Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Romanceiro, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Passionárias

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

Visões e sonhos

Dúvida

O velho ourives

Coração mareante

O vagalume

Laus veneris

As iaras

O divino amavio

O rebanho

O pântano

Musa

A cerejeira

Coração venenoso

O centenário

Alda

A aldeia

Psalmo triste

O berço

A vendedora de bálsamo

Rosas

Para o sempre!

A partilha

Risonha

Meu túmulo

Iluminuras

O cego

O surdo-mudo

O louco

O leproso

No orphelinato

Nos hospitais

Na montanha

Livro das ilusões

A escolha

Na estrada, ao sol

Lenda do rei avaro

Os milhões

O céu

Vaisya-purana

A voz das pedras

O eremita

O poeta feridun

A morte

Deuses

A verdade

PASSIONÁRIAS

Fragmentos do jornal de um noivo

I

Foi à luz maravilhosa de um límpido luar de Abril.

Falaste; que me disseste? Já te não lembras: palavras vãs, sem amor. Amor... Nem tal podia haver, se era a primeira vez que nos víamos.

Mas como explicar o caso estranho de haveres ficado, desde então, indelevelmente viva nas minhas pupilas como o arbusto, que nasce à margem da ribeira clara, fica, por toda a vida, nela refletido? Foi à luz maravilhosa de um límpido luar de Abril.

No terraço, sob um jasmineiro em flor, conversavam senhoras e cavalheiros quando a tua pequenina mão, trêmula e fria, escondeu-se na minha como se esconde a estrela em uma nuvem.

Nada disseste e eu não me lembro de haver pronunciado palavra alguma e foi como se nós houvéssemos jurado, diante do céu estrelado, um amor eterno.

Hoje ainda, quando pergunto se te lembras do nosso primeiro encontro e do juramento que nós fizemos:

— Sim, respondes sorrindo, recordando essa adorável noite de mudez: Foi à luz maravilhosa de um límpido luar de Abril.

II

— É pontual, disse minha amada sorrindo. Cabia-me o louvor porque, justamente à hora aprazada para o encontro, eu sorria dentro das suas pupilas, e ela corava, tímida, nas minhas.

— Pontual, afirmei beijando-lhe as mãos delgadas. Possuo um regulador sem igual em todo o mundo. É possível que, às vezes, se adiante; ainda assim não o troco pelo famoso relógio da catedral de Estrasburgo.

Trago-o sempre comigo, todavia foi necessário que me aparecesses para que eu descobrisse o valor inestimável dessa preciosidade.

Lindamente, nos lábios de minha amada, desabrochava um sorriso curioso. Sem lhe deixar as mãos continuei falando para os seus olhos:

— Não para. Disse-me alguém que só há um meio de o fazer parar... Fitei-a com amor, e, enternecido: Mas tu hás de ser sempre minha... dize?

— Sempre! Afirmou num suspiro. E tens contigo esse regulador? Mostra-o, pediu. Pousei a sua pequenina mão sobre o meu peito:

Sentes?

— É o coração, disse ela com os olhos risonhos.

— É o meu regulador. Não para nunca, a menos que tu... E, beijando-lhe as mãos, iam para dizer-lhe palavras que a magoavam quando, a rir, ela irrompeu muito vermelha:

— Ah! Bem me parecia... Por isso é que acordo agora tão cedo! Por isso é que me não chamam mais a preguiçosa...

E, enquanto eu lhe beijava os dedos ajuntou jocunda: Acertei o meu coração pelo teu — é ele que me acorda tão cedo e me não deixa dormir mais... Por isso... Por isso... Ah! Bem me parecia...!

III

Sorriste quando te disseram que eu atravessara tristemente toda a triste noite em claro. Choraste sabendo que eu sorrira. Explica-me o motivo dessa contradição singular.

Ciumenta cruel, sorriste porque compreendeste que foste tu só a causa da vigília melancólica. Veio ficar à minha cabeceira a visão indelével dos meus olhos, tu. E, pensando em ti, no isolamento, achei a tua imagem em minha alma como uma santa dentro de um relicário. Mas... teus olhos? E o teu sorriso?

Choraste quando sorri. Pensaste talvez, que uma nova alegria iluminara o meu coração... e foi. Adivinhaste, noiva pressaga; adivinhaste. Sorri, e era quase manhã — vinha nascendo a luz. Expirava o tempo do meu desterro: eu vinha ver-te e sorria. Ciumenta cruel e incoerente que sorri quando eu sofro e chora quando eu sorrio.

IV

Os astros claros moram no céu remoto, a luz, entanto, desce a alumiar-nos e segue-nos a toda a parte. Tão longe assiste o sol e o dia de ouro esplende; tão distante aparece o plenilúnio e o luar prateia e suaviza a noite; as estrelas além e brilham em todas as águas da terra. O amor é como a luz dos astros.

Longe de mim pensas, talvez, que a luz dos teus olhos não me acompanha? Segue-me e, ai! De mim se me desamparasse. Céu é teu rosto e astros são teus olhos. Dá-me — e não te peço mais — a bem-aventurança do teu coração, que é o Paraíso, para que minha alma nele viva.

Se à crença é mister a prece, teu nome não me sai dos lábios, nele resumo toda a minha fé, a minha ansiosa esperança nele se concentra. Dele somente faço a minha oração de amor... dele somente e é muito.

V

Não podes compreender o texto santo, ris das palavras bíblicas... e não há verdades mais límpidas do que as que foram escritas pelo patriarca do êxodo.

Perguntas como pode o Senhor tirar das trevas a terra e os astros, os astros principalmente. Queres a explicação do mistério? Fecha as páginas da Bíblia e contempla teu rosto ao espelho.

Teus olhos... O Caos, de certo, não era tão ferrugíneo. É possível que exista maior treva? Dize: já viste noite alguma comparável às tuas pupilas negras? Todavia, repara como cintilam, vê quanta luz espalham.

Teu olhar.... Que luz de astros há mais fulgurante? Se o meu amor tira dos teus olhos tanta claridade como duvidas de que Deus houvesse tirado do Caos tirado o sol das madrugadas e as estrelas noturnas? Que treva tão densa existe como a dos teus olhos e que mais esplendor queres do que o do teu olhar?

VI

Volúvel! Achas que sou volúvel porque, de quando em quando, olho outras mulheres? Não, não sou volúvel como dizes: olho-as com o grande orgulho de um triunfador vendo desfilar vencidas.

Examinando-as, analisando-as cheguei à convicção de que sou o mais feliz dos homens porque sou amado pelas mais belas das mulheres.

Como queres tu que eu prefira aos teus olhos límpidos e à tua boca imaculada olhos sem lume das que não me conhecem, bocas onde têm repousado tantos lábios?

Como queres que eu te esqueça por outras se és minha, inteiramente minha, como minha alma é tua e para o sempre.

Volúvel! ... Sim. Minha alma é volúvel porque nunca está comigo, vou encontrá-la sempre — ou nos teus olhos, ou nos teus cabelos, volteando, volúvel e fremente, em busca de tua alma, no adito do teu coração.

Volúvel, porque vario de hora em hora? O amor, no meu coração, sobe como a luz do dia: cada vez mais ardente e mais impetuoso.

Volúvel, sim, porque o meu amor não para. A culpa é tua que me enlouqueceste e me fazes andar de sonho em sonho ou da esperança para o desespero e outras vezes, mimosa, do desespero para a esperança.

VII

— Delicioso aroma! Disse alguém, tomando-me das mãos o lenço que eu trazia. Delicioso aroma! Achei curioso: eu, nesse dia, não perfumara o lenço. Para convencer-me cheirei-o também e saiu-me espontânea a mesma exclamação: Delicioso aroma!

Fiquei a pensar: teria eu mesmo perfumado o lenço? Não, tinha certeza. Demais aquela essência, tão delicada, tão sutil, tão branda jamais eu possuíra. Que flor teria tão estranho aroma!? Não me constava que tal flor houvesse, entretanto, por força, ela existia.

De repente lembrei-me: meu lenço, nesse dia, roçara levemente rosas do teu rosto.

VIII

Não as invejes, não. Efetivamente parecem duas torres nascidas na mesma haste — entre elas não há a mais estreita nesga por onde se insinue o raio de outra estrela, quase que se confundem, tão unidas daqui nos parecem estar as altas estrelinhas claras que são, talvez, grandes mundos melancólicos. Não as invejes, não.

Se pudesses imaginar o espaço imenso que as separa, não as dirias tão felizes. Entre as duas podem rolar folgadamente planetas maiores do que este em que nos amamos.

Quantas mil léguas o nosso olhar reduz a menos que uma linha!

Pobres estrelas! Como vivem solitárias...

Como as estrelas que vês há na terra casais: encontramo-nos unidos, braço a braço, seguimo-nos na turba, invejando o amor que tão estreitamente os une: vemo-os com os mesmos olhos com que contemplamos as estrelas claras.

Se pudéssemos dissipar a hipocrisia, veríamos a verdade triste: o grande vácuo que separa os que parecem quase confundidos, espaço maior do que o que aparta as estrelas, porque entre os astros medeia apenas o vazio e, entre os que se não amam, alarga-se a indiferença, que é a mais vasta e a mais lúgubre das distâncias.

IX

Para que me seguisse a toda a parte e sempre a proteção da Virgem deste-me a pequenina venera que trazias, dizendo-me: “Anda sempre com ela porque é benta”. E trago-a e hei de trazê-la sempre porque, sinceramente o digo, repetindo as tuas palavras meigas: “É benta”. E, como não o seria se, continuamente, teus lábios ungiam-na de beijos; se, continuamente, a medalhinha estava no batistério purificador da tua boca e morava perto do coração, sobre o altar do teu seio, que é mais puro do que a ara das capelas.

Trago-a e hei de trazê-la sempre comigo, a pequenina venera que trazias, e nenhum amargor me entrará na alma nem mais a melancolia fará ninho em meu coração, porque tenho, junto ao peito, o escudo onde gravaste, com os teus beijos, o defensivo dístico do amor, mais forte do que todos os exorcismos.

Mas... pensas que é a Virgem que me acompanha e protege? Não, quem me acompanha e protege é o teu amor, querida.

Tu é que és a Virgem das minhas orações.

Nas horas de saudade é o teu nome que minha alma invoca e todas as minhas preces, que as faço de minuto em minuto, enchem-me de uma benfazeja esperança e de um consolo benéfico — mas, não são feitas à Virgem, nem à medalhinha santa: são feitas ao meu amor, a ti, sacrário de minha alma, senhora e dona do meu ser, porque és tu que me dás o sorriso — e o céu, que tanto ambiciono, não será a Virgem que me dará, senão tu minha muito adorada.

Entretanto, para obedecer-te, trago e hei de trazer sempre comigo a pequenina venera que trazias.

X

Perguntas sempre: “Quando estás longe tens saudade de mim?” Respondo-te sinceramente:

— Não. Não creias que a distância separe, o que separa é o esquecimento.

Tem-se saudade dos que já não vivem, dos que já se não veem. E, como queres que a saudade me atormente se estás sempre em meu coração?

Saudade, não, porque vives comigo, porque a toda a hora sinto que palpitas em mim, dentro em minha alma.

A saudade, amor, é o fogo fátuo das venturas mortas, pairando sobre o coração.

XI

Caminhávamos os dois muito unidos, falando baixinho, tão baixo que as flores do caminho e as abelhas, que procuravam ansiosamente a tua boca, nada ouviram.

Íamos vagarosamente compondo venturas, trabalhando em mil castelos: tu muito vermelha, eu pálido.

Disseste-me tantas palavras de felicidade que, francamente, cheguei a duvidar de ti.

Falávamos no futuro e, quando trocamos o juramento sagrado de eterno amor, uma brisa traiçoeira levou as nossas palavras e, a fugir, as foi repetindo às águas, aos ninhos, às flores, aos raios do sol, de sorte que todas as coisas ficaram sabendo que nós juramos eterno amor.

E tu, muito vermelha, de olhos baixos, murmuraste: — Quantas testemunhas...!

— Quantas testemunhas! Repeti sorrindo.

De sorte que, se me traíres, as flores, as límpidas águas, os raios do sol, os passarinhos correrão a dizer-me: “A tua amada traiu-te! A tua amada traiu-te!”.

XII

De onde vêm as lágrimas? Há duas versões, curiosa; faze tu mesma a escolha.

Vêm da alma, para uns; para outros, vêm do coração.

A alma venturosa tem o sorriso, que é a luz; a alma sofredora tem a agonia, que é a treva.

A noite desfaz-se em orvalho, a melancolia dilui-se em lágrimas. As flores vivem do rocio noturno e a poesia desabrocha molhada pelo pranto. Entre uma gota que roreja a corola e uma gota que humedece a pálpebra há a afinidade da origem: ambas baixaram da sombra, em ambas, porém, brilham centelhas: de estrelas, na gota de orvalho; de pupilas, na gota de lágrimas.

Outros dizem: vem do coração, que é uma clepsidra — relógio sempre a marcar as horas do longo dia e da noite longa, instila, gota à gota, os minutos de mágoa.

Pela quantidade do teu pranto posso saber quanto por mim sofreste. Dá-me as tuas lágrimas que eu te direi o tempo exato que me dedicaste.

Achas pequenino o coração para conter tantas lágrimas, pois ouve e guarda esta triste verdade: Mais depressa verás o leito do oceano enxuto do que um coração estéril de lágrimas.

Cada um de nós traz dentro de si a fonte amarga que abebera os olhos e dessedenta a alma.

Mas falemos do teu sorriso.

XIII

Mal nos sentávamos naquele lindo terraço, que foi demolido pelo proprietário da casa em que nos amamos (Ah! Esses proprietários que nada respeitam e só atendem aos seus interesses) logo ouvíamos os arrastados e vagarosos passos da velhinha que chegava, umas vezes com o seu tricô, outras vezes com o seu rosário, sempre sorrindo, com mais rugas na face encarquilhada — porque a alegria nos velhos é como o sol nas ruínas: torna ainda mais flagrante a devastação do tempo — e sentava-se perto, pertinho de nós, quieta, cabisbaixa, os olhos na tarefa ou nas contas que lhe passavam pelos dedos.

Pobre velhinha! Como errava o tricô! E quanto tempo gastou naquele trabalho que uma criança faria no espaço de uma manhã!

Estou hoje convencido de que a boa velha, posto que nunca houvesse lido Homero, imitava Penelope na astúcia — desmanchando de madrugada o que fazia no serão só para ter pretexto de buscar-nos, à noite. E as suas rezas? ... iriam elas a Deus? Repassaria a velha, com fé, as contas do rosário? Não creio — o que ela repassava eram as suas reminiscências.

Tu não lhe perdoavas a curiosidade e, mal a sentias, amuavas, resmungando contra a intrusa, contra a indiscreta que vinha para ouvir o que dizíamos e, uma vez mesmo, revoltada, quiseste fazê-la voltar e foi necessário que eu interviesse defendendo a pobrezinha.

Bem sabia eu que ela não tinha intenções perversas, pobre velha! O que ela queria era agasalhar-se, aquecer-se ao nosso amor, chegar à nossa mocidade feliz o seu mirradinho coração gelado.

Ah! Os velhinhos...! Quando vem o inverno lá vão eles, trêmulos, para a beira do fogo, inclinam-se, de mãos estendidas, e ali ficam gozando o calor que é, para os míseros, a vida.

E a alma? Julgas que não sente frio? Ai! De nós. O inverno, no coração, é triste — as neves são as saudades que o enchem e a melancolia é a escuridão que o entrevece. A árvore das ilusões perde toda a sua verde folhagem e tudo se torna em neve e sobre a neve passam e repassam, como espectros, os bandos merencórios das recordações.

Imagina a tristeza da velhinha... quase oitenta anos, coitada! Que frio devia ela ter na alma.

O que ela queria era aquecer-se. Buscava-nos como se buscasse um lume, aconchegava-se à nossa mocidade amorosa como a uma lareira e revivia.

O fogo do lar aquece e alegra como o sol do céu e nós éramos, para a velhinha, como a viva chama. Mas, deixando-nos, recolhendo à solidão do seu quarto, reentrando no silêncio e no frio, como devia tiritar, a mísera.

Nós, quando nos apartamos, sofremos, mas logo a esperança de nos revermos tranquiliza-nos — é que a nossa separação é como a sombra transitória da noite, mas, para a velhinha, a sombra que a separava dos amores era a eterna treva da morte.

Não te lembras daquela vez em que a surpreendemos chorando? Tu, com pena, perguntaste: “Por que chora?” Que respondeu a triste? Sorriu sem parar de chorar e as lágrimas rolavam-lhe no colo, grandes como as contas do seu rosário.

Era o degelo do coração misérrimo... Degelo sim, porque, nessa noite, as nossas bocas... e ela ouviu e tremeu.

Pobre velhinha! Quem sabe se não foi essa emoção que a matou? Era como um monte de neve que um sol forte fundiu.

Eu bem te dizia que o nosso ardente amor podia ser fatal à pobre velha. Rias... e ela? Lá se partiu, coitada! E tão engelhadinha que todos pelas ruas, à passagem do enterro, lamentavam que tão cedo a morte houvesse arrebatado aquela que, pelo tamanho do caixão, coberto de grinaldas brancas, imaginavam que era uma criança.

XIV

Sim, porque te julguei indiferente, clamei, no meu desespero: “É preciso esquecê-la! É preciso matar esse amor que me alucina. Porque hei de viver escravizado a um rochedo que me não atende e só me retém como o poste retém o prisioneiro? É preciso esquecê-la!”.

E resolvi abrir uma cova bem funda no coração para enterrar o teu nome.

Chamei o Amor, o Amor negou-se. Chamei o Ciúme e ele, pronto, solicito, acudiu vingativo. Disse-lhe o que desejava. Toda à tarde — ó! O sinistro coveiro — toda a tarde o Ciúme trabalhou cavando a sepultura funda em que devia ficar o teu nome adorado. Eu olhava a terra que saía... a terra! ...

Eram os nossos protestos, eram os nossos ideais felizes, palavras tuas, palavras minhas, promessas, sonhos, queixas e sorrisos...

Às vezes, na pá, rolavam gotas diamantinas — eram lágrimas tuas, as tuas lágrimas ciumentas; e flores, eram os nossos beijos e a cova afundava, escura como um abismo.

“Agora sim, dizia eu radiante, agora sim, vou viver tranquilo, sem a lembrança desse amor, esquecido daquela que não me ama.”

Tomei, à flor dos lábios, o teu nome (oh! Como me custou arranca-lo!) fi-lo baixar à cova e logo o Ciúme pôs-se a cobri-la com a terra feral que retirava. E o Amor sorria ao vê-lo atarefado naquele sinistro empenho.

Cobriu a sepultura, cobrio-a bem, bateu a terra até endurecê-la e, ainda lançou por cima, como uma pesada lage, o meu desprezo com este curto epitáfio: “Aqui jaz uma ingrata.” Depois minha alma, saciada com a vingança, alegrou-se e cantou o seu triunfo. Como me julguei feliz!

No mesmo instante, porém, — não é tão rápida na terra a germinação da semente — senti que me crescia o coração.

Sobressaltado, mandei minha alma ao túmulo e, oh! Desventura venturosa, teu nome fendia a terra, rebentava a lage, subia com um viço prodigioso, não um, como fora enterrado, mas multiplicado, como as folhas nas árvores, tantos, tantos eram os que me vinham, em tumulto, à boca que passei toda a noite a redizer-lo e ainda a manhã veio encontrar-me redizendo-o arrependido, feliz, extasiado.

Aí tens o que me sucedeu por haver querido esquecer-te; nunca em ti pensei tanto como nessa noite, amor.

XV

Não te iludas — ama-se uma só vez: o amor é como a vida e como a morte. Aquele que se refere a amores jamais conheceu o amor.

Dizes, sorrindo, que o amor é um hábito que nasce da convivência. É mais que um hábito, é um destino.

Vi, uma vez, dois velhinhos pararem trêmulos, um diante do outro, fitarem-se, estenderem-se as mãos e ficarem muito tempo mudos, enternecidos, enleados daquele encontro. Não se conheciam e apartaram-se penalizados.

Caminhando em direções opostas voltavam as cabecinhas brancas e os sumidos olhos demoravam-se em fitar-se ternamente. Quem eram? Perguntas.

Eram duas almas que se completariam se a má sorte não as houvesse apartado sempre... Só à beira da cova se encontraram e foi esse para os infelizes o único instante de verdadeiro amor.

Amores...! Aquele que se refere a amores jamais conheceu o amor.

XVI

Se a saudade crescesse como cresce a planta bem regada, já as estrelas teriam lá em cima a flor tristonha do meu sofrimento.

A saudade dilata-se como a ramaria frondosa, como as raízes que alastram, e assim faz sombra à minha alma e crava os seus tentáculos no meu coração, sugando-lhe toda a alegria.

Mas quando de mim te aproximas, doce amada, a árvore toda se ilumina a luz dos teus olhos meigos e os teus sorrisos vibram como rouxinoleio de aves que a povoam e, o que era de antes luto e dor logo se transforma em alacridade e em gozo.

Rejubila minha alma, meu coração exulta, como se alegra a terra depois que se funde o inverno aos calores dourados da primavera florida.

XVII

Desde a entrada, como se um grande vento houvesse soprado à noite, desfolhando as lindas rosas, brancas e vermelhas, o saibro do jardim era um tapiz aromal de pétalas fanadas.

Que pena tive do rosal despido!

Nem uma rosa, ao menos, numa haste escondida, para ornar e perfumar o lindo colo de minha amada.

Eu contemplava, sentido, aquela devastação, quando o riso, que alegra minha alma, anunciou a presença daquela por quem vivo. Vendo-a, tomando-lhe as mãos pequenas, notei que baixava os olhos. Perguntei-lhe, então, mostrando as pétalas dispersas:

— Que houve aqui? A noite foi de luar e serena. Que perverso terá assim desfolhado as lindas rosas? Ela, sorrindo, estendeu-me as mãos dizendo, corada e meiga:

— Aqui as tens: castiga-me.

— E que mal te fizeram as flores inofensivas?

— Mal nenhum. Dizem que, perguntando-se à rosa, à medida que se vai desfolhando, se o nosso amor não mente, a flor responde e eu... duvido tanto de ti que, para convencer-me...

— Sacrificaste todas as rosas...?

— E, ainda assim, não creio no teu amor.

XVIII

Perguntando-lhe eu de quem ouvira palavras tais baixou os olhos sorrindo e balbuciou: “Nunca as ouvi de lábio algum, tirei-as do coração.

O apólogo do ciúme nasceu na alma de minha amada como o perfume nasce na corola da flor.

Vê lá, sisuda crítica, se lhe pões as mãos em cima. O que encontras aqui não é da tua alçada, cumpre o teu fadário, mas não exorbites. Isto não é literatura, é carinho. Ouve como eu ouvi, uma noite, enquanto a chuva do inverno fazia chorar o arvoredo. Ouve e passa.

O príncipe agoniza.

Leves, cautos, de manso os passos mal se acusam. Qual foge a correr, qual a chorar — um que conduz os bálsamos, outro que precede os magos; e passam, num desferir de sombras; mal um frêmito deixam quando passam. Não murmuram palavra, apenas os olhos falam...

Choram; lágrimas brilham nas lajes dos corredores. O silêncio é quase absoluto. As águas dos rios foram desviadas para que o murmúrio não perturbe o sono do moribundo. Os pássaros, tomados com grandes redes, foram transportados para longe. Apenas o vento soluça nos tristonhos ciprestes lúridos.

O príncipe agoniza.

Arautos percorrem as terras vastas do reino prometendo cargas de pedrarias, minas de ouro, haréns de formosuras, províncias com os seus haveres e habitantes a quem salvar da morte o príncipe moribundo e ninguém se atreve a concorrer a prêmios tais.

Pelas tendas e pelos palácios os súditos balbuciam: “O príncipe agoniza. Pobre princesa noiva!”.

Pobre princesa noiva que não deixa o beiral do leito amado. Quem salvará seu noivo?

Correm magos e solitários, astrólogos e marabutos e a morte não se arreda.

Subitamente pajens e janízaros precipitam-se na câmara merencória anunciando que uma formosa mulher bate às portas do palácio prometendo a vida ao moribundo.

— Que entre asinha! Que entre a salvadora! E a guarda silenciosa abre passagem à peregrina estranha. É formosa, maravilhosamente formosa! Velhos soldados murmuram à sua passagem:

— Não é mais linda a estrela da manhã.

Abre-se a cortina do leito: o príncipe lívido, os olhos amortecidos, as mãos cruzadas no peito, mais branco do que os linhos alvos, é quase cadáver frio. E a princesa soluça:

— Trazes a vida, linda peregrina? Indaga, mas com ciúme porque, através das lágrimas, seus olhos vêm e admiram a graça e a formosura da estrangeira.

—Trago-lhe a vida, diz a mulher formosa. E os olhos do príncipe reacendem-se e fulgem. Basta que meus lábios toquem, de leve, a polpa de seus lábios e logo despertará no seu coração a vida que vasqueja. A princesa estremece e o príncipe estremece. Pasmam todos de vê-lo revivendo e a peregrina, desnastrando os cabelos, vai, a mais e mais, ganhando maior graça.

Já seus braços nus recurvam-se, brancos como dois crescentes, aureolando a cabeça desfalecida; tremem-lhe os lábios, acendem-se lhe as pupilas. Vai a pousar a boca sobre o lábio morno do príncipe que morre quando a princesa, assomada em ira, investe repelindo-a:

— Não! Custe-lhe, embora, a vida! Nunca outros lábios sentirão o sabor do seu beijo.

Expulsa a peregrina. Logo a morte envolve em silêncio e em frio o corpo do moço príncipe.

— Antes a morte! Profere a princesa em soluços e, para acompanhar o noivo, abre no peito, com o ferro de um punhal, o caminho à Morte.

— Se a minha vida dependesse de outros lábios, dize, terias a fria coragem da princesa cruel?

— Antes a morte! Afirmou minha amada chorando.

XIX

Pensando em ti, ao claro luar, ouvi a voz dos trovadores.

Desciam vagarosamente a larga e silenciosa estrada, ao som das guitarras languidas.

Um deles cantou. Dizia assim, em versos delicados, a tonadilha de amor:

“Se toda a vez que a minha amada mentisse morresse uma estrela no céu já não haveria, não direi estrelas, mas nebulosas que são a florescência sideral (ou sideral).”

E o outro, com a mesma melodia, respondeu:

“Se toda a vez que a minha amada perjurasse desaparecesse um grão de areia do mar já as águas verdes não teriam leito nem as longas praias alvejariam”.

E minha amada, sorrindo, os olhos fitos em mim, perguntou com malícia:

— Quem era o outro trovador?

XX

Fiz uma fogueira com todas as lembranças da minha mocidade, para que nada ficasse do passado morto. A cinza, levou-a o vento.

Do tempo que se foi não resta a mais leve memória: o fogo consumiu o que era material, o que havia em minha alma lancei ao esquecimento.

Posso agora receber-te com a pureza de que és digna.

Durante toda a longa noite um sinistro clarão iluminou o meu jardim solitário e de longe, quem voltasse o olhar na direção do meu retiro, julgaria que um incêndio devastador arrasava aquela parte da cidade tão cheia de vergéis e era eu, eu só que destruía todas as minhas ilusões de moço.

E tu, meu amor, em que empregaste a última noite de solteira? E minha amada, descerrando o cortinado de um pequenino berço, mostrou-me a sua boneca, loura, vestida de branco e azul, que parecia dormir quietinha entre rendas e fitas; e, com os olhos rasos de água, disse:

— Em vesti-la e acalentá-la pela derradeira vez.

VISÕES E SONHOS

DÚVIDA

Deus meu! Pois é possível que não tenha compreendido ainda? É possível que, ao passar por mim, não ouça as pancadas fortes do meu coração? Se lhe tomo a mão delgada acho-a sempre impassível. Jamais estremeceu dentro da minha essa pequenina mão, lírio nevado, de cinco pétalas, que perfuma o adeus.

Olho-a quando a vejo distraída. Mais de uma vez seus olhos me têm surpreendido nessa contemplação sem, todavia, demonstrarem haver percebido o que se passa em minha alma. Que hei de fazer para que ela saiba do meu amor? Como dizê-lo?

Se a vejo andar sigo-lhe os passos, as flores de que ela fala são as minhas flores, o que ela festeja eu amo. Deus meu! Pois é possível que não tenha compreendido ainda?

Sem vê-la, sinto a ausência de mim mesmo, falta-me tudo e tudo me aborrece. Mal a encontro estremeço e sofro mal a encontro. Penso em evitá-la, penso em esquecê-la, mas como se pode esquecer a própria vida?

Tudo tenho tentado. Quando ela fala inclino-me para ouvi-la e, se a vejo em silêncio, os olhos baixos (ó presumido coração!) chego a cuidar que ela, indiferente e fria, pensa em mim.

Deus meu! Que hei de fazer para que ela me compreenda?

Seu nome não me sai dos lábios, não o pronuncio alto — aspiro-o, levo-o à minha alma, como um canto, para acalentá-la e, no meu coração, como em um berço, minha alma adormece embalada por esse canto. Às vezes tenho ímpetos de confessar-lhe tudo. Olho-a, mas encontro o seu olhar tão frio que... Deus meu! pois é possível que não tenha compreendido ainda?

À noite enche o meu pensamento essa gélida estátua: são os seus olhos, é a sua boca, são os seus cabelos, é o seu sorriso, é a sua voz, é o seu andar... Como cabem tantas seduções em uma só mulher e por que não tens força, coração, para resistir aos sortilégios desse formoso e desejado inferno? Vives na Tebaida do peito... faze-te forte, asceta! Faze-te forte para que te não seduzam mais os seus encantos. Mas não apenas ouves os seus passos, ficas submisso e humilde e, para que te contenhas, as mais das vezes forças-me a evitá-la.

Certa manhã achou-me pálido; falou-me. Que lhe disse eu? Não sei. Melhor fora que lhe houvesse dado a razão da minha palidez doentia.

Se lhe falasse? Mas.... Quem sabe? Quem sabe se ela também não sofre em silêncio? Se também não procura em minha alma o seu segredo?

Por vezes tenho-a surpreendido com os olhos negros fitos em mim. Quem sabe se ela também, à noite, recolhendo-se, não terá, muita vez, soluçado fremente: “Deus meu! Pois é possível que não tenha compreendido ainda?!”

O VELHO OURIVES

— Pobre de mim! Pobre de mim! Gemia o velho ourives vendo vazias todas as encarnas da coroa real em que, com tanto esmero, andava a trabalhar desde os dourados sóis do estio. Pobre de mim! Quem nos terá furtado os claríssimos diamantes, os púrpuros rubis e as opalas mais alvas do que as espumas do mar?

Ai! de mim, vendidos todos os meus haveres não darão o preço do menor dos diamantes da coroa.

Foi, com certeza, ontem à noite, enquanto saí a recolher um pouco de ramalho para avivar o lume. O vento impeliu a porta e algum ladrão entrou levando as pedras.

Ai! de mim, gemia o velho ourives debruçado sobre a banca de trabalho, pensando no suplício inevitável, quando ouviu uma voz que saía do fundo lôbrego da cela taciturna:

— Não te aflijas, lhe disse, se tens caridade na alma sai um momento à porta e encontrarás, senão as gemas que te furtaram, outras mais raras. Vai, para que não haja no dia do Senhor um homem triste no mundo.

Ouviu o velho e, reagindo contra o pavor que lhe causara a voz misteriosa, tomou o bordão e saiu. Mal chegara ao limiar da casa eis que lhe apareceu uma pobre mulher macilenta, andrajosa, aconchegando no colo uma criança.

Chorava e tremia de frio, toda encharcada. Ao dar com o velho a míseranda prostrou-se de joelhos e, quatro a quatro, caiam-lhe dos olhos fundos grossas gotas de lágrimas.

— Vê se eram mais puros os teus diamantes, disse misteriosamente a voz misteriosa.

Em verdade — atentando nas lágrimas da mísera viu o ourives que eram mais claras que as pedras que perdera e, com pressa de avaro, aconchegando as mãos, risonho, pôs-se a aparar as lágrimas que, mal caiam no côncavo das mãos, logo se cristalizavam rutilas, fulgindo.

E a mulher, a chorar, sentou-se sob o telheiro e, desabotoando o casaco, expôs o seio flácido que a criança avidamente procurava.

Pôs-se o infante a mamar com tanta gula que o leite lhe escorria pelos cantos da boca e, de novo, misteriosamente, falou a voz misteriosa:

— Vê se eram mais belas as opalas que te furtaram.

Efetivamente as gotas de leite eram muito mais alvas e tinham um reflexo mais azulado.

Mamava a criança e a mulher ia, aos poucos, desfalecendo como se tivesse a sugá-la a boca de um vampiro e o ourives, da própria boca da criança, foi recolhendo o leite que, como as lágrimas, logo se cristalizava.

O pequenito, que não se saciava, ia sugando com mais ânsia até que se lhe encardiu a boca como uma ferida aberta e o sangue entrou a escorrer-lhe dos lábios. De novo, misteriosamente, falou a voz misteriosa:

— Vê se tinham tão linda cor os rubis da coroa.

Não se conteve o ourives de alegria — avançou com as mãos ambas e, retirando a criança do seio materno, pôs-se a recolher o sangue que manava.

Nevava. O vento, ululando, revolvia a poeira brumal do dia triste. Branqueavam os telhados das casas, o campo era uma imensa lápide que reluzia.

De quando em quando manchava a neve a sombra de um corvo errante.

Tomou o ourives à velha banca e, cantando, tomou a coroa real e pôs-se a engastar o pranto, o leite e o sangue, deslumbrado com a beleza das novas pedras, quando o vento começou a uivar trazendo mais densa neve e fora, sob o telheiro, a criancinha chorava no colo gelado e murcho da mulher transida.

Disse então misteriosamente a voz misteriosa:

— Por que não recolhes essa pobre mãe que sofre exposta ao frio, e desfalece de fome? O velho, cravando as pedras, encolheu ligeiramente os ombros e foi fechar o postigo por onde o vento entrava aos silvos e foi atear o lume no fogão.

De novo, misteriosamente, falou a voz misteriosa:

— Por que não agasalhas a desgraçada que sofre no limiar da tua casa? Não te deu ela os diamantes, as opalas, os rubis, a fortuna, a vida, enfim, por que serias levado à forca se não achasses as pedras que te furtaram?

O velho pôs-se a cantar indiferente continuando a trabalhar na coroa real. Que lhe importava a mísera! Lá fora o vento gemia, lá fora crescia a neve, mas ali dentro ardia um bom fogo e, com a esperança dos dias afortunados, o velho ourives sorria.

Quando entregasse a coroa e recebesse do rei a recompensa compraria uma granja fértil, teria arvoredo e rebanhos, uma casa de muros novos, sem trinchas por onde o nordeste entrasse e coberta de telhas. O seu trigal dar-lhe-ia pão para todo o ano, o olivedo daria o azeite, o parreiral daria o vinho, a lã ele mesmo tosaria das ovelhas gordas, o mel as abelhas o fariam nas colmeias dispostos em torno da casa e, como ele havia de gozar, à tarde, à hora do recolher, quando visse os rebanhos virem vindo devagarinho, ao canto dos zagais, sob o olhar claro das primeiras estrelas...

Lá fora gemia o vento, crescia a neve.

Súbito, um dos mais claros diamantes, quando ele o ia encravando na coroa, diluiu-se lhe entre os dedos como um cristal de neve.

Pasmado, maravilhado o velho ourives ficou a olhar os dedos gotejantes e viu que todas as pedras se fundiam escorrendo em pranto, em leite, em sangue pelos florões da coroa.

Esgazeado e lívido entrou o velho a tremer, mas uma ideia ocorreu-lhe: Afastou impetuosamente o banco em que se sentava e, com ânsia, sofregamente, correu à porta onde deixara a mulher. Achou-a estendida e gelada, morta e sem pranto e sem leite e sem sangue e, sobre ela, a neve crescia amortalhando-a e, em torno dela, o vento uivava tristonho.

O velho caiu de joelhos, desesperado: Ai! De mim, ai! De mim, pôs-se a gemer arrancando as falripas. Que há de ser de mim?! Miserável que sou!

Ao rumor do vento estremeceu levantando a cabeça e, de olhos escancelados e ouvido atento, ficou esperando que falasse a voz misteriosa, mas só havia no ar o ululo do nordeste sinistro.

De repente, como uma estropeada de muitos cavaleiros apressados, rompeu na rua calada um precipite arrulho. O velho alongou aflitamente os olhos que almejavam e distinguiu ao longe, na estrada orlada árvores sem folhas, brancas, cobertas de neve, um bando de fidalgos que se encaminhava para o seu tugúrio: era a gente do rei que chegava para buscar a coroa.

O ourives, numa derradeira esperança, inclinou-se sobre o cadáver: abriu-lhe os olhos sem pranto, espremeu-lhe os peitos exaustos e então, vendo a morte vizinha, exclamou rojando-se na fria neve: “Por que não a recolhi, Senhor!? Porque não a recolhi ao calor do meu lar?!”.

Os cavaleiros apearam sob o telheiro em ruinas.

Foi então que, no ar tristonho, passou misteriosamente um riso misterioso.

CORAÇÃO MAREANTE

Enfermara o piloto e, como não houvesse a bordo outro homem que conhecesse aqueles mares arriscados, grande foi o terror na fusta.

Já o barco singrava sem governo, as velas frouxas trapeando e a maruja cercava a maca onde o moço enfermo jazia, quase a extinguir-se. O gajeiro alongava os olhos ansiosos sem divisar um ponto no horizonte. O céu fechava o mar e nuvens acastelavam-se anunciando borrasca.

Alguns, mais timoratos, sentindo a morte próxima e querendo acabar em graça — porque não esperavam salvamento — andavam pelos cantos balbuciando rezas e promessas; outros, ainda com ânimo, iam, de instante a instante, perscrutar a distância e tornavam suspirando.

O mar encapelava-se e, túmido, espumoso, fazia andar a fusta sem governo. Já os vagalhões assaltavam as bordas quando o moribundo, fazendo um derradeiro esforço, chamou para junto do leito os companheiros.

Acudiram todos precipitados julgando que a vida lhe voltara, mas o mancebo, ajuntando todo o alento, pôde apenas dizer enfraquecidamente:

— Não desespereis. Em verdade já vos não posso levar em rumo à pátria, mas vós outros não deveis ignorar que, desta volta, dependia a minha ventura porque há alguém que me espera em terra com o mais leal dos amores. Bem sabeis que sou noivo. A companha, que ouvia, afirmou pesarosa sem aturar com a razão daquelas descabidas palavras em transe tão perigoso. E o moço continuou com ânsia:

— Bem sei que morro, mas não vos dê isso cuidado. Lançai ao mar meu corpo e mais aliviada ficará a fusta, mas tomai o meu coração e deixai-o à proa porque ele vos levará, como uma bússola, à terra da pátria que o atrai. Disse e expirou.

A maruja, tomando por insanas as palavras do moço piloto, não quis profanar o seu corpo e ia alijá-lo intacto quando um velho marinheiro observou:

— Por que não havemos de executar a sua vontade? Se o conselho houver sido um produto do delírio logo teremos prova. Tomemos o coração. E assim foi feito. Tanto que o expuseram na habitácula logo o coração voltou-se para um ponto e em tal rumo velejaram.

Singraram com fortuna através da procela até que, ao alvor de uma manhã, avistaram torres que pareciam emergir da água e logo, alvoroçadamente, reconheceram a terra da pátria. Foi grande o clamor de festa e os que se julgavam perdidos ajoelharam-se no convés alagado agradecendo a Deus o salvamento.

Só um homem foi grato subindo à proa para beijar o coração do morto que os havia conduzido àquele termo: foi o velho marinheiro.

Tanto, porém, que a fusta entrou no porto o que levava veneradamente o coração, sentiu-o trêmulo e, à medida que se aproximava de terra, mais trêmulo o sentia.

Já ouviam os repiques festivos dos sinos e, como a capela ficava num outeiro, um dos marujos, que ia a olhar agudamente, disse com alegria:

— Olhem lá! É uma boda que sabe da capelinha.

— Felizes noivos! Disseram. E o coração desfez-se em sangue na mão calosa do velho marinheiro. Houve espanto a princípio, mas o marinheiro disse:

— É natural que acabe porque cumpriu a sua missão. Agora peçamos ao Senhor pela alma do que morreu.

Só mais tarde souberam a razão do caso estranho quando lhes disseram quem era a noiva que sabia da capelinha do outeiro quando a fusta, por milagre, ancorava no porto.

O VAGALUME

Foi ao princípio, disse o velho Azael aos zagalejos que, todas as noites, no pouso da montanha, à volta do fogo, enquanto as ovelhas sonhavam com as ervas tenras e com as águas límpidas, cercavam-no pedindo histórias. E ninguém as sabia tão curiosas como o solitário Azael que se recolhera à montanha depois que levara a noiva ao túmulo.

Foi no princípio, disse o velho Azael — tudo era sombra e silêncio e Deus, na altura, lapidava os astros, que são os diamantes do céu, lapidava-os e a poeira luminosa que deles se esparzia ficava espalhada formando a Via Láctea e as outras nebulosas.

Logo que um astro fulgurava, Deus, deixando-o engastado, tomava um pouco de treva e punha-se a bruni-la e assim conseguiu fazer todas as estrelas que brilham o sol que é um topázio enorme e a lua que é uma grande opala triste.

Lapidando os astros não podia o Senhor pensar que parte da poeira micante viesse parar à terra, mas tendo de criar os animais e o Homem desceu ao mundo deserto e, caminhando, devagar, pela sombra, viu, de repente, fulgir entre as árvores virgens uma chama fugaz. Deteve o andar e pensativo, ficou acompanhando a viagem aérea e volteante da fagulha de origem desconhecida.

Vendo-as ir e vir e vendo que outras surgiam o bom Deus, não querendo que o demônio astuto pusesse malefício em sua obra e julgando as chamas erradias criações do Mal Anjo — porque não se lembrava de as haver criado — tomou, no espaço, uma das que passavam e, com o seu alto poder, fez que a centelha falasse e, entre os seus dedos, a centelha falou:

— Senhor, deixai-me ir livre. Não me julgueis provinda de origem má. Chama, não fui gerada nos braseiros infernais, venho das claras estrelas que fulguram no céu. Quando as lapidáveis delas saía uma luminosa poeira que se espalhou nos espaços formando estradas largas, sucedeu, porém, que alguns grãos pequeninos dessa poeira rutilante vieram cair na terra e porque neles havia tocado a vossa mão logo se animaram e, à noite, à hora em que as estrelas brilham no céu, a poeira das estrelas vive e brilha na terra.

Bem vedes que de Vós venho. Deixai-me ir, Senhor! Deixai-me ir por entre às árvores que cheiram e por cima das águas brancas que murmuram.

E o Senhor, enternecido, abriu os dedos deixando partir o vagalume. E aí tendes porque não é fixa, como a das estrelas, a luz do vagalume — é que ela esteve, algum tempo, abafada entre os dedos de Deus e, até hoje, o inseto guarda essa instantânea impressão.

No pouso o fogo triste morria e Azael levantou-se para alimentá-lo.

LAUS VENERIS

Brusco, lesto, vibra e tine o relógio... e nada mais.

Em frente, impassíveis, o céu oculado de estrelas e o mar aflorado de espumas.

O céu plácido, o mar manso... Será meu coração maior do que eles ambos?

Sinto muito mais luz dentro em mim, muito mais luz do que existe no céu porque surges, na minha saudade, viva, nua, palpitante, rindo; e o tumulto do meu coração é bem maior do que o escachoar perene do oceano.

—Por que não vens? O tempo voa. Há duas ansiedades irmãs: a do moribundo e a do amante — esperar a morte... esperar a vida.

Que terá acontecido?

Batem delicadamente à porta três pancadas — três. Corro precipitado.

Oh! Que cortejo, Deus! As princesas das terras levantinas não trariam divicias mais preciosas.

Entra um suavíssimo perfume, volatiliza-se, evola-se, toma todos os cantos e a alcova inteira trescala.

Oh! Sensualíssimos lábios! boca aromalíssima que apenas um vocábulo disseste, um só, meu nome e a alcova toda ficou cheia da essência da tua palavra.

Sol noturno... e neve ao mesmo tempo e estrelas e rosas... que promiscuidade de astros e de flores. É a tua trança loura, são as tuas faces, são teus olhos, é a tua boca, és tu, enfim, que atravessas, como uma deusa, o limiar do meu retiro, cheio de ânsia e de amor.

Meu Deus! Não há tanta luz nem tanto aroma em minha câmara, de manhã, quando abro ao sol, as portas de par em par.

Oh! Volúpia dos olhos! Flama sútil das lúcidas pupilas, que claridade, que divino êxtase concentras, que benfazejo calor prodigalizas!

Olhos, astros do amor, astros sensuais que sois meus guias, salve! Salve! Salve!

AS IARAS

Ao lívido luar funéreo, dentre os flexíveis calamos dos lírios, as Iaras surgiam trêmulas de frio.

Era em junho, o mês brumal, ao lívido luar funéreo.

O nevoeiro pulverizava a noite e um vento gélido soprava. A paisagem era triste à beira da água lacustre, perto da selva murmura e mais triste a tornava o lívido luar funéreo escorrendo das árvores como mortalhas de espectros penduradas dos ramos.

Abeirei-me do palude. Protegia-me um grosso tronco primevo e vi e ouvi as virgens anfíbias que nenhum mortal conseguiu jamais, com sedução ou violência, arredar das águas ou das terras ribeirinhas para gozar o beijo dos seus lábios.

“Que águas frias! Suspiravam, e que vento gelado! As estrelas são como pupilas de mortos, opacas no fundo céu. Não há conforto nas águas, não há conforto na terra. Que ríspida noite corre e que desolação!”.

Uma mais bela e nua, levantou-se dentre os flexíveis calamos dos lírios e falou tremulamente, apertando entre as mãos os seios pequeninos:

— Há bem perto daqui alguém que nos pode aquecer. Para nós outras só o calor do céu ou o calor das almas, porque de nada nos servem colmos de cabanas nem folhagens de arvoredo nem chamas de brasidos. Há bem perto daqui quem nos pode aliviar do frio que nos regela. É Jandira, moça virgem. Ela deve ter o coração ardente. Vamos até junto do seu leito casto e aqueçamo-nos ao calor do seu coração amoroso.

E todas, transidas, tremulamente disseram: — Vamos! E partiram.

Jandira! Gandra! ... Pobres Iaras, princesas das águas murmuras.

Amanhecia. Como choravam as aguas órfãs! Murcharam de tristeza os lírios transparentes e as garças alvadias chegando, de longe, à margem da água lacustre procuravam, com ânsia, as princesas do palude.

Vozes bradavam por mim, vozes aflitas e disse o primeiro que me avistou:

— Anda daí, a correr. Vem ver, junto ao leito de Jandira, nuas e como são formosas!

Corri e, mesmo correndo, ia ouvindo meu coração compadecido que lamentava a sorte das desgraçadas: — Pobres Iaras da água! Pobres princesas misteriosas! Chegando eis o que vi com mágoa inexprimível: Em torno do leito de minha amada, mortas, jaziam as Iaras brancas. Uma apenas arquejava ainda — roxa, as mãos crispadas, os olhos amortecidos como as estrelas da noite. Curvei-me sobre a pobrezinha e pude ouvir os seus últimos lamentos e vi quando se extinguiu o raio derradeiro da sua verde e úmida pupila:

“Que frio! Pobre moço namorado! O coração de Jandira ainda é mais frio que as águas... O coração de Jandira ainda é mais frio que a geada. Pobre de ti, moço amante, vais para um desolado inverno interminável...” Disse e tombou nos meus braços, fria e morta.

Pobre de mim que te amo, formosa criatura indiferente.

Agora sei porque ando sempre triste e derivando lágrimas como uma geleira que se funde. Agora sei porque não me basta o sol, porque não me bastam os carinhos dos que me cercam e porque minha alma não se arreda de ti e tu... Pobres Iaras, princesas das águas múrmuras! Pobre de mim, Jandira ...!

O DIVINO AMAVIO

Deitado à sombra de um bosque de loureiros, o arco e a aljava esquecidos por inúteis, Eros jazia penseroso. Bem lhe chegavam aos ouvidos as vozes alegres das moças turbulentas, bem que ele ouvia avenas conversando, mas molemente deitado sobre as versas macias, não se tirava do repouso, a olhar, distraído, o trabalho de uma aranha de ouro que ia, de um galho a outro, esta, ligeiramente tecendo a irradiada trama trêmula da sua teia.

Que lhe importavam os homens se o amor passara a ser um interesse? Para as feridas das suas setas o egoísmo descobrira bálsamos cicatrizantes e Eros meditava uma vingança cruel quando as folhas estralaram, os ramos sussurraram e ele logo reconheceu Eris na virgem que lhe apareceu, sorrindo, toda vestida de purpura; Eris, a mesma Discórdia, que, no florido monte, indispusera as deusas contra o troiano Páris.

Vendo-o ali, abandonado e triste, a densa interrogou-o sobre a sua tristeza.

— É grande, em verdade, e justa, disse Eros: perdi todo o poder que tinha sobre os homens. Dantes, mal eu atesava a corda do arco, mal a flecha aligeira zunia, logo se rendiam os corações feridos e era um concerto mimoso de promessas, era uma música suavíssima de beijos. Hoje... os corações blindaram-se, Discórdia.

— Não descorções, disse-lhe Eris, tenho o que te falta para que venças os corações. E, tirando do seio um gutturnio de porphyro, deu-o explicando: Embebe as pontas das tuas setas no licor deste vaso.

— E que há nele? Perguntou o deus desconfiado.

— Um poderoso amavio composto com várias essências, cada qual mais terrível: desconfiança, volúpia, pundonor, audácia, incoerência, ardor, vaidade, afeto, superstição, ingenuidade. Fê-lo a própria Loucura. É vermelho como o sangue e queima como o fogo. Foi nesta purpura que Dejanira tingiu a túnica fatal. Não creias na fábula do sangue do centauro.

— E que nome tem?

Ciúme. Experimenta-o e verás que o seu poder é imenso.

Justamente passava um casal de pastores. Eros, que os viu, logo embebeu no gutturnio duas das setas rápidas e desferiu-as certeiras.

Estremeceram os dois, olharam-se, deram-se as mãos e foram-se.

Eros sorriu satisfeito agradecendo à deusa o mimo precioso.

Instantes depois, como ouvisse rumor, tomou da aljava nova seta e ficou à espreita entre os loureiros. Mas o rumor crescia — eram gritos aflitivos, e, como Eros atentasse no caminho viu vir, correndo, alucinada, a loura e farta cabeleira ao vento, a túnica em farrapos, a mesma pastora amorosa e quem a perseguia, com um agudo punhal no punho fremente, era o mesmo pastor que, pouco antes a beijava. Saiu-lhe Eros à frente e, detendo-o, interrogou:

— Por que ameaças assim a mísera pastora? E o pastor, trêmulo e incendido, com os olhos como duas brasas, disse:

— É que ela é linda como não há outra em toda a Acaia e eu, beijando-lhe os olhos, lembrei-me que alguém poderia seduzi-la e, para que outros lábios não venham a gozar a delícia que os meus gozaram, entendi que devia matar a dona dos lindos olhos e com ela morrer.

— Envenenaste o amor, disse Eros à deusa pérfida.

— Enganas-te; tornei-o humano. O amor sem o ciúme era como uma flor sem aroma e na flor é o aroma que delicia e mata.

E sorrindo triunfante, Eris desapareceu no bosque.

O REBANHO

Para tão grande morto — o sol, só mesmo esse catafalco: a noite.

Vede-me essa treva lentejada de estrelas; vede-me essa coroa branca, o plenilúnio, cujas fitas rastejam na terra; vede a porção de flores da Via Láctea e agora escutai a antífona das coisas e dizei-me se não são solenes os funerais do dia.

É morto o grande Pan! Não, o grande Pan não morre: os funerais não são por ele — a Natureza bem sabe que ele há de tornar — os funerais que vemos são os dos nossos momentos que o minotauro levou para a furna do Ocidente.

Horas felizes que não mais tornais, o vosso memento é a saudade.

Quanto daríamos nós para poder retroceder um passo no caminho da Vida tonando a certo instante feliz!

Ontem é um fosso profundo que nos separa do Passado. Como vai recuando a nossa mocidade! Como se desfazem as nossas ilusões!

Quantas alegrias e quantas lágrimas, quantas esperanças e quantos desenganos leva para o acaso o sol de um dia! Como vai carregado esse respingador purpúreo que andou de coração em coração deixando em todos a saudade. Já que levas o melhor da vida porque também não levas a memória, esse abutre da alma?

Vamos seguindo: somos o rebanho do sol, ele é que nos conduz. À noite repousamos — lá vai ele para a sua cabana e nós ficamos expostos à loba esfaimada — a Morte, que uiva sinistramente no vale da Vida, onde as lágrimas são rios.

Quando acordamos olhando em volta de nós, vemos, com tristeza, que já não nos achamos no mesmo sitio em que adormecemos. Caminhamos, então, de olhos fechados, através da treva, enquanto o pastor dormia? Sim, caminhamos fugindo à loba e, dentro da sombra do sono, vimos espectros trágicos.

Mal aparece o sol: — “Eia! Rebanho. Eia!” Brada, e lá vamos nós, tristes ovelhinhas, seguindo em magote— para onde? O sol não diz e, fustigando sempre com o seu látego de fogo, brada inexoravelmente: “Eia! Rebanho. Eia!”.

E não poder a gente regressar a certo sítio onde foi feliz, à certa sombra onde repousou, à certa fonte clara onde matou a sede, à certa mouta onde viu uma madressilva que nunca mais verá. “Eia! Rebanho. Eia! Que dor!

Sentir vibrer toujours comme l’écho lointain

D’une vie à laquelle on ne peut plus renaître.

Cantamos o ano que nasce para não chorar o ano que foi. A ansiedade de ver faz com que esqueçamos o que vimos... com que esqueçamos? Digo mal — com que nos resignemos da perda visto como, de instante a instante, voltamos os olhos para trás e vemos os nossos passos sulcando o caminho como um arado forte e, nos sulcos, quanta saudade! “Eia! Rebanho. Eia!”.

Mas, para onde vamos nós? Onde é o aprisco? A loba investe, ouve-se um grito — lá vai uma ovelha na fauce da Morte. “Eia! Rebanho. Eia!”.

Enfim, como vão todas juntas para o mesmo destino, as ovelhinhas resignam-se. De vez em quando perguntam: “Onde é o aprisco?” O pastor inclemente responde com o mesmo brado: “Eia! Rebanho. Eia!”. E lá seguem.

Nous allons devant nous comme des exilés

Ne pouvant pas fouler deux fois la même place...

O PÂNTANO

Na sombra úmida de um bosque densamente fechado pelas altas folhagens e de uma tão enredada trama de cipoais e espinhos que as mesmas feras e as mesmas aves não se atreviam a penetrá-lo, lobrego, entre juncais mofinos, um pântano alastrava. A sua água escura, toldada de folhas mortas, imóvel, como adormecida, raro em raro crispava-se ao arisco roçar das asas de uma libélula. Nuvens de moscas de ouro e azuis enxameavam-no.

Jamais um raio de sol descera furtivamente àquele atascadeiro, jamais uma réstea de luar baixara sobre o tremedal merencório que dormia em lúgubre silêncio, negro, encerrado no bosque trágico.

Uma noite, jazia o pântano na treva quando, apartando-se, a uma rija lufada, as altas franças cerradas, a luz de uma estrela desceu curiosamente sobre a sua face tristonha. Tanto que o pântano sentiu na sua nojenta epiderme aquela maravilha retraiu-se e, como a teia de aranha que, perfidamente, retém a mosca silvestre, quedou contente e orgulhoso da presa que fizera.

À hora suave da alva, quando a estrela recolhia, às pressas, toda a claridade que espalhara na terra, sentiu que lhe faltava uma pequenina cintila e, olhando ansiosamente de altura, foi descobri-la a tremer, à tona do pântano selvático. Reclamou-a— o pântano quedou silencioso como se dormisse à sombra do cerrado bosque. Reclamou-a de novo e chorosa, dizendo:

“Água dormente da selva, restitui-me essa luz que me falta. Que será de mim quando o Senhor, que nos visita todas as manhãs, descobrir que deixei na terra um pouco do meu esplendor? Uma centelha que fique numa gota de orvalho basta para que Ele nos acuse de descuido e nos condene à vida errante, com uma grilheta de fogo que os galés levam de rasto pelo espaço. Tantos irmãos sidéreos peregrinam cumprindo uma dura e irremissível sentença por haverem esquecido, na pressa das madrugadas de verão, um quase nada de luz no rocio de uma corola.

Restitui-me essa parcela astral que não basta para alumiar-te e cuja falta será bastante para que eu perca a confiança de Deus. Restitui-me, devolve-me a pequenina centelha e eu fecundarei o lodo do teu seio, fazendo que dele nasça uma estrela mais branca do que as que brilham no céu”.

Aceitou o pântano a proposta, mas como era astuto, exigiu, para dar liberdade à luz cativa, que logo se cumprisse.

Como já se dourava o oriente pôs-se a estrela a chorar, temendo o sol que vinha, em chamas.

Ouviu-a um anjo que rondava o espaço e, acudindo ao seu pranto, interrogou-a. Disse-lhe a estrela a sua desventura e concluiu lastimosa:

“Como poderei eu apresentar-me ao Senhor com um rasgão na túnica? No meu desespero prometi ao pântano inclemente dar-lhe, em troca da luz, uma estrela em tudo igual às que brilham no céu... mas, como cumprir promessa tão imprudente? Ai! de mim...”

Teve o anjo piedade do astro, que ainda era novo, e disse-lhe:

“Não te aflijas, será cumprido o que prometes-te...” E, lançando da altura um doce olhar ao pântano, fez emergir da água lôbrega o lírio com as suas pétalas, em tudo iguais aos raios estelares, dando-lhe, a mais, o aroma que, assim como a luz é a alma dos astros, é o espírito delicioso e delicado das flores.

E foi assim que, voltando à estrela a luz cativa, apareceu, na noite negra do pântano, uma estrela tão linda como as que brilham no céu.

MUSA

Musa...

Porque não lhe sabia o nome era este o que eu lhe dava nos meus sonhos. Ó criatura meiga! Nos seus olhos—olhos de sonhadora e de amorosa — tanto carinho havia e tanta ingenuidade que, muita vez, pensei beijá-los, mas como se beijasse as contas negras de um rosário bento.

E jamais nos falamos, Digo: jamais as nossas bocas se entenderam, porque falar... bem que falaram os nossos olhos.

Todas as tardes, ao sol posto, ela saía ao jardim: era a primeira estrela. Sempre de branco, os cabelos em trança, uma só, farta e negra, outros dias soltos, cobrindo-a de uma grande sombra.

Joias, se as tinha nunca as aplicava: outras não vi jamais senão as que trazia no escrínio de coral da boca pequenina.

Musa! ...

Uma tarde, à hora acostumada da saída das estrelas, da minha janela, os olhos alongados, eu esperava-a com ânsia. Luziu uma estrela no céu... estranho caso! Outra estrela, mais outra, milhares de estrelas, a Via Láctea, a lua... e ela? Comecei a impacientar-me. Subitamente a porta abriu-se, um vulto apareceu e logo a voz de alguém que soluçava disse:

— Das brancas, das que nascem perto do muro. Foram sempre as suas preferidas.

E outra voz trêmula respondeu:

— Das brancas, perto do muro.

Um presságio agitou-me. Inclinando-me procurei distinguir, ao luar, as feições de quem curvava os ramos soluçando. Era um velho, bem velho, já derreado. E chorava. E a tesoura, com estalidos, ia devastando o roseiral viçoso.

— Que tem, vizinho? Perguntei. O velho deteve-se, levantou a cabeça branca, soluçando, pôde apenas dizer: — Lavínia ...

Lavínia, pensei. Seria ela? E se fosse? Por que tanto choro? Para que tantas rosas?

Seria o seu noivado?! Vesti-me às pressas, e fui à casa próxima.

Tudo em silêncio. O único rumor que eu escutava era o do meu coração. Bati, abriram.

Entrei e logo que apareci na sala um sussurro correu entre os que lá estavam:

— É ele! É ele!

Sobre a mesa, de branco, os cabelos soltos formando uma alfombra negra e, ao mesmo tempo, um véu de luto, postas no peito as mãos pequenas, o sorriso nos lábios, estava morta e gelada — Musa! Estive a contemplá-la sem lágrimas, calado. O velho, soluçando, cobria-a de flores e, em torno, soluçavam. De repente, tempestuosamente, o pranto rebentou-me dos olhos. E, de novo, ouvi que sussurravam: É ele!

Chorei e, antes de retirar-me, baixei o rosto sobre a face fria e beijei-a, beijei as lapides das pálpebras que escondiam, à minha vista, os olhos negros formosos. Beijei as brancas pálpebras geladas como se beijasse relicários.

Mas (ingrata fragilidade humana!) O que mais me preocupou nessa noite de morte depois que deixei o corpo amado, não foi a saudade, não foi a lembrança de que jamais tornaria a vê-la, pobre Musa!

O que me fez penar toda a noite em preocupada vigília foi o sussurro dos que guardavam o corpo, a frase de misteriosa anunciação que andou de boca em boca enquanto, debruçado sobre o cadáver pálido, eu chorava: “É ele!”.

A CEREJEIRA

Muito aconchegados, rosto contra rosto, as mãos nas mãos, encolhidos tiritam no fundo da cabana enquanto o vento raivoso contorce os galhos desnudos.

Uivam de frio e pavor os cães das herdades. Há lamentos na treva. Longe as árvores parecem esqueletos embrulhados em compridas alvas. E os dois, encolhidos, tiritam no fundo da cabana, sem lume, sem cobertura.

Entanto podiam fazer um fogo confortável e o homem, se quisesse, teria lenha para todo o inverno. Perto da cabana há uma grande cerejeira, a maior do lugarejo. Dois ou três galhos bastavam para aquecê-los — e que bom que é o cheiro do pão da cereja quando é resinoso!

Apesar das falas da mulher, o homem não se move — prefere passar a noite inteira ao canto, tiritando, transido, quase a morrer gelado, a ir cortar um ramo de árvore. E, a todas as instâncias da companheira, responde com tais palavras:

— A cerejeira não. Já te não lembras? Foi à sua sombra, debaixo dos seus ramos que, uma tarde, trocamos o primeiro beijo. E depois quem nos dará flores quando se for o inverno e a primavera sorrir? Quem recordará o nosso noivado? A cerejeira não.

E recomeça na sombra o estralejar precipite dos dentes.

CORAÇÃO VENENOSO

— É singular! Disse o velho coveiro diante de outro cadáver intacto que exumara. A modo que a terra deste cemitério está farta porque rejeita todos os corpos. Dantes, mal os recebia, logo os devorava e agora parece que nem por eles dá porque ficam anos e anos perfeitos. É singular! Seria bom que nos mudássemos para outro sítio. E o moço coveiro disse:

— Não é só isso. Outrora não havia jardim mais viçoso do que este cemitério — as rosas mais coradas eram as que aqui nasciam e agora nem sequer as plantas abrolham, os mesmos ciprestes e as casuarinas como que se vão finando. De tanto lidar com a morte parece que a mesma terra do cemitério morreu.

— Dizes a verdade, amigo: parece que a mesma terra morreu.

— E isto começou no dia em que trouxeram a enterrar uma linda moça cujo esquife vinha acompanhado por um homem pálido, que chorava; explicou o coveiro moço.

Ouvindo palavras tais eu que, nessa tarde, andava pelo cemitério porque, como de costume, fora levar no túmulo de Laura um ramo de flores frescas, adiantei-me e, logo que deu comigo, o moço coveiro disse baixinho ao que fizera a estranha observação:

— Foi este homem pálido que veio acompanhando o esquife da linda moça.

— Sim, fui eu, afirmei. Dizeis, então, que a terra já não consome os cadáveres que lhe entregais?

— É a verdade. E isto desde aquela tarde triste do enterro da linda moça, por quem choráveis tanto.

— E atribuís à sua influência esse mistério estranho?

— Quem sabe!? Disse penserosamente o velho coveiro e o outro, penserosamente, repetiu:

— Quem sabe!?

— Vamos, então, ver o seu túmulo, propus. Fica ali no recosto da colina. Se vos não transtorna...

—Podemos ir, disseram. E os dois homens, tomando as pás, acompanharam-me ao recosto da colina e puseram-se a cavar.

Cigarras cantavam nas casuarinas murchas e eles cavavam cantando. Foi-se escancarando a cova e apareceu o caixão, todo branco, em que jazia o corpo daquela que, em vida, tanto me fizera sofrer.

— Devagar, meus amigos; mais devagar disse eu com receio de que eles, com as pás, ferissem a morta. Mas já o caixão aparecia todo e foi retirado e aberto à luz bruxuleante da tarde. Tanto que saiu da terra, logo, como por encanto, vários arbustos abotoaram e roseiras, que pareciam mortas, reverdeceram instantaneamente.

O corpo de minha amada apareceu formoso. No seu rosto pairava o mesmo sorriso pérfido com que, tantas vezes, me iludira. Mas um líquido esverdeado escorria-lhe do peito e, como eu a levantasse nos braços, vi que lhe saía pelas costas por onde os vermes haviam penetrado, achando a morte, — o coração desfeito. E logo compreendi: era aquela sânie que se infiltrava na terra envenenando-a pouco a pouco, tanto que, já enfraquecida, nem consumia os cadáveres nem alimentava as raízes.

E, como um dos coveiros perguntasse, vendo o líquido a escorrer do coração da morta:

— Que é isto? eu estive para dizer:

— É a hipocrisia da minha amada, é a sua perfídia, é a sua mentira, são todos os vícios do coração que eu tanto busquei. Foi com esse veneno que ela matou a minha alegria, em vida, como, depois de morta, matou os vermes e a terra do cemitério.

Estive para dizer, mas com os olhos rasos de água, com a garganta oprimida pelos soluços, ali mesmo, diante dos coveiros pasmados, atirei-me ao caixão com ânsia: Tomei nas mãos ambas a cabeça loura da infiel e pus-me a beijar-lhe a fronte fria e os olhos e a boca como os beijava antigamente quando era traído — e neles achava o sabor da terra... Ah! Antes o sabor da terra do que o sabor de outros beijos como, quando ela vivia, eu sempre encontrava nos seus lábios.

Levaram-me para longe do túmulo e a terra do cemitério continua estéril e há de morrer como a minha alegria morreu porque os coveiros, tomando-me por doido, enterraram de novo o coração venenoso.

O CENTENÁRIO

Era um jequitibá formidável, o mais velho da selva, sem galhos, sem folhas; o tronco apenas avultava entre as árvores frondosas, como um mastro colossal. Junto à raiz uma broca profunda, debruada a musgos; em volta samambaias caprichosas e cipoais retorcidos nos quais os gaturamos penduravam os ninhos.

O machado dos lenhadores respeitava-o: era o patriarca venerando da selva, encanecido e minado pelo tempo. Procuravam-no apenas os maribondos que colavam os seus alvéolos ao vetusto tronco ou os bem-te-vis que, empoleirados na grimpa, cantavam ao nascer do sol e ao cair da tarde.

Todas as árvores contemporâneas haviam tombado, só ele resistia marcando, como um deus termo, a fronteira selvagem. Davam-lhe séculos e um mateiro disse, certo dia.

— Esse é do tempo dos caboclos. Já nem casca tem mais, coitado! É poeira que está de pé, sabe Deus como.

Resistia, entanto, às soalheiras fortes e às desabridas borrascas, mas debalde a primavera passava por ele, mísero macróbio! As folhas não brotavam mais.

Uma noite — o luar clareava limpidamente a montanha— estávamos na varanda da casa quando ouvimos um baque fragoroso como se uma barreira houvesse aluído, cavada pelas enxurradas. As moças tremeram de susto, os cães arremeteram ladrando e todos os olhos voltaram-se na direção do estrondo. O mato farfalhava como se o agitasse a fúria de um vendaval, estalos ríspidos partiam da selva copada, fronteira à casa. O pasmo crescia quando um antigo escravo, resoluto e atrevido, ofereceu-se para ir à colina. Subiu alumiado pelo luar e já o havíamos perdido de vista, quando ouvimos a sua voz retumbando no silêncio da noite:

— Foi o jequitibá que morreu!

Na manhã seguinte fomos, em romaria, ver o cadáver do gigante. Lá estava, com as raízes arrancadas da terra, tombado sobre as outras árvores como Jesus ao colo das mulheres. O tronco fora ferido pelo caruncho, que é a larva destruidora dos vegetais, só a casca resistira formando um grande tubo negro através do qual via-se o céu.

Vazio, inteiramente vazio, o centenário tombara abalado pela brisa, ele que lutara com os ciclones no tempo verde da sua viçosa mocidade, ou, quem sabe se não se deixou morrer à mingua de ilusões e de forças?

Encarquilhado — porque já não tinha a resistência interior — conservava apenas a forma externa de um tronco, a aparência de uma árvore: por dentro era a triste imensidade do vácuo.

— Assim somos nós, disse um velho que o contemplava. Às vezes um carinho mata-nos porque, vazios como estamos, nem força temos para resistir à alegria. Esse... foi o luar que o matou, foi a carícia que o feriu de morte.

Assim somos nós, tristes corações vazios. Sem a força interior, minado pelos desenganos, quem há que resista aos embates da vida? Bem certo que é melhor morrer.

ALDA

— Alda morreu; disse o lenhador, acocorado junto ao brasido, na choupana tristonha.

— Quem a matou? Perguntou Gilberto, em sobressalto.

— Que sei eu de moléstias? Quem a matou foi Deus.

— Não é possível! Alda não conhecia outro Deus senão eu e, tu bem sabes, lenhador, que eu lhe dei o meu coração. Achas que o amor é mortal?

— Que sei eu de amores!

— E onde repousa a minha amada?

— No cemitério. Seu túmulo fica protegido por um velho salgueiro, junto ao muro.

— Junto ao muro.

— Mas vê lá! A neve cai em grandes flocos, estão brancos todos os caminhos.

— A neve! Que receio pode inspirar a neve de uma noite a quem traz no coração o inverno perpétuo da saudade? Junto ao muro, sob um salgueiro.

— Sob um velho salgueiro, junto ao muro.

— Boa noite, lenhador.

— Boa noite! Vê lá! A neve cai em grandes flocos, estão brancos todos os caminhos.

No cemitério Gilberto, tremendo de frio e molhado de neve, pôs-se a buscar, por entre as covas lapidadas pelo inverno, a cova da sua noiva, dizendo:

— Pobre Alda! Como deve sentir frio neste desamparo! E, achando o salgueiro, viu, sob a acenosa ramaria, a tumba recente. É aqui! suspirou. Pobrezinha! Como deve sentir o frio da noite. E pôs-se a cavar atirando a neve e a terra para longe, até que apareceu o caixão, coberto de rosas murchas. Abriu-o: Alda lá estava, mais pálida que a neve, envolta num lençol de linho, a fronte cercada de rosas, como uma noiva no dia das suas bodas.

Gilberto tomou-lhe a cabeça fria e colou os lábios à boca gelada da defunta. Vive, meu amor! Que te falta? o espírito? aqui o tens — divido o meu contigo, tens aqui a metade de minha alma. Beijou-a longamente e a morta estremeceu com o beijo. De repente, como se acordasse, estendeu os braços, espreguiçando-se, abriram-se-lhe os olhos e ela pôs-se a andar vagarosa, com um triste sorriso nos lábios roxos, os cabelos desgrenhados, cheios de terra e de flores.

— Alda! Exclamou Gilberto.

— Alda! Exclamou também a ressurgida.

— Vamos, meu amor. Esperam-nos lá fora. Faz tanto frio aqui. Eu vim apenas buscar-te. Vamos!

— Vamos, Alda; disse a finada sorrindo.

— Mas, eu sou Gilberto, teu noivo; balbuciou, tremendo, o apaixonado.

— Gilberto!? Gilberto sou eu, disse a desenterrada.

— Estás louca! Já me não conheces.

— E tu? Por que me desconheces? Vamos, faz frio aqui. Eu vim apenas buscar-te. E, juntos, abraçados, saíram os dois pelos caminhos pálidos.  “Alda! Minha formosa! “Alda, meu amor!” Diziam-se, trocando beijos. Repentinamente Gilberto prorrompeu em soluços:

— Ah! Meu coração! Meu coração...! Pobre Alda! Insiste em julgar-se eu, insiste em dar-se o nome de Gilberto porque lhe dei a metade da minha alma. Sou eu quem fala na sua boca. Está morta, sim: está morta porque não se recorda de mim, nem o meu nome, ao menos, pronuncia. E o desgraçado lançou-se a correr através dos campos brancos da neve.

Vivem separadamente nas grotas dos montes ou nos silvedos em flor quando é a primavera e, dia e noite, quem passa, ouve, de um e de outro, o mesmo reclamo triste: Alda!

Quando se encontram, por acaso, param, fitam-se e murmuram: “Alda!” Ele está louco. Ela está louca! Foi o que fez o amor.

— Boa noite.

— Boa noite, respondeu-me o velho pároco da aldeia que me contou a triste história dos namorados e, alumiando-me, à porta do presbitério, disse:

— Cuidado! Lembre-se das palavras do lenhador: A neve cai em grandes flocos, estão brancos todos os caminhos. Foi numa noite igual que Gilberto desenterrou a noiva.

— Descanse, eu vou sem receio: minha noiva vive e o que me faz afrontar a noite e a neve é o seu amor. Que importa o frio se ela guarda, para receber-me e reconfortar-me, o calor dos seus beijos. Boa noite.

E o pároco, fechando a porta, correspondeu:

— Boa noite!

A ALDEIA

Afirmam sábios: “A retina do morto guarda a visão derradeira. No assassinado os olhos, se fitaram o rosto do assassino, conservam-no estampado na pupila vítrea” Assim os livros asseveram e a experiência demonstrou-me quando, em dezembro, Alda morreu.

Na câmara em que expirou, um após outro, entraram todos os clínicos notáveis sem que um só conseguisse descobrir o mal que ia, aos poucos, consumindo a minha amada e, um a um, com desânimo e surpresa, afastaram-se do leito, todos com as mesmas palavras: “Singular, estranha moléstia! Que se há de fazer contra o mistério ?!”

E bem falaram os clínicos. Alda morreu sem um gemido, sem ânsia, tranquilamente, como se apenas houvesse adormecido.

Morta, vieram, de novo, os clínicos, um após outro, verificar a morte e ... como se desencontraram as opiniões!

Tal disse que fora o coração o assassino, outro que fora uma febre má; um acusou os frágeis pulmões da pobrezinha. Velho médico, porém, vendo-a tão linda e nada desfigurada, quis, de mais perto, examiná-la, lastimando que, tão cedo, a Morte desfolhasse dor tão delicada.

E, lento, paciente, apaixonado, como se analisasse uma obra de Arte, tomou-lhe as mãos pequenas, viu-lhe a fronte, a boca, os olhos. Examinava-os e, de repente, voltando-se, interrogou-me:

De onde veio está linda moça?

— De uma pobre aldeia. Trouxe-a eu para que se não perdesse nos montes tão formosa criatura.

— De uma aldeia, bem vejo. E, falando, o velho médico inclinava-se para melhor analisar os olhos da finada. Uma pobre aldeia que um córrego atravessa. A igreja branca avulta em um outeiro, em torno há choças. E eu, pasmado de ouvi-lo, tinha os olhos fitos nele.

— Conhece a aldeia, doutor?

— Não, mas vejo-a na pupila da morta. Pode vê-la, aqui está.

Curvando-me, então, junto do médico, sobre os olhos parados da defunta, vi a linda aldeia, de onde Alda fugira nos meus braços reproduzida nos olhos como na miniatura de um esmalte antigo.

— É exatamente a aldeia, doutor, E o médico repetiu sentenciosamente as palavras dos livros. “A retina do morto guarda a visão derradeira. No assassinado os olhos, se fitaram o rosto do assassino, conservam-no estampado”.

— Quer o doutor dizer que foi a aldeia que a matou?

— A nostalgia dessas águas, desse arvoredo, dessas cabanas, desses prados. Foi a nostalgia que a matou. E, tomando de uma larga folha de papel, o velho médico, com lágrimas de piedade, atestou a verdadeira moléstia enquanto eu cerrava as pálpebras de minha amada sobre os lindos olhos evocadores, cheios de recordações, como dois escrínios de saudades.

PSALMO TRISTE

Olhos azuis, olhos serenos — extintos, sem mais brilho! Sei bem porque não tendes mais fulgor... Foram as estrelas do céu, as ciumentas estrelas, que pediram ao bom Deus que vos apagasse. Pobres olhos azuis sem claridade.

Faces, faces liriais, brancas e imaculadas, bem sei a origem dessa palidez marmórea. Foram as rosas ciumentas que pediram ao bom Deus que fanasse as rosas que tínheis dantes, faces liriais, brancas e imaculadas.

Harmonias da voz, dulias de harpas suavíssimas, hinos da boca cor de rosa, calastes-vos. Bem sei eu, bem sei porquê. Foram os ciumentos gaturamos que pediram ao bom Deus que vos calasse. Louros cabelos prefulgantes, bem sei porque os coveiros vão esconder-vos na terra profunda! Foram os raios do sol que, de ciúme, pediram ao bom Deus crime tamanho.

Dobra a finados, triste, funerário um pobre coração. Sei bem porque lamentas, coração dolorido... Sofres porque o bom Deus ciumento, vendo tamanho amor na terra, levou para o Jamais o coração que encerrava toda a tua alegria.

O BERÇO

Entre violetas e rosas, pequenino e risonho, as mãozinhas cruzadas sobre o peito, Dedê, de cinco meses, dorme para todo o sempre.

Veste-lhe o corpinho rechonchudo a mesma cambraieta com que foi à pia; à cabecinha loura a mesma touca branca. Parece que esperam que acorde para levá-lo novamente à igreja. Baby, de três anos, guarda o pequenino irmão. Sabe que dorme porque lhe disseram.

Para não despertá-lo pisa de manso, cautelosa, apertando nos braços Colombina.

O sol faz um véuzinho de ouro e translúcido para o rosto risonho de Dedê. Os círios empalidecem e as flores vão murchando junto ao corpinho frio do defunto.

Batem palmas à porta. Baby estremece. Aperta mais Colombina e lança um olhar ao irmão, receosa de que tenha despertado. Mas Dedê não desperta: dorme, as mãozinhas cruzadas sobre o peito, como rezando. Batem palmas de novo.

Baby, cautelosa, em pontas de pés, vai à porta e, coitadinha! Não consegue abafar um grito dando com os olhos no velho negro que traz debaixo do braço, como um estojo, o pequenino esquife cor de rosa e branco, cercado de franjas de ouro. Baby não consegue sufocar um grito: bate palmas, contente, deixa cair Colombina e entra, a correr, anunciando:

“Está aí o berço novo de Dedê! Está aí o berço novo de Dedê!”.

E, com voz de choro, agarrando-se às saias da avó trêmula, que vai compondo ramos para o pequenino, implora: “Mandas fazer um berço igual para mim? Manda fazer, vozinha?” E, para convencê-la, beija-lhe repetidas vezes a mão magra e a velha, soluçando, beija-lhe os cabelos louros.

Há dias, indo de visita a casa, encontrei-a silenciosa. Fora, no rosal, já não cantavam pássaros; dentro, no interior, berços não se balançavam. Senti que ali faltava alguma coisa... não havia barulho.

À mãe, viúva, de vez em vez, levantando a cabeça, punha os olhos no céu e baixava-os molhados: a velha não falava. Senti que ali faltava alguma coisa.

Por acaso voltando os olhos descobri Colombina sobre uma peanha. Pobre Colombina! Lembrei-me, então, de Baby e perguntei por ela. A velhinha fitou- me. A mãe baixou os olhos, soluçando.

Teria a complacente avó satisfeito o desejo da criança? Teria a velha dado á Baby um berço cor de rosa e branco igual ao de Dedê? E não foi outra coisa... essas velhas avós fazem tantas vontades aos netinhos...

A VENDEDORA DE BÁLSAMO

Sozinho, pela estrada pedrenta e seca, calado como a tarde triste, um homem, ainda moço, vestido como os essênios taciturnos, caminhava lentamente com a tranquilidade de um lavrador que recolhesse calculando pela colheita o lucro daquele outono. Os seus cabelos, alvoroçados à brisa, eram claros e longos, repartidos ao meio, à maneira dos nazarenos, a barba curta e aguda, a face mais alva que o mármore e os olhos, grandes e calmos entre as compridas pestanas que pareciam alargar ainda mais o negror das pupilas, brilhavam serenamente com uma expressão muito doce.

Pelos matos raros que beiravam a estrada cantavam grilos; mais para o interior dos campos, nas finas ervas pombos turturinavam. Um surdo e vagaroso mugir de gados rolava no silêncio e longe, de espaço a espaço, um cão rouco ladrava.

Ia o homem passando ao longo de uma sebe além da qual, quase sumido entre fechadas árvores, quedava um casebre, quando ouviu que gemiam. Deteve-se relanceando o olhar em torno e, de novo, o gemido passou as silentes árvores e a sebe. Colheu as dobras da túnica e, resoluto, como quem acode a um chamado, endireitou para o cancelo que havia, empurrou-o e entrou num pomar abandonado que as urzes embraveciam.

Ao estralejo dos seus passos na seca folhagem uma luzinha brilhou tremulamente ao chão da terra no fundo lôbrego da moradia e um vulto, que estava encolhido a um canto, moveu-se, esticou um braço, levantando a candeia como para iluminar o intruso.

O homem, sem demorar-se à porta, atravessou o limiar de pedra e, encaminhando-se para o canto onde o vulto se acocorava como a esconder-se, parou. Era uma mulher leprosa.

As suas carnes, roxas e tumefactas, tresandavam, lustrosas de sânie, e moles, como despegadas dos ossos, pendiam flácidas; os olhos sumiam, pequeninos e apagados, sob as vultuosas pálpebras, a boca era uma monstruosa chaga esborcinada, os cabelos empastavam-se-lhe na fronte e as orelhas disformes, denegridas, grossas, semelhavam dois cogumelos negros.

O homem, sem dar mostras de haver visto aquela viva carniça, adiantou-se docemente fitando a mísera que toda se encolhia, arrepanhando os andrajos. Por fim, sempre agachada e medrosa, a mulher perguntou:

— A que vindes, senhor?

— A luz do teu lar atraiu-me e tornou mais viva a sede que me abrasa; venho do seco deserto. Dá-me a beber. A mulher não pode trair o seu espanto e, levantando vagarosamente a cabeça, murmurou:

— Senhor, olhai bem para mim: não há mais que um velho cântaro neste tugúrio, é por ele que bebo e vede. Erguendo, então, a candeia à altura do rosto hediondo, iluminou toda a sua miséria.

— Dá-me a beber, insistiu o homem com a mesma brandura. Então, sem uma palavra mais, a mulher levantou-se, depois a candeia na arca e indo ao canto tomou o cântaro a mãos ambas e, inclinando-o, deu a beber ao hóspede como Rebecca, filha de Nahor, procedeu com Eliezer junto ao poço da entrada de Damasco.

Saciado o homem agradeceu à mulher a sua bondade. A mísera olhava-o fascinada.

De repente, de todo o corpo do homem, como se um fogo o fosse consumindo, foi-se subtilizando uma névoa luminosa — só os cabelos, a barba e os olhos conservavam a cor escura, o mais fundia-se em claridade — todo ele fez-se esplendor e, em torno, tudo brilhava.

A mulher, que recuara para o canto, ofuscada pela refulgência, largou o cântaro e levou ambas as mãos aos olhos com um grito e, quando as retirou, apenas a candeia luzia — o homem desaparecera.

Quedou-se a infeliz pasmada, a olhar. Súbito, porém, como se se sentisse impelida, ergueu-se ágil, correu à porta, pôs-se a devassar o arvoredo calado, mas olhando as mãos, logo, impetuosamente, as levou ao rosto e, à medida que calcava afundando os dedos na face, ia-se-lhe a boca escancelando.

Passou, repassou os dedos pelas gengivas, apalpou as orelhas e, de repente, levantando os farrapos, curvou-se examinando o corpo, rasgou os panos no peito para ver o colo e, numa alucinação, correu ao cântaro, esvaziou-o numa escudela e, no resto da água que ficara da sede do homem, mirou-se de joelhos, curvada e ficou a sorrir, num enlevo e a tremer vendo-se sã, sem pústulas, sem sânie, com a cútis fina de outrora, os mesmos olhos grandes e aveludados, a boca rosada e fresca, os dentes todos e alvos, linda e cheia de graça, aquela mesma moça que era o encanto dos mercadores no monte das Oliveiras quando, por entre os bazares toldados de linho, passava apregoando o bálsamo da nova colheita.

Quis levantar-se, mas os olhos prendiam-na ao lugar e, sorrindo e chorando, ficou a repetir palavras vãs. Súbito, contendo o coração, ergueu-se com um brado feliz, de inspirada: “É Ele!” E, ágil como uma criança, lançou-se ao pomar que todo se cobria de flores e de onde toda a erva desaparecera deixando os caminhos lisos e, empurrando o cancelo, alongou os olhos pela estrada vendo apenas, ao longe, além da torrente, na rampa que levava à Porta dos rebanhos, um brilho radiante de astro pairando sobre a alvura de uma túnica. Quis bradar, mas o grito morreu-lhe na garganta e, olhando sempre, extasiada, recordava-se de haver visto aquele homem uma vez, à tarde, a hora em que os moinhos descansam e os homens deixam os lagares de Engaddi, no alto da Bethânia, debaixo da vinha de Lázaro, com uma moça aos pés, estendida de bruços na erva, a face nas mãos, que o olhava com lágrimas longas a rolarem dos olhos lindos e cheios de uma luz viva que ardia apesar do pranto como as estrelas brilham à tona dos adormecidos lagos.

ROSAS

À Mademoiselle Elisa De Rezende

Diante do canteirinho florido — porque era mais um canteiro do que um túmulo — disse-me a pobre mãe, lavada em lágrimas:

— Eram duas apenas, duas lindas rosas gêmeas, uma em cada face — agora são tantas acima da terra. Estou que são filhas das outras que a Morte colheu tão cedo.

Quando ele morreu elas ainda resistiram lutando com o frio que lhe foi regelando o corpo, mas... a Morte é de neve, tão fria que as flores, à hora do enterro, haviam desaparecido como somem na terra, quando o inverno é rigoroso, as boninas mimosas.

Eram duas, duas rosas vermelhas em torno das quais meus lábios andavam como borboletas. Ai! de mim, hoje meus lábios não têm pouso. Uma noite — e foi assim que me iludi — as rosas apareceram com tanto viço, tão coradas, que eu quis, orgulhosa, que as visse toda a gente e, tomando o pequenito nos braços, chamei os vizinhos para mostrar-lhes as lindas flores.

Vieram e ficaram maravilhados. Mas uma velha mulher, cheia de rugas e de cabelos brancos, disse, de repente, tomando o pulso à criança: “Está com febre...” e todos repetiram sombriamente as suas palavras e, durante muito tempo, sussurrou-se em torno de mim, com expressão de piedade: “Que pena! Tão lindo! Está a arder! Como abrasa!” E as rosas cada vez mais lindas.

Calor ... mas é naturalmente no tempo do calor que a terra produz as mais formosas flores; assim devia ser também na criancinha. Sem calor como haviam de vingar as flores? Queriam, talvez, rosas no gelo!?

Ai! De mim, era o meu primeiro filho e eu nunca imaginei que a Morte me pudesse levar, tão apertado eu o trazia sempre ao colo, tão vigilante andava sempre junto dele.

O pobrezinho não falava ainda — as suas ideais eram pequeninas, não desciam até à boca em palavras, ficavam nos olhos, em luz, e dali, alegremente, como estrelinhas no céu azul, brilhavam para minha alma e minha alma entendia-lhes o brilho.

Nessa noite os olhinhos não se abriram, de sorte que eu não pude ver as claras estrelinhas e não dei pelo sofrimento. A Morte entrara e trancara-se por dentro não deixando, sequer, escapar um gemido.

Aconchegado ao meu colo o pequenito era como um fogo vivo e as rosas sempre belas, desabrochando em plena vida. Foram elas que me enganaram!

Quando o médico chegou — ai! De mim... os seus primeiros olhares foram justamente para as flores e desanimou ao vê-las. Pediu gelo e os finos cabelos louros e a linda fronte, mais alva do que as camélias, desapareceram sobre os cristais friíssimos e as rosas... as rosas sempre vermelhas!

Como o calor aumentava era preciso andar, de instante a instante, a reformar a nívea auréola que se fundia em minutos.

Eu olhava, tão inclinada sobre o pequenito, que as minhas lágrimas caíam-lhe nas faces como as goteiras de um telhado num canteiro de flores.

O médico arredou-me dizendo — que o meu pranto ainda aumentava o calor do pobrezinho. Em verdade as minhas lágrimas queimavam.

E, até de manhã, os vizinhos que eu, tão contente, chamara para que vissem as rosas, o médico e eu trabalhamos para matar as flores e elas cada vez mais purpurinas e maiores, crescendo sempre nas faces do pequenito. Creio que todo o sangue que ele tinha elas o consumiram, tingindo-se com ele naquela noite, a última! Ah! Souberam enfeitar-se para a morte, as rosas! ... Foram elas que o mataram! ... Essas que estão sobre o túmulo são belas, mas as verdadeiras, as que as geraram... ninguém mais as verá, nunca mais! Estão, talvez, no Paraíso, aos pés de Deus. Não eram para este mundo.

Dantes as rosas eram as minhas flores prediletas, hoje, detesto-as como se pode detestar um assassino.

E diga: não acha natural que eu odeie as flores pérfidas que viveram, como parasitas, à custa do pobrezinho e ainda deixaram todos os seus espinhos no meu coração?

Não! só amam as rosas as mães que não perderam filhos assassinados por elas.

PARA O SEMPRE!

— Empresta-me o teu coração, implorou a mísera, já fria, minutos antes de expirar. Sei que vou morrer e não quero levar comigo o que me não pertence. Guarda em teu coração o que lhe vou confiar e nunca o abras nem o mostres a outrem para que se não venha a conhecer o segredo de uma pobrezinha. Lá mesmo na Altura eu choraria de vergonha se chegasse a saber que o haviam descoberto. Empresta-me o teu coração.

Como havia eu de recusar cousa tão simples a uma infeliz que agonizava? Dizem que aos que vão morrer nada se nega e eu, não querendo que me ficasse um eterno remorso, cedi ao pedido da moribunda entregando-lhe o meu coração para que nele guardasse o que, já com voz flébil, afirmou que não lhe pertencia. Quando me devolveu-o não senti mudança alguma. Que teria nele guardado a pálida moritura? Não sei.

No dia seguinte, com o frio do inverno, esfriou para o sempre e, de olhos fechados, as mãos brancas cruzadas no peito magro, fui encontrá-la em seu leito virginal cercada de flores. Pobrezinha! Tinha apenas dezoito anos.

Levamo-la ao cemitério.

Os coveiros tomaram-na e o caixão baixou à sepultura e cobriu-se de cal e cobriu-se de terra. Tornei à casa e, à tarde, logo depois que ela desapareceu, desanuviou-se. Cigarras cantaram e o azul reapareceu bordado de estrelas.

Seria tão grande a tristeza da infeliz que desse para entristecer a natureza inteira? Não sei, tanto, porém, que se fecharam aqueles olhos lindos voltou a alegria ao mundo e os pássaros, que não cantavam, entraram a galrear jucundos, como na primavera.

E os dias correram e eu comecei a sentir que o coração pesava-me no peito.

Durante o dia sentia-o pesadíssimo, triste o sentia ao cair da noite até que, impressionado e lembrando-me da morta, resolvi recorrer aos homens sábios para que tentassem descobrir o mal que nele havia.

Foi tudo baldado! Nenhum dos sábios atinou com a causa do meu sofrimento. Foi um velho poeta quem me disse a triste verdade:

— Tendes o vosso coração cheio do amor da morta — foi isso que ela deixou e é tão grande esse amor que ela não o quis levar para que lhe não pesasse quando tivesse subir ao céu.

— E agora? Que hei de fazer desse amor da finada? Que hei de fazer para aliviar um coração que tanto sofre? O poeta encolheu os ombros e murmurou:

— Não sei...

E aqui ando com o coração tomado por esse amor sombrio que me pesa tanto e que não deixa entrar nele outro amor porque o enche e domina. Trago comigo um esquife. Ai! De mim...

A PARTILHA

Cantava; e as lágrimas rolavam-lhe em dois fios ao longo da face macilenta. Sofria; mas como era preciso que o pequenito adormecesse, cantava, indo e vindo, devagar, embalando nos braços a criança.

O mais velho, três anos, olhava-a e, de quando em quando, cantarolava: “Estou com fome, mamãe... Estou com fome”. E o pequenito, insone, olhava-a, muito esperto, a boquinha colada ao peito. “Estou com fome, mamãe...” cantarolava o outro.

Ia alta a manhã; mas se o sol alegrava o quintalejo que tristeza em casa!

Viúva, tisica, desfigurada pela moléstia e pela fome, tímida demais para pedir esmolas, que havia de fazer a desgraçada? “Estou com fome mamãe...” cantarolava o mais velho.

— Espera, filho; espera.

Como o pequenito adormecesse a mãe, pé ante pé, deitou-o sobre uma caminha de panos, a um canto da casa. E o mais velho, seguindo-a, cantarolava sempre: “Estou com fome, mamãe...”

— Não faças bulha; espera. E, acenando-lhe, passou à cozinha. Mas que havia de fazer?

Ardia no fogão a derradeira acha e a mãe, os olhos rasos de água, pôs-se a soprar a lenha para atear lume, enquanto o filho, que se lhe agarrara às saias cantarolava: “Minha mãezinha...” contente com vê a chaleirinha ao fogo. À mesa, porém, quando a mãe lhe apresentou a tigela e o pedacinho de pão da véspera, fitou-a amuado:

— Só café, mamãe?

— Só, meu filho...

Levando a colher à boca ele foi repelindo a tigela, com um beicinho, prestes a chorar.

— Não chores. Olha que vais acordar o maninho. Espera.

E, desabotoando o corpinho, tirou o peito farte apojado, espremeu-o trincando os lábios descorados, por onde as lágrimas escorriam; e, entregando a tigelinha ao filho:

— Toma e não faças bulha. E o pequeno, arregalando os olhos, satisfeito:

— Agora sim... Agora sim... pôs-se a cantarolar.

Baixinho, então, ela recomendou:

— E não peça mais, ouviste? o outro é para o maninho.

E foi, pé ante pé, espiar o filho que dormia.

RISONHA

— Foi sempre assim, desde pequena. Ninguém, jamais, a viu chorar.

Mocinha, quanta vez a mãe a repreendia dizendo que não lhe ficava bem aquele rir constante, mas que se havia de fazer se, mesmo dormindo, o sorriso não lhe deixava o rosto, como se fosse uma parte dele. Há moças pálidas, outras há coradas — ela é risonha.

Ria de tudo, por tudo.

No dia do casamento, quando foi para dizer o “sim”, não imagina o trabalho que nos deu. Depois é um riso alegre, comunicativo, um riso que nos entra pelo coração como a própria alegria de sorte que, na igreja, toda a gente pôs-se a rir, o próprio padre, um bom velho, teve de disfarçar, baixando o rosto para que o não vissem rindo, ali diante do altar, em ato tão respeitoso.

Quando lhe nasceu o filho todos disseram: “Agora sim, agora com os cuidados e os trabalhos, queremos ver se continua a rir...” Pois, meu senhor, ao primeiro vagido do pequeno ela respondeu com uma gargalhada e, rindo, o aconchegou ao colo e, abraçada com ele, adormeceu sorrindo.

Se o pequenito dormia, lá estava ela debruçada ao berço e era preciso, afastá-la para que não acordasse a criança, tanto ria.

Ria se ele chorava; quando lhe dava o peito ficava-se a rir de vê-lo mamar sugando a goles largos.

Quando descobriu o primeiro dente... que alegria! a casa vibrou com as suas gargalhadas; e, rindo, ela o foi guiando nos primeiros passos, rindo ensinou-lhe as primeiras palavras e rindo, coitadinha...!

E a velha avó limpou vagarosamente as lágrimas e continuou:

Durante a moléstia, nas longas noites de vigília, sem tirar-se um minuto de junto do berço, sorria contemplando o doentinho que a febre ia consumindo e, quando ele expirou, noite alta, nós acordamos sobressaltados com uma gargalhada. Corremos ao quarto e achamo-la a rir, com o filho morto nos braços, a rir, que fazia pena. E assistiu a tudo quieta, muda, com o olhar parado como o de uma defunta. Só o sorriso dizia que ela estava viva.

Vestiram o pequenito, cobriram-no de flores, levaram-no — e ela sorria. Agora o médico entende que é preciso fazê-la chorar... por quê? Se ela foi sempre assim.

Passos interromperam as palavras da velha. Voltei-me e vi aparecer a formosa e desventurada criatura. Foi a primeira vez que a vi. Vinha entre senhoras que choravam. Ela... ela sorria.

Era alta, loura e branca. Os longos cabelos soltos vestiam-na de ouro, os olhos enormes, de um azul de céu, pareciam cheios de sol. Seguiam-na, à distância, o esposo e o médico.

De repente, relanceando em torno o olhar que ardia, estremeceu, estendeu os braços, agitaram-se-lhe os lábios lívidos e secos e desatou a rir, a rir descaindo, como morta, nos braços das senhoras.

A velha avó, tremendo e em pranto, disse-me baixinho: “Vê!?” E o esposo suspirou desanimado: “E não chora!”.

Quando o médico a declarou perdida as senhoras acenderam velas no oratório e rezaram para que Deus mandasse lágrimas à mísera como se fazem preces, nos campos, para que venham chuvas.

Foi tudo baldado! O mesmo Deus poderoso não pode extinguir aquele riso e a pobrezinha desde então, magra e envelhecida, atroa a casa com as gargalhadas, principalmente quando, por descuido dos que a guardam, os seus grandes olhos secos descobrem uma criança.

MEU TÚMULO

Quero eu também ter o meu túmulo. Vou mandar construí-lo de mármore e de bronze para que o tempo o não destrua. Quero-o bem alto! Tão alto como as pirâmides para que venham pastores, com os seus rebanhos, repousar à sombra dos seus muros.

Em torno, chorando, as águas de uma ribeira e salgueiros em desalinho e ciprestes lutuosos.

O interior resplandecente como uma nave de igreja. Nichos, ao longo das muralhas, guardarão santamente os meus primeiros sonhos, as minhas últimas esperanças e, num grande altar lapidário, dentro de um tabernáculo, o meu Ideal que ninguém jamais pode descobrir, o meu Ideal, misterioso como a face de Isis magnífica que um véu denso ainda esconde.

Arderão, em trípodes de ouro, abrasados em chamas de amor insaciado, corações de vinte anos e o teu coração, minha amada, irá para junto do meu corpo como o escaravelho, símbolo da Alma imortal, que os egípcios colocavam à cabeceira das múmias.

Uma grande lage, pesada e grossa, fechará a entrada para que não penetre o sol nem os olhares dos homens penetrem desvendando os arcanos da Morte.

Levarei comigo todas as minhas canções jocundas e tu, minha adorada, não esqueças na vida os teus sorrisos — trá-los para encher com ele o nosso eterno palácio: serão as aves do amor, as aves da primavera infinita.

E não chores a minha morte para que os teus olhos não fiquem esmaecidos, porque os quero bem claros. Havemos de os utilizar como alampadários na eterna noite funeral.

Quero meu túmulo bem alto e vasto para que os homens invejosos digam:

—Grande túmulo! Tão alto monumento para dois corações apenas.

E nós, como a saxifraga, iremos brocando a lage para expandir o nosso amor porque, de certo, o túmulo será pequeno para conter os beijos que me prometeste e os beijos que eu te prometi e, então... quantas violetas virão à flor da terra! quantas rosas, amor, e quantos lírios... e os homens dirão mais tarde:

—Pois não lhes chegou o túmulo para que, assim, tragam os seus beijos à luz do sol?!

Bem alto e vasto o túmulo que vou mandar construir, isolado — tão alto como as pirâmides para que venham pastores com os seus rebanhos repousar à sombra dos seus muros.

E vós, almas piedosas, vós que respeitais os mortos, quando passardes junto do meu túmulo, esquecei orações e lástimas. Cantai! Cantai amores para que nos regozijemos na morte sabendo que ainda há vivos no mundo. E não terão pavor os que passarem perto da nossa jazida e as crianças virão brincar em torno dela como as aves brincam junto do altar de uma igreja e, aos que as intimidarem, dirão sorrindo:

— Não saem. São dois corações apaixonados que não se deixam. No dia em que saírem desabará o túmulo de pedra.

E Deus, no fim das eras, quando tudo for destruição e silêncio, encontrará, como um padrão de amor o túmulo alto que vou mandar construir, tão alto como as pirâmides, para que avulte na poeira mortal das ruínas universais.

ILUMINURAS

Natal dos tristes

I

O CEGO

(Palavras textuais)

“Não vemos, temos a alucinação da vista: um sonho permanente. O nosso horizonte está em nossos próprios olhos — é uma muralha de sombras; mas o que toda a gente consegue com a vista, nós conseguimos com a imaginação. Imaginar é ver. Encarcerados, enchemos o nosso cárcere, onde não entra um raio de sol, com o ideal.

Temos certeza de que as formas que criamos intimamente não são as verdadeiras, mas satisfazem-nos. Nascemos no presídio, ouvimos falar do que há lá fora desejamos ver. Temos a curiosidade que é, para o cego, o que é para o grilheta o instinto da liberdade.

Uma estrela, o sol, a flor, os olhos de uma mulher que, em torno de nós, todos aclamam, serão mais belos na realidade do que os imaginamos? Mas que é a beleza? perguntareis. Que é a beleza se não a visão perfeita? A beleza é imaginária. Nós outros temos as nossas belezas tenebrosas.

Sentimos e tanto basta. Para o gozo temos o tato, temos o olfato, temos o ouvido.

Que nos importa a forma da flor se lhe sentimos o perfume e a maciez da pétala? Que nos importa não ver o oceano se ouvimos a sua grande voz? Que nos importa não ver a paisagem se sentimos o aroma silvestre das ervas, se ouvimos o mugir do gado, a canção do campônio, o murmúrio das águas que regam as terras.

E as estações? Julgais que não as conhecemos? Melhor do que vós as distinguimos. Dizemos, sem errar, quando vem do oriente a primavera, quando do zenith desce o estio, quando da terra sobe o outono maduro, quando nos chega o inverno do ocidente triste. E, mais do que vós, amamos a Natureza: ela para nós, tem os mesmos mistérios que tem Deus para vós outros.

Sois cegos diante da Providência e viveis imaginando o Eterno sem nunca o sentirdes senão em manifestações que lhe atribuís. Sois menos felizes que nós que amamos a Natureza e que a sentimos sempre em dupla existência — real e imaginária.

Podeis ver o Deus cujo nascimento festejais? Onde o vedes senão na alma? Nós também na alma o podemos ver.

Cantais em torno do imaginário, a vossa festa é um sonho. Quem sabe se não é mais belo o que sonhamos?

A música que ouvis, ouço-a eu também. Que importa o feitio do instrumento se a sua voz é que me delicia, e assim, sem vê-lo, chego a pensar que vem de longe a sonata, que são anjos que dedilham harpas misteriosas e gozo ouvindo e sonhando.

O amor, direis... o amor reside no coração. Que importa ao cego o rosto da sua amada se o rumor do seu passo, a melodia da sua voz, o perfume do seu hálito bastam para deliciá-lo? Ver é sentir com os olhos, os cegos veem com o coração. O vosso mundo é, talvez, inferior ao que sonhamos: sem chagas, sem podridões. Só sei de uma cega que chorou por não ver: foi no dia em que lhe nasceu o primeiro filho”.

II

O SURDO-MUDO

E vê o filho da cega: o dia é claro e vem da treva da noite. Vê o filho da cega... antes não visse. De que lhe serve ter vista se não fala, se não ouve?! Para ele a Natureza está morta porque nela só há silêncio.

Move-se a palma do coqueiro, ele não ouve o farfalho; canta a cigarra do estio, ele não ouve o canto. Ainda assim é feliz, não o lastimeis.

Imaginai a sua dor se ouvisse — sucumbiria como um animal que andasse sempre a receber carga sem nunca poder aliviar-se do peso.

É um edifício fechado onde não entra, de onde não sai viva alma. Pelos olhos, como por duas claraboias, passam apenas os raios de sol que iluminam o deserto silente.

Ele aí está parado diante de vós, vendo-vos em festa. Nem ouve nem fala — olha: é um sepulcro com duas velas acesas. E sorri.

Sabe que festejais o Natal de Deus, sabe porque leu, conhece a lenda porque a viu nos livros. A palavra dos livros entra-lhe pelos olhos: é como essa poeira que anda na luz.

Ei-lo festejando convosco o nascimento do Messias e contente, apesar de surdo, e contente, apesar de mudo.

Para gozar basta-lhe a vista — vê a flor e sente-lhe o perfume. Não ouve, não fala; mas quem sabe se a sua alma não tem as vozes misteriosas, que, às vezes, ouvimos no silêncio? Ele que sorri é porque é feliz.

III

O LOUCO

Junto às grades da célula, agarrado aos rijos varões, o louco espia. Bem perto passam, cantando, festivos grupos; ele ouve, escuta quieto, em êxtase. Um clarão ilumina-lhe a alma tempestuosa: Natal.

Como à fulguração de um relâmpago vê-se toda a extensão de uma larga paisagem, à lúcida reminiscência iluminada por essa palavra quanto vê o infeliz!

A infância, a alegria doméstica, as festas ruidosas, toda a sua gente em torno da mesa patriarcal, fartamente servida; as crianças, com os cabelinhos louros, recebendo balas e brinquedos, os velhos satisfeitos, revendo-se nos filhos e nos netos, todos os cantos da casa enfeitados de flores.

Depois a adolescência; já lugares vagos à mesa e novos túmulos nos cemitérios. Depois a idade adulta: a esposa, um berço. Mas estava extinta a claridade e, como depois do flamejar do relâmpago, mais se adensa a treva tormentosa, ei-lo a bramir abalando as grades da prisão, ei-lo a uivar como a fera que, no fundo da jaula, sentiu na bafagem crepuscular um brando perfume de florestas.

Por que fostes iluminar a sombra daquele espírito? Felizes, porque não levastes para mais longe a vossa felicidade? Porque não passastes em surdos passos para que o louco não vos sentisse? E agora ali tendes os vossos cantares interrompidos pelos ululos da insânia.

Ele dormia — por que o fostes acordar? E agora vede como o acalentam, vede como lhe domam a saudade— com a camisola de força.

IV

O LEPROSO

Encolhido no lar, longe das gentes, canta. A pele roxa tressua, os olhos se lhe encovam: é uma mandrágora viva. A lepra já lhe vai roendo os dedos, os lábios, as pálpebras, as orelhas e ele, vendo-se, aos poucos, destruir, sofre calado ou geme baixinho.

A fonte amiga é um espelho cruel — sempre que a sede o leva às fontes, ao ver o seu reflexo nas águas, o infeliz recua horrorizado. Os que passam desviam os olhos, atiram-lhe de longe a esmola: própria Caridade tem repugnância.

Ninguém o procura, os cães evitam-no, mas o sol, todas as manhãs, lá vai ao seu monturo e afaga-o; o sol apenas, o único que não tem nojo, e tanto basta ao infeliz para que bendiga a vida.

Agora mesmo ele lá está, sentado e humilde, mas contente. Ouviu o canto do galo e, ouvindo, ergueu-se: Jesus nascia!

Ah! Tempos idos, quando, ainda limpo, caminhava à aragem balsâmica das manhãs para a ermida, em companhia das moças do seu lugar.

Ah! Tempos idos.... Entanto não maldiz. Eis chega o sol que o não esquece, devem vir esmolas porque todos comemoram a festa natalina do bom Deus. E o leproso canta.

Tem um resto de azeite, mas como nem a imagem do Senhor possui, acende a lamparina, deixa-a a um canto, porque Jesus bem sabe que é em sua intenção que aquela chama brilha.

Que lhe importa o abandono era que vive? Não estão ali as árvores verdes, as águas claras, o céu azul, as borboletas, os pássaros, as flores? Não lhes estão chegando aos ouvidos ulcerados os cantos alegres dos que celebram a festa nos presepes? Não estão seus olhos espiando pelas frinchas dos muros da cabana os grupos que passam jocundamente?

Ah! Que ela não passe, a que ele amou! Que ela não passe pelo braço de outro para que o ciúme, pior do que a lepra, não lhe remorda o coração.

Busca outro caminho, moça formosa, mesmo que te prolongue a viagem. Sê misericordiosa, ao menos hoje, dia de Natal, para que se não desvaneça a alegria do infeliz.

Ele lá está ouvindo os sinos e os cantos, aspirando o perfume das flores silvestres. Ele sangra por tantas feridas... sê misericordiosa! Não queiras, com teus olhos lindos, apuar o coração misérrimo para que também sangre, mais que sangue: lágrimas!

Natal! Natal! Glória a Jesus nascido! Murmura devotamente o leproso solitário.

V

NO ORPHELINATO

Benção, viático para a vida; lágrima, orvalho humano... nem benção nem lágrima tivestes, órfãos pequeninos. E, como podeis andar no mundo, almas solitárias? E como desabrochastes, botões caídos da haste?

Ei-los todos, vestem roupas iguais: é o uniforme do anonimato e a solidariedade da desventura como que deu a todos a mesma fisionomia. São filhos da mesma mãe — a Caridade.

Vede como estendem as pequeninas mãos num gesto humilde de quem pede esmola. E que esmola pedem? A benção e todos os abençoam. Mas como lhes saberia mais a benção de uma só, se essa não fosse morta, se essa não fosse ingrata!

Para a planta que nasce não há rega melhor do que o orvalho do céu nem há benção como a de mãe.

De onde vieram esses pequeninos? Não sabem. Vieram da noite, foram apanhados nas sarjetas das ruas, nas moutas das estradas — uma lufada atirou-os à roda dos expostos. Não têm mãe, não têm pai.

Os pequeninos mamam descuidados; os que já caminham andam agarrados às irmãs de caridade, os outros brincam; os maiores pensam.

Natal! Festa das crianças. Jesus nasceu nas palhas, mas teve mãe que o beijou, teve mãe que o aqueceu ao seio e aos lábios.

Não foi tão grande o teu martírio, Cristo — ainda junto da cruz tiveste a Dolorosa e esses pequeninos que, abrindo os olhos, nada viram em torno, estendendo os braços nada acharam, enrouqueceram a vagir porque ninguém saiu a acalentá-los senão os cães vadios que os lamberam mansamente achando-os gelados ao relento da noite?

E esses pobrezinhos, Jesus? Entanto brincam e cantam à sombra da árvore do Natal, árvore que apareceu no dia em que nasceste e que frutificou regada pelo teu sangue, árvore santa que deu a cruz, árvore do patrocínio, árvore de Misericórdia cuja folhagem abriga todos os desagasalhados.

Natal! Natal! E eles nem sabem em que presepe nasceram.

VI

NOS HOSPITAIS

Sala vasta. Alas de leitos.

Lentas, mal roçando o soalho, passam, com o pétaso alado, as piedosas irmãs de caridade. Os rosários, que são as correntes que as prendem ao sacrifício, tinem de leve. Aqui gemem, ali choram enfermos.

Uma leva a poção para o doente, vai outra com o viático para o que expira. Ha um sussurro de preces de mistura com a ansiada agonia dos dispneicos e o cheiro místico que vem da capela, onde foi rezada a missa da meia noite, ainda perfuma a sala.

Alguns, sentados no leito, as mãos cruzadas no colo, elevam os olhos para o Cristo crucificado que preside à enfermaria. Contemplam-no! Estarão a fazer algum voto? Não: recordam o passado.

Este, o tempo da infância na aldeia da pátria, para o sempre deixada. Esse a meninice trêfega na província aonde nunca mais tornou. Que será feito de sua mãe? Tão velha! Por onde andarão perdidos seus irmãos?

Aquele suspira passando a mão pelos olhos. É velho, bem velho — as barbas brancas rolam-lhe pelo peito magro. Ainda outro — um rapazinho lívido, enfezado, afunda a cabeça nos travesseiros e estrebucha, a chorar.

Ó piedosas irmãs de caridade, vede quanto sofrimento deixais sem consolo; vede quantos corações reclamam o bálsamo das vossas palavras, vede quantas lágrimas derivando de olhos infelizes.

Ah! Tendes também os olhos marejados... O cilício não vos chegou ao coração... santas mulheres, nem tudo resignastes — a saudade arrasa-vos os olhos de agua.

Natal! Natal! Glória a Jesus, misericórdia dos desgraçados.

VII

NA MONTANHA

Ligeiramente o pastor galgava os caminhos ásperos.

Nos vales, ao luar brumoso, cintilava a nevada.

Súbito, rompendo o silêncio da noite, vozes entoaram um canto magnífico.

O pastor, já tão perto da fonte que ouvia o murmúrio da água, deteve os passos, volvendo os olhos em torno por moutas e árvores procurando os cantores quando uma claridade súbita ofuscou-os. Descansou a bilha sobre uma pedra, esfregou os olhos e, reabrindo-os, viu, com assombro, o espaço cheio de anjos.

Eram de névoa e de luz, mais claras e mais largas do que a estrada sideral, as asas que distendiam. Cantavam dizendo que nascera o Senhor, Redentor dos homens, o Deus de misericórdia anunciado pelas profecias.

Fundiu-se a neve rútila, lírios brotaram trescalando, o murmúrio da água fez-se música, pássaros chilrearam entre os ramos subitamente revestidos de folhas, balaram, com alegria, os anhos nos apriscos e, das cabanas caladas, dispersas na montanha, irromperam festivamente os rústicos tonilhos.

“Acaba de nascer o Redentor dos homens”.

Ouvindo o pregão dos anjos o pastor, comovido, ajoelhou-se à beira da água, encheu a bilha e partiu, montanha acima, caminho da caverna, contendo os estuos do coração sobressaltado, porque deixara a companheira prestes a dar à luz. O cão rosnou vendo-lhe a sombra, mas, reconhecendo-o, festejou-o.

“Acaba de nascer o Redentor dos homens...!”

Cantavam sempre nos espaços as vozes misteriosas, mas apesar de serem de anjos não iam tão direitas ao coração do pastor como foi um vagido que saiu da caverna. Dobraram-se-lhe os joelhos e a bilha esteve a ponto de rolar na terra, encharcando-lhe as vestes porque mais de metade de água derramou-se.

De olhos imensos, pálido, tremente, atravessou o limiar da caverna e lá estava a pastora, à luz de uma fogueira, com o pequenino filho que nascera aconchegado ao colo.

“Acaba de nascer o Redentor dos homens...” Cantavam sempre no espaço as vozes misteriosas.

O rústico inclinou-se sobre o infante e murmurou com lágrimas:

— Os anjos cantam! — E estendeu o braço para a entrada. E a mulher acenou como a dizer que ouvia. — É Deus! Disse o pastor. Ela elevou os olhos enternecidos e, dos olhos de ambos, copiosas lágrimas rolaram. — É Deus! Balbuciaram os dois.

Repentinamente, porém, outra voz apregoou:

“Acaba de nascer o Messias que há de morrer na cruz para remir os homens...”

Estremeceram os dois e a pastora, rompendo em pranto, tomou nos braços o pequenito e, apertando-o ao colo, pôs-se a soluçar dizendo:

 —Meu filho! Meu Deus! Pois hei de eu, com meus olhos, ver-te sofrer suplício tão cruel?! Ah! Meu bem amado filho. Que fiz eu para ter destino tal? Que virtude tamanha é a minha para que assim merecesse tão altíssima graça e que grande falta cometi para tamanha pena?!

O pastor, para que ela não lhe visse as lágrimas, foi chorar à entrada da caverna e chorava quando um cabreiro que passava disse:

—Acaba de nascer o Redentor dos homens.

— Que há de morrer em uma cruz, disse o pastor baixinho.

— Que fazes que o não vens ver? A gruta está cheia de anjos e não é longe daqui, é ali na estrada. Relampejaram de alegria os olhos do pastor.

— Não é aqui no monte então?

— É ali na estrada. Podes vê-la daqui iluminada porque está cheia de anjos luminosos. E o cabreiro, levando o pastor à rampa do rochedo, mostrou-lhe a caverna que resplandecia ao longe: — Vês? Foi ali que nasceu o Redentor dos homens.

Não quis mais ver nem ouvir o pastor montesino e deixando o cabreiro, tornou a correr, pelos caminhos ásperos e, desde o limiar da caverna, foi bradando:

—Não é Deus! Não é Deus! Não morrerá na cruz o nosso amado filho. Deus nasceu na caverna da estrada que está cheia de anjos.

A pastora soergueu-se comovida e, vendo a alegria do esposo, sorriu e limpando as lágrimas pode apenas dizer aliviada:

— Não é Deus... Antes assim!

E o pastor, num vivo contentamento, ajoelhado, adorando o filho, não se cansava de repetir:

— Não é Deus! Não é Deus! Não morrerá na cruz o meu amado filho. E, longe, as vozes repetiam o pregão: “Acaba de nascer o Redentor dos homens...”

— Pobre pai! Disse o pastor.

— Pobre mãe! Disse a pastora!

LIVRO DAS ILUSÕES

A ESCOLHA

A Paulo Barreto

Todas as tardes, de uma daquelas cabanas, com um alto lamento que chegava ao céu, sempre azul e doirado, saía um corpo para o eterno repouso, entre altos sicômoros de basta folhagem e finos ciprestes altos que, ao lívido clarão do luar, tomavam o aspecto lúgubre de enormes pegureiros, com os agudos capuzes sobre a cabeça, imóveis, guardando os sepulcros brancos, que alvejavam como um quieto rebanho espalhado entre flores.

Debalde os altares rústicos cobriam-se de oferendas que o fogo lento dos sacrifícios consumia; debalde os homens santos, que viviam nas cavernas, clamavam prostrados, com a rude face na terra morna, os deuses bárbaros e o Deus meigo dos eremitas pareciam desatentos ao cânticos, às preces, a todas as vozes propiciatórias que subiam da terra.

A morte continuava a ferir sem pena a pobre gente.

Dizia-se que um anjo negro, armado de gladio, tendo escolhido a sua vítima, arremessava-se de alto sobre ela, como um abutre sobre a presa, feria-a e remontava às nuvens, desaparecendo até à tarde seguinte quando, de novo, pairava, adejava e precipitava-se violento.

Ora, em uma daquelas cabanas, vivia Ayiché, pobre mulher, cujo esposo partira, com um carregamento de bálsamo, para os lados do mar deixando-a a cuidar do campo, que era farto e de dois filhinhos, que eram lindos.

Ayiché, na sua pobreza, quando, à sombra de urna das grandes figueiras, em torno das quais enxameavam abelhas, dava o peito ao pequenito, vendo correr, a rir, o mais velho, considerava-se tão venturosa que não trocaria a sua vida de porfiado trabalho pela da princesa mais rica.

Ayiché fora bela. Ainda os seus grandes olhos negros conservavam o esplendor do tempo em que, entre as donzelas da aldeia, uma ânfora ao ombro, a túnica flutuando, descia à fonte ou, graciosamente coroada de flores, com os braços enrodilhados em braceletes de prata, um véu airoso desfraldado ao vento, leve, languida, sorrindo, volteava nas danças como uma fina libélula esvoaçando à flor das águas límpidas.

Virtuosa, desde que o seu esposo partira, nunca mais homem algum cruzara o solar da sua porta, nem mesmo os marabutos santos que abençoam os lares; e, todas as tardes, à hora em que o sol morre, com o pequenito nos braços e o mais velho agarrado aos seus vestidos, ficava, um momento, a olhar saudosamente o horizonte, para as bandas do ocaso, à espera de ver surgir a caravana em que devia chegar alegre, com o ginete a reluzir de suor e a bolsa pesada de ouro, o seu esposo esbelto, senhor da sua alma e do seu corpo.

Uma tarde, justamente ela alongava os olhos pelo vasto deserto, sempre com os dois filhos — um ao colo, outro pela mão — quando uma sombra fria escureceu gelidamente a cabana e uma voz sinistra falou:

“Ayiché, mulher de Abdul, filha de Ahmed, caçador de leões, amanhã, à hora em que a lua subir no céu e as aves escuras da noite soltarem-se no espaço, a Morte passará pela tua cabana em busca do seu tributo. Tens dois filhos — escolhe um deles e deixa-o ficar sob a figueira da tua porta”.

E clareou de novo, e de novo aqueceu.

Ayiché ficou como petrificada e, tanto apertou ao colo o pequenito, que a criança abriu num pranto e o outro, de medo, pôs-se também a chorar. Ayiché recolheu-se, sempre a ouvir as roucas palavras da sentença cruel, acendeu a candeia, adormeceu os filhos e, ajoelhada entre os dois berços, de olhos muito abertos, ficou-se imóvel, fazendo a escolha.

Olhava o mais velho. Como era lindo a dormir! Os cachos dos seus cabelos negros rolavam-lhe pelo rosto moreno como as ramas floridas pelo frontão de um templo.

O pequenito rechonchudo sonhava e sorria, com duas covinhas nas faces.

A mísera sentia a noite correr. Nunca as horas lhe pareceram tão ligeiras.

Já os pássaros cantavam nas árvores e os rebanhos saudavam a alvorada nos campos... e Ayiché ouvia sempre as palavras fatais.

Não teve ânimo de ir à lavoura, não se desprendeu dos filhos, olhando-os: ora um, ora outro.

“Que vá o pequenito...  Ainda não anda, ainda não fala...” Mas o pequenito, como se adivinhasse o seu pensamento, estendeu-lhe os bracinhos gordos, sorrindo e tartareando e a infeliz, em soluços, tomou-o ao colo, deu-lhe o peito cheio e, enquanto ele mamava, sob o seu olhar lacrimoso, a mãe exclamou desesperada:

“Este não! Este é mais agarrado a mim. O outro anda lá fora... Passa minutos longe de meus olhos...”

A voz do mais velho chamou-a:

“Mamãe!”

O coração de Ayiché esbarrou contra o peito, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos e, estranguladamente, desesperadamente a coitada bradou entre os dois amores:

“Meu Deus! Que vos fiz eu para que assim me castigueis com tamanho rigor! Como quereis que eu escolha onde não há que escolher? Como quereis que eu divida o coração, Senhor Deus?! É a mim que propondes tal suplício, a mim que nunca vos esqueci, que sempre vos venerei?

Por que não fizestes em silêncio o vosso mister, anjo da Morte? Eu choraria sobre o cadáver, cobri-lo-ia de flores, abriria o seu túmulo entre rosas, mas não sofreria tanto como sofro. Que vos fiz eu, Senhor Deus!?”

Os pequenitos brincavam à sombra cheirosa das árvores e o dia escoava-se.

À tarde Ayiché saiu a olhar o horizonte: deserto, nem sombra de caravana. Se ele, ao menos, chegasse...!

Mas as cigarras cantavam, o sol transpunha o céu, rente das areias longínquas, abrasando as dunas e os palmares.

Silvavam ríspidos os trissos dos morcegos, os chacais uivavam e a primeira estrela luziu.

Era a hora em que as crianças costumavam dormir.

O mais velho abraçou-a, beijou-a e subiu para o seu berço de palha, o mais novo estendeu-lhe os bracinhos e, tanto que ela o tomou, logo, avidamente, colou a boquinha ao peito e adormeceu. Deitou-o e, ajoelhada entre os berços, quedou-se contemplando os filhos.

Um raio de lua entrou pela cabana escura e quieta — era a hora.

Ergueu-se, então, alucinada, curvou-se, estendeu os braços a um berço, a outro. As estriges chirriavam.

Vacilou; mas, rápida, cobrindo-se com o manto, ainda beijou os filhos, ainda os molhou de lágrimas e, lenta, em passos arrastados, voltando-se de quando em quando, saiu, desceu o degrau de pedra e, tremendo, batendo os dentes, arrepiada de medo, os olhos voltados para a cabana, sentou-se sob a figueira.

NA ESTRADA, AO SOL

É larga a estrada e brilha ao sol. Vai por ela fora, farnel cheio às costas, olhos no céu, a cantar, parodiando os gaturamos, um rapazinho louro; vem por ela, cajado em punho, a taleiga vazia. Um velhinho, tardígrado e tremente, desesperançado, de olhos no chão, acompanhando a sombra.

E o rapazinho, a cantar, dividindo o que leva com a terra, com as águas, com a luz, com o passaredo, não vê que o seu farnel vai escasseando; e o velhinho, a tremer, as mãos engelhadinhas, a olhar, a olhar a larga estrada, ao sol.

— Onde vais, louro infante?

— Além! E o velhinho, a sorrir, triste e tremente: De lá venho eu assim como estás vendo.

— De lá vens, dizes com tanta amargura, pobre velho. Não viste, então, as montanhas azuis e as águas de prata? Não colheste, nas árvores, os frutos de ouro ou a dama que possuíste foi perjura e perversa?

— De lá venho, insiste o velho, tão só e compassadamente.

— E onde vais?

— Para o sitio de onde vens: buscar descanso. Volta comigo, louro infante. Mais vale o fumo azul de uma cabana do que a nuvem dourada que além passa. Volta comigo.

— Que! Tornar atrás? Tornar ao mesmo sítio? Deliras, pobre velho! Vem tu comigo; anima-te!

—Eu?! E o velhinho, a rir, sem dentes: E que fazes? atenta no que fazes! Por que, a mancheias, desperdiças a fortuna que levas? Sê mais avaro, louro infante. Guarda o teu bem para que não te suceda, à volta, o que a mim sucede: sofrer fome, sofrer sede, sofrer frio e o desengano.

— Pois não estás vendo, velhinho, que o que vou semeando rebenta em flor e trescala, surge do ninho e é canto alado, torna-se em árvore e dá fruto e sombra, enche a natureza toda de alegria?

— Também pareceu-me assim quando, como tu, eu tinha os cabelos louros. Também pareceu-me assim, já me não parece agora. Alonga o teu olhar noviço: que avistas além?

— Espinhais.

— E que ouves? Louro infante. Escuta.

— Pios de aves tristes.

Foi o que eu semeei. A princípio, como te sucede agora, pareceu-me ver flores o ouvir trilos: e fui semeando, semeando... Aí tens: mochos e espinhais, mochos e espinhais. Torna comigo, louro infante. Aquilo que além avistas é perfídia. Naquelas serras azuis mora um feiticeiro maligno que se chama Ideal. Vai-se atraído pelos seus sortilégios e, quando, como me aconteceu, de lá se pode tornar — porque o maior número lá fica — é assim como me vês: pobre, o coração vazio como esta taleiga, e triste. Torna comigo, louro infante. É mais doce do que o gorjeio do gaturamo a cantilena de tua mãe. Tudo, por esta estrada longa, é ilusão e perfídia.

— Que importa! As montanhas de além são tão azuis que parecem feitas de céu.

— Torna comigo ao teu casebre, infante. Tudo é ilusão e perfídia. Eu de lá venho, das montanhas, e sei. Torna comigo.

— Adeus, velhinho.

E lá vai, estrada fora, farnel cheio às costas, olhos no céu, a cantar, o rapazinho louro. E o velhinho, vendo-o seguir, suspira:

— Pobre criança! Desgraçado infante! Como vai sofrer... Ele a querer ser velho e ... (Pobre de mim! E pobre dele!) Eu a recordar, saudoso, os dias da minha infância!

LENDA DO REI AVARO

Naquele tempo em toda a imensa e afortunada terra de Ásia, desde as altas regiões quase nuas, onde as neves se não dissolvem e, para um lado, até a orla tépida do mar onde se pescam as pérolas, e para outro até os vastos e adustos desertos de areia amarela, híspidos de cardos, sem sombra de árvores ou brilho de água, onde alveja a tenda ligeira do beduíno e o gipaeto, do alto das rochas secas, espia as serpentes só se falava das riquezas maravilhosas do soberano da Ilha dos Aromas, essa que, ao findar de uma tarde de quente nevoaça, como referiu, aterrada, a tripulação de um pangaio, com um leve tremor que nem abalou as torres dos templos nem assustou o gado nos campos, afundou lentamente, sumiu-se nas águas, como um barco que soçobra ao bater num rochedo.

Esse príncipe, que governava um grande povo industrioso e tinha, para defender o seu reino, o mais aguerrido exército e a frota mais numerosa do Oriente, logo que deixou o cadáver do pai no suntuoso mausoléu de mármore, levantado entre as esbeltas palmeiras do bosque sagrado, e assumiu o governo, quis examinar os tesouros que os reis vinham pacientemente acumulando desde que os primeiros escravos cavaram o terreno das minas e os primeiros exércitos espalharam-se impondo pesados tributos aos povos fracos dos países próximos.

Desceu ao subterrâneo e, caminhando por entre abarrotados ceirões de ouro e prata, arcas acoguladas de pedrarias, armas preciosíssimas, vasos do mais fino lavor, panos atálicos e telas levíssimas, esvoaçantes, tecidas nos templos por virgens que só trabalhavam para os deuses, e moedas de vários cunhos que luziam amontoadas, espalhadas nas lages, sorriu da miséria, não compreendendo como reis tão fortes, que podiam dominar o mundo, se contentassem com tão pouco.

Disseram-lhe que, todos os anos, com as primeiras flores da primavera, chegavam barcos com o tributo em ouro de setenta fertilíssimos Estados, que os impostos das províncias eram abundantes; disseram- lhe o número das minas que produziam, das rezes que se espalhavam nos campos, dos navios que faziam o comércio da púrpura, dos teares que trabalhavam, das mil fábricas em que se facetavam as pedras preciosas, se polia, rendilhava e floreava o mármore, se cozia a louça transparente, se enformavam as ânforas, se trançavam as corbelhas, se fundia o metal das armas — o príncipe sorria sempre, desdenhoso achando tudo mesquinho.

Subindo à sala dos despachos logo decidiu aumentar os impostos e os tributos para o dobro do que pagavam, exigir dos capatazes da mineração maior quantidade de ouro, proibir aos pastores a matança de uma só vez — que se contentassem com o bolo de farinha e mel e com as ervas tenras que nascem nas terras úmidas — dar mais porte aos barcos e exigir das mulheres do povo todas as joias que traziam. Mandou equipar e apetrechar navios e soltou-os nos mares para a rapina.

Espalhadas, ao som de tambores, as ordens do soberano, o povo, que o temia, deu-se pressa em cumpri-las e centenas de homens fiéis, encarregados de receber o que a gente humilde levava ao erário real, não conseguiam atender a todos com a ressalva que era devida aos que se desfaziam dos seus pequenos valores.

As fundições trabalhavam dia e noite reduzindo as grossas barras de ouro, as joias de que a pobreza se havia despojado e as pedras, tiradas das encarnas, cintilavam em acervos de cores sobre o branco lajedo dos pátios, entre eunucos armados.

Ao porto abicavam diariamente altos navios carregados; caravanas numerosas desciam das minas, em lento andar, com o peso dos fardos que derreavam os animais, e os pastores reclamavam mais campos onde pudessem espalhar os rebanhos que cresciam prodigiosamente, já emagrecendo à mingua de pastura.

E o rei, percorrendo o subterrâneo, contemplava a sua riqueza, mas como ainda lhe não bastasse o que via, mandava cavar galerias maiores, mais fundas e exigia mais ouro.

À notícia das vitórias dos seus soldados, das presas dos seus navios, logo pedia nota dos tesouros sem se preocupar com a mortandade nem com o sofrimento dos vencidos.

À noite, quando a cidade real dormia e das chaminés das fundições subiam, lambendo a treva, as línguas rubras de fogo, ele levantava os olhos e ficava ambiciosamente contemplando os astros que tremeluziam no céu.

Não dormia. Se, algumas vezes, reclinava-se vencido pela fadiga, logo um sonho o despertava em sobressalto — punha-se de pé e, seguido pela guarda palaciana, que o acompanhava a correr, atropeladamente, fazendo ressoar a longa escadaria de mármore, subia à torre mais alta para devassar o mar vasto porque, no sonho, o vira coalhado de navios que vinham cheios de guerreiros, que eram gigantes, assaltar o seu tesouro, passar a tio de espada a sua gente, esgotar as suas minas, abater o seu gado.

Recomendava o mais vigilante cuidado às sentinelas ameaçando-as de morte se não anunciassem o que fossem descobrindo na terra, no mar, no espaço.

Às vezes, no arroxear sereno do crepúsculo, uma águia retardada punha em alvoroço a cidadela. Rugiam buzinas roucas de uma à outra torre, armas brilhavam, retiniam na pressa tumultuosa com que a soldadesca se lançava pelas escadas e arquejando, esbaforidos, os guerreiros que chegavam à plataforma, atesando os arcos rijos, viam apenas um ponto negro que se sumia no espaço, longe.

Certa noite, ao recolher-se, sentiu o rei uma dor violentíssima na cabeça como se a varassem ferros terebrantes e em brasa e um peso tão grande que só a podia trazer tombada sobre o peito.

Imediatamente, em grande pressa, foram chamados os magos e o rei, por entre gemidos e brados de angústia, dizia-lhes o seu sofrimento prometendo-lhes imensos tesouros se o curassem ou a morte se nada conseguissem.

O primeiro tudo fez: velou noites seguidas, invocou os deuses, experimentou as mais complicadas fórmulas, tentou todos os recursos da magia.

Um dia longo e quente, ao sol, e toda uma noite passou-os no eirado do palácio consultando o voo dos pássaros e o brilho dos astros e, com o soar das buzinas anunciando a madrugada, resignadamente, entre guardas, desceu para morrer.

Outro veio e teve a mesma sorte.

De todas as partes chegavam magos e feiticeiros e todos desciam ao pátio lôbrego onde o carrasco os abatia de um golpe. E o rei, gemendo e sem poder levantar a cabeça, argumentava as promessas de riquezas e inventava suplícios mais dolorosos.

Continuamente subiam sábios à real câmara, continuamente o machado do carrasco decepava cabeças veneráveis.

O povo, estarrecido de medo, nem cuidava de negócios porque os guardas tinham ordem de matar todo aquele que falasse mais alto nas ruas e, todas as tardes, eram levadas para as cavernas fúnebres centenares de cadáveres de mulheres. Nos templos os vitimários escorriam em sangue e nos altares não se extinguia a chama dos holocaustos.

Já os cortesãos desesperavam da salvação do monarca, cujo sofrimento aguentava a mais e mais, quando um velho mago, havia muito apartado da corte, vivendo solitariamente numa montanha, foi trazido a palácio.

Não ignorava as condições impostas pelo rei — a fortuna ou a morte e, como o pátio de suplício ficava, em caminho da torre em que se havia isolado o enfermo, o ancião, levantando a aba da simarra, passou sobre o sangue dos que o haviam precedido e viu o carrasco inflexível, afiando o machado junto ao cepo de cedro onde tinham rolado tantas cabeças cheias de sabedoria.

Não se intimidou: serenamente, seguindo o camareiro que o guiava, chegou à presença do rei que gemia.

Os áulicos, curiosos da ciência do solitário, cercaram-no, ele, porém, depois de haver purificado as mãos num vaso de ouro, declarou que, para conseguir a cura, era necessário ficar a sós com o monarca.

Com um leve murmúrio, como o de um fio de água a fluir, os cortesãos saíram e o velho correu, experimentou os ferrolhos de todas as portas. Dirigindo-se, então, ao enfermo que apertava a cabeça entre as mãos, disse:

— Senhor, para que eu vos examine, como convém, é necessário que adormeçais. Tenho comigo um elixir de sono que vos dará um momento de alívio. E de um gatturnio verteu, num pequeno copo cavado em uma esmeralda, as gotas de um narcótico que o rei bebeu sem hesitar, caindo imediatamente em profundo letargo. O mago tirou, então, do seio uma pequena bolsa, despejou-a sobre uma patena de prata e miúdas lascas de ouro cintilaram. Olhou-as sorrindo e despertou o rei que, ao reabrir os olhos, logo se pôs a gemer:

— Por que tão depressa me tiraste do sono?

— Senhor, não foi para adormecer-vos e sim para curar-vos que aqui me trouxeram, entre armas. Se vos mergulhei no sono de que saístes foi para examinar, com descanso, a vossa cabeça e descobrir a causa do sofrimento que vos traz combalido e todo o reino em grande e justa tristeza.

— E então?

— Tenho o que basta para garantir-vos a cura — é o conhecimento do mal. E, adiantando-se com a patena, no fundo da qual brilhavam as piscas de ouro, explicou: A vossa moléstia é de natureza estranha e, a meu ver, originou-se no vosso constante pensar em riquezas. A prova aqui a tendes nestas pepitas, a ideia fixa materializou-se. A vossa cabeça está se transformando em ouro. Comprometo-me a curar-vos em menos de uma hora raspando toda a crosta que forra o vosso crânio e destacando todas as partículas que se acham incrustadas na massa cerebral, se assim julgardes que devo fazer. Como é um tesouro não quis proceder sem ouvir a vossa palavra.

O rei ficou largo tempo a pensar e a gemer. Tomou entre os dedos as pepitas luzentes, chegou-as bem aos olhos, examinou-as, pesou-as na palma da mão, murmurando: Bom ouro! Bom ouro! Por fim, disse: Fizeste bem em consultar-me. Tal moléstia só pode ser um capricho dos deuses, porque não consta que homem algum houvesse jamais produzido ouro. E suspirou: Cumpra-se a vontade divina. E em quanto tempo julgas que terei toda a cabeça transformada em ouro?

— Senhor, em menos tempo do que gasta a lua para mostrar ao mundo as suas quatro faces.

— Bem, vai! Concedo-te a vida. E o mago inclinando-se, ajuntou:

— E outro maior tesouro não me podíeis conceder. Todavia, se vos quiserdes curar, senhor, eu lá estou na montanha, disse o mago de cabeça baixa, sorrindo por trás das grandes barbas alvas que rojavam no chão.

— Curar-me! ... Suspirou o rei. Pudesse eu melhorar um segundo e daria, de bom grado, metade do meu reino, o mais rico da terra..., mas como hei de eu contrariar a vontade superior dos deuses! Já agora sofrerei até que toda a minha cabeça se transforme em ouro. Vai! E que os deuses sejam propícios à tua velhice.

O mago retirou-se contente com a sua astúcia recolhendo-se ao silêncio religioso da montanha e, numa doce noite de lua, à hora em que cessavam os cânticos no templo, o rei deixou de gemer no seu leito de ouro e marfim.

OS MILHÕES

— Um momento! Bons homens, bradou o velhinho curvado sobre a sarjeta por onde rolavam as águas da enxurrada.

Os varredores, vendo-o em tamanha azáfama, raspando as pedras com as mãos trêmulas, catando, um a um, os confete amarelos, riam; ele, porém, sem dar atenção à troça que lhe faziam, continuava a raspar as pedras com ânsia, enchendo um grande saco com aquela massa de papelinhos louros.

Um dos varredores mais impaciente adiantou-se, mas o velhinho deteve-o com um gesto.

— Um instante, meu amigo, já vos deixo o que vos cabe: não quero mais que o ouro. Aqui ficam esmeraldas verdes, safiras azuis, rubis cor de sangue, opalas cor de leite. A mim basta-me o ouro. Deixai-me apanhar em paz as pepitas que brilham, deixo-vos uma fortuna maior em pedras preciosas.

O homem, sem entender as palavras do velho, atirou a primeira vassourada.

— Que fazeis? Não vedes que espalhais a riqueza que eu ando a ajuntar desde ontem? Era noite negra quando saí a esmolar um pão para a netinha — linda criança de seis anos que me ficou nos braços quando Deus me levou a filha. Saí. As ruas regurgitavam de gente e eram tantas as luzes que se podia ver nas pedras um alfinete perdido.

Cantavam e riam; uma desusada alegria alvoroçava o povo e, quando a alegria é grande ninguém atende a uma tristeza que passa. Como se há de ouvir um soluço em tamanho rumor de gargalhadas e de gritos, de sons de trompas e de rufos de tambores? Debalde eu pedia contando a minha história “que estava com febre e que a minha Dolores lá ficara em casa chorando de fome”. Riam das minhas palavras, mofavam de mim e das minhas lágrimas. Houve quem me empurrasse tomando-me por bêbado... como se lágrimas embriaguem.

Cansado e desanimado sentei-me no limiar de uma porta, olhando e pensando na pequenita e chorava em silêncio quando uma criança, um menino louro, pouco menor do que a minha Dolores, dando por mim, deteve-se e, mergulhando a mãozinha num grande saco, atirou sobre a minha cabeça um punhado de ouro.

Ouro, ouro sim e do melhor, que eu bem o conheço. Ouro de muito brilho, ele aqui está tinindo no meu bolso. Agradeci à criança a generosa esmola e dispunha-me a partir quando notei que o ar estava toldado de ouro: era uma chuva que caía sem descontinuar como se viesse das estrelas.

Nunca vi tanto ouro! A ambição fez-me esquecer a pequenita, mas ela me há de perdoar, porque eu sou ambicioso por ela e para ela.

Mais um momento, mais um pouco de trabalho e eu entraria em casa tão rico como o rei mais rico dessas terras do Oriente de que falam as histórias e a minha Dolores nunca mais teria fome, nunca mais teria frio, dormiria em leito de plumas e os seus pequeninos pés, tão pequeninos que eu aconchego e aqueço, a ambos, na minha mão direita, nunca mais palmilhariam, nus, as estradas pedrentas. Ai as haviam de vesti-la e perfumá-la, pentear-lhe-iam os finos cabelos dourados e, quando ela crescesse, príncipes, viriam disputá-la e eu, recebendo-os no meu palácio, chamaria a minha Dolores para que escolhesse o seu noivo. Pois não é assim que faz quem tem fortuna?

Ontem, era eu um miserável, ninguém se importava comigo, e agora? vede que ajuntamento! Quanta gente a cercar-me! Não é a mim que cercam, é ao meu ouro.

Como vai ficar contente a minha linda Dolores! E vós também, se tendes filhos ou netos, podeis levar-lhes a alegria: Apanhai as preciosas pedras lapidadas que aí estão pelas ruas — verdes esmeraldas! safiras azuis, rubis cor de sangue, opalas cor de leite. Eu contento-me com o ouro.

Esperai um momento mais enquanto apanho o que aqui está.

Com este punhado comprarei um palácio para a minha Dolores, mandarei plantar roseiras em torno para que ela sinta o aroma agradável das flores e dar-lhe-ei tantas bonecas ... tantas...!

Não imaginais a inveja que ela tem das outras meninas. Ainda ontem, quando saí, deixando-a só, ela disse acariciando-me o rosto com as mãozinhas geladas: “Se eu tivesse uma boneca para fazer-me companhia...”.

Terá muitas, muitas! tantas quantas quiser, a minha pobre Dolores.

Agora sim — nunca mais direi “não” à minha pequenina neta. Levo ouro bastante para satisfazer-lhe todos os desejos.

Benditas sejam as estrelas de Deus que espalharam no ar estas estrelinhas de ouro. E quantos pobres são agora felizes! quanta criancinha a sorrir contentada!

Os vossos filhos hão de sorrir também quando lhes aparecerdes com tantas pedras preciosas.

Enchei os carros! Enchei os carros!

O varredor, impaciente, sorriu das palavras do velho, os outros também sorriram e, como a hora avançava e era necessário fazer a limpeza da rua, entraram todos a varrer sem pena e lá foram os montes de confete apesar dos protestos e dos gritos do alucinado que, de bruços, com o peito sobre a lama, defendia o ouro das estrelas, os milhões de Dolores que ficara, na véspera, a chorar de fome e que ainda o esperava com a esmola de um pão que ele saíra a pedir.

O CÉU

Aos sábados, à tarde — ó as longas e lentas semanas! — davam-lhe licença para descer a aldeia, ver a mãe e os irmãos e gozar o domingo.

Lá acima, ao seu degredo, chegavam por vezes, com o vento, os alegres e límpidos repiques do sino, um sino só e pequeno, mas em verdade, tão vibrante que punha toda a aldeia em alvoroço quando dançava na forca, tangido pelo Marcelo.

Ouvindo o som ele ficava-se a rever os lugares queridos: o largo da capela com o rio a correr perto — era sempre ali que se realizavam as feiras festivas em S. João e no Natal — a grande estrada larga e branca, com os muros de taipa dos pomares, tantas vezes galgados no tempo das frutas; o hotel do velho Mendo, sempre com gente à porta, cavalos e carros sob o telheiro; a venda do Adrião, cercada de limoeiros e um rol de casas, umas cobertas de telhas, poucas, podia citá-las, o resto todas palhiças, na chã ou trepando pelos outeirinhos, mas fossem corrê-las e haviam de achar os armários abarrotados, as arcas bem providas; e não havia tendal de pobre onde não se encontrasse uma cabra vagarosa, de ubres pojados e um galo orgulhoso para cantar à alvorada.

Era assim e ele lá em cima, a soldo daquele senhor tão ríspido, de tão negra barba, sempre taciturno e bravio, vivendo, como os ogres das histórias, naquele imenso casarão trepado nas rochas, lá ao cimo da serra onde a noite chegava primeiro porque, às vezes, já mal se distinguia nos frondosos caminhos e, embaixo ainda era claro o sol.

Só aos sábados, à tarde, davam-lhe aquela folga mas, porque fizera Deus os domingos menores que os outros dias da semana?

Lembrou-se, uma vez, de pedir ao senhor que, em vez de o licenciar aos sábados, lhe desse liberdade aos domingos, à tarde, porque para ele não havia dia tão longo como a segunda-feira, mas não se atrevia a fazer tal pedido àquele homem merencório que nunca sorria e só, de raro em raro, a cavalo, entre cães, que eram feras, saía à caça ou a visitar a sua riqueza, ordenando tratos às árvores feridas pelos temporais. Ah! vida triste!

Aos sábados, vestia o seu grosso casaco, tomava um cajado e descia com o rebanho recolhendo-o ao casal e logo, a correr, saltando ribeirinhos alegres, galgando rampas em menos de meia hora, estava na estrada larga e era um minuto até a casa onde já o esperavam os irmãos e a mãe com o sorriso e a benção.

Se levava o salário logo o entregava à mãe, sem falha de uma moeda, se não contava episódios da sua vida serrana ou ouvia, sorrindo, os casos da sua aldeia.

Num sábado, entrando esbaforido em casa, encontrou-a cheia de gente que chorava. E que cheiro de flores! e que cheiro de cera!

Dois dos seus irmãos quietos, sentados a um canto, numa pele de ovelha, olhavam com os olhinhos cheios de espanto e ela, a mais velha? a sua meiga Eunice, tão sua amiga, para quem ele levava sempre alguma coisa da serra — um fruto, uma flor, um passarinho, e, às vezes, uma pedra branca e lisa das que brilham nas águas dos riachinhos?

Perguntou por ela. “Foi para o céu...” disseram; e a mãe, desgrenhada e pálida, rompeu num pranto mais alto, agarrando-se a ele e repetiu em soluços: “Foi para o céu, meu filho!”

Ele chorou de saudade, mas não lamentou a sorte da irmãzinha que lá fora para onde as estrelas, que lá devia estar, talvez feita estrela também, brilhando.

Quando tornou, na madrugada da segunda-feira, subindo, a arquejar, pelos trilhos ásperos, redizia aquelas palavras que ouvira: “Foi para o céu! Foi para o céu...” e, todo o dia, sentado à beira de um algar, enquanto as ovelhas pastavam, não tirou os olhos do céu azul, lá longe! Pobre Eunice! Como lhe devia ter custado subir tão alto!

À noite tornou à triste contemplação a ver se em alguma das estrelas podia reconhecer a irmã. Mas eram tantas! Tantas e tão distantes! ...

Uma tarde, ao chegar à casa, disse-lhe a mãe que, na manhã seguinte, iriam todos ao cemitério levar flores à irmã. Ao cemitério, pensou ele... e o céu? Mal dormiu. Ao primeiro canto do galo já estava acordado, mas não se levantou vendo que todos dormiam— a mãe e os pequenitos. Sentindo, porém, o alvor, saiu, pé ante pé, a colher as flores frescas dos moutais.

Foram. E o cemitério era longe, no extremo da aldeia, achegado a um monte. Junto do muro, num recanto florido, mostrou-lhe a mãe um tumulozinho.

— É aqui que ela dorme, disse-lhe. E ele:

— E o céu, mãe? Pois não me disseste que ela foi para o céu?

— Sim, filho, é por aqui que se vai ter ao céu. E, percebendo o espanto do pastorinho, explicou: Filho, os olhos estão encravados no rosto, mas o olhar está no céu... é assim. Ela está aqui, mas a sua alma está lá.

— E que faz ela no céu?

— Goza as venturas que Deus reserva aos seus filhos. No céu não há penas; não há frio que gele, nem soalheiras que escaldem, ninguém se cansa, ninguém se atormenta, tudo é paz, tudo é delícia e amor. O céu, meu filho... e a pobre mãe suspirou.

Tornou o pastorinho à serra.

Uma manhã, subindo, por ordem do senhor, à pedra mais alta da serra, a buscar um cabrito afoito que galgara o penedio, achou-se num plano liso, de pouca verdura, de onde, alongando os olhos, avistou toda a sua aldeia pequenina, longínqua, com as casas espalhadas, alvejando, como pedras brancas num campo.

Oh! como era funda a sua aldeia! De repente os seus olhos foram atraídos por um grande brilho — correu a ver e achou-se à beira de um lago quieto e liso e olhando, viu-lhe no fundo o céu como vira, uma vez, na marmota da feira, cidades ricas e luminosas.

Ó deslumbramento! Lá o lindo céu de amor de que lhe falara a mãe. Só então compreendeu o que ela lhe dissera “que, deixando o corpo da pequenita na terra, ele iria ter ao céu” àquele mesmo céu que ele via através da água do lago fundo, azul, translúcido, tão longe!

Ficou debruçado, a olhar, a mirar—um pássaro passou no céu do lago...

Custava-lhe tanto a vida naquela serra, com aquele senhor severo e o céu ali, o céu com o Bom Deus, Nossa Senhora, os santos, os anjos bons e ela, Eunice. Por que não havia ele de ir também? Ali estava o caminho: era só meter-se no lago, deixar-se cair e Deus o receberia nos braços e ...

As águas escachoaram, franziram-se em círculos; pouco a pouco, porém, foram-se remansando e, trêmulo, o céu reapareceu azul no lago.

— Que terá acontecido que até agora não vem! Suspirava aflita a pobre mãe quando se abriu a porta e um velho, de grandes barbas brancas, que era o intendente do senhor da serra, entrou pela casa taciturna e logo, com palavras trêmulas, referiu que o pequeno perecera no lago e, como a desventurada rompesse num grande pranto, o velho, para a consolar, disse-lhe com voz tremente:

— Não te desesperes, mulher, está melhor do que nós, porque está no céu...

Pastorinho, pastorinho... quantos, como tu, se iludem com esses céus dos abismos!

VAISYA-PURANA

Não julgues da vastidão de um poema pelo número de seus versos: palavras são como folhas de árvores — murcham, secam e o vento leva-as, vestem apenas o tronco e protegem o fruto. O tronco, esse subsiste, se é forte, porque nele é que reside a essência.

Se há puranas de milhares de versos outros há, tão pequenos, que podem caber na memória de uma criança ou, escritos, numa pétala de lótus. Nem por serem menores valem menos do que qualquer dos dezoito recolhidos pelo solitário Vyasa.

É desse número o poema ingênuo de Vaisya, o príncipe taciturno.

Senhor das terras férteis que jazem à sombra do Himalaia, vertente das águas claras, príncipe de um povo meigo, Vaisya, que passara a infância entre árvores, ouvindo a sábia doutrina de um brâmane, subiu ao trono de ouro e de esmeraldas quando contava vinte e cinco anos.

Ou porque era de natural tristonho ou porque a selva e o sábio lhe tivessem infiltrado na alma a melancolia, jamais sorria e lentas e vagas eram as suas palavras. Sempre cercado de áulicos servis que se curvavam como os juncais dos rios, sempre a ouvir propostas de mulheres que lhe embargavam o andar, tentando-o a amores, farto de ouvir bravatas de guerreiros e percebendo as mil perfídias que os ministros tramavam nos conselhos, ia enjoando, a mais e mais a vida e ao fausto, ao gozo, à gloria de tal corte preferia os silêncios retirados onde, a sós com o seu espírito, vivesse e meditasse.

Numa doce manhã de verão Vaisya, estando a contemplar o céu, viu despontar o sol, louro como uma gota de óleo e, de mãos juntas, prostrando-se em terra, disse:

—Brahma, três vezes magnífico, dá-me que eu veja o berço de Indra! dá-me que eu olhe o divino casulo que se desabotoa para libertar a borboleta diurna cujas asas de fogo, mal se desfraldam no céu, matam a falena pálida. Disse e, após um silencio curto, continuou baixinho: Afigurava-se-me que devia ser tão longe o berço da claridade e, todavia, tão perto fica, ainda em terras do meu domínio. Ah! Se eu pudesse vê-lo! E, concentrando-se, ouviu, como num sonho, uma voz que lhe disse: Caminha!

Vaisya ergueu-se como inspirado e seguiu direto ao palácio onde a sua ausência era comentada diversamente: pelos cortesãos com murmúrios, com suspiros pelas mulheres. Mal o viram chegar curvaram-se os primeiros e, em mudez, lascivamente deitadas, mostrando-se as concubinas. Vaisya, porém, passou como um sonâmbulo. Subindo ao trono impôs silêncio e determinou que todos se estivessem prontos, na manhã seguinte, para uma peregrinação venerável ao berço do sol, e, como pretendia levar oferendas, ordenou que os tesouros do reino fossem transportados no dorso dos elefantes: ouro e pedras, brocados e perfumes.

Pasmados ficaram quantos ouviram tão estranha ordem, nem um só, porém, ousou contrariá-la, e logo começaram os cornacas em serviço acaparaçonando elefantes, carregando-os de ouro e de pedrarias.

Palafreneiros atiravam ao lombo dos ginetes gualdrapas de seda, a soldadesca bem armada cavalgava potros árdegos e aos palanques, forrados de tela fina com largas franjas de ouro, recolhiam-se as mulheres. Ao primeiro clarão da alvorada, soando flautas e tambores, desfilou pela porta maior a caravana, na direção das montanhas.

Não foi longa a jornada nem desfavorecida: dias claros, noites estreladas protegeram a comitiva que, ao fim de um quarto de lua, chegou ao cimo nevado da cordilheira e parou. Vaisya, à beira de um fogo vivo, fez a vigília. Instrumentos mal tangidos pelos dedos inteiriçados esparziam sons na solidão friíssima e os animais desacostumados de tão ríspido clima, fremiam tonitruosamente.

Primeiros alvores da manhã.

— Todos de pé: magos, kchatryas, auletrides e cantarinas, cytharedos e bailaderas, todos de pé! Cornacas e palafreneiros, almocreves e escravos, todos de pé! Aí vem o sol! E a fanfarra reboou atroando o silêncio. Ai vem o sol. Vejamo-lo nascer, estamos à beira do seu berço! bradou Vaisya e todos debruçaram-se sobre o abismo esperando o astro.

Abrupta e forte uma voz arrancou-os à contemplação:

— O sol!

Levantaram-se todos e, alongando os olhos, viram o sol que nascia além! na planície, entre palmares dourados. Vaisya sorriu sem desânimo e, de novo, ordenou a marcha.

Cada qual cavalgou o seu ginete ou guindou-se à cabeça do elefante, cerraram-se as cortinas dos palanques, os anafes estrídulos soaram e desfilou pela encosta escarpada a caravana morosa.

Novos dias, novas noites: os palmares. Repouso.

Noite de vigília e de ansiedade. Primeiros raios de alva, o sol... além! A caminho! E lá foram. Ora ficavam nos montes, ora ficavam em campos. Vadearam rios, atravessaram vales e, a troco de ceirões de ouro, fizeram-se ao largo mar. E o sol sempre a nascer além!

Já era diminuto o número dos homens: uns desertavam descorçoados, outros sucumbiam exaustos. Poucos eram os animais e, das mulheres, a maior parte ficara nos caminhos, morta. Raros homens seguiam de boamente o príncipe, descalços, famintos, com andrajos apodrecidos. Quantos anos correram!

Na corte ninguém mais cuidava rever o Vaisya, já o tinham por morto, e o povo, como ignorava o rumo que levara e o fim da expedição, dizia pelos mercados: que fora combater e conquistar tesouros e ficara espetado em lanças inimigas.

Outro príncipe reinava quando atravessou a porta maior, mais roto e pobre que o mais vil dos párias, um peregrino envelhecido e alquebrado. Cansado, parou no viso de um outeiro repousando sobre a fresca relva.

Era quase manhã quando se lhe abriram os olhos: o sol nascia e justamente levantava-se dentre as frondosas árvores do parque que fora, outrora, do príncipe Vaisya.

De olhos imensamente abertos e fitos no astro o peregrino empalidecia. Quis erguer-se, não lhe sobraram forças, os olhos fundos inundaram-se-lhe de lágrimas e, no esplendor da manhã, pôs-se a soluçar, dizendo:

— Brahma! como a luz me iludiu. Andei a vida inteira a procurar o berço do sol, o mundo está semeado de ossos dos que me seguiram e, na hora da morte, miserável, desiludido, vejo o meu grande erro — o sol nasce no parque do meu antigo paço, entre os palmares que fazem sombra aos túmulos dos meus maiores. Brahma! Por que me deixaste partir.

E mais não disse — de olhos abertos e opacos voltados para o sol que subia, ficou estendido, imóvel, na terra do outeiro.

A VOZ DAS PEDRAS

Áspero, todo erriçado de rochas, o sítio lúgubre atroava com o retumbar das águas estrondosas de um rápido que espumava, refervendo em cachões, no fundo da grota de onde subia uma auréola de névoa na qual o sol recurvava um íris deslumbrante.

As mesmas águias impávidas fugiam, a largo voo, daquela paragem de pavor, só os morcegos e os mochos viviam em locas: uns oscilando pendurados pelas asas às arestas das pedras, outros imóveis, de olhos muito abertos, como emblemas de tristeza pousados no fundo lapidar das cavas.

Tal era o sítio funerário de onde, todas as tardes, subiam os brados melancólicos que assombravam os pastores e faziam os cães uivar medrosos.

Desde que o sol começava a pender para as serras ninguém ousava passar nas imediações daquele lugar sinistro. O mesmo gado, ao soarem Trindades, descia atropeladamente, fugindo à beira do vale soturno, a mugir, a balar como assombrado de algo que vira.

Cada qual narrava um caso e, nas cabanas, ao luzir do fogo, falava-se baixinho do encanto do vale.

Tão diversas fábulas narravam os homens tímidos, que eu quis conhecer a verdade e resolvi descer afoitamente ao vale. Ofertas que fiz aos rústicos para que me acompanhassem foram todas rejeitadas, e não houve uma voz que animasse o meu desejo, todas vinham enfraquecê-lo com presságios de morte:

“Que ides buscar, senhor? Não vos queirais medir com o que é do inferno. Se fiais das armas é porque não conheceis o inimigo — não há ferro que o penetre, nem bala que lhe faça mossa”.

Deixei as palavras medrosas e, atendendo à minha resolução, parti.

Seguindo a trilha sinuosa que abre, através da floresta, uma passagem sombria, ouvindo os pios das aves recolhidas, gozando o aroma das flores entreabertas, antes mesmo de chegar à rampa alcantilada ouvi a voz do encanto a gemer no silêncio da tarde lívida.

Detive-me irresoluto, mas violentando a coragem, prossegui e, deixando as últimas árvores, dei com a grota, tão negra que a noite parecia nela condensar-se subindo e espalhando-se nos ares como um fumo espesso.

Uma voz proferia; prestei o ouvido ao clamor e logo distingui um nome de mulher. Abeirando-me da rampa abrupta, inclinando-me agarrado aos pendidos ramos, pude ver, pude ouvir.

Parado no fundo da grota um moço bradava. Era um rapaz de verdade que eu sempre tivera por idiota ao vê-lo, no campo, falando às árvores e aos passarinhos, beijando as flores ou, de pé, à beira do riacho, chorando sobre as águas. Perdera a noiva, disseram-me, e vivia a recordá-la percorrendo os seus lugares dela preferidos, acariciando as flores e as árvores que ela mais quisera e pedindo aos pássaros, que andam nos ares, que levassem as suas saudades ao Paraíso.

Era ele. Pobre duende amoroso! Reconhecendo-o logo resolvi descer e lá fui resvalando pela ribanceira, até o fundo da grota pedregosa.

O moço bradava e o eco respondia. Cheguei-me ao triste e, tirando-o do enlevo em que jazia, interroguei-o:

— Que fazeis?

— Ouço-lhe a voz. Todas as tardes com o silêncio, desço ao vale, reclamo da morte o espírito da minha amada, e interrogo-o para convencer-me de que ainda me não esqueceu e também para não deixar que se desvaneça a lembrança do que juramos. Ela era ainda uma louquinha, quando morreu — sorria a todos... e lá em cima há tantos jovens formosos que se foram da terra no melhor dos anos... Quereis ouvi-la? e o mísero bradou o doce nome e logo o vale atroou soturno.

— Mas, são as pedras que vos respondem, disse eu; é o eco que torna aos vossos ouvidos em som, que é o que há de material na palavra, o espírito, que é a ideia, desaparece no ar. Não é a vossa amada que vos responde, são as rochas do vale que refletem os vossos brados. Se quereis convencer-vos deixai-me chamar a vossa amada e ela me responderá. E bradei; e as pedras retumbaram. O moço encarou-me pálido e assombrado. De novo bradei, de novo o eco repetiu o meu brado. Então? fitei nele os olhos — o mísero chorava e, por entre soluços, disse-me:

— Vieste matar a ilusão da minha alma. Eu vivia por ela, chorando e bendizendo a sua morte porque, se sinto a falta do seu rosto formoso não a vejo sorrir aos outros como sorria e agora que o túmulo a conserva presa, certa de que era só minha, ainda a encontro volúvel como era em vida, respondendo a todos como a todos respondia. Ai! de mim!

— Mas são as pedras que respondem.

— As pedras... e seria também de pedra o seu coração para que a todos respondesse? A quantos jurou ela amor? A quantos! Nem a morte a corrigiu. Ela aqui jaz enterrada e do fundo da cova responde com a mesma facilidade com que atendia ao apelo dos moços que iam encontrá-la, sorrindo, junto à sebe florida do seu jardim.

Não são as pedras que respondem, é o seu próprio coração que fala. Ela foi sempre volúvel! E o mísero rompeu a soluçar tão alto que as pedras, talvez com pena, soluçaram com ele.

A voz da mulher leviana é como a dos vales côncavos. Que há nos vales vazios? A bruma efêmera que se desfaz igual às juras dos corações volúveis.

Escondei-vos, namorados, e mandai que outro invoque o amor de vossa amada, mas fugi em tempo para não terdes o desengano. Ai! De mim...

E eis como eu descobri o encanto e desfiz o assombro do vale triste.

Hoje só há um homem que foge ao lugar sinistro, é o louco enamorado que lá não volta, porque, como se tornou o caso conhecido, o rapazio do lugarejo ajunta-se no vale e brada pela morta infiel e a todos as pedras respondem. O mísero, de longe, chora, ouvindo o clamor e ...

Quantos corações são feitos daquelas pedra!

O EREMITA

No tempo das grandes e piedosas austeridades, quando os santos homens, fugindo aos vícios e às seduções do século, despojando-se de todos os bens, cortavam um cajado e, com abarcas de cortiça, um grosso burel cingido ao corpo, a governita à ilharga, deixavam, sem voltar os olhos, o esplendor das cidades, o deserto rumorejavam de penitentes.

Havia os cenobitas que, com pedras e adobe, levantavam mosteiros na fresca e murmurante vizinhança de um claro rio ou perto de uma cisterna fundamente cavada nas areias, entre cardos hirtos, e alternando as horas de oração com as de trabalho, cantavam louvores ao Senhor e cultivavam a almoinha monástica. Terminada a colheita moíam o grão, espadelavam o linho, cardavam a lã, trançavam esteiras e alcofas ou teciam os panos preciosos que vendiam aos alegres mercadores de Chalcida ou de Apaméa.

Mais adiante estanciavam os chamados reclusos que viviam, aos dois e aos três, em cardanhos estreitos que eram como fornalhas no estio e que gelavam quando os cimos do Líbano refulgiam nevados, sem sujeição a regras, praticando, com rigor, a penitência e interpretando os sagrados textos.

Para o oeste, em regiões secas de colinas pétreas onde, ao sol causticante, só espinhais medravam escondendo víboras, as cavernas fervilhantes de escorpiões cujas ferroadas eram mortais como as feridas feitas pelas flechas dos beduínos, serviam de guarida aos anacoretas.

Os sarracenos rapaces, que cruzavam aquelas solidões acamaradados para o assalto às caravanas que demandavam as alegres cidades da orla do mar, não ousavam subir a tão remotos retiros onde tudo era braveza e miséria e, à noite, ao ladrido dos chacães errantes, cujas pupilas alumiavam como brasas, aos sibilos das serpentes monstruosas, ao frêmito dos leões, casavam-se as vozes que partiam do âmbito das lapas, contentes ou desesperadas, vozes dos eremitas que eram visitados por visões beatas ou que eram perseguidos por tentações demoníacas e, extasiados ou flagelando-se, enchiam a noite tremenda com louvores e gritos.

Mais longe, enfim, correndo as montanhas inóspitas, vestidos de grossas cortiças que lhes davam o aspecto estranho de rugosos troncos erradios, com os cabelos e a barba voando aos ventos trágicos, as unhas crescidas, retorcidas à maneira de raízes, vagavam os chamados pastantes, monges que viviam como alimárias, comendo as ervas da terra, bebendo de bruços nas fontes, dormindo nas árvores como os hamadryas, cantando o esplendor da alvorada como revelação radiante da onipotência divina ou tremendo ao estrondar dos trovões que eram como a expressão ameaçadora da ira do Senhor. Nesse tempo os milagres eram frequentes.

Inúmeros peregrinos procuravam os mosteiros e, diante dos monges, ajoelhados, com lágrimas, desnudavam os corpos expondo as fundas e sangrentas cicatrizes dos flagícios ou deformidades repugnantes. Muitos tornavam consolados e curados, alguns, porém, ou porque não fossem com a necessária fé ou porque falecesse poder aos eremitas para aliviá-los dos males, voltavam desiludidos, gemendo as mesmas dores, supurando a mesma sânie.

Um dia, porém, propalou-se rápida a notícia de que um dos anacoretas, que vivia enfurnado num antro, entre animais que a sua virtude domara, tornando-os, de ferozes que eram, mansos e prestativos, realizava maravilhas — exorcizando energúmenos, sarando cegos e leprosos, reverdecendo campos restolhados, tirando mananciais das penhas e até resussucitando mortos.

Logo encaminhou-se para a jazida do religioso numerosa corrente de peregrinos e, quantos lá chegavam gemendo, tantos voltavam apregoando a sua alta virtude. Foram tantos e tais os milagres do santo que o deserto maninho e lúgubre foi-se, aos poucos, tornando murmurejante, com o crescer de aldeias e o verdejar de culturas.

Era o santo de uma pequena e obscura cidade que a peste periodicamente devastava. Sabendo dos prodígios que operava mandaram-lhe os seus conterrâneos uma comissão a pedir-lhe que, com as suas rezas, obtivesse de Deus o saneamento da terra que lhe fora berço e o monge, prostrando-se com o rosto no pedregulho, assim esteve, como morto, três dias e três noites e, quando se levantou, iluminado e feliz, despediu os que o cercavam, dizendo-lhes — “que tornassem tranquilos aos seus lares, porque nunca mais a peste levaria luto à cidade”. E assim foi.

Vendo que Deus nada negava ao santo quiseram os seus conterrâneos possuí-lo certos de que, com a sua presença, não só veriam as moléstias conjuradas como sempre teriam abundância nos campos que ele abençoasse só com passar por eles. Assim, tomando carinhosamente o casal de velhinhos que bendizia aquele filho, foram com ele ao tenebroso antro do deserto buscar, em triunfo, o milagroso anacoreta.

Preparou-se a cidade para recebê-lo. Ornaram-se festivamente as casas, juncaram-se as ruas de espadanas e, ao encontro do thaumaturgo, saíram bandos jucundos de moços e de raparigas com flores e alegres doçainas e, com rumorosos trebelhos encontraram, a pouco andar da cidade, o humilde eremita, que vinha com o seu rosário de contas gastas, o seu burel remendado e as suas abarcas de cortiça.

Mal o viram em tão abatida miséria logo, na turba, alguns entraram a sorrir “Quê? Pois era aquele esfarrapado mendigo que afugentava a peste? Pois era aquele o homem que tornava férteis os terrenos mais sáfaros, que restituía a vista aos cegos, a voz aos mudos e despertava os mortos? ”

Acolheu-se o santo à casa paterna, vendo-se logo cercado pela gente da terra que o apertava com pedidos e súplicas. Um queria saúde, queria outro que o seu vageiro produzisse; este reclamava o gado que perdera; aquele, com macias palavras, queixava-se do pouco que lhe davam o vinhedo e o olival e sucediam-se as requestas e ele, com paciência, a todas atendia deferindo-as, com a ajuda de Deus, até que chegou um homem rude da serra, a quem havia morrido uma gorda novilha, rogando, com lágrimas de avaro, que lha restituísse.

Inclinou-se o santo à piedade e rezou, mas o Senhor, talvez mesmo para mostrar-lhe o fundo do coração ambicioso e ingrato dos homens, negou-se a atendê-lo.

Foi o bastante para que o dono da juvenca entrasse a bradar que o eremita não passava de um impostor. “Como podia ele conjurar as pestes, dar vigor aos campos, ressuscitar os mortos se não tinha prestígio para chamar à vida uma gorda novilha? ”

E logo, por toda a cidade, nas casas e nos bazares, nas praças e nos mercados, nos campos e à beira do mar todos concordaram com o homem, afirmando, sem lembrança dos bens que haviam recebido — “que o santo não passava de um impostor”: e riam-se da sua pobreza e das suas feições ascéticas.

Chegando-lhe aos ouvidos as murmurações ingratas uma manhã, antes de nascer o sol, vestindo o burel, calçando as abarcas e empunhando o cajado o santo entreabriu devagarinho a porta da casa paterna e ia saindo, a fugir, quando os velhinhos, que o sentiram de pé, correram a tomar-lhe o passo:

—Pois quê! queres deixar-nos, filho? Agora que, de novo, nos acostumaste com a tua presença queres que voltemos tristemente aos dias de solidão e de saudade?

— Não, pais: é preciso. Volto à minha caverna. De longe, com as minhas orações, farei quanto Deus quiser pela terra em que nasci e não me arrependerei porque não verei os ingratos e os descontentes. Sois testemunhas do muito que tenho feito, com a graça do Senhor, pois bem — só porque não restitui a vida a uma novilha anda o seu dono a murmurar contra mim e muitos dos que me devem a saúde e a fortuna repetem as suas palavras e apupam-me quando me veem, achando que valho tanto como o pelotiqueiro que empalma e sonega sob as dobras da túnica os objetos que lhe oferecem.

Volto à minha caverna. Os que fazem milagres devem viver na solidão, cercados de mistério — o próprio Deus, se tornasse ao mundo, seria de novo sacrificado. De longe serei amado, adorado, talvez, e ninguém rirá do meu burel nem das minhas abarcas, sentirão apenas os benefícios das minhas orações, imaginando-me um ser superior, diferente dos homens. Volto à minha caverna — lá continuarei a ser o santo misericordioso e patrocinarei, com as minhas preces, a terra em que nasci e aqui, confundido com os homens, nem posso rezar com calma e não passo de um mendigo que nem possui um burel decente para cobrir o corpo. Adeus, abençoai-me e deixai-me partir.

E, tomando o cajado, lá foi, por veredas escusas, caminho do deserto, sem voltar os olhos para a cidade que começava a acordar à luz da madrugada.

O POETA FERIDUN

Foi ao cerrar de uma tarde feliz, à hora, já quieta, em que se calam as cigarras e as águas começam a cantar mais alto, que Feridun, sentado nas ruínas de um antigo templo, compondo enlevadamente uma canção, sentiu a morte avizinhar-se.

Feridun, cujo nome tanta vez retumbara, aclamado por mil bocas, entre as altas penhas de Okhad, o vale da reunião, não tivera na vida outras alegrias senão as dos efêmeros triunfos alcançados sobre os poetas rivais nas lutas da inspiração, celebrando as mulheres do deserto, as lanças dos cavaleiros ou a graça magnífica de Alláh, sempre generoso.

Fora-lhe o amor esquivo, o seu aba era todo andrajos, nunca gozara a delícia mole do repouso em leito macio nem o agasalho em moradia própria, não de luxo, como as dos emires, mas um pobre e acanhado casebre, de adobe e colmo, entre tamareiras, ao pé de uma cisterna ou de uma fonte.

Quantas vezes, com fome e sede, arrepanhando o manto esfarrapado, dormira na erva dos campos, aquecido pela respiração cheirosa das ovelhas! Quanta vez se alugara por uma moeda para servir de guia às caravanas que subiam em direção às fundas cidades do deserto!

Muito era para a sua fortuna mesquinha encontrar, nos oásis, espalhados pelas sombras gratas, os homens armados de uma algára ou uma comitiva de mercadores de bálsamo que, a troco dos seus cantares, lhe matavam a fome com um punhado de tâmaras.

Não havia homem mais desventurado.

Ele compunha as estâncias finais de uma canção que lhe pedira A'ika, moça morena, pastora de gazelas. Compunha enlevadamente as últimas estâncias quando Azrael sombrio pairou sobre ele, abrindo largamente as suas negras asas.

Feridun não pôde concluir o canto, porque a voz se lhe travou na garganta e o seu corpo ali ficou entre as ruínas, sobre as flores das silvas, inerte, esfriando ao orvalho, nos andrajos do aba

O seu espírito demorou-se algum tempo errando em torno da aquele despojo miserável, como uma abelha aflita que esvoaça em volta do panal partido, e errava quando um anjo do Senhor, em voo sereno, como a névoa lenta que desce ao cair da noite sobre as pomas dos outeiros, e, tomando nos braços a alma do poeta, elevou-se com ela, retomando aos ares, caminho do Paraíso.

A viagem durou tanto como dura um sono e a alma de Feridun acordou na corte alta e eterna.

Era uma imensa, radiante, incomparável cidade bem plantada e bem regada. A cor da folhagem das árvores tirava ao puro e refulgente verde das esmeraldas e a areia que forrava e amaciava os caminhos era de ouro e de diamante e faiscava. Fontes irisadas sussurravam e, em fios límpidos e mansos, inúmeros arroios defluíam.

Mulheres, de uma ardente beleza, perfeitas na graça esbelta das formas ondulantes, envoltas em finas gazes, em festiva farândola, dançavam ligeiras sobre os campos floridos e as compridas pontas das suas túnicas leves, alvas, fluidas como neblinas, seguiam-nas desfraldadas, carancolando alegres.

O ar, azulado e tépido, recendia; por toda parte soavam músicas e vozes em harmonioso e encantado concerto.

A alma de Feridun tremia de enlevo ouvindo os reclamos das mulheres que a disputavam, seguindo-a em chusma, mas o anjo sereno num voo mais forte, deixou-as perdidas e chegou aos pés do trono esplêndido em que assistia o Criador de Todo.

A alma de Feridun encolheu-se tomada de terror sagrado, unindo -se muito estreitamente ao anjo como a criancinha assustada que retrai estarrecida e muda no colo maternal.

Então, como se milhares de harpas vibrassem, um largo e suave acorde passou no divino silêncio e a voz de Alláh ressoou, vagarosa e magnífica:

— Feridun, sê bem-vindo. Foste na terra como a flor que perfuma os ares e murcha e morre na tristeza do pântano. Cantaste a natureza, aliviaste as penas dos homens e louvaste, em versos eternos, a minha Perfeição. Nunca desejaste com inveja nem jamais te insurgiste contra a minha equidade — bem dizias o raio do sol e bem dizias o floco de neve. Foste justo, foste puro e honraste o teu Deus. O teu sofrimento foi grande, a tua humilhação foi extrema para que gozasses com mais prazer a glória e as delícias da Bem-aventurança. Contempla e deseja e logo será cumprido o teu desejo.

E a alma de Feridun ergueu-se nos braços do anjo e viu vir, ao desabrido galope de milhares de ginetes claros que levantavam uma poeira luminosa, um glorioso exército à cuja frente, com um pendão hasteado, lindo moço, de nobre figura, vestido de seda e ouro, aclamava Feridun como sheik da hoste.

E a alma do poeta, num êxtase quieto, nem parecia ouvir a estropeada atroante dos ginetes que caracolavam.

Ainda não caíra a poeira rútila que a cavalgada levantara quando rompeu, ao som de músicas, uma admirável teoria de virgens e languidas, rasgando as finas vestes, nuas, prostraram-se ante o anjo impassível. E a alma de Feridun continuava extasiada.

Os ares longínquos abrumavam-se com a chegada de outras imprevistas maravilhas, quando Alláh falou magnânimo:

— Deseja, Feridun, e tudo te será concedido. Tiveste a força que vence e tiveste a beleza que enerva e não tardam outros dons que te destino. Deseja e logo serás atendido.

Então a alma do poeta levantou-se nos braços do anjo e assim falou humildemente:

— Senhor, eu quisera tornar ao corpo que deixei nas ruínas para completar a estância derradeira da canção de amor que a morte interrompeu.

— Queres voltar ao sofrimento! Exclamou o Senhor compadecido. E o poeta respondeu sorrindo:

— Alláh, a canção é bela, há de agradar à Aika e ela sorrirá quando a ouvir nas tendas cantada pelos moços do deserto e eu terei na terra os louvores dos homens.

E a alma de Feridun voltou ao corpo gelado que jazia estendido entre as silvas das ruínas.

A MORTE

Em verdade, irmão Chrispo, o mundo tem os seus regalos. Não há nada mais doce do que sair com a aragem da manhã, quando o céu se vai distinguindo da noite, e passear entre as frescas ervas, sentindo o aroma das rosas e ouvindo os pássaros do Senhor. Eu, que tudo plantei nesta leira, desde a árvore que nos abraça com a sua sombra até as alfaces que nos deram o caldo, tenho por ela tal amor que já me tem levado a cometer crimes bem negros.

Lembro-me de haver passado toda uma manhã de guarda àquela figueira, a sacudir um ramo para afugentar os gulosos passarinhos e ainda cumpro a penitência que me impus por haver esmagado aos pés, com fúria, uma lagarta que me roía as alfaces.

São animais do bom Deus, têm tanto direito à vida como nós e, se vamos ao bosque detorar as árvores para que nos deem lume, se recolhemos a verdura que nasce, se tomamos na celha a água que corre, por que nos havemos de revoltar, com tanta ferocidade, contra os que vivem como nós? Mas a gente apega-se a estas coisas precárias como o avarento ao seu tesouro de moedas. É quase o mesmo pecado.

— Também eu tenho culpas, irmão Honório, culpas e grandes que me fazem tremer. A vinha que plantei no meu terreno cresceu, alastrou com viço tão prodigioso que cheguei a pensar em um milagre, e mais de uma vez, de pura alegria, olhando aqueles sarmentos e aqueles pâmpanos, ajoelhei-me louvando o Senhor que nem esquece a planta na sua misericórdia.

No tempo da carga é um gosto vê-la, toda verde, com os seus cachos piramidais oscilando e vergando a cepa, tão doces que o açúcar se vai cristalizando nos engaços, à medida que o caldo escorre. E as abelhas põem-lhes tal cerco e os passarinhos dão-lhes em cima com tanta gana que eu também, como tu, meu irmão, por mais de uma vez tenho interrompido a oração para sair, aos brados, sacudindo varas, a enxotar os bichinhos.

Mas o que mais me tortura — porque ainda não me julgo limpo de tamanha culpa — é o arranco que tive no ano passado, ano rico, de fartura e de sabor: os melhores frutos que tenho provado neste refúgio e os melhores legumes foram os que ele nos deu.

— Ano de muito pecado, irmão.

— Nesse ano funesto tive eu o primeiro assomo de ira e não estou longe de o atribuir a traças com que o demônio nos arrasta ao pecado.

Estava eu a folhear uns manuscritos que me foram legados pelo beato Ângelo, quando ouvi o piar de um pássaro, lá para os lados da vinha. Logo, assustado, levantei os olhos e descobri o furtador, que saltava por entre as folhas, lépido e cantando. Bradei, um grande brado que atroou. O passarinho bateu asas, assustado. Tornei à leitura, mas o meu espírito estava longe, a rondar a vinha, e, assim, não lhe foi difícil descobrir o esperto passarinho que tornara. De novo bradei, mas as uvas eram tão doces, a folhagem era tão espessa, que o animalzinho lá se deixou ficar. Levantei-me de rebentina, tomei um calhau e, tão desastradamente o lancei, que a ave, colhendo as asas, rolou por entre as folhas e caiu no chão palpitando, com um fio de sangue a escorrer-lhe do biquinho aberto, e ali expirou, a meus olhos. Ah! meu irmão, a dor que eu tive!

À tarde, indo à cisterna, junto à qual há uma grande árvore, ouvi tão triste piar entre os ramos que levantei a cabeça e, guiado pelos queixumes, descobri um ninho e logo um pressentimento disse-me que as avesitas que ali choravam eram filhas da que eu matara. Para convencer-me deixei-me ficar sob a ramada, a ver se chegavam os pais dos pobrezinhos.

Desenrolaram-se no ar calado as névoas finas da tarde, a brisa refrescou e as estrelas nasceram anunciando a noite e, entre os ramos, cresceu, mais aflito, o lamento dos passarinhos. Então, apesar da minha fraqueza, dificilmente e com risco, me fui guindando pelos galhos até que alcancei o ninho e, como se colhe um fruto delicado, assim o desprendi do ramo.

Recolhi com ele — no fundo, entre moles achegas, três implumes piavam, escancaravam os bicos, com os cotos das asas tremendo.

Ai! De mim, irmão Honório... que dor funda me alanceou o coração arrependido! As lágrimas saltaram-me dos olhos, mas pensando em salvar os pobrezinhos que a minha ambição orfanara, corri ao corveiro a ordenhar a cabra e, ajuntando ao leite flor de farinha, fiz uma papa com que fui alimentando os pequenitos.

Durante um mês foi essa a minha penitência e só me senti aliviado quando os vi voando e chilreando, e com que alegria os segui ao vinhal e os vi debicar as moscatéis mais gordas.

Onde andarão eles? Por esses ares, por esses bosques... talvez tecendo um ninho. Nesse tempo, meu irmão, o meu terror era grande — eu só pensava na morte e, cingindo mais fundamente o cilício, e pedindo mais frio e dureza às lages em que me deitava, e minguando, a mais e mais, as minhas rações, eu tremia com a ideia de morrer em pecado e pedia, com ânsia, a vida trabalhosa, não pelo gozo de viver, mas para expurgar-me da culpa infame em que caíra.

Ah! a morte... a morte, meu irmão...! Deus que me perdoe o pensamento, mas como seria bom se recebêssemos um aviso misericordioso prevenindo-nos do dia tremendo. Vagarosamente nos iríamos preparando, para o transe, com orações e jejuns, catando da alma uma a uma, todas as culpas, apagando todos os pensamentos maus e, com o espírito puro e leve, bem sacudido dos pecados, deixaríamos tranquilamente o mundo, como quem se apercebe para uma longa, difícil e arriscada jornada, dispondo tudo com segurança, acautelando-se contra todas as surpresas do tempo e dos caminhos agrestes e mal corridos, para vencer a fome e a sede, os sóis e as neves, as feras e os assaltos dos assassinos.

— Sim, seria, talvez, melhor do que é, mas não comentemos a ordem que Deus pôs no mundo: Ele, que assim pensou e decidiu, foi porque assim lhe pareceu que estava bem. Chrispo, porém, calando um pensamento, meneou a cabeça toda branca, suspirando como a desoprimir-se.

Já a tarde esfriava nublada quando ele tomou o cajado e partiu.

A sua cabana ficava à meia encosta de um outeirinho, dentro de um airoso bosque de palmeiras que uma fresca fonte alegrava. Honório, de tempos a tempos, ia até lá cima resolver alguma dúvida teológica, esclarecer um ponto dos sagrados livros, ou algum dos anacoretas que descera aos mosteiros, de volta às suas solidões, surpreendido pela noite, temerosa em tão ermas paragens, batia à cancela pedindo guarida.

Ia o eremita embebido na beleza da paisagem quieta e toda dourada pelos últimos clarões do sol, louvando intimamente o Senhor, que sempre punha um novo encanto na terra e no céu, àquela hora de melancolia, quando, já no caminho da cabana, pisando as folhas que forravam a trilha solitária, avistou um mancebo airoso, de rara beleza, que jazia sentado em uma pedra musgosa.

Um pássaro cantava de ramo a ramo e a aguazinha da fonte, derivando em córrego, viva e alegre, fugia, com um murmúrio de falas cochichadas, por entre as ervas finas, que se inclinavam, como para ouvi-la.

Chrispo parou um momento, enleado, admirando o estrangeiro, tão entretido a ouvir o canto do passarinho, que não lhe sentira o rumor dos passos na seca e acamada folhagem, que estralejava como ramalho ao fogo.

De olhos fitos e todo arrepiado de emoção, o solitário ficou como de pedra ao descobrir as grandes asas que o peregrino colhera, como para ocultar a sua natureza etérea, e lembrou-se da idade de plena graça, das terras abençoadas do país caldeu, quando, às ultimas luzes da tarde, os pastores sentados à beira das tendas, calavam-se, tomados de espanto, vendo pousar no cimo dos outeiros entre as ovelhas deitadas, moços alados, que traziam mensagens do céu aos patriarcas. Então, com imensa e devota humildade, Chrispo inclinou-se e murmurou de mãos postas:

— Bendito seja sempre o santo nome de Deus. E o anjo, voltando-se e iluminando-o com o olhar, mais azul e mais claro do que o céu de verão, saudou-o docemente:

— Seja a paz do Senhor contigo, Chrispo.

Chrispo ficou tolhido de vexame, sentindo toda e sua miséria: a nudez da cabana, a dureza do catre de palha e ripas, o grosseiro cânhamo dos lençois, tão ásperos como as urzes que os sóis ressecam nos cerros. Mas o anjo, como se lesse no seu pensamento, a pretexto da friagem da tarde e da fome que trazia, pediu-lhe agasalho e ceia, e adiantando-se graciosamente para a horta, ele mesmo colheu as alfaces mais tenras, refrescou-as na fonte, e encaminhou-se para a cabana. Seguiu-o o eremita e, em poucos minutos, ardia um fogo alegre e o caldeirão fumegava com um referver gorgolejante.

A lua subia, grande e pálida, e, de longe, dos areais desertos, vinha o rebusno dos onagros que cabriolavam.

Depois da ceia, que foi lauta — duas vezes o anjo estendeu a escudela reclamando nova ração de legumes — Chrispo, pondo-se de joelhos, agradeceu a graça magnífica daquela visita e o anjo disse-lhe com serenidade:

— E há que agradecer. Não foi sem motivo que vim ao teu eremitério amável: trago-te um recado de Deus e consiste em dizer-te, para tua satisfação, que tens um ano justo de vida.

— Não há meia hora ainda que pensei em tal...

— Há meia hora que te espero, sentado sob os ramos da cerejeira, ouvindo cantar um pássaro e vendo correr, por entre as ervas, a água clara da fonte. De hoje a um ano, nesta mesma hora da tarde, passarás da vida à morte, sem agonia e sem pecado se te mantiveres em graça diante de Deus.

— Ai! de mim, suspirou o eremita, rojando-se com a face na terra, aos pés do anjo. Ai! de mim, que tão pouco tenho feito e tanto recebo de Deus em misericórdias, disse; e as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e, chorando clamava contra os gozos que ainda fruía: aquelas árvores que lhe acenavam com os ramos fartos, aquelas águas tão puras, aquele asilo de tanto conforto e, ainda um leito de ramos cheirosos, quando havia pobres, famintos e maltrapilhos que, no rigor das neves, nem achavam um palheiro onde se escondessem.

Clamava em vozes altas, quando ouviu um forte bater de asas — levantou a cabeça: a cabana estava deserta. Correu à porta, ergueu os olhos e viu, entre as radiantes estrelas, um clarão que fugia aladamente, resplandecendo.

Nessa mesma noite Chrispo, que sempre rezava um longo rosário, mais de uma vez reteve as contas entre os dedos, a pensar nas palavras do anjo. “Ao cabo de um ano, àquela hora quieta, ele ali estaria hirto, estirado no chão...” E olhava a sua sombra estendida na terra a tremer com o tremor da lâmpada, como se a ideia de morte também lhe causasse pavor. E ele, que tinha as carnes vincadas das flagelações, que passava magramente a ervas cozidas, que dormia em duro grabato, que tiritava de frio, só; ele que nunca conhecera o gozo, sentia saudade da vida e das dores e até do medo que, muitas vezes, noite alta, o tolhia quando, no zoar do vento, passavam rugidos de feras ou, em torno da frágil cabana, animais galopavam surdamente ou detinham-se bufando na soleira, arranhando a porta, que ringia.

Não pôde conciliar o sono. Saiu ao horto, calcado a luar alvo e nunca lhe pareceu de tanta beleza aquele retiro. E que lindo era o céu e que aroma nos ares puros! Ficou-se a pensar no recado divino.

Era preciso forrar-se contra as tentações, preparar-se para o transe, pôr-se em virtude perfeita e cuidando, imaginando, sem sentir as horas, atravessava semanas esquecendo penitências e orações, errando pelos caminhos, parando atônito à sombra das árvores, contando os dias, marcando-os em entalhes fundos nos troncos das árvores, com os seixos das fontes e com folhas secas que ia pregando pelas paredes. E os dias passavam: as penitências acumulavam-se tão adiadas iam ficando e o horto, abandonado, cobria-se de ervas daninhas.

Uma manhã, em grande desespero, desceu à choça de Honório: encontrou-o tranquilo, a cantar, limpando a acéquia da sua horta. Logo ao dar com ele — tão demudado estava — Honório estremeceu. O aspecto de Chrispo era o de um energúmeno: os olhos queimavam de incendidos, rugas fundas sulcavam-lhe a fronte e as faces, um tremor sacudia-lhe todo o corpo esquelético.

— Que aflição assim vos transformou, irmão? indagou em sobressalto o manso eremita. Chrispo deixou-se cair em um banco rústico e grossas lágrimas subiram-lhe em borbotões aos olhos e foi por entre lágrimas que ele narrou o caso daquela tarde de beleza e doçura — a visita do anjo portador do recado divino.

Ah! os cuidados em que, desde então, andava: só a pensar naquele momento espantoso que vinha tão perto e que ele esperava, impotente como um crucificado que visse vir nos ares, faminto, um abutre de arremetida cruel ao seu corpo indefeso.

Todo o seu pensamento se fixava na morte: tudo esquecera: a erva crescia avassalando a cultura, a água da fonte, dantes límpida e corrente, rebalsava-se em atascadeiros cobertos de folhas que apodreciam e a sua alma ia-se também tornando como o campo, bravia e agreste, porque não rezava, não lia, nem mais exercitava as penitências, tão regulares antigamente. “É que eu sei o dia da minha morte e isso, irmão, tolhe-me para tudo mais...”

— Que vos disse eu, irmão Chrispo? Quiseste entrar nos arcanos de Deus e ele vô-los mostrou. Tudo está bem como está — não queiramos andar adiante dos minutos, contentemo-nos com os horizontes porque até lá chegam os nossos olhos, não varejemos o que se nos oculta. Eu sou feliz e sei eu, por acaso, se ouvirei, até o fim, o canto desta cigarra que nos alegra? não sei. E morreria docemente com a impressão de o ter ouvido. O melhor da vida é o mistério e o único bem da morte é o imprevisto. Tendes o segredo de Deus, fazei-vos agora digno do seu perdão porque, a meu ver, pecaste iniquamente. E é tudo quanto vos posso dizer.

— É tudo!

— É tudo. Chrispo inclinou a cabeça e ficou pensativo a arquejar tão ansiadamente que o burel zimbrava-lhe no seu peito cavado.

Era o tempo em que os ninhos despedem as novas gerações e, por todos os ramos, vozes ensaiavam-se em pios respondendo aos reclamos gazis que nas frondes altas trinavam.

Chrispo encaminhou-se vagarosamente para a cancela, abrio-a, saiu ao caminho e foi-se, sem voltar a cabeça, desaparecendo na estrada de saibro, que ardia e faiscava ao sol àquela hora abrasada do meio dia.

Honório sentiu, então, uma intensa piedade pelo companheiro e, ajoelhando-se na terra fofa, preparada para a sementeira, ficou até tarde, orando ao Senhor para que preservasse aquele espírito de tão entranhada angústia e, durante longos dias e noites seguidas, todas as suas orações foram em favor do solitário.

Ao dealbar de uma manhã luminosa, Honório descia à ribeira quando viu uma nuvem de abutres voejando na direção do palmar airoso que encerrava a cabana de Chrispo e um pensamento de morte toldou-lhe o espírito. Sem demorar um minuto endireitou para o outeiro a passos apressados.

Logo ao passar a cancela travou-se-lhe o coração de pena ao ver tão aceitoso retiro transformado em intenso matagal e a casa palhiça aberta, em abandono, com erva a cobrir a soleira seca e no colmo, das asas espalmadas, abutres gozando o sol.

Bradou pelo eremita. Três vezes os ecos atroaram. Então, resolvido, passou o limiar e logo os seus olhos, já úmidos, fitaram a parede onde se enfileiravam folhas secas espetadas no adobe com espinhos agudos e, contando-as, achou noventa e cinco que tantos tinham sido os dias atormentados do míserando.

De novo bradou o nome de Chrispo e, sem resposta, saiu a procurá-lo. Correu a horta onde os legumes mirravam, passou ao pomar que o córrego, transbordando, transformara em paul e, ao fundo, pendente do galho de uma árvore, viu o corpo do eremita oscilando, com abutres pousados sobre os ombros atassalhados, o burel roto, o rosto em caveira, os ossos nodosos das mãos e dos pés amarelando ao sol.

O desespero levara-o a precipitar a morte, a adiantar-se ao destino e Honório, sem conter o pranto, ajoelhou-se rezando pelo companheiro e até à tarde ali esteve e à noite, com o luar, cavou uma sepultura e deitou o cadáver. Então, fechando a cabana, desceu vagarosamente, caminho do eremitério, repassando em silêncio as contas do seu rosário, a ouvir as vozes agourentas das aves que voavam dentro da noite e o rebusno dos onagros nos areais do deserto.

DEUSES

I

Quando o sacerdote acendeu, com a centelha solar, o lume da ara, vibraram, em doce acento, as liras às mãos dos mistas e o povo, em atropelado tumulto, vendo o esplendor da chama refletido em rebrilhos róseos nas paredes de finos mármores polidos, entoou o hino heroico, glorificando o deus radiante, regulador da vida e dispensador equitativo da Justiça e dos bens.

Todas as almas voltaram-se ao altar augusto, onde resplandecia a imagem perfeita do divino Ephebo; só um velho, nascido nos remotos confins das terras asiáticas, à beira de um grande rio, pasmou daquele culto estranho, não compreendendo que as orações passassem além do lume vivo que ardia e coruscava irrequieto, lampejante e alegre como a própria alma que reina nos corações, centelha do sol divino que fulgura no céu.

“Pois é crível que o deus dos nossos ancestrais, a viva e loura imagem de Indra, o lume superior e eterno, fique reduzido à triste condição de servo, prestando-se a glorificar um novo deus?

Que faz aquela figura impassível que semelha um adolescente? que faz naquela rígida imobilidade, para que assim a honrem e venerem?

O lume rebrilha e ilumina, o lume aquece e vivifica— manifesta-se visível, sensivelmente — é Agni, a hipóstase de Indra, e há de ser o serviçal humilde da figura de pedra? É então assim que se respeitam as crenças?

Não foi o lume que nos veio guiando através das solidões nunca trilhadas, afugentando as feras, desvendando os horizontes até as terras fecundas em que espalhamos os nossos rebanhos, levantamos as nossas cabanas de peles, sulcamos o solo, abrindo o leito para a sementeira? Não foi o lume que nos deu a vitória sobre as gentes grosseiras e cruéis das cavernas? Não foi ele que nos iluminou a derrota nos mares e não é ele ainda que nos aquece quando as névoas se condensam e caem em flocos, que desfolham as árvores e tornam os caminhos lívidos? Por que hão de os homens ingratos humilhá-lo, fazendo do vivo deus terreal o escravo de uma imagem morta? É isto a nova religião? É esta a nova crença? Eis porque os sofrimentos recrescem. E como não querem os homens ingratos que a peste os dizime e as secas lhes façam mirrar a sementeira se desadoram o deus verdadeiro e curvam-se diante da figura de um homem?

E o velho arya, sacudindo as abarcas, deixou o templo onde, no fervor do culto, todas as liras soavam acompanhando gloriosamente o parar glorioso.

II

Napéias e egipãs cornígeros fugiram, as úmidas ninfas mergulharam nos rios ou esconderam-se, pálidas, entre os juncais das fontes e as hamadríadas tremeram dentro dos grandes cedros quando viram aparecer na floresta os homens fortes, derrubadores de árvores.

Zéfiro, como se também se arreceasse, foi escapando aligeiro e as frondes ficaram imóveis, cessou de todo o ruído, nem mesmo os insetos ousaram esvoaçar brincando nos raios de sol que cindiam a folhagem.

Raro em raro, no recesso mais fundo, as versas farfalhavam sob os ligeiros passos de algum fauno arisco, ou as águas borbulhavam ao mergulho de uma náiade assustada, e os homens caminhavam lentamente, cabeça alta, olhando, examinando as árvores, discutindo e, de tronco a tronco, passavam comentários tímidos das ninfas:

“São lenhadores: trazem o machado mortal. Vão, talvez, edificar uma nova cidade, talvez erigir um novo templo e querem-nos para as construções. Vamos deixar a nossa folhagem — nunca mais nos toucaremos de flores e, mortas, longe da terra nativa, ficaremos apertadas entre pedra e argamassa. Mas quem sabe? Talvez não seja para edifícios! O inverno aí vem: os ventos sopram bravios, as noites toldam-se de brumas que gelam. É, sem dúvida, para lume que nos querem. Ai! De nós, dentro em pouco não seremos mais que cinzas dispersas”.

E os homens olhavam, examinavam as árvores, palpavam-nas e, dentro delas, estarrecidas, as hamadríadas tremiam. Um, que parecia ser o chefe, disse, por fim, aos companheiros, parando junto de um grande cedro:

— Esta parece-me uma árvore magnífica, o artista há de ficar contente. E todos concordaram.

Então os homens cercaram o grande cedro e, despindo os melotes, que penduraram aos ramos, empunharam os machados.

Aos primeiros golpes todo o bosque atroou lamentosamente e as divindades, espavoridas, abalsaram-se. Em manejos regulares, iam os machados vincando o tronco rijo. Cansaram, porém, os homens e, sentando-se, puseram-se a conversar.

— Se o artista for hábil, a Vênus Urania que sair deste cedro será a mais bela das deusas, disse um.

— O tronco é admirável, acrescentou outro.

— E perfeito, concluiu o chefe. Então, de árvore a árvore por toda a floresta, correu um sussurro alegre: “É para fazer uma deusa. É para fazer uma deusa”. E as hamadríadas disseram:

“Vai ficar num altar e terá culto. Queimar-lhe-ão resinas aromáticas e as sacerdotisas velarão para que se mantenha sempre acesa a sua lâmpada de óleo fino. Se é para tirar uma Vênus, não virão ferir-nos os machados, porque um só tronco basta”.

De novo tornaram os derrubadores à faina, com mais alento, cantando.

Súbito o tronco, oscilou. Os homens recuaram, espalhando-se, e o grande cedro, talhado, começou a pender estalejando. Com a sua folhagem ia arrasando as franças das outras árvores, escorchava-lhes, de raspão, os troncos e, fragorosamente, talando galhos, esmagando arbustos, estendeu-se no solo. Ficou no seu lugar uma grande aberta, logo invadida pelo sol glorioso.

Então os homens acudiram e começaram a detorar as ramagens do cedro, deixando o tronco liso para que, na manhã seguinte, o fossem buscar com os possantes bois do serviço do templo. E partiram.

Recaindo o silêncio, desceram do fundo do bosque os egipãs, as náiades emergiram das águas, as hamadríadas deixaram o âmago das árvores e todos, cercando o tronco derrubado, contemplavam-no com piedade, quando uma dríade falou:

—Já que ela vai ser deusa, a loura hamadríada do cedro, peçamos-lhe que nos proteja. Que na sua glória augusta, não esqueça as suas pobres irmãs da floresta. E todas as divindades ajoelharam-se à volta do tronco, que se esvaía, clamando: “Sê por nós, Vênus excelsa!”.

Então a hamadríada, que agonizava no cedro, falou sumidamente às suas irmãs da floresta:

“É para um templo que me vão levar, um templo de fino mármore, com relevos de ouro. Vou ser deusa. Virão a mim, humilhados, os príncipes dos homens e gentes de todos os países com oferendas preciosas. Nos dias solenes sairei entre hierofantes e sacerdotisas, e o povo, de joelhos, fará alas respeitosas à minha lenta passagem.

Na pedra límpida do meu altar propiciatório palpitarão pombas alvas feridas pelo cutelo áureo das sacrificadoras e serei na terra a imagem da grande Vênus.

Quando as tempestades vos estorcerem, quando o raio de Zeus fender os vossos corpos e as enxurradas cavarem a terra expondo as vossas raízes, eu, agasalhada e venerada no adito do templo, ouvirei os hinos entoados ao som das liras e das flautas lídias. Eu sou a Vênus celeste, a imortal Urania”.

Um velho egipã, que se achegara ao cedro, sorriu ouvindo a voz enfraquecida da hamadríada e disse às divindades prosternadas:

— Por que haveis de pedir proteção a quem a não pode dar? Invejais, talvez, o seu destino... pobre dela! É melhor ser árvore viva na floresta do que tronco seco no altar. Ela vai ter os perfumes, os cantos, as oblações e as homenagens dos homens... Deixai-a ir, a Vênus Urania. Eu prefiro a minha caverna forrada de fetos ao templo de mármore que lhe destinam e, quando os raios estalarem eu, a tremer de medo, louvarei a vida, pensando nos dias tépidos e claros. À vida, ainda a tiritar de frio, eu a prefiro a todas as glórias num templo, depois da morte.

—Não vale a pena ser deusa por tal preço. Antes ser árvore e lutar com a fúria do vendaval, disse uma hamadríada.

—E eu prefiro as águas do meu rio, ainda assoberbadas pelo inverno, disse uma náiade. E todas as divindades florestais, ao raiar da alvorada, cantaram louvando a vida. Só a hamadríada do cedro, que devia dar o divino corpo de Urania, deusa vitoriosa e imortal, não teve voz para cantar, apenas pôde dizer febrilmente: “Não há grandeza sem martírio. Até para ser deus é preciso sofrer...” E, assim dizendo, expirou.

III

No antigo templo, sagrado pelos tristonhos padres nazarenos, cujo “naos” fora transformado em capela cristãs, fulguravam círios pálidos aos lados da imagem de um Cristo macilento, lívido e sangrando, a cabeça pendida, os cabelos colados à fronte e às têmporas cavadas, a boca retorcida e aberta no aflitivo hiato da agonia, estampado na cruz em que luziam os cravos de ferro e no topo, em placa argêntea, revolta, a irônica legenda.

Era noite.

No bosque que encerrava o santuário olímpico onde, outrora, os peregrinos, que vinham consultar o oráculo, levantavam as suas tendas alvas, só a água de uma fonte, em lento minar, chorava e, por vezes, a uma lufada do vento, os loureiros farfalhavam.

A voz rascante da estrige de Palas rilhou no espaço adormecido. Desabotoavam as açucenas e todo o ar era um suave perfume.

A estátua de Apolo, em mármore, que os padres haviam atirado, com desprezo, entre as ervas altas, levantou-se, branca e luminosa, de uma beleza toda feminina, como uma náiade que saísse do seu juncal ribeirinho e, com serenidade majestosa, caminhou lentamente para o templo.

Atravessou o peristilo deserto, entrou no pronaos onde os seus passos de pedra ressoaram e, chegando ao naos, contemplou, com tristeza, a nudez do recinto. As colunas tinham sido despidas das decorações preciosas: as armas luzentes, os côncavos escudos de ouro, os panos atálicos que rebrilhavam. As mesas votivas, dantes sobrecarregadas de oferendas, estavam vazias e descobertas, como se por ali houvesse passado uma horda sacrílega e rapace.

O deus caminhou mais alguns passos e, erguendo os olhos claros, fitou a imagem imota do seu adversário vitorioso, o nazareno, que lembrava Marsyas amarrado à árvore afrontosa; e sorriu:

— És tú, então, o deus novo dos homens? tú, um cadáver! Que fizeste na vida, se viveste, para que assim te adorem quando já não és mais que um corpo inerte? Que novos prazeres ensinaste às gentes insaciáveis de gozo? Fala, dize: que fizeste para que os homens volúveis vivam a cercar o teu calvário de luzes?

Vozes soturnas soaram no episthódomo transformado em claustro e Apolo, prestando atenção ao coro melancólico, nele pôde apenas distinguir a palavra “Misericórdia”, misteriosa palavra bem soante que, pela primeira vez, chegava aos seus ouvidos. “Deve ser o nome do deus morto” — murmurou.

As vozes aproximavam-se e Apolo falou para a imagem da agonia:

— Cadáver, que outro nume virá depois de ti ao altar de que me apearam? Talvez o tirem da mesma pedreira a que me foram buscar se o não fizerem com a madeira cruel da mesma árvore que deu o poste do teu suplício. Misericórdia é o teu nome. Eu chamei-me Esplendor e por mim vieram as Artes ao mundo. Morto, és mais feliz do que eu: não sofrerás, como eu sofro, no dia em que te desprezarem. És um corpo apagado, eu era a própria Vida. E que pode trazer um morto? Calou-se, escondendo-se na sombra porque apareceram, ao fundo, saindo do antigo episthódomo, em duas filas lentas, os negros monges psalmodiando.

IV

Nunca mais pudera esquecer o sinistro espetáculo tinha-o constantemente ante os olhos: aquele outeiro maldito onde não vingava erva, assombrado pela forca senhorial, sempre com um cadáver a oscilar ao vento, mirrando ao sol ou desventrado pelos corvos que enegreciam o sítio esvoaçando com um lúgubre crocito, tão alto que se ouvia no burgo, onde, às lufadas da brisa tépida, chegava o cheiro asqueroso dos mortos que apodreciam.

Lá o vira, uma noite, a ele, o marido, hirto, estirando uma sombra imensa na claridade fria do luar.

Que crime cometera o mísero? fora justiçado por ser pobre e não poder, em tempo, entrar com o dízimo exigido pelo senhor.

A sua terra, com o trigal dourado, fora confiscada. Expulsa, sob ameaça de martírio e morte, andara toda uma noite sem destino, faminta, com o filho a chorar. Fora aos mosteiros vendo-os alumiados e ouvindo grandes vozes alegres — batera debalde.

Ao nascer do sol internara-se no bosque receando os lascivos homens de armas que violavam crianças, deixando-as mortas nos fossos, com um punhal na gorja e temendo os religiosos que viam nos laivos da miséria estigmas denunciadores de vigílias infames e ela, que passava as noites sem lume em cavernas geladas, dando o pouco calor que conservava ao corpinho esquelético do filho, devia ter as feições desfiguradas.

Só uma mulher, uma boa mulher a buscava sem nojo, levando-lhe alimentos e ervas maceradas que faziam dormir o pequenito. Diziam-na feiticeira, pactuada com o demônio — era, entanto, mais caridosa que os santos homens da religião, aquela feia bruxa andrajosa.

Na noite triste em que lhe morreu o filho só ela fora velar o cadáver. Acendera um fogo e, enquanto o vento soluçava nos ramos e os mochos esvoaçavam, ela falara do sabbat em torno do outeiro lúgubre dos enforcados e falara de Satã, patrono dos infelizes.

Não eram os bruxos que sepultavam, à noite, os corpos dos justiçados? não eram eles, os satânicos, que conheciam as ervas sedativas? não eram eles que esterilizavam os ventres para que não crescesse a miséria e a dor não fosse maior nas casas com o choro das crianças nuas e famintas? não eram eles que vingavam os vilões nos filhos dos senhores? não eram eles que pregavam a revolta?

Se o Deus confinado nas igrejas só se mostrava e atendia aos ricos por que haviam os pobres de o venerar? E o fogo? Os padres anunciavam as chamas infernais, mas não viviam eles a atiçar fogueiras em que bradavam, rechinando, tantas vítimas inocentes? O inferno não podia ser mais tormentoso do que era o burgo feudal.

Por que não havia de seguir a boa mulher? Quem daria por ela nos caminhos escusos?

As corujas chalravam no ar e os sapos coaxavam nos paúes. O sino do mosteiro dobrava no silêncio trágico.

“Vamos! Não ouves o rumor que o vento traz de longe? é o protesto dos padecentes, é o bramar dos vilões. Satã é forte e liberta. Tens fome? lá acharás alimento. Tens frio? lá acharás a fogueira feita com vigas de forcas e cepos manchados de sangue que serviram para execuções, no ergástulo do castelo. Vamos! aprenderás a vingar-te dos homens e do mesmo Deus que nos abandona. Vamos! a lua começa a declinar”.

E de pé, com os olhos lampejando, já à entrada da caverna, a bruxa estendeu o braço magro mostrando o céu ao longe, avermelhado, como ao primeiro luzir da alva. “Olha! é o clarão da fogueira do sabbat. É a alvorada da liberdade. Deixa o teu filho morto, enterrá-lo-emos à volta”.

Já desvairada, em delírio energúmeno, a feiticeira apressava a infeliz:

“Abracax! Abracax! Avia-te, mulher. Se tens breves e nominas lança-os longe de ti. Só há um deus para os pobres... é ele!”.

A mísera, fanatizada, arrancou do pescoço a penca, de amuletos, atirou-a às urzes mas, lá no fundo do peito esquálido, como se todas as relíquias e rezas se houvessem nele entranhado, o coração pôs-se a repetir as preces desprezadas e a bradar pelo Deus renegado, tremendo como um condenado diante do patíbulo.

— Vamos! não te demores mais. Já começa a soprar a brisa da manhã.

Mas o galo cantou no silêncio e, por entre o arvoredo, começou o farfalho ligeiro dos passos dos bruxos que recolhiam.

— Covarde! regougou a feiticeira com asco, fica-te com a tua covardia servil! E a mulher, pálida, hirta de espanto, quedou como encravada no fundo da caverna, mas ao primeiro raio de sol, ouvindo os passarinhos, saiu a bater as urzes catando os seus amuletos e, à medida que os ia achando, molhados de orvalho, beijava-os, guardava-os no seio como para acalmar o coração medroso.

V

Ferrando, à pressa, as largas velas do barco e acenando de longe festivamente, os pescadores procuravam dar a perceber aos de terra um grande e novo acontecimento.

As mulheres afluíram à praia em turba e, mal os marujos poiaram, logo se viram cercados e num alvoroço ansioso de vozes que interrogavam.

Um deles narrou, então, a pesca milagrosa que haviam feito:

—Era quase manhã quando, ao retirarem a rede, sentiram tamanho peso e resistência que recearam que se ela houvesse emaranhado nas arestas dos baixios, mas unindo corajosamente todas as forças, conseguiram içá-la e dentro, envolta em sargaço, arrugada de mariscos, viram, rolando nas malhas, entre o peixe vivo que saltava assustado, uma imagem de pedra.

Então, abeirando-se do barco, mostrou a imagem que jazia deitada sobre um rolo de cabos e na praia, homens e mulheres, ajoelharam-se devotamente venerando aquela que foi logo apelidada a Senhora do Mar.

Espalhada a boa nova resolveu-se formar um cortejo que acompanhasse à ermida a santa das águas.

A tarde dourava os montes e as gaivotas voavam alegres acima das águas lisas quando o sino soou vivamente e o povaréu, cantando, lá se foi, encosta arriba — à frente os pescadores, levando aos ombros, em andas grosseiras, a esverdeada e repuída imagem.

O cura, um velhinho, simples como as suas ovelhas, saiu, comovido, ao limiar do templo e, vendo a imagem e ouvindo o doce cântico com que a levavam, marejaram-se-lhe os olhos de puras lágrimas.

Foi a santa colocada no altar, entre Jesus e Maria, e o cura determinou que todos os anos se celebrasse uma festa comemorando o acontecimento feliz. Assim se fez e foram tantos e tão seguidos os milagres que, em pouco, a ermida, que era do Senhor do Martírio, passou a ser chamada da Senhora do Mar.

Vinham de longe, de outras aldeias da costa, barcos em romagem trazer promessas de náufragos e, não raro, subiam o outeiro bandos de pescadores levando andainas e palamentas e muitos, referindo o milagre, afirmara ter visto a mesma imagem pairando sobre as vagas que logo se amansavam.

Uma manhã, depois da missa, um homem — que era um sábio e andava a visitar as terras da antiguidade — pediu para falar ao cura. O velhinho recebeu-o com muita lhaneza e, dizendo-lhe o hóspede que desejava ver de perto a imagem milagrosa, ele o levou ao altar. Logo que o sábio avistou a escultura saltou-lhe dos lábios, numa exclamação, o nome: Demeter! e ficou imóvel, a olhar, a examinar e o cura regozijava com a exaltação e o êxtase devoto de tão nobre senhor.

— Dizeis, então, que esta é ...?

— A Senhora do Mar, que acalma as tempestades, e salva os que se perdem nas ondas bravas disse, com a sua voz tremendo, o suave velhinho.

O sábio fitou-o como se quisesse ler bem fundo na alma do simples e, como só encontrasse sinceridade e fé, encolheu os ombros e ficou em silêncio.

Chegava um grande e alegre bando de mulheres, esposas e filhas de marujos que traziam flores e vinham agradecer à Senhora os dias límpidos e as brisas prósperas que iam levando os barcos serenamente. Ajoelharam-se entoando em coro o cântico amoroso.

O cura afastou-se pé ante pé e o sábio, diante daquela cena meiga, compreendeu a Beleza e a Grandeza da Fé e, retirando-se, a gozar a melodia religiosa de tantas vozes delicadas, murmurou:

— Senhora do Mar ou Demeter, que importa! são todas a mesma Fé. Todos os altares são degraus da mesma escada que leva ao céu. Senhora do Mar ou Demeter... Qual delas será a verdadeira? ...

E o cura, ouvindo-o murmurar, sorria satisfeito imaginando, sem dúvida, que ele rezava à santa.

A VERDADE

Assegurando-se de que o aprisco ficara bem fechado com a sua rija tranca, o velho pastor tomou o cajado, cobriu-se com o melote e, vagarosamente, cantarolando, cantarolando baixinho, como se não quisesse interromper o sono das árvores, tomou o atalho que levava mais ligeiramente à planície por entre fraguedos negros e altos carvalhos ramalhosos.

A lua, muito alva e redonda, alumiava toda a montanha: a sua claridade era um fino véu diáfano que se estendia por toda a agrura. Entre os ramos piavam pássaros e a brisa respirava tão branda que as folhas buliam apenas com um reluzir de laminas de prata.

O pastor caminhava precedido pela própria sombra. Ia a pensar no passado.

Tudo na serra conservava a antiga beleza — as árvores pareciam mais verdes, as fontes mais copiosas, cantando com mais alegria, só ele envelhecera e começava a sentir a aspereza dos caminhos e o rigor dos invernos.

Ah! o bom tempo de antanho! Que era uma rampa para quem galgava penedias e saltava, como os cervos, as torrentes fragorosas? Que era uma noite de neve para quem afrontava tempestades para ficar até a madrugada num palheiro, ao lado de certa zagala formosa? Bom tempo!

Lá ia o pastor pela poeira antiga dos mesmos caminhos da mocidade morta. Lá ia pensando, quando ouviu uma voz que cantava no bosque. Deteve-se a escutar.

Quem cantaria a horas tais em sítio tão deserto? Os pastores já estavam recolhidos nos seus tugúrios. Quem seria?

A voz era meiga, de um timbre delicado: “voz de mulher”, pensou o pastor. E, resolutamente, embrenhou-se no bosque.

Caminhou guiando-se sempre pela voz maviosa e, ao clarão do luar, descobriu, sentada à borda de uma cisterna, uma linda rapariga. Nua, cantava penteando os cabelos e o seu corpo de neve alvejava ao luar.

O velho pastor deteve-se à distância em êxtase. Nunca vira beleza tão pura e logo suspeitou que se achava em presença de uma oreada, talvez da própria Artêmis que encantara o pastor Endymião.

Ousadamente adiantou-se afastando os ramos e, ao rumor dos seus passos, a moça voltou à cabeça.

Não pareceu perturbar-se, não fez movimento algum de assustado pudor para esconder o lindo corpo nu e, penteando os cabelos finos, continuou a cantar na claridade esplêndida que a envolvia.

Perguntou-lhe o pastor:

— Quem és? Que fazes tão só e nua nesta floresta triste onde nem faunos aparecem? A moça voltou-se e o pastor ficou deslumbrado com o esplendor dos seus olhos.

— Sou a Verdade, disse. Vim refugiar-me na solidão da floresta porque fui banida dos grandes centros. A minha nudez escandaliza, a minha palavra revolta, porque é límpida como as águas límpidas que só refletem o real. Andei de terra em terra: dos paços repeliam-me, enxotavam-me das cabanas. Mal eu abria a boca para falar logo me impunham silêncio e, a pretexto de me agasalharem, cobriam-me com os pesados estofos da conveniência e da polidez. Os poucos que me quiseram seguir sofreram o martírio. Fui corrida à pedrada e, refugiando-me em cavernas, os cães farejavam o meu rastro denunciando-me aos homens. Foi então que resolvi habitar a floresta.

— E de que vives?

— Do esplendor. A luz é o meu sustento e eu refuljo. Sou a profetisa dos deuses. Os meus oráculos projetam-se no futuro. Não conheço a sombra: a luz do meu olhar é mais rutilante que o sol.

— Que fazes?

— Ilumino e guio. Aos que me procuram mostro todas as profundidades, descubro todos os arcanos. Sou como a frecha que rompe a ilusão.

Quando me afasto de um ponto nele se instalam a Utopia, a Intriga, o Fanatismo e a Lisonja e estendem-se todos os fios da teia dessa aranha — a Mentira. Nunca me ouviste falar? Queres ouvir-me?

— Fala! Fala do meu amor, do meu amor que é morto. A Verdade sorriu.

— O teu amor foi um sonho. Tu viveste de uma ilusão. Tua amada traia-te.

— Mentes, disse o pastor. E a aparição continuou tranquila.

— Não a conheci. Sempre que ela jurava eu tinha de recuar atropelada pelas falsidades. Nunca senti o perfume da boca da tua amada. Era a própria perfídia.

— Mentes! Insistiu o pastor. Dize-me a cor dos seus cabelos.

— Louros. O pastor sorriu triunfante, clamando:

— Negros! Tinha os cabelos negros.

— Porque os pintava.

— O seu nome?

— Chloris.

— Ainda mentes! Em todas as árvores, em todas as rochas há o seu nome gravado por mim. Aí mesmo, na borda dessa cisterna, vê-lo-ás, se quiseres: Lycia.

— Chloris era o seu nome como a sua pátria era Mytilena. Dizia-se de Athenas e dava o nome de Lycia para esconder a sua origem e velar o seu passado. Antes de a conheceres zagala outros a viram em estrangulos, nua, vendendo beijos.

— Mentes! bradou o pastor, investindo furioso. E a aparição continuou tranquila.

— Tinha um sinal na espádua.

— Um lindo sinal que, por modéstia e pudor, sempre escondia. Era ali que os meus beijos se juntavam quando deixavam a boca onde vivia o meu nome.

— Era o estigma da escrava: Chloris foi mulher de mercado.

— Mentes! a aparição sorria.

No seu coração nenhum amor deixou rastro — era como as águas do mar que se fecham, mal as quilhas das fundas naves por elas deslizam. Nunca te amou nem jamais conheceu o amor. Queres ouvi-la? Chama-a, invoca-a: o seu coração deu asas a uma borboleta noturna que anda a errar pelo bosque. Chama-a! E o pastor, alucinado, bradou o nome suave: “Lycia!”

As folhas pálidas tremeram e no fundo da brenha os egipãs gargalharam. Ouves! são os capros que riem de ti.

— Mentes! Mentes! Fitou os olhos na formosa virgem, e, repentinamente empurrando-a, fê-la rolar no fundo da cisterna. Então, com uma ideia cruel, retrocedeu ao viso da montanha, galgando, com agilidade incrível, as rochosas escarpas.

Despertou os pastores e, no meio deles, falou.

Há um monstro na floresta — mostrou-me o luar. Vendo-o, invoquei o nosso divino patrono e avancei resoluto. Pan ia comigo, a meu lado, invisível, e foi ele, de certo, que me ajudou a vencer a hidra que vinha assolar e entristecer a serra benigna. Vagaroso, cauteloso, aproveitando o sono, cheguei-me ao monstro e, forte com a proteção do deus silvestre, fi-lo rolar na cisterna. Lá está! Urge que o acabemos para que não volte à Terra plana. E todos os pastores com chusma amotinada, seguiram precipitadamente acompanhando o pastor que mentira.

Chegaram à floresta era tumulto. Alguns debruçaram-se à beira da cisterna e viram um clarão no fundo lúgubre. Um bradou: “Que esplendor!” Outro exclamou: “É um astro!” Mas o pastor insistiu:

— É o monstro...  E, para animar os companheiros, atirou para o abismo o primeiro tronco e todos correndo, bradando, puseram-se a imitá-lo. Até a hora da alva, trabalharam no impiedoso aterro e o fulgor, à medida que se despenhavam toros e pedrouços, ramalhos e torrões das barrancas, subia trêmulo como se flutuasse.

Quando o entulho chegou às bordas o velho pastor saltou sobre ele espezinhando-o, tripudiando, a rugir: “Mentira vil! Mentira infame!” Mas os pastores recuaram deslumbrados, o próprio velho tombou por terra, como ferido do raio e, nua e linda, clara, de pé à borda da cisterna, a aparição brilhava.

Houve um clarão mais fulgido do que o romper do sol, depois a forma luminosa ergueu-se, leve no ar, e, suavemente, librando-se, foi ascendendo direita, serena e radiante.

Os homens rojados viam-na subir sempre rútila. Fez-se no espaço como uma lua, diminuiu e não foi mais que uma estrela, ainda cintilou como centelha no céu e perdeu-se. Abriu-se esplendidamente o Olimpo o os deuses, deixando o zodíaco, saíram a receber a pulquérrima deusa.

Fecharam-se de novo os batentes elísios, a sombra ficou vitoriosa na terra e as ilusões enxamearam o mundo.

E nunca mais a Verdade apareceu entre os homens senão como o pálido clarão que desce do corpo de um planeta morto.

FIM