TESTAMENTO
POETICO-ANACHREONTICO
POR
João de Figueiredo Maio e Lima
(Precedido d'uma noticia bibliographica pelo editor e d'uma poesia dedicatória pelo dr. Francisco Nunes Pousão).
EDITOR
Antonio José Torres de Carvalho
ELVAS
NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA
Á falta de elementos próprios para traçar uma ligeira bibliografia de tão distinto poeta socorremo-nos das poucas notícias colhidas a seu respeito por Inocêncio da Silva e Nunes Pousão.
João de Figueiredo Maio e Lima, autor da Ode epódica que sob a epígrafe — Testamento poético-anacreôntico — publicou em 1838 no Ramalhete, jornal de instrução e recreio, nasceu, no Alentejo, na vila das Galvêas, em 10 de Fevereiro de 1779, sendo seus pais Bernardo de Figueiredo Maio e Lima e D. Joanna Micaela de Bastos.
Destinado à vida eclesiástica e já professo na ordem de Avis, cursava em 1808 os estudos universitários de Coimbra, quando as hostes napoleônicas irromperam em Portugal.
Levado quiçá do ardor da mocidade e de seus sentimentos patrióticos, interrompeu a carreira acadêmica e sentou praça de cadete em artilharia 3, onde serviu por espaço dum ano, findo o qual, foi promovido a alferes para o regimento de infanteria 22, em cujo posto e corpo se conservou até ao termo da campanha.
Com que saudade ele invoca o venturoso tempo em que, esbelto mancebo, lustrava a sua brilhante farda de oficial pelas ruas de Elvas!…
Bastas vezes pediu e instou em prosa e verso para ser elevado ao posto de capitão, mas nunca obteve o desejado deferimento.
Julgando-se preterido em seus direitos não poucas vezes requereu também sem ser atendido, a exoneração do serviço, que só lhe veio a ser concedida em 1814, quando finda a guerra peninsular.
Desligado da vida de soldado, voltou de novo os olhos para o altar, entrando como freire professo na ordem de Avis, e, ordenando-se pouco depois de presbítero, conseguiu o priorado da matriz da vila de Borba que era da apresentação dos freires de Avis.
Aqui, na pastoreação do seu rebanho e no cultivo predileto das belas letras, perdeu completamente a luz dos olhos, mas não a do espírito rutilante que ressalta da composição agora reproduzida, e que, como outras do autor, não merecia ser votada ao esquecimento.
Maio e Lima — tem qualidades poéticas apreciáveis: vivo de fantasia, feliz nas imagens, harmonioso no canto e correto na metrificação, é pouco menos que conhecido, ainda entre gente lida e ilustrada.
Verdade seja que idêntico estigma pesa ingratamente sobre outros poetas. Quem se lembra hoje, por exemplo, de João Xavier de Mattos, cujas odes e canções encantam pela concepção, contextura e harmonia?!… E contudo merecia não ser esquecido numa literatura onde os verdadeiros engenhos não abundam.
Dá-se frequentemente no mundo intelectual o fenômeno singular duma lei do mundo físico: as palhas sobrenadam ou flutuam à superfície do lago, em quanto os graves se afundam nos abismos do pego!…
Reparamos em parte a injustiça trazendo novamente à luz o Testamento de Maio e Lima que inspirou a Francisco Nunes Pousão, quando delegado do procurador régio em Elvas, a poesia dedicatória, inédita, que o precede.
Não perdoaram ao poeta, cego e sexagenário, que esquecesse a gravidade do sacerdócio, e bem caro lhe fizeram pagar a ousio da sua musa erótica e travessa arrojando-o aos horrores duma prisão, onde jazeria os últimos anos da vida, se mão piedosa e valedora o não fosse de lá arrancar.
O seu temperamento e rara energia resistiram ainda por muito tempo ás vicissitudes da sua existência atribulada, pois que tendo publicado o Testamento em 1838, só veio a falecer 12 anos depois, em 15 de Janeiro de 1851.
Embora publicadas em sua vida, algumas das suas composições, senão todas, são hoje raríssimas. Inocêncio dá o catalogo delas, a que juntaremos uma Ode dedicada ao seu amigo dr. José Valentim de Oliveira e Gama, a qual reputamos inédita e que brevemente publicaremos.
A João de Figueiredo Maio e Lima
Dum destino cruel ferio-te a farpa…
Véu de prantos nas faces te desceu!
Em lágrimas soltaste então da harpa
Tristes cantos de dor, que me prendeu.
Tu havias cantado a relva, as flores
O estendal de matiz do pátrio Sor,
E o gorjeio das aves, e os pastores,
E destes o singelo, ardente amor;
As campestres coreias… as meiguices
Da pastora gentil ao seu dileto…
Do amor juvenil as mil doidices…
Veementes canções dum ígneo afeto;
Aquelas confissões, que d'alma saem
Á luz da meiga lua, junto à fonte…
E as promessas, que a flux dos lábios caem
E os adeuses, que curvam triste a fronte;
Aqueles sins soltados tão medrosos
Em tapetes floridos nos rosais…
Aqueles mil protestos calorosos,
Que de amor a chama acendem muito mais!…
Quando a pátria depois pediu teu braço,
Tu da pátria o pendão seguiste altivo;
Mas sempre da ventura o sopro escasso!
Mas sempre da intriga um traço vivo!
Tu enfloras então o áureo plectro
Das saudades, que tens, co'a roxa flor;
Relembras, Figueiredo! em triste metro
Os tempos juvenis no argênteo Sor;
E os jardins amenos do teu rio
Mais doces, mais mimosos, mais dourados[1]
De mais verde tapete e mais macio
Que os Jardins das Hespérides sonhados!
É de ver como então plangente endecha
Lembra o tempo da tua Márcia qu'rida,
Como em terno suspiro a dor se queixa,
Como a alma na dor se vai perdida!
E tu cantas também, como aborrias
Do Sacerdócio a vida destinada,
Pensando em modos mil, por que podias
Sem ser padre no Céu dar a entrada!
Contra a França em socorro a pátria chama
Ai! do filho! que a mãe não viu bradar!
Brandos mirtos, que a doce Vênus ama
Pelos louros mavórcios vais trocar!
Longo tempo nas armas é passado
E mão clemente a banda te cingia…
Mas pela cara irmã (rigor do fado!)
Dragona solitária em vão carpia.
Mais tarde, Lima! a Virgem Durindana
Trocaste pela estola, pelo altar;
Como dizes, rubra cinta ao Guadiana
Áureas franjas e elmo vais lançar.
Mas nessa nova senda ora trilhada
Sempre as plantas o espinho vem fender;
No fatal Testamento desfolhada
A rosa da ventura vês morrer!
É certo, Figueiredo, que imprudente
Foste um pouco no acesso imaginar!
Ergueu-se em altos voos teu estro ardente,
E não viste o cálix santo, o teu altar!!
Pobre Vate! O arrojo bem pagaste!
Em tétrica masmorra o pranto cai!
Mas dum anjo o amparo enfim ganhaste,[2]
Adeja benfeitor, soltar-te vai!
E tornaste, Pastor, ao teu armento!
E voltaste, Poeta, ás tuas canções!
Brilhou de novo o sol no firmamento,
Falou de novo o plectro aos corações!
Aceita, excelso Vate, em teu sudário,
Aljôfar de saudade — este meu pranto!
Há quem tenha na terra o teu Calvário,
Ai! mas falta-lhe o teu mimoso canto!
N. Pousão.
TESTAMENTO POÉTICO ANACREÔNTICO
Aut prodesse volunt, aut delectare Poetoe Horacio — Art. Poet.
Na solitária testa já branqueiam
Os desbotados louros,
Que as Musas algum dia me enramavam
Com grinaldas de rosas
E em dourados anéis por estes ombros,
Ao desdém esparzidos,
Eram do vento alegre o desenfado.
De onze lustros ao peso
Á carga enorme o corpo já sucumbe
Carunchoso e quebrado;
Ruga senil as faces lavra e cresta,
Sinto estalar os ossos,
Vergam as costas, não circula o sangue
Na intumecida artéria;
Frio torpor ocupa os membros todos,
Vão-me caindo os dentes
Uns após outros, falta o lume aos olhos,
Aos olhos perspicazes,
Que nos doutros amantes descobriam
Recônditos mistérios;
E sob o véu mais denso e o mais escuro
De travessas Nerinas
Os lácteos peitos, os limões de neve,
Quando de amor e zelos,
De susto ou de prazer lhes titilavam.
Não, meus sócios amigos,
Não me custa, não ver o Sol brilhante,
A roxa, a fresca Aurora,
O Iris de furta cores, o de estrelas
Azul manto da Noite
Cá e lá embutido, plantas, bosques,
Loura seara ondeando
Com o bafejado Norte, um horizonte
Imenso e dilatado,
Onde o pincel apura, esgota as tintas,
Toda a Arte, e a Natureza;
Não ver da meiga Lilia as tranças de ouro,
Da trêfega Corina
Os gestos, os trejeitos, os acenos
Com que a um tempo engana
Sagaz, dois, três, quatro, cinco amantes;
Não ver da terna Elfira
Os nédios braços, os cabelos de ouro;
Não ver de Clores e Fílis
Os rubros lábios, quando a furto beijam
No baile mãos alheias;
Em fim não ver… Não ver um ar, um rizo,
Uns meneios suaves,
Uns olhos cor do Céu, um alvo rosto,
Eis o que mais me custa!!…
O gás Celeste, o sacro entusiasmo,
Que me fervia n'alma,
Já se extinguiu de todo; o arrebatado
Giro dos anos tudo
Levou consigo inexorável; tempo,
Tempo aquele venturoso,
Em que eu de Elvas as ruas descalçava
Co’a ferrage à inglesa,
Na luzidia bota, e quase sempre
A passo acelerado:
Quando do infausto galo negras penas,
Que outras ainda mais negras
Já então me agouravam, o acharoado
Morrião meu compunham;
Quando áurea franja me pendia aos ombros,
Purpúrea banda à cinta,
Virgíneo sabre ao lado, que ímpio abria
Profundas brechas, regos
Em becos e travessas da cidade,
E a azul, e airosa farda,
Obra do insigne mestre Nigromante
Em Adônis, em Marte,
Me transformava. E agora esta sotaina
Da cor de meus pecados!
E azas, que o Sul a bel' prazer meneia,
Qual ronceira falua,
Ou barco d'água-acima com dous remos;
Um chapéu de três ventas,
Candeeiro das trevas co’a pombinha,
Que topeta com tudo,
E diz a todos — Alto! vade retro! —
Enorme horrenda aranha,
De que o mesmo S. Bento horror teria,
Que aos nossos Hebreus lusos
O seu Moisés tricórnio me figura,
Ou moinho gigantesco
Ao bravo herói da Mancha! Então que vezes,
Musico Anfião canoro,
Pedras, peitos cruéis tornei mais brandos,
Mais doces, que o mel de Ibla;
Mais que o alvo açúcar do Brasil em ponto!
Quantas e quantas vezes,
Manhosas mães, raposas sorrateiras,
Finas abelhas mestras,
Feros Dragões, mil Argos de cem olhos,
Que guardavam insones
De ouro as belas maçãs, de Inaco as vacas,
Outro Alcides valente
Amansei, enganei co’ambrósia, o pasto
Da mélica Poesia,
E engenhoso Mercúrio ao som da flauta,
Ao som da minha Lira,
Dos Numes, dom adormeci cantando!
Nem vós, caros doutores,
Jocoso Valentim, sisudo Salles,
Avicenas peritos
Da nossa cidade, Hipócrates famosos,
Deuses da Medicina,
Nem vôs co'as garatujas Tubalenses,
Infalíveis, heroicos
Filtros, venenos, Sam Migueis, balanças,
Tudo e toda a Farmácia,
Podiam revocar tão belos tempos
De saudosa memória,
Restituir ao pálido semblante
A cor de rosa e neve,
A luz perdida aos olhos, claros dentes
Ao deslocado queixo,
A deserta cabeça povoar-me
De meus antigos louros,
Tornar-me finalmente à juventude;
Nestores de três sec’los,
Matusaléns de novo já caducos,
E sem calor, nem forças,
Só banhos e águas do Jordão remoçam.
Quando alta noite sinto
Bater na velha porta a férrea argola,
Cuido que a Parca horrenda
Já vem buscar-me, e que me bate à porta
Com a fouce longa e curva,
Impune devassando, e então a que horas!
Das leis em menoscabo,
A casa, o lar, o asilo, o santo alcáçar,
Os penetrais sagrados
Do cidadão pacifico e inocente,
Que dorme a sono solto!
Ah! quando eu lhe cair nas ímpias garras
Sabei, ternos amigos,
Minha última vontade: não, não quero,
Que a triste campainha
Publique aos mais viventes minha morte
Pelos cantos das ruas,
Que em adro escuro, em ermo cemitério
Repousem minhas cinzas;
Nem que o frio cadáver seja envolto
Em vestimenta escura;
Nem com fúnebres círios, negros vultos,
A passo grave e lento,
Mudos cabisbaixos me acompanhem:
Quero que a minha amada
Co'os dedos de jasmim piedosa e meiga
Meus turvos olhos cerre,
E co'avarento véu, que ao Sol esconde
Globos de neve e leite,
E o Sol beijar deseja, a derradeira
Lágrima então me enxugue
Ao longo pela face escorregando
Em reluzente fio.
Item — que sobre o féretro me ponham
A lira, a pena, a espada,
Que seis louros mancebos revestidos
De túnicas bem alvas,
E ornados de odoríferas capelas,
Aos ombros me conduzam;
Quero que oito donzelas das mais lindas,
Que houver nestes contornos,
Também de branco e flores adornadas,
Ao tumulo precedam,
E que em vez de canções, tristes endechas,
Ou lutuosas nênias,
Tangendo adufes, charamelas, flautas,
Me cantem sempre alegres
Hinos do meu Camões, versos de Lobo,
De Bernardes, e doutros
Da nossa antiga, ilustre, douta, e honrada
Mas pobre confraria:
Que junto de um loureiro e de uma fonte
O sepulcro me cavem;
E não quero que o bárbaro coveiro,
Homem sem dó, abutre,
De carne morta nunca farto corvo,
Co’a ferrugenta enxada,
Com maço funeral, rodeiro e horrendo,
Qual de Hercules e clava,
Meus tristes, velhos e cansados ossos
Moa, desfaça, ‘strua,
E a cabeça me quebre ainda em morto!
Basta, o que basta em vida! —
Item — mais, — que os mancebos, e donzelas
Em tripúdios e danças,
Ao derredor da campa honrem meu nome
Porque estou livre e solto
Já do cárcere da vida, tantos males,
Perigos e cegueira;
Que a par e par, de espaço a espaço todos
Venham mui mansamente,
Lançar-me terra, e flores no jazigo;
E três vezes batendo
Co’esquerdo pé no chão, por Figueiredo
Bradem três vezes todos,
Dizendo em alta voz: Em paz descansa!
A mesma cerimónia
Se fará em meu dia aniversário
Até ao fim do mundo;
Que findas as exéquias, findo tudo
A donzela mais tenra,
Mais moça, mais mimosa, mais galante,
Dentre as oito que forem,
Sele, cerre o caixão, e entregue a chave
A Márcia, que beijando-a,
Pranto saudoso há-de verter sobre ela,
Pranto, que dar podia
Ao morto vida, se tocasse o morto:
E finalmente quero
Que no tronco do próximo loureiro
Em caracteres grandes,
Por que melhor o viajante o leia,
Se escreva este epitáfio. —
«Aqui jaz Figueiredo, que em mancebo
«Seguiu armas e letras;
«Não imitou no gênio a Homero e Milton,
«Na cegueira imitou-os;
«Foi das ninfas cantor, cantor de amores,
«Cantou heróis e guerras;
«Foi sempre ao rei fiel, temente aos Deuses,
«Sempre amigo dos homens;
«Sempre objeto da intriga, alvo da inveja,
«Em todos os estados;
«Quanto lhe foi pesada a vida, agora
«Lhe seja a terra leve!»
[1] Os versos em letra itálica são tirados da várias composições do poeta Figueiredo.
[2] A Condessa das Galvêas empenhou-se a favor do poeta para elle ser solto.