá! É a tal coisa. No fundo revolto-me contra este suplício da roda em que peno há quase trinta anos.

    — Sabes que é isto? neurastenia.

    — Qual neurastenia! Tédio é o que é.

    — Se fizesses o que eu faço todas as manhãs mão estarias assim nesse encorajamento de Timon, maldizendo o que todos nós, que temos saúde, louvamos e agradecemos aos deuses: a vida. Aqui onde me vês estou com uma boa hora de remo, duas palanganas de café com leite e um pão deste tamanho! E tu? Nem café tomaste ainda, aposto...?

    — Não, tomei uma xícara pequena, não pelo café, que me é indiferente — tomaria, com o mesmo dissabor, chocolate, leite, chá ou mate — mas para fazer boca ao cigarro.

    — Aperitivo do vício.

    — O cigarro não é vício, meu caro — é um depurativo do espírito. O fumo que exalamos, distrai-nos, alivia-nos de preocupações e aborrecimentos: são os cuidados que nele se resolvem em sonhos, como as resinas dos turíbulos se desfazem em aroma. Invejo-te, palavra de honra. És um homem feliz. Tens uma faculdade que me falta.

    — Qual é ela?

    — A de descobrir encantos na monotonia. Porque, francamente: Que é a vida? uma repetição enfadonha, uma roda que gira, gira...

    — Mas a roda que gira leva-nos para diante, através de paisagens e aspectos sempre novos.

    — Não a roda da vida. A roda da vida é como a dos moinhos que giram presas, sempre no mesmo ponto, tocadas pelas águas que neles escacham, como a da vida é posta em movimento pelas horas que passam por ela indefinidamente. Que fazem ambas? moem, trituram, pulverizam. No moinho é o cereal que se reduz a farinha e na vida, que é que se esmaga? tudo. O grão crepita, estraleja sob a pedra que rola; e no outro moinho? é o sangue que espirra, é a lágrima que corre, é a virtude que se denigre, e os gemidos são em coro. Detém-se o moleiro comovido com o estridor dos grãos que se esfarelam? não, de certo porque deles vive e, quanto mais fino os faz, melhor os vende; assim nós. E é isto a vida: monotonia. A roda do carro é livre, caminha e, assim como range em pedregais, desliza maciamente em alfombras; atola-se aqui, mas perfuma-se além trilhando campos de ervas floridas. A roda dos moinhos, não — é sempre no mesmo ponto, presa, girando com as águas, como a da vida com as horas. E é isto.

    De que consta a vida? que é, em suma, o viver? acordar, mover-se, nutrir-se, dormir para, d'e novo, abrir os olhos à mesma luz, ao mesmo céu, às mesmas coisas da terra, à mesma gente, entre sorrisos, nem sempre sinceros, e dores sempre verdadeiras. É muito pouco, hás de convir.

    — Pois, meu amigo, eu, por mim, confesso-te que estou contente com a vida que não me parece tão monótona como a descreves. É verdade que eu não moo. Achei a farinha no celeiro, acumulada por meu pai, e com ela faço o meu pão. Mas, que diabo! ou eu muito me engano ou tu também já deves ter o bastante para viver folgado.

    — O bastante... Nunca ha o bastante. O mar é imenso e está sempre recebendo o tributo dos rios e não perde gota de chuva. O bastante...! Se eu não trabalhasse, então, meu amigo não sei que seria de mim. O que ainda me consola nesta monotonia em que peno é, justamente...

    — É o som da canoura em que recebes a safra: as hipotecas, as promissórias, os alugueres, a renda dos títulos, todos os negócios, em que empregas os dias e que vão ter à pedra que moi, dando-te a farinha que são os juros com que fazes o teu pão negro de tédio. Compreendo... Assim também eu acharia a vida monótona e não sei se teria coragem de suportá-la. Mas não sou moleiro nem padeiro, contento-me em comer o pão que tenho e sempre com boa manteiga ou queijo e, se encontro alguém com fome, atiro-lhe um pedaço e isso dá-me prazer. É tão bom ver um sorriso no rosto da pobreza como ver um pouco de verdura no lombo de um rochedo calvo. A vida nada tem de monótona, é a própria variedade. Mas, para que se lhe descubram as belezas e os numerosos aspectos pitorescos que a aformosentam é necessário andar, correr sítios — descer um dia ao vale e repousar no arvoredo, ouvindo pássaros, subir depois à montanha para ver, lá de cima, o maravilhoso espetáculo do nascer do sol. Tu não andas, estás preso ao moinho, que é o teu cofre.

    Eu prefiro ser a água que corre, a água levadia que faz girar a roda do moinho com as suas estroinices. Assim ao menos atravesso campinas risonhas e florestas frondosas, espelho o azul, rebrilho com; o sol e, à noite, encho-me de estrelas, refletindo as do céu e quando me chegar a hora de entrar no oceano não direi, como tu: que a vida foi uma monotonia, porque não me prendi, avaramente, a um único interesse: amei a vida e gozei-a, entendes tu? gozei-a! E até logo. São horas de correr — o dia está lindo. Vou ao meu destino feliz e deixo-te no teu moinho. Moi à vontade, acumula milhões e tedio. Eu vou por aí como a água das levadas. Boa moagem, senhor moinho! Adeus!

SOLIDÃO

     — A verdade, verdade apostólica, disse-a Ibsen pela boca do Dr. Stockmann “O inimigo do povo:” “O homem mais forte do mundo é o que vive mais só”. A solidão é uma fortaleza e o que se mete consigo, a um canto “in ângulo secubans” na frase de Apoleio, fica a salvo dos comentários e das sátiras e livre da inveja e da maledicência, armas mais venenosas do que as dos citas, tão temidos de Ovídio. O mundo interior é muito mais vasto e mais belo do que este em que vivemos materialmente, dominados pelos sentidos, escravizados ao interesse. Os horizontes limitam-nos o olhar como as convenções restringem-nos a liberdade.

     A solidão é como o espaço — anda-se por ela em devaneio como a ave voa, desimpedida, pairando acima dos mais altos montes, no silêncio arejado e luminoso. O ruído é um intruso no pensamento. Somos forçados a atender a tudo e a todos, fatigando-nos com banalidades, atordoando-nos com essas palavras vazias que ressoam nas salas como a poeira circula no ar.

    — A palavra é átomo.

    — Que só aparece quando entra nos raios do sol, quero dizer: no campo das ideias; fora disso não é mais do que poeira incomoda. E eu tenho horror ao pó! Aqui, nesta adorável solidão, que detestas, vivo com os seres do meu agrado, vou buscá-los onde jazem: nos livros, nas telas, nos mármores, nos bronzes ou no meu piano, e chamam-se impressões. O meu mundo é como o de Próspero na fantasia de Shakespeare: todo espiritual.

    Que me importa a mim a vida tumultuosa das ruas? o mesmo seria ocupar-me com as ondas que se quebram nas praias. Prefiro a quietação. Há mais vida em um bom livro do que na mais populosa e agitada cidade. O caracol vive dentro da sua espiral e, onde vai, leva-a consigo, para a vida e para a morte. Eu sou como o caracol e a minha espiral é a solidão.

— Estás em erro. A solidão é o pior dos egoísmos. A vida é um conjunto de forças e ninguém tem o direito de negar o seu concurso à obra humana. O misantropo é um desertor; o solitário um inútil. Que benefício trazes tu ao progresso, metido aqui entre quatro paredes, a reler antigualhas e a adorar ficções? Afastando-te, como te afastas, do convívio dos homens suprimes um elo à cadeia que prende a vida aquilo que chamamos Eternidade. Basta uma solução de continuidade na corrente dinâmica para que, instantaneamente, se interrompa a transmissão do fluido.

   — E que tenho eu com os homens? A minha vida é minha, só minha, posso empregada como entenda — guardando-a como avaro ou dissipando-a como prodigo. Governo-me, sou um ser de vontade, independente, senhor de mim. Desde que não perturbe o que por aí chamam a “ordem”, infringindo princípios de moral ou prejudicando o meu vizinho, que tem que ver comigo a sociedade? Vivo como entendo. Sou o que sou, um ser livre.

    — Enganas-te. És um ser livre, não há dúvida, mas não podes negar ao mundo o que lhe deves. Se tens direitos, e ninguém te nega, tens também deveres.

    — E que devo eu ao mundo?

    — O teu contingente de ação, o tributo humano. Todos nós temos uma parte nossa, inerente à individualidade, e outra que pertence ao todo, que é a Humanidade. A chama é fogo, luz, e é também claridade e calor — a luz fica com ela, a claridade espalha-se, é a contribuição da chama para a Vida. A árvore, presa à terra, é raiz, tronco e folhagem, mas dá sombra, purifica o ar, atrai as águas, floresce e frutifica. A montanha não se move, dela, porém, jorram as águas, desce a fertilidade. E em tudo é assim. Que faz o solitário no egoísmo sombrio em que se exila? tanto como o avarento no subterrâneo em que empilha sacos de ouro.

    A sociedade é um filtro do qual nós somos os poros. Os que, por indiferença, tornam-se impermeáveis, como tu, são mais perniciosos do que os ignorantes que, se não depuram, em compensação, não entopem. As ideias passam por eles livremente, sem encontrarem empeço, como água em ralo: boas ou más, úteis ou nefastas coam-se-lhes pela inconsciência; mas no indiferente coalham, acumulam-se represadas e tais homens tornam-se, assim, tão funestos à sociedade como os pajés às terras em que alastram: são verdadeiros rebalsos. E queres que te diga? É a esses solitários, chamados “espíritos radicais ou conservadores” que jazem estagnados no tradicionalismo arcaico, que o mundo deve ainda os males que, de vez em quando, o infestam. São os miasmas de tais “maremas” que fazem as epidemias sociais: guerras, rebeliões, cismas... que sei!

— Pois, meu caro, foi justamente por muito filtrar que me tornei impermeável, como dizes; mão porque o seja, de natureza, mas porque assim me fizeram. Em todo esse longo tempo que perdi na vida fútil dos salões que lucrei eu? O que vi e observei encheu-me de tanto arro — nota que escolho um termo brando — que resolvi recolher-me ao meu canto, entregar-me à vida de serenidade e quietude, vida beata de eremita, e o que passa por meu espírito é água limpa, de boa fonte, água dormida em muitos séculos e analisada pela crítica, que me sacia a sede e ainda me refresca a alma, lavando-a das espurcícias que trouxe das peregrinações em que andou por aí, de tédio em tédio.

    — Se todos pensassem como tu não haveria riqueza. Os faiscadores que exploram os rios auríferos pouco se importam com a água: turva ou límpida o que eles nela buscam é o ouro. Metem a bateia e, quanto mais a mergulham raspando o leito do rio, maiores probabilidades têm de uma boa colheita. E que trazem eles na apanha? lodo, areia, balsedo, putrilagem e água. Peneiram e, assim como se vai o ouro precipitando no fundo da gamela, vão eles desprezando o resíduo até que lhes resta apenas o que é precioso, e limpo de toda a eiva. Assim na vida, meu amigo.

    No convívio social que nos importam as palavras ocas, a hipocrisia, a maledicência, a intriga e todos esses detritos da futilidade? Conservemos o que convém ao nosso interesse ou ao nosso afeto, à inteligência ou ao coração, o bem que buscamos, em suma, dando em troca o que a sociedade exige que lhe demos: a nossa cooperação. O que não nos fica bem é a atitude estática, contemplativa de flamingo à beira d’água, revendo-se na própria imagem. Isso não!

    A vida é um motu continuo e os contemplativos são inercias.

    Lembram-me certos vegetais inúteis, os cipós, por exemplo, que se enredam nas árvores, sugando-lhes parasitariamente a seiva e ainda entralhando-se em enrediças que dificultam a passagem aos que querem avançar.

    Esses mesmos autores que te acompanham na solidão em que te encerras onde recolheram o que hoje te aproveita senão no tumulto da vida?

    O silêncio é necessário, concordo, tão necessário como a noite, e a solidão é um retiro de descanso, mas ninguém, salvo o cego, vive sempre em treva, nem tão pouco, exceto o preguiçoso, eternamente em repouso, enchendo as horas de bocejos, bolhas de tedio, vazias como as que afluem do fundo das águas e, mal chegam à tona, rebentam.

   Pensas como o Dr. Stockmann que “o homem mais forte do mundo é o que vive mais só”; Sim, forte como rochedo, solitário no oceano, sem crosta onde vingue planta, nu e estéril. Chamas a isso força... Eu chamo-lhe inutilidade.

    Não está direito. És um homem de espírito e não me parece bem (que vivas como herdeiro de uma grande fortuna, a rolar sobre ouro no fundo de um palácio, sem acudir às vozes que te chamam, sem dar, ao menos, uma esmola, fechado a sete chaves, contando moedas e revendo tesouros. Não está direito.

    Queres viver só...? pois vive, mas planta, ao menos, uma árvore que assinale a tua passagem pela vida. Não peço que cultives um jardim, como queria Candide, contento-me com uma roseira, que te dê uma rosa. Faz alguma coisa, qualquer coisa...

    — Que há de ser? Dá-me um conselho.

    — Ama...

    — Amar?! Mas isso é tudo que há de mais contrario à solidão, homem de Deus!

    — Pois justamente por isso é que te aconselho o amor. Para grandes males grandes remédios.

IDEAL

    — A nossa vida, que nos parece tudo, não é mais do que um rápido, instantâneo reflexo. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, diz o grande Livro, isto é — reproduziu-se em figura, não em essência. Assim o mundo é também uma imagem e semelhança da Vida, não a Vida. Se o homem e o mundo fossem reproduções exatas e perfeitas: o primeiro, de Deus; o segundo, da Vida, ambos seriam eternos, como eterna é a Luz, que se manifesta nos astros. A causa é invisível, posto que esteja no ambiente envolvendo-os nos seus eflúvios misteriosos. O mundo em que nos agitamos é o solo, mas acima do solo há o espaço, o vazio em que respiramos e o hálito é que nos anima, como o sopro divino animou a argila paradisíaca.

    Nós precisamos do Éter para viver: tomamo-lo na inspiração, bebemo-lo a fôlegos e é ele que, em fluxo e refluxo, imprime o ritmo regulador da Vida. Move-nos a mesma força que leva no mar os barcos enfunando-lhes as velas. Caminhamos, sim, mas se nos perguntarem para onde vamos não poderemos responder, porque a estrada que trilhamos, cheia de acidentes, por mais firme que nos pareça é tão pérfida como os terrenos vulcânicos que, repentinamente, afrouxam, afundam-se em abismos subvertendo os caminheiros. E vem aqui a propósito uma pergunta que ainda não vi formulada: Caminhamos na terra? não — caminhamos no tempo, e a prova é que não contamos as léguas que andamos, mas os anos que vivemos.

    — Negas, então, o visível?

    — Negar, não nego, digo apenas que o principal passa-nos despercebido. Tudo se nos mostra pelo exterior, que é a aparência da substância, a substancia, porém, ela mesma, é sempre íntima, recôndita como os arcanos. Há dois mundos — um em que nos firmamos, como a árvore implanta-se no solo, e nele todos os caminhos são limitados e quem os limita? a contingência da nossa visão restrita que divide ou antes, escala as distâncias por meio de lindes imaginarias, que são os horizontes.

    — O horizonte... O horizonte é uma muralha para o inerte, é um estimulo para o aventuroso. Assim como fecha o caminho ao tímido recua diante do ousado. Gibraltar foi, durante muito tempo, o horizonte entaipado pelas colunas de Hércules. Um atrevido passou-o ganhando o mar livre; outro dobrou o Tormentório. O que avança repele todas as miragens. E assim como há horizontes para os olhos há-os para a alma: são as superstições, as lendas, todas as covardias que detêm os pusilânimes. O Progresso não é mais do que a avançada dos espíritos superiores através da rotina contra preconceitos e ideias fixas. E o outro mundo?

    — O outro mundo, o mundo interior, mundo da alma, esse não tem limites; nele o espírito move-se em plena liberdade caminhando pelas estradas sem termos que se cruzam no Tempo: umas dirigindo-se ao Passado, pelas quais nos levam a Memória, que é como um sol, a Saudade, imagem da lua pálida e todas essas estrelas que se chamam lembranças, recordações, reminiscências; outras em que giram tumultuosamente as horas, são as do Presente e ainda as do Futuro, veredas que entram por uma floresta onde constantemente trabalham os dias derrubando árvores, não só para desbravarem caminhos novos, como também para que, com essas mesmas árvores, se erijam novas construções, acendam-se fogueiras altas, faça-se, enfim, obra nova para as gerações que surgem.

E essas estradas partem de dentro de nós e nelas é que transita a Imaginação, que é a grande força propulsora da vida. Não fossem essas viagens da alma no mundo interior e a vida seria um isolamento no infinito, e não é. A vida é o Tempo que não perece, é a Trindade: Passado, Presente e Futuro, três eras distintas e uma só essência verdadeira — a Eternidade.

    — E chamas a isso... vida?

    — Sim. Os que vivem na parte terreal são seres efêmeros, de tão pouca resistência que, mal sucumbem, desaparecem sem deixar vestígios. Os que vivem no mundo ideal, interior, eternizam-se. O homem que pensa agita o espírito, em segundos percorre milênios, com o dom da ubiquidade que é a manifestação da onipresença de Deus. Está assentado à mesa do trabalho e transporta-se às primeiras idades do mundo: vê, sente, goza, sofre a vida que decorreu, torna-se contemporâneo da época que lhe apraz, cidadão da pátria a que se transfere, vai com o pensamento onde quer, seguindo as estradas interiores. A inspiração, por exemplo, é a preá de uma ideia que circula e, quanto mais se eleva em voo o poeta, mais original e profundo é o seu conceito, porque as ideias superiores pairam nas alturas, perto de Deus. Esses são os privilegiados, os que vão ao Além, os que rondam a fronteira do Mistério, anjos decaídos, mas que ainda conservam asas e elevam-se até o excelso.

     Esses são os corredores de mundos, os que falcoejam no espaço e no Tempo: açores sublimes, águias olímpicas. E queres ver? Tão pouco se prendem à terra, tanto são do espaço esses chamados idealistas que não se preocupam com a vida terrena, até a descuram, com o que se sacrificam e, não raro, perecem. Poetas que sejam homens práticos, que enriqueçam em negócios, que se notabilizem na politica ou em ações de puro interesse egoístico são casos excepcionais, aberrantes da regra. E por quê? porque, como as aves, nasceram para o voo, libram-se na altura e, quanto mais sobem mais os atrai o abismo azul e, lá em cima, tudo é luz, esplendor, magnificência, mansuetude, pureza; o ar é outro, a própria luz é outra e não há nuvens que toldem a diafaneidade etérea, as próprias tempestades debatem-se em plano inferior ao que ele sulca, porque o infinito é a serenidade. E eles, que vivem em tal ambiente, enchem-se da sua essência etérea e tornam-se a Bondade, a Abnegação, o Heroísmo. São os videntes do Alto, os anunciadores e, vendo as auroras com os seus matizes, as noites com as suas constelações, as tormentas com o seu negrume e os seus relâmpagos trazem-nos tais espetáculos para a vida nas suas vozes e, caminhando na terra, pisam-na de leve, como a pisavam os deuses quando desciam em visita aos homens. Demoram-se na terra, como as aves, o tempo que baste para procurarem o cibo, e, tanto que o acham, logo levantam voo. Os próprios ninhos, fazem-nos: os mais fortes nos cimos das cordilheiras, os mais fracos nos ramos das árvores, sempre, porém, em alturas. São esses peregrinos do Ideal que trazem das regiões que só eles percorrem os germens que a Ciência recolhe e cultiva para deles tirar o que, mais tarde, apresenta como produto do seu campo. A ciência lavra, mas quem semeia é a Poesia. Os poetas, aves divinas, andam sempre em voo do Passado para o Futuro e quando param no Presente, isto é: quando pousam, cantam, e toda a vida rejubila com as harmonias que eles desferem e aquele que as interpreta entra na posse de um segredo e profetisa. As aves não andam bem na terra. O que te parece um absurdo é tudo que há de mais natural. Riquezas são bens materiais e como queres tu que os poetas, que vivem lá em cima, descendo apenas à terra, como fazem as aves, quando têm fome, pensem em acumular tesouros? O Tesouro do Poeta é o Ideal, de onde ele tira a riqueza da Vida. Onde foi o ouro de Creso? quem sabe de uma só moeda dos cofres de Luculo de Apicio, dos subterrâneos dos satrapas asiáticos, de toda a plutocracia romana? E a obra dos poetas aí está, cada vez maior, como se os séculos, que por elas passam, ainda as acrescentem. O nosso mundo é lá em cima, na altura, é o Ideal, o Excelsior. Lá é que vivemos.

     — Sim, estou contigo, só no Ideal poderemos alcançar a Perfeição, mas... se descêssemos um pouco, como fazem os pássaros e dantes faziam os anjos e os deuses, pousando um instante em uma das mesas da Brahma para um chope e uns sanduiches? Que dizes? Coisa de um quarto de hora, só para fazermos lastro?...

     — Ris... Quem sabe se preferes a vida terra a terra?...

     — Não, quero as duas, cada qual a seu tempo, com ordem e método. Viver no Ideal, correr, como dizes, as estradas interiores do sonho, é uma delícia, não há dúvida, mas com o estomago confortado. Eu não viajo sem farnel. Os pássaros também comem, os deuses comiam e os próprios anjos, quando visitaram Abraão, sentaram-se à mesa do patriarca e fartaram- se de anho e vinho. Colhamos as asas porque são cinco horas e eu, se queres que te diga, estou com grande apetite de sanduiche e chope. Depois remontaremos, se quiseres. O Ideal em jejum é uma espiga, hás de convir.

     E entraram na Brahma.

A FÉ

    — Um dos fundamentos em que se baseiam os ateus para negar a existência de Deus é a falta de provas sensíveis ou manifestações aparentes da Providência.

    — Milagres...?

    — Mais do que milagres: o antropoteismo. E alegam que, assim como Deus se manifestou uma vez aos homens na pessoa predestinada de Cristo, para por ordem no mundo, devia tornar à terra na mesma, ou em outra hipótese, para convencer com a palavra e doutrinar com exemplos aos que reincidem no pecado ou insistem na dúvida.

    A tais espíritos rebeldes respondo eu com um argumento decisivo. Na vida em que andamos cruzamo-nos, a todos os instantes, com homens semelhantes a nós. À noite, no silêncio do nosso recolhimento, podemos, com segurança, afirmar que, durante o dia, roçamos em milhares de seres humanos. E que eram tais seres? almas. Alma supõe pensamento, vida espiritual, ideia, propulsores de ações. E tais ideias, que passaram por nós em rumo ao que projetavam — esta para o bem, aquela para o mal, nós, por acaso, as sentimos? tivemos delas alguma, manifestação?

    Quando as ideias se espelham no rosto já não são mais pensamentos ou digamos: germens — são resoluções. Ora, meu amigo, se, em contato assíduo com os homens, nós não podemos ver, sentir-lhes as ideias que, aliás, não podemos negar, porque, se se formam misteriosamente no íntimo, logo se revelam na vida exterior em atividade, como havemos de negar a existência de Deus só porque não percebemos o mistério, (como não vemos o Pensamento humano,) ainda que tenhamos, nos mil e variados espetáculos da natureza, as provas de que há um Espírito superior que se manifesta no que chamamos Vida? Se o Pensamento humano transparecesse a alma seria tão material como o corpo, uma simples função da energia física, como o movimento, por exemplo. Pois se nós não conseguimos explicar um mistério menor, que é o da vida, como havemos de desvendar o arcano dos arcanos, que é a existência de Deus?

    — Falas como Hamleto a Polônio na cena da flauta.

    — Pois é como te digo. A alma resguarda-se, oculta-se porque é de natureza divina, infinita como o Tempo, que é a flor da Eternidade. Deus, se se tornasse visível, seria tanto como o homem — e assim o provou Jesus na encarnação, passando por todos os passos em que transita a Humanidade entre a vida e a morte. Crer é justamente aceitar o mistério que se impõe, não por absurdos, mas pela ordem; não por milagres que seriam excepções comprometedoras da lei natural, mas pela harmonia. O milagre, se tal existisse, seria um desequilíbrio no ritmo da vida.

    A abertura de um sepulcro, para dar saída ao corpo de um ressuscitado, abalaria tanto a norma da natureza como o deslocamento do nosso planeta da órbita em que gravita ou o aparecimento do sol em noite plena.

    Eu creio porque sinto necessidade de crer; creio como respiro, sem indagar, sem preocupar-me com o ambiente, acordado e dormindo.

    — Entretanto, o que dizem de ti...

    Já sei. Dizem que sou ateu porque não tenho à minha cabeceira um livro de Horas e um rosário, porque não acendo velas ou lamparinas a imagens, porque não frequento igrejas e, muito menos, confessionários despejando-lhes no ralo o enxurdo d’alma, como pelos boeiros engolfam-se as enxurradas das ruas.

    Não sou, nunca fui homem de aparências. Concentro-me na minha crença, pratico a religião sem alardo, não como exibicionismo, mas como culto. O próprio Jesus, para meditar, não subiu ao Monte Moria, onde se elevava, suntuoso, a cavaleiro de Jerusalém, o templo de Salomão: foi para o deserto, onde passou em quietude quarenta dias. E sempre que desejava comunicar-se com o céu, procurava os ermos evitando as vistas dos próprios discípulos, como fez em Gethsemani na triste noite da traição.

    Eu desconfio desses beatos que não sabem das igrejas: ou vão ali empurrados pela Consciência, que os acusa de pecados, como o que, sentindo-se sujo, procura água para lavar-se, ou vão por hipocrisia e vaidade querendo ser notados como preferidos de Deus, como certos tipos que se fazem muito chegadiços dos grandes, dando-se ares de íntimos com eles para granjearem importância.

    Se é para aproximar-me de Deus que eles entendem que devo andar de nave em nave mostram, com isso, ignorar a própria religião que nos ensina que Deus está em toda a parte e, onde quer que o chamemos em nossas aflições. Ele nos responderá.

    A minha fé concentra-se enraizadamente no coração e, como raiz, não se mostra — quanto mais se aprofunda mais rija se torna e mais se embebe em força para medrar.

    Essas plantas efêmeras de raízes à flor da terra são fragilidades, não resistem aos próprios elementos que, para as outras, são vida: estiolam-se à luz, desfolham-se à chuva e qualquer vento as arranca.

    Infelizmente o homem só se fia no que é superficial e firma o seu julgamento nas aparências — o fundo do coração é tranquilo como o fundo do oceano. Deus vê no íntimo e sabe onde está a verdadeira fé. Tudo que tem valor, esconde-se, tanto no mundo físico como no mundo moral: a pérola, apesar de jazer nas profundezas do mar, ainda encerra-se na ostra, que é um escrínio natural; o ouro e as gemas entranham-se nas minas, encravam-se nos rochedos ou anegam-se nas águas; assim também a virtude, sempre discreta e pudica. A hipocrisia exibe-se, precisa mostrar- se para que a vejam: é a isca — um engodo escondendo traição.

    Eu prefiro uma alma simples e honesta a um desses beatorros, sempre cabiscaidos, de mãos postas, mussitando preces que são espumas formadas à flor dos lábios. Há mais religião no olhar enlevado de uma criança que contempla uma flor do que nas rezas e penitencias de muito devoto desses que por aí andam pelas sacristias.

    Essa religião de exterioridades não é a de Cristo, mas a dos fariseus e publicanos que se reuniam no pátio do templo, não em adoração, mas em negócios e intrigas. E o que mais me revolta nesses pietistas é o exclusivismo com que eles, só por serem cristãos, fazem monopólio do céu entendendo que todos os mais homens, que honram e veneram a obra de Deus, só porque não frequentam locutórios e sacristias, estão excluídos da Graça.

    Deus não tem política, não tem partidos. Todos os homens vieram do mesmo Homem e, se Deus sofreu o martírio da cruz, para resgatar a Humanidade, não escolheu nessa mesma Humanidade apenas aqueles discípulos que o acompanharam em Jerusalém e alguns mais que lhe ouviram a suave palavra, mas estendeu a sua misericórdia a todos, incluindo no seu perdão os anteriores à sua vinda, nascidos, como todo o gênero humano, da mesma estirpe admita.

    S. Paulo, na Epístola aos romanos, defendendo os primeiros homens do anátema que os expulsava do Paraíso, por não haverem prestado culto a um Deus que ainda se não havia revelado, disse:

    “Como invocarão, pois, aquele em que não creram? Ou como crerão àquele que não ouviram? E como ouvirão sem pregador?”

    Dante insurgiu-se contra o mesmo rigor, perguntando:

    “Onde a Justiça que condena a penas eternas um homem de vida exemplar, nascido as margens do Indo, onde não chegara notícia do advento de Cristo, só por não haver recebido o batismo e não acreditar no que lhe era desconhecido?”

Muore uon battezzato e senza fede.

Ov’ è questa giustizia che il condanna?

Ov' è la colpa sua, se ei uon crede?

    O grande batistério foi a cruz e, com as gotas do sangue do seu corpo martirizado, o Cordeiro resgatou, não um grupo de homens, mas toda a Humanidade.

    São tais fanáticos e hipócritas os que mais comprometem a religião, transformando Cristo, que é o mesmo perdão, em rancoroso tirano tendo por divisa o “Crê ou morre!”.

    Jesus estende os braços a todos indistintamente e, quando os recebe, não lhes pede a ficha de identificação.

    O meu confessionário é a minha Consciência e quanto a igrejas... eu adoro Deus onde Ele está, quero dizer: cm toda a parte. Aqui mesmo, por exemplo, debaixo das flores de ouro da minha acácia.